introdução à retórica. olivier reboul. são paulo_ martins fontes, 2004.pdf

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    A retrica a arte de convencer pelodiscurso; tambm a teoria dessa artecriada pelos gregos e constitutiva do nosso

    humanismo.Depois de um longo eclipse ela voltou emnossos dias com muita fora, a ponto deser aplicada imagem ao cinema, msica, ao inconsciente.Cinco enfoques complementares sodesenvolvidos nest a introduo: umaapresentao histrica do sistemaretrico uma exposio metdica dosprocedimentos retricos uma aplicaoprtica - leitura retrica de diversostextos , um glossrio com definies dostermos tcnicos e uma filosofia da retrica.

    Olivier Reboul filsofo francs, professorde Filosofia da Educao n Universidade deEstrasburgo. Escreveu, alm deste, os livros:Lan8a8e et ideolo8ie, Le lan8a8e de l ducation,Qy est ce qu apprendre?

    Projeto grfi co da capa Katia Harumi T erasakaExecuo driana TranslattiImagem d capa Charles Sydney Hopkinson O] ver Wend ell

    Holmes, 1930 (detalhe). Harvard aw ArtCollection Cambridge.

    INTRODUO RETRIC

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    INTRO UO RETRIClivier Reboul

    TraduoIVONE C STILHO BENEDETTI

    Martins ontesSo aulo 2 4

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    Esta ohra foi puhlicada originalmente em francs com o tituloINTRODUCT/ON LA RHTORIQUE - THORIE ETPRATIQUE por Presses Unil ersitaires de France.Copyright Presses Universitaires de France, 1991Copyright 1998, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,So Pau/o. para a presente edio.l"ledio

    .::te ero de 1998mmmr0 de 2004

    do originalVadim Vale inot Ikh Nikitin_Rev is ; s grficas-na Maria O. M. BarbosaMarise Simes Leal

    Produo grficaGeraldo AlvesPaginaolFotolitosStudio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionaisde Catalogao na Publicao CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Reboul, Olivie . 1925-Introduo retrica Olivier Reboul traduo Ivone Castilho

    Benedetti. - So Paulo: Martins Fontes, 2 X)4. - (Justia e direito).Ttulo original: Introduction la rhtoriqueBibliografia.ISBN 85-336-2067-51. Retrica I. Ttulo. 11. Srie.

    04-6899ndices para catlogo sistemtico:

    1. Retrica 808

    CDD 808

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Lida.Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP BrasilTel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867

    e-mail: info@martin,ifontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br

    ndice analtico

    Prefcio ......................................................................... .Introduo: Natureza efuno da retrica ............ ........ . XIXIIIArte, discurso e persuaso......................................... XIVFuno persuasiva: argumentao e oratria............. XVIIA funo hermenutica ............................................. XVIIIA funo heurstica....... ... ........ ..................... ............ XIXA funo pedaggica........ ........ ............ ........ ............. XXI

    Captulo I - Origens da retrica na Grcia ................. .Nascimento da retrica ............................................ .

    Origem judiciria .............................................. .Crax .................................................................. .Origem literria: Grgias ................................... .A retrica e os sofistas ............................................ .Protgoras: o homem medida de todas as coisas ..Fundamento sofistico da re trica ....................... .Iscrates ou Plato? ................................................Iscrates, o humanista ........................................Uma pausa .......................................................... .Texto 1 - Plato, Grgias, 455 da 456 c, trad. M.Croiset ................................................................ .Retrica e cozinha .............................................. .De que "c incia" se trata? .................................. .

    Captulo - Aristteles, a retrica e a dialtica ........ .Uma nova definio de retrica .............................. .

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    Texto 2 - Aristteles, Retrica, livro I, capo 2,1355 a-b ............................................................. .Uma definio mais modesta ............................A argumentao de Aristteles .......................... .

    O que dialtica? ....................................................A dialtica umjogo .......................................... .Tudo para ganhar ............................................... .Respeitar as regras do jogo ................................ .Utilidade do jogo dialtico .................................. .

    Retrica e dialtica ..................................................O que elas tm em comum .................................. .Dialtica, parte argumentativa da retrica .......... .Moralidade da retrica ...................................... .Concluso: Aristteles e ns ............................. .

    Captulo III - O sistema retrico .................................As qua tro partes da retrica ................................ .Inveno .............................................. ..................... .Os trs gneros do discurso ............................... .Os trs tipos de argumento: etos, patos, logos .... .Provas extrnsecas e provas intrnsecas ...............Os lugares ( topoi ) ............................................ .Observaes sobre a inveno ............................ .

    Disposio ( taxis ) .............................................. .Exrdio ( prooimion , promio) ........................N - ( d' , . , ,arraao legesls ......................................... .Cf - ( ,,on lrmaao plshs ...................................... .Digresso ( parekbasis ) e perorao ( eplogos )Por que a disposio? ......................................... .

    Elocuo ( lxis '') ................................................... .Lngua e estilo: uma arte funcional... .................. .Figuras ( schemata ) e o problema do desvio ... .A o ( h '')a 'Ypocnsls ................................................. .Uma hypocrisis sem hipocrisia ...................... .O problema da memri a .................................... .O problema do escrito e do oral .......................... .

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    Captulo IV - Do sculo I ao XX .................................. .Perodo latino .......................................................... .Forma e fundo: pint ura e cores verdadeiras ........ .

    Retrica e moral .............. ................................. .Retrica e democracia ........................................ .

    Por que o declnio? .................................................. .Retrica e cristianismo ....................................... .Verdadeiras causas do declnio: retrica, verdadee sinceridade ....................................................... .

    Hoje: retricas ......................................................... .Uma retr ica estilhaada ................................... .Retrica da i magem ............................................ .Retrica da propaganda e da publicidade ...........Nova retrica contra nova retrica ..................... .

    Captulo V - rgumentao........................................ .As cinco caractersticas da argumentao .............. .O auditrio pode ser universal ? ...................... .

    Lngua natural e suas ambigidades .................. .Premissas verossmeis: o que verossmil? ........Uma progresso que depende do orador .............Concluses sempre controversas ........................ .

    O que uma boa argumentao? ........................ .Os sofistas e a argumentao .............................. .No-parfrase e fechamento ............................... .Argumentao pedaggica, judiciria, f ilosfica .... .Do pedaggico ao judi cirio ...............................Uma controvrsia judiciria: os expropriados e adesvalorizao .................................................... .Argumentao filosfica: onde est o tribunal? ..

    Captulo VI - Figuras ................................................ .Figuras de palavras ................................................. .

    Figuras de ritmo .................................................. .Figuras de som: aliterao, paronomsia, anta-nclase ............................................................... .Um argumento retrico: a etimologia ................. .

    Figuras de sentido .................................................... .

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    Tropos simples: metonmias, sindoques, met-foras..................................................................... 121Tropos complexos: hiplage, enlage, oxmoro,hiprbole, etc. ...................................................... 123Figuras de construo............................................... 26Figuras por subtrao: elipse, assndeto, aposio-pese ou reticncia ................................................ 126Figuras de repetio: epanalepse, anttese ........... 127Figuras diversas: quiasmo, hiprbato, anacoluto,gradao ............................................................. 128

    Figuras de pensamento ............................................. 129Alegoria: figura didtica? .................................... 130Ironia, graa e humor .......................................... 132Figuras de enunciao: apstrofe, prosopopia,preterio, epanortose.......................................... 133Figuras de argumento: cong1obao, prolepse, apo-dioxe, cleuasmo ................................................... 135

    Captulo VII - Leitura retrica dos textos................... 139Questes preliminares............................................... 140Orador: Quem? Quando? Contra o qu? Por qu?Como? ................................................................. 140

    Auditrio e acordo prvio .................................... 142A questo do gnero: Pascal e a Fontaine ............... 143Texto 3 - Pascal, Justia, fora (Br. Min. N?298, p. 470) .......................................................... 144Texto 4 - La Fontaine, O lobo e o cordeiro ,Fbulas I 10....................................................... 144Situao dos dois textos ......... ......... .......... ..... ...... 146A argumentao dos dois textos.... ......... ........ ...... 148Observaes sobre o estilo dos dois textos....... ... 150Os dois gneros e seu impacto ideolgico ........... 152Questes sobre o texto............................................... 53O que prova o exemplo?...................................... 154Entimema ............................................................ 155O intertextual, o intratextual e o motivo central... 157Texto 5 - Victor Hugo, Chanson , 1853, Leschtiments VII, 7 ......... ......... .......... ......... ......... .. 158

    Captulo VIII - Como identificar os argumentos? ..... .Os elementos do acordo prvio ................................ .

    Fatos, verdades, presunes ................................Os valores e o prefervel ..................................... .Os lugares do prefervel ......................................Figuras e sofismas concernentes ao acordo prvioPrimeiro tipo: argumentos quase lgicos ................Contradies e incompatibilidade: o ridculo ..... .Identidade e regra de justia ............................... .Argumentos quase matemticos: transitividade,dilema, etc ......................................................... .Definio ........................................................... .Segundo tipo: argumentos fundados na estrutura do

    real ................................................. ......................... .Sucesso, causalidade, argumento pragmtico ... .Finalidade: argumento de desperdcio, de dire-o, de superao ................................................ .Coexistncia: argumento de autoridade, argu-mento ad hominem .......................................... .Duplas hierarquias e argumento a fortiori .......

    Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a es-trutura do real .......................................................... .Exemplo, ilustrao, modelo .............................. .Comparao e argumento do sacrifcio .............. .Analogia e metfora ...........................................

    Quarto tipo: argumentospordissociao das noesAbsurdo ou distinguo ...................................... .O par aparncia-realidade ................................... .Outros pares ....................................................... .Artifcio e sinceridade ........................................

    Captulo IX - Exemplos de leitura retrica ...... .

    e entimemas .................................. .Figuras fortssimas ............................................. .A petio de princpio .........................................Texto 7 - Pierre Corneille, Marquesa , 1658 .... .

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    Texto 8 - Ren Descartes, Le discours de la m-thode segunda parte ...........................................Texto 9 - Uma entrevista com Franoise Dolto,Libration 5 de fevereiro de 1987 ......................Introduo .......................................................... .Pargrafo (1) ....................................................... .Pargrafo (2) .......................................................Pargrafo (3) ....................................................... .Pargrafos (4) e (5) ............................................ .Observaes crticas: o motivo central ............... .Texto 10 - Alain, Consideraes , de 20 demaro de 1910 .................................................... .Texto A educao negativa, 1. 1. Rousseau,Emlio 2? livro ................................................... .Introduo: haver motivo central? .................... .Oparadox o ......................................................... .A argumentao ................................................. .As metforas da educao ................................. .Concluso: o motivo central ............................... .Texto 12 - Duas histrias idiches ......................

    guis de concluso ...................................................Arte e naturalidade ............................................ .A iluso do livro do mestre .................................a polmica ao dilogo ..................................... .

