introduÇÃo -...

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13 BRAVO INTRODUÇÃO Existem duas formas de fazer uma viagem de veleiro ao redor do mun- do. A primeira, é sendo um profissional do esporte, participando de regatas, querendo vencer desafios e mostrar que pode ser o primeiro; e a outra, é pela re- alização pessoal, sem querer provar nada a ninguém. Decidi pela segunda opção. O mar deixou o Bravo passar e ele levou minha família ao redor do mundo. Com o tempo fui aprendendo que respeitando a natureza ela o deixará passar. E foi assim que esse feito foi realizado, pedindo licença e esperando o momento certo para seguir em frente. Claro que houve momentos em que isso não foi possível, e foi aí que vi como somos frágeis e pequenos em relação a essa força maior. Muitas vezes rezei e em nenhuma deixei de ser atendida, por isso acre- dito que Deus teve uma grande participação nessa aventura. Determinação, força, disciplina e desprendimento são requisitos bási- cos. Não digo que seja fácil o tempo todo, ou que seja uma aventura para qual- quer pessoa, mas sim que é algo possível e, como tudo na vida, basta querer. Digo que quando realmente queremos algo, nada é impossível, conseguimos rebater os senões e, quando não queremos ou temos medo de enfrentar, qual- quer coisinha é desculpa para não seguirmos em frente. Tempo é uma questão de prioridade, como diz meu irmão; dinheiro é relativo, depende do que se quer comprar. Quanto se gasta numa viagem des- sas? É a primeira coisa que costumam perguntar. A resposta é simples: o mes- mo que você sempre gasta em casa. O seu estilo de vida e sua forma de traba- lhar com as finanças é a mesma. Se você é um gastador, fará uma viagem cara, se sabe poupar, fará uma viagem econômica. Na verdade, só se muda de casa. Eu, particularmente acho que gastamos menos porque na cidade temos uma série de exigências e obrigações sociais que não existem no mar. Manutenção

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13BRAVO

INTRODUÇÃO

Existem duas formas de fazer uma viagem de veleiro ao redor do mun-do. A primeira, é sendo um profissional do esporte, participando de regatas, querendo vencer desafios e mostrar que pode ser o primeiro; e a outra, é pela re-alização pessoal, sem querer provar nada a ninguém. Decidi pela segunda opção. O mar deixou o Bravo passar e ele levou minha família ao redor do mundo. Com o tempo fui aprendendo que respeitando a natureza ela o deixará passar. E foi assim que esse feito foi realizado, pedindo licença e esperando o momento certo para seguir em frente. Claro que houve momentos em que isso não foi possível, e foi aí que vi como somos frágeis e pequenos em relação a essa força maior.

Muitas vezes rezei e em nenhuma deixei de ser atendida, por isso acre-dito que Deus teve uma grande participação nessa aventura.

Determinação, força, disciplina e desprendimento são requisitos bási-cos. Não digo que seja fácil o tempo todo, ou que seja uma aventura para qual-quer pessoa, mas sim que é algo possível e, como tudo na vida, basta querer. Digo que quando realmente queremos algo, nada é impossível, conseguimos rebater os senões e, quando não queremos ou temos medo de enfrentar, qual-quer coisinha é desculpa para não seguirmos em frente.

Tempo é uma questão de prioridade, como diz meu irmão; dinheiro é relativo, depende do que se quer comprar. Quanto se gasta numa viagem des-sas? É a primeira coisa que costumam perguntar. A resposta é simples: o mes-mo que você sempre gasta em casa. O seu estilo de vida e sua forma de traba-lhar com as finanças é a mesma. Se você é um gastador, fará uma viagem cara, se sabe poupar, fará uma viagem econômica. Na verdade, só se muda de casa. Eu, particularmente acho que gastamos menos porque na cidade temos uma série de exigências e obrigações sociais que não existem no mar. Manutenção

14 CLAUDIA SCHIRMER PORTELA

do barco? E a manutenção da sua casa? Compra do barco? E a compra da casa? É só uma troca.

Conheci pessoas viajando sem nada de dinheiro, tendo que trabalhar para poder seguir para o próximo porto e pessoas com muitos marinheiros que iam de marina em marina, de restaurante em restaurante, de mergulho em mergulho sem nem sequer perguntar o preço desses serviços. Como já disse, segue-se o mesmo estilo de vida que sempre se levou. É perigoso? Claro, viver é perigoso! Quem não tem medo de chegar em casa à noite? Drogas, assaltos, aci-dentes de trânsito, estresse, falta de tempo... Esse, para mim, é o pior, a falta de tempo para ver os filhos crescerem, para conversar, brincar, aproveitar a vida. Ser um cego correndo atrás da máquina, quanto mais dinheiro você ganha mais precisa gastar, mais precisa trabalhar, mais se exige. Isso sim é perigoso.

O mar me deu uma trégua, fez-me ver a beleza de coisas que não cos-tumava dar valor ou nem sabia que existiam. Ali fiz amizades verdadeiras, para toda vida. Vi a simplicidade da vida, abri o coração, livrei-me de preconceitos, enfim, fui feliz.

