introdução entre o mito e a fronteira

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Entre o Mito e a Fronteira. Estudo sobre a figuração da Amazônia na produção artística contemporânea de Belém. Fábio Fonseca de Castro Introdução A impressão de estar entre o mito e a fronteira, com as adjetivações e variações que acompanham esses termos, foi uma experiência recorrente para quem vivia em Belém, bem como em outras cidades e espaços amazônicos, nas últimas décadas do século XX. Vivenciava-se, então, uma experiência de rápida integração da Amazônia ao espaço nacional brasileiro. A violência dessa integração, com seus capitais, transumâncias, devastações e “grandes projetos”, provocava sentimentos ambivalentes em quem pertencia à Amazônia e julgava que ela a si pertencia. Uma invasão subjetiva, com esferas de arrogância, determinismo e contradição. Tratava-se, em primeiro plano, desse sentimento ambivalente de perceber a fronteirização do mundo próprio, o avanço do outro sobre o pretenso si-mesmo coletivo. Em plano decorrencial, tratava-se de empreender estratégias de verificação, verisdição e afirmação desse si-mesmo coletivo. Tratava-se de reorganizar o campo do mito como forma de resistência aos avanços da fronteira. A história avançava muito rapidamente, em Belém, nesse tempo e uma das respostas mais intrigantes da cidade a esse processo de transformação foi dada por artistas, intelectuais e produtores culturais, que iniciaram um processo coletivo, intersubjetivo, de discutir a identidade e as fontes culturais da sua sociedade amazônica. Esse processo foi espontâneo. Não teve lideranças absolutas, dogmas ou prescrições. Foi um fazer-junto, um sentir-junto. Por isso mesmo, não foi teorizado, explicado ou mesmo percebido, claramente, em seu tempo. Da mesma forma, não produziu sínteses absolutas, mas sim aproximações, tipificações, sedimentações intersubjetivas.

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Entre o Mito e a Fronteira.Estudo sobre a figuração da Amazônia na produção artística contemporânea de Belém.

Fábio Fonseca de Castro

Introdução

A impressão de estar entre o mito e a fronteira, com as adjetivações e variações que acompanham esses termos, foi uma experiência recorrente para quem vivia em Belém, bem como em outras cidades e espaços amazônicos, nas últimas décadas do século XX. Vivenciava-se, então, uma experiência de rápida integração da Amazônia ao espaço nacional brasileiro. A violência dessa integração, com seus capitais, transumâncias, devastações e “grandes projetos”, provocava sentimentos ambivalentes em quem pertencia à Amazônia e julgava que ela a si pertencia. Uma invasão subjetiva, com esferas de arrogância, determinismo e contradição.

Tratava-se, em primeiro plano, desse sentimento ambivalente de perceber a fronteirização do mundo próprio, o avanço do outro sobre o pretenso si-mesmo coletivo.

Em plano decorrencial, tratava-se de empreender estratégias de verificação, verisdição e afirmação desse si-mesmo coletivo. Tratava-se de reorganizar o campo do mito como forma de resistência aos avanços da fronteira.

A história avançava muito rapidamente, em Belém, nesse tempo e uma das respostas mais intrigantes da cidade a esse processo de transformação foi dada por artistas, intelectuais e produtores culturais, que iniciaram um processo coletivo, intersubjetivo, de discutir a identidade e as fontes culturais da sua sociedade amazônica.

Esse processo foi espontâneo. Não teve lideranças absolutas, dogmas ou prescrições. Foi um fazer-junto, um sentir-junto. Por isso mesmo, não foi teorizado, explicado ou mesmo percebido, claramente, em seu tempo. Da mesma forma, não produziu sínteses absolutas, mas sim aproximações, tipificações, sedimentações intersubjetivas.

Algumas vezes utilizo a expressão “quadro de pensamento”, desenvolvida por Max Weber, para explicar esse processo. Com essa expressão, poderia compreendê-lo como um feixe de significações, códigos, operadores de sentido. Ou como a vontade, utopista, de um desejo-de-ser, um processo de sedimentação do sentido comum que coisifica o mundo, transformando-o, levando-o ao encontro de um projeto intuído.

Tratar-se-ia de um ideal-tipo, um projeto, uma vontade comum, cujo mote central é a noção de identidade amazônica – análoga à de cultura amazônica.

Essa identidade amazônica pode ser vista como um ideal-tipo, no sentido weberiano: um sentido-em-curso, tempo-a-ser, lugar-a-chegar. Portanto, como um horizonte de compreensão – que se conforma como blocos de experiências sociais, se traduz enquanto situações típicas e se sedimenta, na sociedade, constituindo estoques de conhecimento e historicidades. Trata-se de um processo comum a todo curso social, mas se torna peculiar quando se intensifica, quando se sente pressionado e crente de que algo deve ser agilizado, algo deve ser salvo.