    Notas ............................................................................. .BU r ilogra la sumaria ..................................................... .ndice remissivo e glossrio dos termos tcnicos .......... .

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    refcio

    Para comear algumas palavras sobre este livro sobre oque ele pretende ser e sobre o que dele se pode esperar. multidisciplinar como alis a prpria retrica quedesde seus primrdios foi instrumento comum de juristas fil-sofos literatos pregadores de todos a quantos concerne a co-municao. pluralista assim como tambm a retrica. Esta a serviodas causas e das mais diferentes teses algo mais que instru-mento neutro indiferente ao que veicula; utilizada em todas ascontrovrsias obriga cada uma das partes a levar em conside-rao as crenas e os valores do adversrio; ensina o sentido seno do relativo pelo menos do plural e postula que a verdaderesulta do encontro de dois enunciados o proferido e o ouvido.Este livro pode ser lido de diversas maneiras. De cabo arabo sem dvida. Mas tambm como obra de referncia a co-mear pelo ndice. Ou ento limitando-se a determinado cap-tulo tendo-se em mente que de qualquer modo ele depende umpouco dos captulos precedentes. terico eprtico ao mesmo tempo. Por um lado pretendeexpor o que retrica extrair sua unidade profunda atravsdas transfigtJraes de sua histria discutir suas implicaes edistinguir se t 8 limites. Por outro lado visa a aplicar a retrica dos textos mais diversos oferecendo assim umhermenutica aos estudantes e aos futuros pesqui-sadores.Finalmente tem vrias pretenses: ser um manual acad-mico e outras coisas mais. Esfora-se pois por ser objetivo

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    XII INTRODUO RET6RICApor dar informaes independentes do seu autor e de suas pre-ferncias. Mas um manual no mereceria o nome de acadmi-co se seu autor no se afirmasse tambm como pesquisador epensador; portanto, como algum que no se contenta apenasem expor, mas que se expe. E o leitor que julgue.Um livro no plural, portanto.

    N.B. - primeira visld, a retrica desencoraja pelo voca-bulrio. Quantos nomes de argumentos e figuras Ser real-mente preciso f l r em lugares em vez de provas, em hiprboleem vez de exagero, em ao em vez de dico? Na verdade,cada um desses termos tem um sentido um puco diferente da-quele que pretende traduzi-lo; portanto, insubstituvel. As-sim como a medicina, a psicologia e a filosofia, a retrica temnecessidade de um vocabulrio tcnico.Portanto, cumpre saber que epanortose no doena depele, que hipotipose no um supositrio de bronze da antigamedicina, e que tapinose no uma retrica de antas .. ver-dade que poderiam ser usados termos mais correntes, dizercorreo em vez de epanortose, quadro em vez de hipotipose,depreciao em vez de tapinose. Mas o sentido no seria maiso mesmo. Hipotipose um quadro retrico, que desempenha

    p pel ao mesmo tempo potico e argumentativo; epanortose uma correo retrica, que produz efeito de sinceridade ("oumelhor", "para dizer tudo .); a tapinose uma depreciaoretrica.Apesar de inegvel, a dificuldade lxica pode perfeitamen-te ser superada. E nosso ndice-glossrio deve possibil itar isso.

    ntroduoNatureza e funo da retrica

    que se espera de uma introduo retrica que logo deincio se defina o termo. Infelizmente, no fcil, pois hoje emdia o termo retrica assumiu sentidos bem diversos e at di-vergentes.

    Em primeiro lugar, o sentido corrente no poderia ser maispejorativo. Um professor de literatura, depois de brilhante alo-cuo, ouve a seguinte felicitao de um colega: Admirei suaretrica , frase que ningum tomou por cumprimento, nem mes-mo o interessado. Para o senso comum, retrica sinnimo decoisa empolada, artificial, enftica, declamatria, falsa.

    Entretanto, no comeo dos anos 60 os acadmicos redes-cobriram a retrica e devolveram ao vocbulo sua nobreza, aomesmo tempo prestigiosa e perigosa, mas nem por isso concor-dando quanto ao seu sentido. Mencionemos aqui as duas posi-es extremas.

    Uma delas, de Charles Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, va retrica como arte de argumentar, e busca seus exemplos mor-mente entre os oradores religiosos, jurdicos, polticos e atfilosficos. A outra, de Morier, G. Genette, J Cohen e do Gru-po MU , considera a retrica como estudo do estilo, e maisparticularmente das figuras. Para os primeiros, a retrica visaa convencer; para os ltimos, constitui aquilo que toma liter-rio um texto; e dificil perceber o que as du as posies tm emcomuml

    No entanto, esse elemento comum que bem poderia ser omais importante, ou seja, a articulao dos argumentos e do es-tilo numa mesma funo. Ao dizermos isso, referimo-nos

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    XIV INTRODUO RETRICAretrica clssica, que comea com Aristteles e se pro longa ato sculo XIX. a ela que recorreremos para definir a retrica. verdade que se pode criticar a tradio, mas ela pelo menostem a vantagem de nos oferecer elementos estveis, indepen-dentes das preferncias individuais e dos modismos. Pode-secriticar a tradio, e no deixaremos de faz-lo quando for ocaso, mas pelo menos saberemos o que estamos criticando e oque pretendemos suplantar.Arte, discurso e persuasoc Eis, pois, a definio que propomos: retrica a arte depersuadir pelo discurso.Por discurso entendemos toda produo verbal, escrita ouoral, constituda por uma frase ou por uma seqncia de frases,que tenha comeo e fim e apresente certa unidade de sentido.De fato, um discurso incoerente, feito por um bbado ou umlouco, so vrios discursos tomados po r um s.Conforme nossa definio, a retrica no aplicvel a to-dos os discursos, mas somente queles que visam a persuadir, oque de qualquer modo representa um belo leque de possibilida-des Enumeremos as principais: pleito advocatcio, alocuopoltica, sermo, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fbu-la, petio, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de cin-cias humanas. Acrescente-se a isso o drama e o romance, desdeque "de tese", e o poema satrico ou laudatrio.O que sobra ento de no retrico? Os discursos (no senti-do tcnico definido acima) que no visam a persuadir: poemalrico, tragdia, melodrama, comdia, romance, contos popula-res, piadas. Acrescentemos os discursos de carter puramentecientfico ou tcnico: modo de usar, m oposio a annciopublicitrio; veredicto, em oposio a pleito advocatcio; obracientfica, m oposio vulgarizao; ordem, em op?sio aslogan: proibido fumar no retrico, ao passo que E proibi-do fumar, nem que seja Gallia *, retrico.

    Cigarro mentolado, geralmente preferido pelas senhoras. (N. do T.)

    INTRODUO XV verdade que a retrica antiga d palavra discurso umsentido claramente mais restrito, mas ns mostraremos que sepode perfeitamente ampliar o objeto da retrica sem a trair.Questo "de ordem": este livro retrico?Portanto, a retrica diz respeito ao discurso persuasivo, ouao que um discurso tem de persuasivo. O que pois persuadir? levar algum a crer em alguma coisa. Alguns distin-guem rigorosamente "persuadir" de "convencer", consistindoeste ltimo no em fazer crer, mas em fazer compreender. Anosso ver essa distino repousa sobre uma filosofia - atmesmo uma ideologia - excessivamente dualista, visto queope no homem o ser de crena e sentimento ao ser de inteli-gncia e razo, e postula ademais que o segundo pode afirmar-se sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. At segunda

    ordem, renunciaremos a essa distino entre convencer e per-suadir.Por outro lado, manteremos uma distino pertinente, por-quanto inerente ao prprio termo "persuadir":1) Pedro persuadiu-me de que sua causa era justa.2) Pedro persuadiu-me a defender sua causa.

    Distino capital para compreender a retrica, pois m (1)Pedro conseguiu levar-me a acreditar em alguma coisa, en-quanto m (2) ele conseguiu levar-me f zer alguma coisa, nose sabendo se acredito nela ou no. A nosso ver, a persuasoretrica consiste em levar a crer (1), sem redundar necessaria-mente no levar a fazer (2). Se, ao contrrio, ela leva a fazer semlevar a crer, no retrica.Pode-se dizer, por exemplo, que algum persuadiu alguma fazer alguma coisa por ameaa ou promessa, e que nisso resi-dia toda a eficcia de sua argumentao. Resposta: verdadeque se falar de eficcia, mas no de argumentao. Estavisa se til>re a levar a crer. Por certo, atravs de promessa ouameaa, pode-se persuadir algum a cometer um erro, masesse algum estar persuadido de que o erro no erro?

    No entanto, Pascal escreve:

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    XVI INTRODUO RETRICAAo advogado pago adiantadamente parecer bem mais jus-ta a causa que defende (Penses, p. 365)

    Na realidade, Pascal nada tem contra os advogados emparticular; do homem que ele no gosta, do gnero humanocorrompido pela queda, cuja propenso para acreditar no quesabe ser falso" mostra at que ponto ele miservel. Entretan-to, se nos ativermos apenas aos fatos, poderemos admitir que oerro no regra, e que existe um tipo de persuaso que no seobtm nem pelo dinheiro nem pela ameaa: a que conceme retrica.Esta, dizamos, uma arte. Este termo, traduo do gregof :chn, ambguo, e at duplamente ambguo. Em primeiro lu-gar, porque designa tanto uma habilidade espontnea quantouma competncia adquirida atravs do ensino. Depois porquedesigna ora uma simples tcnica, ora, ao contrrio, o que na cria-o ultrapassa a tcnica e pertence somente ao "gnio" docriador. Em qual ou em quais desses sentidos se est pensandoquando se diz que a retrica uma arte? Em todos.Para comear, existe uma retrica espontnea, uma apti-do para persuadir pela palavra que talvez no seja inata - noentremos nessa discusso agora - , mas que tampouco devidaa uma formao especfi ca, e tambm existe uma retrica ensi-nada com o nome, por exemplo, de "tcnicas de expresso ecomunicao", que serve para formar vendedores ou polticos,para ensinar-lhes aquilo que outros vendedores, outros polti-cos parecem j saber naturalmente. Quais so os mais eficazes,quais deles conseguem se sair melhor"? Sem dvida os lti-mos. Mas tanto entre estes quanto entre os primeiros, encontra -mos os mesmos procedimentos, intelectuais e afetivos, proce-dimentos que fazem da retrica uma tcnica.Mas ser que se trata de simples tcnica? No, muitomais. O verdadeiro orador um artista no sentido de descobrirargumentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras deque ningum teria idia e que se mostram ajustadas; artistacujos desempenhos no so programveis e que s se fazemsentir posteriormente. Les provincia/es de Pascal (outra vez,

    INTRODUO XVIImas em retrica ele inevitvel ) constituem uma bela ilustra-o; exatamente onde seus amigos jansenistas esperavam umaargumentao tcnica, que no deixaria de ser pesada, Pascalretoma as mesmas idias na forma de panfleto irnico, eficazporque claro e jocoso, e que ainda tem a ver conosco. A arte depersuadir produziu muitas obras-primas.Mas no ser ela tambm a arte de enganar, ou pelo menosde manipular? Voltaremos a esse problema no Captulo 11. En-quanto isso, para compreender melhor a retrica, interrogue-mo-nos sobre suas fun es; em outras palavras, sobre os servi-os que ela capaz de prestar aos que a empregam, e talveztambm aos demais.