Demorei muito para começar a escrever esse livro por vários motivos: o primeiro, acredito que foi o choque da chegada. Sempre tinha ouvido falar que a parte mais difícil desse tipo de viagem é a volta, a readaptação. De minha parte está confirmado, senti na pele essa dificuldade! Só agora, passados seis meses, é que começo a me sentir melhor com essa “loucura coletiva” que é o dia a dia numa grande cidade.

O segundo motivo foi, sem dúvida nenhuma, a morte do Dudu, meu companheiro, meu amigo, minha força. Muitos não entendem, não me impor-to com isso, porque sei que só quem já teve o privilégio de conviver com um ser tão especial é que sabe o valor de uma verdadeira amizade.

O fato de nunca ter escrito um livro também pesou. O medo é um sen-timento inerente ao ser humano, é ele que nos mantém vivos e alerta, mas, como tudo na vida, dá duas opções: enfrentar ou recuar. Resolvi enfrentar.

Desde que voltei, as pessoas me cercam perguntando quando o livro sairá, quando vou começar a escrever etc. Cada um quer dar sua opinião de como se deve escrever um livro. É muito engraçado isso. Uns dizem que é preciso exagerar nas narrativas, outros dizem que temos que falar de monstros marinhos, perigos e tragédias, pois só assim a leitura despertará o interesse das pessoas. Uns chegam até a sugerir que eu invente coisas, e por aí vai. Mas eu só quero mostrar que esse é um sonho possível, menos complicado do que pare-ce. As coisas são mesmo muito mais simples do que as fazemos parecer. Como disse Freud: “Na maioria das vezes, um pepino é só um pepino”.

Primeira Parte

SUBIDA DO ATLÂNTICO

PORTUGALSet. 2008

MARROCOSSet. 2008

CABO VERDEOut. 2008

ILHAS CANÁRIASOut. 2008

FRANÇAAgo. 2008

ISRAELMaio 2008

TURQUIAJun. 2008

EGITOMaio 2008

IÊMENAbr. 2008

CARIBEMar. 2006

BAHAMASMaio 2006

CUBA Fev. 2007

EUA Jul. 2006

PANAMÁMaio 2007

GALÁPAGOSMaio 2007

POLINÉSIA FRANCESAJun. 2007

PartidaPARANAGUÁ12 dez. 2005 Chegada

ILHA DO MEL12 dez. 2008

Primeira Parte

SUBIDA DO ATLÂNTICO

PORTUGALSet. 2008

MARROCOSSet. 2008

CABO VERDEOut. 2008

ILHAS CANÁRIASOut. 2008

FRANÇAAgo. 2008

ISRAELMaio 2008

TURQUIAJun. 2008

EGITOMaio 2008

IÊMENAbr. 2008

CARIBEMar. 2006

BAHAMASMaio 2006

CUBA Fev. 2007

EUA Jul. 2006

PANAMÁMaio 2007

GALÁPAGOSMaio 2007

POLINÉSIA FRANCESAJun. 2007

PartidaPARANAGUÁ12 dez. 2005 Chegada

ILHA DO MEL12 dez. 2008

17BRAVO

I

O COMEÇO

Quando comecei a namorar o Ricardo, em novembro de 1983, já sabia que um dia faríamos essa viagem.

Eu tinha uma bicicleta. Ele tinha um Magnun 595, chamado Lygia II. Com os amigos nos divertimos demais naquele verão e fizemos algumas loucuras. Chegamos a capotá-lo no canal do Ferry Boat de Guaratuba numa daquelas tempestades típicas do verão paranaense. Nessa época, o Ricardo já tinha alguma experiência na vela. Começou aos 16 anos com esse mesmo Magnun no Clube Náutico de Antonina.

No verão seguinte, trocou o Magnun por um Laser e minha bicicleta virou carreta. Eu ia em pé dando direção e o Laser emborcado, com a proa apoiada no selim e o Ricardo segurando a popa e empurrando-o até a praia.

Bom, por aí já deu para ver que de normais não tínhamos nada. Foi assim que passei de “patricinha” da praia de Caiobá a aprendiz de velejadora.

Algum tempo depois nos casamos, vieram os filhos, a falta de tempo e a correria. E o sonho de um barco maior e de sair pelo mundo ia ficando ao mesmo tempo maior e mais distante.

O tilintar dos stays nos mastros dos veleiros num cais nos fazia suspi-rar e era nossa música favorita.

Nessa época, já tínhamos trocado o Laser por um Hobie Cat 14, e a ex-periência que o Ricardo adquiriu seria, muitos anos mais tarde, o que salvaria nossas vidas.

Quantos verões fomos para Zimbros, em Santa Catarina, com as crianças pequenas, rebocando esse Hobie Cat. Bons tempos aqueles!

18 CLAUDIA SCHIRMER PORTELA

Veio o terceiro filho e era hora de um barco maior. Sem muita pesqui-sa, o Ricardo comprou um Day Sailer, o Holly Brullis. Eu nunca fui com a cara dele. Costumava chamá-lo de “Holly Bruxa”. E tudo acontecia com ele.

Como meus pais tinham casa no Balneário Atami, um condomínio fechado ao lado de Pontal do Sul no litoral paranaense, nossos passeios eram sempre em frente de casa, ou seja, em mar aberto. E aí fazíamos loucuras. Na época do Hobie Cat, o Ricardo normalmente saía sozinho, mas com o Day Sailer começamos a nos aventurar mais.

