introdução à retórica. olivier reboul. são paulo_ martins fontes, 2004
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7/11/2019 Introdução à retórica. Olivier Reboul. São Paulo_ Martins Fontes, 2004
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A ret6rica e a arte de convencer pelo
discurso; e tambem a teoria dessa arte,
criada pelos gregos e constitutiva do nosso
• humanismo.
Depots de urn longo eclipse ela voltou em
nossos dias com muita forca, a ponto de
ser aplicada a imagem, ao cinema, a
musica, ao inconsciente.
Cinco enfoques complementares sao
desenvolvidos nesta introducao: uma
apresentacao hist6rica do "sistema"
ret6rico, uma exposicao met6dica dos
procedimentos ret6ricos, uma aplicacao
pratica - "leitura ret6rica de diversos
textos", urn glossario com definicoes dos
termos tecnicos e uma filosofia da ret6rica.
I N T R O D U C A o A R E T O R I C A
Olivier Reboul, fil6sofo frances, e professorde Filosofia da Educacao na Universidade de
Estrasburgo. Escreveu, alem deste, os livros:
L an na ne e t ideoloqie, L e I an na ne d e l' ducation,
Q y' est-ce qu'apprendre?
Pro je to gni ll co d acapa Kat ia Harumi Terasaka
Execucao A d ri a na T r a n s la t ti
Imagem da capa Charles Sydney Hopkinson, Oliver Wendell
Holmes, 1930 (deta lhe). Harvard Law Art
Collection, Cambridge.
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I N T R O D U C A OA R E T O R I C A
O liv ie r R e b ou l
Traducao
IVONE CASTILHO BENEDETTI
M a rtin s F on tesS oo P au lo 2 00 4
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Indice analitico
Est a obra f oi pub li cada ori gi na lmen te emf ranc es c om 0 tltulo
INTRODUCTION A L A R H i:r OR IQ UE - T HE OR IE E T
PRATIQUE por Presses Universitaires de France.
Copyright © Presses Universuaires de France, 1991
Copyright © 1998, Livraria Martins Fontes Edi tora Ltdo. ,
Sao Paulo , para a preseme edicdo
l"ledi~o
. :: te -e t0 de1998
21~i~ao
-mmmro de2004
Prefacio .
Introduciio: Natureza efunciio da retorica .
Arte, discurso e persuasao......................................... XIV
Funcao persuasiva: argumentacao e orat6ria .. .. .. .. .. .. . XVII
A funcao hermeneutica XVIII
A funcao heuristica XIX
A funcao pedag6gica........ XXIo original
Vadim Vale inovi tch Nik it in
_Revis': sgraflcas
4naMaria O.M.Barbosa
Manse S imoe s Lea l
Producao graflea
Geraldo Alves
Pagina~aolFotolitos
Studio 3Desenvolvimento Editorial
Capitulo 1- Origens da retorica na Grecia .
Nascimento da retorica .
Origem judiciaria .
Corax .
Origem literaria: G6rgias ..
A retorica e os sofistas ..
Protagoras: 0homem medida de todas as coisas ..
Fundamento sofistico da ret6rica ..Isocrates ou Platiio? .
Isocrates, 0humanista .
Umapausa .
Texto 1- Platao, G6rgias, 455 d a 456 c, trad. M.
Croiset .
Retorica e cozinha .
De que "ciencia" se trata? ..
Dad os Internacionais de Ca~ na Pub~ (CIP)
(Camara B ra si le ir a do L iv re , SP, B ra si l)
Rebout, Olivier . 1925-
Introdu1fao a retorica I Olivier Reboul ~tradu1fao Ivone Cas ti lho
Benedet ti . - S ao P au lo : Mar ti ns Fon te s, 2 (X )4 . - ( Ju st ic a e d ir ei to ).
Titulo original: Introduction a la rhetorique
Bibliografia.
ISBN 85-336-2067-5
1 .Re t6 ri ca I .T i tu lo . I I. S ene.
04-6899 COO-808
indices para catatogo sistematico:
1. R et6rica 808
Todos os direi tos des ta edicao para 0 Brasil reservados J
Livraria Martins Fontes Edi tora Lil ia .
Rua Cons el he ir o Ramalho, 330 01325- 000 S ti o Pau lo SP Bras il
Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br
Capitulo II - Aristoteles, a retoriea e a dialetica ..
Uma nova definidio de retorica ..
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Texto 2 - Aristoteles, Retorica, livro I, cap. 2,
1355 a-b ..
Uma definicao mais modesta .
A argumentacao de Aristoteles ..
o que e dialetica? .
A dialetica e umjogo .
Tudo para ganhar .
Respeitar as regras do jogo ..
Utilidade do jogo dialetico .
Retorica e dialetica .
o que elas tern em comum .
Dialetica, parte argumentativa da retorica .
Moralidade da retorica ..
Conclusao: Aristoteles e nos ..
Capitulo III - 0 sistema ret6rico .
As quatro partes da retorica .Invendio .
Os tres generos do discurso ..
Os tres tipos de argumento: etos, patos, logos ..
Provas extrinsecas e provas intrinsecas .
Os lugares ("topoi") .
Observacoes sobre a invencao .
Disposiciio ("taxis") ..
Exordio ("prooimion", proemio) .
N - ("d' "")rra<;ao legesls .C fi - (" .. ,,)on irmacao pistis ..
Digressao ("parekbasis") e peroracao ("epilogos")
Por que a disposicao? ..
Elocucdo ("lexis 'J .
Lingua e estilo: uma arte funcional... .
Figuras ("schemata") e 0problema do desvio ..A -0 ("h .. 'J;a 'Ypocnsls .
Uma "hypocrisis" sem hipocrisia ..
o problema da memoria ..
o problema do escrito e do oral .
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Capitulo IV - Do seculo I ao XX .
Periodo latino .
Forma e fundo: pintura e cores verdadeiras .
Retorica e moral , .
Retorica e democracia .
Por que 0 declinio? .
Retorica e cristianismo .
Verdadeiras causas do declinio: retorica, verdade
e sinceridade .
Hoje: retoricas .
Uma retorica estilhacada ..
Retorica da imagem .
Retorica da propaganda e da publicidade .
Nova retorica contra nova retorica ..
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Capitulo V - Argumentacao .
As cinco caracteristicas da argumentaciio ..o auditorio pode ser "universal"? ..
Lingua natural e suas ambigiiidades ..
Premissas verossimeis: 0que e verossimil? .
Uma progressao que depende do orador .
Conclusoes sempre controversas .
o que e uma "boa" argumentaciio? .
Os sofistas e a argumentacao ..
Nao-parafrase e fechamento .
Argumen t ac i io p edagog ica , judiciaria, filoso fica .
Do pedagogico ao judiciario .
Uma controversia judiciaria: os expropriados e adesvalorizacao .
Argumentacao filosofica: onde esta 0 tribunal? ..
Capitulo VI - Figuras .
Figuras de palavras .
Figuras de ritmo .
Figuras de som: aliteracao, paronomasia, anta-
naclase ..
Um argumento ret6rico: a etimologia .
Figuras de sentido .
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Tropos simples: metonimias, sinedoques, meta-
foras..................................................................... 121
Tropos complexos: hipalage, enalage, oximoro,
hiperbole, etc. 123
Figuras de construfaO..... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 126
Figuras por subtracao: elipse, assindeto, aposio-
pese ou reticencia 126Figuras de repeticao: epanalepse, antitese 127
Figuras diversas: quiasmo, hiperbato, anacoluto,
gradacao 128
Figuras de pensamento 129
Alegoria: figura didatica? 130
Ironia, graca e humor 132
Figuras de enunciacao: apostrofe, prosopopeia,
pretericao, epanortose... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 133
Figuras de argumento: conglobacao, prolepse, apo-
dioxe, cleuasmo 135
Capitulo VIII - Como identificar os argumentos? .
Os elementos do acordo previa .
Fatos, verdades, presuncoes .
Os valores e 0preferivel .
Os lugares do preferivel .
Figuras e sofismas concernentes ao acordo previo
Primeiro tipo: argumentos quase logicos .
Contradicoes e incompatibilidade: 0ridiculo .
Identidade e regra de justica .
Argumentos quase matematicos: transitividade,
dilema, etc .
Definicao .
Segundo tipo: argumentos fundados na estrutura do
real .
Sucessao, causalidade, argumento pragmatico .
Finalidade: argumento de desperdicio, de dire-
~ao, de superacao .Coexistencia: argumento de autoridade, argu-
mento "ad hominem" .
Duplas hierarquias e argumento "a fortiori" .
Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a es-
trutura do real .
Exemplo, ilustracao, modelo .
Comparacao e argumento do sacrificio .
Analogia e metafora .
Quarto tipo: argumentos por dissociadio das nocoes
Absurdo ou "distinguo" .
o par aparencia-realidade .Outros pares .
Artificio e sinceridade .
Capitulo VII - Leitura ret6rica dos textos................... 139
Questiies preliminares............................................... 140
Orador: Quem? Quando? Contra 0que? Por que?
Como? 140
Auditorio e acordo previo 142
A questiio do genera: Pascal e La Fontaine 143
Texto 3 - Pascal, "Justica, forca" (Br. Min. N?
298, p. 470) 144
Texto 4 - La Fontaine, "0 lobo e 0 cordeiro",
Fabulas, I, 10....................................................... 144Situacao dos dois textos 146
A argumentacao dos dois textos. .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... 148
Observacoes sobre 0estilo dos dois textos 150
Os dois generos e seu imp acto ideologico 152
Questiies sobre 0 texto.... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 153
o que prova 0exemplo?... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 154
Entimema 155
o intertextual, 0 intratextual e 0motivo central... 157
Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson", 1853, Les
chdtiments, VII, 7 158
Capitulo IX - Exemplos de leitura ret6rica .
: 8 . ' :~:~~~l~~~~~:.~~..~.~.~:~:adeia de entimemas .
Figuras fortissimas .
A peticao de principio .
Texto 7 - Pierre Corneille, "Marques a", 1658 .
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_]
Texto 8 - Rene Descartes, Le discours de la m e-
thode, segunda parte .
Texto 9 - Uma entrevista com Francoise Dolto,
Liberation, 5 de fevereiro de 1987 .
Introducao .
Paragrafo (1) .
Paragrafo (2) .Paragrafo (3) .
Paragrafos (4) e (5) .
Observacoes criticas: 0motivo central .
Texto 10 - Alain, "Consideracoes", de 20 de
marco de 1910 .
Texto 11 - A educacao negativa, 1.-1. Rousseau,
Emilio, 2? livro .
Introducao: haven! motivo central? .
Oparadoxo .
A argumentacao .
As metaforas da educacao ..Conclusao: 0motivo central .
Texto 12 - Duas historias iidiches .
A guisa de conclusao .
Arte e naturalidade .
A ilusao do livro do mestre .
Da polemica ao dialogo .
Notas .BU' tfi ..
1 togra ia sumarta .i ndi ce r emis s iv o eglossario dos termos tecnicos .
Prefdcio205
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212212
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214Para comecar; a lg um as p al av ra s so br e e ste l iv ro , s ob re 0
q ue e le p re te nd e se r e sobre 0q ue d ele se p od e e sp era r.
E m ultidisc ip lin ar, c om o, a lia s, a p ro pria retoric a q ue,
d es de s eu s primordios, foi in strum ento co mum de juristas, filo-
sofo s, lite ra to s, preg ad ores, d e tod os a qu an to s co nc erne a co -
municacdo .E p lu ra lis ta , a ssim c om o ta mb em a retorica. E s ta , a s er vi ce
d as c au sa s e d as m a is d if er en te s t es es , e a lg o m ais q ue in str u-m en to n eu tr o, in dife re nte a o q ue ve ic ul a; u tiliza da e m to da s a s
co ntro versie s, o brig a c ad a u ma d as p arte s a le va r e m co nsid e-
r ac ii o a s c re n ca s e o s v al or es d o a dv er sd rio ; e ns in a 0s en ti do , s e
nd o d o re la tivo , pe lo m eno s d o plu ral, e p ostu la qu e a ve rd ad e
r es ul ta d o e nc on tr o d e d ois e nu nc ia do s, 0proferido e0ouvido.
Este livro pode ser lido de diversas m aneiras. D e cabo a
rabo, sem duvida. M as tam bem com o obra de referencia, a co-
m ec ar p elo in dic e. O u e ntdo lim ita ndo -se a d ete rm ina do ca pi-
tu lo , tendo-se em m ente que de qualquer m odo ele depende urn
p ou co d os c ap it ul os p re ce de nte s.
E teorico ep rd tic o a o m esm o te mp o. P or u rn l ad o p re te nd e
expor 0 qu e e r eto ric a, e xtra ir su a u nid ad e p ro fu nd a a tr av es
d as tr an sfi gu ra co es d e s ua h is to ria , d is cu tir s ua s i mp li ca ci ie s e
d is ti ng ui r s e1 t1 8i mi te s. P o r o utr o l ad o, v is a a a pl ic ar a r et or ic a
a in te rp l!~ ta r;a o d os t ex to s m a is d iv er s o s, o fe re ce nd o a ss im u rn
in stru m~ h erm en eu tico a os e stu da nte s e a os fu tu ro s p es q ui-
sadores.
F in al me nte , te rn vd ria s p re te nso es : se r u rn m an ua l a ca de -
mico e o utr as c ois as m a is . E sf or ca -s e, pois, p or s er o bje tiv o,
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XII INTRODU9AO A RET6RICA IntroductioNatureza e funcao da retorica
por dar informaciies independentes do seu autor e de suas pre-
ferencias. Mas um manual niio mereceria 0 nome de academi-
co, se seu autor niio se afirmasse tambem como pesquisador e
pensador; portanto, como alguem que ndo se contenta apenas
em expor, mas que se expiie. Eo leitor que julgue.Um livro no plural, portanto.
N.B. - A primeira visld, a retorica desencoraja pelo voca-
buldrio. Quantos nomes de argumentos e figuras! Sera real-
mente preciso falar em lugares em vez de provas, em hiperbole
em vez de exagero, em acao em vez de dicciio? Na verdade,
cada um desses term os tem um sentido um pouco diferente da-
quele que pretende traduzi-lo; e , portanto, insubstituivel. As-
sim como a medicina, apsicologia e a f ilosofia, a retorica tem
necessidade de um vocabulario tecnico.
Portanto, cumpre saber que epanortose niio e doenca depele, que hipotipose niio e um supositorio de bronze da antiga
medicina, e que tapinose niio e uma retorica de antas ... E ver-
dade que poderiam ser usados termos mais correntes, dizer
correciio em vez de epanortose, quadro em vez de hipotipose,
depreciaciio em vez de tapinose. Mas 0 sentido niio seria mais
o mesmo. Hipotipose e um quadro retorico, que desempenha
papel ao mesmo tempo poetico e argumentativo; epanortose euma correcdo retorica, que produz efeito de sinceridade (t'ou
melhor", "para dizer tudo ".. .); a tapinose e uma depreciaciio
retorica.
Apesar de inegdvel, a dificuldade lexica pode perfeitamen-
teser superada. E nosso indice-glossario deve possibili tar isso.
o que se espera de uma introducao a retorica e que logo de
inicio se defina 0 termo. Infelizmente, nao e facil, pois hoje em
dia 0 termo "retorica" assumiu sentidos bern diversos e ate di-
vergentes.
Em primeiro lugar, 0 sentido corrente nao poderia ser mais
pejorativo. Urn professor de literatura, depois de brilhante alo-cucao, ouve a seguinte felicitacao de urn colega: "Admirei sua
retorica", frase que ninguem tomou por cumprimento, nem mes-
mo 0 interessado. Para 0 senso comum, retorica e sinonimo de
coisa empolada, artificial, enfatica, declamatoria, falsa.
Entretanto, no comeco dos anos 60 os academicos redes-
cobriram a retorica e devolveram ao vocabulo sua nobreza, ao
mesmo tempo prestigiosa e perigo sa, mas nem por isso concor-
dando quanta ao seu sentido. Mencionemos aqui as duas posi-
coes extremas.
Uma delas, de Charles Perelman e L. Olbrechts- Tyteca, ve
a retorica como arte de argumentar, e busca seus exemplos mor-
mente entre os oradores religiosos, juridicos, politicos e ate
filosoficos. A outra, de Morier, G. Genette, J. Cohen e do "Gru-
po MU", considera a retorica como estudo do estilo, e mais
particularmente das figuras. Para os primeiros, a retorica visa
a convencer; para os ultimos, constitui aquilo que toma litera-
rio urn texto; e e dificil perceber 0que as duas posicoes tern em
comum'' .....
No entanto, e esse elemento comum que bern poderia ser 0
mais importante, ou seja, a articulacao dos argumentos e do es-
tilo numa mesma funcao. Ao dizermos isso, referimo-nos a
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XIV INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XV
retorica classica, que comeca com Aristoteles e se prolonga ate
o seculo XIX. E a ela que recorreremos para definir a retorica.
E verdade que se pode criticar a tradicao, mas ela pelo menos
tern a vantagem de nos oferecer elementos estaveis, indepen-
dentes das preferencias individuais e dos modismos. Pode-se
criticar a tradicao, e nao deixaremos de faze-lo quando for 0
caso, mas pelo menos saberemos 0 que estamos criticando e 0
que pretendemos suplantar.
E verdade que a retorica antiga da a palavra discurso urn
sentido claramente mais restrito, mas nos mostraremos que se
pode perfeitamente amp liar 0objeto da retorica sem a trair.
Questao "de ordem": este livro e retorico?
Arte, discurso e persuasiio
Portanto , a retorica diz respeito ao discurso persuas ivo, ou
ao que urn discurso tern de persuasivo. 0 que e pois persuadir?E levar alguem a crer em algurna coisa. Alguns distin-
guem rigorosamente "persuadir" de "convencer", consistindo
este ultimo nao em fazer crer, mas em fazer compreender. A
nosso ver essa distincao repousa sobre uma filosofia - ate
mesmo uma ideologia - excessivamente dualista, visto que
opoe no homem 0 ser de crenca e sentimento ao ser de inteli-
gencia e razao, e postula ademais que 0 segundo pode afirmar-
se sem 0 primeiro, ou mesmo contra 0 primeiro. Ate segunda
ordem, renunciaremos a essa distincao entre convencer e per-suadir.
Por outro lado, manteremos uma distincao pertinente, por-
quanta inerente ao proprio termo "persuadir":
C Eis, pois, a definicao que propomos: retorica e a arte de
persuadir pelo discurso.
Por discurso entendemos toda producao verbal, escrita ou
oral , cons tituida por urna frase ou por uma sequencia de frases,
que tenha comeco e fim e apresente certa unidade de sentido.
De fato, urn discurso incoerente, feito por urn bebado ou urn
louco, sao varies discursos tornados por urn so.
Conforme nossa definicao, a retorica nao e aplicavel a to-
dos os discursos, mas somente aqueles que visam a persuadir , 0
que de qualquer modo representa urn bela leque de possibilida-
des! Enumeremos as pr incipais: pleito advocaticio, alocucao
polit ic a, sermao, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fabu-
la, peticao, ensaio, t ratado de f ilosofia, de teologia ou de cien-
cias humanas . Acrescente-se a isso 0drama e 0romance, desde
que "de tese", e 0poema satirico ou laudatorio.
o que sobra entao de nao retorico? Os discursos (no senti-
do tecnico definido acima) que nao visam a persuadir: poema
lirico, tragedia, melodrama, comedia, romance, contos popula-
res, piadas. Acrescentemos os discursos de carater puramente
cientifico ou tecnico: modo de usar, em oposicao a anuncio
publicitario; veredicto, em oposicao a pleito advocaticio; obra
cientifica, em oposicao a vulgarizacao; ordem, em oposicao a
slogan: it proibido Jumar nao e retorico, ao passo que Eproibi-
doJumar, nem que seja "Gallia?", e retorico.
1)Pedro persuadiu-me de que sua causa era justa.
2) Pedro persuadiu-me a defender sua causa.
* Cigarro mentolado, geralmente preferido pelas senhoras. (N. do T.)
Distincao capital para compreender a retorica, pois em (1)
Pedro conseguiu levar-me a acreditar em alguma coisa, en-
quanto em (2) ele conseguiu levar-me afazer algurna coisa, nao
se sabendo se acredito nela ou nao, A nosso ver, a persuasaoretorica consiste em levar a crer (1), sem redundar necessaria-
mente no levar a fazer (2). Se, ao contrario, ela leva a fazer sem
levar a crer, nao e retorica.
Pode-se dizer, por exemplo, que alguem persuadiu alguem
a fazer alguma coisa por ameaca ou promessa, e que nisso resi-
dia toda a eficacia de sua argumentacao. Resposta: e verdade
que se ~ode falar de eficacia, mas nao de argumentacao. Esta
visa se'tiil>re a · levar a crer. Por certo, atraves de promessa ou
ameaca, pode-se persuadir alguem a cometer urn erro, mas
esse alguem estara persuadido de que 0erro nao e erro?
No entanto, Pascal escreve:
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XVI INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XVII
Ao advogado pago adiantadamente parecera bern mais jus-
ta a causa que defende! tPensees, p. 365)
mas em ret6rica ele e inevitavell) const ituem uma bela i lustra-
~ao; exatamente onde seus amigos jansenistas esperavam uma
argumentacao tecnica, que nao deixaria de ser pesada, Pascal
retoma as mesmas ideias na forma de panfleto ironico, eficaz
porque claro e j ocoso, e que ainda tern aver conosco. A arte de
persuadir produziu muitas obras-primas.Mas nao sera e1a tambem a arte de enganar, ou pelo menos
de manipular? Voltaremos a esse problema no Capitulo II. En-
quanta isso, para compreender melhor a ret6rica, interrogue-
mo-nos sobre suas funcoes: em outras palavras, sobre os servi-
cos que ela e capaz de prestar aos que a empregam, e talvez
tambem aos demais.
Na realidade, Pascal nada tern contra os advogados em
particular; e do homem que ele nao gosta, do genero hurnano
corrompido pela queda, cuja propensao para acreditar "no que
sabe ser falso" mostra ate que ponto ele e miseravel , Entretan-
to, se nos ativermos apenas aos fatos, poderemos admitir que 0
erro nao e regra, e que existe urn tipo de persuasao que nao se
obtem nem pelo dinheiro nem pela ameaca: a que conceme aret6rica.
Esta, diziamos, e uma arte. Este termo, traducao do grego
f ! : c h n e , e ambiguo, e ate duplamente ambiguo. Em primeiro lu-
gar, porque designa tanto urna habilidade espontanea quanta
uma competencia adquir ida atraves do ensino. Depois porque
designa ora urna simples tecnica, ora, ao contrario, 0que na cria-
~ao ultrapassa a tecnica e pertence somente ao "genic" do
criador. Em qual ou em quais desses sentidos se esta pensando
quando se diz que a ret6rica e uma arte? Em todos.
Para comecar, existe urna ret6rica espontanea, urna apti-
dao para persuadir pel a palavra que talvez nao seja inata - nao
entremos nessa discussao agora -, mas que tampouco e devida
a uma formacao especifica , e tambem existe urna ret6rica ensi-
nada com 0 nome, por exemplo, de "tecnicas de expressao e
comunicacao", que serve para formar vendedores ou poli ticos,
para ensinar-Ihes aquilo que outros vendedores, outros poli ti-
cos parecemja saber naturalmente. Quais sao os mais eficazes,
quais deles conseguem "se sair melhor"? Sem duvida os ulti-
mos. Mas tanto entre estes quanto entre os primeiros, encontra-
mos os mesmos procedimentos, intelectuais e afet ivos, proce-
dimentos que fazem da ret6rica urna tecnica.
Mas sera que se trata de simples tecnica? Nao, e muito
mais. 0 verdadeiro orador e urn artista no sentido de descobrir
argurnentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras de
que ninguem teria ideia e que se mostram ajustadas; artista
cujos desempenhos nao sao programaveis e que s6 se fazem
sentir posteriormente. Les provinciales de Pascal (outra vez,
Fund io p e rs ua s iv a: a rg umen ta c ii o e o ra to ri o
A primeira funcao da ret6rica decorre de sua definicao:arte de persuadir. E , alias, a mais evidente e a mais antiga; e 0
problema maior deste livro sera saber por que meios urn dis-
curso e persuasivo.
Aqui nos limitaremos a urna distincao realmente funda-
mental. Esses meios sao de ordem racional alguns, de ordem
afetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outros
mais afetivos, pois em ret6rica razao e sentimentos sao insepa-
raveis,
Os meios de competencia da razao sao os argumentos. E
veremos que estes sao de dois tipos: os que se integram no ra-
ciocinio silogistico (entimemas) e os que se fundamentam noexemplo. Ora, como ja notava Arist6teles , 0 exemplo e mais
afetivo que 0 silogismo; 0primeiro dir ige-se de preferencia ao
grande publico, enquanto 0 segundo visa a urn audit6r io espe-
cializado, como urn tribunal.
Os meios que dizem respeito a afetividade sao, por urn
l~ao, 0 etos, 0 carater que 0 orador deve assumir para chamar a
aten. ;ao e angariar a confianca do audit6rio, e por outro lado 0
patos, as tendencias, os desejos, as emocoes do audit6rio das
quais 0 orador podera tirar partido. De modo urn pouco dife-
rente, Cicero distingue doeere, deleetare e movere:
7/11/2019 Introdução à retórica. Olivier Reboul. São Paulo_ Martins Fontes, 2004
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XVIII INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XIX
demonstrativo argurnentativo oratorio
orador - aquele que fala ou escreve para convencer - nunca
esta sozinho, exprime-se sempre em concordancia com ou-
tros oradores ou em oposicao a eles, sempre em funcao de
outros discursos.
Ora, para ser persuasivo, 0orador deve antes compreender
os que the fazem face, captar a forca da retorica deles, berncomo seus pontos fracos. Esse trabalho de interpretacao e fei to
por todos de modo mais ou menos espontaneo, Ate a crianci-
nha mostra ser urn excelente hermeneuta, por exemplo quando
percebe que a ameaca dos pais e aterradora demais para ser
executada, ou quando interpreta uma frase do adulto no sentido
que the convem I.
Para ser born orador, nao basta saber falar; e preciso saber
tambem a quem se esta falando, compreender 0 discurso do
outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas cila-
das, sopesar a forca de seus argumentos e sobretudo captar 0
nao-dito. Ai vai urn exemplo dessa hermeneutica espontanea.Durante 0 debate de televisao que antecedeu as eleicoes presi-
denciais de 1981, Giscard d'Estaing disse a Mitterrand: "0 se-
nhor conhece a cotacao do marco hoje?" Mitterrand, que prova-
velmente nao sabia, adivinha que Giscard quer impor-se ao
publico como urn economista serio, urn especialista, urn mestre,
e lhe responde taco a taco: "Senhor Giscard, nao sou seu aluno."
E nao se falara mais de cotacao do marco durante todo 0debate.
Essa e a funcao hermeneutic a da retorica, s ignif icando
"hermeneutic a" a arte de interpretar textos. Na universidade
atual, essa funcao e fundamental, para nao dizer unica, Nao se
ens ina mais retorica como arte de produzir discursos, mas comoarte de interpreta-los, Alias, e 0 que faremos aqui. Mas ai a
retorica recebe outra dimensao; nao e mais urna arte que visa a
produzir, mas uma teoria que visa a compreender.
Docere (instruir, ensinar) e 0 lado argumentativo do dis-
curso.
Delectare (agradar) e seu lado agradavel, humoristico, etc.Movere (comover) e aquilo com que ele abala, impressiona
o auditorio,
Em resurno, 0persuasivo do discurso comporta dois as-
pectos: urn a que chamaremos de "argurnentativo"; e outro, de
"oratorio". Dois aspectos nem sempre faceis de distinguir.
Os gestos do orador, 0 tom e as inflexoes de sua voz sao
puramente oratorios. Todavia, 0que dizer das figuras de est ilo ,
aquelas famosas figuras a que alguns reduzem a retorica? A
metafora, a hiperbole, a antitese sao oratorias por contribuirem
para agradar ou comover, mas sao tambem argumentativas no
sentido de exprimirem urn argumento condensando-o, toman-
do-o mais contundente. Assim e a celebre metafora de Marx:
"A religiao e 0opio do povo."Se for introduzido urn ultimo termo, a demonstracao, meio
de convencimento puramente racional, sem nada de afetivo e
que escapa portanto ao dominio da retorica, chega-se ao se-
guinte esquema:
retorico
racional
A funcdo hermeneutica
Entretanto, por mais primordial, a funcao persuasiva nao
e unica. Se a retorica e a arte de persuadir pelo discurso, e pre-
ciso ter em mente que 0discurso nao e e nunca foi urn aconte-
cimento isolado. Ao contrario, opoe-se a outros discursos que
o precederam ou que the sucederao, que podem mesmo estar
implicitos, como 0 protesto silencioso das massas as quais se
dirige 0ditador, mas que contribuem para dar sentido e a1can-
ce retorico ao discurso. A lei fundamental da retorica e que 0
A {unfaO heuristica. , ~ . , .Arte de persuadir pressupoe que nao estamos sozinhos; so
pode ser exercida quando se interpreta 0 discurso de outrem.
Pois bern, sera mesmo preciso persuadir? Pode-se achar que a
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xx INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XXI
persuasao nao passa de urn m odo - 0 m ais in sid io so d e to do s
por certo - de tom ar 0p od er , d e d om in ar 0 o u tr o p el o d is cu rs o.
Po dem os a cha r isso, e certo, desde que nos abstenham os de
p er su ad ir a lg ue m d is so !
N a rea lida de, q uan do u tiliza mo s a reto rica n ao 0 fazemos
so p ara o bte r c erto p od er; e ta mb em p ara s ab er, p ara e nc on tra r
a lg urn a c ois a. E es sa e a terce ira fu nca o d a reto rica , qu e d eno -
m in are mo s " heu ris tic a" , d o v erb o g re go e u ro , e u re ka, q ue sig -
n ific a e nc on tra r. E m re su mo , u rn a fu nc ao d e d es co be rta .
Claro que ela nao e o bv ia , H oje em d ia, qu an do fa lam os
em d esco berta , pensa mo s em cien cia , e a cien cia n ao q uer nem
saber de reto rica . Q uem sabe se por parte dos cientistas isso
na o e urn d eneg aca o, n ao 6 a recu sa d e en xerg ar sua propria
retorica, M a s p ou co imp or ta : 0q ue se perg un ta e 0q ue a r et or i-
c a p od e te r p ara d es co brir . ..
Convenham os, porem , que vivem os nurn m undo que nao
c on di z i nt ei ram en te c om 0 c on he cim e nt o c ie nt if ic o, u rn m u nd o
e m q ue a v erd ad e ra ra me nte e e vi de nt e, e a p re vis ao s eg ur a r ar a-
m en te p os si ve l. N o c am po e co no m ic o e p ol it ic o, e p re ci so t om a r
d eciso es sem sa ber co m to da a certeza se ela s sa o a s m elh ores,
v isto q ue 0 " com toda a certeza" so vern depois do feito ! N os
de bat es j u ri d ic o s, e p re cis o so brep uja r, sa be nd o- se q ue m uita s
v ezes n ao h a v ered icto o bjetiv o, n o sen tido em q ue e o bjetiva a
m ed id a d e u rn g alv ano metro . N a esfera da ed ucaca o, fa zem -se
pro gram as, refo rm as, sem n un ca se ter certeza de q ue a s co isas
s era o m elh ore s q ue a nte s e d e q ue o s a lu no s e nv olv id os re alm en -
t e t ir ar ao p ro ve it o d el as , q ue r d iz er , v in te a no s d ep oi s . ..E sse mundo de que estam os falando e 0 d a v ida ; q ua se
n ao c om po rta c erte za s c ie ntific as , d ess as q ue p os sib ilita m p re -
viso es seg ura s e deciso es irrepreensiv eis. M as tam pou co esta
en tregue ao acaso , ao aleato ric , ao caos. N ao se pode prever
co m tota l certeza , m as e possivel prever com m ais ou m enos
certeza , co m a lg um a prob abilid ade. N ao se po de d izer: " e v er-
d ad eiro " o u "e fa lso ", m as po de-se dizer: " e m ais ou m en os v e-
rossimil" .
C om o po is a ch ar a ve ro s sim il ? R eco rdem os a qu i a le i fun-
d amen ta l d a r et or ic a: 0 o rad or nu nca esta so zin ho . 0 a dv og ado
m ais ha bil tern d ia nte d e si o utro s a dv og ad os q ue fa zem 0mes-
m o trabalho em sentido inverso . D o m esm o m odo, 0 politico
c on fr on ta o u tr os p o li ti co s; 0p ed ag og o, o utr os p ed ag og os . C ad a
urn deles - essa e a regra do jogo - defende sua causa sendo tao
p ers ua siv o q ua nto po ss iv el, e c on trib ui a ss im p ara u rn a d ec is ao
q ue n ao th e pe rten ce , q ue in cu rn be a u rn te rc eiro : 0juiz.
N urn m un do s em e vid en cia , s em d em on stra ca o, s em pre vi-
sao certa , em n osso m und o h urna no , 0 papel d a reto rica, a o d e-
fen de r e sta o u a qu ela c au sa , e esclarecer a quele q ue d ev e d ar a
pa la vra fin al. C on tribu i - o nde n ao h a decisa o previa men te es-
crita - pa ra inv en ta r u ma so lu ca o. E fa z isso in stau ra nd o u rn d e-
b ate c on tra dito rio , s o p os siv el g ra ca s a se us " pro ced im en to s" ,
s em o s q ua is lo go d es ca mb aria pa ra 0t umu lt o e a v io le nc ia ,
A re to ric a p os su i r ea lm en te u rn a f un ca o d e d es co be rt a.
A funcdo pedagogica
A gora, poderem os ser censurados por term os am pliado
abusivamente 0 c am po d a re to ric a. D e fa to , s e n os re po rta rm os
aos program as esco lares da Idade M edia e da epoca classica ,
verificarem os que a retorica so adm ite a prim e ira das nossas
tre s fu nco es , fic an do a fu nc ao h erm en eu tica re se rv ad a it gra-
m a ti ca , e a f un ca o h eu ri st ic a it dialetica,
M as sera legitim o im por it cultu ra a s d iv iso es d e u rn pro -
g ra ma e sc ola r (p or ce rto e xig id as p elo s im pera tiv os d a pe da go -
g ia ), pa ra es ta nc a- la em d is cip lin as se m in ter- re la co es , em " es-pecialidades"? E m ais ou m enos com o afirm ar que a fisica nao
tern n en hu rn a rela ca o c om a m ate ma tic a, a le ga nd o q ue ela s te rn
p r of e sso re s d i fe r en t es .
M o stra rem os n o p ro xim o c apitu lo q ue , n a p ro pria e sc ola ,
gram atica, re to rica e diale tica nao passavam de partes de urn
m rsm o todo que se esclerosaram quando se separaram . A arte
d 6'ih sc urs o p ers ua siv o im plica a a rte d e c om pre en der e p os si-
b il it a a a rt e d e i nv en ta r.
Q ual e , pois, esse "m esm o todo" de que fazia parte a reto-
rica? Em term os modemos, cultura geral. E aqui tocam os na
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XXII INTRODUC;AO A RETORICA Capitulo I
Origens da retorica na Greciaultima funcao da retorica, que pode ser chamada de "pedago-
gica".No fim do seculo XIX, a retorica foi abolida do ensino
frances, e 0proprio termo foi riscado dos programas. Todavia,
como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavranao se suprimiu a coisa. A retorica permaneceu, so que desart i-
culada, privada de sua unidade intema e de sua coerencia, Em
todo caso os professores, quase sempre sem saberem, fazem
retorica'.Ensinar a compor segundo urn plano, a encadear os argu-
mentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encon-
trar as construcoes apropriadas e as figuras exatas, a falar dis-
tintamente e com vivacidade, nao serao retorica, no sentido
mais classico do termo? Demonstrar iamos com faci lidade que
os criterios segundo os quais urn professor de lingua, ou mes-
mo de filosofia, avalia urna redacao - respeito ao assunto, aoplano, it argumentacao, ao estilo, it personalidade -, que esses
criter ios sao encontrados, com outros nomes, na retorica chis-
sica (cf. infra, pp. 55-56).Deve-se ver nisso uma sobrevivencia lamentavel? Pode-se
achar, ao contrario, que esses principios sao formadores, que
deixar de respeita-los - errar na formulacao da questao, escre-
ver de modo incorreto, monotono, extremado, confundir tese
com argumento, expor de maneira desconexa, esconder-se atras
de cliches - e dar prova de incultura. Em outras palavras, eapartar-se dos outros e de si mesmo. E verdade que existem
outras culturas alem da escolar, mas nao existe cultura sem for-
macae retorica. E aprender a arte de bern dizer e ja e tambem
aprender a ser,
A melhor introducao it retorica e sua historia.Vamos, portanto, empreende-la, mas com duas observa-
~oes preliminares.