    Funo persuasiva: argumentao e oratriaA primeira funo da retrica decorre de sua definio:arte de persuadir. , alis, a mais evidente e a mais antiga; e oproblema maior deste livro ser saber por que meios um dis-curso persuasivo.Aqui nos limitaremos a uma distino realmente funda-mental. Esses meios so de ordem racional alguns, de ordemafetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outrosmais afetivos, pois em retrica razo e sentimentos so insepa-rveis.Os meios de competncia da razo so os argumentos. Everemos que estes so de dois tipos: os que se integram no ra-ciocnio silogstico (entimemas) e os que se fundamentam noexemplo. Ora, como j notava Aristteles, o exemplo maisafetivo que o silogismo; o primeiro dirige-se de preferncia aogrande pblico, enquanto o segundo visa a um auditrio espe-cializado, como um tribunal.Os meios que dizem respeito afetividade so, por umlado, o etos, o carter que o orador deve assumir para chamar aateno e angariar a confiana do auditrio, e por outro lado opatos, as tendncias, os desejos, as emoes do auditrio dasquais o orador poder tirar partido. De modo um pouco dife-rente, Ccero distingue docere de/ectare e movere:

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    XVIII INTRODUO RETRICDocere (instruir, ensinar) o lado argumentativo do dis-

    curso.Delectare (agradar) seu lado agradvel, humorstico, etc.Movere (comover) aquilo com que ele abala, impressionao auditrio.Em resumo, o persuasivo do discurso comporta dois as-pectos: um a que chamaremos de argumentativo ; e outro, de

    oratrio . Dois aspectos nem sempre fceis de distinguir.Os gestos do orador, o tom e as inflexes de sua voz sopuramente oratrios. Todavia, o que dizer das figuras de estilo,aquelas famosas figuras a que alguns reduzem a retrica? Ametfora, a hiprbole, a anttese so oratrias por contriburempara agradar ou comover, mas so tambm argumentativas nosentido de exprimirem um argumento condensando-o, toman-do-o mais contundente. Assim a clebre metfora de Marx:A religio o pio do povo.Se for introduzido um ltimo termo, a demonstrao, meio

    de convencimento puramente racional, sem nada de afetivo eque escapa portanto ao domnio da retrica, chega-se ao se-guinte esquema:

    demonstrativo argumentativo1racIOnal

    funo hermenutica

    retricooratrio

    Entretanto, por mais primordial, a funo persuasiva no nica. Se a retrica a arte de persuadi r pelo discurso, pre-ciso ter em mente que o discurso no e nunca foi um aconte-cimento isolado. Ao contrrio, ope-se a outros discursos queo precederam ou que lhe sucedero, que podem mesmo estarimplcitos, como o protesto silencioso das massas s quais sedirige o ditador, mas que contribuem para dar sentido e alcan-ce retrico ao discurso. A lei fundamental da retrica que o

    INTRODUO XIXorador - aquele que fala ou escreve para convencer - nuncaest sozinho, exprime-se sempre em concordncia com ou-tros oradores ou em oposio a eles, sempre em funo deoutros discursos.Ora, para ser persuasivo, o orador deve antes compreenderos que lhe fazem face, captar a fora da retrica deles, bemcomo seus pontos fracos. Esse trabalho de interpretao feitopor todos de modo mais ou menos espontneo. At a crianci-nha mostra ser um excelente hermeneuta, por exemplo quandopercebe que a ameaa dos pais aterradora demais para serexecutada, ou quando interpreta uma frase do adulto no sentidoque lhe convm

    Para ser bom orador, no basta saber falar; preciso sabertambm a quem se est falando, compreender o discurso dooutro, seja esse discurso manifesto ou latente, detec tar suas cila-das, sopesar a fora de seus argumentos e sobretudo captar ono-dito. A vai um exemplo dessa hermenutica espontnea.Durante o debate de televiso que antecedeu as eleies presi-denciais de 1981, Giscard d'Estaing disse a Mitterrand: O se-nhor conhece a cotao do marco hoje? Mitterrand, que prova-velmente no sabia, adivinha que Giscard quer impor-se aopblico como um economista srio, um especialista, um mestre,e lhe responde taco a taco: Senhor Giscard, no sou seu aluno.E no se falar mais de cotao do marco durante todo o debate.

    Essa a funo hermenutica da retrica, significandohermenu tica a arte de interpretar textos. Na universidadeatual, essa funo fundamental, para no dizer nica. No seensina mais retrica como arte de produzir discursos, mas comoarte de interpret-los. Alis, o que faremos aqui. Mas a aretrica recebe outra dimenso; no mais um a arte que visa aproduzir, mas uma teoria que visa a compreender.

    funo heursticaArte de persuadi r pressupe que no estamos sozinhos; spode ser exercida quando se interpreta o discurso de outrem.Pois bem, ser mesmo preciso persuadir? Pode-se achar que a

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    INTRODUO RETRICApersuaso no passa de um modo - o mais insidioso de todospor certo - de tomar o poder, de dominar o outro pelo discurso.Podemos achar isso, certo, desde que nos abstenhamos depersuadir algum disso

    Na realidade, quando utilizamos a retrica no o fazemoss para obter certo poder; tambm para saber, para encontraralguma coisa. E essa a terceira funo da retrica, que deno-minaremos "heurstica", do verbo grego euro eureka que sig-nifica encontrar. Em resumo, uma funo de descoberta.Claro que ela no bvia. Hoje em dia, quando falamosem descoberta, pensamos em cincia, e a cincia no quer nemsaber de retrica. Quem sabe se por parte dos cientistas issono um denegao, no a recusa de enxergar sua prpriaretrica. Mas pouco importa: o que se pergunta o que a retri-ca pode ter pa ra descobrir ..Convenhamos, porm, que vivemos num mundo que nocondiz inteiramente com o conhecimento cientfico, um mundoem que a verdade raramente evidente, e a previso segura rara-mente possvel. No campo econmico e poltico, preciso tomardecises sem saber com toda a certeza se elas so as melhores,visto que o "com toda a certeza" s vem depois do feito Nosdebates jurdicos, preciso sobrepujar, sabendo-se que muitasvezes no h veredicto objetivo, no sentido e m que objetiva amedida de um galvanmetro. Na esfera da educao, fazem-seprogramas, reformas, sem nunca se ter certeza de que as coisassero melhores que antes e de que os alunos envolvidos realmen-te tiraro proveito delas, quer dizer, vinte anos depois ..Esse mundo de que estamos falando o da vida; quaseno comporta certezas cientficas, dessas que possibilitam pre-vises seguras e decises irrepreensveis. Mas tampouco estentregue ao acaso, ao aleatrio, ao caos. No se pode prevercom total certeza, mas possvel prever com mais ou menoscerteza, com alguma probabilidade. No se pode dizer: " ver-dadeiro" ou falso", mas pode-se dizer: mais ou menos ve-rossmil".Como pois achar o verossmil? Recordemos aqui a lei fun-damental da retrica: o orador nunca est sozinho. O advogado

    INTRODUO XXImais hbil tem diante de si outros advogados que fazem o mes-mo trabalho em sentido inverso. Do mesmo modo, o polticoconfronta outros polticos; o pedagogo, outros pedagogos. Cadaum deles - essa a regra do jogo - defende sua causa sendo topersuasivo quanto possvel, e contribui assim para uma decisoque no lhe pertence, que incumbe a um terceiro: o juiz.Num mundo sem evidncia, sem demonstrao, sem previ-so certa, em nosso mundo humano, o papel da retrica, ao de-fender esta ou aquela causa, esclarecer aquele que deve dar apalavra final. Contribui - onde no h deciso previamente es-crita - para inventar uma soluo. E faz isso instaurando um de-bate contraditrio, s possvel graas a seus "procedimentos",sem os quais logo descambaria para o tumulto e a violncia.A retrica possui realmente uma funo de descoberta.

    A funo pedaggicaAgora, poderemos ser censurados por termos ampliadoabusivamente o campo da retrica. De fato, se nos reportarmosaos programas escolares da Idade Mdia e da poca clssica,verificaremos que a retrica s admite a primeira das nossastrs funes, ficando a funo hermenutica reservada gra-mtica, e a funo heurstica dialtica.Mas ser legtimo impor cultura as divises de um pro-grama escolar (por certo exigidas pelos imperativos da pedago-

    gia), para estanc-la em disciplinas sem inter-relaes, em "es-pecialidades"? mais ou menos como a firmar que a fsica notem nenhuma relao com a matemtica, alegando que elas tmprofessores diferentes.Mostraremos no prximo captulo que, na prpria escola,gramtica, retrica e dialtica no passavam de partes de umrnrsmo todo que se esclerosaram quando se separaram. A arted1hscurso persuasivo implica a arte de compreender e possi-bilita a arte de inventar.Qual pois, esse "mesmo todo" de que fazia parte a ret-rica? Em termos modernos, cultura geral. E aqui tocamos na

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    XXII INTRODUO RETRICAltima funo da retrica, que pode ser chamada de "pedag-gica".No fim do sculo XIX, a retrica foi abolida do ensinofrancs, e o prprio termo foi riscado dos programas. Todavia,como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavrano se suprimiu a coisa. A retrica permaneceu, s que desarti-culada, privada de sua unidade interna e de sua coerncia. Emtodo caso os professores, quase sempre sem saberem, fazemretrica2Ensinar a compor segundo um plano, a encadear os argu-mentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encon-trar as construes apropriadas e as figuras exatas, a falar dis-tintamente e com vivacidade, no sero retrica, no sentidomais clssico do termo? Demonstraramos com facilidade queos critrios segundo os quais um professor de lngua, ou mes-mo de filosofia, avalia uma redao - respeito ao assunto, aoplano, argumentao, ao estilo, personalidade - que essescritrios so encontrados, com outros nomes, na retrica cls-sica (cf. infra pp. 55-56).Deve-se ver nisso uma sobrevivncia lamentvel? Pode-seachar, ao contrrio, que esses princpios so formadores, quedeixar de respeit-los - errar na formulao da questo, escre-ver de modo incorreto, montono, extremado, confundir tesecom argumento, expor de maneira desconexa, esconder-se atrsde clichs - dar prova de incultura. Em outras palavras, apartar-se dos outros e de si mesmo. verdade que existemoutras culturas alm da escolar, mas no existe cultura sem for-mao retrica. E aprender a arte de bem dizer fi j e tambmaprender a ser.