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Foi o que aconteceu, penso, na vida intelectual de Belém ao longo das últimas três décadas do século XX. Nesse sentido, este livro procura funcionar como uma espécie de fotografia de um certo momento histórico, de uma experiência comum. A fotografia, talvez, da construção coletiva de uma identidade – ou do esforço de produção de sentido para um estar-no-mundo ameaçado. Um processo de intensificação da identificação social em curso.

Este livro fala sobre esse processo. Fala sobre a moderna tradição amazônica e seu dinamismo, seu vitalismo. Fala sobre situações de ansiedade em relação ao fim da cultura e sobre a economia do sentido comum.

A moderna tradição amazônica pode ser vista como um desvelamento social. Não como a recuperação e defesa de uma essência ou o resgate de tradições, como querem tantos autores, ainda dominados pelos paradigmas de uma modernidade castradora, mas sim como uma bricolagem coletiva, uma invenção ou imaginação cujos processos, dispersos no corpo social, podem aqui ser chamados de intersubjetividade.

O dinamismo do fenômeno social observado, com essa razão interna, teria, a meu ver, um equivalente na noção benjaminiana de tempo-já, ou melhor, agoridade, a qual se refere à fulguração de um futuro nos atos do presente, ou melhor, no sonho em relação ao futuro, a uma situação de futuro, como força capaz de concentrar as energias do presente. Para Walter Benjamin, a agoridade seria uma suspensão espontânea do real com o fim de alcançar o verdadeiro.

Como disse, tento descrever, ou fotografar, um momento em seu curso. Na trajetória da minha observação, procurei situar, a princípio, o espaço-objeto – a intuição da fronteira em seu momento de constituição. Em seguida, procurei situar, nessa fronteira, minha trajetória de observação, precisando meu contato com tudo aquilo que constitui a moderna tradição amazônica. Sem ilusões de objetividade, pretendi, reunir os fragmentos de uma realidade. Mapeada a fronteira, com suas intuições, procurei organizar as impressões havidas, como a constituir uma cartografia dessa zona fronteiriça imprecisa.

Enfim, empreendi uma reflexão sobre os dados coletados em sua “tipicidade”. Ou, mais precisamente, tentei observar o fenômeno de intersubjetividade assinalado em termos de uma sociomorfologia da “identidade” amazônica.

Minha conclusão, em síntese, é de que a moderna tradição amazônica não constitui um tempo histórico, não é herdeira de um passado, não é a recuperação de uma essência. Ao contrário, ela é uma invenção do presente e no presente. Ela é aesthesis, é sentir coletivo, é refluxo de intersubjetividade, é alegoria do mundo – marcada pela aurificação inusitada de seu objeto obsedante, de maneiras de ser, modos de pensar e estilos de comportamento.

Nesse sentido, ela é a procura por uma forma, a indagação sobre uma origem, sobre uma casa, sobre um pertencimento que, fundamentalmente, não coincide com o espaço amazônico, especificamente, e nem com qualquer outro espaço geográfico-histórico, mas sim com a forma superior de uma identidade inexistente, ainda que projetada e em constante reelaboração.

É conhecido o pensamento de Paul Ricoeur de que não é possível historiar o presente. Enquanto atores de uma história em curso, não teríamos o distanciamento e a imparcialidade necessários para compreendê-la em suas formas gerais ou perceber nela seus motivos e fundamentos, eventualmente mascarados pelas ideologias, ilusões e perspectivas dominantes em vigor. Estando imersos nesse presente – num tempo que

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ainda não se constituiu em história – seria, portanto, impossível falar sobre a história. Porém, se não é possível historiar o presente, será possível, certamente, observá-lo e, talvez, intuí-lo. Por intuí-lo pode-se dizer vivenciá-lo, constituí-lo enquanto experiência sensível. Narrá-lo. É nesse sentido que a sociologia compreensiva e fenomenológica que vislumbro se converte, ainda, numa prática etnográfica: narrar o que nos submerge, resgatando a compreensão – e a intuição – de um todo ainda complexo.

Este trabalho constitui uma parte de minha tese de doutorado. Preferi decompô-la, a publicá-la em seu conjunto. Isso porque, enquanto tese, compus uma discussão em formato circular que inclui uma discussão teórica sobre o problema da identidade e o esboço de uma teorização a respeito da identificação social; uma observação sobre a dinâmica social e temporal que envolve o tema da identidade nas sociedades amazônicas e que toma a forma, num momento mais específico, de uma análise da formação econômica e social da Amazônia oriental (o horizonte daquilo que, neste livro, equivale ao “avanço da fronteira”); e um estudo a respeito da representação da identidade na Amazônia contemporânea. “Entre o mito e a fronteira”, correspondente a esse terceiro elemento, é o núcleo da tese, o objeto estudado. Porém, dele também extraí os capítulos que tratam das cenas culturais belemenses em sua dimensão histórica. Assim, sendo, este livro corresponde a metade objectual, embora não necessariamente física, de uma terça parte do trabalho original de tese. Todos esses excertos ganharão vida própria, no tempo hábil.