A prime ira e que a retorica e anterior it sua historia, e mes-
mo a qualquer historia, pois e inconcebivel que os homens nao
tenham utilizado a linguagem para persuadir. Pode-se, alias,encontrar retorica entre hindus, chineses, egipcios, sem falar
dos hebreus. Apesar disso, em certo sentido, pode-se dizer que
a retorica e uma invencdo grega, tanto quanto a geometria, a
tragedia, a filosofia. Em certo sentido e mesmo em dois senti-
dos. Para comecar, os gregos inventaram a "tecnica retorica",
como ensinamento distinto, independente dos conteudos, que
possibi litava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois ,
inventaram a teoria da retorica, nao mais ensinada como urna
habilidade util, mas como uma reflexao com vistas it compreen-
sao, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teo-
ria da arte, da literatura, da religiao.
Segunda observacao: escrever uma historia, como por
exemplo da rmisica, da pintura ou da filosofia, e repercorreruma evolucao, feita de transformacoes, perdas e criacoes. Ora,
paradoxalmente, entre os seculos V e IV antes da nossa era, os
gregos elaboraram A retorica, que, em seguida, "durante dois
milenios e meio, de Gorgias a Napoleao III", pode-se dizer que
n~ se mexeu mais'. As diversas epocas enriqueceram algurna
por~o do sistema, mas sem mudar 0 sis tema. Ainda hoje,
quando se fala em "retorica", seja a de urn filme ou a do in-
consciente, a referencia e sempre feita it retorica dos gregos. A
historia da retorica termina quando corneca.
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2 INTRODUC;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 3
Nascimento da ret6rica a verdade, nao haveria mais ambito judiciario, e os tribunais se
reduziriam a camaras de registro. Mas 0problema, tanto para
nos quanto para os gregos, e que as mas causas precisam dos
melhores advogados, pois, quanta pior a causa, maior 0recurso
a retorica. E constrangedor. Ora, em vez de se constrangerem,os primeiros retores se gabavam de ganhar as causas menos
defensaveis, de "transformar 0 argumento mais fraco no mais
forte", slogan que domina toda essa epoca.
Tomemos duas datas como referencia: 480 a.C., batalha
de Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram defini ti -
vamente sobre a invasao persa, quando comecou 0 grande pe-riodo da Grecia classica; 399, ainda antes da nossa era: morte
de Socrates.
Origem judiciariaCorax
A retorica nao nasceu em Atenas, mas na Sicilia grega por
volta de 465, apos a expulsao dos tiranos. E sua origem nao el iteraria, mas judiciar ia . Os cidadaos despojados pelos t iranos
rec1amaram seus bens, e a guerra civil seguiram-se imimeros
conflitos judiciaries', Numa epoca em que nao existiam advo-gados, era preciso dar aos litigantes urn meio de defender sua
causa. Certo Corax, discipulo do filosofo Empedocles, e 0 seu
proprio discipulo, Tisias, publicaram entao uma "arte oratoria"
(tekhne rhetorikei, coletanea de preceitos praticos que conti-
nha exemplos para usa das pessoas que recorressem a justica,Ademais, Corax da a primeira definicao da retorica: ela e "cria-
dora de persuasao'".
Como Atenas mantinha estreitos lacos com a Sicilia, e ate
processos, imediatamente adotou a retorica,
Retorica judiciaria, portanto, sem alcance literario ou filo-
sofico, mas que ia ao encontro de uma enorme necessidade.Como ndo exist iam advogados, os l it igantes recorr iam a logo-
grafos, especie de escrivaes publicos, que redigiam as queixas
que eles so tinham de ler diante do tribunal. Os retores, com
seu senso agudo de publici dade , ofereceram aos l itigantes e aos
logografos urn instrumento de persuasao que afirmavam ser
invencivel, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coi-
sa. Sua retorica nao argumenta a partir do verdadeiro, mas a
partir do verossimil (eikos).
Observemos que isso e inevitavel, Tanto entre nos quanta
entre os gregos. De fato, se no ambito judiciar io se conhecesse
Corax e considerado 0 inventor do argumento que leva seu
nome, 0 corax, e que deve ajudar os defensores das piores cau-
sas. Consiste em dizer que uma coisa e inverossimil por ser
verossimil demais. Por exemplo, se 0 reu for fraco, dira que
nao e verossimil ser ele 0 agressor. Mas, se for forte, se todas
as evidencias the forem contrarias, sustentara que, justamente,
seria tao verossimil julgarem-no culpado que nao e verossimilque ele 0 seja.
Antifonte (480-411), 0 melhor representante da retorica
judiciaria de Atenas, cita 0 seguinte exemplo de corax:
Se 0 odio que eu nutria pela vitima tomar verossimeis as
suspeitas atuais, nao sera ainda [mais] verossimil que, prevendo
essas suspeitas antes do crime, eu me tenha abstido de comete-
lo? (in Perelman- Tyteka, p. 608, cf.Aristoteles, Retorica, II, 24,
1402 a)
E 0 plei teante a seguir insinua que os verdadeiros criminosos
aproveitaram-se da verossimilhanca para cometer impunemen-
te aquele ato.
o mais macante e que 0 corax pode ser voltado contra seu
autor, afirmando que ele cometeu 0 crime por achar que pare-
ceft l.suspei to demais para que dele suspei tassem, e que chegou
a acurnular proposi tadamente acusacoes contra si mesmo, para
depois as refutar com facilidade.
- Argurnento simples: todas as evidencias estao contra ele.
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4 INTRODUr;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 5
- Corax 1:exatamente, ele sabia que seria 0primeiro sus-
peito, logo nao seria verossimil que cometesse 0crime.
- Corax 2: mas justamente por isso ele poderia comete-lo,
sabendo que nao suspeitariam dele.
De qualquer modo, os primeiros retores inventaram a dis-posicao do discurso judiciario, que Antifonte divide em cinco
partes; tambem elaboraram os lugares (topoi), argurnentos que
bastava decorar e chamar it baila em determinado momenta da
disputa juridica. Assim, no exordio, 0 orador comeca dizendo
que nao e orador, elogia 0talento do adversario, etc.
Conservou-se urn magnifico exemplo dessa eloqiiencia
epidictica em Elogio de Helena. Sabemos que para os gregos
Helena era 0 prototipo da mulher fatal. Esposa de Menelau,
deixou-se raptar por Paris, 0 troiano, e os gregos, para resgata-
la, lancaram-se numa guerra que durou dez anos. Em seu dis-curso Gorgias comeca louvando 0 nascimento de Helena de-pois sua beleza: '
Em mais de urn homem, ela despertou mais de urn desejo
amoroso; so por ela, por seu corpo, conseguiu reunir incontaveis
corpos, uma mult idao de guerreiros . .. (Les presocratiques,
p.1031)
Origem literaria: Gorgias
Com Gorgias surge uma nova fonte da retorica: estetica e
propriamente literaria. Nascido por volta de 485, Gorgias viveu
cento e nove anos, sobrevivendo, pois, a Socrates. Tambem si-
ciliano e discipulo de Empedocles, em 427 foi para Atenas
numa embaixada. Diz-se que ali sua eloqiiencia encantou os
atenienses a tal ponto que ele teve de prometer-lhes que volta-
ria. Essa historia e significativa.
Isso porque, ate entao, os gregos identificavam "literatu-
ra" com poesia (epica, tragica, etc.). A prosa, puramente fun-
cional, restringia-se a transcrever a linguagem oral comum.
Gorgias, urn dos fundadores do discurso epidictico, ou seja,
elogio publico, cria para esse fim uma prosa eloqiiente, multi-
plicando as figuras, que a tornam "uma composicao tao erudi-
ta, tao ri tmada e, por assim dizer, tao bela quanto a poesia"(Navarre, p. 86). Suas figuras sao, por urn lado, de palavras:
assonancias, rimas, paronomasias, ritmo da frase; por outro,
figuras de sentido e pensamento: perifrases, metaforas, antite-
ses. Exemplo de metafora: "Tumulos vivos", para os abutres.
Exemplo de antitese, 0 final do Elogio funebre aos herois ate-
nienses, cuja traducao e urn palido reflexo:
Mas entao como perdoar-Ihe 0 ter-se deixado raptar? 0
orador, atraves de urna enumeracao completa, inventaria todas
as possiveis causas desse rapto: ou ele se deveu ao decreto dos
deuses e do destino; ou ela foi arrebatada it forca; ou foi per-
suadida por discursos; ou foi vencida pelo desejo. Ora, em
nenhum dos casos Helena estava livre; em todos, foi subjugada
por urna forca superior it sua; portanto, nao e culpada. Gorgias
se detem no terceiro caso, a forca do discurso, e sua defesa deHelena na verdade e urna defesa da retorica:
o discurso e urn tirano poderosissimo; esse e1emento ma-terial de pequenez extrema e tota1mente invisive1alcam it pleni-
tude as obras divinas: porque a pa1avra pode por t im ao medo,
dissipar a tristeza, estimular a alegria, aurnentar a piedade. (Ibid.,
p.1033)
Assim, apesar de terem desaparecido, 0 ardor deles com
eles nao morreu, porem, imorta1, vive em corpos nao imortais,
ainda que e1esnao vivam mais. (Lespresocratiques, p. 1030)
Observemos que sua retorica e bastante sofistica, visto quese baseia em uma peticao deprincipio. De fato, asunicas cau-
sas possiveis por ele atribuidas ao ato de Helena sao precisa-
mente as que a inocentam; nao considera uma ultima possibili-
dade, a de que Helena tenha partido por livre e espontanea von-
ta~ .. Todavia, esse seu principio, de que 0 ato involuntarionao e culpavel, e bern novo para a epoca.
Alias, e no sentido mais tecnico que Gorgias merece a de-nominacao de sofista. Como todos os outros - Pitagoras, Pro-
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6 INTRODU9AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 7
dico, Trasimaco, Hipias, Critias, etc. -, ele foi professor; davade cidade em cidade licoes de eloquencia e de filosofia, co-
brando a cada urna delas 0 fabuloso salario de cern minas. Di-
gamos que por urn dia de trabalho ele recebia 0 salario diario
de dez mil operarios! 0 mesmo acontecera com Protagoras. Na
realidade, esse ensino preenchia urna necessidade, pois ate en-
tao os gregos so recebiam urna formacao elementar, sem nad~de parecido com urn ensino superior ou mesmo secundario. E
aos retores que se deve essa inovacao: ensino intelectual apro-
fundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro
objetivo senao a cultura geral.E verdade que logo Gorgias foi criticado pela enfase de
sua prosa, que carecia demais de simplicidade; 0verbo gorgia-
z-o ficou como sinonimo de grandiloqiiencia. Mas sua ideia deprosa "tao bela quanto a poesia" impos-se a todos os escritores
gregos, a comecar por Demostenes, Tucidides, Platao... G6r-
gias pos a ret6rica a servico dobelo.
\'
Ora, se admitirmos como ele que 0 ser nao existe, ou que nao
e cognoscivel nem comunicavel, nao estaremos reconhecen-
do ipso facto a onipotencia da palavra, palavra que nao esta
mais submetida a nenhum criterio extemo e da qual nem mes-
mo se pode dizer que e falsa? Nessas alturas estamos em ple-
na sofistica.
Protdgoras: 0 homem medida de todas as coisas
o elo entre a sofistica e a retorica so aparece plenamenteem Protagoras'. Originario da Abdera, na Tracia, Protagoras
(c. 486-410) tambem era urn mestre itinerante, que ensinava ao
mesmo tempo eloqiiencia e filosofia e tambem ganhava quan-
tias fabulosas. No entanto, foi mais engajado que G6rgias. Che-
gando a Atenas, fez a seguinte profissao de fe agnostica:
Quanto aos deuses, nao es tou em condicoes de saber se
existem ou se nao existem, nem mesmo 0que sao. (Ibid., p.I 000)
A retorica e os sofistas
Quando as pessoas nao tern memoria do passado, visao do
presente nem adivinhacao do futuro, 0 discurso enganoso tern
todas as facilidades, (Ibid., p. 1033)
o que logo the valeu urna condenacao it morte, da qual, menos
heroico que Socrates, livrou-se fugindo.
Com isso, foi urn autor enciclopedico. Poi decerto 0 pri-
meiro a interessar-se pelo genero dos substantivos, pelos tem-
pos dos verbos, bern como pela psicologia das personagens de
Homero; em surna, pelo que depois sera chamado de "gramati-
ca". Passa tambem por fundador da eristica, que depois vira a
ser dialetica, Partindo do principio de que a todo argumentopode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado
ou refutado, ele ensina a tecnica eristica, arte de veneer uma
discussao contraditoria ("eristica" vern de eris, controversia).
Essa arte, extremamente elaborada, nao hesita em recorrer aos
piores sofismas. Do tipo:
}, .. .
•."...0 rato (mys) e urn animal nobre pois e dele que provem os
misterios ... (Aristoteles, Retorica, 140I a)
Pode-se ser branco e naobranco aomesmo tempo, porquanto
o etiope e negro (napele) e branco nos dentes. (inNavarre, p. 65)
A servico do belo querera dizer a service daverdade? Essa
questao implica toda a relacao entre a retorica e a sofistica.Observemos que 0 ensinamento de Gorgias comportava
uma vertente filosofica. Poi conservado 0 resurno de urn de
seus discursos, intitulado Do ndo-ser; ou da natureza', com
este promissor inicio:
Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que
exista alguma coisa, 0homem nao a pode apreender; em terceiro
lugar, mesmo que ela possa ser apreendida, nao pode ser formu-
lada nem explicada aos outros. (Lespresocratiques, p. 1022)
Havera algum elo entre esse agnosticismo e a ret6rica?
Em Elogio deHelena, ele diz:
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8 INTRODU<;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRiCIA 9
E pouco compreensivel como oradores celebres, gregos
alem de tudo, a comecar por Protagoras, puderam impor-se com
tais estupidezes. De fato, se grandes pensadores, como Aristo-
teles e Platao, envidaram tantos esforcos para refutar os sofis-
tas, e sinal de que estes nao eram negligenciaveis nem estupi-
dos, e que, acima de suas artimanhas publici tar ias, eles ensina-
yam algo importante . Mas 0que?
E dificil saber, pois so os conhecemos atraves de seus ini-
migos. Recordemos as teses de Protagoras: 0homem e a medi-
da de todas as coisas; em outras palavras, as coisas sao como
aparecem a cada homem; nao M outro criterio de verdade. 0
que produz 0mais completo relat ivismo, porque, se uma coisa
parece bela a urn, feia a outro, fria a urn, quente a outro, grande
a urn, pequena a outro, sera as duas coisas ao mesmo tempo.
Nao M mais nenhuma objetividade, nem mesmo logica, pois 0
principio de contradicao nao vale mais. A cada urn a sua verda-de, e todas sao verdades. A cada urn: mas, em Protagoras, 0"ca-
da urn" e tanto a cidade quanto 0 individuo; e a cidade que, em
nome de seu proprio interesse, decide sobre os valores e as ver-
dades. Isso equivale a dizer que nos sa l ingua, nossas ciencias,
nossos valores esteticos e morais nao passam de convencoes
que mudam de uma cidade para outra, que variam segundo a
historia e a geografia: "Bela justica a que e delimitada por urn
rio . ..", did Pascal, admit indo que assim e , e lamentando.Relativismo pragmatico, tal parece ter sido a doutrina de
Protagoras. Nao existe verdade em si , mas uma verdade de cada
individuo, de cada cidade; e 0 importante e aquilo que the per-mite fazer-se valer e impor-se, que e precisamente a retorica.
Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto a
violencia quanto a tolerancia, Por isso ela nos parece ao mes-
mo tempo fascinante e ambigua; e e esse 0 sentimento que se
tern diante do Protagoras de Platao,
Platao parece ter detestado 0 grande sofista, que ele afir-
rna ser pervertedor de jovens, e a quem objeta que nao e 0ho-
mem a medida de todas as coisas, mas sim Deus. E, no entanto,
Platao escreveu dois past ichos, dois trechos brilhantes que ele
atribui a Protagoras. 0primeiro e 0mito da origem do homem,
em Protagoras (320 c s.), meditacao antropologica espantosa-
mente profunda e moderna. 0segundo e a autodefesa de Prota-
goras em Teeteto (166 a). Esses dois textos nos apresentam urn
Protagoras cativante e respeitavel, urn mestre de humanismo e
tolerancia . Acreditar em que, em quem?
Fundamento sofistico da retorica
De qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram
a retorica como arte do discurso persuasivo, objeto de urn ensi-
no sistematico e global que se fundava nurna visao de mundo.
Ensino global: e aos sofis tas que a retorica deve os primei-
ros esbocos de gramatica, bern como a disposicao do discurso
e urn ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a ideia de
que a verdade nunc a passa de acordo entre interlocutores, acor-
do final que resulta da discussao, acordo inicial tambem, sem 0
qual a discussao nao seria possivel . A eles se deve a insistencia
no kairos, momento oportuno, ocasiao que se deve agarrar na
fuga incessante das coisas, ao que se da 0 nome de espirito da
oportunidade ou de replica vivaz, e que e a alma de qualquer
retorica viva. Sim, todos os elementos de uma retorica riquissi-
rna, que serao encontrados depois, especialmente em Aristo-
teles.
No entanto, 0 fundamento que dao it retorica parece-nos
bern perigoso. E de perguntar se eles nao a comprometeram
para sempre, ao just if ica- la como 0 fizeram pela incerteza e pe-
10 sucesso. Mas, afinal, por que esse laco, aparentemente inque-
brantavel, entre 0 sofis ta e 0retor?
Certamente porque 0mundo do sofista e urn mundo sem
verdade, urn mundo sem realidade objetiva capaz de criar 0
consenso de todos os espiritos, para dizerem que dois e dois
sao quatro e que Toquio existe ... Privado de uma realidade ob-
jetiva~,'\.logos,0discurso humano fica sem referente e nao tern
outro criterio senao 0 proprio sucesso: sua aptidao para con-
veneer pela aparencia de logica e pelo encanto do estilo. A uni-
ca ciencia possivel e, portanto, a do discurso, a retorica.
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10 INTRODUr;:AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 11
Isecrates ou Platio?
bastante grave; ele escreveu sua propria defesa, confiou-a a urn
discipulo e... perdeu a causa. Nem por isso deixou de publicar
sua defesa, A troca, como modelo a ser seguido. Foi, alias, co-
mo modelos que publicou inumeros discursos, alguns juridi-
cos, outros epidicticos.
Em surna, urn grande professor de retorica, admirado pe-
los contemporaneos e sempre admiravel, Ao contrario de seus
predecessores, recusa-se a fazer malabarismos propagandisti-
cos e rejeita a aprendizagem automatica de lugares e outros
procedimentos. Ensina sempre recorrendo a reflexao do alunoe fazendo seus grandes discipulos cooperarem na genese de
seus proprios discursos, que leem, discutem e corrigem com 0
mestre'. Alias, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam de
capacitar qualquer urn a persuadir qualquer urn, ele mostra que
o ensino nao e todo-poderoso" , A seu ver, para ser orador, sao
necessarias tres condicoes, Para comecar, aptidoes naturais.
Depois, pratica constante. Finalmente, ensino sistematico. Pra-
tica e ensino podem melhorar 0orador, mas nao cria-lo.
Apesar de, como Gorgias, querer urna prosa literaria, des-
preza a grandiloquencia e cria uma prosa que se distingue com-
pletamente da poesia: sobria, clara, precisa, isenta de termos
raros, de neologismos, de metaforas brilhantes, de ritmos mar-
cados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa. Sem
ser poetica, tern urn ritmo que se deve ao equilibrio do periodo
e a clausula que a fecha; e eufonica, evitando as repeticoes des-graciosas de silabas e os hiatos.
Principalmente, moraliza a retorica ao afirmar alto e bornsom" que ela so e aceitavel se estiver a service de urna causa
honesta e nobre, e que nao pode ser censurada, tanto quanto
qualquer outra tecnica, pelo mau uso que dela fazem alguns.
Alias, para Isocrates, ensino literario e formacao moral estao
ligados, para dizer 0minimo. De fato, ele ensina que a retorica
deve ter urn objetivo para depois procurar todos os meios de
atin~lo sem nada deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim a
organizar urn discurso, nao se estaria tambem ensinando a
govemar a propria vida? 0 ensino literario e uma escola de
estilo, de pensamento e de vida. Ideia bern grega, de que a har-
Concretamente, 0 que muda? Muda que 0 discurso nao
pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossimil, so
podera ser eficaz; em outras palavras, proprio para convencer,
que no caso equivale a veneer, a deixar 0 interlocutor sem re-
plica. A finalidade dessa retorica nao e encontrar 0verdadeiro,
mas dominar atraves da palavra; ela ja nao esta devotada ao sa-
ber, mas sim ao poder.
Os sofistas foram com certeza os primeiros pedagogos, e
o objetivo de sua educacao nao deixa de ser nobre: capacitar os
homens "a govemar bern suas casas e suas cidades'", Entre-
tanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas 0 sa-
ber fazer a service do poder.
Com a sofistica, a retorica e rainha, mas rainha despotica
.porquanto ilegitima. Agora, 0elo entre retorica e sofistica e fa-
tal: sera possivel salvar a primeira da segunda?
Vimos que a retorica veio atender a diversas necessidades
dos gregos: necessidade de tecnica judiciaria, de prosa litera-
ria, de filosofia, de ensino. Ora, Isocrates vai conseguir satisfa-
zer sozinho essas quatro exigencias, ao propor urna retorica
mais plausivel e mais moral que ados sofistas.
Alias, a partir do final do seculo V , esse termo passou a ser
pejorativo, e devemos agradecer Isocrates por ter libertado a re-
torica do dominio sofistico. 0 problema esta em saber sede fatofoi uma libertacao real, e se afinal Isocrates nao deixou as coi-
sas como estavam. E exatamente isso que Platao critica nele.
Isocrates, 0 humanista
Ateniense da gema, Isocrates viveu noventa e nove anos
(436-338). Sua voz fraca e sua invencivel timidez impediram-
no de ser orador. Por isso, virou professor de arte oratoria. Aos
oitenta anos, foi-lhe movida uma especie de processo fiscal
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12 INTRODUr;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 13
monia e 0valor por excelencia, que rege a existencia tanto quan-
to rege 0 discurso. Estamos aqui na origem do humanismo,
para 0 qual Isocrates contr ibui, a lias, com um fundamento an-
tropologico,
A palavra , diz ele , e "a unica vantagem que a natureza nosdeu sobre os animais, tornando-nos assim super iores em todo 0
resto'?", Em outras palavras, todas as nossas tecnicas, toda a
nossa ciencia, tudo 0que somos devemos a fala. Donde ele in-
fere uma conclusao politica: os gregos, povo da palavra, for-
mam na verdade uma unica nacao, nao pela raca, mas pela lin-
gua e pel a cultura. Devem, portanto, renunciar as guerras fra-
tricidas e unir-se.
Isocrates, que se proclama anti-sofista, tambem nao rei-
vindica 0nome de retor. Ele se diz "filosofo". Mas, convencido
(de que 0homem nao pode conhecer as coisas assim como sao,
colocando a dialetica de Platao no mesmo nivel de inutilidadeda eristica dos sofistas, integra a filosof ia na arte do discurso" .
Ela e para a alma 0 que a ginastica e para 0 corpo, formacao
intelectual e moral, boa para os jovens, mas inutil para perse-
guir por toda a vida (a mesma critic a que sera feita a Socrates"
por Calicles), Em suma, para Isocrates, "f ilosof ia" e culturageral , centrada na arte oratoria; numa palavra: retorica.
Nesse caso, qual e seu merito em relacao aos sof is tas? Uma
contribuicao tipicamente grega, 0 sentido da beleza. Ele escreve
em seu Elogio de Helena que a beleza e "0 mais venerado, 0
mais precioso, 0 mais divino dos bens" (54). E a beleza que
constitui a harmonia do discurso e da vida, e a educacao e eticapelo simples fato de ser estetica, Se a linguagem e peculiar ao
homem, a bela linguagem e valor por excelencia: e a retorica,
confundida com a filosofia, e a rainha das ciencia, Mas sera
possivel separar 0discurso do ser, a beleza da verdade?
fundo contra a re tor ica, especialmente no livro que the dedica,
Gorgias, um dos tex tos mais fortes de toda a lite ratura.
Mas comecemos com uma pausa, dando pela ultima vez a
palavra ao sof is ta re tor . Pois nesse d ialogo Platao the da a pala-
vra. Poe em cena seu mestre Socrates a discutir retorica com
Gorgias e mais dois de seus discipulos. Alias, parece que 0Gor-
gias historico e menos visado em Gorgias do que Isocrates.
No comeco, Socra tes , f ingindo ignorar 0 que e retorica,pede a Gorgias que a defina. Ela e - responde 0 outro - "0 po-
der de persuadir pelo discurso" assembleias de qualquer tipo
(452 e): ela e, portanto, "criadora de persuasao" (peithous de-
miurgos). Socrates entao faz uma pergunta capital para 0 que
se segue: sera que a retorica tem cienc ia daquilo de que persua-
de? E Gorgias responde que ela nao precisa disso ( tan to quanto
quem faz propaganda de um remedio nao precisa ser medico).
Mas entao para que precisamos dela: nos debates publicos nao
se buscara 0conselho de especialistas, e nao retores? A respos-
ta de Gorgias merece ser citada por in teiro .
Texto 1- Platiio, G6rgias, 455 d a 456 C, trad.M. Croiset
Umapausa
G6RGIAS - Vou tentar, Socrates, revelar-te claramente 0
poder da retorica em toda a sua amplitude (...). Nao ignoras por
certo que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e de
toda a organizacao de vossos portos se deve por urn lado aos
conselhos de Temistocles e por outro aos de Pericles, mas emnada aos dos homens do oficio.
S6CRATES - E isso realmente 0 que se relata a respeito de
Temistoc1es, e, quanto a Pericles, eu mesmo 0 ouvi propor a
construcao domuro intemo.
OORGIAS - E, quando setrata de urna dessas eleicoes de que
falavas ha pouco, podes verificar que tambem sao os oradores que
e~~melhante materia dao s~upare~ere que a fazemtri~ar:. S6CRATES - Posso venficar ISSO com espanto, Gorgias, e
por isso me pergunto ha muito tempo que poder e esse da retori-
ca. Ao ver 0 que sepassa, ela se me aparece com uma coisa de
grandeza quase divina.
Se Isocrates enaltece a retorica, que para ele e toda a filo-sofia, Platao, em nome da filosofia, aplica-se a uma critic a de
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14 INTRODUr;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 15
urna visao global e da arte da palavra, ou seja, que saiba ouvir e
fazer-se ouvir.
E seria facil continuar os exemplos de Gorgias: sao os pre-
sidentes das empresas que decidem, nao os engenheiros; os
grandes ministros raramente sao especialistas em seu setor: urn
Ministro da Sande nao precisa ser medico, urn Ministro da Edu-
cacao nao precisa ser professor, e os melhores comandantes
das guerras nao sao militares: pensemos em Clemenceau ou
em Churchill. Quem realmente decide nao sao os especialistas,
mas aqueles que, gracas it cultura e it arte da eloqiiencia, sao
capazes de fazer-se ouvir e arbitrar.
Alias, e por isso que Protagoras, em outro dialogo, afirma
que educa os jovens nao para toma-los tecnicos em alguma
coisa, mas para sua educacao all'epi paideia, ou seja, para sua
cultura geral".
Na sequencia de seu discurso, Gorgias amplia 0argumen-
to, mas por isso mesmo 0 enfraquece, pois exige demais dele.
Depois de mostrar 0 poder da retorica, quer transforma-lo em
onipotencia, Para isso acrescenta outro exemplo, menos verifi-
cavel, mas tambem plausivel, 0 do orador que convence 0 en-
fermo. Continuamos no verossimil: para levar urn paciente a
admitir que tern de sofrer para curar-se, e preciso coisa diferen-
te da ciencia medica: psicologia.
Mas no fim a argumentacao incha a ponto de explodir,
com 0 exemplo - puramente ficticio - do concurso. A assem-
bleia preferira 0orador ao medico, caso 0 orador queira fazer-
se eleger medico! No fundo e 0ponto de vista da publicidade,
que afirma, a torto e a direito, que consegue vender e "vender-
se". No entanto 0eu afirmo (phemi) de Gorgias nao e realmen-
te autorizado pelo que precede; de fato os exemplos, por mais
nurnerosos e eloqiientes que sejam, nao provam tudo; nao que
nao provem nada, mas nao provam nada de universal. Desse
modo, os exemplos de Gorgias provam que nem tudo podem os
especiattstas, e nao que nada podem; provam que a retorica e
capaz de alguma coisa, e ate muito, mas nao que e onipotente.
Na verdade, seria facil contra-argumentar mostrando que, sem
medicos ou outros especialistas, 0 retor nao iria muito longe; a
G6RGIAS - Se soubesses tudo, Socrates, verias que ela
engloba em si, por assim dizer, e mantem sob seu dominio todos
os poderes. You dar-te uma prova impressionante disso:
Aconteceu-me varias vezes acompanhar meu irmao ou
outros medicos it casa de algurn doente que recusava urna droga
ou que nao queria ser operado a ferro e fogo, e sempre que asexortacoes do medico resultavam vas eu conseguia persuadir 0
doente apenas com a arte da retorica. Que urn orador e urn medi-
co andemjuntos pela cidade que quiseres: se comecar uma dis-
cussao nurna assembleia popular ou numa reuniao qualquer para
decidir qual dos dois devera ser eleito medico, af irmo que 0
medico sera anulado e que 0 orador sera escolhido, se isso lhe
agradar.
o mesmo aconteceria com qualquer outro artesao: 0oradorse faria escolher diante de qualquer outro concorrente, pois nao
ha assunto sobre 0 qual urn homem que conhece retorica nao
consiga falar diante damultidao demaneira mais persuasiva que
urn homem do oficio, seja ele qual for. Ai esta 0que e retorica, edo que ela e capaz.
Para comecar, cabe admirar a ironia de Socrates (§ 4), que
finge nao compreender e espantar-se. Observemos tambem
que, sem explicitar, Gorgias ilustra a teoria de Isocrates, para
quem a palavra e apanagio do homem e origem detodos os seus
"poderes"; donde se pode concluir que 0 dominio da palavra
sera tambem 0dominio de todas as tecnicas.
Gorgias, porem, nao utiliza oraciocinio. Argumenta atra-
yes do exemplo. Na verdade, para provar sua tese, a onipoten-cia da retorica, ele parte de dois fatos bern conhecidos, de que
seu proprio interlocutor foi testemunha (§ 2). Esses exemplos
sao muito fortes, pois bastam para por em xeque a pretensao
dos especialistas e refuta-Ia, Ainda hoje nao sao os especialis-
tas que promovem vendas, mas publicitarios. Ainda hoje como
na Grecia, as decisoes politicas nao sao tomadas por especia-
listas. Por que? Porque estao em falta? Ao contrario, talvez por
existirem em excesso, por ser necessario selecionar os melho-
res, que raramente sabem se impor. E preciso, portanto, urn"retor", urn nao-especialista que em contrapartida disponha de
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16 INTRODUC;AO A RET6RICA OR/GENS DA RET6RICA NA GRECIA 17
Deve-se usar a retorica com justica, assim como todas as
armas. (Gorgias, 457 b; cf. Isocrates, A troca, 251 a 253)
crates faz outra pergunta completamente diferente: os tiranos
fazem 0 que querem? Naturalmente fazem 0 que lhes agrada,
mas sera realmente 0que querem? Fazer 0que se quer implica
saber do que se trata, conhecer 0objeto da vontade e seu valor
real. Ora, 0 retor e 0 tirano nao conhecem nada disso. Pois seu
unico criterio e 0 prazer, e 0 prazer nunca indica 0 verdadeiro
bern; so da uma satisfacao aparente e fugaz. Assim como a
culinaria cujo objetivo unico seja lisonjear nossa gula nao nos
da saude, pelo contrario, tambem a retorica apenas lisonjeia,
sem preocupacao com 0 verdadeiro bern. Aquilo que a culina-
ria e para a medicina, ciencia da saude, a retorica e para ajusti-ca, ou seja, sua falsa cara, sua imitacao.
Poder da retorica? Urn poder sem freios como 0do tirano,
e sem controle. Mas e poder de verdade? Polos afirma que 0
tirano e 0 homem onipotente, pois pode fazer "tudo 0 que lhe
agrada": despojar, exilar, matar, etc., sem as peias de lei algu-
rna. Ora, Socrates abstem-se de criticas morais, do tipo "naoesta certo". Mostra simplesmente que "nao e forte", que essepoder que 0 retor e 0 tirano se atribuem nao passa de impoten-
cia, porque nao fundado em verdade, porque nao pode justifi-
car 0que esta propondo ou sepropondo. 0 tirano considera-se
urn monstro, mas urn monstro feliz; na verdade, e apenas fraco
e infeliz, mais digno de lastima que suas vitimas.
cidade que0tivesse elegido medico nao seria enganada por mui-
to tempo!
Em suma, partindo de urn argumento muito forte, Gorgias
o enfraquece, depois 0destroi, exigindo dele 0que ele nao po-
deprovar.
Retorica e cozinha
A sequencia do dialogo e uma refutacao progressiva e to-tal da retorica.
Para comecar, e 0proprio Gorgias que, como Isocrates, li-
mita 0peder dela, subordinando-a Iimoral:
Gorgias (ou Isocrates"), retor honesto, subordina a retori-
ca a urnamoral que the e completamente exterior; mas nao es-
taria ele dessa forma mascarando as fraquezas e os perigos da
retorica? Pois, afinal, mesmo a service de urna boa causa, a ar-
rna continua sendo urna arma, e nao e infalivel que 0 seu poderseja sempre totalmente controlavel,
Socrates comeca fazendo Gorgias confessar que a retorica
assim definida nao necessita conhecer aquilo de que esta falan-
do, como por exemplo a medicina. Donde a seguinte conclusao
desdenhosa:
POLOS - 0 homem miseravel e digno de piedade sem a
menor duvida e aqueJe que foimorto injustamente.SOCRATES- Menos do que aquele que mata, Polos... (469 b)
Logo, quem leva a melhor sobre 0 sabio e urn ignoranteque esta falando a ignorantes. (459 b; "sabio" no sentido de com-
petente)
E a retorica, com todo 0 seu prestigio, sofre da mesma impo-
tencia; nao passa de tecnica cega e rotineira que, longe de pro-
porcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam para
serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os sem
ajuda-los, prejudicando-os mesmo (463 a 465). A onipotencia
da retorica nao passa de impotencia:
' ' ' - .
o debate torna-se mais agressivo com 0discipulo de Gor-
gias, Polos, jovem que recorre menos a sutilezas e escnipulos
que seu mestre. Como ele se embevece com a onipotencia da
retorica, Socrates demonstra que esse poder teria a mesma na-
tureza dopoder do tirano, 0que Polos admite, achando por cer-
to que the dirac que a retorica e perigosa, imoral, etc. Ora, So-
Os oradores e os t iranos sao os mais fracos dos homens.
(466 d)
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18 INTRODUr;:AO A RETORICA ORIGENS DA RETORICA NA GRECIA 19
Platao rejeita a confianca que os sofistas como Is6crates
atribuem a linguagem. S6 the reconhece valor se a service do
pensamento, unico a atingir as "ideias", a verdade inteligivel:
A autentica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro,
nao existe e nao poderajamais existir. (Fedro, 260 e)
beriam disso! Ha urn born tempo estariamos livres de acoes
erroneas e erraticas, e poderiamos preyer 0 futuro com segu-
ranca e tomar decisoes irrefutaveis, Ora, nesse ponto, Is6crates
continua tendo razao: nao e por ai. A "ciencia" que Platao opoe
a ret6rica ainda esta para ser feita e, sem duvida, estara sempre.
Notemos que, em Fedro, ele parece reabili tar a ret6rica.
Mas trata-se de urna ret6rica a servico da dialetica, metodo da
verdadeira filosofia, que "capacita a falar e a pensar" (266 b).
Uma ret6rica do verdadeiro, que nao procura 0beneplacito das
multidoes, mas dos deuses (273 e). Mas essa ret6rica, que nao
passa de expressao da filosofia, perde toda a autonomia, e mes-
mo toda a existencia pr6pria.