Com três crianças pequenas, Ricardinho com um, Giovanna com três e Lygia com quatro anos, saíamos na rebentação, em frente de casa, em mar aberto e íamos pelo Canal da Galheta até a praia do Farol na Ilha do Mel, dan-do a volta por fora, para passarmos o dia e, lá pelas quatro ou cinco horas da tarde, voltávamos. E assim eram todos os nossos finais de semana no verão. Quem conhecia bem aquele mar colocava as mãos na cabeça e não acreditava em tamanha aventura.

Era um sábado de janeiro do ano de 1996. Não acordei bem, estava fe-bril e muito cansada, parecia que uma “gripona” ia me pegar. Era muito cedo, as crianças ainda estavam dormindo, eu acordei e fui arrastando os chinelos até a cozinha tomar um copo d’água. Confesso que foi com horror que vi a animação do Ricardo pronto, o isopor com bebidas e salgadinhos já na porta. Nãao! Ele já estava fazendo as mamadeiras das crianças! Comecei minhas argumentações:

– Quem sabe hoje não vamos. Olha, o tempo nem está tão bom assim (maior sol lá fora), a gente podia ficar só na varanda, lendo, olhando o mar...

Só me olhou de canto de olho. Ainda insisti mais um pouco.As crianças acordaram brigando. Meu mau humor estava chegando ao

auge. O Ricardo fechou a cara. O dia começou mal e prometia...Conseguimos passar a rebentação somente depois da terceira tentati-

va. Todos ficaram encharcados. Meu ódio ia além dos limites toleráveis. A dis-cussão tornou-se inevitável. Fomos batendo boca até a Praia do Farol. A essa altura já estava na hora do almoço. Comemos um peixinho frito no restaurante e, para me acalmar, fui andar na praia. Mas o Ricardo me chamou dizendo que o tempo ia virar e que era melhor irmos embora.

Ah, não! Todo esse trabalho para chegar até aqui e só fazer bate-e--volta? Está brincando! Olhei para ele furiosa, nem precisei dizer nada. Ele ainda tentou argumentar, mas eu já estava longe. Não demorou muito, fiquei

19BRAVO – TRÊS ANOS, TRÊS OCEANOS

preocupada e voltei. Embarcamos com as crianças protestando, pois nem ti-nham conseguido brincar ainda.

Mal tínhamos saído em mar aberto e o Ricardo sentiu-se mal, vomitou e pulou na água para ver se melhorava um pouco. O peixe não lhe “caiu” bem. Como não consegui segurar minha língua, começamos a discutir novamente até que, ao passar a ilha da Galheta, parei no meio de uma frase e disse:

– Nossa, o que é aquilo preto no céu? Uma nuvem? Era uma tempestade de verão que se aproximava, mas estava longe, e

teoricamente dava tempo de cruzar o canal até Pontal. Teoricamente... A ve-locidade dela era espantosa e nos pegou quase chegando lá. Um pouco antes, Ricardo baixou a vela grande e a buja que ficou enrolada no cabo da âncora.

A força do vento que entrou era totalmente nova para nós. Nunca tí-nhamos visto nada parecido. Fomos literalmente varridos. Lutamos durante uns três minutos, as velas estavam amarradas, mas teimavam em subir. Para se ter uma ideia da força do vento: nossa âncora levantou voo com a buja. Tínha-mos um motorzinho de 4HP. Claro que nessa hora não pegou!

– O vento está aumentando, segure as crianças. Vai virar!– Onde estão as meninas? Cadê as meninas? As meninas?Os segundos em que eu boiei com o Ricardinho no colo, sem enxergar

absolutamente nada a não ser espuma branca e sem saber onde estavam mi-nhas filhas, foi o maior tempo de toda a minha vida.

Com o colete salva-vidas, as meninas não conseguiram mergulhar para saírem debaixo do barco que estava emborcado. Ficaram presas numa bolsa de ar no cockpit. O Ricardo arrancou o colete e mergulhou, tirou uma, depois a ou-tra. Até hoje não lembro qual delas saiu primeiro. Ficamos boiando abraçados não sei por quanto tempo, enquanto o Ricardo tentava desvirar o barco.

Do jeito que veio, a tempestade se foi. Não tínhamos anemômetro a bordo, nem rádio, nem nada, portanto não podemos dizer, exatamente, qual foi a velocidade desse vento. Soubemos mais tarde, por amigos, que muitos barcos sofreram avarias ou até mesmo capotaram e que a coisa foi mesmo grande.

Fomos resgatados por uma lancha a pedido do Iate Clube de Pontal do Sul que havia visto o que nos tinha acontecido.

O Ricardo, como todo bom capitão, recusou-se a abandonar a embar-cação. Como não houve meios de desvirar o “Holly Bruxa”, digo Holly Brullis, o Ricardo desmontou o mastro debaixo d’água e o barco foi rebocado embor-cado mesmo.

20 CLAUDIA SCHIRMER PORTELA

E, como eu costumo dizer: o mar cura tudo. À noite, já seguros em casa nem lembrávamos que tínhamos discutido e brigado o dia todo.

Depois desse “pequeno” incidente, passei a odiar veementemente o “Holly Bruxa”. Mas mal os consertos terminaram, o Ricardo já quis por em prática sua teoria: “Se a pessoa passa por um trauma, deve enfrentar a mesma situação o quanto antes, voltando a fazer o que fazia para não ficar com medo para sempre”. Não sei de onde ele tirou isso.