    Captulo IOrigens da retrica na rcia

    A melhor introduo retrica sua histria.Vamos, portanto, empreend-la, mas com duas observa-es preliminares.A primeira que a retrica anter ior sua histria, e mes-mo a qualquer histria, pois inconcebvel que os homens notenham utilizado a linguagem para persuadir. Pode-se, alis,encontrar retrica entre hindus, chineses, egpcios, sem falardos hebreus. Apesar disso, em certo sentido, pode-se dizer quea retrica uma inveno grega tanto quanto a geometria, atragdia, a filosofia. Em certo sentido e mesmo em dois senti-dos. Para comear, os gregos inventaram a "tcnica retrica",como ensinamento distinto, independente dos contedos, quepossibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois,inventaram a teoria da retrica, no mais ensinada como umahabilidade til, mas como uma reflexo com vistas compreen-so, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teo-ria da arte, da literatura, da religio.

    Segunda observao: escrever uma histria, como porexemplo da msica, da pintura ou da filosofia, repercorreruma evoluo, feita de transformaes, perdas e criaes. Ora,paradoxalmente, entre os sculos V e IV antes da nossa era, osgregos elaboraram A retrica, que, em seguida, "durante doismilnios e meio, de Grgias a Napoleo I1I", pode-se dizer quese mexeu mais . As diversas pocas enriqueceram algumado sistema, mas sem mudar o sistema. Ainda hoje,quando se fala em "retrica", seja a de um filme ou a do in-consciente, a referncia sempre feita retrica dos gregos. Ahistria da retrica termina quando comea.

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    2 INTRODUO ARETRICAascimento da retrica

    Tomemos duas datas como referncia: 480 a.c. batalhade Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram definiti-vamente sobre a invaso persa, quando comeou o grande pe-rodo da Grcia clssica; 399, ainda antes da nossa era: mortede Scrates.

    Origem judicir iaA retrica no nasceu em Atenas, mas na Siclia gregaporvolta de 465, aps a expulso dos tiranos. E sua origem no literria, mas judiciria. Os cidados despojados pelos tiranosreclamaram seus bens, e guerra civil seguiram-se inmeros

    conflitos judicirios2 Numa poca e m que no existiam advo-gados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender suacausa. Certo Crax, discpulo do filsofo Empdocles, e o seuprprio discpulo, Tsias, publicaram ento uma arte oratriatekhn rhetorik), coletnea de preceitos prticos que conti-nha exemplos para uso das pessoas que recorressem justia.Ademais, Crax d a primeira definio da retrica: ela cria-dora de persuaso 3.Como Atenas mantinha estreitos laos com a Siclia, e atprocessos, imediatamente adotou a retrica.Retrica judiciria, portanto, sem alcance literrio ou filo-sfico, mas que ia ao encontro de uma enorme necessidade.Como no existiam advogados, os litigantes recorriam a log-grafos, espcie de escrives pblicos, que redigiam as queixasque eles s tinham de ler diante do tribunal. Os retores, comseu senso agudo de publicidade, ofereceram aos litigantes e aosloggrafos um instrumento de persuaso que afirmavam serinvencvel, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coi -sa. Sua retrica no argumenta a partir do verdadeiro, mas apartir do verossmil eikos).Observemos que isso inevitvel. Tanto entre ns quantoentre os gregos. De fato, se no mbito judicirio se conhecesse

    ORIGENS DA RETRICA NA GRCIA 3a verdade, no haveria mais mbito judicirio, e os tribunais sereduziriam a cmaras de registro. Mas o problema, tanto parans quanto para os gregos, que as ms causas precisam dosmelhores advogados, pois, quanto pior a causa, maior o recurso retrica. constrangedor. Ora, em vez de se constrangerem,os primeiros retores se gabavam de ganhar as causas menosdefensveis, de transformar o argumento mais fraco no maisforte , slogan que domina toda essa poca.Crax

    Crax considerado o inventor do argumento que leva seunome, o crax, e que deve ajudar os defensores das piores cau-sas. Consiste em dizer que uma coisa inverossmil por serverossmil demais. Por exemplo, se o ru for fraco, dir queno verossmil ser ele o agressor. Mas, se for forte, se todasas evidncias lhe forem contrrias, sustentar que, justamente,seria to verossmil julgarem-no culpado que no verossmilque ele o seja.Antifonte (480-411), o melhor representante da retricajudici ria de Atenas, cita o seguinte exemplo de crax:Se o dio que eu nutria pela vtima tomar verossmeis assuspeitas atuais, no ser ainda [mais] verossmil que, prevendoessas suspeitas antes do crime, eu me tenha abstido de comet-lo? in Perelman-Tyteka, p. 608, cf. Aristteles, Retrica, 11 24,

    14 2 aE pleiteante a seguir insinua que os verdadeiros criminososaproveitaram-se da verossimilhana para cometer impunemen-te aquele ato.O mais maante que o crax pode ser voltado contra seuautor, afirmando que ele cometeu o crime por achar que pare-cef.suspeito demais para que dele suspeitassem, e que chegoua acumular propositadamente acusaes contra si mesmo, paradepois as refutar com facilidade.- Argumento simples: todas as evidncias esto contra ele.

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    6 INTRODUO RETRICAdico, Trasmaco, Hpias, Crtias, etc. - ele foi professor; davade cidade em cidade lies de eloqncia e de filosofia, co-brando a cada uma delas o fabuloso salrio de cem minas. Di-gamos que por um dia de trabalho ele recebia o salrio diriode dez mil operrios O mesmo acontecer com Protgoras. Narealidade, esse ensino preenchia uma necessidade, pois at en-to os gregos s recebiam uma formao elementar, semde parecido com um ensino superior ou mesmo secundrio. Eaos retores que se deve essa inovao: ensino intelectual apro-fundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outroobjetivo seno a cultura geral.verdade que logo Grgias foi criticado pela nfase desua prosa, que carecia demais de simplicidade; o verbo gorgia-z-o ficou como sinnimo de grandiloqncia. Mas sua idia deprosa "to bela quanto a poesia" imps-se a todos os escritoresgregos, a comear por Demstenes, Tucdides, Plato .. Gr-gias ps a retrica a servio do belo.\

    A retrica e os sofistasA servio do belo querer dizer a servio da verdade? Essaquesto implica toda a relao entre a retrica e a sofstica.Observemos que o ensinamento de Grgias comportava

    uma vertente filosfica. Foi conservado o resumo de um deseus discursos, intitulado Do no-ser, ou da natureza\ comeste promissor incio:

    Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo queexista alguma coisa, o homem no a pode apreender;em terceirolugar, mesmo que ela possa ser apreendida, no pode ser formu-lada nem explicada aos outros. Les prsocratiques, p. 1022)

    Haver algum elo entre esse agnosticismo e a retrica?Em Elogio de Helena, ele diz:

    Quando as pessoas no tm memria do passado, viso dopresente nem adivinhao do futuro, o discurso enganoso temtodas as facilidades. Ibid., p. 1033)

    ORIGEN S DA RETRICA NA GRCIA 7Ora, se admitirmos como ele que o ser no existe, ou que no cognoscvel nem comunicvel, no estaremos reconhecen-do ipso facto a onipotncia da palavra, palavra que no estmais submetida a nenhum critrio externo e da qual nem mes-mo se pode dizer que falsa? Nessas alturas estamos em ple-na sofstica.

    Protgoras: o homem medida de todas as coisasO elo entre a sofstica e a retrica s aparece plenamenteem Protgoras5 Originrio da Abdera, na Trcia, Protgoras

    c. 486-410) tambm era um mestre itinerante, que ensinava aomesmo tempo eloqncia e filosofia e tambm ganhava quan-tias fabulosas. No entanto, foi mais engajado que Grgias Che-gando a Atenas, fez a seguinte profisso de f agnstica:

    Quanto aos deuses, no estou em condies de saber seexistem ou se no existem, nem mesmo o que so. Ibid., p.1 000)

    O que logo lhe valeu uma condenao morte, da qual, menosherico que Scrates, livrou-se fugindo.Com isso, foi um autor enciclopdico. Foi decerto o pri-meiro a interessar-se pelo gnero dos substantivos, pelos tem-pos dos verbos, bem como pela psicologia das personagens deHomero; em suma, pelo que depois ser chamado de "gramti-ca". Passa tambm po r fundador da eristica, que depois vir aser dialtica. Partindo do princpio de que a todo argumentopode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentadoou refutado, ele ensina a tcnica eristica, arte de vencer umadiscusso contraditria ("eristica" vem de ris, controvrsia).Essa arte, extremamente elaborada, no hesita em recorrer aospiores sofismas. Do tipo:

    }." .. O rato mys) um animal nobre pois dele que provm osmistrios (Aristteles, Retrica, 140la

    Pode-se ser branco e no branco ao mesmo tempo, porquantoo etope negro (na pele) e branco nos dentes. in Navarre, p. 65)

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    8 INTRODUO ARET6RICApouco compreensvel como oradores clebres, gregos

    alm de tudo, a comear por Protgoras, puderam impor-secomtais estupidezes. De fato, se grandes pensadores, como Arist-teles e Plato, envidaram tantos esforos para refutar os sofis-tas, sinal de que estes no eram negligenciveisnem estpi-dos, e que, ac ima de suas artimanhas publicitrias, eles ensina-vam algo importante. Mas o qu?

    dificil saber, pois s os conhecemos atravs de seus ini-migos. Recordemos as teses de Protgoras: o homem a medi-da de todas as coisas; em outras palavras, as coisas so comoaparecem a cada homem; no h outro critrio de verdade. Oque produz o mais completo relativismo, porque, se uma coisaparece bela a um, feia a outro, fria a um, quente a outro, grandea um, pequena a outro, ser as duas coisas ao mesmo tempo.No h mais nenhuma objetividade,nem mesmo lgica, pois oprincpio de contradio no vale mais. A c adaum a sua verda-de, e todas so verdades. A cada um: mas,em Protgoras, o ca-da um tanto a cidade quanto o indivduo; a cidade que,emnome de seu prprio interesse, decide sobre os valores e as ver-dades. Isso equivale a dizer que nossa lngua, nossas cincias,nossos valores estticos e morais no passam de convenesque mudam de uma cidade para outra, que variam segundo ahistria e a geografia: Bela justia a que delimitada por umrio .. , dir Pascal, admitindo que assim e lamentando.