Conc1uindo, como diz muito bern Barbarin Cassin", Pla-
tao apresenta-nos duas ret6ricas, quer dizer, duas a mais. A pri-
meira, ados sofistas e de Is6crates, nao e arte, mas urna falsaadulacao, A segunda e apenas urna expressao da fi losofia, sem
conteudo pr6prio. Hoje em dia, reencontramos esse dualismo
ester il entre urna publicidade que s6 procura agradar , para ven-
der, e uma pretensa "ciencia hurnana" que nao resolve os pro-
blemas hurnanos, abstendo-se mesmo de formula-los. Entre-
tanto, esse conflito talvez nao seja fatal . Deve ser possivel urna
outra retorica.
E por isso que a ret6rica nao e nem mesmo 0 que pretende ser ,
urna tekhne, urna arte.
Em resurno, Platao volta contra 0 retor 0 seu pr6prio argu-
mento. Seu pretenso "poder" nada e. Por que? Porque ele des-
conhece 0verdadeiro, porque the falta a ciencia, especialmente
a da justica, unica que concede 0 poder real e a felicidade.
Assim cemo e a medic ina que proporciona 0 verdadeiro bem-
estar, nao a confeitaria.
De que "ciencia" se trata?
S6 que 0 argumento de Platao sustenta-se apenas por seu
pressuposto: de que, no dominio dajust ica e da fel ic idade, exis-
te urna "ciencia", urn conhecimento tao seguro quanto a medici-
na, que, assim como esta desqualifica a culinaria, autorizaria a
desqualificar a ret6rica. E Platao esta bern convencido disso.
Para ele, essa ciencia, a dialetica, proporciona urn conhecimen-
to das coisas eticas e politicas tao seguro quanto as ciencias da
natureza, e ate mais seguro (cf. Republica, livros VII e VIII).
Mas essa ciencia existe? Quando S6crates lanca a Polos a cele-bre f6rmula: "Mais vale sofrer a injustica do que a cometer",
querendo dizer com isso que a vitima nao s6 e menos desonesta
como tambem menos infel iz, porquanto 0 mal nao esta nela,
tern razao. Mas sera que podemos saber urna unica vez e urna
vez por todas 0que e 0justo e 0que e 0 injusto?
Hoje em dia, certamente em sentido diferente, alguns au-
tores afirmam tambem que existe uma ciencia da politica, da
etica, da educacao, 0que lhes permite condenar , como Platao,
tudo 0 que e ret6rico, a que dao 0nome de "literario" ou mes-
mo "filos6fico". Mas afinal, se tal ciencia existisse, todos sa-
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Capitulo II
Aristoteles, a retorica e a dialetica
Arist6teles (384-322) nasceu - quinze anos depois da
morte de S6crates - em Estagira, cidadezinha litoranea entre
Salonica e 0monte Atos. Entra com dezessete anos na Acade-
mia de Platao e ali f ica vinte anos, abandonando-a por nao po-
der suceder ao mestre; vai fundar urna escola concorrente, 0
Liceu. Fil6sofo e sabio universal, soube conciliar em si duastendencias pouco conciliaveis: 0espirito de observacao e 0 es-
pirito de sistema.
Antes de fundar 0Liceu, foi preceptor do filho do rei Fili-
pe da Macedonia, que mais tarde se distinguiu como urn dos
maiores genies militares e politicos de todos os tempos, con-
quistando para a pequena Grecia todo 0Oriente, desde 0Egito
ate a I ndi a,
Arist6teles e Alexandre, 0Grande: 0que 0primeiro pode
ter ensinado ao segundo? Urn militar tentou responder:
o poder do espirito implica uma diversidade que nunca seencontra unicamente na pratica da atividade profissional, do
mesmo modo como nao nos divertimos apenas em familia. A
verdadeira escola do comando esta na cultura geral. Por meio
dela, 0pensamento e posto em condicoes de exercer-se, com or-
dem, de distinguir 0 essencial do acessorio nas coisas, de perce-
ber os prolongamentos e as interferencias, em surna, de elevar-
~,,\a urn nivel em que 0 conjunto aparece sem 0 prejuizo dos
matizes. Nao ha ilustre capitao que nunca tenha tido gosto nem
sentimento pelo patrimonio do espirito hurnano. Por tras das
vitorias de Alexandre, encontramos sempre Aristoteles. (Char-
les de Gaulle, V er s I ' ar me e d e m e ti er , 1934)
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22 INTRODUC;AO A RET6RlCA ARlST6TELES, A RET6RlCA E A DIALETICA 23
Belo elogio da retorica. Retorica que Aristoteles vai re-
pensar de cabo a rabo, integrando-a de inicio num sistema filo-
sofico bern diferente daquele dos sofistas, e depois transfor-
mando-a em sistema.
sua funcao nao e [somente] persuadir, mas ver 0 que cada casocomporta de persuasivo. 0 mesmo se diga de todas as outras
artes, pois tampouco cabe a medicina dar saude, porem fazer
tudo 0que for possivel para curar 0doente.
Uma nova defini~ao de ret6ricaUma definidio mais modesta ...
Texto 2-Aristoteles, Reterica, livro I, cap. 2, 1355 a-bNos mesmos traduzimos esse texto capital, utilizando a
traducao de Mederic Dufour, a de Rhys Roberts, na edicao in-
glesa, e evidentemente 0texto grego.
Se compararmos esse trecho com 0 de Gorgias (texto 1),
veremos nos dois casos que se trata de urn elogio a retorica,Gorgias a celebra por seu poder, Aristoteles por sua utilidade.
Ambos admitem (como Isocrates) que ela pode ser usada deso-
nestarnente (adikOs), 0que em nada subtrai 0seu valor.Entretanto, se e que Gorgias e Aristoteles estao falando da
mesma coisa, nao falam da mesma maneira. 0 discurso do
sofista e digno quando muito de urna praca publica; sua argu-
mentacao pelo exemplo da guinadas. 0 de Aristoteles, ao con-
trario, e muito coeso; procede por silogismos implicitos, ou
entimemas. Em surna, passa-se de urna arenga propagandisti-
ca, do tipo "voces vao ver 0que voces vao ver", para urna argu-
mentacao rigorosa.
E essa nova argumentacao da urna ideia mais profunda e
solida da retorica. Para comecar, ja nao a apresenta como poder
de dominar, mas como poder de defender-se, 0que logo de caraa toma legitima. Em seguida, os argumentos contraries aomau
uso sao muito mais fortes, porque 0 explicam; e precisamentepor ser urn bern (agathon) que a retorica pode ser pervertida,
assim como a forca, a saude, a riqueza. Com excecao da virtu-
de moral, todos os bens sao relativos. Mas, enfim, nem por isso
deixam de ser bens, pois mais vale ser forte que fraco, sadio
que dotDte..-.Do mesmo modo, e preferivel saber utilizar a for-ca do discurso.
Em resurno, enquanto a defesa de Gorgiasou de Isocratesconsistia em fazer da retorica urn instrumento neutro, que so
(1) A retorica e util, porque, tendo 0 verdadeiro e 0 justo
mais forca natural que os seus contraries, se osjulgamentos nao
sao proferidos como conviria, e necessariamente por sua unica
culpa que os litigantes [cuja causa e justa] sao derrotados. Suaignorancia merece, portanto, censura.
(2) Ainda mais: conquanto possuissemos a ciencia maisexata, ha certos homens que nao seria facil persuadir fazendo
nosso discurso abeberar-se apenas nessa fonte; 0 discurso se-
gundo a ciencia pertence ao ensino, e e impossivel emprega-loaqui, onde as provas e os discursos (logous) devem necessaria-
mente passar pelas nocoes comuns, como vimos em Topicos, a
respeito das reunifies comurnauditorio popular.
(3) Ademais, e preciso ser capaz de persuadir dos pros edos contras, como no silogismo dialetico, Nao para por ospros
e os contras em pratica - pois nao se deve corromper pela per-
suasaol -, mas para saber claramente quais sao os fatos e para,
caso alguem sevalha de argumentos desonestos, estar em condi-
~oesde refuta-lo (...)
(4) Alem disso, se e vergonhoso nao poder defender-se
com 0proprio corpo, seria absurdo que nao houvesse vergonha
em nao poder defender-se com a palavra, cujo uso e mais pro-prio ao homem que 0do corpo.
(5) Objetar-se-a que a retorica pode causar series danos
pelo uso desonesto desse poder ambiguo da palavra? Mas 0
mesmo sepode dizer de todos os bens, salvo da virtude (...)
(6) Fica claro, pois, que, assim como a dialetica, a retorica
nao pertence a urn genero definido de objetos, mas e tao univer-sal quanto aquela. Claro tambem que e util, Claro, por fim, que
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24 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 25
Nosso texto objetiva estabelecer esse valor. Isso e feitocom quatro argurnentos mais uma prolepse (§5), para final-
mente passar a definicao.Os quatro argumentos tern por finalidade provar a tese,
exposta desde 0 inicio: "A retorica e util" (khresimosy; em ou-
tras palavras, dela sepode esperar aquilo que se espera de todas
as tecnicas: urn servico; e 0 que vao mostrar os quatro argu-
mentos, cada urn por sua vez.
o primeiro argumento parece responder a uma objecao
implicita: nao e possivel contentar-se com expor simplesmente
o verdadeiro e 0justo, sem recorrer a artificios oratorios? Aris-
toteles leva em conta a objecao, dizendo: sim, 0verdadeiro e 0
justo sao por natureza (physei) mais fortes que seus contraries.
So que a experiencia mostra - aqui, argumento pelo exemplo -
que muitos veredictos dos tribunais sao iniquos. Como expli-
car isso? Pelo erro dos litigantes, que nao souberam fazer valer
seus direitos, que nao conseguiram sobrepujar a retorica de
seus adversaries, capazes de "tomar mais forte 0 argurnento
mais fraco", de fazer 0 injusto prevalecer sobre 0 justo. Se a
arte pode ter vantagem sobre a natureza, e preciso urn suple-
mento de arte para devolver a natureza seus proprios direitos.E isso 0que 0 terceiro argumento desenvolve tecnicamen-
teoE preciso ser capaz de defender tao bern 0 contra quanto 0
pro, claro que nao para torna-los equivalentes - como preten-
diam os sofistas -, mas para compreender 0mecanismo da ar-
gumentacao adversaria e assim a refutar.
o quarto argumento amplia 0debate, ligando novamente a
retorica a condicao humana, como ja fazia Isocrates, 0 grandeausente-presente de todo 0debate. Se a palavra e caracteristica
do homem, e mais desonroso ser vencido pela palavra que pelaforca fisica. Para interpretar a polissemia do termo grego lo-
gos, 0tradutor ingles emprega rational speech.
Na verdade, esses argurnentos valem nao somente para 0
discurso judiciario como tambem para todos os tipos de discur-
sos publicos. No campo do direito, da politica, da vida intema-
cional, vivemos sempre urna situacao polemica, em que as ar-
mas mais eficazes sao as da palavra, visto que so ela - e nao a
forca fisica - define 0justo e 0 injusto, 0util e 0nocivo, 0no-
bre e o; .sprezivel. A retorica, arte ou tecnica da palavra, e,
portanto, indispensavel. E ai esta 0que a legitima.
Mas 0que dizer entao da objecao de Platao, qual seja, que
a retorica e inteiramente estranha a verdade? Parece-nos que 0
valia pelo uso, Aristoteles the confere urn valor positivo, ainda
que relativo.Ou talvez porque relativo. Voltemos, pois, a sua definicao
"corrigida" da retorica. Ela nao se reduz, diz ele, ao poder de
persuadir (subentendido: ninguem de coisa nenhurna); no es-sencial, e a arte de achar os meios de persuasao que cada casocomporta. Em outras palavras, 0 born advogado nao e aquele
que promete a vitoria a qualquer custo, mas aquele que abre
para a sua causa todas as probabilidades de vitoria.
E aqui surge urna vez mais a personagem paradigmatica
do iatros, do medico. Para Gorgias, ele estava submetido ao re-
tor, pois dele dependia inteiramente, quer para convencer seu
paciente, quer mesmo para ser nomeado. Em Platao, e, ao con-
trario, 0medicoque faz papel bonito; e ele que sabe e podecurar, enquanto 0 retor nao passa de envenenador que nao sabe
nem como nem por que envenena, urna vez que sua pretensa
arte nao passa de rotina cega. Pode-se observar que 0medico
de Aristoteles tern bern menos seguranca do que faz; ele nada
pode fazer pelos doentes incuraveis, e mesmo aos outros nao po-
de prometer a cura, mas simplesmente dar-lhes todas as oportu-
nidades de curar-se. Ainda que nossa medicina seja hoje infini-
tamente mais cientifica que a de Aristoteles, nao pode prome-
ter mais. Aqui 0medico ja nao esta abaixo do retor, nem acima;
ambos estao frente a frente, sendo cada urn detentor de urna
arte que so tern poder porque reconhece seus limites.
Em resurno, dando a retorica urna definicao mais modestaque ados sofistas, ele a toma muito mais plausivel e eficaz.
Entre 0 "tudo" dos sofistas e 0 "nada" de Platao, a retorica secontenta com ser algurna coisa, porem de valor certo.
A argumentacdo de Aristoteles
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26 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 27
segundo argumento de Aristoteles (§ 2) responde implicitamen-
te a ele. A retorica, dizia Platao, que se autodefine como arte
onipotente, nao e arte de modo algum, pois e cega no que faz e
no que quer. Por ignorar 0verdadeiro, nao e nem mesmo verda-
deiro poder. 0 que responde Aristoteles?
"Conquanto possuissemos a ciencia ..." E preciso entender
bern 0 que esta em jogo. Aristoteles opoe-se aos sofistas, para
os quais tudo e relativo, e tambem, como sempre, a Isocrates,
para quem uma ciencia absoluta, a moda de Platao, nao passa
de logro, visto que 0 homem podera chegar apenas a opinioes
justas, ou melhor, mais ou menos justas (A troea, VI, 271).
Quanto a Aristoteles, admite que existe uma ciencia exata, e
ate "inteiramente exata" (akribestatei. Assim como Platao, ad-
mite uma ciencia que, por via demonstrativa, parta do verda-
deiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Pla-
tao que a ciencia mais exata e impotente para convencer certos
auditorios, aos quais falta instrucao, E preciso, portanto, utili-zar nocoes "comuns", ou seja, acessiveis ao comum dos mor-
tais . Suponhamos que uma comissao medica queira fazer cam-
panha contra 0 tabagismo: vai precisar achar para difundir coi-
sa bern diferente de um curso de medicinal Tal e a interpreta-
~ao corrente do texto de Aristoteles . No entanto, ela nos parece
evidente e banal demais para nao ser suspei ta .
Com efei to, no fim da alinea, Aristoteles refere-se a diale-
tica dos T6pieos. Atendo-nos a essa interpretacao, poderiamos
acreditar que a dialetica nao passa de quebra-galho, devido a
incultura dos auditorios populares, uma maneira de falar aos
ignaros, que so tern a seu favor (quando muito) 0 senso co-mum. A retorica seria entao a filosofia do pobre, 0que no fun-
do nos remete a Platao,
Na verdade, e preciso retomar a frase obscura: "0discurso
segundo a ciencia pertence ao ensino". Em outras palavras, um
discurso submetido as exigencias cientificas so pode ser feito
numa escola, numa instituicao especial, com seus metodos,
seus mestres, programas progressivos, etc. Ora, nao e a mesma
coisa quando se fala diante de urn tribunal, ou em praca publi-
ca, onde nao se tern nem mesmo 0 tempo para expor cientifica-
mente. Mas sera por causa da incultura do auditor io?
Parece que 0problema esta em outro lugar. 0 dominio da
retorica, 0 das questoes judiciarias e politicas, nao e 0mesmo
da verdade cient if ica, mas do verossimil. 0 proprio Aristoteles
diz isso em outro texto:
Seria tao absurdo aceitar de urn matematico discursos sim-plesmente persuasivos quanto exigir de urn orador (retor) de-
monstracoes invenciveis. (Etica a Nicomaco, I, 1094b)
A retorica nao e, pois, a prova do pobre. E a arte de defen-der -se argumentando em situacoes nas quais a demonstracao
nao e possivel, 0 que a obriga a passar por "nocoes comuns",
que nao sao opinioes vulgares, mas aquilo que cada um pode
encontrar por seu born senso, em dominios nos quais nada seria
menos cientifico do que exigir respostas cientificas.
Numa palavra, Aristoteles salva a retorica, colocando-a
em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe U r n papel modesto,mas indispensavel num mundo de incertezas e de confl itos . E aarte de encontrar tudo 0 que um caso contem de persuasivo,
sempre que nao houver outro recurso senao 0 debate contradi-
torio. Para entender melhor isso, passemos ao exame da rela-
~ao entre a retorica e a dialetica',
o que e dialetica?
Sabe-se que os gregos eram grandes esportistas , prat ican-
tes de toda especie de lutas e competicoes. Mas tambem se des-tacavam numa disputa esportiva fora dos estadios e ginasios,
ou puramente verbal, a dialetica, Dois adversaries se enfren-
tam diante do publico: um sustenta uma tese - por exemplo,
que 0prazer e 0bern supremo -, e a defende custe 0que custar;
o outro ataca com todos os argumentos possiveis. 0 vencedor
sera aquele que, prendendo 0 adversario em suas contradicoes,
conSe8uir reduzi-lo ao silencio, para grande alegria dos espec-
tadores.
Parece que a primeira dialetica foi a eristica dos sofistas,
ar te da controversia que permitia fazer triunfar 0 absurdo ou 0
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28 INTRODUr;AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 29
falso. Socrates e depois Platao puseram a dialetica a service do
verdadeiro, transformando-a no proprio metodo da filosofia.
Para Aristoteles, a dialetica nao esta menos a service do
verdadeiro do que do falso; ela trata do provavel:
Em filosofia, e preciso tratar as questoes segundo a verda-de,mas em dialetica somente segundo a opiniao-.
Em nossa opiniao, a melhor resposta para esse tipo de cri-
tica e mostrar que a dialet ica nao e nem moral nem imoral, sim-
plesmente porque, no fundo, ela e urn jogo. Nurn jogo, 0 pro-
blema e ganhar . E, neste, veneer e convencer; em outras pal a-
vras, urna proposicao enunciada pelo adversario e admitida
como provada, sem que se possa voltar a ela.
Como em todos os jogos, a polemica so e conflito na apa-
rencia: urn prelio esportivo ou urna partida de xadrez estao tao
longe de ser urn conflito real quanto urn rei do xadrez esta lon-
ge de urn monarca historico; assim, quem defende urna tese po-
de muito bern nao acreditar nela; defende-a por jogo .. . Enfim,
como todo jogo, a dialetica nao tern outro fim alem de si mes-
rna: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E enisso que se distingue das atividades serias: da filosofia por
urn lado e da retorica por outro, ainda que Ihes seja - como ve-
remos - indispensavel,
Em sintese, urn jogo analogo ao xadrez, em que 0 acaso
tern posicao infima. Urn jogo em que se deve fazer de tudo
para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras ... da 1 0 -
.gica.
A dialetica de Aristoteles e apenas a arte do dialogo orde-
nado. 0 que a distingue da demonstracao filosofica e cient if ica
e raciocinar a partir do provavel. 0 que a distingue da eristica
sofista e raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente
as regras da logica.
A dialetica e urnjogo
o silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes,
necessarias , que provam sua conclusao explicando-a de modo
indubitavel , 0 silogismo dialet ico parte de premissas simples-
mente provaveis, os endoxa, aquilo que parece verdadeiro a
todo 0mundo, ou a maioria das pessoas, ou ainda aos indivi-
duos competentes. 0 endoxon opoe-se, pois , ao paradoxon (0
paradoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opiniao aceita) .
Sao assim, hoje em dia, os conceitos de "normal" ou de "matu-
ridade": nao possuem nenhurn rigor cientifico, mas sao uteis
para que as pessoas se entendam, tanto nas ciencias hurnanas
quanto na vida social ; ser iam bons exemplos de endoxa.Portanto, a dialetica renuncia a verdade das coisas em be-
neficio da opiniao aceita. Substitui a pergunta cientifica: "0
que e ? " por esta outra: "0 que Ihe parece?", A verdade e queAristoteles toma 0cui dado de distinguir 0verdadeiro consenso
do consenso aparente iphainomenon endoxon), com que se con-
tentam os sofistas.
Hoje, quem Ie os Topicos pergunta-se com freqiiencia 0
que distingue Aristoteles dos sofistas. Desconfia-se que seu
objetivo nao e ensinar a buscar a verdade, mas sim a manipular
o adversario e mesmo a engana-lo.
Tudo para ganhar
No embate dialetico, e preciso antes de tudo levar em con-
sideracao 0 adversario concreto que temos diante de nos e dis-
por os argumentos por via de conseqiiencia. Por exemplo, se 0
adversario e iniciante, sera atacado com exemplos ou analogias;
se for experiente, ser-lhe-ao opostos raciocinios dedutivos" ,
Aristoteles, alias, ensina procedimentos, "truques" proprios
a desorientar 0adversario, impedi-lo de ver aonde se quer che-
gar (como no xadrez); por exemplo, encontrar formas de argu-
mentacao que dissimulem a conclusao, para que 0 adversario
nao s<i& aonde se esta indo realmente; inserir na argumenta-
~ao proposicoes inuteis para melhor esconder 0 jogo, etc.'; do
mesmo modo, finge-se imparcialidade, fazendo objecoes a
si mesmo; as vezes nao se hesita em concluir 0 verdadeiro a
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30 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 31
partir de premissas falsas, em se verificando que 0 adversario
admite estas ultimas mais facilmente que as verdadeiras!" No
todo, as aparencias sao salvas. Tem-se ate 0 direi to de jogar
com as palavras (como os sofistas!), quando, por culpa do
adversario, se esta "absolutamente impossibil itado de discutir
de outra mane ira . . ."7 .
Na verdade, pouco importa se 0 defensor sustenta uma
tese provavel ou improvavel; pouco importa se a tese e dele, de
outro, ou de ninguem. 0 importante e acharem que ele defen-
deu bern, que argumentou bri lhantemente"; por fim, caso 0
quest ionador tenha vencido ressal tando todos os absurdos de-
correntes da tese, 0 defensor deve poder "mostrar" que a culpa
nao e sua, mas da propria tese; em surna, que ele defendeu 0
melhor que pode urna tese que nao era sua", Assim,
contrario, se obstinar, nao estara fazendo mais que chicanice,
pois estara bloqueando 0 debate de modo totalmente arbitra-
rio", Analogamente, e preciso evitar que as objecoes acabem
virando obstrucao, 0que equivale a desperdicar tempo e paral i-
sar a discussao para nao perder. De modo mais geral, deve-se
evitar discutir com qualquer urn, porque, se 0 adversario ignoraas regras do debate, este so podera abespinhar-se, ja que cada
urn recorrera a qualquer meio para impor sua conclusao".
As regras que dizem respeito aos argumentadores, acres-
centam-se as que dizem respeito a argumentacao,
Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeito
aos termos. Muitas vezes os debates sao deturpados por se util i-
zarem premissas ambiguas. Vejamos, entre milhares de exem-
plos, este sofista registrado tuLogica de Port-Royal (p. 217):
n um d eb at e d ia le ti co , 0 ob je ti vo d o q u es ti on a do r e p ar ec er , p or
to do s o s rn eio s, e sta r faz en do um a re futac ao , e 0 o bje tiv o d o d e-fensor e p ar ec er n ao e st ar s en do a fe ta do p ess oa lr ne nte e m n ad a.
(VIII, 5, 159a)
N ao es 0q ue s ou ;
e u s ou h or ne rn ;
l og o, n ao e s h or ne rn .
Respeitar as regras do jogo
Sofisma porque, na conclusao, "ser homem" e tornado no
sentido universal, enquanto na premissa menor ele e tornado
em sentido particular: este homem, e nao todo 0 homem ou
qualquer homem".
Outros sofismas dizem respeito a forma do raciocinio. Por
exemplo, a peticao de principio, que toma como aceita a tese
que se quer demonstrar, enunciando-a com outras palavras";
em que a conclusao e extraida de premissas menos provaveis
que ela, ou de premissas excessivamente numerosas para que
se possa compreender a razao do que esta sendo conc1uido; eem que se chega a conclusao por meio de urn raciocinio impro-
prio ao assunto, como por exemplo urn raciocinio nao geome-
trico para estabelecer uma conclusao geometrica",
Vimos que, contra certos adversaries malevolentes ou li-
mitados, 0 verdadeiro pode ser conc1uido de premissas falsas .
Mas.jnesmo nesse caso, continua proibido transgredir as re-
gras d&raciocinio; sejam as premissas certas, provaveis ou fal-
sas, 0raciocinio deve ser correto.
A passagem.do falso ao verdadeiro deve ser dialet ica, nao
eristica (161 a).
Urn jogo, portanto, mas que deve ser jogado respeitando-
se as regras. Sim, deve-se fazer de tudo para ganhar, mas nao
por quaisquer meios. Porque a trapaca, transgressao das regras
logicas, induz de chofre a destruicao do jogo. E e exatamente
por is so que Aristoteles tanto insiste nas regras da dialetica,que a opoem a sofistica, essa t rapaca, As principais sao as que
seguem:
Para comecar, as que - sem serem propriamente logicas -
tern por objetivo permitir a conclusao, 0 fim do jogo, num tem-
po limitado.
Assim, se e verdade que, a partir de casos particulares, por
mais nurnerosos que sejam, nunca se pode concluir por urna
proposicao universal, cumpre entretanto que 0adversario, apos
certa quantidade de exemplos, acei te essa passagem para 0uni-
versal , a menos que ele proprio gere urn contra-exemplo. Se, ao
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32 INTRODUC;10 A RETORICA ARISTOTELES, A RETORICA E A DIALETICA 33
Enfim, urna regra apropriada ao "jogo" dialetico: so serao
feitas perguntas que possam ser respondidas com sim ou com
nao. Por exemplo, nao se deve perguntar: "0 que e 0 bern?",
mas: "0 bern se reduz ao prazer?" (158 a)
Utilidade dojogo dialetico
E 0pr6prio Arist6teles, no capitulo 2 do primeiro l ivro dos
Topicos, fixa os beneficios secundarios oferecidos pela dialeti -
ca. Aponta tres: uso pedag6gico, uso filosofico e uso social
("homiletico", que diz respeito diretamente a retorica).o uso pedagogico sera explorado pelo ensino durante cer-
ca de vinte e cinco seculos! "E a gymnasia: Nos embates diale-
ticos , argumenta-se para avalia r as forcas, e nao para debater",
"com 0prop6sito de exercitar-se e provar-se, e nao de ins truir-
se?", Se desse jogo nao se extrair verdade alguma, pelo menos
se adquirira urn t reinamento intelectual, urn metodo que permi-
ta argumentar sobre qualquer assunto.
o'uso filosofico divide-se em dois. Em primeiro lugar, a
dialetica, que desempenha urn papel epistemologico por per-
mitir (e s6 ela 0 faz) estabelecer atraves de um exame contradi-
torio os primeiros principios de cada ciencia e os principios
comuns a todas . Foi gracas a um exame dia letico que Aris tote-
les estabeleceu os pr imeiros principios da f isica, da moral e ate
o pr incipio de contradicao,
A outra funcao e interna a filosofia. A dialetica da ao f ilo-
sofo uma competencia que the e indispensavel: "Numa pala-
vra, e dialetico quem esta apto a formular proposicoes e obje-
<;oes."!7Proposicao: extrair 0universal de varies casos particu-
lares ; objecao: achar um caso par ticular que permita infirmar
uma proposicao universal... E ainda mais, a dialetica da ao fil6-
sofo "a capacidade de abarcar apenas com um olhar ( o o . ) as
consequencias de uma e de outra hipotese"; assim, so lhe resta
"fazer ajusta escolha entre ambas?".
Mas 0 filosofo nao joga. Ut il iza a formacao que a dialetica
lhe da para buscar a verdade. No uso Iudico da dialetica, cada
urn leva em conta os objetivos reais ou provaveis do adversario
que tern diante de si. No usa filos6fico, tem-se em mente todas
as objecoes possiveis , ainda que estas jamais tenham sido for-
muladas nem sejam formulaveis, 0 filosofo esta diante de um
adversaho que renasce a cada instante, pois esta sempre insa-
tisfeito: ele mesmo.
Resta a funcao homiletica da dialetica:
A dialetica e, pois, urnjogo cujo objetivo consis te em pro-
var ou refutar urna tese respeitando-se as regras do raciocinio. 0
papel do inquiridor "e concluir a discussao de modo que 0 de-
fensor sus tente os mais extravagantes paradoxos, como conse-
qiiencias necessarias de sua tese" (159 b). Ao outro, em contra-
par tida, cabe defender sua tese por todos os meios. 0 essencial
e que cada urn mostre que raciocinou bern e utilizou todos os
argumentos a seu alcance. E esse "mostrar" ja nao e simples
aparencia; e 0 sofista que raciocina na aparencia, exatamente
como 0 trapaceiro, que faz de conta que es ta jogando. Quanto adialetica, e uma argumentacao que vai da aparencia a aparencia,mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E 0 que
reforca a inda mais a ideia de jogo e a af irmacao de Aristoteles:
quando um dos dois adversar ies raciocina mal, a discussao vira
chicana, e 0 faltoso "impede 0 born cumprimento da obra co-
mum" (161 a); como em todo jogo, cada parceiro persegue seu
proprio objetivo, porem ambos perseguem urn objetivo comurn,
que e chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas
ambos querem levar a born termo "a obra comurn".
Finalmente, qual e 0prove i to do jogo dialetico? Aristote-
les por certo responderia - e todos os gregos com ele - que esse
jogo tern fim em si mesmo. Joga-se por jogar, discute-se pela
beleza e pelo prazer de uma disputa bern travada, prazer com-
par tilhado, alias , pelo publico. Entretanto, Ar istote les diz em
outro lugar que, embora esse jogo tenha fim em si mesmo,
pode-se tambem "jogar com vista a uma atividade seria"". Po-
de-se, com efeito, ignorar 0valor insubst ituivel do jogo na edu-
cacao? Pode-se ignorar 0aspecto dejogo intelectual que se en-
contra tanto na matematica quanta na filosofia?
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34 INTRODUC;AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 35
Sua utilidade no contato com os outros e explicada pelo
fato de que, depois de prepararmos 0 inventario das opinioes da
maioria (ton pollan), nao estaremos falando a ela a partir de
pressupostos que lhe sejam estranhos, mas a partir de pressupos-
tos que lhe sao proprios, sempre que a quisermos persuadir ...
(1,2,101 a)
Dessa forma, ela passa a ser antistrofos da dialetica, ou seja,
esta no mesmo plano.
o que elas tem em comum
Retorica e dialetica
No mesmo plano: vejamos agora como Aristoteles prova
isso. Seus argumentos podem ser resumidos em cinco".
Primeiramente, a ret6rica e a dialetica sao capazes tanto
de provar uma tese quanto 0 seu contrario; 0 que nao significa
que as duas teses sejam necessariamente equivalentes, pois
entao se cairia na sofis tica; quer dizer que se pode argumentar
mesmo em favor de uma tese fraca.
Em segundo lugar, a ret6rica e a dialetica sao universais,
no sentido de nao serem ciencias , de nao implicarem nenhuma
especial izacao e de possibil itarem a discussao de tudo 0que for
controverso.
Em terceiro lugar, ainda que ambas sejam praticadas por
habito ou mesmo por acaso, podem tambem ser ensinadas me-
todicamente, e sao nesse caso "tecnicas".
Em quarto lugar, ao contrario da sofistica, ambas sao ca-
pazes de fazer a distincao entre 0 verdadeiro e 0 aparente: a
dialetica, entre 0 verdadeiro si logismo e 0 sofisma: a ret6rica ,entre 0 realmente persuasivo e 0 logro.
Em quinto lugar, elas utilizam dois tipos identicos de ar-
gumentacao: inducao e deducao, que se situam entre a demons-
tracao (apodeixis) propria da ciencia e a eristica enganadora
dos sofistas.
Esses argumentos sao tao fortes que dialetica e retorica
chegam a parecer dois termos que, no fundo, designam a mes-
rna disciplina! Mas nao e nada disso. A retorica e apenas uma
"aplicacao", entre outras, da dialetica; e uma de suas quatro
funcoes. Inversamente, a ret6rica utiliza a dialetica como urn
meio,fntre outros, de persuadir. Mais ou menos como 0medi-
co utiliza as ciencias biologicas, mas tambem a psicologia, a
psicanalise, etc.
E preciso deixar claro que esta passagem e precisamente
aquela it qual Aristoteles remete no segundo argumento de
nosso texto de Retorica. "Contatos com os outros": essa e exa-
tamente a area da retorica, e ai temos uma ideia dos services
que a dialetica pode prestar-lhe.
Qual e entao a relacao entre dialetica e ret6rica? A estapergunta Aristoteles responde desde a prime ira frase de seu
livro: a retorica e antistrofos da dialetica" (Retorica, I, 1354 a).
o problema e que nao se conhece bern 0sentido de antistrofos.
Os tradutores ut il izam ora "analogo", ora "contrapart ida". E-
o que nao simplifica as coisas - a explicacao do proprio Arist6-
teles e urn tanto confusa. Nesse primeiro capitulo, ele escreve
que a ret6rica e 0 "rebento" da dialet ica , isto e, sua aplicacao,
mais ou menos como a medicina e a aplicacao da biologia. Mas
depois ele a qualifica como uma "parte" da dialetica. Diz tam-
bern que ela the e "semelhante" (omoion), portanto que a rela-
«ao das duas seria de analogia. Antistrofos: e macante urn l ivrocomecar com termo tao obscuro!
Na nossa opiniao, esse termo deve ser visto como uma
provocacao . .. Isto porque Aristoteles argumenta quase sem-
pre contra Platao. Como se sabe, este ultimo desprezava a re-
t6rica e exaltava a dialetica, na qual via 0 metodo por exce-
lencia da fi losofia , unico que permitia alcancar 0 absoluto, 0
"aipotetico". Aristoteles inicia, pois, 0 seu livro com urn ges-
to de desafio a Platao, Faz a dialetica descer do ceu para a ter-
ra e, inversamente, reabilita a retorica, atribuindo-lhe urn pa-
pel mais modesto do que the atribuiam os antigos retores.
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36 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 37
Dialetica, parte argumentativa da retorica Se nao e justo encolerizar-se contra quem nos tenha feito
mal sem intencao, quem nos fez bern por obrigacao nao tern
direito a nenhum reconhecimento. (1397 a)
Se os deuses nao sao oniscientes, muito mais razoes ha
para que oshomens nao 0sejam. (1397 b)
E certo que a retorica utiliza a dialetica para convencer. Eparece mesmo que, no capitulo primeiro do livro I, Aristoteles
limita a retorica a tecnica da prova; diz, alias, que 0 orador so
deve ocupar-se com problemas de fato e deixar para 0 juiz apreocupacao de avalia-los. Em surna, urna retorica honesta, po-
rem inexpressiva... que nao sera exatamente a que Aristoteles
vai desenvolver em seu livro. Esta, longe de limitar-se a ser
aplicacao, vai subordinar a si a dialetica como urn meio entre
outros de convencer.
Eja no capitulo 2 0autor introduz em sua retorica elemen-
tos de persuasao que nada tern a ver com a dialetica, que so
conhece provas de ordem intelectual. A retorica, diz Aristote-
les, comporta tres tipos de provas (pisteis) como meios de per-
suadir. Os dois primeiros sao 0etos e 0patos, que estudaremos
no proximo capitulo; constituem.a parte afetiva da persuasao,o terceiro tipo de prova, 0 raciocinio, resulta do logos, consti-tuindo 0elemento propriamente dialetico da retorica".
o proprio Aristoteles diz que "esses dois metodos", a de-ducao e a inducao, "sao necessariamente identicos nas duas
tecnicas" (1356 b ). Identicos nao apenas em termos de estrutu-
ra, mas tambem de conteudo. Em retorica como em dialetica,
os dois tipos de raciocinio apoiam-se no verossimil, 0 eikos,
termo constante entre os antigos retores, que Aristoteles com-
para ao endoxon da dialetica. Fique claro que, limitada ao ve-
rossimil, a argumentacao continua racional. 0 eikos (por exem-
plo, 0 filho amar 0pai) e 0que acontece com mais freqiiencia,portanto 0 que apresenta grande probabilidade e pode ser pre-
sumido salvo prova em contrario (cf. 1357a).
Nesse sentido, a retorica assim como a dialetica opoe-se asofistica, que se compraz com 0 inverossimil e 0 "prova" por
meio de uma aparencia de raciocinio. Assim, no capitulo 24 do
livro II, Arist6teles detem-se numa analise dos sofismas que
retoma de modo mais abreviado a analise feita em Topicos. E
no capitulo 23 expoe os lugares, ou seja, os tipos de argurnen-
tos verossimeis que servem de premissas ao raciocinio ret6ri-
co. Por exemplo:
A partir dai, pode-se desculpar "X" por nao ser grato, ou
"Y" por seter enganado. Embora nao sejam irrefutaveis, esses
argurnentos sao altamente verossimeis.