Então, “por livre e espontânea vontade” embarcamos novamente no “Holly Bruxa” para um passeio até Paranaguá. O medo é mesmo uma sensa-ção horrível. Minha garganta secou, minhas mãos, grudadas onde eu podia segurar, suavam frio e tremiam. Da garganta ao estômago descia um friozinho terrível, cada marola era como uma montanha russa.

Minha cara devia estar horrível, estampando todo o pavor que eu esta-va sentindo naquele passeio, porque, lá pelas tantas, o Ricardo se irritou e disse:

– Melhore a cara, melhore a cara que você está assustando as crianças!Nunca vou esquecer isso! Coloquei um sorriso plástico no rosto, mais

falso impossível, para disfarçar minha ira e para não assustar mesmo as crian-ças que se divertiam como se nunca tivesse acontecido nada.

Mas na volta, claro que o “Holly Bruxa” tinha que mostrar suas garras. O que aconteceu foi que resolvemos voltar bem no horário da virada da maré. Com vento contra e o mar como um redemoinho, o motorzinho que tínhamos não conseguia vencer a força das águas e cavitava a cada onda. Assim, está-vamos sendo jogados nos paredões da Tenenge (uma empresa de engenharia eletromecânica chamada Técnica Nacional de Engenharia, situada em Pontal do Sul). O pessoal que estava pescando foi levantando em câmera lenta para assistir o nosso fim. Foi uma luta. E eu só pedia a Deus que me permitisse che-gar em casa e tomar um chá. Mais uma xícara de chá e eu faria a promessa de nunca mais entrar naquele barco.

Chega! Basta de “Holly Bruxa”!Como o Ricardo foi terminantemente proibido de pronunciar o nome

desse barco novamente na minha frente, a única saída foi mesmo vendê-lo.Começamos então a procurar um barco maior. Voltar ao mar com

as crianças só se fosse num barco maior, com uma cabine e segurança. Foi a condição que impus.

21 pés. Esse seria o tamanho do barco para o nosso bolso. Ah, mas o 24 pés é tão maior e é só um pouco mais caro! A procura então se fixou num

21BRAVO – TRÊS ANOS, TRÊS OCEANOS

barco de 24 pés até o dia em que, numa marina do Guarujá, um marinheiro ofereceu-se para nos mostrar um barco de 30 pés, sem compromisso. O preço era bom demais e o barco novinho, sem uso. Seria perfeito não fosse um único detalhe: não cabia no orçamento. Melhor era nem ver por dentro... mas só olhar não paga! Vamos dar uma espiadinha, só por curiosidade. A partir desse dia, um barco de 24 pés passou a não servir mais para nós. Voltamos para casa com um só pensamento:

– Zeus!Passamos a semana toda fazendo contas. Se apertássemos dali, segu-

rássemos daqui... Dava!O Ricardo então fechou negócio por telefone, pedindo apenas que su-

bissem o barco, para que ele pudesse avaliar o fundo, antes que desse o sinal do negócio.

Quis o destino que esse barco não fosse nosso. Quando o Ricardo esta-va na balsa do Guarujá recebeu um telefonema do dono do barco dizendo que tinha acabado de vendê-lo. Paciência, a busca continua!

Por um anúncio em uma revista, achamos nosso amado Velívolu. Um Cal 9.2. Desde o início foi nosso. Tudo foi tão certinho, era para ser mesmo nosso. E nele passamos os melhores anos das nossas vidas.

Foi no dia primeiro de abril de 2000, numa Páscoa, que o Ricardo, o Paul e o Marcelo passaram em frente à casa do Atami, vindos de Santos rumo ao Clube Náutico de Antonina, trazendo o Velívolu.

Essa foi a primeira grande travessia de Ricardo, fora as loucuras que fa-zia de ir de Caiobá a São Francisco de Laser. Os três passaram maus pedaços na travessia. Enjoo, inexperiência, motor quebrado e mau tempo. De madrugada quando chegaram, cansadíssimos, ancoraram na Praia da Encantadas, na Ilha do Mel, e o barco escapou quando todos dormiam. Por muita sorte, um acordou e salvou mais uma. Aquela travessia tinha sido uma verdadeira loucura. E, para finalizar, ao parar em Paranaguá para deixar o Marcelo, o motor não refrigerou e o resultado não poderia ser outro... o escapamento, que é de borracha, pegou fogo e a fumaça que fez parecia que havia um incêndio numa refinaria. Entre mortos e feridos, foi só trocar o escapamento e o Ricardo descobriu que havia arrumado uma amante argentina, um motor Mold – como ele dizia: “o motor é ótimo, não para nunca, são os acessórios que não gostam dele”. Acessórios são apenas o motor de arranque, bomba d’água, alternador etc.

22 CLAUDIA SCHIRMER PORTELA

A partir desse dia, nossas vidas mudaram radicalmente. O Velívolu, todo renovado e decorado, passou a ser nossa casa de praia. Íamos todos os fi-nais de semana viver uma nova aventura. Logo fizemos amizades e começaram as regatas e os passeios.