    Relativismo pragmtico, tal parece ter sido a doutrina deProtgoras. No existe verdadeem si, mas uma verdade de cadaindivduo, de cada cidade; e o importante aquilo que lhe per-mite fazer-se valer e impor-se, que precisamente a retrica.Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto aviolncia quanto a tolerncia. Por isso ela nos parece ao mes-mo tempo fascinante e ambgua; e esse o sentimento que setem diante do Protgoras de Plato.

    Plato parece ter detestado o grande sofista, que ele afir-ma ser pervertedor de jovens, e a qu em objeta que no o ho-mem a medida de todas as coisas, mas sim Deus. E,no entanto,Plato escreveu dois pastichos, dois trechos brilhantes que eleatribui a Protgoras. O primeiro o mito da origem do homem,

    ORIGENS DA RET6RICA N GRCIA 9em Protgoras (320 c s.), meditao antropolgica espantosa-mente profunda e moderna. O segundo a autodefesa de Prot-goras em Teeteto (166 a . Esses dois textos nos apresentam umProtgoras cativante e respeitvel,um mestre de humanismo etolerncia. Acreditarem qu, em quem?

    Fundamento sofistico da retricaDe qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram

    a retrica como arte do discurso persuasivo, objeto deum ensi-no sistemtico e global que se fundava numa viso de mundo.

    Ensino global: aos sofistas que a retrica deve os primei-ros esboos de gramtica, bem como a disposio do discursoe um ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a idia deque a verdade nunca pas sa de acordo entre interlocutores, acor-do final que resulta da discusso, acordo inicial tambm,sem oqual a discusso no seria possvel. A eles se deve a insistnciano kairs, momento oportuno, ocasio que se deve agarrarnafuga incessante das coisas, ao que se d o nome de esprito daoportunidade ou de rplica vivaz, e que a alma de qualquerretrica viva. Sim, todos os elementos de uma retrica riqussi-ma, que sero encontrados depois, especialmente em Arist-teles.

    No entanto, o fundamento que do retrica parece-nosbem perigoso. de perguntar se eles no a comprometerampara sempre, ao justific-la como o fize ram pela incerteza e pe-lo sucesso. Mas, afinal, por que esse lao, aparentemente inque-brantvel, entre o sofista e o retor?

    Certamente porque o mundo do sofista um mundo semverdade, um mundo sem realidade objetiva capaz de criar oconsenso de todos os espritos, para dizerem que dois e doisso quatro e que Tquio existe .. Privado de uma realidade ob- o discurso humano fica se m referente e notemoutro critrio seno o prprio sucesso: sua aptido para con-vencer pela aparncia de lgica e pelo encanto do estilo. A ni-ca cincia possvel , portanto, a do discurso, a retrica.

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    10 INTRODUO RETRICAConcretamente, o que muda? Muda que o discurso no

    pode mais pretender ser verdadeiro,nem mesmo verossmil, spoder ser eficaz; em outras palavras, prprio para convencer,que no caso equivale a vencer, a deixar o interlocutorsem r-plica. A finalidade dessa retrica no encontrar o verdadeiro,mas dominar atravs da palavra; elaj no est devotada ao sa-ber, mas sim ao poder.

    Os sofistas foram c om certeza os primeiros pedagogos, eo objetivo de sua educao n o deixa de ser nobre: capacitar oshomens a governar bem suas casas e suas cidades 6. Entre-tanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas o sa-ber fazer a servio do poder.

    Com a sofistica, a retrica rainha, mas rainha desptica. porquanto ilegtima. Agora, o elo entre retric a e sofistica fa-tal: ser possvel salvar a primeira da segunda?

    Iscrates ou Plato

    Vimos que a retrica veio atender a diversas necessidadesdos gregos: necessidade de tcnica judiciria, de pro sa liter-ria, de filosofia, de ensino. Ora, Iscrates vai conseguir satisfa-zer sozinho essas quatro exigncias, ao propor uma retricamais plausvel e mais moral que a dos sofistas.

    Alis, a partir do final do sculo V esse termo passou a serpejorativo, e devemos agradecer Iscrates por ter libertado a re-trica do domnio sofistico. O problema estem saber se de fatofoi uma libertao real, e se afinal Iscrates no deixou as coi-sas como estavam. exatamente isso que Plato critica nele.

    scrates, o humanistaAteniense da gema, Iscrates viveu noventa e nove anos

    (436-338). Sua voz fraca e sua invencvel timidez impediram-no de ser orador. Por isso, virou professor de arte oratria. Aosoitenta anos, foi-lhe movida uma espcie de processo fiscal

    ORIGENS DA RETRICA NA GRCIAbastante grave; ele escreveu sua prpria defesa, confiou-a aumdiscpulo e .. perdeu a causa. Nem por isso deixou de publicarsua defesa, A troca, como modelo a ser seguido. Foi, alis, co-mo modelos que publicou inmeros discursos, alguns jurdi-cos, outros epidcticos.

    Em suma, um grande professor de retrica, admirado pe-los contemporneos e sempre admirvel. Ao contrrio de seuspredecessores, recusa-se a fazer malabarismos prop_agandsti-cos e rejeita a aprendizagem automtica de lugares e outrosprocedimentos. Ensina sempre recorrendo reflexo do alunoe fazendo seus grandes discpulos cooperarem na gnese deseus prprios discursos, que lem, discutem e corrigem com omestre7 Alis, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam decapacitar qualquerum a persuadir qualquer um, ele mostra queo ensino no todo-poderos08 A seu ver, para ser orador, sonecessrias trs condies. Para comear, aptides naturais.Depois, prtica constante. Finalmente, ensino sistemtico. Pr-tica e ensino podem melhorar o orador, mas no cri-lo.

    Apesar de, como Grgias, querer uma prosa literria, des-preza a grandiloqncia e criauma prosa que se distingue com-pletamente da poesia: sbria, clara, precisa, isenta de termosraros, de neologismos, de metforas brilhantes, de ritmos mar-cados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa. Semser potica, tem um ritmo que se deve ao equilbrio do perodoe clusula que a fecha; eufnica, evitando as repeties des-graciosas de slabas e os hiatos.

    Principalmente, moraliza a retrica ao afirmar alto e bomsom 9 que ela s aceitvel se estiver a servio de uma causahonesta e nobre, e que no pode ser censurada, tanto quantoqualquer outra tcnica, pelo mau uso que dela fazem alguns.Alis, para Iscrates, ensino literrio e formao moral estoligados, para dizer o mnimo. De fato, ele ensina que a retricadeve ter um objetivo para depois procurar todos os meios de

    sem nada deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim aorganizar um discurso, no se estaria tambm ensinando agovernar a prpria vida? O ensino literrio uma escola deestilo, de pensamento e de vida. Idia bem grega, de que a har-

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    12 INTRODUO RET6RICAmonia o valor por excelncia, que rege a existncia tanto quan-to rege o discurso. Estamos aqui na origem do humanismo,para o qual Iscrates contribui, alis, com um fundamento an-tropolgico.A palavra, diz ele, a nica vantagem que a natureza nosdeu sobre os animais, tornando-nos assim superiores em todo oresto lO. Em outras palavras, todas as nossas tcnicas, toda anossa cincia, tudo o que somos devemos fala. Donde ele in-fere uma concluso poltica: os gregos, povo da palavra, for-mam na verdade uma nica nao, no pela raa, mas pela ln-gua e pela cultura. Devem, portanto, renunciar s guerras fra-tricidas e unir-se.Iscrates, que se proclama anti-sofista, tambm no rei-vindica o nome de retor. Ele se diz filsofo . Mas, convencido

    (de que o homem no pode conhecer as coisas assim como so,colocando a dialtica de Plato no mesmo nvel de inutilidadeda eristica dos sofistas, integra a filosofia na arte do discurso .Ela para a alma o que a ginstica para o corpo, formaointelectual e moral, boa para os jovens, mas intil para perse-guir por toda a vida (a mesma criti ca que ser feita a Scrates'2por Clicles). Em suma, para Iscrates, filosofia culturageral, centrada na arte oratria; numa palavra: retrica.Nesse caso, qual seu mrito em relao aos sofistas? Umacontribuio tipicamente grega, o sentido da beleza. Ele escreveem seu Elogio de Helena que a beleza o mais venerado, omais precioso, o mais divino dos bens (54). a beleza queconstitui a harmonia do discurso e da vida, e a educao ticapelo simples fato de ser esttica. Se a linguagem peculiar aohomem, a bela linguagem valor por excelncia: e a retrica,confundida com a filosofia, a rainha das cincia. Mas serpossvel separar o discurso do ser, a beleza da verdade?

    Uma pausaSe Iscrates enaltece a retrica, que para ele toda a filo-sofia, Plato, em nome da filosofia, aplica-se a uma critica de

    ORIGENS DA RET6RICA NA GRCIA 3fundo contra a retrica, especialmente no livro que lhe dedica,Grgias, um dos textos mais fortes de toda a literatura.Mas comecemos com uma pausa, dando pela ltima vez apalavra ao sofist a retor. Pois nesse dilogo Plato lhe d a pala-vra. Pe em cena seu mestre Scrates a discutir retrica comGrgias e mais dois de seus discpulos. Alis, parece que o Gr-gias histrico menos visado em Grgias do que Iscrates.

    No comeo, Scrates, fingindo ignorar o que retrica,pede a Grgias que a defina. Ela - responde o outro - opo-der de persuadir pelo discurso assemblias de qualquer tipo452 e : ela , portanto, criador a de persuaso peithous de-miurgos). Scrates ento faz uma pergunta capital para o quese segue: ser que a retrica tem cincia daquilo de que persua-de? E Grgias responde que el a no precisa disso (tanto quantoquem faz propaganda de um remdio no precisa ser mdico).Mas ento para que precisamos dela: nos debates pblicos nose buscar o conselho de especialistas, e no retores? A respos-ta de Grgias merece ser citada por inteiro.

    Texto Plato, Grgias, 455 d a 456 c, trad. M CroisetGRGIAS - Vou tentar, Scrates, revelar-te claramente opoder da retrica em toda a sua amplitude ( .. ). No ignoras porcerto que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e detoda a organizao de vossos portos se deve por um lado aos

    conselhos de Temstocles e por outro aos de Pricles, mas emnada aos dos homens do oficio.SCRATES - isso realmente o que se relata a respeito deTemstocles, e, quanto a Pricles, eu mesmo o ouvi propor aconstruo do muro interno.GRGIAS - E, quando se trata de uma dessas eleies de quefalavas h pouco, podes verificar que tambm so os oradores quematria do e que a fazem. SCRATES - Posso venficar ISSO com espanto, Gorglas, epor isso me pergunto h muito tempo que poder esse da retri-ca. Ao ver o que se passa, ela se me aparece com uma coisa degrandeza quase divina.