Numa palavra, a dialetica constitui a parte argumentativa
da ret6rica. Cabe esclarecer, porem, que a argumentacao nlio
tern a mesma funcao, portanto 0mesmo sentido, em ambos os
casos. A dialetica e urn jogo especulativo. A retorica, por sua
vez, nao e urn jogo. E urn instrumento de acao social, e seu
dominio e 0da deliberacao (buleusis); ora, esse dominio e pre-
cisamente 0do verossimil. De fato, nao se delibera sobre 0que
e evidente - por exemplo, para saber sea neve e branca! - nemsobre 0 que e impossivel; delibera-se sobre fatos incertos, mas
que podem realizar-se, e realizar-se em parte atraves de nos.
Por exemplo, a cura deurn doente, a vitoria na guerra, etc."
Em resumo, a retorica e urna "aplicacao" da dialetica, no
sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de per-
suasao. Mas instrumento que nao a dispensa de modo algum
dos instrumentos afetivos.
Moralidade da retorica
Mas ai surge urna questao sobre a ret6rica que nao existia
com referencia a dialetica, Como vimos, esta ultima em simes-
rna e somente umjogo, cuja moralidade consiste em nao trapa-
cear, em respeitar as regras internas, sem as quais 0 jogo nao
seria mais jogo. A retorica, ao contrario, e uma disciplina seria,
pois esta ligada a acao social e contribui para decisoes graves,como cohdenar ou absolver, entrar em guerra ou viver em paz,
etc. Pode-se, pois, formular a questao de sua moralidade: sera
honesto 0metodo de debater e persuadir, ou trata-se de mani-
pulacao desonesta?
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38 INTRODUC;AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DJALETICA 39
"Se a lei nosfor favoravel"
assim ela produzira consequencias iniquas. 0 segundo e a
recusa do arbitrario, pois afinal cada urn pode invocar as leis
"nao escritas" de Antigona para revogar a lei que 0 incomoda;
e como se alguem alegasse erro medico "para passar-se por
mais habil que os medicos" (ibid.)!
S6 que a situacao nao e mais de dialetica, mas de proces-so, em que ha bens emjogo, talvez mesmo vidas. E aconselhar
o litigante a adotar, segundo a causa, ora uma tese, ora seu con-
trario, parece urn tanto amoral. Mas nao se deve esquecer que a
condicao do litigante, como alias a do politico, e de nao estar
sozinho; ele tern diante de si outro litigante, a quem compete
fazer de tudo para desmentir sua argumentacao; ambos tern por
missao preparar 0 julgamento: cada urn faz valer tudo 0 que
possa servir a sua propria causa. Quem define e 0juiz.
A ret6rica s6 e exercida em situacoes de incerteza e confli-
to, em que a verdade nao e dada e talvez jamais seja alcancada
senao sob a forma de verossimilhanca. Afinal de contas, 0de-bate entre Creonte e Antigona, entre a razao de Estado, que
exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, et ica, que se
resigna com a injustica, esse debate nao se encerrou, e pode-se
acreditar que nao nunca se encerrara,
A unica coisa que sepode fazer, na falta de urna demons-
tracao rigorosa, e confiar no debate contraditorio em que cada
orador "se esforca por detectar tudo 0 que seu caso comportade persuasivo" ...
A essa pergunta, que ainda teremos oportunidade de formu-
lar,vimos 0querespondeArist6teles: a ret6rica e urna tecnicautil,
freqiientemente indispensavel. Se seu usa as vezes e desonesto,
nao cabe censurar a tecnica, mas 0 tecnico. No entanto, lendo a
seguiros conselhos da ret6rica de Aristoteles, perguntamo-nos se
ela nao se reduz a urna manipulacao digna de sofistas. Discutire-mos esse assuntoa partir deurn exemplo concreto.
No capitulo 15do livro I, Aristoteles da conselhos ao liti-
gante sobre 0 que dizer; primeiro se a lei lhe for contraria, de-
pois se a lei lhe for favoravel. Numa primeira leitura, tem-se a
impressao de que ele legitima todas as "velhacarias de advoga-
dos". Para destacar bern isso, dispusemos os dois textos lado a
lado, invertendo ligeiramente a ordem dos argumentos, para que
cada urn corresponda a seu contra-argumento.
"Se a lei nos e desfavordvel"
- "e preciso recor rer a lei comum,com razoes mais equanimes e mais
justas";
- "dizer que a formula dojuramento
em minha alma e consciencia signi-
fica nao nos atermos estritamente aletra da lei";
- "dizer que osprincipios de eqiiida-
de sao permanentes e nunca mudam,
nem a lei comum, que e baseada na
natureza";- c itar "a lei ni io escri ta de Ant igo-
na", unico criterio dejustica das leis
escritas, alias muitas vezes ambiguas,
anacronicas ou contraditorias entre si.
- H e preciso expJicar que ninguem
[gortanto nenhuma cidade] escolhe
o bern absoluto, mas sim seu proprio
bern";
- "dizer que a formula em minha al-
ma e consciencia nao tern por objeti-
vo obter uma sentenca contraria alei, mas escusar 0 juiz de perjurio,
caso ele tivesse ignorado 0sentido
real da lei";
- "dizer que nao M diferenca entre
nao ter lei e nso recorrer aquelas que
temos!"
Conclusiio: Aristoteles enos- "dizer que querer ser mais sabio
que as leis e justamente 0 que proi-
bern es sas leis [nao escritas] que
costumam serelogiadas" (75 a).
Ret6rica e dialetica sao, pois, duas disciplinas diferentes,
mas que se cruzam como dois circulos em interseccao, A diale-
tica e urn jogo intelectual que, entre suas possiveis aplicacoes,
comporta a ret6rica. Esta e a tecnica do discurso persuasivo
que, ertttt outros meios de convencer, utiliza a dialetica como
instrumento intelectual. Pois bern, se os dois circulos podem
cruzar-se, e porque se situam no mesmo plano, e - indo mais
longe - porque pertencem em sentido estrito aomesmo mundo.
Note-se que 0 debate e propriamente dialetico, pois opoe
dois endoxa. 0 primeiro e a recusa do legalismo, em nome da
"eqiiidade" (epieikes), que poe ajustica acima do direito posi-
tivo e faz dojuiz urn arbitro, que pode corrigir a lei quando esta
"deixar de desempenhar sua funcao de lei" (ibid.), porque
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4 0 INTRODUc;:JO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 41
E certo que nao desempenham 0mesmo papel . "A dialeti-
ca", diz Pierre Aubenque, "refuta no real ( ... ) mas s6 demons-
tra na aparencia?". Na retorica, em que nao se sustenta uma
tese, mas se defende uma causa, em que nao se joga com ideias,
mas 0que esta emjogo no discurso e 0destino judiciario, poli-
tico ou etico dos homens, na ret6rica, e preciso levar a serio 0
"na aparencia", como verossimil que faz as vezes de uma evi-
dencia sempre inapreensivel.
Em todo caso , elas per tencem ao mesmo mundo. 0 que
significa isso?A ret6rica de Arist6teles esta bern pr6xima da ret6rica de
Is6crates em termos de conteudo. A diferenca e que em Arist6-
teles a ret6rica e uma arte situada bern abaixo da filosofia e das
ciencias exatas. Estas, "demonstrativas", atingem verdades "ne-
cessarias", que, como os teoremas, s6 podem ser 0 que sao,
possibilitando compreender e prever, A ret6rica, por sua vez,
s6 atinge 0verossimil, aquilo que acontece no mais das vezes,mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizer
que ela s6 e possivel em cer to mundo.
Para Arist6teles, existem dois mundos. Primeiro, 0mundo
divino, 0 "ceu", nao cognoscivel' pel a fe, mas, ao contrario,
pela razao demonstrativa. Es ta conhece tanto 0 divino invisi-
vel , Deus, quanta 0 divino visivel, a saber , os as tros, obje to da
astronomia matematica, vis to que seus movimentos sao neces-
sarios, portanto calculaveis e previsiveis.
Abaixo, 0mundo "sublunar", a Terra, onde existem acaso,
contingencia, imprevisibilidade, onde nunca e possivel a ciencia
perfeita, mas onde existe 0 provavel, 0 verossimil. Mundo, en-
fim, aberto it ac;:aohumana. Citemos mais uma vez Aubenque:
provavel, onde a decisao e mais ou menos justa. Mundo onde,
embora possamos "refutar no real", com uma cer teza demons-
trativa, devemos nos contentar com provas mais ou menos con-
vincentes, com opcoes mais ou menos razoaveis.
Esse mundo ja nao e nosso, dirac. Nao mesmo, porem vai
continuar sendo ainda enquanto nao tivermos chegado it cien-cia total. Ai en tao e 0homem que ja nao sera.
Quadro comparativo
Campo para
Alvo Modalidade Aristoteles Campo para nos
Demonstracao: Eu, nos Necessaria L o gi ca , c ie nc ia s L o gi ca , c ie nc ia s
saber exatas, exatas
metafisica e naturais
Dialetica: Tu Provavel Universal, Ciencias
jogo, (endoxon) principios humanas,
exercicio primeiros filosofia,
Ret6rica:
teologia
V6s Verossimil Judiciario, Os mesmos, mais
convencer (eikos) politico, pregacao,
urn publico epidictico propaganda,
publicidade
Sofistica: Impessoal, Falsa-aparencia Ilusao Idem
dominar eles
pelo logro
Num mundo perfeitamente transparente a ciencia, isto e ,onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do
que e , niiohaveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, paraa a~iiohumana".
Notas. - Para comecar, a distribuicao nao e mais identica
it de Arist6te les . A metaf isica passou para segundo plano, en-
quanto as ciencias da materia tomaram-se demonstrativas, e
referem-se ao necessar io ( fisica, quimica, etc.) . A natureza e 0
campo da sofistica nao mudaram, ainda que 0 sofista ja nao
se confesse como tal; esse e 0 campo em que se pode tomar a
"aparencia" de razao pela razao: na verdade, todos os cam-
pos! Note-se, por fim, que a sofistica, ao fingir que se dirige a
"ti", ou a "v6s" , manipula na realidade 0 "eles" ou 0 "alguem";
nao e exasamente a "ti" que 0 sofista se dirige, mesmo que
finja fazer isso, mas sim it coisa em ti.
Quanto a ret6rica, seu campo ampliou-se muito a partir
de Arist6teles, 0 que provaria a fecundidade de seu sis tema.
Nenhum lugar tambem para a re t6r ica , que e uma ar te . Mas
vivemos em urn mundo que nao e 0 da pura ciencia; em urn
mundo que nao e umjogo, mas que nem p()r isso esta submeti-
do ao cego acaso. Mundo onde a previsao e mais ou menos
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Capitulo III
o sistema retorico
Aristoteles, portanto, reabilitou a retorica ao integra-la
numa visao sistematica do mundo, onde ela ocupa seu lugar,
sem ocupar, como entre os sofistas, 0 lugar todo. Mais ainda,
Aristoteles transformou a propria ret6rica num sistema, que
seus sucessores completarao, mas semmodificar.
Passaremos, pois, ao estudo desse sistema ret6rico, nao
sem perguntar, no que se refere a cada urn deles, qual a sua re-lacao com 0homem do seculo xx.
As quatropartes da retorica
o sistema comeca com uma classificacao: a ret6rica e de-
composta em quatro partes, que representam as quatro fases
pelas quais passa quem compoe urn discurso, ou pelas quais
acredita-se que passe. Na verdade, essas partes sao principal-
mente os grandes capitulos dos tratados de ret6rica.
Quais sao elas? Para nao criar confusao, manteremos seus
nomes tradicionais, do latim.
A primeira e a invencao theuresis, em grego), a busca que
empreende 0orador de todos os argumentos e de outros meios
de persuasao relativos ao tema de seu discurso.
A segunda e a disposicao (taxis), ou seja, a ordenacao des-
ses argttIilentos, donde resultara a organizacao intema do dis-
curso, seu plano.
A terceira e a elocucao (texis), que nao diz respeito a pala-vra oral, mas a redacao escrita do discurso, ao estilo. E ai que
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44 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 45
entram as famosas figuras de estilo, as quais alguns, nos anos
60, reduziam a retorica!
A quarta e a a<;ao(hypocrisis), ou seja, a profericao efetiva
do discurso, com tudo 0 que ele pode implicar em termos de
efeitos de voz, mimicas e gestos. Na epoca romana, a acao sera
acrescentada a memoria.Essa classificacao pode parecer bern escolar: na verdade
nao e bern assim que as coisas acontecem quando se prepara
urn discurso. Pode-se ir de urna tentativa de a<;ao- proferir al-
gumas frases - para buscar em seguida argurnentos; escrever
antes de encontrar urn plano, etc. Mas pouco importa a ordem
cronologica, As quatro partes na realidade sao as quatro "tare-
fas" (erga) que devem ser curnpridas pelo orador. Se este dei-
xar de cumprir alguma delas, seu discurso seravazio, ou desor-
denado, ou mal escrito, ou inaudivel.
Portanto, urn advogado que prepare urna defesa, urn estu-
dante que prepare uma exposicao, urn publicitario que prepareurna campanha, todos deverao, se nao passarem sucessivamen-
te por essas quatro fases, curnprir pelo menos as tarefas que
cada urna delas representa: compreender 0 assunto e reunir to-
dos os argumentos que possam servir (invencao); po-los em
ordem (disposicao); redigir 0 discnrso 0melhor possivel (elo-
cucao); finalmente, exercitar-se proferindo-o (acao).
tres? Aristoteles responde: "porque ha tres especies de audito-
rio" (Retorica, 1358 a); e a necessidade de adaptar-se a elesque confere tracos especificos a cada genero: conforme as p.es-
soas a quem nos dirigimos, nao falaremos da mesma maneira,
o discurso judiciario tern como auditorio 0 tribunal; 0 delibe-
rativo, a Assembleia (Senado); 0 epidictico, espectadores,
todos os que assistem a discursos de aparato, como panegiri-
cos, oracoes funebres ou outras.
Os atos dos tres discursos nao sao osmesmos. 0judiciario
acusa (acusacao) ou defende (defesa). 0deliberativo aconse-
lha ou desaconselha em todas as questoes referentes a cidade:
paz ou guerra, defesa, impostos, orcamento, importa~o~s, le-
gislacao (cf. 1359 b). 0 epidictico censura e, na maiona das
vezes, louva ora urn homem ou uma categoria de homens, co-
mo os mortos na guerra, ora urna cidade, ora seres lendarios,
como Helena...'Aristoteles, que nunca esquece que e filosofo, mostra que
os tres generos tambem se distinguem pelo tempo. 0judiciario
refere-se ao passado,pois sao fatos passados que curnpre
esclarecer, qualificar e julgar. 0deliberativo refere-se ao futu-
ro, pois inspira decisoes e projetos. Finalmente, 0 epidictico
refere-se ao presente, pois 0orador propoe-se a admiracao dos
espectadores, ainda que extraia argumentos do passado e do
futuro.
o principal e que os valores que servem de normas a esses
discursos nao sao os mesmos. Enquanto 0judiciario diz respei-
to aojusto e ao injusto, 0 deliberativo diz respeito ao util e ao
nocivo. UtiI a quem? A cidade, e a nada mais; e 0 interesse co-letivo, nacional, pode ser perfeitamente injusto; assim, 0 ora-dor politico pouco esta preocupado em saber
Inven~ao
Antes de empreender urn discurso, e preciso perguntar-sesobre 0que ele deve versar, portanto sobre 0 tipo de discurso, 0
genero queconvem ao assunto. Veremos que essa questao do ge-
nero tambem diz respeito a interpretacao do discurso. se nao ha nenhuma injustica em reduzir povos vizinhos a escra-vidao, mesmo que eles nada tenham feito demal. (1358 b)
as Ires generos do discurso Hoje, UfiaIllOS luvas de pelica.. . Mas sera que encontramos
muitos politicos para propor medidas justas, porem nocivas a
nacao? Quanto ao epidictico, os valores que 0 inspiram sao 0
nobre e ° viI (kalon, aiskhron), valores que nada tern a ver comSegundo os antigos, os generos oratorios sao tres: judicia-
rio, deliberativo (ou politico) e epidictico. Por que exatamente
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46 INTRODU(:AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 47
o interesse coletivo, e que nao se confundem tampouco com 0
"justo", pelo menos no sentido de legal.
Aristoteles quase nao se detem nos estilos respectivos
dos tres generos; esclarece, todavia, que 0 epidictico e "0mais escrito dos tres" (1413 b, 1414 a). Em compensacao,
mostra durante longo tempo que 0 tipo de argumentacao dostres nao e 0mesmo. 0 judiciario, que dispoe de leis e se diri-ge a urn auditorio especializado, utiliza de preferencia racio-
cinios silogisticos (entimemas), proprios a esclarecer a causa
dos atos. 0 deliberativo, dirigindo-se a urn publico mais mo-
vel e menos culto, prefere argumentar pelo exemplo, que,
alias, perrnite conjecturar 0 futuro a partir dos fatos passa-
dos: Dionisio pede uma guarda; ora, todos os futuros tiranos
conhecidos da historia pediram uma guarda; logo, Dionisio
vai tomar-se tirano (1357 b). Quanto ao epidictico, recorre
sobretudo it amplificacao, pois os fatos sao conhecidos pelo
publico, e eumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando suaimportancia e sua nobreza (1368 a). Hoje em dia mesmo,
quando se faz 0 elogio de urn morto, parte-se daquilo que to-
dos conhecem, para exaltar seus meritos e calar 0resto.
Alias, mesmo que 0epidictico e 0deliberativo tenham igual
conteudo, assumirao modalidades diferentes. Quando 0delibe-
rativo aconselha: "/
sentimento civico e patriotico. Pronunciado, alem do mais,
durante jogos entre cidades (por exemplo, Olimpiada), refor-
cou nos gregos 0sentimento de pertencer a uma mesma eultura
que estava acima de todas as guerras intestinas (ef. 6 Gregos!
de Gorgias, 1414 b). Em suma, 0 epidictico nao dita uma esco-
lha, mas orienta escolhas futuras.Significa dizer que ele e essencialmente pedag6gico. No
vastissimo terreno que abre, os sucessores de Arist6teles in-
cluirao a hist6ria, essa "mem6ria dos grandes feitos do passa-
do". Mais tarde, na era crista, 0genero epidictico sera enrique-
cido com toda a pregacao religiosa.
o fato e que a teoria dos tres generos hoje e bem mais res-
tritiva; ha tantos outros tipos de discursos persuasivos alem des-
ses tres! Mas 0merito de Arist6teles foi mostrar que os discur-
sos podem ser classificados segundo 0audit6rio e segundo a fi-
nalidade. Voltaremos a essa questao no capitulo VII.
Nao nos devemos gabar daquilo que devemos it sorte,
Os tres generos do discurso
Auditorio Tempo Ato Va/ores Argumento-tipo
Judiciario Juizes Passado Acusar Justo Entimema
(fatos por Defender Injusto (dedutivo)
julgar)
Deliberativo Assembleia Futuro Aconselhar Util Exemplo
Desaconselh ar Nocivo (induti vo)
Epidictico Espectador Presente Louvar Nobre Amplificacao
Censurar Viiepidictico descreve:
Ele nao se gabou daquilo que devia it sorte. (1368 a)
Os tre s tip os d e a rg um en to : e to s, p alo s, lo go s
Pergunta: sera mesmo que 0genero epidictico faz parte da
ret6rica, admitindo-se que esta s6 diz respeito aos diseursos
persuasivos?
De fato, como mostraram tao bern Perelman- Tyteka (TA,
§§ 11 e 12), 0 epidictico e persuasivo, mas a longo prazo, aoversar sobre problemas que nao exigem decisoes imediatas.
Usando 0 exemplo para fazer 0elogio de certo her6i, reforca 0
Determinado 0 genero do discurso, a primeira tarefa do
orador e encontrar argurnentos.AriS\6teles define tres tipos de argumentos, no sentido ge-
neralissimo de instrumentos de persuadir (pisteis): etos e patos,
que sao de ordem afetiva, e logos, que e racional.
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48 INTRODu(;AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 49
o etos e 0 carater que 0orador deve assumir para inspirarconfianca no auditorio, pois, sejam quais forem seus argumen-
tos logicos, eles nada obtem sem essa confianca:
Por isso e que sua eqiiidade e praticamente a mais eficaz
das provas. (1356 a)
etos e 0patos como dois tipos de afetividade: a primeira calma,
comedida, duradoura, submetida ao controle mental; a segunda
subita, violenta, irreprimivel, portanto irresponsavel. Quinti-
liano, como a retorica ulterior, distingue bern dois tipos de afe-
tividade, mas sem definir nitidamente que urna e do orador e a
outra do auditorio.Em todo caso, a retorica criou urna verdadeira psicologia,
de que tirara proveito toda a literatura, em particular 0 teatro.
Toda a analise dos sentimentos e das paixoes derivada retorica.
Se 0 etos diz respeito ao orador e 0 patos ao auditorio, 0
logos (Aristoteles nao emprega esse termo, que utilizamos para
simplificar) diz respeito Iiargumentacao propriamente dita do
discurso (cf. 1356 a). E 0 aspecto dialetico da retorica, que
Aristoteles retoma inteiramente dos Topicos.
Como em Topicos, distingue dois tipos de argumentos, 0
entimema, ou silogismo baseado em premissas provaveis, que
e dedutivo, e 0 exemplo, que a partir dos fatos passados con-clui pelos futuros, e que e indutivo. As premissas provaveisdos entimemas sao: ou verossimilhancas (eikota), como por
exemplo que urn filho ama 0 pai, ou indicios seguros, como
por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indi-
cios simples, como por exemplo que a presenca de cinza indica
que houve fogo. Voltaremos a esses diversos argurnentos no
capitulo VIII.
Como entao dispor favoravelmente 0auditorio? E verdadeque a resposta depende do proprio auditorio, cujas expectativas
variam segundo a idade, a competencia, 0nivel social, etc. 0
orador, portanto, nao tera 0mesmo etos se estiver falando com
velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em
todo caso, ele deve preencher as condicoes minimas de credibi-
lidade, mostrar-se sensato, sincero e simpatico. Sensato: capaz
de dar conselhos razoaveis e pertinentes. Sincero: nao dissimu-
lar 0 que pensa nem 0 que sabe. Simpatico: disposto a ajudar
seu auditorio (cf. II, 1, 1377b e tambem 1366a).Note-se que etos e urn termo moral, "etico", e que e defi-
nido como 0 carater moral que 0 orador deve parecer ter,
mesmo que nao 0 tenha deveras. 0 fato de alguem parecer sin-
cero, sensato e simpatico, sem 0 ser, e moralmente constrange-dor; no entanto, ser tudo isso sem saber parecer nao e menos
constrangedor, pois assim as melhores causas estao fadadas ao
fracasso.
o patos e 0 conjunto de emocoes, paixoes e sentimentos
que 0 orador deve susci tar no auditorio com seu discurso.
Portanto, ele precisa de psicologia, e Aristoteles dedica boa
metade de seu livro II Iipsicologia das diversas paixoes - cole-ra, medo, piedade, etc. - e dos diversos caracteres (dos ouvin-
tes), segundo a idade e a condicao social. Aqui, 0 etosja nao eo carater (moral) que 0orador deve assumir, mas 0carater (psi-
cologico) dos diferentes publicos, aos quais 0 orador deve
adaptar-se.
No entanto, ha nisso eerta ambigiiidade de que sofrera a
retorica ulterior. Quintiliano (VI, 2, 12 s.) dedica tambem urn
longo estudo ao etos e ao patos, termos que ele mantem em
grego, alegando (eomo nos) que sao intraduziveis. Define 0
Provas extrinsecas e pro vas intrinsecas
Na realidade, 0 orador dispoe de dois tipos de provas: as
atekhnai, ou seja, extra-retoricas, e as entekhnai, ou seja intra-
retoricas. Vamos denomina-las, respeetivamente, extrinsecas e
intrinsecas (no seculo XVII, eram traduzidas por naturais e ar-
tificiais).
Asprovas extrinsecas sao as apresentadas antes da inven-
cao: testemunhas, confissoes, leis, eontratos, etc. Do mesmo
modo, num discurso epidietico, tudo 0que se sabe da persona-
gem eujo elogio se faz.
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50 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 51
As provas intrinsecas sao as criadas pelo orador; depen-
dem, pois, de seu metodo e de seu talento pessoal, sao sua ma-
neira propria de impor seu relatorio. Vimos isso no capitulo
anterior: 0 texto-lei , prova extr inseca, pode ser objeto de urna
argumentacao intrinseca contradi toria, conforme essa lei seja
favoravel ou desfavoravel ao orador (cf. supra, p. 50); do mes-mo modo, quem nao tiver testemunhas dira que os testemunhos
sao subjet ivos, muitas vezes comprados, e que e melhor julgarsegundo as verossimilhancas (cf. 1376 a). 0orador transforma
assim sua desvantagem em vantagem.
Nurn elogio funebre, as provas extrinsecas sao aquilo que
se sabe do defunto, que nem sempre e bonito; 0 argumento in-
trinseco e a amplif icacao, que tira partido das provas extr inse-
cas:
zir " lugar" por argurnento. Mas lembremos que esse termo tern
pelo menos tres sentidos, que exporemos por niveis de tecnici-
dade.
1) No sentido mais antigo e mais simples, 0 lugar e urn ar-gumento pronto que 0defensor pode colocar em determinado
momenta de seu discurso, muitas vezes depois de 0 ter apren-dido de cor. Numa forma menos rigida, esses lugares sao en-
contrados em toda a retorica antiga. Assim, no discurso judi-
ciario, os lugares da peroracao que conc1uem a acusacao:
Se deixardes impune 0 seu crime, haven! multidoes de imi-
tadores. Muitos esperam com impaciencia 0 vosso veredicto.
(Chaignet, p. 132,e Navarre, p. 305)
transforrnar 0 impetuoso em franco, 0 arrogante em respeitavel,
o temerario em bravo, 0prodigo em liberal. (1367 b)
Como lugares de amplificacao, servem para persuadir os
juizes de que a causa ultrapassa a pessoa do reu, que ela com-
promete 0 futuro.
Urn lugar das defesas modernas e 0da infdncia injeliz, quepermite charnar it baila circunstancias atenuantes. No seculo
XVII, servia, ao contrario, it acusacao, pois via-se na infancia
infel iz do acusado indicios de que ele sempre fora pervert ido, e
que so poderia reincidir; essa nao era urna prova de que ele era
escusavel, mas ao contrario irrecuperavel (cf. A. Kibedi-Varga,
1970, p. 145).
No primeiro sentido, 0 lugar e , po is, urn argumento-tipo,cujo a1cance varia segundo as culturas. Sao encontrados no dis-
curso epidictico: os melhores sao os que partem ...; tambem se-
rao vistos no discurso publicitario.
2) Em sentido mais tecnico, 0 lugar ja nao e urn argumen-to-tipo, e urn tipo de argumento, urn esquema que pode ganhar
os conteudos mais diversos. Por exemplo, 0 lugar do mais e do
menos:
Moliere retomou esse procedimento nurna cena do Misan-
tropo, descrevendo a retorica do arnor, que transforma os defei-
tos da amada em "perfeicoes":
A magra 0que tern e altura e liberdade;A gorda ternporte cheio demajestade; (...)
A altiva tern a alma digna duma coroa;
A patife e perspicaz, e a tola e tao boa. (II,5)/1
/
Logro? Sabe-se la: quem disse, e com que direito, que ele
era temerario e nada mais, que ela era tola e nada mais? Fala-sede objetividade, mas essa nao e tantas vezes a mascara da
malevolencia? Em todo caso, e dificil conhecer alguem que,
nesse dominio das relacoes humanas, possa ser realmente obje-
tivo.
Os lugares (t'topoi ")
Seos deuses nao sao oniscientes, muito menos os homens.
EleBate nos vizinhos, pois bate no pai. (Ret6rica, II, 1397b)
Como encontrar os argumentos? Por lugares. Esse termo etao corrente quanta obscuro. Na duvida, pode-se sempre tradu-
Ou, de modo posi tivo, todos os lugares do tipo:
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52 INTRODUf:;JO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 53
Quem pode 0mais pode 0menos. (1392 a, b)
Considera-se que ninguem ignora a lei.
Uma lei nao pode serretroativa.
Vejamos urn exemplo simples: urn estudante que precisa
fazer urna dissertacao nao sabe ainda se vai adotar urn plano
por perguntas ou urn plano por tese-antitese-sintese; 0 proprio
fato de interrogar-se assim so e possivel atraves de urn lugar: a
questao dos tipos de planos!
Esse terceiro sentido da palavra lugar e muito notado numlugar proprio do genero judiciario, 0do estado da causa (stasis,
status). Suponhamos que alguem e processado por urn crime: a
acusacao e a defesa vao propor-se as mesmas perguntas, que a
antiga retorica sintetiza em quatro:
1.Estado de conjectura: ele matou realmente?
2. Estado de definicao: trata-se de crime premeditado, nao
premeditado, de homicidio involuntario?
3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido 0
crime voluntario, quais sao as circunstancias que podem acusar
ou escusar 0reu: motivo patriotico, religioso?
4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se 0 tribu-nal e realmente competente , se a instrucao foi suficiente, etc .'
Naturalmente, 0 lugar no sentido de questao tambem pode
ser urn lugar-comum, no sentido de que, sobre qualquer espe-
cie de assunto, podemos interrogar sobre 0 tipo de ser, os tipos
de causas, etc. Mas, no terceiro senti do, 0 lugar e sempre urna
questao que permite encontrar argurnentos que sirvam a tese,inventar as premissas de urna conclusao dada.
Esta exposicao, que desejamos tao clara quanta possivel ,
ficara incompleta se nao considerarmos 0que se tomou 0 lugar
depois de Arist6teles: termo abrangente que se aplica aos dados
mais heterocli tos. Assim, na ret6rica medieval, teremos topoi,especies de trechos esperados e ate obrigatorios, como 0 lugar
da modestia afetada; 0 lugar do puer senilis, da crianca ajuiza-
da como urn velho; 0 lugar da paragem agradavel, da paisagem
paradisiac a; 0 lugar dos impossiveis:
Altamente verossimil, esse lugar do mais e do menos esta
longe de ser evidente, porem; como toda verossimilhanca,
pode ser contestado. Seria incontestavel se aplicado a realida-
des homogeneas, como por exemplo 0dinheiro: quem pode darmil francos pode dar cern; mas isso nao despertar ia interesse. Einteressante quando se aplica a dados heterogeneos, como por
exemplo aos saberes e aos poderes; mas ai deixa de ser eviden-
teo Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de
quem sabe mais; 0mesmo para 0poder: urna enfermeira pode
coisas que urn medico nao pode, etc. Quem pode 0mais nao
pode necessariamente 0menos.
Classicamente, da-se a esses lugares 0 nome de "luga-
res-comuns", pois se aplicam a toda especie de argumenta-
cao; no caso atual nao passa de opiniao banal expressa de mo-
do estereotipado, enquanto 0 lugar comum classico e urn es-quema de argumento que se aplica aos dados mais diversos.
Tecnicamente, opoe-se ao lugar pr6prio, tipo de argumento
particular a urn genero de discurso. Assim os lugares judi-
ciarios:
Note-se, alias, que 0 segundo depende do primeiro; de fato,
uma lei retroativa aplica-se a pessoas que nao poderiam conhe-
ce-la, pois ela nao existia no momento em que essas pessoasagiraml
3) No sentido mais tecnico, 0 dos Topicos, 0 lugar nao eurn argumento-t ipo nem urn tipo de argumento, mas uma ques-
tao t ipica que possibil ita encontrar argurnentos e contra-argu-
mentos:
os lugares (...) sao como etiquetas dos argumentos, sob as quais
vamos buscar 0 que ha para dizer num ou noutro sentido, (Ci-
cero, Orador, 46)
o fo~o queima dentro do gelo,
o sorficou negro. (Theophile de Viau)
Lugar que se encontra nos panfletos: teremos visto tudo!
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54 INTRODUC;AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 55
Existem igualmente lugares metafisicos, lugares teol6gi-
cos (a autoridade da Escritura e dos concilios) , lugares risi-• 3
velS...
Finalmente, lugar e tudo 0 que possibilita ou facilita a in-
vencao, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invencao
deixa de se-lo a medida que setorna facil!
A disposicao, em si, e urn lugar, ou seja, urn plano-tipo ao
qual se recorre para construir 0 discurso. A ret6rica classica
quase nao fala da disposicao do discurso judiciario. Em que
pode ela nos interessar? Unicamente pela(s) func;ao(c;oes)de-
sempenhada(s) por cada uma de suas partes.
Os autores propuseram diversos planos-tipo, que iam deduas a sete partes. Ficaremos com 0 mais classico, em quatro
partes: ex6rdio, narracao, confirmacao e peroracao.Observacoes sobre a invenciio
Na realidade, a propria nocao de invencao pode parecer-
nos muito ambigua. De fato, ela se situa entre dois p610s opos-
tos. Por urn lado, e 0 "inventario", a deteccao pelo orador detodos os argurnentos ou procedimentos retoricos disponiveis.
Por outro, e a "invencao" no sentido moderno, a criacao de ar-gumentos e de instrumentos de prova; ate 0 etos, explica Aristo-
teles, a confianca inspirada pelo orador, deve ser "obra de seudiscurso" (1356 a); em outras palavras, 0 importante nao e 0
carater que ele ja tern, e que 0 audit6rio conhece, mas e 0 cara-ter que ele cria.
Invencao inventario, que hoje se poderia deixar a cargo de
urn computador, ou invencao criacao? Na realidade, talvez se-
jamos nos que criamos urna oposicao onde os antigos nao a
viam. Nao imaginavam criacao ex nihilo, e achavam que qual-
quer invencao e feita, por urn lado, a partir de materiais dados(lugares extrinsecos) e por outro de regras mais ou menos estri-
tas (lugares intrinsecos); mas achavam tambem que com ela a
criatividade do orador, longe de desvanecer-se, afirma-se aindamais. Originalidade, sim, mas como fruto da arte, ou seja, de
urna pratica e de urn ensino.
E xo rd ia ( rp ro oi mi on " , p ro em io )
Disposi~io ("taxis")
Exordio e a parte que inicia 0 discurso, e sua funcao e es-
sencialmente fatica: tornar 0 auditorio d6cil, atento e benevo-
lente.Docil significa em situacao de aprender e compreender; por
isso, e preciso fazer urna exposicao clara e breve da questao que
vai ser tratada, ou ainda datese que sevai tentar provar.
Atento: nesse ponto os antigos multiplicavam procedi-
mentos - dizer que nunca se ouviu nem viu nada de tao espan-
toso ou de tao grave -, procedimentos infladores, pois osjuizes
deviam ficar bern cansados com eles! Alias - observa Aristote-
les -, 0 exordio e 0 momento do discurso que exige menos
atencao; nas partes seguintes, ao contrario, a atencao tende a
relaxar-se, sendo preciso renova-la.
Benevolente: e ai que 0 etos assume toda a sua impor-
tancia. Urn dos lugares mais correntes consistia em escusar-se
da propria inexperiencia e em louvar 0 talento do adversario
(cf. Navarre,pp. 223 s.)
A ret6rica do exordio se aplica aos outros generos de dis-
curso? Aristoteles afirma que 0 deliberativo quase nao precisa
do exordio, pois 0 audit6rio ja sabe do que se trata. Quanto ao
epidicti$o, 0 ex6rdio consiste em fazer 0 audit6rio sentir que
esta p~s;oalmente implicado no que se vai dizer, em inclui-lo
no fato (cf.Retorica, 1415 b).A retorica do ex6rdio consiste as vezes em suprimi-lo,
em ir direto ao que interessa. Assim, 0 celebre ex abrupto
Para definir com outros termos, a ret6rica apresenta-se
como urn codigo a service da criatividade. E esse duplo aspec-
to se encontra em suas outras partes, mais propriamente esteti-
cas e literarias que a invencao.
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56 INTRODUf;AO A RET6RICAo SISTEMA RET6RICO 57
de Cicero: "Ate quando, Catilina, vais abusar da nossa pa-
ciencia?"
Hoje em dia, completaremos essa teoria do ex6rdio com
duas consideracoes. Primeiro, a fala improvisada, sobretudo
em lugar publico, quando a intervencao nao e programada: e
preciso toda uma arte para fazer-se admitir, ou seja, ouvir. De-pois, 0 discurso escrito: urn livro deve captar a benevolencia ja
na primeira pagina; se deve, como?