O Velívolu me dava muita segurança e as crianças adoravam. Com o Pádua, nosso vizinho de ancoragem, e sua família nos aventurávamos cada vez mais longe. Capri, Angra, Ganchos etc. Foram verões inesquecíveis. O Velívolu passou a ser ponto de encontro por causa dos famosos “churrascos do Portela”. Uma vez chegamos a colocar 11 barcos a contrabordo. Cada final de semana era uma festa.

As crianças cresceram assim, nessa vida de mar. Velejando, mergu-lhando, descalços na areia da praia, brincando e pescando.

Dentre tantas histórias desse barco, a da segunda lua de mel do Paul e da Verônica não posso deixar de contar.

Numa dessas idas para Angra dos Reis convidamos nossos amigos, Paul e Verônica para fazerem a travessia conosco e lá passar uma semana.

O Paul, muito entusiasmado falou à Verônica que seria a segunda lua de mel do casal. Pobre Verônica, não tinha noção de onde estava se metendo.

Ainda em Antonina o Paul comeu os dois bolos, inteirinhos, que eu ti-nha preparado para a travessia. Saímos pelo Canal Norte, que nesse dia estava especialmente virado. O Chris, barco do Pádua, ia na frente. A cada subida de onda víamos a quilha dele inteirinha fora d’água. Com o barco todo adernado, o casal em segunda lua de mel ia fazendo escora e gritando:

– Uhuuuuuu!!! Eu só olhava de canto de olho para o Ricardo e não pude evitar um

pensamento: “meu Deus não saber de nada é mesmo a fonte da felicidade”. Que perigo corríamos, o Ricardo nem ousava me olhar porque sabia que eu estava ciente da loucura que fazíamos.

Logo após essa passagem os dois bolos que o Paul comeu começaram a fazer efeito e ele ficou mareado, deitou com a barriga para cima e assim foi até... Angra. Só quando paramos na ilha do Bom Abrigo é que o Paul desceu, com sua nécessaire, para ir ao “banheiro”, pois sentia-se constrangido de usar o do barco. Íamos assim na maior cerimônia.

A Verônica, ao avistar a ilha do Bom Abrigo ficou eufórica. E seguiu--se o seguinte diálogo entre ela e o Ricardo:

23BRAVO – TRÊS ANOS, TRÊS OCEANOS

– Banho! Oba, vamos tomar banho. Já posso ver a caixa d’água! O Ricardo fechou os olhos por alguns instantes e disse:– Verônica, nessa ilha não tem nada, é só um abrigo para passarmos a

noite e seguirmos viagem. Pense: numa ilha no meio do oceano, onde não tem nem uma casinha, existe uma torre muito alta, listrada, com uma luz que gira lá em cima. Se aquilo não for uma caixa d’água, o que pode ser?

Pude sentir a decepção nos olhos dela. Nos proibiu de repetir essa his-tória (conto aqui, só para vocês). Mas a Verônica que, supostamente, era para ser a mais fraca revelou-se boa marinheira.

Banheiro de barco é coisa complicada, mas depois de três dias no mar não tem como evitar o uso. Muito encabulada Verônica avisou que ia ao ba-nheiro. Demorou tanto lá que já estávamos ficando preocupados. Quando ela apareceu na porta, vermelha, toda escabelada disse muito sem jeito:

– Portela. Portela... Ele não desce.O Ricardo não teve alternativa senão descer lá e ir consertar o estrago.

Voltou uma hora depois, literalmente verde. Pobre Verônica, não aguentava mais de vergonha e não cansava de repetir:

– Ai, que vergonha! Não há nada pior. Nada.– Há sim – disse o Ricardo – eu vomitei em cima dele!Não preciso dizer que a cerimônia toda acabou. Rimos muito do cor-

rido, mas só tempos mais tarde.Não tínhamos muita experiência e essa travessia estava sendo por

demais desgastante para todos nós. Com o mar grosso e vento muito forte tínhamos de ir fazendo escora o tempo todo. A entrada em Ilha Bela foi com-plicadíssima. A Verônica não parava de perguntar quanto tempo faltava para chegarmos, como criança em viagem de carro. A resposta do Ricardo era sem-pre a mesma:

– Duas horas.Depois de feita a mesma pergunta pela sétima vez, tendo se passado

onze horas a Verônica se irritou, entrou, largou a escora e foi arrumar a mala. Só olhei para o Ricardo e disse:

– Perdemos nossos amigos. Por que você não avisou a eles que era difícil?

Depois de muito esforço, pois vínhamos derivando, devido a corrente e o vento há bastante tempo, conseguimos finalmente entrar em Ilha Bela. O

24 CLAUDIA SCHIRMER PORTELA

Pádua não conseguiu entrar e ficou a noite toda chacoalhando lá fora. Disse que foi uma noite terrível.

Depois de Ilha Bela o tempo melhorou e nossos ânimos também. O Paul e a Verônica continuam sendo dois dos nossos melhores amigos.

O tempo passou depressa e, quando vimos, as crianças não cabiam mais na cama central onde os colocávamos em sentido lateral para que cou-bessem os três.