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    14 INTRODUO RET RICAGRGIAS - Se soubesses tudo, Scrates, verias que elaengloba em si, por assim dizer, e mantm sob seu domnio todosos poderes. Vou dar-te uma prova impressionante disso:Aconteceu-me vrias vezes acompanhar meu irmo ououtros mdicos casa de algum doente que recusava uma droga

    ou que no queria ser operado a ferro e fogo, e sempre que asexortaes do mdico resultavam vs eu conseguia persuadir odoente apenas com a arte da retrica. Que um orador e um mdi-co andem juntos pela cidade que quiseres: se comear uma dis-cusso numa assemblia popular ou numa reunio qualquer paradecidir qual dos dois dever ser eleito mdico, afirmo que omdico ser anulado e que o orador ser escolhido, se isso lheagradar.O mesmo aconteceria com qualquer outro arteso: o oradorse faria escolher diante de qualquer outro concorrente, pois noh assunto sobre o qual um homem que conhece retrica noconsiga falar diante da multido de maneira mais persuasiva queum homem do oficio, seja ele qual for. A es t o que retrica, edo que ela capaz.

    Para comear, cabe admirar a ironia de Scrates 4), quefinge no compreender e espantar-se. Observemos tambmque, sem explicitar, Grgias ilustra a teoria de Iscrates, paraquem a palavra apangio do homem e origem de todos os seus"poderes"; donde se pode concluir que o domnio da palavraser tambm o domnio de todas as tcnicas.Grgias, porm, no utiliza o raciocnio. Argumenta atra-vs do exemplo. Na verdade, para provar sua tese, a onipotn-cia da retrica, ele parte de dois fatos bem conhecidos, de queseu prprio interlocutor foi testemunha ( 2). Esses exemplosso muito fortes, pois bastam para pr em xeque a pretensodos especialistas e refut-la. Ainda hoje no so os especialis-tas que promovem vendas, mas publicitrios. Ainda hoje comona Grcia, as decises polticas no so tomadas por especia-listas. Por qu? Porque esto em falta? o contrrio, talvez porexistirem em excesso, por ser necessrio selecionar os melho-res, que raramente sabem se impor. preciso, portanto, um"reto ", um no-especialista que em contrapartida disponha de

    ORIGENS DA RET RICA NA GRCIA 15uma viso global e da arte da palavra, ou seja, que saiba ouvir efazer-se ouvir.E seria fcil continuar os exemplos de Grgias: s o os pre-sidentes das empresas que decidem, no os engenheiros; osgrandes ministros raramente so especialistas em seu setor: umMinistro da Sade no precisa ser mdico, um Ministro da Edu-cao no precisa ser professor, e os melhores comandantesdas guerras no so militares: pensemos em Clemenceau ouem Churchill. Quem realmente decide no so os especialistas,mas aqueles que, graas cultura e arte da eloqncia, socapazes de fazer-se ouvir e arbitrar.Alis, por isso que Protgoras, em outro dilogo, afirmaque educa os jovens no para torn-los tcnicos em algumacoisa, mas para sua educao all epi paideia, ou seja, para suacultura geraP3.

    Na seqncia de seu discurso, Grgias amplia o argumen-to, mas por isso mesmo o enfraquece, pois exige demais dele.Depois de mostrar o poder da retrica, quer transform-lo emonipotncia. Para isso acrescenta outro exemplo, menos verifi-cvel, mas tambm plausvel, o do orador que convence o en-fermo. Continuamos no verossmil: para levar um paciente aadmitir que tem de sofrer para curar-se, preciso coisa diferen-te da cincia mdica: psicologia.Mas no fim a argumentao incha a ponto de explodir,com o exemplo - puramente fictcio - do concurso. A assem-blia preferir o orador ao mdico, cas o o orador queira fazer-se eleger mdico No fundo o ponto de vista da publicidade,que afirma, a torto e a direito, que consegue vender e "vender-se". No entanto o eu afirmo (phmi) de Grgias no realmen-te autorizado pelo que precede; de fato os exemplos, por maisnumerosos e eloqentes que sejam, no provam tudo; no queno provem nada, mas no provam nada de universal. Dessemodo, os exemplos de Grgias provam que nem tudo podem osespeciattstas, e no que nada podem; provam que a retrica capaz de alguma coisa, e at muito, mas no que onipotente.Na verdade, seria fcil contra-argumentar mostrando que, semmdicos ou outros especialistas, o re tor no iria muito longe; a

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    6 INTRODUO ARETRICAcidade que o tivesse elegido mdico no seria enganada por mui-to tempoEm suma, partindo de um argumento muito forte, Grgiaso enfraquece, depois o destri, exigindo dele o que ele no po-de provar.Retrica e cozinha

    A seqncia do dilogo uma refutao progressiva e to-tal da retrica.Para comear, o prprio Grgias que, como Iscrates, li-mita o pOder dela, subordinando-a moral:Deve-se usar a retrica com justia, assim como todas asarmas. Grgias, 457 b cf. Iscrates, A troca, 251 a 253)

    Grgias (ou Iscrates?), retor honesto, subordina a retri-ca a uma moral que lhe completamente exterior; mas no es-taria ele dessa forma mascarando as fraquezas e os perigos daretrica? Pois, afinal, mesmo a servio de uma boa causa, a ar-ma continua sendo uma arma, e no infalvel que o seu poderseja sempre totalmente controlvel.Scrates comea fazendo Grgias confessar que a retricaassim definida no necessita conhecer aquilo de que est falan-do, como por exemplo a medicina. Donde a seguinte conclusodesdenhosa:Logo, quem leva a melhor sobre o sbio um ignoranteque est falando a ignorantes. (459 b "sbio" no sentido de com-petente)

    O debate torna-se mais agressivo com o discpulo de Gr-gias, Polos, jovem que recorre menos a sutilezas e escrpulosque seu mestre. Como ele se embevece com a onipotncia daretrica, Scrates demonstra que esse p oder teria a mesma na-tureza do poder do tirano, o que Polos admite, achando por cer-to que lhe diro que a retrica perigosa, imoral, etc. Ora, S-

    ORIGENS DA RETRICA NA GRCIA 17crates faz outra pergunta completamente diferente: os tiranosfazem o que querem? Naturalmente fazem o que lhes agrada,mas ser realmente o que querem? Fazer o que se quer implicasaber do que se trata, conhecer o objeto da vontade e seu valorreal. Ora, o retor e o tirano no conhecem nada disso. Pois seunico critrio o prazer, e o prazer nunca indica o verdadeirobem; s d uma satisfao aparente e fugaz. Assim como aculinria cujo objetivo nico seja lisonjear nossa gula no nosd sade, pelo contrrio, tambm a retrica apenas lisonjeia,sem preocupao com o verdadeiro bem. Aquilo que a culin-ria para a medicina, cincia da sade, a retrica para ajust i-a, ou seja, sua falsa cara, sua imitao.Poder da retrica? m poder sem freios como o do tirano,e sem controle. Mas poder de verdade? Polos afirma que otirano o homem onipotente, pois pode fazer "tudo o que lheagrada": despojar, exilar, matar, etc., sem as peias de lei algu-ma. Ora, Scrates abstm-se de criticas morais, do tipo "noest certo". Mostra simplesmente que "no forte", que essepoder que o retor e o tirano se atribuem no passa de impotn-cia, porque no fundado em verdade, porque no pode justifi-car o que est propondo ou se propondo. O tirano considera-seum monstro, mas um monstro feliz; na verdade, apenas fracoe infeliz, mais digno de lstima que suas vtimas.

    POLOS - O homem miservel e digno de piedade sem amenor dvida aquele que foi morto injustamente.SCRATES-Menos do que aquele que mata, Polos .. (469 b

    E a retrica, com todo o seu prestgio, sofre da mesma impo-tncia; no passa de tcnica cega e rotineira que, longe de pro-porcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam paraserem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os semajud-los, prejudicando-os mesmo (463 a 465). A onipotnciada retQrica no passa de impotncia:'''-' Os oradores e os tiranos so os mais fracos dos homens.(466 d

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    CaptuloAristteles a retrica e a dialtica

    Aristteles 384-322) nasceu - quinze anos depois damorte de Scrates - em Estagira, cidadezinha litornea entreSalnica e o monte Atos. Entra com dezessete anos na Acade-mia de Plato e ali fica vinte anos, abandonando-a por no po-der suceder o mestre; vai fundar uma escola concorrente, oLiceu. Filsofo e sbio universal, soube conciliar em si duastendncias pouco conciliveis: o esprito de observao e o es-prito de sistema.Antes de fundar o Liceu, foi preceptor do filho do rei Fili-pe da Macednia, que mais tarde se distinguiu como um dosmaiores gnios militares e polticos de todos os tempos, con-quistando para a pequena Grcia todo o Oriente, desde o Egitoat a ndia.Aristteles e Alexandre, o Grande: o que o primeiro podeter ensinado ao segundo? Um militar tentou responder:o poder do esprito implica uma diversidade que nunca seencontra unicamente na prtica da atividade profissional, domesmo modo como no nos divertimos apenas em famlia. Averdadeira escola do comando est na cultura geral. Por meiodela, o pensamento posto em condies de exercer-se, com or-dem, de distinguir o essencial do acessrio nas coisas, de perce-ber os prolongamentos e as interferncias, em suma, de elevar-

    um nvel em que o conjunto aparece sem o prejuzo dosmatizes. No h ilustre capito que nunca tenha tido gosto nemsentimento pelo patrimnio do esprito humano. Por trs dasvitrias de Alexandre, encontramos sempre Aristteles. Char-les de Gaulle, ers I arme de mtier, 1934)

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    24 INTRODUO ARETRICAvalia pelo uso, Aristteles lhe confere um valor positivo, aindaque relativo.Ou talvez porque relativo. Voltemos, pois, sua definiocorrigida da retrica. Ela no se reduz, diz ele, ao poder depersuadir (subentendido: ningum de coisa nenhuma); no es-sencial, a arte de achar os meios de persuaso que cada casocomporta. Em outras palavras, o bom advogado no aqueleque promete a vitria a qualquer custo, mas aquele que abrepara a sua causa todas as probabilidades de vitria.E aqui surge uma vez mais a personagem paradigmticado iatrs, do mdico. Para Grgias, ele estava submetido ao re-tor, pois dele dependia inteiramente, quer para convencer seupaciente, quer mesmo para ser nomeado. Em Plato, , ao con-trrio, o faz papel bonito; ele que sabe e podecurar, enquanto o retor no passa de envenenador que no sabenem como nem por que envenena, uma vez que sua pretensaarte no passa de rotina cega. Pode-se observar que o mdicode Aristteles tem bem menos segurana do que faz; ele nadapode fazer pelos doentes incurveis, e mesmo aos outros no po-de prometer a cura, mas simplesmente dar-lhes todas as oportu-nidades de curar-se. Ainda que nossa medicina seja hoje infini-tamente mais cientfica que a de Aristteles, no pode prome-ter mais. Aqui o mdico j no est abaixo do retor, nem acima;ambos esto frente a frente, sendo cada um detentor de umaarte que s te m poder porque reconhece seus limites.