E evidente que a maneira de apresentar os fatos ja e, em si,
urn argumento.
o que acontece com a narracao nos outros dois generos?
No deliberativo - diz Arist6teles - ela quase nao tern razao de
ser , pois es~e discurso trata do futuro; no maximo, pode forne-
cer exemplos. No epidict ico, ao contrario, e tao importante queha interesse em dividi-Ia segundo as questoes: os fatos que ilus-
tram a coragem, os que ilustram a generosidade, etc.
Na Idade Media vai constituir-se uma nova ret6rica da
narracao; desliga-se do genero judiciario, mas insere-se na da
pregacao, com os exempla, hist6rias geralmente fict icias que
ilustram 0tema do sermao, Hoje em dia a publicidade e, princi-
palmente, a propaganda utilizam narracoes breves, tambem a
titulo de exemplos.
Narraciio ("diegesis ")
A narracao e a exposicao dos fatos referentes a causa, ex-
posicao aparentemente objet iva, mas sempre orientada segun-
do as necessidades da acusacao ou da defesa. 0 fato e que, se
na o for objetiva, devera parecer. E e na narracao que 0 logos
supera 0 etos e 0 patos. Para ser eficaz, deve ter tres qualida-des: clareza, brevidade e credibilidade.
Como ser claro? Ao mesmo tempo pelos termos emprega-
dos e pela organizacao do texto, de preferencia cronol6gica,
mas recorrendo as vezes aos retornos, aosflash-backs.
Como ser breve? Eliminando tudo 0 que seja inutil, todos
os fatos anteriores ao caso, todas as circunstancias que nao
esclarecam nada, mostrando que no fundo tudo leva aquilo . ..
Como ser crivel? Enunciando 0 fato com suas causas,
sobretudo se 0 fato na o for verossimil; mostrando que os atos
se afinam com 0 carater de seu autor, com tudo 0 que se sabe
dele:)
Confirmaciio ("pis tis ")
Conselhos especiais para narracoes falsas: cuidar para que
tudo 0que se inventa seja possivel e nao seja incompativel nem
com a pessoa, nem com 0 lugar, nem com 0 tempo; vincular, se
cabivel, a ficcao a algo de verdadeiro; evitar cautelosamente
qualquer contradicao (...) e niioforjar nada que possa ser refuta-
doporuma testemunha. (0. Navarre, pp. 248-249)
Em seguida vern uma parte ni tidamente mais longa, a con-
firmacao, ou seja, 0 conjunto de provas, seguido por uma refu-
tacao (confutatio), que destr6i os argumentos adversaries.
Com a invencao, vimos os dois grandes tipos de argumen-
tos, 0 exemplo e 0 entimema. Convem precisar que a amplifi -
cacao, pr6pria do genero epidict ico, pode tambem servir a con-
firmacao judiciaria; como dira Cicero, ela permite amp liar 0
debate, remontar da "causa" a "questao" (thesis) que the esta
subjacente; assim, alem dessa traicao, propor 0 problema da
confianca, da patria, etc. (cf . Do orador, 46).Tempo forte do logos, a confirmacao recorre, porem, ao
patos, despertando piedade ou indignacao.
Note-se, com O. Navarre, que a confirmacao nem sempre
esta separada da narracao. Nos oradores classic os do seculo.
IV (Iseu, Is6crates , Dem6stenes), acontece de 0discurso intei-
ro apressntar-se como uma unica narracao, em que cada se-
quencia constitui uma prova. Assim, em Eginetica, defesa de
urn herdeiro cuja heranca e contestada por uma parenta, Is6-
crates expoe os fatos passados, mostrando sucessivamente tres
Na verdade, basta ref leti r nas regras da narracao falsa para
ver que sao as mesmas da verdadeira; no primeiro caso, s6 epreciso aplica-las de maneira mais estrita.
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58 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 59
coisas: 1) 0testamento e legal; 2) e justo, e Isocrates prova is so
narrando os inumeraveis servicos prestados pelo herdeiro ao
defunto; 3) ele tern bons sentimentos, po i s respeita os legiti-
mos interesses da familia'.
Em suma, narracao e confirmacao sao duas tarefas que 0
orador deve curnprir, mas nada 0obriga a realiza-las sucessiva-mente. Quintiliano dira, alias (II, 13, 7), que impor urn plano-
tipo ao orador e tao estupido quanto impor uma estrategia- tipo
a urn general! No fundo, pouco importa em que ordem 0gene-
ral e 0 orador atingem seus objetivos, 0 importante e que os
atinjam.
Existe urna outra questao no que se refere a confirmacao:
e a da ordem dos argurnentos. Deve-se comecar pelos mais fra-
cos e acabar pelos mais fortes? Nesse caso, ha 0risco de cansar
o auditorio. Optar pela ordem inversa? Mas 0 auditorio nao
entendera bern, achara que estao sendo queimados cartuchos a
toa, esquecera a forca dos primeiros argumentos. Cicero, emDo orador (II, § 313), preconiza a ordem "homerica", que con-
siste em comecar pelos argumentos fortes, continuar com os
mais fracos e terminar com outros argumentos fortes. Mas esse
plano supoe que 0 orador tern urn mimero suficiente de argu-
mentos fortes para reparti-Ios assim.
Perelman-Tyteka (TA, p. 661) afirmam que a forca de urn
argumento e urna nocao relativa, pois urn argumento e mais ou
menos forte em funcao dos que 0precederam. Portanto, parte-
se de urn argumento cuja forca nao dependa da dos outros; ou
ainda de urn contra-argumento que refute urna objecao que
pese sobre qualquer argumento possivel, como por exemplo aafirmacao de que 0 orador e desonesto e ) venal, 0 que toma
suspeito tudo 0que ele disser. Em nossa opiniao, convem con-
testar a propria ideia da pluralidade de argumentos; cada dis-
curso so teria urn unico argumento capaz de conquistar a deci-
sao, e os outros nao passariam de maneiras diferentes de apre-
sentar ou nao seriam mais que contra-argumentos que respon-
deriam as objecoes possiveis. Assim, remetemos a dupla argu-
mentacao de Aristoteles em Retorica, I, 15 (cf. supra, p. 50).
Nos dois casos, desenvolve-se urn argurnento unico apresen-
tando diversos aspectos seus e refutando os argumentos con-
trarios,
Se nos at ivermos a ordem "homeric a", teremos 0 seguin-
te: 1) apresentacao do argumento; 2) refutacao dos contra-ar-
gurnentos; 3) retomada do argumento com nova forma.
Essa tese do argurnento unico e provada a contrario: urndiscurso que acurnula argumentos diferentes , sem nexos entre
si, parecera .estar lancando mao de qualquer expediente, por-
tanto ser de ma-fe.
Note-se que, em Roma, a confirmacao freqiientemente
era seguida por uma altercacao, breve debate com a parte ad-
versaria,
Digressiio (t'parekbasis") eperoraciio ("epilogos")
No discurso judiciario, preve-se urn momento de "relaxa-mento", a digressao, trecho movel, "destacavel", como diz
Roland Barthes, que se pode colocar em qualquer momento
do discurso, mas de preferencia entre a confirmacao e a pero-
racao.
Narrat iva ou descricao viva (ekphrasisi, a digressao tern
como funcao distrair 0 auditorio, mas tambem apieda-lo ou
indigna-lo; pode ate servir de prova indireta quando feita como
evocacao historica do passado longinquo. Hoje em dia, esse
termo tomou-se pejorat ivo. Os professores, em particular , es-
tigmatizam a digressao, ainda que a util izem a vontade em suas
aulas, alias de pleno direito'.A peroracao e 0que se poe no fim do discurso. Alias, po-
de ser bastante longa e dividir-se em varias partes . Mencione-
mos as principais.
1) Amplificacao (auxese, importada do genero epidicti -
co. Se 0 acusador, por exemplo, tiver mostrado a realidade do
delito/jasistira entao em sua gravidade, mostrara que e vital
para a cidade castigar 0 culpado de maneira exemplar , ao pas-
so que absolve-lo seria incitar outros a imita-lo (cf. Navarro,
pp. 307 s.).
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6 0 INTRODUr;AO A RET6RICAo SISTEMA RET6RICO 61
2) Paixao, trecho que visa a despertar piedade ou indigna-
~ao no audit6rio. Assim, a ap6strofe de Cicero a Verres:Elocucao ("h!xis")
Se teu pai houvera dejulgar-te, grandes deuses, que pode-
ria e1efazer? (in Quintiliano, VI, 1,3)
A elocucao, em sentido tecnico, e a redacao do discurso. Das
quatro partes da ret6rica, diz-nos Cicero' que esta e a mais pro-pria ao orador, aquela em que ele se exprime com? tal. Tese esta
que vale para toda producao literaria: faco um livro; p~sso ter
muitos conhecimentos e muitas ideias, um plano magnifico, mas
meu livro nada sera enquanto eu nao 0 tiver escrito; e, quem sabe
se, uma vez escrito, nao exibira outras ideias e plano bern diferen-
te do que eu tivera no inicio? 0 verdadeiro salto criador esta entre
a obra escrita e aquilo que a prepara.
3) Recapitulacao (anacefalease), que resume a argumen-
tacao. Notemos que uma conclusao nao deve constituir urn no-
vo argumento, pois nesse caso nao passaria de uma parte a
mais, e 0discurso careceria de unidade.
Note-se, enfim, que a peroracao e 0 momenta por exce-
lencia em que a afetividade se une it argumentacao, 0que cons-
titui a alma da ret6rica.
Lingua e estilo: uma artefuncional
Par que a disposiciio?A elocucao e, pois, 0ponto em que a ret6rica encontra a
literatura. Todavia, antes de ser uma questao de estilo, diz res-peito it lingua como tal. Para os antigos, 0 primeiro pro!,lema
da elocucao e 0da correcao lingiiistica. 0 orador deve por-se a
servico, ou melhor, sentir-se responsavel por aquilo que os gre-
gos chamavam de to hellenizein, os latinos de latinitas, e que
traduziriamos por "born vernaculo". Naquelas culturas , em que
o ensino ainda estava pouco desenvolvido, as exigencias da
arte orat6ria fixaram a lingua como instrumento indispensavel
para quem se quisesse fazer entender por todos. Hoje em dia
tambem, quem quiser persuadir 0 grande publico nao po~:ra
permit ir-se incorrecoes nem preciosismos, salvo em ocasioes
muito precisas. .,A ret6rica foi a prime ira prosa literaria e durante muito
tempo permaneceu como a unica; por isso, precisou distin~uir-
se da poesia e encontrar suas pr6prias normas. Por que? Afinal ,
urn discurso poetico pode ser perfeitamente convincente. S6
que a poesia grega utilizava uma lingua arcaizante, bastante
esoterica e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portan-
to, era pr~ciso recorrer it prosa, mas a uma prosa digna de riva-
lizar com a poesia. Em suma, entre 0hermetismo dos poetas e
o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa orat6ria devia encon-
trar suas pr6prias regras.
o plano antigo do discurso judiciario e muito particular,
mas nos apresenta 0 problema da uti lidade da disposicao: afi-
nal, por que fazer urn plano? A nosso ver, por tres raz6es.
A disposicao tern primeiramente uma funcao economica:
permite nada omitir sem nada repet ir ; em suma, possibil ita que
o orador "se ache" a cada momenta do discurso.
Depois, quaisquer que sejam os argumentos que organize, a
disposicao e em si mesma um argumento. Gracas a ela, 0orador
faz 0audit6rio encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que esco-
lheu, conduzindo-o assim para 0objetivo que propos. Essa meta-
fora do caminhoeconfirmada por termos como "preambulo"
(sinonimo de ex6rdio) ou "digressao" (desvio do rumo).
Finalmente, a disposicao tern fun~~o heurist ica, por per-
mitir interrogar-se metodicamente. Pois, em suma, 0que e fa-zer um plano? E formular-se uma serie de perguntas distintas,
const ituindo cada uma delas uma parte ou uma subparte . Saber
fazer urn plano e saber fazer-se perguntas e trata- las uma ap6s
outra, agindo de tal modo que cada uma delas nasca da respos-
ta precedente. E por isso que acreditamos - talvez de acordo
com os antigos - que 0 verdadeiro plano, 0plano organico, so
aparece ap6s a redacao, a elocucao,
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62 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 63
Estas' diziam respeito a escolha das palavras e a constru-<;aodas frases, 0 que produzia um discurso ao mesmo tempo
correto e bonito; mas sera mesmo que essas coisas sao diferen-
tes? Para os antigos, parece que correcao e beleza nao eram
separaveis. De qualquer modo, 0 fato e que a prosa oratoriadeve distinguir-se ao mesmo tempo da poesia e da prosa vul-
gar. Para isso: escolher as palavras no vocabulario usual, evi-
tando tanto arcaismos quanto neologismos; utilizar metaforas e
outras figuras, desde que sejam claras, ao contrario das dos
poetas; evitar qualquer frase metric a, como os versos dos poe-
tas, e qualquer frase arri tmica, para encontrar frases com ritmo
flexivel e sempre a servico do sentido.
Portanto, a retorica criou uma estet ica da prosa, uma este-
t ica puramente funcional, da qual tudo 0 que e imitil e exclui-
do, em que 0minimo efeito de esti lo se just if ica pela exigencia
de persuadir, em que qualquer art if ic io gratui to engendra pre-
ciosismo ou vulgaridade.o que conservar dessas consideracoes sobre 0 esti lo? A
nosso ver, tres pontos, que correspondem respect ivamente aos
tres poles do discurso: assunto, auditor io e orador.
omelhor estilo, ou seja, 0mais eficaz, e aquele que se adap-ta ao assunto. 1880 significa que ele sera diferente conforme 0
assunto. Os lat inos distinguiam tres generos de est ilo: 0 nobre
(grave), 0 simples (tenue) e 0 ameno (medium), que d e l lugar aanedota e ao humor. 0orador eficaz adota 0estilo que convem a
seu assunto: 0nobre para comover (movere), sobretudo na pero-
racao; 0 simples para informar e explicar (docere), sobretudo na
narracao e na confirmacao; 0 ameno para agradar (delectare),sobretudo no exordio e na digressao. A primeira regra e, portan-
to, 0da conveniencia (prepon,decorumv,:)
A segunda regra e a da clareza, em outras palavras, a
adaptacao do estilo ao auditorio. Pois a clareza e relativa: 0
que e claro para urn publico culto pode parecer obscuro para
quem e menos culto e infantil para especialistas. Ser claro e
por-se ao alcance de seu auditorio concreto. Agora, sera pos-
sivel falar de clareza em si? Em todo caso, pode-se falar da
obscuridade em si: a do discurso que nenhum auditorio pode
realmente penetrar, visto que seus termos e sua construcao
padecem de ambigii idade intrinseca. Certos oradores, em ma-
teria de politica, diplomacia, publicidade, utilizam essas
ambigii idades para esquivar-se aos problemas mais embara-
cosos ou entao para conjugar publicos diversos. Admitindo-
se que a honestidade permite esse tipo de manobra, ainda cum-
pre que ela seja consciente, que a obscuridade seja decorrente
de uma decisao, e nao, como quase sempre acontece, da im-
potencia. Quanto ao resto, fiquemos com estas palavras de
Quintiliano:
A primeira qualidade da fala e a clareza, e quanto menos
talento se tern, maior e 0 esforco para guindar-se e inflar-se,
assim como os nanicos que se alevantam nas pontas dos pes.
(11,3,8)
Estilo Objetivo Prova Momento do diseurso
nobre = grave comover = movere patos Pero racao (paixao),
digressao
simples = tenue explicar = doeere log os N arracao, c onfirm acao ,
recapitalucao
ameno = medium agradar = deleetare etos Exordio, d ig ressao
A terceira regra diz respeito ao proprio orador, que deve
mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, di-
namico, imprevisto, engracado ou caloroso, numa palavra:
vivaz. Essa regra da vivacidade tomamos de emprestimo a um
pastor retorico do s ec ulo X VIII, G . Campbell , que a expoe como termo vivacity. Para ser vivaz, e preciso observar regras de
esti lo bern precisas . Primeiro, a escolha das palavras, sempre
que possivel concretas: deve-se preferir "fonte" a "origem",
"aqui jaz Alexandre" a "aqui jaz 0 corpo de Alexandre". De-
pois, 0 ritmo das palavras, ao qual voltaremos. Finalmente, a
brevida~, que const itui a forca das maximas:
Todos querem viver muito, mas ninguem quer viver velho.
(Swift, citado, p. 337)
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64 INTRODUr;AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 65
Em suma, nao so se fazer entender, mas tambem fazer-se "sa-
borear" (relish, p. 237).
Essas regras, porem, nao passam de linhas gerais: evitar
ser redundante, inutilmente abstrato, etc. 0 sabor do discurso
nao seganha com regra algurna; quem 0faz e 0autor.
A vivacidade e capital para 0 etos, pois ela toma 0 discur-
so marcante, agradavel, cativante; e, principalmente, confere-
lhe 0 indispensavel cunho de autenticidade. 0 verdadeiro estilo
e 0do discurso onde e possivel encontrar 0 seu autor.
sivo transforma-la no trace distintivo da retorica. Dirac que 0
latim de Cicero constitui urn desvio em relacao a lingua latina?Na verdade, a retorica nao se reduz a figuras, que so consti-
tuem urna parte de urna parte deurna de suas partes.
Pois bern, cumpre definir as proprias figuras como des-
vios? A primeira vista, sim. A metafora desvia-se do sentidoproprio, substituindo 0 significado por urn outro que the e se-
melhante; assim tambem a ironia, que substitui 0 significado
por urn que the e contrario:
Figuras (t'schemata ")e 0problema do desvio
- esse leila,por esse homem valente =metafora;
- esse leila,por esse homem covarde =ironia.
Campbell demonstra que a vivacidade depende das figu-
ras. 0 Evangelho, em vez de dizer os reis mais gloriosos, em-
prega urna personificacao: "Salomao em toda a sua gloria ...", 0
que e bern mais vivaz.
Durante muito tempo os antigos trataram as figuras como
meios de exprimir-se de modo marcante, com encanto e emo-
~ao. Tentaram classifica-las, mas nao chegaram a entender-se
(nem nos, alias). Fiquemos com a classificacao mais simples, a
de Cicero, que distingue as figuras de palavras, como 0trocadi-
lho e a metafora, das figuras de pensamento, como a ironia ou a
alegoria. Voltaremos a falar mais detidamente sobre as diversas
figuras.
Por enquanto, proporemos a questao de saber se e possivel
definir figura sem introduzir a nocao de desvio, como porexemplo na metafora: desvio do sentido derivado em relacao
ao sentido proprio. A teoria do desvio conheceu seu momenta
de gloria nos anos 60, quando ele foi tao inchado que chegou a
significar toda a retorica. Os retoricos da epoca, sobretudo J.
Cohen, Roland Barthes e 0Grupo Ml.I,limitavam a retorica ao
estudo das figuras de estilo, que definiam~omo urn desvio em
relacao a norma, ao "grau zero", e portanto reduziam retorica a
desvio...
No entanto, mesmo que se possa definir a figura como
desvio, 0que ainda precisa ser provado, parece totalmente abu-
Alias, os classicos definiam figura como desvio, desde
Aristoteles, que dizia dametafora: "e para atingir maior grande-
za que ela se afasta (exallattai) daquilo que convem" (Ret6rica,
III, 1404 b), ate Quintiliano, que explica 0 prazer (delectatio)proporcionado pelas figuras, por terem 0 "merito manifesto de
afastar-se do uso corrente" (II, 13, 11), e precisa: "a figura seria
urn erro senao fosse intencional" (IX, 3, 2).
o fato e que, mesmo limitado a figura, a nocao de desvioapresenta urnproblema triplo.
Em primeiro lugar, desvio em relacao a que? Que "nor-
ma" e essa, esse "grau zero" da qual a figura sedesviaria: 0co-digo lingiiistico, digamos, 0 vernaculo? Nao vemos que ele
proiba figuras. A logica? Mas nao e a logica que rege a lingua:sol e feminino em alemao, 0 inverso para a lua; nenhurna "logi-
ca" nisso, seja em alemao, seja em portugues. 0 sentido primi-tivo, etimologico? Veremos quanto essa nocao e ideologica, ou
mesmo mitica; ademais, utilizar urn termo em sentido arcaico
- por exemplo, humile para 0que esta no chao - ja e uma figu-
ra. 0 uso normal, ou seja, 0 modo como todos falam? Mas
todos falam com muitas incorrecoes, por urn lado, e por outro
com muitas figuras, portanto com desvios. 0 discurso funcio-
nal dds~ientistas? Esse de fato e 0ponto de vista de J. Cohen,que compara os textos dos escritores e dos poetas com urn gru-
po-controle, formado por textos de autores cientificos do fimdo seculo XIX; mas nos custa enxergar como esses textos, tra-
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6 6 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 6 7
balhados para adaptar-se ao assunto de que tratam, seriam mais
"normativos" ou mais "normais" que os dos escritores.
Na realidade, a nocao de desvio e relativa; urn discurso se
desvia de outro discurso em funcao de seus objetivos, de seus
publicos e de seus generos respectivos, sem que nenhum deles
const itua norma absoluta . Assim tambem: e urn desvio ir a umarecepcao noturna em traje de praia, mas tambem e desvio ir a
praia em traje de gala.
Mas nao se pode dizer simplesmente que a figura se desvia
do sentido pr6prio? Por certo, mas isso s6 vale para algumas,
na o para as figuras de palavras ou para as de construcao (cf. cap.
VI). E, principalmente, 0 sentido pr6prio e realmente a norma?
A teoria do desvio considera a figura como dupla operacao: a) 0
autor propoe um enunciado que se desvia da norma, esse ledo,
b) que 0 receptor descodif ica voltando a norma, "esse bravo".
Mas, ou se trata de uma operacao com resultado nulo, e nao
teria nenhum interesse alem do prazer inegavel de fazer buracospara tapa-los, ou se trata de uma operacao positiva, mas que
implica entao que a figura diz mais do aquilo com que e traduzi-
da, seu pretenso sentido pr6prio.
A~io ("hypocrisis")
A acso e 0 arremate do trabalho ret6rico, a profericao do
discurso. E essencial porque, sem ela, 0 discurso nao atingiria
o publico. Sua funcao, diria Jakobson, e acima de tudo fatica.
Ao the perguntarem qual e a primeira qualidade do orador,
Dem6stenes respondeu: a acao; e a segunda: a acao; e a tercei-
ra: a acao (Brutus, 142)...
Uma "hypocrisis'' sem hipocrisia
Ja nao ha Pireneus.
Ar;:ao, que em grego e hypocrisis, no inicio, antes de ad-
quirir sent ido pejorat ivo, significava a interpretacao do adivi-
nho, depois a interpretacao do ator, a acao teatral. Assim como
o hipocrita, 0 autor finge sentimentos que nao tern, mas sabe
dis s o, e seu publico tambem. Assim tambem 0 orador: pode
exprimir 0 que na o sente, e sabe disso; mas nao pode informar
seu publico, ou destruiria seu discurso. 0ator que finge bern e
um artista; 0orador que finge bern seria urn mentiroso ...
o fato e que 0 orador sincero nao pode deixar de "repre-
sentar" segundo regras semelhantes as do ator . Se renunciasse
a isso, se abandonasse a hypocrisis, trairia sua mensagem. A
acao, diz Cicero, "faz 0 orador parecer aquilo que quer pare-
cer" (Brutus, 142).
Seja sincero ou nao, precisa dela.
Quanto a isso, os oradores antigos eram vezeiros ... che-
gando - diz Quintiliano (XIII, 3, 59) - a "cantar" suas defesas.
Alias, 0 mesmo Quintiliano dedica todo 0 capitulo 3 de seu
livro IX a acao, nao s6 ao trabalho da voz e da respiracao, mas
tambem as mimicas do rosto, a gestualidade do corpo; tudo se
inc1ui: ombros, maos, t6rax, coxas ... que e preciso por a servi- .
90 das diversas paixoes que e preciso exprimir" .
Isso'~ tern interesse hist6rico. 0 conteudo da acao hoje emais simples e flexivel. Mas a ar;:aocontinua sendo indispensa-
vel, alias mais que nunca, numa epoca em que 0 discurso oral,
gracas aos meios de comunicacao de massa, readquiriu impor-
Se traduzido por: Ja nao ha fronteiras (entre Franca e Espanha) ,
perde-se algo de essencial. A figura confere urn sentido extra.
Urn ultimo problema, para n6s essencial, e saber se a defi-
nicao de figura como desvio permite explicar seu poder per-
suasivo. De fato, se a figura e percebida pelo audit6rio comodesvio, e ai que nao da certo. Ela pode ser considerada pesada
ou poetic a, engracada ou nao, mas nao funciona. A figura efi-
caz pode ser definida como algo que se desvia da expressao
banal, mas precisamente por ser mais rica, mais express iva,
mais eloqiiente, mais adaptada, numa palavra mais justa do
que tudo que a poderia substituir. E, ~e fizermos questao de
falar em desvio, e a figura, a f igura bem-sucedida, que consti-
tui a norma.
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68 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 6 9
tancia capital. Certas regras antigas permanecem, como a im-
postacao da voz, 0dominio da respiracao, a variedade do tom e
da elocucao, regras sem as quais 0discurso nao passa.
Outras regras dizem respei to a conveniencia , aqui adapta-
~ao do discurso ao canal. Nos anos 30, os oradores politicos
forcavam a voz diante do microfone, embora este permitisse
justamente utilizar voz suave, calma e descontraida. Em todo
caso, a diccao sempre faz parte da retorica,
oproblema do escrito e do oral
oproblema da memoria
o que apresenta outro problema: a relacao entre 0 discur-
so escrito e 0 oral. Ao lermos os antigos retores temos a im-
pressao de que para eles 0 discurso e essencialmente escri to , e
que 0problema da a~ao e unicamente de "interpreta- lo", assimcomo urn pianista interpreta urna sonata , portanto de pronun-
cia- lo com c1areza e vivacidade depois de 0 ter redigido e me-
morizado. E verdade que as peripecias do debate politico e ju-
diciario obrigariam a improvisar (alias, os discursos publicados
dos oradores antigos foram reescritos), mas pouco importa:
eles nao parecem ter pensado num esti lo especifico do discurso
oral, talvez porque a lingua falada estivesse longe demais da
lingua escrita.
Para nos, 0discurso oral deve ser bern mais lento que urna
leitura, ou 0auditorio perderia 0 f io da meada. Deve ser redun-
dante, para suprir a memoria. Finalmente, 0mais importante, a
lingua nao e exatamente a mesma: exige frases mais curtas,
expressoes mais concretas e familiares, ou entao 0 discurso
parecera artificial. Concretamente, fala-se evitando a forma sin-
tet ica do futuro, subst ituindo mesoclises e ate encl ises por pro-
c1ises, usando "pra" em vez de "para", dizendo "acho" em vez
de "acredito". Quintiliano, que pode sermuito "modemo", aeon-
selha 0orador a:
Pois bern, como eram proferidos os discursos: eram lidos,
proferidos a partir de notas, de improviso? Parece que, para os
antigos, comecava-se aprendendo de cor. Donde a importancia
da memoria (mnemei, que para certos autores latinos constituia
a quinta parte da retorica: a arte de memorizar 0discurso.
Para Cicero (Brutus, 140,215, 301), isso e urna aptidao
natural, nao uma tecnica; portanto, nao pode ser parte da retori-
ca. Para Quintiliano, ao contrario, a memoria nao so e urn dom
como tambem urna tecnica que se aprende (cf. XI, 2,passim); e
indica processos mnemotecnicos, como decompor 0 discurso
em partes , que serao memorizadas uma apos outra, associando
a cada urna urn sinal mental para lembrar de proferi-1a no mo-
mento certo: uma ancora para 0trecho sobre 0navio, urn dardo
para 0trecho sobre 0combate (29). Mas, alem desses "truques",
faz tres observacoes essenciais.
Primeiro, a memoria depende antes de mais nada do esta-
do fis ico: para lembrar-se e preciso ter dormido bern, estar com
boa saude, etc.
Depois , urn discurso e facil de memorizar por sua estrutu-
ra (ordo), ou seja , por sua coerencia , pelo encadeamento logico
de suas partes , pela eurri tmia de suas frases.
Finalmente, e "dominando" 0discurso que temos mais con-
dicoes de ajustar-nos as objecoes e de improvisar. Portanto,
em vez de se opor a criatividade, a memoria e fator essencial
para ela.
cuidar principalmente de fazer que sejam ouvidos como descon-
traidos desdobramentos muito cerrados, e a dar as vezes a im-
pressao de estar refletindo, hesitando, buscando aquilo que foi
levado bernpronto. (XI, 2,47)
Ninguem fala "como livro", mas como gente.
Mostrar que a retorica e urn sistema e mostrar que ela tern
urn sentide ao mesmo tempo rico e preciso. Toda a sequencia
deste livro sustenta a tese de que e possivel utilizar a retorica
sem fazer referencia a esse sistema, que na verdade constitui
uma das chaves da nossa cultura .
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Capitulo IV
Do seculo I aoXX
De que forma os seculos foram enriquecendo 0 sistema
retorico? Tambem aqui convem deixar claro que nao tentamos
tracar uma historia da retorica nem urn panorama. Limitamo-
nos a lembrar alguns grandes problemas, que foram surgindo
em diferentes epocas, desde Cicero ate nos.
Periodo latino
Depois de Isocrates e Aristoteles, a retorica se instala na
cultura grega helenistica como disciplina essencial, tao impor-
tante quanto para nos a matematica. Os romanos tambem ade-
rirao, assimilando-a. Como?
Forma efundo: pintura e cores verdadeiras
Aqui nos limitaremos a mencionar as obras axiais: Do
orador, de Cicero, completada por 0 orador, 55 e 46 a.C., e
Instituiciio oratoria, de Quintiliano, escrita provavelmente em
93 d.C. Essas obras constituem admiraveis tratados de retorica,
escritos por praticantes. Note-se que, ao contrario dos gregos,
os romanos tinham advogados; que nao tinham 0direito de ser
pagos, mas tinham urn consolo: eram ressarcidos com presen-
tes. Cieeeo e Quintiliano foram ambos grandes advogados que,
em seus livros, "teorizaram" sobre sua pratica.A prime ira tarefa da retorica latina foi traduzir os termos
gregos. Por exemplo, metafora em Cicero transforma-se em
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72 INTRODUr;AO A RETORICA DO SECULO IAO..IT 73
tralatio, epidictico e demonstrativum. Tekhne rhetorike sera
chamada de ars oratoria, ou rhetorica. Significativo: a palavra
grega rhetor tera duas traducoes: orator, que e 0 executante, 0
fazedor de discursos, e rhetor, que e 0 professor, geralmente
grego.
Essa dualidade apresenta urn problema de fundo,0
do pa-pel da tecnica na eloquencia. Pois 0 retor ensina urna tecnica,
com seus lugares, seus planos-tipo, suas figuras. Mas a verda-
deira eloquencia tern a ver com recei tas? Nao, responde Cicero;
se ela e autentica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele
seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruido em todas as
areas essenciais: direito, filosofia, historia, ciencias, As receitas
retoricas, os "truques" para se impor sao ineficazes.
o estilo tambem nada tern de artificial; longe de ser urn
omamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do fun-
do. A escolha das palavras (electio), a composicao das frases,
as figuras, 0 ritmo - principalmente 0 r itmo - sao expressoes
naturais do que se tern para dizer , e tudo 0que soa artificial deve
ser riscado:
mente por Cicero como humanitas, nossa cultura geral. S6 ela
permite exprimir-se de modo justo e apropriado, elevar 0debate
da causa a thesis, do caso particular a questao geral subjacente.
Por exemplo, 0advogado, ao pedir 0castigo do reu, elevar-se-a,
tomando consideracoes historicas em apoio, aos problemas da
defesa social, da exemplaridade do castigo, etc.
Retorica e moral
Se houver nobreza nas proprias coisas de que se fala, das
palavras brotara uma especie de fulgor natural. (Do orador,
III, 125)
o mesmo se aplica a Quintiliano que, no apogeu do Impe-
rio, retoma de modo mais sistematico as ideias de Cicero. Ele
tambem considera a retorica como arte funcional, que exclui
tudo 0que seja inutil, arte que procede do mesmo espirito dos
aquedutos romanos e da discipl ina legionaria. 0 est ilo deve seu
brilho a funcao, analogamente ao brilho das armas da legiao
em ordem de batalha (cf. X, 1,29). A arte oratoria, portanto,em vez de criar "desvio" permite atingir a expressao mais jus-
ta, e nosso pretenso "grau zero" do discurso "normal" para
Quintiliano nao passaria de inaptidao, desjeito, incultura, "gar-
rulice improvisada'",
Inversamente, retorica e sinonimo de cultura, e a Institu-
tio oratoria, "Formacao do orador", apresenta-se como urn
tratado completo de educacao a partir da primeira infancia,
que possibil ita classificar seu autor, sem muito anacronismo,
como pedagogo. Nao entraremos no merito de seus conselhos
notaveis , muitas vezes bern atuais , como 0 de sempre levar 0
aluno a propor-se questoes. Diga-se que ele abre 0 campo doensino retorico, por nele incluir a gramatica, como explicacao
dos textos, e a dialetica, como tecnica de argumentacao (cf. II,
21, 12). Porem 0mais importante, como educador, e que ele se
esforca por reconciliar a retorica e a etica, que Aristoteles ha-
via separado.
Quando define a retorica como scientia bene dicendi, arte
de bern falar (II, 15, 5; 16, 38), a palavra "bern" para ele tern
sentido nao so estetico como tambem moral. A quantos censu-
ram a retorica por persuadir tanto do pior quanta do melhor,
E 0homem culto que tern algo para dizer nao precisa dos cur-
sos de expressao dos retores. E por isso que Cicero chama as
figuras de estilo de lumina, pois elas trazem a lume 0 que que-
remos dizer (cf . Oorador, 85, 95, 134).0 discurso para ele e
urn organismo vivo cujas partes desempenham todas urn papel;
portanto, se forem aplicados omamentos, eles nao passarao de
"pintura", enquanto 0que conta eo "colorido da pele", sinal de
boa saude'.
Entao e melhor renunciar a retorica? Nao, pois a ausencia
de retorica, em vez de signif icar sinceridade, nao passa de inap-
tidao, incapacidade para exprimir-se e convencer. Portanto, uma
retorica, e que seja ensinada. Mas trata-se de urn ensino em pro-
fundidade, que pega 0 homem desde a infancia e forma-o na-
quilo que os gregos chamam de Paideia, traduzido magnifica-
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74 INTRODU9AO A RET6RICA DO SECULO lAO X X " 75
Onde houver causa injusta, nao havera retorica. (II, 17, 31)
Mas da outra explicacao, menos banal. A arte orat6ria de-
senvolvera-se na sociedade em que era indispensavel, qual seja,
a democracia. Quando todas as decisoes eram submetidas a de-
bates publicos, 0 futuro orador formava-se naturalmente no fo-
rum, ouvindo as discussoes e depois tomando parte delas; des-
cobria assim as tecnicas dos diversos oradores e, principalmen-te, as reacoes do publico. "Hoje" (na epoca dos imperadores),
quando esses debates nao sao mais correntes, osjovens apren-
dem eloquencia na escola, ou seja, de modo artificial, sem ou-
tro publico senao camaradas tao pueris quanta eles, sem outros
temas de debate senao assuntos irreais, absurdos.
Em surna,urna vez que a funcao cria 0orgao, a eloqiiencia
desenvolveu-se na sociedade que precisava dela, a democracia,
e nao sobreviveu a esta senao de maneira artif icial. Mas nao
devemos enxergar em Tacito urn velho democrata embrulhado
em virtuosa nostalgia. Ele lembra que aquela democracia sig-
nificava menos liberdade e mais desordem e violencia, e que apaz romana, concretizada pelos imperadores, vale mil vezes
mais que 0 regime de anarquia que a precedeu. Raciocinando
por analogia, ele afirma que nao se deve sentir saudade da de-
sordem democratica s6 porque ela produziu grandes oradores,
assim como nao se sente saudade da guerra s6porque ela pro-
duz her6is (37, 7).
Fato e que esse trecho de Tacite foi transformado em ver-
dadeiro lugar-comurn, afirmando-se que a grande ret6rica teria
morrido com a liberdade, dando lugar apenas a ret6rica artifi-
cial, ornamental e vazia. Sera verdade?
Em certo sentido, a hist6ria da educacao romana confirma
isso. Tudo ocorre como se os romanos tivessem ganho, com a
ret6rica, urn instrumento que nao lhes servia para grande coisa.