Minha escolha por iniciar esse trabalho de recorte destacando “Entre o mito e a fronteira” se deve não apenas ao fato de que, efetivamente, se trata do núcleo da pesquisa doutoral – e, assim, o objeto mais acabado do conjunto – mas também à necessidade de colaborar com o debate, sempre em curso, sobre a representação da Amazônia pelos próprios amazônidas. Um debate análogo às sempre presentes, em Belém, discussões sobre a produção cultural amazônica, a identidade ou identidades locais e as políticas públicas para a identidade, a cultura e a comunicação.

Acho necessário mencionar, porém, que fará alguma falta, a este livro, evocar certos aspectos arqueológicos da formação econômica, social e cultural da produção intelectual de Belém que estão presentes nas demais partes do trabalho. Digo-o sem obstar a leitura do que o constitui, mas para que não falte saber que o que chamarei, a seguir, de moderna tradição amazônica, não é um fenômeno que surge espontaneamente e do nada. Há uma dimensão arqueológica na sua conformação como fenômeno sociológico, representada por suas fontes no pensamento intelectual que a precedeu. Refiro-me a uma vasta experiência intelectual coletiva que pode ser encontrada no debate cultural da cidade de Belém desde, pelo menos, meados do século XVIII e que toma formas sociais, ao longo da primeira metade do século XX que constituirão referencias importantes para a moderna tradição amazônica, bem como para toda a vida intelectual da Belém contemporânea. Todo esse material conforma os referidos capítulos que tratam das cenas culturais belemenses em sua dimensão histórica. No tempo oportuno, pretendo ampliá-los e publicá-los – e isso, certamente, possibilitará algumas fontes a mais para a compreensão fenomenológica da moderna tradição amazônica.

E isto dito, passemos à estrutura deste livro. Ele se divide em cinco capítulos. O primeiro, intitulado “A moderna tradição amazônica”, apresenta o objeto investigado: o processo social intersubjetivo de figuração estética da Amazônia, com suas dinâmicas históricas. Não se trata de um discurso ou de uma ideologia, mas de uma prática, de

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uma figuração, que produz discursos e ideologias em certo momento, mas que lhes antecede enquanto processo de sedimentação coletiva do conhecimento.

No capítulo seguinte, “Uma sociologia da forma e do contágio”, reúno os elementos teóricos e metodológicos que utilizei na pesquisa, explicitando-os e descrevendo, por meio deles, o percurso de observação realizado. Também nesse capítulo, coloco a questão metodológica de fundo, que ecoa em todo o trabalho e que pode ser resumida na seguinte indagação: é possível uma sociologia realmente capaz de compreender a obra de arte? Ao mesmo tempo, vou construindo minha plataforma de observação – e, portanto, minha resposta a essa pergunta – desenhando, com apoio de Max Weber, Edmund Husserl, Alfred Schutz e Michel Maffesoli, dentre outros, um esboço de sociologia fenomenológica capaz de compreender a obra de arte como dinâmica social intersubjetiva.

No terceiro capitulo, “O vitalismo da moderna tradição amazônica”, procuro construir um panorama da cena cultural belemense e, nesse processo, aplicar a sociologia fenomenológica proposta. A idéia é desenhar um mosaico aberto, no qual linguagens artísticas, épocas, personagens e falas convergem em direção a uma forma social específica. Procuro tornar compreensível um processo social indireto, algumas vezes subliminar e outras vezes ideológico, mas, mais que isso, um processo prática de pactuação de sentidos. Com isso, pretendo identificar a razão interna do vínculo social mas, também, contribuir, digamos assim, para a sedimentação da compreensão da moderna tradição amazônica.

O quarto capítulo, “Sociomorfologia da identidade amazônica”, constitui uma discussão aprofundada da moderna tradição amazônica. Nele, mapeio as diversas sínteses de sentido que a operam e que traduzem os conflitos o estar entre o mito e a fronteira. Anoto as dinâmicas gerais e, em seguida, as formas sociais sintetizadas mais amplas (sínteses politéticas) ou mais fechadas (sínteses monotéticas) da identidade amazônica pretendida. A intenção é descrever as dinâmicas de tipificação da realidade produzidas, politicamente, a partir do embate de sentidos ali presentes.

Porfim, no capítulo conclusivo do livro, “A Amazônia como alegoria da identidade”, reúno as conclusões do trabalho, identificando a dimensão alegórica das produções de sentido identitário presentes no fim do século XX na cidade de Belém. Trata-se, na verdade, de uma conclusão, na qual sugiro que a identificação amazônica presente nas figurações artísticas de Belém, conformam alegorias para o ser social, intersubjetivo e em permanente processo de reformulação de sentidos.