    Em resumo, dando retrica uma definio mais modestaque a dos sofistas, ele a toma muito mais plausvel e eficaz.Entre o tudo dos sofistas e o nada de Plato, a retrica secontenta com ser alguma coisa, porm de valor certo.

    A argumentao de AristtelesNosso texto objetiva estabelecer esse valor. Isso feito

    com quatro argumentos mais uma prolepse (5), para final-mente passar definio.Os quatro argumentos tm por finalidade provar a tese,exposta desde o incio: A retrica til khrsimos); em ou-

    ARISTTELES, A RETRICA E A DIALTICA 25tras palavras, dela se pode esperar aquilo que se espera de todasas tcnicas: um servio; o que vo mostrar os quatro argu-mentos, cada um por sua vez.

    O primeiro argumento parece responder a uma objeoimplcita: no possvel contentar-se com expor simplesmenteo verdadeiro e o justo, sem recorrer a artifcios oratrios? Aris-tteles leva em conta a objeo, dizendo: sim, o verdadeiro e ojusto so por natureza physei) mais fortes que seus contrrios.S que a experincia mostra - aqui, argumento pelo exemplo -que muitos veredictos dos tribunais so inquos. Como expli-car isso? Pelo erro dos litigantes, que no souberam fazer valerseus direitos, que no conseguiram sobrepujar a retrica deseus adversrios, capazes de tomar mais forte o argumentomais fraco , de fazer o injusto prevalecer sobre o justo. Se aarte pode ter vantagem sobre a natureza, preciso um suple-mento de arte para devolver natureza seus prprios direitos.

    isso o que o terceiro argumento desenvolve tecnicamen-te. preciso ser capaz de defender to bem o contra quanto opr, claro que no para tom-los equivalentes - como preten-diam os sofistas - mas para compreender o mecanismo da ar-gumentao adversria e assim a refutar.

    O quarto argumento amplia o debate, ligando novamente aretrica condio humana, como j fazia Iscrates, o grandeausente-presente de todo o debate. Se a palavra caractersticado homem, mais desonroso ser vencido pela palavra que pelafora fsica. Para interpretar a polissemia do termo grego 1gos, o tradutor ingls emprega rational speech.

    Na verdade, esses argumentos valem no somente para odiscurso judicirio como tambm para todos os tipos de discur-sos pblicos. No campo do direito, da poltica, da vida interna-cional, vivemos sempre uma situao polmica, em que as ar-mas mais eficazes so as da palavra, visto que s ela - e no afora fsica - define o justo e o injusto, o til e o nocivo, o no-bre e o;Wsprezvel. A retrica, arte ou tcnica da palavra, ,portanto, indispensvel. E a est o que a legitima.Mas o que dizer ento da objeo de Plato, qual seja, quea retrica inteiramente estranha verdade? Parece-nos que o

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    26 INTRODUOARETRICAsegundo argumento de Aristteles 2) responde implicitamen-te a ele. A retrica, dizia Plato, que se autodefine como arteonipotente, no arte de modo algum, pois cega no que faz eno que quer. Por ignorar o verdadeiro, no nem mesmo verda-deiro poder. O que responde Aristteles?

    "Conquanto possussemos a cincia .." preciso entenderbem o que est em jogo. Aristteles ope-se aos sofistas, paraos quais tudo relativo, e tambm, como sempre, a Iscrates,para quem uma cincia absoluta, moda de Plato, no passade logro, visto que o homem poder chegar apenas a opiniesjustas, ou melhor, mais ou menos justas A troca, VI, 271).Quanto a Aristteles, admite que existe uma cincia exata, eat "inteiramente exata" akribestat). Assim como Plato, ad-mite uma cincia que, por via demonstrativa, parta do verda-deiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Pla-to que a cincia mais exata impotente para convencer certosauditrios, aos quais falta instruo. preciso, portanto, utili-zar noes "comuns", ou seja, acessveis ao comum dos mor-tais. Suponhamos que uma comisso mdica queira fazer cam-panha contra o tabagismo: vai precisar achar para difundir coi-sa bem diferente de um curso de medicina Tal a interpreta-o corrente do texto de Aristteles. No entanto, ela nos pareceevidente e banal demais para no ser suspeita.Com efeito, no fim da alnea, Aristteles refere-se dial-tica dos Tpicos. Atendo-nos a essa interpretao, poderamosacreditar que a dialtica no passa de quebra-galho, devido incultura dos auditrios populares, uma maneira de falar aosignaros, que s tm a seu favor (quando muito) o senso co-mum. A retrica seria ento a filosofia do pobre, o que no fun-do nos remete a Plato.

    Na verdade, preciso retomar frase obscura: o discursosegundo a cincia pertence ao ensino". Em outras palavras, umdiscurso submetido s exigncias cientficas s pode ser feitonuma escola, numa instituio especial, com seus mtodos,seus mestres, programas progressivos, etc. Ora, no a mesmacoisa quando se fala diante de um tribunal, ou em praa pbli-ca, onde no se tem nem mesmo o tempo para expor cientifica-mente. Mas ser por causa da incultura do auditrio?

    ARISTTELES, A RETRICA E A DIALTICA 27Parece que o problema est em outro lugar. O domnio daretrica, o das questes judicirias e polticas, no o mesmoda verdade cientfica, mas do verossmil. O prprio Aristtelesdiz isso em outro texto:

    Seria to absurdo aceitar de um matemtico discursos sim-plesmente persuasivos quanto exigir de um orador retor) de-monstraes invencveis. tica a Nicmaco, I, 1094 bA retrica no , pois, a prova do pobre. a arte de defen-der-se argumentando em situaes nas quais a demonstraono possvel, o que a obriga a passar por "noes comuns",que no so opinies vulgares, mas aquilo que cada um podeencontrar por seu bom senso, em domnios nos quais nada seriamenos cientfico do que exigir respostas cientficas.Numa palavra, Aristteles salva a retrica, colocando-aem seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe m papel modesto,mas indispensvel num mundo de ince rtezas e de conflitos. aarte de encontrar tudo o que um caso contm de persuasivo,sempre que no houver outro recurso seno o debate contradi-trio. Para entender melhor isso, passemos ao exame da rela-o entre a retrica e a dialtica 1

    o que dialticaSabe-se que os gregos eram grandes esportistas, pratican-tes de toda espcie de lutas e competies. Mas tambm se des-tacavam numa disputa esportiva fora dos estdios e ginsios,

    ou puramente verbal, a dialtica. Dois adversrios se enfren-tam diante do pblico: um sustenta uma tese - por exemplo,que o prazer o bem supremo - , e a defende custe o que custar;o outro ataca com todos os argumentos possveis. O vencedorser aquele que, prendendo o adversrio em suas contradies,conSe8uir reduzi-lo ao silncio, para grande alegria dos espec-tadores.Parece que a primeira dialtica foi a erstica dos sofistas,arte da controvrsia que permitia fazer triunfar o absurdo ou o

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    28 INTRODUO RETRICAfalso. Scrates e depois Plato puseram a dialtica a servio doverdadeiro, transformando-a no prprio mtodo da filosofia.Para Aristteles, a dialtica no est menos a servio doverdadeiro do que do falso; ela trata do provvel:

    Em filosofia, preciso tratar as questes segundo a verda-de, mas em dialtica somente segundo a opinio2A dialtica de Aristteles apenas a arte do dilogo orde-nado. O que a distingue da demonstrao filosfica e cientfica raciocinar a partir do provvel. O que a distingue da ersticasofista raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamenteas regras da lgica.

    A dialtica um jo oO silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes,necessrias, que provam sua concluso explicando-a de modoindubitvel. O silogismo dialtico parte de premissas simples-mente provveis, os endoxa, aquilo que parece verdadeiro atodo o mundo, ou maioria das pessoas, ou ainda aos indiv-duos competentes. O endoxon ope-se, pois, ao paradoxon (oparadoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opinio aceita).So assim, hoje em dia, os conceitos de normal ou de matu-ridade : no possuem nenhum rigor cientfico, mas so teispara que as pessoas se entendam, tanto nas cincias humanasquanto na vida social; seriam bons exemplos de endoxa.Portanto, a dialtica renuncia verdade das coisas em be-neficio da opinio aceita. Substitui a pergunta cientfica: oque ? por esta outra: o que lhe parece? 3. A verdade queAristteles toma o cuidado de distinguir o verdadeiro consensodo consenso aparente phainomenon endoxon), com que se con-tentam os sofistas.Hoje, quem l os Tpicos pergunta-se com freqncia oque distingue Aristteles dos sofistas. Desconfia-se que seuobjetivo no ensinar a buscar a verdade, mas sim a manipularo adversrio e mesmo a engan-lo.

    ARISTTELES, A RETRICA E A DIALTICA 29Em nossa opinio, a melhor resposta para esse tipo de cr-tica mostrar que a dialtica no nem moral nem imoral, sim-plesmente porque, no fundo, ela um jogo. Num jogo, o pro-blema ganhar. E, neste, vencer convencer; em outras pala-vras, uma proposio enunciada pelo adversrio admitida

    como provada, sem que se possa voltar a ela.Como em todos os jogos, a polmica s conflito na apa-rncia: um prlio esportivo ou uma partida de xadrez esto tolonge de ser um conflito real quanto um rei do xadrez est lon-ge de um monarca histrico; assim, quem defende uma tese po-de muito bem no acreditar nela; defende-a por jogo Enfim,como todo jogo, a dialtica no tem outro fim alm de si mes-ma: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E nisso que se distingue das atividades srias: da filosofia porum lado e da retrica por outro, ainda que lhes seja - como ve-remos - indispensvel.Em sntese, um jogo anlogo ao xadrez, em que o acasotem posio nfima. Um jogo em que se deve fazer de tudopara ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras da l-'gica.