Nas aulas de ret6rica, usavam-se, como exercicio, "declama-
coes", discursos puramente ficticios. Eram de tres tipos. Os
elogios, discursos epidicticos, tratavam de personagens hist6ri-
cas ou lerttiarias e eram completadas por paralelos (por exem-
plo, entre Aquiles e Heitor). Os suas6rios eram discursos poli-
ticos, mas fora da situacao vivida:
Quintiliano responde que nao se pode atribuir "0 nome de 0
mais bela dos oficios a quem aconselhe perversidades" (15,
17), e chega a dizer:
Em suma, ela nao s6 e uma arte, mas uma virtude. E, a acusa-
~ao de que urn homem mau pode as vezes utilizar uma ret6rica
excelente para chegar a seus fins, ele responde:
Urn bandido pode bater-se com valentia, e a coragern nern
por isso deixara de ser virtude. (II, 20, 10)
Note-se que esses dois argumentos nao combinam: de acordo
com 0primeiro, a ret6rica a service de uma causa imoral nao e
ret6rica; de acordo com 0 segundo, ela continua ret6rica e con-
tinua virtude!Na realidade, 0que reconcilia ret6rica e moral e a cultura,
para Quintiliano valor supremo. Concordando com Is6crates,
ele escreve que, sendo a linguagem e a razao caracteristicas do
homem, a ret6rica que as cultiva constitui a virtude hurnana
por excelencia. Falar bern e ser homem de bern; inversamente,
s6 0 homem de bern, honesto e culto, fala bern. Pode-se dizer
que a Institutio oratoria propoe os fundamentos da educacao
humanista.
Retorica e democracia
Na epoca imperial, urn pouco depois de Quintiliano, urn
texto celebre de Tacite, Dialogo dos oradores, levanta proble-
ma bern diferente. No fim dessa conversa, os protagonistas se
perguntam por que a eloquencia entrou em decadencia depois
de Cicero. Para isso, 0 orador Messala da uma primeira expli-
cacao: esse declinio se deve "a preguica dos jovens", tanto
quanta ao desleixo de sua educacao; hist6ria tantas vezes repe-
tida desde entao., '/
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76 INTRODU9AO A RETORICA DO SECULO lAO XY 77
Anibal, no dia seguinte a Canas, esta pensando semarchara
sobre Roma. (inMarrou, p. 415)Por que 0declinio?
As controversias, enfim, eram discursos favoraveis ou contra-
rios a alguma coisa. Os exemplos utilizados eram ficticios, as
vezes inverossimeis, alegando-se que a dificuldade era forma-dora por si mesma. Assim 0 caso do "duplo sedutor", que era
preciso defender e acusar:
Na realidade, foi no seculo XIX que a retorica realmente
declinou, a ponto de quase desaparecer. Seria interessante sa-
ber por que.
Retorica e cristianismo
A lei aqui sera: a mulher seduzida escolhera entre a conde-
nacao a morte do sedutor ou 0casamento com ele, sem dote. Na
mesma noite, urn homem violenta duas mulheres. Uma pede sua
morte, a outra escolhe casar-se com ele. (inMarrou, p. 415)
Urn grande problema que se apresenta no fim da Antigui-
dade e 0 da relacao entre a retorica e a nova religiao, 0 cristia-
nismo. Este, de fato, situa-se em ruptura total com a cultura an-
t iga, cujo "ceme" e consti tuido pela retorica: cul tura paga, ido-
latra e imoral, que so poderia afastar a redencao, "unica coisa
necessaria" .
No entanto, como mostrou tao bern H.-I. Marrou, os cris-
taos logo acei taram a escola romana e a cultura que ela veicula-va. Em seguida, quando todas as estruturas administrativas do
Imperio desmoronaram, foi a Igreja que se tomou depositaria
desse cultura antiga, retorica inclusive. E verdade que grande
mimero de pais da Igreja rejeitam os autores pagaos, como imi-
teis e perigosos, mas admitem a lingua e a retorica dos pagaos
(cf . Marrou, 460 s.). Por que? Por duas razoes.
A prime ira e que a Igreja, em seu papel missionario e em
suas polemicas, nao podia prescindir da retorica, muito menos
da lingua (grega ou latina). Nao podia deixar esses meios de
persuasao e de comunicacao em maos de adversaries. Santo
Agostinho escreve assim, no fim do seculo IV:
Essas khreias lembram 0exercicio da conferencia dos advoga-
dos estagiar ios: a lei pune 0marido se ele comete adulterio no
domicilio conjugal. Ora, urn marido e surpreendido em fla-
grante delito de adulterio com a vizinha, no muro que divide as
duas residencias. Ele e passivel das penas da lei?
Em Vida cotidiana em Roma, Jeronimo Carcopino fustiga
esse ens ino retorico totalmerite apartado da vida: "retorica
irreal", "virtuosidades verbais", "formalismo incuravel"
(pp. 135 s.). H.-I. Marrou e mais matizado; mostra que essa
cultura formal a longo prazo produzia resultado positivo: for-
maya advogados, administradores, embaixadores capazes de
falar com eficacia nas situacoesmais ineditas . Afinal, tambem
seria possivel falar de formalismo com referencia a nossas dis-
sertacoes e a nossos problemas de matematica,
Se 0ensino da retorica perdurou durante 0 Imperio Roma-
no, se sobreviveu em Bizancio, tanto sob 0 islamismo quanto
na Europa medieval, com metodos semelhantes, significa que
nao era tao imit il . E verdade que a retorica perdeu os grandes
debates politicos, que so recuperara nas democracias moder-
nas, mas ganhou outros generos: a epistola , a descricao, 0 tes-
tamento, 0discurso de embaixada, a consolacao, 0conselho ao
principe, etc. 0"fim da retorica" nao passa de lugar-comum no
mau sentido do termo, ou seja, nao retorico.
Quem ousaria dizer que a verdade deve enfrentar a mentira
com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se
esfon;:ampor persuadir do falso saberiam desde 0exordio tomar
o auditorio docil e benevolente, enquanto os defensores da ver-
dade seriam incapazes disso? (Doutrina crista, IV , 2,3)'. ,
A segunda razao e que a propria Biblia e profundamenteretorica. Nao sobejam nela metaforas, alegorias, jogos de pala-
vras, antiteses, argumentacoes, tanto quanto nos textos gregos,
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78 INTRODU9AO A RET6RICA DO SECULO lAO XX 79
se niio mais? Sao Paulo bern que afirma que niio tern a sophia
logou, "arte do discurso" (1 Cor I, 17), mas acrescenta a argu-
mentacao de urn rabino as antiteses de urn orador grego.
Portanto, a Biblia era urn modelo, porem mais ainda: urn
problema. Com efei to, niio bastava ser l ida, precisava ser com-
preendida; e, para interpreta- la , nunc a era demais ut il izar todosos recursos da retorica, A hermeneutica da Idade Media e todaalegorica: propoe que todo texto biblico tern outro sentido alem
do literal. Outro, ou melhor, varies. Tomemos como exemplo a
palavra Jerusalem (pois essa interpretacao dizia respeito sobre-
tudo a palavra): 1) ela tern urn sentido proprio ou historico, de
cidade onde viveram David, Salomiio, etc .; 2) tern tambem urn
sentido alegorico, que se refere ao Cristo, e Jerusalem signifi-
ca Igreja; 3) tern urn sentido tropologico, ou seja, moral, e Je-
rusalem significa a alma do cristae, tentada, cast igada, curada;
4) finalmente tern urn sentido anagogico, relativo a ressurrei-
<;i ioe ao reino de Deus, e Jerusalem significa a cidade de Deus,
depois do Juizo Final.
Tomemos 0 texto seguinte, interessante por possibil itar
destacar os mecanismos da alegoria; e urn breve comentario
sobre Exodo, XI, 12:
brios, mas continuam uti lizando a hermeneutic a dos quatro sen-
t idos, que funciona como urn lugar da retorica.
Verdadeiras causas do declinio:
retorica, verdade e sinceridade
A meia-noite sairei pela terra do Egito. E todo primogenitomorrera.;
Portanto, 0 cristianismo nada tern a ver com 0 declinio da
retorica. Esta, ao contrar io, desenvolveu-se durante toda a Ida-
de Media, tanto na literatura profana quanto na pregacao. A
part ir do Renascimento, voltou aos canones antigos, e seu ensi-
no constitui 0cicIo essencial de toda a escolar idade, tanto entre
os protestantes e os jansenistas quanto entre os jesuitas'. No
entanto, e nesse periodo que comeca 0 declinio da retorica, As
novas ideias viio dar-lhe 0 golpe mortal, rompendo 0 elo entre
o argumentat ivo e 0oratorio, que the davam forca e valor.
Foi di to que essa cisiio ocorreu a partir do seculo XVI, como hurnanista Pedro Ramus (Pierre de la Ramee, 1515-1572).
Este de fato separa resolutamente a dialetica, arte da argumen-
tacao racional, da retorica, reduzida "ao estudo dos meios de
expressiio omados e agradaveis" (TA, p. 669), em suma a elocu-
<;iio.Mas nada prova que a atitude de Ramus tenha sido dura-
doura; ao contrario, os retoricos que apareceram ate 0 seculo
XIX, sobretudo na Inglaterra, continuam completos, incIuindo
tanto a invencao e a disposicao quanto a elocucao,
Apesar disso, no seculo XVII ocorre uma fratura tambem
grave com Descartes, que vai destruir urn dos pilares da retori-
ca, a dialetica, em outras palavras a propria possibilidade deargumentacao contraditoria e probabilista. Em sua autobiogra-
fia intelectual, que abre 0Discours de la methode, ele escreve:
Como comentar esse versiculo terrivel?
Pode ser interpretado historicamente porque, como se le,quando a Pascoa e celebrada, 0 anjo exterminador atravessa
(pertransit) 0 Egito. Alegoricamente, a Igreja passa (transit) da
descrenca it fe pelo batismo. Tropologicamente, a alma deve
passar (transire) do vicio it virtude pela conversao e pelo arre-
pendimento. Anagogicamente, 0Cristo passou (transivit) da con-
dicao mortal it imortalidade, para nos fazer passar (transire) da
miseria deste mundo it fe eterna'.
Eu apreciava muito a eloquencia e era apaixonado por poe-
sia , mas achava que uma e outra eram dons do espirito, e nao
frut~~do estudo. Aqueles que tern raciocinio mais forte e que
digen!m melhor seus pensamentos, para torna-los claros e inteli-
giveis, sao os que sempre conseguem persuadir me1hor daquilo
que propoem, ainda que so falassem baixo bretao e nunca tives-
sem aprendido retorica.Como se ve, essa tripla alegoria e construida sobre 0 tema
da passagem. Hoje em dia, os pregadores sao bern mais so-
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80 INTRODUC;AO A RET6RICA DO SECULO lAO X¥ 81
Como se ve, Descartes cons idera tanto 0objet ivo da reto-
rica ("persuadir") quanta suas quatro partes: invencao ("racio-
cinio"), disposicao ("digerem", no sentido de organizam), elo-
cucao ("tomar claros"), acao ("fa lassem"). Considera tudo da
ret6rica, salvo a ret6rica . .. como arte que se poderia "aprender"
por "estudo"; ideia retomada depois por Pascal:
servem senao para insinuar falsas ideias no espirito, despertar
paixoes e seduzir pelo julgamento, de tal modo que na verdade
sao perfeitos logros. (inTodorof, pp. 77-78)
A verdadeira eloqiiencia escamece da eloquencia. (p. 321)
Se Locke admite urn ens ino da re tor ica para a elocucao, e
ainda mais severo que Descartes, pois faz da retorica a arte damenti ra. Quanto ao resto, apesar de suas oposicoes filosoficas,
estao de acordo. Descartes situa a verdade na evidencia das
ideias claras e distintas; Locke, na experiencia dos sentidos.
Mas ambos veem a retor ica como urn anteparo artific ial entre 0
espirito e a verdade. Ambos desconfiam da linguagem, que so
vale como veiculo neutro de uma verdade independente dela,
de uma verdade que nada tern a ver com as controversias da
dialetica. A retorica nao pode mais ter pretensoes a invencdo
alguma.
E certo que ela ainda podera servir aos debates juridicos, apol it ica e a pregacao . E por isso ainda hayed tratados de retori-
ca ate 0 seculo XIX.
Mas ai duas novas corren tes de pensamento conduzirao ao
seu desenlace.
A prime ira e 0positivismo, que reje ita a retorica em nome
da verdade cientif ica . Ela sera excluida ate mesmo de sua ulti-
ma trincheira, a elocucao, sendo subst ituida pela filologia e pela
historia cient ifica das li teraturas. A ult ima obra propriamente
retorica na Franca e de Pierre Fontanier, publicada em 1818 e
1827, que G. Genette reeditara em 1968 com 0 titulo Les figu-
res du discours, es tudo notavel, modes tamente destinado aos
alunos da pemil tima serie do estudo secundario,
A segunda corrente e 0 romantismo, que rejeita a retorica
em nome da sinceridade. "Paz com a sintaxe, guerra a retori-ca", exclama Victor Hugo, querendo dizer com isso que 0 es-
critor deve respeitar 0 codigo da lingua, mas sem se sobrecar-
regar com urn segundo codigo.
Em 1885, a retorica desaparece do ensino frances, substi-
tuida pela-vhistoria das literaturas grega , latina e francesa" .
Fim.
Mais a inda : com seu "ba ixo bretao" Descartes rejeita 0privile-
gio de uma lingua nobre, objeto da retorica, olatim.
Pr incipalmente no paragrafo seguinte ele repudia a diale-
tica, por nunca oferecer mais que opinioes verossfrneis e suje i-
tas a discussao, ao pas so que a verdade so pode ser evidente,
portanto unica e capaz de criar acordo em todos os espiritos.
Com a diivida metodica, Descartes tomara a atitude de consi-
derar nao como verdadeiro, mas como falso, tudo 0 que so e
verossimil, e sua filosofia se apresentara como urn encadea-
mento de evidencias , analogo a uma demonstracao matemati-
ca. Enfim, contra 0debate de var ias pessoas , que e a dialetica,ele afirma que so se pode encontrar a verdade sozinho, por urn
retorno a si mesmo (cf. infra, texto 8).
A retorica deixa portanto de ser arte e perde seu instru-
mento dialetico, Basta encontrar a verdade por sua razao, "E as
palavras para expressa-la chegam facilmente" (Boileau).
Outros filosofos, os empiristas ingleses, chegam a mesmacondenacao. Para eles, qua lquer verdade vern da experiencia
sensivel, e a retorica, com seus ar tificios verbais, so faz afastar
da experiencia, Locke assim escreve:
Confesso que, em discursos nos quais procuramos mais
agradar e divertir que instruir e aperfeicoar 0 julgamento, mal
podemos fazer passar por erros essas especies de ornamentos
que tomamos de empres timo as figuras. Mas, se quisermos .
representar as coisas como sao, e preciso reconhecer que, exce-tuando a ordem e a nit idez, toda a arte daretorica, todas as apli -
cacoes artificiais e figuradas que nela se fazem das palavras, se-
gundo as regras que a eloqiiencia inventou, para outra coisa nao
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82 INTRODUC;AO A RET6RICA DOSECULOI AOAX 83
Hoje: retorlcas Os tres paragrafos que seguem contem exemplos desse es-
tilhacamento,Ou melhor: falsa saida de cena. Pois se a retorica perdeu 0
nome nem por isso morreu. Nao so sobrevive, como se viu, no
ensino literario, nos discursos juridicos e polit icos, como tam-
bern vai renovar-se com a comunicacao de massa, propria doseculo xx. Finalmente, a partir dos anos 60 aparece na Franca
e na Europa urna nova retorica, que logo conhecera imenso su-
cesso. A palavraja nao da medo.
Retorica da imagem
Uma retorica estilhacada
"Vivemos no seculo da imagem", eo que se ouve com fre-
qiiencia . Cliche bern contestavel , pois os outros seculos comu-
nicaram-se bern mais pela imagem que pelo texto escrito. Alem
do mais, e raro que as nossas imagens possam prescindir do
texto escrito para serem legiveis.
Assim, e perfei tamente possivel fazer a interpretacao rete-
rica de estatuas romanas, de leones, de portais romanos, etc. ,
imagens que se vinculam ao genero epidictico, para gloria de
urn soberano ou de Deus. Mas e normal que essa retorica se in-
teresse mais pelas producoes atuais, sobretudo pelas imagens
publicitarias, persuasivas por essencia.o pontape inicial da retorica da imagem, na Franca, foi
dado por Roland Barthes, em seu artigo publicado em Communi-
cations no ano de 1964. Nele, Barthes analisa urn cartaz feito
para as massas Panzani, mostrando que alem de sua denotacao
- legumes frescos e pacotes de macarrao saindo de urna sacola
- 0 cartaz persuade pela conotacao: as cores verde, branca e
vermelha sugerem italianidade; os legumes, frescor e natureza;
a sacola, cozinha artesanal, etc. Ainda que as massas em ques-
tao sejam francesas e industrializadas! Mas Barthes faz mais
semiotica que retorica,
o que se pode dizer e que, se e impropria para produzirargumentacao, a imagem e porem notavel para amplificar 0
etos e 0patos.
Tomemos como exemplo 0 cartaz da oposicao que inau-
gurou a campanha eleitoral para as eleicoes legislativas de
1986. Como texto, 0cartaz contem 0slogan: Vivementdemain!,
e em le,tras menores: Avec Ie RPR!*. 0slogan expressa a ex-
pectativ~ de toda oposicao: chegar ao govemo. A sequencia
Apesar de tudo, a retorica atual e bern diferente daquela
que substitui.
Para comecar , seu objetivo ja nao e produzir discursos, po-
rem interpreta-los, e assim se aproxima mais da gramatica dos
antigos. Pode-se dizer que ja nao se aprende a fazer discursos?
Aprende-se, mas esse ensino, que no fundo se identifica com a
formacao literaria e filosofica, ja nao e visto como retorica -
ou nao e ainda.
Em segundo lugar , 0campo da modema retorica alargou-
se muito. Longe de limitar-se aos tres generos oratorios dos
antigos, ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas mo-
demas do discurso persuasivo, a comecar pela publicidade, e
mesmo dos generos nao persuasivos, como a poesia. Nao con-
tente com reivindicar todo 0campo do discurso, vai bern alem,
pois se apodera de todas as especies de producoes nao verbais.
Elabora-se assim uma retorica do cartaz, do cinema, da musi-ca, sem falar da retorica do inconsciente.
Finalmente, e mais importante, a retorica modema e urnaretorica estilhacada, fragmentada em estudos distintos. Distin-
tos nao so pelo objeto, mas pela propria definicao que dao apalavra "retorica", de tal modo que cabe perguntar se esse ter-
mo ainda tern algurn sentido preciso. Esse estilhacamento, que
afeta, alias, a arte e a filosofia, e urn dos grandes sinais da nos-
sa cultura, indice de que ela esta bern viva, pois e a vida que es-
tilhaca as formas rigidas. Mas tambem de que, como acontece
com tudo 0que e vivo, ha 0risco de morrer. * Literalmente, "Vivamente amanha" e "Com 0RPR". (N. do T.)
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84 INTRODUC;AO A RET6RICA DO SECULO lAO XX 8 5
"Equipe": a s pe ssoa s estao c om o s braces no s ombr os d as o u tr as
ou estao de bracos;
" r esp ei ta v el " : u sam t ra je soc ia l, c om g r ava ta ;
" t ra b al ho" : t ir a ram os pa le t os ; 0ven to l ev an ta a s g r ava ta s ;
" ju ve n tu de " : q u a se t od o s t er n m e no s d e q ua re n ta a n os ; o s m a is
i do s os e st ao n o m e io ; s in e doq ue : a lg un s j ov en s p ar a m a rc ar
juventude.
caso das m assas P an zan i ... M as de urn a sugestao , que po r certo
s e e nc on tra ria e m q ua lq uer im ag em p ub lic ita ria. E m to do c as o,
e ss es d ois c artaz es , alia s b elis sim os (b ele za fu nc io na l), m os -
t ra m b er n d ua s c oi sa s:
1 ) A retorica d a i ma gem d es en vo lv e 0 o ra to rio e m d etri-
m e nt o d o a rg um e nt at iv o .2) A im age m nao e eficaz, nem m esm o legivel, sem urn
m in im o d e te xto .
A im ag em e re to ri ca a s er vi ce d o d is cu rs o, n ao em s eu lu ga r.
s ug ere q ue 0beneficiario de ssa expec ta ti v a e 0RPR, e nao do s
o ut ro s p ar ti do s d e oposicao,
A im ag em : J ac qu es C hira c, 0 lid er, n o c en tro de u ma lin ha
de do ze pesso as, das quais duas m ulheres joven s, em posicoes
simetricas, qu e avancam por urn prado, debaixo de urn ceu
i me ns o, o nd e e st a e sc ri to 0slogan.o etos e s ug er id o p ela s c on ot ac oe s d a i ma gem:
Retorica dapropaganda e dapublicidade
op at os t am bem n as ce d as c on ot ac oe s:
P od e- se c on sid era r a p ro pa ga nd a (p olitic a , m ilita r, e tc. ) e
a p ub lic i d ad e c om o in ve nc oe s d o s ec ulo xx. A in da q ue n os so s
an cestrais n ao n os ten ham esperado para defen der seus parti-
d os e c ria r s ua s m erc ad oria s, 0 que eles faziam era co isa bernd ife re nte , p or u ma bo a ra za o.
A pro pagan da e a publicidade perten cem a co mun icacao
de massa. 0 que e m as sa ? U r n m im er o i nd ef in id o, g er alm en te
im en so , de in dividuo s cujo un ico elo e receber a m esm a m en -
s ag em . U rn c am el6 q ue v en de u rn tira- ma nc ha s n a fe ira d irig e-
se a algum as pessoas e adapta-se as reaco es delas. 0 an un cian -
te de urn tira-m an chas n a televisao dirige-se a m ilhoes de des-
c on he cid os c ujo u nic o e lo e a m en sagem a que estao subm eti-
dos. A m assa, em si, e p as si va e a tom iz ad a.
N a v er da de e a com unicacao de massas que cria a m assa.
P ara q ue ela e xis ta , s ao n ec es sa rie s m eio s d e c om un ic ac ao m o-dem os, de gran de difusao , co mo 0 c ar ta z o u 0 ami nc io d e t ele -
v is ao . N is so , a m as sa s e d is tin gue d a m ultid ao , c on ju nto d e p es -
s oa s r eu ni da s p ar a a lg ur na c oi sa , q ue p od e r ea gi r i me di at am en -
te a m ensagem que recebem . A m ultidao aplaude ou infam a; a
massa nao tern voz nem rosto . E a comunicacao de massa esem pre in direta. U tiliza algum can al, do cartaz ao film e, co m-
p le xo e cs ro , 0 q ue i mp li ca c on se qi ie nc ia s p ar a 0 p ro pr io c on -
t eu do d o d is cu rs o .
Em p ri me ir o lu ga r, g er alm en te e breve, po is lim itada n o
tem po ou n o espaco , 0 qu e q ua se n ao th e p os sib ilita a rg urn en -
" im p et o i rr es is ti ve l" : a l in h a o ndu la n te s ug er e um a v ag a q ue no senvolve ; meta fora ;
" s aude " : t odos e s ta o i ncr iv e lmen te b r onze ados ;
" di nami sm o" : a e qu ip e a va nc a; n um a p ri me i ra v er sa o, e st av a
imovel , 0que e ra b e rn menos convi ncen te ;
"patriot ismo": 0 c eu e a zu l, a s c am is as s ao b ra nc as , o s v es ti do s
da s duas mu lhe re s sao ve rme lhos;
" o tim ismo" : a s dozepe s soas (bor n nume ro , 0dos apost o lo s ), o s -
t e nt am u rn so rr iso comer c ia l, 0 q ue v ale u a o c art az 0 nome
de "oui s ti t i- sexe"*.
E ss e c ar ta z e o bra de p ro fis sio na is d a p ub lic id ad e, c om o
alias todos os dos outros partidos nessa cam panha'. N ote-se
que a co no tacao en riquece a den otacao , e que em certo sen tido
a co ntradiz. P ois a im agem da a en ten der que to do s o s figuran -
tes da equipe irao tom ar-se ministros de Chirac, ao passo que
a lg un s n ao s e to mara m; 0ma i s impor ta n te e que ele nao m os-
tra os principais colaboradores de Chirac, que nao eram nem
urn po uco jo ven s. N ao se trata de um a m en tira, tan to quan to n o
* Ouistiti e sagiii, mico. (N. do T.)
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86 INTRODU9AO A RETORICA DOSECULO lAO XX 87
tacoes sutis, mas autoriza, em compensacao, ajogar com ambi-
giiidades. Sua satisfaciio ou 0 dinheiro de volta: otimo, mas em
que condicoes? X lava mais branco: mas 0que e como? Em se-
gundo lugar, embora menos claro e menos preciso, 0discurso ecompletado pelo conteudo nao Iingii is tico da mensagem, pela
musica, pela imagem, que no fundo desempenham 0 papel daacao, parte nao verbal da antiga retorica. Mas a publici dade vai
renovar a invencao tambem.
Primeiro ela cria seus proprios lugares, no sentido de ar-
gumentos-tipo ("somos jovens") ou de perguntas para chegar a
eles ("Como parecer jovem?"). Lembremos os lugares mais
conhecidos: juventude, seducao, saude, prazer, status, diferen-
ca, natureza, autenticidade, relacao qualidade/preco.
Depois, a publici dade privilegia 0 etos e, principalmente,
o patos, em relacao ao logos. Em outras palavras, a mensagem
e bern mais oratoria que argumentativa. 0 proprio patos - psi-
cologia utilizada pelos meios de comunicacao de massa - e di-ferente do da retorica antiga. Inspira-se, pelo menos atualmen-
te, na psicanalise, Dieter Flader, em seu estudo de 1976 sobre a
estrategia da publicidade, insiste no lado infantilizante dessa
retorica, voltada para a necessidade que ha nos consumidores
de se sentirem seguros e amados. Es lohnt sich bestimmt ("Sim,
vale a pena!"), proclama 0slogan, incitando a deixar de lado a
angust ia da duvida, a entregar-se a voz paterna onisciente e
onipotente. Lee matchfrei ("Lee e liberdade"); Lee ja nao e urnobjeto, calcas banais, porem urn ser personalizado que cuida de
nos, e a liberdade que nos proporciona encontra verdadeiro
senti do no inconsciente: l ivra-nos da angust ia de sermos adul-
tos. Significa que todas essas mensa gens, ao eliminarem 0
tempo e as relacoes causais, ao criarem uma fusao narcisica en-
tre 0objeto e 0ego, jogam com a necessidade de regressao afe-
tiva. Ve-se 0mesmo fenomeno nos "revolucionarios" de 1968;
seus slogans mais fortes:
Poder-se-ia retorquir a Flader que sua explicacao e parcial,pois ha outras motivacoes alem do retorno a infancia; a liber-
dade deLee talvez seja tambem a comodidade do corpo, a libe-
ra<;aosexual, a saida da infancia (e nfio a volta a ela!). Mas, no
conjunto, ele tern razao; 0 patos ganha do logos, e esse patos
inova em relacao a tradicao retorica.Mas, se mudar seu conteudo, a publicidade se inserira no
sistema retorico; comporta invencao, disposicao - plano da men-
sagem, estrutura do cartaz -, elocucao e principalmente acao.
Numa propaganda eleitoral, por exemplo, nao so a voz e essen-cial como tambem todo 0 comportamento, a aparencia do can-
didato, que e a forma moderna do etos.
Caberia mostrar aqui 0 que distingue a propaganda da pu-
blicidade. Limitemo-nos a observar que elas tendem a confun-
dir-se, pois os part idos poli ticos confiam suas campanhas cada
vez mais a publicitarios. Donde a pergunta: a publicidade e real-
mente compativel com a democracia?
Pode-se responder: sim, porquanto e retorica, e a base da
retorica e a argumentacao contraditoria, Toda publicidade e con-traditada por outras, e quem nao achar que X lava mais branco
sempre pode comprar Y; assim tambem, quem nao gosta do
sorriso comercial deste candidato tern a liberdade de votar em
outro. Certo, mas a publicidade limita a liberdade de escolha
por situar 0 debate em tal nivel que na verdade nao ha debate,
conservando da argumentacao apenas 0 que ela tern de mais
sumario e oferecendo como termos de escolha apenas objetos
- brancura, sorriso - que nao tern grande relacao com proble-
mas reais. A democracia precisa de urn povo adulto, e a retori-
ca publicitaria devolve as massas a infancia,
Nova retorica contra nova retorica
Sob a calcada, a praia.
E proibido proibir.Seja realista, peca 0impossivel.
Nossnos 60, assiste-se ao nascimento de uma "nova reto-
rica". Mas que retorica? Houve varias, e a que estava mais na
moda naquela epoca afirmava-se puramente li teraria, sem rela-
<;aoalguma com a persuasao, Tinha-se entao esquecido tao bernfaziam parte da recusa global de ser adultos.
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88 INTRODUr;AO A RET6RICA DO SECULO lAO XX " 89
Nem a Biblia, nem 0C6digo Civil, nem poder algum pode
nos obrigar a partir do dominio da antiga ret6rica. ("Rhetorique
de I'argumentation et des figures", in Figures et conflits rhetori-
ques, p. 126)
de valor? 0 que nos permite afirmar que isto e justo ou que
aquilo nao e belo? Buscaram, pois, a logic a do valor, paralela a
da ciencia, e acabaram por encontra- la na antiga retorica, com-
pletada, como convern, pela dialetica. A grande descoberta desse
tratado - a palavra "descoberta" comporta urn pressuposto, mas
nos 0 assumimos - e que, entre a demonstracao cientifica e aarbitraria das crencas, M uma logic a do verossimil, a que dao 0
nome de argumentacao, vinculando-a a antiga retorica.
No essencial, esse livro e urn estudo dos diversos tipos de
argumentos, a que voltaremos no capitulo VIII; e certo que
abre espaco para as figuras, porem urn espaco menor, reduzin-
do-as a condensados de argumentos; por exemplo, a metafora
condensa uma analogia. Em surna, uma retorica centrada na in-
vencao, e nao na elocucao.
Portanto, tambem incompleta. De fato, se 0 tratado des-
creve maravilhosamente as estrategias da argumentacao, deixa
de reconhecer os aspectos afet ivos da Retorica, 0deleetare e 0movere, 0encanto e a emocao, essenciais contudo a persuasao.
Na Franca, 0Traite de I 'argumentation foi ignorado pelos
meios l iterar ios, fechados para tudo 0 que nao fosse estilistica,
e ate pelos meios filosoficos, de tal modo a ideia de urn tercei-
ro caminho, entre a logic a formal e a ausencia de logica, era es-
tranha a cultura da epoca, Pelo menos na Franca, pois conti-
nuava familiar aos anglo-saxoes, que, alias, nunca tinham es-
quecido de todo a retorica,
o pensamento de Perelman so teve penetracao realmente no
fim dos anos 70. E mesmo entao seus esquemas argumentativos
foram utilizados bern menos para interpretar os autores que para"desmistifica-los'' . Pois na epoca 0 lado retorico dos discursos
era considerado indicio de manipulacao ideologica:
o que significava a palavra "retorica" que ela virou rotulo de
coisa completamente diferente.
Esse movimento, que incluiu Jean Cohen, 0 grupo MU,
Gerard Genette, Roland Barthes, transforma a retorica em "co-
nhecimento dos procedimentos da l inguagem caracteristicos
da literatura" tRhetorique generale, p. 25). E esses procedi-
mentos sao reduzidos as figuras de estilo, definidas como des-
vios do "grau zero", que seria a prosa nso literaria. Henri Mo-
rier chegou a fazer urn Diciondrio de retorica e poetica sem
falar de argumentos, lugares, disposicoes. Essa "nova retorica"
limita-se, pois, a elocucao, e desta so fica com as figuras. Em
suma, uma retorica sem finalidade alguma.
Nao nos cabe desprezar essas obras, tao ricas e muitas ve-
zes apaixonantes. Mas trata-se de retorica? Urn representante
do grupo MU responde rejeitando qualquer argumento de au-
toridade:
Por certo, mas M outro poder, 0 do dicionario. E nosso
temor e de que, a forca de infringi-Io, cheguemos a Torre de
Babel...
Em todo caso, a retorica literaria opoe-se outra corrente,
de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts- Tyteca, cujo livro mais
importante, Traite de I'argumentation, la nouvelle rhetorique,foi publicado por Presses Universitaires de France em 1958 e
quase nao teve sucesso na epoca * .Essa obra, que se insere na grande tradicao retorica de Aris-
toteles, Isocrates e Quintiliano, e realmente a teoria do discurso
persuasivo. Seus autores partiram de urn problema, nao lingiiis-
tico nem li terar io, mas fi losofico: como fundamentar osjuizos
A ret6rica aparece, assim, como a face significante da ideo-
logia. (R. Barthes, "La rhetorique de I'image", p. 49)
Essa'retcrica da desconfianca, preconizada por Barthes e
por tantos outros, parece-nos singularmente redutora, tanto dos
textos que interpreta quanto da propria ideia de retorica. A
nosso ver, a teoria de Perelman- Tyteca permite uma leitura re-* Tratado de argumentacdo, Sao Paulo, Martins Fontes, 1996. (N.
do E.)
L/
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90 INTRODU<;:AO A RET6RICA Capitulo V
A rgumen tariiotorica dos textos que se fundam no dialogo, e nao na descon-
fianca, como tentaremos mostrar no ultimo capitulo.
Para chegar hi, e preciso negar-se a opcao mortal entre re-t6rica da argumentacao e retorica do estilo. Uma nunca esta
sem a outra",
No fim dos anos 60, urn academico, professor de materna-
tica, fundou urn instituto de pesquisas sobre 0 ensino, onde se
elaborava aquilo que recebeu 0nome de matematica nova. Urn
dia, diante de seus colegas, fez a seguinte pergunta: "Sera pos-
sivel demonstrar que nossa reforma tornara 0 ensino mais efi-
caz?" Pergunta honesta, porem ingenue. Pois, afinal, a eficacia
de urn ensino de matematica nao se demonstra matematica-mente! Essa e urna pergunta que nao esta realmente clara - 0
que significa "eficaz"? -, portanto a resposta nao pode ter a
evidencia de urna lei cientifica.
o que nao significa que a pergunta nao tern resposta. Se aausencia de demonstracao significasse nao-saber, nao haveria
ciencias hurnanas. Ora, elas existem, mas os conhecimentos que
proporcionam sao de ordem diferente do das ciencias "duras".
Isso para ilustrar a tese deste capitulo e de todo 0 livro:
entre a demonstracao cientifica ou 16gicae a ignorancia pura e
simples, ha todo urn dominio da argumentacao.
Esta constitui urn metodo de pesquisa e prova que fica a
meia distancia entre a evidencia e a ignorancia, entre 0neces-
sario e 0 arbitrario, Tanto quanto a dialetica - que eia continua
com outra forma -, constitui urn dos pilares da ret6rica. Os fi-
losofos, desde Descartes, acreditaram que esse pilar estivesse
destruido; no entanto eles mesmos precisam dele...
A itt6rica em si cornpoe-se de dois elementos: argumen-
tativo e oratorio. E ai vai nossa segunda tese: a importancia da
oratoria e maior quanto mais urgente for a questao, mais restri-
to 0acordo previo, e menos acessivel a argumentacao logica 0
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92 INTRODUr;AO A RET6RICA ARGUMENTAr;AO 93
audit6rio. Urn advogado sera bern mais orador se 0 tribunal
comportar urn juri; urn politico sera bern mais orador diante
das massas que diante do Parlamento, e mais ainda quanto me-
nor for 0 tempo que tiver para tomar a palavra. E entao que 0
etos e 0patos tendem a suplantar 0 logos, e e ai tambem que sur-
gem as figuras.Essas sao as duas teses que tentaremos defender com ar-
gumentos.
se audit6r io, termo que se aplica ate aos lei tores . Urn audit6r io
e, por definicao part icular , diferente de outros auditor ios, Pri-
meiro pela competencia, depois pelas crencas e finalmente
pelas emocoes, Em outras palavras, sempre ha urn ponto de
vista , com tudo 0 que esse termo comporta de relat ivo, l imita-
do, parcial. Ora, como a argumentacao pode modificar esseponto de vista sem recorrer pouco ou muito ao etos e ao patos?
Responderao que os proprios Perelman- Tyteca introdu-
zem a nocao de auditorio universal , que esta acima de qualquer
ponto de vista, portanto talvez de qualquer retorica. Mas onde
esta esse auditorio equal seria a sua utilidade para 0 argumen-
tador?
