introduçãoàteoriadejacqueslacan_aula2_editado

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“Uma introdução à teoria de Jacques Lacan” Marco Antonio Coutinho Jorge 2ª aula "A única certeza que o sujeito pode dar é em relação ao seu desejo" Jacques Lacan (1901-1981) Quando Lacan refere-se a desejo, como na frase acima, está montando um conceito de reconhecimento: o objeto não está no cerne do desejo, mas na demanda de algo. O desejo parte do sujeito, e é incognoscível - jamais poderemos entendê-lo. Uma criança está mais interessada no braço que lhe estende algo do que no objeto em si. Podemos considerar a tripartição estrutural entre Real, Simbólico e Imaginário como uma das maiores contribuições de Lacan à psicanálise. Em 1974 apresentou o seminário R.S.I., amarrando os três conceitos em uma visão estrutual, ligada entre si e quase indissociável. Cada um destes pontos pode ser observado em partes da obra de Sigmund Freud (1856-1939). O simbólico dá-se como o inconsciente estruturado na linguagem, podendo ser situado no início da obra de Freud, entre 1900 e 1905, nos textos "A interpretação dos sonhos" (1900), "Psicopatologia da vida cotidiana" (1901) e "Os chistes e sua relação com o inconsciente" (1905). Todos os três tratam da relação entre linguagem e inconsciente, e aqui estrutura-se o simbólico de Lacan. Ao imaginário cabe toda a parte de sua obra que diz respeito ao narcisismo. A palavra nada tem a ver com a imaginação, mas com uma auto- imagem do próprio corpo. "Sobre o narcisismo" (1914) é o texto de destaque desta teoria.

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Page 1: IntroduçãoàteoriadeJacquesLacan_AULA2_EDITADO

“Uma introdução à teoria de Jacques Lacan”Marco Antonio Coutinho Jorge

2ª aula

"A única certeza que o sujeito pode dar é em relação ao seu desejo"

Jacques Lacan (1901-1981)

Quando Lacan refere-se a desejo, como na frase acima, está montando um

conceito de reconhecimento: o objeto não está no cerne do desejo, mas na demanda

de algo. O desejo parte do sujeito, e é incognoscível - jamais poderemos entendê-lo.

Uma criança está mais interessada no braço que lhe estende algo do que no objeto

em si.

Podemos considerar a tripartição estrutural entre Real, Simbólico e Imaginário

como uma das maiores contribuições de Lacan à psicanálise. Em 1974 apresentou o

seminário R.S.I., amarrando os três conceitos em uma visão estrutual, ligada entre si e

quase indissociável. Cada um destes pontos pode ser observado em partes da obra de

Sigmund Freud (1856-1939).

O simbólico dá-se como o inconsciente estruturado na linguagem, podendo ser

situado no início da obra de Freud, entre 1900 e 1905, nos textos "A interpretação dos

sonhos" (1900), "Psicopatologia da vida cotidiana" (1901) e "Os chistes e sua relação

com o inconsciente" (1905). Todos os três tratam da relação entre linguagem e

inconsciente, e aqui estrutura-se o simbólico de Lacan.

Ao imaginário cabe toda a parte de sua obra que diz respeito ao narcisismo. A

palavra nada tem a ver com a imaginação, mas com uma auto-imagem do próprio

corpo. "Sobre o narcisismo" (1914) é o texto de destaque desta teoria.

O real é muito referido no momento de grande virada da obra de Freud, em

1920, com "Além do princípio do prazer". Neste momento ele concebe a pulsão de

morte, a partir da qual revê toda sua obra, como sempre o fazia toda vez que

encontrava um novo conceito. Este hábito do psicanalista austríaco tornava sua obra

ampla e densa, espraiando-se em diferentes direções.

Através deste aspecto é interessante observarmos como Freud também lidava

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com seu próprio inconsciente: estamos todos mergulhados nele, e não podemos

prever onde nossos próprios passos nos levarão. Somente ao olharmos para trás, no

percurso percorrido, podemos entender melhor nossas ações. A análise funciona como

uma experiência pontual, que opera aos poucos. Ninguém desvenda seus aspectos

psicológicos de maneira generalizante. O ser humano está ligado aos aspectos mais

cotidianos de sua vida – à filosofia caberá criar visões gerais sobre a vida humana.

Nomeando, portanto, o R.S.I. lacaniano, temos o real como a falta de sentido, o

nonsense; o imaginário sendo da ordem do sentido e o simbólico como o duplo

sentido. O real e imaginário se opõem quando nos deparamos com algo

absolutamente fora do comum, que nao faz sentido. O real não entra na realidade,

não possui nome ou palavra para designá-lo.

Em seu livro "Teoria da religião", o escritor francês George Batailles (1987-1962)

afirma: "O animal está no mundo como a água na água". Assim como o elemento da

vida, o animal não separa-se do ambiente. O ser humano não estabelece-se da

mesma maneira: ele separa-se do mundo no qual vive através da linguagem. Esta

funciona como um abismo paradoxal entre homem e realidade, que torna-se cada vez

mais vasto toda vez que o homem tenta transpô-lo, mas necessário toda vez que ele

tenta expressar-se.

A atividade sexual animal segue padrões regulados pela espécie. Chamamos

isso de instinto: possui um objeto determinado, seguindo ciclos repetitivos e domina o

animal. O ser falante subjuga seu instinto. Para ele Freud designa um novo termo:

pulsão, ou “Treib”.

Podemos entender este conceito como um texto inscrito no imaginário de cada

ser. No animal, inscreve-se um texto completo, totalmente preenchido; um roteiro

pronto para a vida. Já no caso do homem, este texto funcionaria como um livro cujo

capitulo principal fora arrancado, perdido e jamais conhecido. Todos que o lêem o

preenchem de uma maneira própria, diferente das versões de seus semelhantes. O

importante neste conceito é entendermos que não existe um exemplar verdadeiro: no

campo do inconsciente não existe um objeto sexual predeterminado. Para um bebê,

todo e qualquer objeto pode tornar-se fonte de excitação; de suas próprias fezes a

uma chupeta. Por isso Freud refere-se à sexualidade infantil como uma perversidade

polimorfa. O pinto espanhol Salvador Dalí retratou bem a permeação da psicanálise na

arte surrealista em seu quadro “O perverso polimorfo”.