    Tudo para ganharNo embate dialtico, preciso antes de tudo levar em con-siderao o adversrio concreto que temos diante de ns e dis-por os argumentos por via de conseqncia. Por exemplo, se o

    adversrio iniciante, ser atacado com exemplos ou analogias;se for experiente, ser-Ihe-o opostos raciocnios dedutivos4 Aristteles, alis, ensina procedimentos, truques prpriosa desorientar o adversrio, impedi-lo de ver aonde se quer che-gar (como no xadrez); por exemplo, encontrar formas de argu-mentao que dissimulem a concluso, para que o adversriono sat aonde se est indo realmente; inserir na argumenta-o proposies inteis para melhor esconder o jogo, etc. 5; domesmo modo, finge-se imparcialidade, fazendo objees asi mesmo; s vezes no se hesita em concluir o verdadeiro a

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    30 INTRODUO RET6RICApartir de premissas falsas, em se verificando que o adversrioadmite estas ltimas mais facilmente que as verdadeiras 6 Notodo, as aparncias so salvas. Tem-se at o direito de jogarcom as palavras (como os sofistas ), quando, por culpa doadversrio, se est "absolutamente impossibilitado de discutirde outra maneira .. 7.Na verdade, pouco importa se o defensor sustenta umatese provvel ou improvvel; pouco importa se a tese dele, deoutro, ou de ningum. O importante acharem que ele defen-deu bem, que argumentou brilhantemente8; por fim, caso oquestionador tenha vencido ressaltando todos os absurdos de-correntes da tese, o defensor deve poder "mostrar" que a culpano sua, mas da prpria tese; em suma, que ele defendeu omelhor que pde uma tese que no era sua>, Assim,

    num debate dialtico, o objetivo do questionador parecer, portodos os meios, estar fazendo uma refutao, e o objetivo do de-fensor parecer no estar sendo afetado pessoalmente em nada.(VIII,5,159a)

    Respeitar as regras do jo oUm jogo, portanto, mas que deve ser jogado respeitando-

    se as regras. Sim, deve-se fazer de tudo para ganhar, mas nopor quaisquer meios. Porque a trapaa, transgresso das regraslgicas, induz de chofre a destruio do jogo. E exatamentepor isso que Aristteles tanto insiste nas regras da dialtica,que a opem sofistica, essa trapaa. As principais so as queseguem:

    Para comear, as que - sem serem propriamente lgicas -tm por objetivo permiti r a concluso, o fim do jogo, num tem-po limitado.Assim, se verdade que, a parti r de casos particulares, pormais numerosos que sejam, nunca se pode concluir por umaproposio universal, cumpre entretanto que o adversrio, apscerta quantidade de exemplos, aceite essa passagem para o uni-versal, a menos que ele prprio gere um contra-exemplo. Se, ao

    ARIST6TELES A RET6RICA E A DIALTICA 31contrrio, se obstinar, no estar fazendo mais que chicanice,pois estar bloqueando o debate de modo totalmente arbitr-rio l Analogamente, preciso evitar que as objees acabemvirando obstruo, o que equivale a desperdiar tempo e parali-sar a discusso para no perder. De modo mais geral, deve-seevitar discutir com qualquer um, porque, se o adversrio ignoraas regras do debate, este s poder abespinhar-se, j que cadaum recorrer a qualquer meio para impor sua conclusoII s regras que dizem respeito aos argumentadores, acres-centam-se as que dizem respeito argumentao.Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeitoaos termos. Muitas vezes os debates so deturpados por se utili-zarem premissas ambguas. Vejamos, entre milhares de exem-plos, este sofista registrado na Lgica de Port-Royal (p. 217):

    No s o que sou;eu sou homem;logo, no s homem.

    Sofisma porque, na concluso, ser homem" tomado nosentido universal, enquanto na premissa menor ele tomadoem sentido particular: este homem, e no todo o homem ouqualquer homemI2 Outros sofismas dizem respeito forma do raciocnio. Porexemplo, a petio de princpio, que toma como aceita a teseque se quer demonstrar, enunciando-a com outras palavras I3 ;em que a concluso extrada de premissas menos provveisque ela, ou de premissas excessivamente numerosas para quese possa compreender a razo do que est sendo concludo; eem que se chega concluso por meio de um raciocnio impr-prio ao assunto, como por exemplo um raciocnio no geom-trico para estabeleceruma concluso geomtricaI4Vimos que, contra certos adversrios malevolentes ou li-mitados, o verdadeiro pode ser concludo de premissas falsas.Mas, ,mesmo nesse caso, continua proibido transgredir as re-gras d&raciocnio; sejam as premissas certas, provveis ou fal-sas, o raciocnio deve ser correto.

    A passagem,do falso ao verdadeiro deve ser dialtica, noerstica 161 a .

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    32 INTRODUO RETRICAEnfim, uma regra apropriada ao 'jogo dialtico: s sero

    feitas perguntas que poss am ser respondidas com sim ou comno. Por exemplo, no se deve perguntar: O que o bem?",mas: O bem se reduz ao prazer?" (158 a

    Utilidade do jo o dialticoA dialtica , pois, um jogo cujo objetivo consiste em pro-

    var ou refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocnio. Opapel do inquiridor concluir a discusso de modo que o de-fensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como conse-qncias necessrias de sua tese" (159 b . Ao outro, em contra-partida, cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial que cada um mostre que raciocinou bem e utilizou todos osargumentos a seu alcance. E esse "mostrar" j no simplesaparncia; o sofista que raciocina na aparncia, exatamentecomo o trapaceiro, que faz de conta que estjogando. Quanto dialtica, uma argumentao que vai da aparncia aparncia,mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o querefora ainda mais a idia de jogo a afirmao de Aristteles:quando um dos dois adversrios raciocina mal, a discusso virachicana, e o faltoso "impede o bom cumprimento da obra co-mum (161 a ; como em todo jogo, cada parceiro persegue seuprprio objetivo, porm ambos perseguem um objetivo comum,que chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, masambos querem levar a bom termo a obra comum".

    Finalmente, qual o proveito do jogo dialtico? Aristte-les por certo responderia - e todos os gregos com ele - que essejogo tem fim em si mesmo. Joga-se por jogar, discute-se pelabeleza e pelo prazer de uma disputa bem travada, prazer com-partilhado, alis, pelo pblico. Entretanto, Aristteles diz emoutro lugar que, embora esse jogo tenha fim em si mesmo,pode-se tambm "jogar com vista a uma atividade sria" 5. Po-de-se, com efeito, ignorar o valor insubstituvel do jogo na edu-cao? Pode-se ignorar o a specto de jogo intelectual que se en-contra tanto na matemtica quanto na filosofia?

    ARISTTELES A RETRICA E A DIALTICA 33E o prprio Aristteles, no captulo 2 do primeiro livro dosTpicos fixa os beneficios secundrios oferecidos pela dialti-

    ca. Aponta trs: uso pedaggico, uso filosfico e uso social("homiltico", que diz respeito diretamente retrica).

    O uso pedaggico ser explorado pelo ensino durante cer-ca de vinte e cinco sculos a gymnasa: Nos embates dial-ticos, argumenta-se para avaliar as foras, e no para debater",com o propsito de exercitar-se e provar-se, e no de instruir-

    se 16. Se desse jogo no se extrair verdade alguma, pelo menosse adquirir um treinamento intelectual, um mtodo que permi-ta argumentar sobre qualquer assunto.

    O uso filosfico divide-se em dois. Em primeiro lugar, adialtica, que desempenha um papel e pistemolgico por per-mitir (e s ela o faz) estabelecer atravs de um exame contradi-trio os primeiros princpios de cada cincia e os princpioscomuns a todas. Foi graas a um exame dialtico que Aristte-les estabeleceu os primeiros princpios da fisica, da moral e ato princpio de contradio.

    A outra funo interna filosofia. A dialtica d ao fil-sofo uma competncia que lhe indispensvel: Numa pala-vra, dialtico quem est apto a formular proposies e obje-es." 7 Proposio: extrair o universal de vrios casos particu-lares; objeo: achar um caso particular que permita infirmaruma proposio universal... E ainda mais, a dialtica d ao fil-sofo a capacidade de abarcar apenas com um olhar (00') asconseqncias de uma e de outra hiptese"; assim, s lhe resta"fazer a justa escolha entre ambas 18.

    Mas o filsofo no joga. Utiliza a formao que a dialticalhe d para busc ar a verdade. No uso ldico da dialtica, cadaum leva em conta os objetivos reais ou provveis do adversrioque tem diante de si. No uso filosfico, tm-se em mente todasas objees possveis, ainda que estas jamais tenham sido for-mulaqas nem sejam formulveis. O filsofo est diante de umadverMho que renasce a cada instante, pois est sempre insa-tisfeito: ele mesmo.

    Resta a funo homiltica da dialtica:

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    40 INTRODUO RETRICAcerto que no desempenham o mesmo papel. "A dialti-ca", diz Pierre Aubenque, " refuta no real ( .. ) mas s demons-tra na aparncia"22. Na retrica, em que no se sustenta umatese, mas se defende uma causa, em que no se joga co m idias,mas o que est emjogo no discurso o destino judicirio, pol-

    tico ou tico dos homens, na retrica, preciso levar a srio ona aparncia", como verossmil que faz as vezes de uma evi-dncia sempre inapreensvel.

    Em todo caso, elas pertencem ao mesmo mundo. O quesignifica isso?A retrica de Aristteles est bem prxima da retrica deIscrates em termos de contedo. A diferena que em Arist-teles a retrica uma arte situada bem abaixo da filosofia e dascincias exatas. Estas, "demonstrativas", atingem verdades "ne-cessrias", que, como os teoremas, s podem ser o que so,possibilitando compreender e prever. A retrica, por sua vez,s atinge o verossmil, aquilo que acontece no mais das vezes,mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizerque ela s possvel em certo mundo.Para Aristteles, existem dois mundos. Primeiro, o mundodivino, o "cu", no cognoscvlJ pela f, mas, ao contrrio,pela razo demonstrativa. Esta conhece tanto o divino invis-vel, Deus, quanto o divino visvel, a saber, os astros, objeto daastronomia matemtica, visto que seus movimentos so neces-srios, portanto calculveis e previsveis.Abaixo, o mundo "sublunar", a Terra, onde existem acaso,contingncia, imprevisibilidade, onde nunca possvel a cinciaperfeita, mas onde existe o provvel, o verossmil. Mundo, en-fim, aberto ao humana. Citemos mais uma vez Aubenque:

    Num mundo perfeitamente transparente cincia, isto ,onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente doque no haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, paraa ao humana23 Nenhum lugar tambm para a retrica, que um a arte. Masvivemos em um mundo que no o da pura cincia; em ummundo que no um jogo, mas que nem por