Sera urn auditorio nao especializado? E 0 que se pensava
as vezes no seculo XVII, com 0 testemunho de Moliere e Pas-
cal. Admitindo-se isso, a relacao entre 0 orador e 0 audit6rio
nem por isso deixara de ser retorica; por certo muito mais, pois
a vulgarizacao e bern mais ret6rica que a ciencia. E se 0pr6prioorador finge nao ser especialista, como Pascal em Provincia-
les, e estar interrogando ingenuamente especial is tas, na verda-
de esta utilizando uma figura completamente orat6ria, 0cleuas-
rno (ou autodepreciacao).
Sera urn auditorio nao particular, sem paixoes, sem pre-
conceitos, a humanidade racional, em suma? Mas invocar esse
auditor io, f ingindo que ele existe , poderia nao passar de artif i-
cio. Em politica, faz-se apelo ao homem acima dos partidos, ao
homem comum, ao homem de born senso, ao uomo qualun-
que... Nada de mais ideo16gico. Agora, sera que 0proprio filo-
sofo nao esta sendo ideologo quando afirma dirigir-se ao ho-
mem racional que esta acima de seu auditorio real (os leito-
res)? "Homens, sede humanos!", exclama Rousseau. Sera que
na verdade nao estava interpelando os intelectuais parisienses
de seu tempo? Dirigir-se ao "homem" por cima do ombro de
seu audit6rio real e utilizar uma figura completamente orat6-
ria, a ap6strofe.
Em suma, 0 auditorio universal poderia ser apenas uma
pretensao, ou mesmo urn truque retorico, Mas achamos que ele
pode ter funcao mais nobre, a do ideal argumentativo. 0 orador
As cinco caracteristicas da argumentacao
Como definir a argumentacao? Certamente nao como um
conjunto ou uma sequencia de argumentos! Pode-se definir 0
argumento como uma proposicao destinada a levar a admissao
de outra. Urn indicio serve de argumento a urn policial ou a urn
advogado, etc.: "pois", "de fato", "porquanto" ... e tambem aexpressao: "Considerando os fatos como sao ..."
Como se ve, certos argumentos sao demonstrativos, ou-
tros argumentativos, nao se podendo definir a argumentacao
senao a parti r do argumento. Argumentacao e uma totalidade
que so pode ser entendida em oposicao a outra totalidade: a de-
monstracao,
Inspirando-nos livremente em Perelman- Tyteca, diremos
que a argumentacao distingue-se da demonstracao por cinco
caracteristicas essenciais: 1) dirige-se a urn auditorio; 2) ex-
pressa-se em lingua natural; 3) suas premissas sao verossimeis;
4) sua progressao depende do orador; 5) suas conclusoes sao
sempre contestaveis, Veremos que todas essas caracter ist icas
incluem 0 componente oratoria da retorica e justificam nossa
segunda tese.
o auditorio pode ser "universal"?
Sempre se argumenta diante de alguem, Esse alguem, que
pode ser urn individuo ou urn grupo ou uma multidao, chama-
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94 INTRODU(:AO A RET6RICA ARGUMENTA(:AO 95
sabe bern que esta tratando com urn auditorio particular, mas
faz urn discurso que tenta supera-lo, dirigido a outros audito-
rios possiveis que estao alem dele, considerando implicitamen-
te todas as suas expectativas e todas as suas objecoes. Entao 0
auditorio universal nao e urn engodo, mas urn principio de su-
peracao, e por ele sepode julgar da qualidade de uma argumen-tacao'.
mam isso; e certo que argumentam e ensinam, mas por repeti-
coes, aliteracoes, ritmos, metaforas, alegorias, enigmas, que de-
senvolvem a funcao poetica em detrimento da funcao critica,
como se observa ainda em nossos proverbios,
Em suma, a argumentacao oral em geral e menos logica e
mais oratoria que a escrita. No entanto, cabe ressaltar uma ex-pressao, que se ouve nos debates mais tecnicos, e nso so nas
brigas de familia: "Se pelo menos pudessemos explicar pes-
soalmente!" Ela comprova que falta alguma coisa a argumenta-~ao escrita, que a oral tem urn valor insubstituivel, que a orato-
ria pode ser, de certa forma, heuristica.
Lingua natural e suas ambigiiidades
Na demonstracao e grande 0 interesse de se utilizar uma
lingua artificial, por exemplo a da algebra ou da quimica. A ar-
gumentacao desenrola-se sempre em lingua natural (exemplo,
frances), 0que significa utilizar com grande frequencia termos
polissemicos e com fortes conotacoes, como "democracia",
que esta longe de ter 0mesmo sentido e 0mesmo valor paratodos os oradores. Alem disso, a propria sintaxe pode ser fonte
de ambigiiidade. Tomemos como exemplo 0adagio: 0 homem
e 0 lobo do homem, que nao e apenas urn proverbio popular,
mas foi lugar da filosofia do seculo XVII. 0 que quer dizer? A
que corresponde a metafora do lobo: ser cruel, e verdade, po-
rem solitario ou em matilha? Neste ultimo caso, os lobos,
mesmo humanos, nao se comem uns aos outros, e e possivelcontinuar sendo lobos mesmo sendo irmaos! E significa "sem-
pre" ou "na maioria das vezes"? E 0 artigo 0 refere-se ao ho-
mem em sua essencia, ao homem natural anterior a cultura ou
ao homem de hoje? Em surna, 0 adagio tem tantas armadilhasquanta urn slogan publicitario. 0 mais notavel, porem, e que
nao sentimos sua ambigiiidade; basta ouvi-Io para que nos pa-
reca clarissimo. E que em lingua natural consideramos claro
aquilo que e apenas familiar.
Outra observacao: quando se fala de argumentacao, e pre-
ciso perguntar se ela e escri ta ou oral , pois isso muda tudo.
Uma argumentacao oral deve combater dois inimigos mortais:
desatencao e esquecimento; e so pode fazer isso por meio de
procedimentos oratorios. As chamadas culturas "orais" confir-
Premissas verossimeis: 0que e verossimil?
Do fato de0auditorio ser sempre particular, parece decor-
rer a terceira caracteristica, 0 carater simplesmente vero-simildas premissas, que nao sao evidentes em si, mas que "parecem
verdadeiras" a esse auditorio. Essa constatacao parece fadar-
nos ao relativismo: "A cada urn sua verdade."
Mas essa "constatacao" e erronea, pois repousa num jogo
etimologico de palavras. De fato, a verossimilhanca nao esta
ligada ao auditorio, e nossa terceira caracteristica e logicamen-te independente da primeira. 0 verossimil nao decorre de igno-
rancia, incompetencia ou preconceitos do auditorio, mas do
proprio objeto. Quando se trata de questoes juridicas, econo-
micas, politicas, pedagogicas, talvez tambem eticas e filos6fi-
cas, nao se l ida com 0 verdadeiro ou 0falso, mas com 0maisou 0 menos verossimil. Inversamente, num mundo onde tudo
fosse cientificamente certo, ja nao seria possivel argurnentar,
nem... agir. Em surna, a argumentacao nao deve resignar-se ao
verossimil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve res-
peita-lo como inerente a seu objeto e nao ter pretensoes a urn
cientificismo que nao passaria de engodo, que na verdade seria
anticientifico.
o que e entao 0verossimil? Para encurtar: tudo aquilo em
que a confianca epresumida. Por exemplo, osjuizes nem sem-
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96 INTRODUr;AO A RET6RICA ARGUMENTAr;AO 97
pre sao independentes, os medicos nem sempre capazes, os
oradores nem sempre sinceros. Mas presurne-se que0 sejam; e,
se alguem afirma 0 contrario, cabe-lhe 0 onus da prova. Sem
esse tipo depresuncao, a vida seria impossivel; e e a propria vida
que rejeita 0ceticismo.
Curnpredeixar claro que a argumentacao, mesmo se apoian-do no verossimil, pode comportar elementos demonstrativos,
no sentido de necessaries e, portanto, indubitaveis. De modo
geral, alias, esses elementos sao negativos; pode-se demonstrar
que urn projeto de lei nao e incompativel com a constituicao,
mas nao que sera benefice com certeza. E, se ha uma etica na
argumentacao, e de respeitar esses elementos demonstrativos
sempre que eles existirem.
Suponhamos, por exemplo, urndebate historico sobre0caso
Dreyfus: e certo que ele sempre comporta aspectos controver-sos, mas pode-se e deve-se considerar como "demonstrado" que
o capitao Dreyfus nao era culpado, que nao foi ele 0 autor dadocumentacao criminosa. Duvidar disso seria demonstrar par-
cialidade racista, e nao prudencia e objetividade.
Premissas verossimeis: 0 simples fato de invoca-las equi-
vale, pois, a apelar para a confianca do auditorio, para a sua
"presuncao", e comporta urn aspecto oratorio.
mesma conclusao; a palavra "alias", desconhecida na demons-
tracao, e freqiiente na argumentacao:
Demonstracao:-B-C-D ..· z
A ordem dos argurnentos e,pois, relativamente livre, e de-
pende do orador; vimos, de fato, que a disposicao dos antigos
compreendia dois planos-tipo, mas nada havia de necessario, e
podiam ser subvertidos. Por outro lado, depende do auditorio,
no sentido de que 0orador dispoe seus argurnentos segundo as
reacoes, verificadas ou imaginadas, de seus ouvintes. Em surna,
a ordem nao e logica, e psicologica.
Assim, ainda que 0 exordio seja muito util, pode-se as ve-zes comecar ex abrupto, como Cicero: "Ate quando, Catilina,
abusaras da nossa paciencia?" Ou ainda como de Gaulle, no
discurso feito emArgel em4 dejunho de 1958: "Eu entendi."
Se essas frases tivessem sido postas no interior do discur-
so,teriam perdido grande parte de sua eficacia.
Umaprogressiio que depende do oradorConclusiies sempre controversas
Se as premissas nao sao verossimeis, a progressao dos ar-
gumentos nada tern a ver com uma demonstracao. A. Lalandedefine assim a argumentacao: "Serie de argumentos, todos ten-
dentes a mesma conclusao,"Definicao que nos parece inadequada, devido a palavra
"serie", que lembra urna progressao linear. Se pudermos com-
parar a demonstracao a urna cadeia de argumentos ("essas lon-
gas cadeias de razoes" de Descartes), em que cada urn e com-
provado por aqueles que 0precedem, e cuja ordem e, portanto,
logica, a argumentacao sera mais semelhante a urnfuso de ar-
gumentos, independentes uns dos outros e convergentes para a
Nurna argumentacao, a conclusao nao e, ou nao e so, urn
enunciado sobre0
mundo; ela expressa acima de tudo0
acordoentre os interlocutores. Portanto, tern as seguintes caracteristi-
cas. Primeiramente, deve ser mais rica que as premissas, ao
centrario da demonstracao, em que a conclusao "sempre segue a
pior parte'"; se a argumentacao ficasse ai, seria esteril, ou esta-
ria limitada a ser apenas refutacao, Em segundo lugar, a conclu-
sao e reivindicada pelo orador como algo que deve impor-se,encerrarS debate. Mas, no que serefere ao auditorio, este nao e
obrigado a aceita-la; continua ativo e responsavel tanto pelo sim
quanta pelo nao; e principalmente nesse sentido que a conclu-
sao e controversa: ela compromete tanto quem a aceita quanta
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98 INTRODU9AO A RET6RICA ARGUMENTA9AO 99
E com referencia it atividade da fala que 0 filhote de ho-
mem se situa; a palavra "infantil" e formada por duas unidades,
in efari, que significam: "nao falar". Portanto, e a partir deumacarencia, de uma ausencia, que a crianca e percebida'.
Quanto a esta, a lguns acham que poderia ser formalizada,
ou seja , expressa em lingua art ificial . Mas 0verdadeiro proble-
ma e outro. Uma formalizacao s6 tern vantagem se for fecunda,
se permitir descobrir pelo calculo outros dados alem daqueles
que ela transcreve.
Nao nos parece que tal calculo seja possivel com a argu-mentacao; suas estruturas podem ser descritas , mas nso dedu-
zidas. Por que? Porque a argumentacao e dir igida ao homem
total, ao ser que pensa, mas que tambem age e sente.
quem a recusa. Urn born exemplo, que J.-B. Grize retirou de
uma obra pedag6gica, ilustra essas tres caracteristicas:
A conclusao que se segue ao portanto e bern mais r ica que
as premissas, po is 0 autor passa da opiniao dos romanos - opi-
niao que ele infere, e de maneira bern contestavel, a partir da
etimologia - a uma verdade universal: a crianca e percebida,que 0 autor coloca como necessaria . Mas 0 audit6rio pode nao
aceita-la, pois talvez nao atribua mais valor a etimologia do
que atribuiria a urn trocadilho. Seja como for, uma conclusao
nao e obrigat6ria: e sempre contestavel; mas 0 e em maior ou
menor grau. Tambem aqui e preciso renunciar ao tudo ou nada
em favor do mais ou menos verossimil.
Concluiremos que a argumentacao rejei ta a al ternat iva "ra-
cional ou emotivo". Pois as premissas sao crencas, e as crencas
sempre tern urn conteudo afetivo, e s6 pode ocorrer 0mesmo
com a conclusao, mesmo que em caminho 0 discurso consiga
modificar a afetividade; se 0orador transformar medo em con-
fianca, tris teza em alegria, tera l ibertado 0 audit6r io de senti-
mentos negativos, mas nao de sentimentos.
o que e uma "boa" argumentacao?
Antes de prosseguir, convem perguntar se opor assim ar-
gumentacao e demonstracao nao tern algo de forcado,
Pierre Oleron afirma assim que a pr6pria demonstracao
cientifica nao e tao pura e rigorosa quanto diz Perelman. No
pr6prio cerne das ciencias exatas encontram-se controversias
em que ambas as partes tern 0desejo de convencer, "de exercer
influencia'". Convem principalmente - cremos n6s - dist inguir
entre demonstracao logico-matematica, puramente formal, e
demonstracao experimental , na qual intervem tambem outros
criterios alem da validade logica, como por exemplo a falsifi-
cacao de Karl Popper, que seria muito instrutivo comparar a ar-
gumentacao'.
Ora, dizer que qualquer argumentacao e ret6rica, ou, em
outros termos, que comporta uma parte de orat6ria, nao sera
torna-Ia suspeita? Nao sera ela ipso facto manipuladora, seja
por confusao, seja por omissao, seja por seducao? Em suma,uma argumentacao pode ser boa? Como?
Note-se que, aplicado a argumentacao, 0 termo "boa" re-
fere-se a dois valores diferentes , ou mesmo opostos. Uma "boa"
argumentacao e a mais eficaz ou a mais honesta? E as duas
nem sempre estao juntas! Aqui nos ateremos ao problema da
honestidade.
Ora, se uma argumentacao e mais ou menos desonesta,
nao e porque seja mais ou menos ret6rica. Caso contrario Pla-
tao, cujos textos sao infini tamente mais ret6ricos, pelo conteu-
do orat6rio, que os de Arist6teles, seria menos honesto que es-
tel Entao, segundo quais criterios avaliar a honestidade dumaargumentacao?
o primeiro que vern a mente e 0da causa. Uma argumen-
ra<;ao valeria pela causa a que serve. Mas como explicar que
uma causa excelente seja as vezes defendida por rna argumen-
tacao? E, principalmente, como sabemos que uma causa e boa?o criterio-supoe que 0 valor da causa seja conhecido antes da
argumentacao encarregada de estabelece-lo: 0 que equivale a
julgar antes do processo, a eleger antes da campanha eleitoral ,
a saber antes de aprender. Nao existe dogmatismo pior.
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1 0 0 INTRODUC;10 A RETORICA ARGUMENTAC;10
Outro criterio, este interno, consiste em respeitar os ele-
mentos demonstrativos, ou seja , logicos, que a argumentacao
comporta. Em outras palavras: agir de tal modo que ela nao
seja sofistica.
mas, ainda que tenha muitas outras coisas censuraveis, Pode-se
responder , porem, que a argumentacao, pelo fato de comportar
elementos demonstrat ivos, pode abusar deles , sendo pois sofis-
tica no senti do estr ito. Vejamos os dois t ipos de argumentacao
descritos por Aristoteles,
oexemplo torna-se sofistico quando dele se extrai uma
conclusao que ultrapassa 0que ele mostra, quando se "extrapo-
la" do particular ao universal: tal e tal politicos de esquerda
aprovam essa medida; logo, a esquerda aprova essa medida.
o entimema torna-se sofis tico quando infr inge as regras
do silogismo, quando conclui alem daquilo que a logica lhe
permite. Vejamos a seguinte proposicao:
Os sofistas e a argumentacdo
Inspirando-nos em Lalande" , digamos que 0 sofisma e urnraciocinio cuja validade e apenas aparente e que ganha adesao
por fazer crer em sua logica. Pode servir assim para legitimar
interesses, amor-proprio e paixoes,
Portanto, e pela forma que urn raciocinio e sofistico, e naopor seu conteudo, Vejamos dois exemplos de silogismo.
o primeiro "demonstra" que 0sal mata a sede:
Dupont, par serdeputado de direita, precisou votar essa lei.
o entimema e valido se for admitida sua principal implicita:
- Beber agua mata a sede;- ora, 0 sal obriga a beber agua;
-logo, 0sal mata a sede.
Todos os deputados de direita votaramessalei.
Agora, urn segundo exemplo:
o segundo "demonstra" que 0barato e caro:
- Tudo 0que e raro e caro;- ora, urn born cavalo barato e raro;-logo, urn born cavalo barato e caro.
- Todos os deputados de direita votaram essa lei;
- ora, Durand votou essa lei;
-logo ...
o primeiro e urn sofisma grosseiro, que reside no equivo-
co do termo medio: beber = obrigar a beber, significando 0
segundo na realidade 0contrario do primeiro.
o segundo e urn verdadeiro silogismo, perfeitamente vali-
do. Donde vern entao 0 absurdo de sua conclusao? Do fato de
que as premissas sao falsas, e de que 0raciocinio prova isso pelo
absurdo. Prova que 0que e raro nem sempre e caro; ou ainda queurn born cavalo barato nem sempre e raro (em caso de rna venda,
por exemplo). Em suma, nao ha sofisma no sentido estrito, mas
urn erro que consiste em transformar 0provavel em certo.
Alguns autores arguem a oposicao entre demonstracao e
argumentacao, afirmando que esta nao pode comportar sofis-
Logo, nada! Nao se tern 0 direito de concluir . Durand po-
de ter votado a lei sem ser deputado de dire ita.
Vejamos urn terceiro entimema:
Essa medida e de esquerda porque foi tomada por urn go-verno de esquerda.
Basta enunciar a principal implicita:
Qualquer medida tomada por urn govemo de esquerda e deesquerda,
•para perceber que e falso, pois acontece de urn governo de di-
reita tomar medidas de esquerda e vice-versa. 0 entimema e
valido, mas sua premissa e falsa.
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102 INTRODUC;AO A RET6RICA ARGUMENTAC;AO 103
Em suma, urn entimema e sofistico quando conclui mais
do que deve. E falso quando toma por verdadeira urna premis-
sa, geralmente implicita, que e desmentida pelos fatos.
Podemos ir mais longe: urna argumentacao e sofistica, ou
pelo menos erronea, quando sua conclusao vai alem dos argu-
mentos que supostamente a estabelecem. Mas, dirac alguns, isso
nao acontece sempre? N6s mesmos afirmamos que urna conclu-
sao argumentativa e mais rica que suas premissas. E entao?
De olhos fechados compro tudo na primavera.
Ate 0dia em que urn outro respondeu:
Quando abro os olhos, euvou ao Louvre * .
Niio-parafrase eJechamento
o que ilustra urn principio fundamental: s6 sepode refutar urna
ret6rica em seu pr6prio plano, por meio de outra ret6rica.
Nao-parafrase e fechamento: demos numerosos exemplos
dis so em outros textos', Aqui ficaremos sat isfeitos com urn s6,
oja mencionado inicio da prime ira Catil inaria de Cicero:
Sofisma da argumentacao seria, portanto, ela dizer mais do
que sabe. Pois bern, existe a maneira de "dizer". Pode-se afir-
mar excluindo qualquer objecao - para comecar em simesma-,
mas tambem se pode propor sem impor, favorecer ao maximo a
pr6pria afirmacao, deixando-a aberta as criticas alheias. Essa
abertura constitui a honestidade da argumentacao,
Mas nao estara esta comprometida pela ret6rica? Aqui
cabe interrogar sobre 0 "dizer" pr6prio da ret6rica. Pelo que
dissemos acima, urn discurso e ret6rico quando, para persuadir,
alia seu componente argurnentativo a seu componente orat6rio,
a forma ao conteudo. Isso acarreta duas consequencias.
A prime ira e que 0 discurso ret6rico nunca e completa-
mente parafraseavel; em outras palavras, nao pode ser traduzi-
do, nem mesmo em sua pr6pria lingua, por urn discurso que
tenha absolutamente 0mesmo sentido. Vejamos 0 argumento
quase logico mencionado no TA :
Quo usque tandem abutere, Catilina,patientia nostra?
Os amigos demeus amigos sao meus amigos.
Ele mostra perfeitamente 0 efeito persuasivo decorrente da
alianca da forma com 0 fundo. Lembremos que essa pergunta
orat6ria substitui 0 ex6rdio, e que, se aparecesse mais tarde nodiscurso, produziria menos efei tos. Const itui uma ap6strofe,
que, alias, vai durar quase ate 0 fim da arenga; ora, se formos
parafrasear a ap6strofe: "ate quando Catilina abusard . .. " em vez
de "ate quando, Catil ina, abusaras . .. " , perderemos muito. Por
ser nao-parafraseavel, a pergunta tambem e fechada, pois e sem
replica. De fato ela contem tres pressupostos. Admitamos que
Catilina tenha respondido: "Vou parar ja"; sua resposta teria
deixado intactas tres afirmacoes: 1) houve paciencia; 2) ele
abusou dela; 3) essa paciencia era "nossa". Note-se, enfim, que
Cicero conseguiu fundir numa mesma frase duas figuras opos-
tas: a ap6strofe e a prosopopeia: finge dirigir-se a outro (Cati-
lina), e nao a seu audit6rio, mas faz 0 seu audit6rio (0 Senado)
-falar por sua voz: pa ti en ti a n o st ra .
Mas quem nao percebe que, sem essa ret6rica, sem esse
elemento orat6rio, Cicero arriscava-se a fracassar? Sua argu-
mentac;aoioi eficaz: seria por isso desonesta?
E simples perceber que, se substituirmos amigos por alia-
dos ou por quem me ama ... 0 argumento desaparece integral-
mente.
A segunda e que urn discurso ret6rico e sempre mais ou
menos fechado, sem replica. Urn born slogan e aquele que ex-
clui qualquer resposta; e mau (ineficaz) em caso contrario. Nos
anos 30, uma grande loja anunciava:* Note-se que em frances ha rima: Quand je les ouvre,je vais au Lou-
vre. (N. do T.)
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104 INTRODU9AO A RETORICA ARGUMENTA9AO 105
A nosso ver, a caracteristica da boa argumentacao nao esuprimir 0 aspecto ret6rico - uma argumentacao inexpressiva
nao e obrigatoriamente mais honesta -, mas equilibra-lo, se-
gundo dois criterios.
A nao-parafrase pode-se opor 0 criterio da transparencia:
que0
ouvinte fique consciente ao maximo dos meios pelosquais sua crenca esta sendo modificada; 0encanto e a poesia do
discurso nao serao destruidos por isso, mas serao dominados.
Ao fechamento, pode-se opor 0 criterio da reciprocidade:
que a relacao entre 0orador e 0 audit6rio nao seja assimetrica,
que 0 auditorio tenha direito de resposta. Esses dois criterios
nao tomam a argumentacao menos retorica, porem mais ho-
nesta.
Naturalmente, esse mais e relativo. Uma mensagem publi-
citaria e bern menos transparente e reciproca que urna argu-
mentacao academics. No limite inferior, encontramos esse fe-
nomeno proprio do nosso seculo, a lingua estereotipada da pro-paganda, mensagens sem nenhuma transparencia nem sentido
preciso, sem nenhuma reciprocidade, pois se trata do discurso
de urn poder cuja "ret6rica" nao tern outra funcao alem de ex-
cluir a critica.
A linguagem estereotipada da propaganda nao e a ret6ri-
ca; e apenas sua perversao mais caricatural. 0 que salva a reto-
rica e precisamente 0que exclui esse tipo de linguagem: 0dia-
logo.
outros, deve atrair e prender a atencao, ilustrar os conceitos,
facilitar a lembranca, motivar ao esforco, Iremos mais longe:
aquilo que hoje chamamos de "transposicao didatica" faz parte
da retorica; ensinar uma materia e conferir- lhe uma clareza,
uma coerencia que ela nao tern necessariamente como ciencia,
e passar da invencao it elocucao e it acao, porem muitas vezes
em detrimento do conteudo propriamente cientifico. As peda-
gogias ativas, que tendem a suprimir a aula professoral, nao
escapam a essa regra: 0 que ha de mais ret6rico do que conhe-
cer antes aqueles que vao ser instruidos e obter sua adesao?
Note-se enfim que, mesmo quando se trata de ensinar a de-
monstrar, so se obtem resultados atraves da argumentacao reto-
rica. E aqui tomamos a liberdade de transcrever uma experien-
cia pessoal do tempo do liceu:
- A professora: Durand, mostre que essas duas retas sao
paralelas. - Durand: Esta se vendo, professora! -A professora:
Durand, aprenda de uma vez por todas que em matematica naose vi!nada, demonstra-se.
Argumentaeao pedag6gica, judiciaria, filos6fica
Esses imperativos ressaltam 0 aspecto assimetrico do en-
sino, mesmo quando se afirma que ha dialogo ou cooperacao.
S6 que 0 verdadeiro professor nunca dissimula sua ret6rica; ao
contrario: ensina os procedimentos retoricos que possibilitam
ensinar, eleva assim os alunos a tomar-se mestres no assunto.
o ensino e, pois, urna relacao assimetrica que trabalha por suaabolicao, para que 0 aluno se tome, se possivel, igual ao mes-
tre. Ai esta ajustificativa do "poder docente".
Poder-se-ia pensar que 0 ensino define urn modelo de re-torica "transparente" e "reciproca" que deveria ser encontrada
em todos os outros setores, pelo menos nas democracias. Con-
venhamos que isso e utopia. E acrescentamos: utopia das maispemiciosas.
Tomemos como exemplo 0 setorjudiciario. Se nos atives-
semos aomodelo pedagogico, urn processo penal deveria ser
urn dialogo ap6s 0 qual 0 reu confessaria livremente seu crime
e pediria para ser castigado. Esse, alias, era 0ponto de vista de
Platao em Gorgias, e foi isso 0que os processos stalinistas pre-
Dialogo: vamos ve-Io em acao em tres casos peculiares:
ensino,justica e filosofia.
Dopedagogico aojudiciario
o ensino nao pode prescindir da pedagogia; e toda peda-gogia e ret6rica. 0 professor e urn orador que, como todos os
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106 INTRODUC;10 A RET6RICA ARGUMENTAC;10 107
tenderam realizar: processos pedag6gicos cujo objetivo era
educar nao s6 0publico mas tambem os culpados, ou pretensos
culpados ...
Nossa democracia nao tern essa pretensao. Distingue nit i-
damente a et ica dojudiciar io , em que as decisoes nao implicam
a anuencia do culpado. Nao se espera que0
reu aceite0
vere-dicto que 0 condena; ninguem the diz: "Nao queremos coagi-
1 0 . . . " Admite-se que a justica pode coagir. E isso e inevitavel,
pois Msempre 0 risco de que a anuencia do condenado seja
obrigat6ria, portanto hip6crita. Em todo caso, nada e mais
nocivo que introduzir a relacao pedag6gica nos dominios nao
educacionais; isso nao e libertar os homens, mas sim infantili -
za-los.
No judiciario, 0 dialogo "ecumenico" da lugar ao debate
polemico, em que 0 objet ivo nao e convencer a parte adversa-
r ia , mas uma terceira parte, 0 t ribunal . E 0 advogado nada tern
de professor; sua finalidade e fazer de tudo para tornar valida acausa de seu cliente, para the dar todas as oportunidades de
vit6ria. S6 que 0advogado nao esta sozinho, mas tern diante de
si colegas capazes de desmentir sua ret6rica, de contradita- la
com outra. E as duas partes preparam dessa maneira 0 julga-
mento do tribunal.
tr ibunal que designa peritos e depois , eventualmente, uma nova
pericia, de tal modo que 0processo pode durar muito tempo.
Assim, em 1909, grande numero de expropriados entrou
com uma ac;ao na justica que durou ate 1913. Mas as indeniza-
c;6es foram suspensas em 1914 por causa da guerra. Em 1919,
os expropriados voltaram it justica devido it desvalorizacao;
nessa epoca, a moeda belga perdera a metade do valor e, em
1926, no fim do caso, seis setimos do valor! Caberia indenizar
os expropriados segundo 0 valor nominal fixado em 1913,
como se nada tivesse acontecido? Nesse caso, as diferentes ca-
maras do tribunal de Bruxelas deram respostas contradi t6rias.
Em resumo, os veredictos de tipo A eram favoraveis aos expro-
priados, os do tipo B contraries.
A) S6 uma das camaras julgou que seria preciso recalcular
o valor da indenizacao - digamos em 1926 multiplica-la por
sete -, argiiindo que a lei previa urn ressarcimento "justo", ou
seja, que permitisse ao expropriado adquir ir bern equivalente
ao que possuia na epoca da expropriacao. Alem do mais, julga-
va a camara: nao se pode atribuir ao expropriado a responsabi-
l idade pela duracao do processo, pois ele "t inha 0direi to de fa-
zer tudo 0que est ivesse ao seu alcance" para obter a indeniza-
Gaomais favoravel (in Foriers, p. 311).
Ate aqui, temos a impressao de que se trata de uma de-
monstracao pura e simples, porquanto 0veredicto so podia con-
tar com a anuencia dos interessados.
B) No entanto, varias camaras do mesmo tribunal toma-
ram a decisao contraria, mesmo diferindo em termos de argu-
mentos. Vejamos os mais notaveis,o montante da indenizacao deve levar em conta unica-
mente 0 valor do im6vel na epoca da expropriacao, e nao as
"f lutuacoes" que se seguiram. Nao fosse assim (argumento por
absurdo), caso esse valor tivesse baixado, ser ia preciso reduzir
proporcionalmente a indenizacao. Em todo caso, "a avaliacao
dependeria de fatores arbitrarios" (p. 314).
Outro argumento: 0Estado que desvaloriza a moeda deci-
de apenas diminuir seu poder aquisitivo; nao decide ipsofacto
elevar os precos. Inflacao nao e desvalorizacao, e apenas uma
Uma controversia judic iaria:
os expropriados e a desvalorizaciio
Vejamos urn exemplo de controversia em direi to civil , queagitou a opiniao publica da Belgica entre 1920 e 1926, mas que
tern a ver com muitos outros paises', Trata-se da indenizacao
devida aos expropriados. Falaremos em linhas gerais, sem nos
perder em detalhes tecnicos,
A expropriacao em caso de util i dade publica e uma venda
forcada, Os proprietaries sao obrigados legalmente a ceder seu
im6vel ao Estado (ou as comunas), do qual se tornam entao
"credores"; a unica coisa que podem conte star e 0montante da
indenizacao proposta . Se fizerem isso, a questao vai parar nurn
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108 INTRODU9AO ,4'RET6R1CAARGUMENTA9AO 109
d e s ua s c on se qu en cia s m ais o u m en os p re vis iv eis ; a co nte ce a te
d e urn E stad o d es valo riz ar s em q ue o s p re co s s ub am (a rg um en -
to de dissociacao ). Po rtan to , se 0 e xp ro pr ia do f or i nd en iz ad o
segundo 0 v alo r d o im 6v e1 do ze an os d ep ois , c ria -s e u rn p re ce -
d en te p ar a a e sp ec ul ac ao .
U r n u lt im o a rg um en to e m ais fo rte, po rque dirigido a urn
a ud it6 rio b ern m ais a mp lo e m en os e sp ec ia liz ad o: e a regra dejustica. A desvalo rizacao e urn a m edida adversa que atin ge to-
dos os credores, e deve atingi-los com igua1 dade. O ra, se for
co ncedida um a in den izacao co mpen sat6ria apen as aos expro -
p ri ad o s, c ri ar -s e- a um a " c at eg or ia d e p ri vi le gi ad o s" .
S eg un do a rg um en to : u rn a d iss oc ia ca o, A te e nta o a s c am a-
ras tinham considerado a moeda como meio de pagamento .
Leclerc vai m ostrar que a m oeda tam bem e - sobretudo - um
in stru me nto d e m ed id a d a e co no mia . O ra , a s de sv alo riz ac oe s
h av ia m c ria do um a n ov a m ed id a
que na verdade e sete vezes menor que a antiga. Doravante 0
franco legal e outro bern diferente do franco legal estabelecidopela legislacao ab-rogada. (p. 321)
Nao e concebivel que 0expropriado tenha mais direito [queos outros credores] de prevalecer-se de uma desvalorizacao da
moeda que ocorreu posteriorrnente [a expropriacao], (p. 316)
A ultim a frase introduz um a nova retorsao: S egundo V .
E x:', n ao d ev em s er le vad as e m c on ta as " flu tu ac oe s" p os te rio -
re s it e xp ro pria ca o; o ra, a ce ita nd o o utro fra nco le ga l, e sta se n-
do feito aquilo que V Ex'.' condenam . N ote-se a epanalepse:
f ra nco l eg a l.
E ss e e xemp lo m os tr a q ue c er to s ra ci oc in io s a pa re nt em en -
te d em on stra tiv os n a rea lid ad e s ao a rg um en ta tiv os e re t6 ric os .
C ad a u rn re po us a s ob re p rin cipio s a pe na s v ero ss im eis : B a te m-
se it le tra d a le i, c uja in fra ca o ab riria a s p orta s p ara a a rb itrarie -
dade e a desigualdade. A apoia-se na eqiiidade e nega que se
deva observar apenas a lei num a situacao que ela pr6pria nfio
p rev ira (a d es va lo riz aca o). F in alm en te , C te rn g an ho d e c au sa
s ob re B utiliz an do a rg um en to s d e B .
A pr6pria solucao decorre do debate contradit6rio . M as
sera ela racio nal? N ao , po r certo, po rem certam ente " mais ra-
zoavel".
F in alrn en te , u m a rg um en to q ue re sp on de ao u ltim o d e A : o s
expropr ia dos, d i la ta ndo 0 p ro ce ss o, s ao c au sa do re s d o p r6 priop re ju iz o, e d ev em c on si de ra r- se o s u ni co s r es po ns av ei s p or e le .
C om o se ve, en quan to A favo rece 0 e xp ro pr ia do , B f av o-
rece 0 expro priado r, que po dera pagar em m oeda que vale sete
v ez es m en os . E nq ua nto A ju lg a em n om e da ''jus ta '' re pa ra ca o,
B ju lg a s eg un do 0 texto da lei, em no me do risco de arbitrarie-
dade, e atem -se apenas ao sentido legal da palavra ''justo '' -
assim co mo se fala de " justas n upcias" (p. 3 19 ). A qu i e nc on -
tramos 0d eb at e- ti po d e A ri st 6t ele s ( cf. supra, p . 5 0).
C) A s sentencas de tipo B ganhavam em num ero, m as in-
dignaram a o pin iao publica. A C orte S uprem a deu parecer fa-
voravel as sentencas de tipo A em 1 92 9, depois de um a defesa
v eeme nt e f ei ta p elo p ro cu ra do r g er al, P au l L ec le rc .
E sta o po e a B d ois a rg um en to s.
P rim eiro um a reto rsao da regra de justica. S e e que nao se
d ev e c ria r d es ig uald ad es d ia nte d a le i, p or q ue s 6 o s e xp ro pria -
d os d ev er ia m p ag ar o s c us to s d a d es va lo ri za ca o? 0Estado
Argumentaciio filosofica: onde esta 0 tribunal?
foi evidentemente culpado por fazer recair sobre uma c1asse
social em particular os custos da reparacao, unicamente porque
essa c1asseestava em situacao de deixar-se pilhar (p. 320; "pi-
lhar": metafora hiperbolica),
1 E a filo so fia? P oderia ser co mparada a um a co ntro versia
.. e m q ue c ad a fil6 so fo s eria ad vo ga do d e s ua p r6 pria c au sa d ia n-
te de urn tribun al que seria ... quem sen ao 0 le it or ? M as 0 leitor
d ificilm en te a dm itira s er m elh or juiz d o q ue a que le s q ue e le le ;
ju lg ar a p hr a s i, e v erd ad e, m as n ao p ara o s o utro s.
o fato e q ue o s fil6 so fo s n ao fo rm ula m 0 p ro blema d es sa
m an eira, principalm en te - co mo vim os - a partir de D escartes.