A essa altura já tínhamos trocado de casa e estávamos estabilizados na vida. Sentimos que era hora de pôr em prática nosso sonho de dar uma volta ao mundo antes que as crianças estivessem grandes demais. Era um sonho de todos, as crianças sempre contaram como certo. Mas nós, como adultos responsáveis, tínhamos que ponderar muitas coisas antes, apesar de sempre termos nos preparado para isso, indo a todas as palestras de velejadores que já tinham dado volta ao mundo ou grandes saídas, lido e pesquisado muito sobre o assunto, feito cursos e juntado dinheiro. Enfim, fazíamos tudo o que estivesse ao nosso alcance relacionado ao assunto, mas sabíamos que ainda havia muito o que ser planejado.

Bom, a primeira coisa que se precisa para dar uma volta ao mundo num veleiro é, sem dúvida, o veleiro. Mas qual o barco ideal? O Ricardo sem-pre quis um catamarã, eu preferia um monocasco. Depois de muito ler e pes-quisar, dei o braço a torcer e vi que um catamarã seria mesmo melhor, pois a tendência hoje em dia é dar preferência aos veleiros que não afundam aos autoadriçáveis. Para virar um catamarã é preciso muita coisa. Vimos vídeos que chegavam a mostrar catamarãs adernados que voltavam à posição normal em pouco tempo e, no caso de um capotamento, normalmente, mantém-se a tona pois não carrega lastro. Já um monocasco, apesar de ser autoadriçável, se houver um vazamento ou for deixado abertas portas e gaiutas, afundará.

Decidido então, era só achar o barco.

25BRAVO

II

O BARCO

Quando se compra um barco, todo cuidado é pouco. Como em todo negócio que se faz na vida, encontram-se pessoas honestas e desonestas. No caso de barcos, é muito fácil ser enganado e conosco não foi diferente.

Infelizmente tivemos problemas na compra do barco. O barco é ma-ravilhoso. O problema aconteceu por causa dos vendedores, foi um festival de sacanagem. Na primeira negociação, que foi longa, a vendedora vendeu o barco a um terceiro, mesmo após ter recebido nosso sinal de negócio. Mas não foi só o prejuízo financeiro que sofremos. Isso atrasou nossa viagem em pelo menos um ano. Não seria nada se não tivéssemos filhos adolescentes, em idade escolar. Nessa época da vida, um atraso pode ser fatal e acabar com um sonho. Ficamos moralmente arrasados, não sei quantas noites de sono o Ricardo perdeu.

Assim, ficamos novamente sem barco e a procura continuava. Soube-mos de outro catamarã igual, um ano mais novo e em melhor estado que esta-va à venda. Entramos em contato com o proprietário e por muita coincidência – há quem não acredite em coincidências e diga que é destino – esse barco estava em Paranaguá. Foi só descer, olhar e fechar o negócio.

Mas não posso dizer que foi fácil assim, pois o dono, depois de tudo acertado, fez o que o Ricardo mais odeia numa negociação, veio com conversas e pedidos de mais dinheiro depois dos primeiros pagamentos. Cada hora era uma coisa diferente, e nada de entregar o barco. Por fim, depois de muito nos incomodar, acabou entregando e passou dos limites nas sacanagens que fez, já que o Ricardo não cedeu. Deus sabe o quão bravamente lutamos para ter esse barco. Por isso o nome não poderia ser outro: BRAVO.

Assim escrevi no diário de bordo:

26 CLAUDIA SCHIRMER PORTELA

“Curitiba, 5 de janeiro de 2004 – sábadoHoje fomos para Paranaguá, para conhecer o barco, o Ricardo já co-

nhecia porque fez a volta da REFENO (Regata Recife-Fernando de Noronha) ano passado nele.

A minha primeira impressão foi ótima, tive uma sensação muito forte de que, depois de muita procura e desilusão, finalmente achamos o que está-vamos procurando.”

“Curitiba, 8 de janeiro de 2004 – segunda-feiraHoje, meio-dia, nossa proposta foi aceita, não estamos nem acreditan-

do, enfim o nosso barco!Agora é uma corrida contra o tempo para os preparativos que são

muitos. Minha primeira preocupação é com os estudos das crianças. Não te-mos ainda um roteiro ou um projeto definido, além de que se desfazer de toda a estrutura criada aqui não vai ser fácil.”

O barco nos foi entregue em Recife, em setembro de 2004, e, em de-zembro, quando as crianças entraram em férias, eu, a Giovanna, a Lygia e o Dudu pegamos um voo e fomos abrir o BRAVO!

Minha mãe e meu pai foram de motor home levando minha mudança e o novo enxoval do barco. Como o antigo proprietário fez questão de retirar até os mínimos ganchinhos das paredes, tivemos que nos virar para tapar to-dos os furinhos das paredes e comprar muitas coisas.

Ficamos no Cabanga Iate Clube, onde fomos muitíssimo bem recebi-dos. Todos vieram nos dar boas-vindas, nos ajudar e desejar uma ótima esta-dia. Nossos amigos, Belo, Anete e Arthur, estavam lá também, sempre nos mi-mando. Sentimos como se estivéssemos em casa. Mas sabíamos que teríamos muito trabalho pela frente. Só que não tínhamos a mínima ideia do quanto!

Entregaram a chave do barco e, quando abri a porta, a vontade que tive foi de fechá-la novamente e fugir dali. Nunca na vida vi um barco tão sujo. O Ricardo havia deixado o barco sob os cuidados de um skiper de outro cata-marã, que a princípio parecia bom. Mas, resumindo a história, aprendemos a segunda grande lição: infelizmente não dá para confiar em ninguém a chave do barco, a não ser que seja de “extrema” confiança. Chorei, não sabia por onde começar, parecia impossível de ser limpo. Não fosse minha mãe e meu pai terem chegado e me encherem de coragem dizendo que iam me ajudar,

27BRAVO – TRÊS ANOS, TRÊS OCEANOS

que trabalharíamos em equipe e que tudo ficaria limpo no final, acho que teria desistido ali mesmo. O Ricardo contratou dois marinheiros para me ajudar, o Fábio e o Wilsinho. Fugiam de mim como o diabo da cruz, pois eu não dava a eles um minuto de descanso. Mas todos nós trabalhamos incessantemente por uma semana para que eu pudesse entrar no barco e começasse a pensar em colocar alguma coisa minha ali. Acho que desde que esse barco foi construído nunca tinha sido limpo. E, para não dizerem que estou mentindo, fui tirando fotos da sujeira de anos e anos incrustada em todos os cantos. Os forros dos colchões e as espumas foram jogadas no lixo, pois ninguém quis. Inacreditável.

Assim escrevemos no diário de bordo:

“Desde que chegamos não paramos um só minuto de limpar, esta-mos exaustas e ainda não estamos nem na metade do serviço, a coisa aqui não está fácil.

Está me dando um desânimo, estou começando a achar INLIMPÁVEL esse pobre e maltratado barco. Nunca vi tanta sujeira na vida! ARGH!

Depois de tanto trabalho, achamos que merecíamos um pouco de des-canso. Então nossos amigos, Belo, Anete, Arthur, Isabel e Maria nos levaram a Guadalupe, na casa de praia deles, onde fomos recebidos com um almoço maravilhoso e passamos um dia dos mais agradáveis.

Todos os dias às cinco horas da manhã, já arrumei a casa, já tomei café, e já li bastante. Tenho acordado todos os dias às quatro horas da manhã por causa do fuso horário ou por causa do nascer do sol, sei lá... Faço hora para ligar para o Ricardo porque agora já estou mais animada com a limpeza aqui pois ontem o dia rendeu apesar de o Wilsinho ter sumido assim que viu que o dia não ia ser fácil . Lavamos todos os “drydecks”, principalmente por baixo onde corria um “caldo” grosso e preto, onde se encontrava de tudo. Passamos Lisoform por tudo e esterilizamos as coisas. Os estrados das camas ficaram uns cinco ou seis dias no sol, sendo virados, e mesmo assim não conseguimos tirar o cheiro que está impregnado na madeira. Quem sabe agora com Lisoform e a raspagem de sujeira que fizemos, conseguiremos.”

Depois de dez dias de limpeza essa foi a primeira noite que dormimos no barco. Os quartos estão limpinhos e cheirosos. Que alegria tudo limpinho! Agora sim, dá gosto de entrar, ainda não acabamos, mas falta muito pouco.

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Estou impressionada em ver como esse barco é espaçoso, tem lugar para tudo e mais um pouco e é extremamente gostoso ficar nele. Só falta nos-sos Ricardos chegarem para podermos aproveitar juntos.

Ainda temos muitos detalhes para cuidar, coisas práticas, que eu já poderia ter feito se não tivesse ficado tanto tempo limpando. Mandei trocar os espelhos, os adesivos e as bombas. Não consegui nenhum telefone para contra-tar um buggy em Noronha.

O Ricar passou em todas as matérias e nem pegou recuperação anual, então vão poder chegar mais cedo. Nós estamos morrendo de saudades.

Ontem fomos a Caruaru, não na feira, porque ela só acontece em dias específicos, segundo domingo de cada mês e aos sábados. Dizem que é uma loucura, muita gente, calor e perigo. Caruaru tem um centro comercial onde se vende de tudo. É a maior feira livre do nordeste, fica numa área de vinte mil metros quadrados. Segunda-feira é o dia da feira de Sulanca, que vende roupas de confecções populares na madrugada.

As figuras de cerâmica, muito comercializadas por lá, imortalizadas por mestre Vitalino, representam cenas da vida nordestina e seus personagens, como retirantes, cangaceiros e bandas de pífanos.

A técnica de reproduzir imagens talhadas em madeira (xilogravura) tem origem na China, mas difundiu-se no nordeste a partir do século XIX, as-sociada à literatura de cordel. Com uma madeira de imbuia ou cajazeira e uma faca bem amolada, os artistas fazem uma espécie de carimbo espalhando tinta na tela e depois o reproduzindo nas capas dos folhetos populares. José Borges, mais conhecido por J. Borges, é um dos mais representativos xilógrafos do Brasil. Começou seu trabalho na década de 1960. Os desenhos, que já foram expostos em Portugal, Suíça, França, Alemanha e Estados Unidos, foram feitos em azulejos, tecido, papel e camisetas.

Esse Barco está tão limpo e cheiroso que não dá nem para acreditar. BRAVO!!!

Os adesivos com o novo nome e as novas faixas foram colocados. Com os novos adesivos, o barco criou mais vida, ficou mais alegre e mais bonito. Agora só faltam as capas das gaiutas e o toldo. O serviço dos espelhos ficou péssimo, não gostei, tive que chamar o homem diversas vezes para resolver o problema. O Ricardo já virá essa semana e as coisas aqui caminham a passos

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de tartaruga. Que agonia que dá, ninguém tem a mínima preocupação com o tempo.

Já fomos ao Recife antigo e a Olinda comprar as cartas náuticas. Na Capitania o sargento nos convidou para subir no Farol de Olinda que foi aberto só para nós, no sábado, pelo sargento que estava de plantão naquele dia. E nós subimos os 187 degraus. Valeu a pena, pois a vista lá de cima é impressionante.

Fim de tarde e nada do Fábio, acho que vai abandonar o serviço. Preci-so voltar ao Mercado São José para abastecer o barco e comprar farinha, aratu, caranguejo, camarão, queijo de coalho e massa de tapioca. Mas é uma loucura lá, tem que se tomar muito cuidado.

Recife é porto de entrada no Brasil de barcos do mundo todo, hoje chegaram aqui muitos barcos. Um deles, de um casal francês, Silvie e Donie, chegou cedo e parou bem ao nosso lado e os ajudamos a atracar. Silvie me con-tou que passaram duas semanas de travessia bem tranquila da Europa para cá, tiveram apenas um dia de estresse perto de Cabo Verde.

Fico imaginando quando será nossa vez de fazermos essa travessia e como ela será. Converso com todos que chegam e procuro colher o maior número de informações que consigo. Vou anotando tudo no meu diário para não esquecer.

Já estamos no dia 15 de dezembro e os serviços aqui continuam se arrastando, dá nos nervos. Mas como ninguém é de ferro fomos ao shopping, ao salão e fizemos algumas comprinhas. Agora sim, barco limpo [e lindo] e a gente renovada! Tudo 10!”

Só conseguimos sair rumo a Noronha no dia 21 de dezembro. Meus pais foram conosco conhecer Fernando de Noronha. Tivemos problemas com o motor de bombordo e o Ricardo teve que correr muito com os últimos pre-parativos para nossa saída. A ideia é abastecer, parar em frente ao Marco Zero para dormir e sair para Noronha às 3 horas da manhã. Mas assim que anco-ramos, descobrimos que um detalhe ficou para trás: o gás de cozinha estava acabando e não tem reserva. Meu pai e o Ricardo saíram de botinho para ten-tar comprar outro botijão. E foi assim que conheceram a Brasília Teimosa. A favela de Recife que já foi desmanchada tantas vezes e teima em se reerguer, por isso tem esse nome.

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Saímos de Recife com vento nordeste entre 15 e 20 nós e mar grosso. Cinquenta por cento da tripulação passando mal. Invictos só meu pai, a Lygia eu e o Dudu. A Giovanna foi a que ficou pior e a minha mãe acabou de desistir de comprar um barco para nos seguir.

Em apenas um dia de travessia aprendi muitas coisas:

1. Comidas para travessia devem ser leves, preparadas com antece-dência e ficar à mão.

2. Remédios para enjoo devem ser tomados ANTES de sair.3. Longas travessias ou travessias de que não se pode voltar são difí-

ceis para quem não está acostumado ao mar.4. Verificar onde está e como está o material de pesca.5. Fechar todas as gaiutas ANTES que a água entre.6. Preparar com antecedência cobertores e roupas de tempo. O tem-

po pode mudar de repente.7. Preparar um lugar para dormir no salão principal para quem fica

de turno.8. Gorros são indispensáveis, mesmo no calor do nordeste, porque

de madrugada faz frio.9. Usar apenas um banheiro durante as travessias.10. Combinar com antecedência a divisão dos turnos.

O catamarã tem um balanço completamente diferente do monocasco, é preciso se acostumar... Mas apesar de todas as nossas falhas essa está sendo uma travessia tranquila. Vimos muitos peixes voadores e atobás e cruzamos com vários navios durante a noite. O único contratempo foi a manilha do trav-ler da grande que arrebentou (peça que fixa a parte de baixo da vela principal ao convés) e o Ricardo precisou colocar o jibe prevent (equipamento que serve para impedir que a vela principal faça movimentos bruscos). O vento seguiu nordeste constante soprando a 17,6 nós e nossa velocidade mantida entre 7,5 nós.

As crianças se divertem fazendo listas e regras com o que estão apren-dendo.

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“Os 10 mandamentos para segurança e bem-estar de todos a bordo”

Senhores(as) visitantes:

1. A palavra do capitão é lei e jamais deve ser contestada. 2. Se você nunca navegou em mar aberto pense duas vezes

antes de embarcar.3. Use roupas confortáveis e apropriadas para uma embar-

cação.4. Cuide de seus pertences, pois os objetos esquecidos na

embarcação serão automaticamente incorporados ao pa-trimônio do capitão.

5. Água e energia são preciosas. Para sua própria segurança economize-as.

6. Em caso de pânico e medo, retire-se discretamente para seus aposentos para não contaminar o resto da tripula-ção. Caso contrário será lançado ao mar.

7. Só jogue no vaso aquilo que seu organismo é capaz de produzir sozinho.

8. Quando em navegação, lembre-se: uma mão para você e outra para o barco.

9. Se você é um palpiteiro de ocasião, não perca a oportu-nidade de ficar calado.

10. Estamos TODOS em férias. Lembre-se: a Lei Áurea foi promulgada em 13 de maio de 1889.