O s m aio res d ele s a firm am s er d em on stra tiv os , " ap odic tic os ",
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1 10 INTRODU9AO A RET6RICA ARGUMENTA9AO 111
dizia Kant na lingua de Aristoteles; ese, as vezes, aceitam 0
termo argumentacao e deixando claro que ela nao poderia ternada que fosse retorico.
A essa pretensao dos fil6sofos, de serem demonstrativos
podem ser opostos tres argumentos, dos quais os dois primei-
ros decorrem do lugar da unidade. 0 primeiro e que os filoso-fos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas,
embora a demonstracao so possa redundar numa verdade uni-
ca. 0 segundo, ainda mais forte, e que as estruturas da demons-tracao nao sao asmesmas, segundo setrate de cartesianos Kant,
Hegel, Bergson, Husserl, neopositivistas e outros. Ha uma so
matematica, enquanto existem varias filosofias.
o terceiro argumento (exemplo) mostra que na verdade osfilosofos todos recorreram, em maior ou menor grau, a argu-
mentacao. Descartes argumenta para provar que e precisodemonstrar. Spinoza, que constr6i toda a Etica "de more geo-
metrico" (segundo 0 metodo geometrico), acrescenta a suasdemonstracoes os mais importantes "escolios", que as ilustram
de modo pedagogico e retorico: tudo acontece como se ele ti-
vesse escrito seu livro duas vezes, a primeira para Deus e a se-
gunda para nos. Hegel procede da mesma maneira na Enciclo-
pedia. E hoje em dia? Hoje em dia parece que a filosofia cin-
diu-se: de urn lado urna investigacao Iogica rigorosa, porem es-
teril; de outro, urn discurso retorico que, por falta de interro-
gar-se sobre sua propria argumentacao, incide no arbitrario,
No entanto, a pretensao de ser demonstrativo comporta
certa dose de verdade, pois permite distinguir 0filosofo do ad-
vogado, tanto quanto, alias, do pedagogo.o proposito do filosofo e encontrar, e niio ensinar 0 que
outros encontraram, ainda que muitas vezes se encontre mais
ensinando. Assim tambem, sua tarefa nao e defender urna cau-sa, e sim sustentar uma tese. Onde esta a diferenca?
Uma causa exige urn juizo hie et nunc; uma tese visa a
uma explicacao de a1cance universal; ela nao responde a per-
gunta: "Catilina e injusto?", mas a outra bern diferente: "0 que
e justo e injusto?" E mesmo que a pergunta tenha alcance prati-co, como aqui, e de longo prazo e para todos. Se cumprisse
vincular a filosofia a urn dos tres generos, seria ao epidictico.
De fato, numa causa e sempre preciso suplantar, impor urn ve-redicto para por fim ao debate. Uma tese, porem, nunca e im-posta, e sim proposta. Mas a quem?
Consideremos urn exemplo em que seve a pior retorica (a
mais facil) passar como por milagre a servir a filosofia, mila-
gre chamado Socrates, Em Eutidemo de Platao, 0 sofista Dio-
nisodoro fala assim do ensino:
Quereis que [0 aluno] passe a ser sabio e nao seja mais
ignorante? (...)Uma vez que quereis que ele deixe de ser 0que e ,desejais sua morte? (283 s.)
Ele utiliza urn sofisma, afallacia accidentis, em que se
muda urn nexo acidental: nao ser mais ignorante (nexo aciden-
tal), nao ser mais, portanto morrer. Essa metafora do ensino
como morte e urn tanto freudiana, e lonesco, alias, realiza-a emA liciio, em que 0 professor, por ardor pedagogico, acaba ma-tando 0pobre aluno...
Ai entra 0humor de Socrates; em vez de desmentir a me-
tafora (morrer), brinca com ela e extrai urna licao:
Se [esses sofistas] sabem aniquilar aspessoas detal manei-
ra que as transformam de viciosas e insensatas em virtuosas e
sabias (...), que matem esse menino para torna-lo sabio, e a nos
tambem por acrescimo, (285 b)
o grosseiro sofisma transforma-se em metafora, ao mesmo
tempo pedagogica e religiosa. Todo verdadeiro ensino e emcerto sentido - sentido metaforico, portanto retorico - uma
morte. E urn novo nascimento.Convem lembrar que em Eutidemo, assim como em todos
os dialogos, os interlocutores sao apenas vozes interiores de
Platao, que ve a filosofia como urn dialogo consigo mesmo; por
isso, quando 0 fil6sofo propoe uma tese, 0faz primeiro a simes-
mo. E a retorica entao? Como todo dialogo, 0 dialogo interior
tarnbem a utiliza, mas confrontando-a logo com uma outra. Por-
tanto, 0que distingue 0 filosofo - mesmo quando fala depolitica
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112 INTRODUr;AO A RET6RICA Capitulo VI
Figurasou de direito - do politico e do advogado e que ele sustenta ao
mesmo tempo 0pro e 0 contra, e que ele e ao mesmo tempo 0
advogado e seu adversar io, Mas qual e 0tribunal?o audit6rio universal , responderia Perelman. Mas deixe-
mos claro que ele nao esta em lugar nenhum, senao em cada
um de n6s. Em Gorgias, quando S6crates declara a Polos que0
culpado e mais digno de lastima que sua vitima, e 0 culpado
impune mais infel iz que 0punido, Polos exclama que ninguem
admitiria tais paradoxos! E S6crates:
Tens por ti, Polos, todo 0mundo exceto eu. E eu nao peco
anuencia nem testemunho de ninguem, senao de ti. (475 e)o que e f igura? Urn recurso de est ilo que permite expres-
sar-se de modo simultaneamente l ivre e codificado. Livre, no
sentido de que nao somos obrigados a recorrer a ela para comu-
niear-nos; dessa forma, qualquer urn podera dizer que vai se
suicidar para por fim a uma paixao culposa, sem precisar re-
correr a s figuras de Fedra:
Ai esta 0supremo tr ibunal , Em Polos. Em cada urn.
Ai esta 0que tentamos demonstrar neste capitulo" . Inicial-
mente, que a argumentacao existe como meio de prova dist into
da demonstracao, mas sem incidir na violencia e na seducao,
Depois, que ela comporta uma parte de oratoria, e que os anti-
gos tinham razao em unificar seus elementos racionais e afeti-
vos num mesmo todo, a retorica.
Essa uniao vamos agora observar nas figuras.
Para ocultar da luz uma chama tao negra.
Codificado, porque cada figura constitui uma estrutura .co-
nhecida, repet ivel , t ransmissive! ' Assim, no verso de Racine,
identificam-se quatro metaforas e urn oximoro (chama ta o
negra). .A expressao "figuras de ret6riea" nao e pleonasmo, pots
existem figuras nao ret6ricas, que sao poeticas, humorist icas
ou simplesmente de palavras. A figura s6 e de retorica quando
desempenha papel persuasivo.
A religiao e 0opio do povo.
A esta metafora, Raymond Aron responde com outra:
o marxismo e 0opio dos intelectuais .
•Marx e Aron tern pelo menos alguma coisa em comum:
nao fazem metaforas por gosto nem por questao de estilo, mas
para convencer. A figura de ret6rica e funcional.
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114 INTRODUC;AO A RETOR/CA F/GURAS 115
Mas como? Quando os antigos falam das figuras, e para
evocar 0 prazer que elas proporcionam, que eles relacionam
com 0 deleetare e mais raramente com 0movere. A figura se-
ria, portanto, urna fruicao a mais, uma licenca estilistica para
facilitar a aceitacao do argumento. Assim e que na Retorica a
Herenio encontra-se urn exemplo de epanalepse:
Figuras de pensamento, como a alegoria, a ironia, que di-
zem respeito a relacao do discurso com seu sujeito (0 orador)
ou com seu objeto.
F ig ur as d e p ala vr as
Como se urn dardo atingisse varias vezes 0mesmo lugar
docorpo.
o que caracteriza as figuras de palavras? 0 fato de serem
intraduziveis, de poderem ser destruidas por menos que se
mude sua materia sonora. Por isso, parecem reservadas a poe-sia ou, a rigor, ao humorismo. Entretanto, devem desempe-
nhar bern alguma funcao argumentativa, porque os filosofos
mais racionalistas recorrem a elas. Assim, basta traduzir a
expressiio Soma sema de Platao - "corpo, urn tumulo" - para
destrui-la, a nao ser que se perca 0poder da metafora.
Essas figuras se dividem em dois grupos:
Nao te abalaste quando urna mae te beijou os pes, nao te
abalaste? (IV, 38)
Por que esta repeticao? Segundo 0autor, tern duas funcoes: emo-
cionar 0audit6rio e ferir a parte contraria:
Se 0argumento e 0prego, a figura eo modo de prega-lo ...
Perelman- Tyteca tambem veem na repeticao urna figura
de "presenca", uma das que fazem sentir 0 argumento. Para
eles, porem, ela nao se reduz ao patos; nao e apenas 0que faci-
lita 0argumento, mas constitui 0proprio argumento; desse mo-
do, 0 primeiro Niio te abalaste ... indica urn fato; 0 segundo,
depois de quando uma mae, ressalta 0 carater chocante desse
fato, incompativel (argumento) com os valores da humanidade.
Para 0 TA , toda figura de ret6rica e urn condensado de argu-
mento: a metafora e condensado de analogia, etc. A nosso ver,
essa teoria e intelectualista demais; esquece-se do prazer da
figura, que deriva ora da emocao, ora da comicidade, mas sem-
pre do patos.
Aqui estudaremos a funcao argumentativa das principais
figuras de retorica', que classificaremos conforme suas rela-
c;oes com 0discurso em que se encaixam.
Figuras de palavras, como ° trocadilho, a rima, que dizem
respeito a materia sonora do discurso.
Figuras de senti do, como a metafora, que dizem respeito a
significacao das palavras ou dos grupos de palavras.
Figuras de construcao, como a elipse ou a antitese, que di-
zem respeito a estrutura da frase, por vezes do discurso.
Figuras de ritmo
Para os antigos, 0 ritmo da frase tern importancia capital,
pois e a musica do discurso, 0que torna a expressiio harmonio-
sa ou tocante, sempre facil de ser retida. 0 problema e que os
elementos constitutivos do ritmo, como 0 acento tonico e a ex-
tensao das silabas, nao sao marcados em todas as linguas. Des-
se modo, por exemplo 0slogan alemao de 1968:
tern estrutura especular: iambico, troqueultroqueu, iambico. Os
esquerdistas franceses, por exemplo, foram obrigados a atri-
buir-lhe urn ritmo arbitrario:
'" E so 0 comeco; sigamos a luta. (N. do T.)
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116 INTRODUC;AO A RETOR/CA FlGURAS 1 17
Beber ou guiar, convem optar. (5+ 5)
b) Silabas: paronomasia: Traduttore, traditore, de cuja tra-
ducao nao sobra grande coisa (tradutor, traidor). A rima e urna
paronomasia no final das palavras, que retoma em ritmo regu-
lar: Valery au tri, Anemone au telefone [Valery na triagem,
Anemone no telefone] (slogan dos carteiros em greve, em
1975, que brinca com 0 nome do presidente frances e de sua
esposa).
c) Palavras: a figura baseia-se ora na homonimia, ora na
polissemia.
A partir da homonimia, cria-se 0 trocadilho, que aproxima
duas palavras identicas no som, mas com sentido diferente.
Freqiientemente grosseiro, e fino quando cria urna relacao
inesperada com a situacao. Freud, em 0 chiste, conta que, nurn
baile, urna italiana da urn born troco a Napoleao, quando este
lhe pergunta se todos os italianos dancavam tao mal: Non tutti,
ma buona parte ... 0 imperador podia entender: nem todos, mas
boa parte, e podia entender tambem que se tratava de urn nome
proprio, 0 seu.
A figura que se baseia na polissemia e a antanaclase, que
se aproveita de dois sentidos ligeiramente diferentes de uma
mesma palavra; como por exemplo no slogan que aconselha 0
exame de mamas:
No entanto, os proverbios, os slogans, certas "frases anto-
logic as" muitas vezes tern urn ritmo proprio gracas ao qual fi-
cam na memoria:
Qsc@s @dtam/ e_a/ c~ra~'@llap~ssa,_ ,
F~a9a_al!l9r,a.9fuc;a~.J;rra,_ ,
Vejamos algumas figuras de ritmo mais complexas. A pa-
risose e urn periodo composto por dois membros de mesma ex-
tensao:
A clausula e uma sequencia ritmica que termina urn perio-
do, como esta com seis pes que termina a celebre peroracao de
Danton:
Pour fes vaincre, Messieurs, if nousfaut de l 'audace, en-
core de l'audace, toujours de l'audace, et faFrance est sauvee.(in Suhamy, p. 76) _ _ - _ ~-
[Para vence-los, senhores, precisamos de audacia, mais au-
dacia, sempre audacia, e a F r anc a e s ta salva.]
Em todos os casos, 0 ritmo gera urn sentimento de eviden-
cia proprio a satisfazer 0 espirito, mas tambem a conseguir sua
adesao ... Poe 0pensamento sobre trilhos.
Eu tenho peito.
Enquanto 0 trocadilho e sobretudo fatico, deixando 0 ad-
versario sem palavras por desarma-lo, a antanaclase tern a1can-ce argumentativo, permitindo pseudotautologias:
Figuras de som: aliteraciio,
paronomasia , an tanaclase Negocios sao negocios ...
As figuras de som imp licam fonemas, silabas ou palavras.
a) Fonemas: aliteracao, em que ha repeticao de urna mes-
rna letra na frase, como por exemplo na frase de De Gaulle, que
lembra 0resmuninhar dos velhos mal-hurnorados:
Ligada 11antanaclase esta a derivacao, que associa uma
palavra a outra de igual radical. Assim, no discurso de 30 de
maio de 1968, de Gaulle denunciava os contestadores que im-
pediaru P
La grogne, farogne et fahargne. (r, gn [nh])
[Resmungo, rezinga, rabugem]
os estudantes de estudar, os professores de ensinar [les enseig-
nants d'enseigner], os trabalhadores de trabalhar.
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118 INTRODU(:AO A RETORICA FlGURAS 119
Umargumento retorico: a etimologia
criar uma his t6ria do vocabulario. Por exemplo, em latim clas-
sico, puer designa a crianca, infans 0 bebe, aquele que nao
fala (fari, falar ). Mais tarde, as designacoes das faixas etarias
acabam com outra distribuicao, e infans designa aquele que
ainda nao chegou a adolescencia, Mas, dai a pretender que a
infdncia e, "por definicao", 0periodo em que nao ha fala, naotern 0menor fundamento, e propriamente erroneo. Na verda-
de, 0 argumento etimol6gico esquece-se de outra lei l ingiiist i-
ca, a de que a palavra s6 tern sentido sincronicamente, ou
seja, no sistema presente de uma lingua. Desse modo, a pala-
vra "infancia" s6 tern sentido em relacao a "lactacao" e a
"adolescencia"; e 0 latim nao tern autoridade alguma nesse
sentido.
o argumento etimol6gico as vezes cai no ridiculo. Cabe
citar nesse aspecto os adversaries de Freud que, no inicio do
seculo, pretendiam refuta-lo aduzindo 0 "sentido etimol6gico"
de histeria, derivado do grego hystera, utero , para af irmar que,
"por definicao", histeria s6 poderia ser doenca de mulher! Everdade que depois disso os psicanalistas inventaram muitas
outras' ...
Etimologia como parte da hist6ria das linguas, sim. Eti-
mologia como argumento, talvez, porem do mesmo tipo da an-
tanaclase, e nao do trocadilho.
Uma ultima observacao sobre as figuras de palavras: deve-
se evitar 0 abuso. Lembremos J.-J. Rousseau que, em Emilio,
vocifera contra La Fontaine, dado as criancas como "moral":
Se ele tivesse dito: lesprofosseurs d 'enseignet; les ouvriers [ope-
rarios] de travail/er, 0 argumento de incompatibilidade ter ia
desaparecido.
Pergunta: de onde vern a forca persuasiva das figuras de
palavras? Elas facilitam a atencao e a lembranca, mas nao e s6isso. Lembremos 0 principio lingiiistico da arbitrariedade do
signo, segundo 0 qual as palavras nao sao "motivadas": nao ha
razao para dizer mesa, em vez de Tisch ou tavola. Esse princi-
pio tambem se aplica as nossas figuras de palavras: nao e por-que dois signif icantes sao identicos que seus signif icados tam-
bern 0 sejam; e, no entanto, tudo acontece como se fossem iden-
t icos. As figuras de palavras instauram uma harmonia aparen-
te, porem incisiva, sugerindo que, se os sons se assemelham,
provavelmente nao e por acaso. A harmonia e comprovada pelo
prazer '.
Que prazer? Do achado, da "felicidade de estilo" (Alain).
Podemos ir mais longe. Segundo os psicologos, a crianca des-
conhece a arbitrariedade do signo; para ela, a palavra tern rela-
9aO com a coisa. Cabe perguntar se 0 adulto, que se deleita
com uma figura de palavras - seja ela engracada ou poetica -
nao es ta no fundo sentindo 0prazer de retornar a infancia,
Entre as figuras de palavras, e preciso contar a etimologia,
que serve de argumento tanto para as definicoes quanta para asdissociacoes. Recorrer a e timologia para definir 0 "verdadei-
ro" sentido de uma palavra na verdade e urn ato de poder pelo
qual 0 orador impoe seu "senti do", portanto seu ponto de vista,
ao audit6rio.
Note-se que muitas vezes a etimologia e falsa: "religiao"seria relacionavel com "relego" [percorrer de novo, revisitar]
ou com "religo" [religar]? "Educacao" viria de educere (con-
duzir para fora)? Conjecturas ou fantasias. Mas, ainda que
verdadeira, a etimologia teria algum valor? E evidente que
nao se deve rejeitar a hist6ria das palavras. Caberia mesmo
s an s s on ge r q ue I' a po lo gu e, e n le s a mu sa nt , l es a bu se
[sempensar que ° ap6Jogo, distraindo, trai].
Se ele t ivesse di to: en les amusant, les trompe [distraindo, en-
gana], nao haveria atrativo. "Les amuse et les abuse" [distrai
e trail seria vistoso demais, nouveau-riche demais; desviaria
a aten9a9 da tese em vez de valoriza-la. Ret6rica, arte fun-
cional.,
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120 INTRODUC;AO A RETORICA FIGURAS 121
Figuras de sentido T ro po s s im p le s: m e to nim ia s, s in ed oq ue s, m e ta fo ra s
Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes,
as de sentido dizem respeito aos significados. Portanto, podem
ser traduzidas sem - ou sem nem tantos - estragos. Consistem
em empregar urn termo (ou varies) com urn sentido que nao lhee habitual. 0o lh o e sc uta ... Esta es tranha metafora de Claudel
poderia levar a pensar em "desvio", transgressao da norma le-
xical segundo a qual 0 olho deve enxergar e nao se intrometer
no servico dos vizinhos ... Mas, restabelecendo-se 0 termo pro-
prio, perde-se sentido, pois 0 olho que "escuta" uma obra de
arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Por-
tanto escuta e 0 termo exato. Isso acontece com toda verdadei-
ra figura.
Em outras palavras, a figura de sent ido desempenha papel
lexical; nao que acrescente palavras ao lexico, mas enriquece 0
sentido das pa1avras.
"Ja disse mil vezes." "Tenho mil coisas para dizer ..." A
palavra "mil" perde 0 sentido quantitativo para expressar algo
como: vezes demais (para repetir outra vez), coisas demais
(para dizer tudo agora ). A hiperbole cria 0sentido.
Desse modo, a figura de sentido e urn tropo, urn signifi-
cante tornado no sentido de outro, escuta por olha com reve-
rencia . Mas nem todo tropo e uma figura de sentido. Quando 0
tropo e lexicalizado a tal ponto que nenhum outro termo pro-
prio poderia substitui- lo, passa a ser catacrese. Assim, asas do
aviiio na origem era uma metafora, mas nao e mais figura, po isnao ha como dizer de outra forma.
Inversamente, por falta de referencias culturais, uma figu-
ra pode ser incompreensivel; torna-se entao enigma, mas ai
deixa de ser retorica, Podemos dizer da figura de sentido aqui-
10 que Aristoteles dizia da metafora: deve ser clara, nova e
agradavel. Nova, porem clara e por isso mesmo agradavel, como
o enigma que se tern a alegria de desvendar. A meio caminho
entre 0 enigma e 0 cliche, a figura de sentido desempenha seu
papel retorico.
Trataremos agora das tres figuras de sentido de que deri-
yam todas as outras.
A metonimia designa uma coisa pelo nome de outra que
lhe esta habitualmente associada. Seu poder argumentat ivo eantes de tudo 0da denominacao, que ressalta 0aspecto da coisa
que interessa ao orador. Assim, 0tr on o e 0altar e uma metoni-
mia valorizadora; 0sa br e e 0aspersorio e metonimia deprecia-
tiva, que reduz 0exercito a exterminio, e a Igreja a supersticao.
Baseada no nexo habitua l, a forca argumentativa da meto-
nimia provem da familiaridade, e essa forca desaparece quando
a metonimia vern de outra cultura. Para quem acha, por exem-
plo, que 0poder ministerial se chama ga bi ne te , p a st a ou mes-
mo Esplanada , e dificil entender como 0Imperio Otomano po-
de usar 0Diva
como simbolo do poder.
Everdade que a psica-
nalise ja deveria nos ter acostumado com isso, mas entre os tur-
cos era 0ocupante do diva quem detinha 0poder ...
Diz-se com frequencia que, em vis ta da poetica metafora,
a metonimia e prosaica e pobre. No entanto, existem "metoni-
mias vivas". Quando, em 1700, 0 embaixador da Espanha
declarou Ja n do h a P ir en eu s, deve ter produzido urn belo efeito
surpresa; se tivesse dito apenas "acabaram-se as fronteiras",
teria perdido a conotacao de cadeia inospita , quase intranspo-
nivel, que so 0 divino poder dos reis poderia abolir, poder ca-
paz de mover montanhas ...
o importante e que, mais que os outros tropos, a metonimiacria simbolos, como por exemplo Afo ice e 0m artelo , A rosa e a
cruz. Nesse sentido, condensa urn argumento fortissimo.
A sinedoque distingue-se da metonimia por des ignar urna
coisa por meio de outra que tern com ela urna relacao de neces-
sidade , de tal modo que a pr imeira nao existiria sem a segunda;
por exemplo c em c ab ec as por cern pessoas, sinedoque da parte,
ou c em mo rta is , sinedoque da especie. Donde sua funcao pro-
pria: ela e a figura que condensa urn exemplo. Muito corrente
em pedagogia ( tridngulo por todos os t riangulos; soneto por
todos os sonetos), serve tambem it propaganda: p artid o d os
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122 INTRODU9AO A RET6RICA FlGURAS 123
trabalhadores, sinedoque da parte. Na verdade, nada prova que
o partido em questao represente todos os trabalhadores.
Isso tambem se observa com a antonomasia, sinedoque
que consiste em designar uma totalidade ou uma especie pelo
nome de urn individuo considerado seu representante: Joffre
ganhou a batalha do Marne, como se ele estivesse la sozinho!
Sabe-se muito bern como 0 referido Joffre mot ivou a s inedo-
que: Nao sei se fui eu que a ganhei, so sei que eu sou quem a te-
ria perdido! 0 slogan dos anos 30, Hitler e a guerra, fazia re-
cair sobre Hitler todo 0 peso do hitlerismo. Tambem aqui se
encontra a argumentacao pelo exemplo ,
A metafora designa uma coisa com 0 nome de outra que
tenha com ela uma relacao de semelhanca, Voltaremos depois a
seu papel argumentat ivo. Aqui di remos algumas palavras sobre
sua genese. Diz-se que a metafora e uma comparacao abrevia-
da, que substitui 0 e como por e : Ela e [bela como] uma rosa; 0olho [olha como se] escuta. Mas que comparacao? Se esta se
referir a realidades homogeneas, sua abreviacao nao redundara
em metafora: Pedro e [alto como] um gigante; Joiio e [baixo
como] um ando. Trata-se antes de hiperboles por meio de sine-
doques. E 0mesmo se eu disser: Esta dgua esta [fria como]
umapedra degelo.
Suponhamos agora que se diga: Sofia e uma pedra de gelo.Ha de fato uma comparacao (e pouco benevolente), mas de ou-
tro tipo, porque Sofia nao e da especie dos seres que podem
transformar-se em gelo; a semelhanca em que se baseia essa
metafora provem de termos heterogeneos, que nao tern materia
nem medida em comum; Sofia nao e nem uma pedra de gelo,
nem e como uma pedra de gelo. Entao, como poderemos en-
tender a metafora? Por uma semelhanca de relacoes entre ter-
mos heterogeneos (cf. infra, pp. 193 a 196).
Em resumo, se desenvolvermos a metafora e the restitui r-
mos seu como, teremos uma figura de comparacao especial,
que os antigos chamavam de eikon, simile, e que, como os in-
gleses, chamaremos de simile. 0 simile e uma cornparacao en-
tre termos heterogeneos: Ela canta como um rouxinol, que se
abrevia em metafora como 0 rouxinol',
o simi le, como a metafora que dele deriva, e fonte de poe-
sia, pois aproxima seres cuja semelhanca antes nao fora perce-
bida; cria, como em Claudel, 0que em seguida vai parecer evi-
dente. Se for inesperado demais, dara origem a comicidade:bonita como um aviiio.falada como a torre de Pisa. Sua criati-
vidade permite entender 0poder argumentativo da metafora'.
Tropos complexos: hipalage,
enalage, oximoro, hiperbole, etc.
Desses tres tropos basic os derivam outros.
A hiperbole e a figura do exagero. Baseia-se numa meta-
fora (Estou morto de cansacoi, ou numa sinedoque (As massas
laboriosas, para certo numero de trabalhadores).
Para entende-la , comecemos pela admiravel definicao de
Pierre Fontanier:
A hiperbole aumenta ou diminui as coisas em excesso,
apresentando-as bern acima ou bern abaixo do que sao...
Temos ai a estrutura da hiperbole: auxese quando amplia em
sentido positivo (esse gigante); tapinose, em sentido nega-
tivo (esse anoo), sendo sempre 0 significado figurado bern
maior ou bern menor que 0 significado proprio. Por que esse
exagero?
... nao com 0intuito de enganar, mas de levar 11propria ver-
dade, e de fixar, atraves do que ela diz de incrivel, aquilo em que
e realmente preciso crer.
Em suma, nao e uma figura da mentira, como quando se diz
que alguem esta morto, se ele esta bern vivo; e uma figura de
expressao, como em Estou morto, que nao engana ninguem.
Porem, I"tra exprimir 0que?
o inexprimivel, por cer to. A nosso ver, a funcao semanti-
ca da hiperbole e dizer que de fato nao conseguimos dizer, e
dar a entender que aquilo de que estamos falando e tao grande,
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1 24 INTRODU9AO A RET6RICA FIGURAS 1 2 5
tao bonito, tao importante (ou 0 contrario) que a linguagem
nao poderia exprimir. Donde 0papel fundamental da hiperbole
na ret6rica religiosa, visto que s6 ela pode designar aquilo que
nao sepode denominar.
Mas, alem da expressao, ela condensa urn argumento, 0de
direcao: se comecarmos assim, onde vamos parar? A hiperboleamplifica 0 argumento, colocando-se ja de inicio nesse ponto
final, como veremos nos textos 11e 12.
Se, em vez de dizer Estou morto, eu disser Estou meio
cansado, estarei substituindo a hiperbole pela litote, que nao euma hiperbole ao contrario, como a tapinose, mas 0 contrario
da hiperbole. Figura do etos, por mostrar 0 orador modesto,
prudente, comedido, a litote possibilita outras figuras, como a
insinuacao, 0eufemismo e sobretudo a ironia: Niio, 0doutor X
ainda ndo matou todos os seus doentes... Como muitas vezes
acontece, essa litote procede pela negacao de uma hiperbole:
matou.
A hipalage e urn deslocamento de atribuicao. Como no
celebre verso de Virgilio, que fala dos mortos a vagarem pelos
Infernos:
o oximoro e a mais estranha das figuras; consiste em unir
dois termos incompativeis, fazendo de conta que nao sao:Essa
escura claridade que cai das estrelas (Corneille), 0 sol negro
(Nerval). Como e possivel? M. Prandi responde" que ele indica
urn conflito entre dois enunciadores: urn deles - todo 0mundo
- diz que esta fazendo sol, e 0outro - 0poeta - declara metafo-ricamente que para ele tudo esta negro. Assim, quando qualifi-
ca Antigona de santamente criminosa, S6focles quer dizer que
ela e criminosa para 0 poder (Creonte), porem santa para os
deuses e para sua consciencia, Perelman- Tyteca veem no oxi-
moro uma dissociacao condensada, por exemplo entre a apa-
rencia - criminosa - e a realidade - santamente.
Finalmente, dois tropos complexos, simetricos,
Urn deles e a metafora expandida, sequencia coerente demetaforas, que alias permite a personificacao e... 0 humor;
como por exemplo a metafora tambem citada por Prandi:
o inconsciente da minha maquina de escrever comete es-tranhos lapsos.
Ibant obscuri sola sub nocteper umbram...
(lam escuros por entre a sombra na noite solitaria...)
Outro e a metalepse, que e para a metonimia 0que a meta-fora expandida e para a metafora: uma sequencia coerente. As-sim, no Eclesiastes se diz:
Se ele tivesse falado em noite escura e almas solitarias, 0efeito
de hipotipose teria sido destruido; estaria perdida a expressivi-
dade do quadro.
Dai a forca argumentativa da hipalage. Por metonimia:
liberdade deprecos, por liberdade dos comerciantes, como se
eles nada tivessem que ver com os precos, como se estes decor-
ressem de um determinismo natural.
A enalage e urn deslocamento grarnatical: do adjetivo
para 0adverbio, como em Votecerto; de uma pessoa para ou-
tra e de um tempo verbal para outro, como em 0 que estare-
mosfazendo?, por "0que voce esta fazendo?" A enalage torna
as coisas mais presentes, embora tambem mais confusas; em
Pensar frances, de Petain, qual era exatamente 0 sentido de
"frances"?
Quando a porta esta fechada para a rna, quando cessa a voz
do moinho, quando se cala 0 canto do passaro (... ), quando ha
temor da subida e pavores em caminho ... (XII, 4, 5)
Obscura e terrivel metalepse para dizer: quando se esta velho.
Essa figura designa a velhice atraves de seus efeitos: ce-
gueira, surdez, fadiga, etc. Mas e redutora, pois s6 leva emconta os efeitos negativos; poderia ate considerar os efeitos po-
sitivos da terceira idade: prudencia, paciencia, etc. De fato,
todas as figuras de sentido sao redutoras, por focalizarem certo
aspecto e-sobretudo certo valor do objeto que apontam em de-
trimento dos outros. Donde seu papel argumentativo.
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126 INTRODUC;AO A RETORICA F1GURAS 127
Figuras de construeao Alem do trocadi lho nas ultimas palavras, recorre-se ao as-
sindeto; 0que se deve acrescentar entre 1 e 2, e entre 2 e 3: por-
tanto ou mas?
A aposiopese, ou reticencia, interrompe a frase para passar
ao auditorio a tarefa de completa-la; figura por excelencia da in-
sinuacao, do despudor, da cahmia, mas tambem do pudor, da ad-miracao, do amor, sua forca argumentativa advem do fato de
retirar 0argumento do debate para incitar 0outro a retoma-lo por
sua conta, a preencher por sua conta os tres pontos de suspensao.
As figuras abaixo dizem respeito a construcao da frase, ou
mesmo do discurso. Algumas procedem por subtracao, outras
por repeticao, outras por permutacao,
Figuras por subtraciio: elipse,
assindeto, aposiopese ou reticencia
A elipse consiste em retirar palavras necessarias a cons-trucao, mas nao ao sentido. Isso acontece, por exemplo, no pro-
verbio Longe dos olhos, longe do coraciio e no slogan CRS
SS *. As palavras que desaparecem sao adjuntos ou copulati-
vos, como 0 verbo ser, 0 artigo, a preposicao, etc., mas isso
tambem pode acontecer com vocaculos plenos.
Parece que a elipse e antes urn meio de criar figuras do
que propriamente uma figura. Por meio de cortes na frase, ela
produz metonimia, enalage (Pense [com vistas a uma coisa]
grande), oximoro (0 sol [nao impede que para mim tudo seja]
negro), metafora (Sofia e [fria como] uma pedra de gelo).o assindeto e uma elipse que suprime os terrnos conec-
tivos, tanto cronologicos (antes, depois) quanta logicos (po-
rem, pois, portanto). 0 assindeto e ao mesmo tempo expres-
sivo, pelo efeito surpresa (Vim, vi, venci), e pedagogico, pois
deixa por conta do auditorio 0 trabalho de restabelecer 0 elo
que falta, e isso 0 arregimenta, torna-o cumplice do orador, adespeito de suas reticencias. Assim 0 slogan criado em 1987
pelo governo frances, apos a decretacao da liberacao dos
precos:
Figuras de repeticdo: epanalepse, antitese
Chamamos de epanalepse a figura de repeticao pura e
simples. Propoe duplo problema, 0 da correcao e 0 da utilida-
de. Que urn aluno repita uma palavra na frase ... 0 professor
mandara substitui-Ia por urn sinonimo, Mas sera que 0 profes-sor vai corrigir 0 homem e 0 lobo do homem? E ai que entra a
utilidade da repeticao; se a frase dissesse "e lobo para seu se-
melhante", estaria destruido 0argumento de incompatibilidade
que sugere: 0homem e aquilo que nao deveria ser, pois tern 0
homem como semelhante.
Evidentemente, a epanalepse tambem diz respeito ao pa-
tos. Quando de Gaulle exclama em sua mensagem de 18 de
junho de 1940:
Pois a'Franca nao esta sozinha, nao esta sozinha, nao esta
sozinha,
esta expressando sua conviccao patetica, que tudo parecia des-
mentir entao.
Os precos estao livres. Voces sao livres. Nao digam sim a
qualquer preco.
Nao se deve confundir epanalepse com antanaclase, que ea repeticao de uma palavra com sentidos diferentes, nem com a
perissologia, repeticao de uma mesma ideia com palavras dife-
rentes.p
Da-se 0 nome de antitese a oposicao filos6fica de teses
ou a uma oposicao retorica, que sobressai gracas a repeticao;AABA, AACA, etc. A antitese e a oposicao no mesmo.
* CRS = Compagnie republicaine de securite, policia para repressao
de tumultos; SS=esquadroes militares da Alemanha nazista. (N. do T.)
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128 INTRODUC;AO A RET6RICA FIGURAS 129
omesmo pode ser representado por palavras identicas: de-se dizer que, se a vida determina a consciencia, esta , em tro-
ca, muda a vida. A causalidade linear e entao substituida pela
retroacao, Tambem neste caso 0 argumento e sedutor, porem
redutor.
Cabe mencionar mais tres figuras de construcao,
o anacoluto perturba a sintaxe da frase:
Fulminados hoje pela forca mecanica, poderemos veneer
no futuro com urna forca mecanica superior. (ibid.)
o mesmo tambem pode ser representado pelo equilibrioritrnico:
Et monte sur le fai te il aspire a deseendre (Comeille)
[Esubido no cume ele aspira a descer.]
omaior filosofodo mundo, sobre urnapranchamais largadoque necessario, se embaixo houver urn precipicio, ainda que sua
razao 0convenca de sua seguranca, prevalecera sua imaginacao.
Deve-se comer para viver, e nao viver para comer.
o sujeito do verbo deveria ser 0 filosofo mas, para nossa sur-
presa, e a imaginacao, Seria 0 anacoluto um "desvio em rela-
<;ao it norma"? Parece que sim, e ate um erro; qualquer profes-
sor teria despachado 0aluno Pascal a golpes de tinta vermelha ...
No entanto, sera possivel expressar de forma diferente a derro-
ta da filosofia?A nosso ver, 0 anacoluto nao constitui urn erro, mas e a in-
cursao do codigo da lingua oral no codigo da lingua escrita, 0
que torna a expressao mais pessoal e a argumentacao mais viva.
o hiperbato, ou inversao retorica, e um caso particular de
anacoluto:
A identidade dos dois hexametros reforca a oposicao.
Figuras diversas: quiasmo,
hiperbato, anaco/uto, gradaciio
o quiasmo e uma oposicao baseada numa inversao, AB-
BA, e nao mais na repeticao:
As vezes comico, 0 quiasmo no entanto integra-se muito
bern nas visoes tragicas do mundo, de Sao Paulo a Karl Marx: Chorosa empos seu carro, quereis vos que me vejam? (Ra-
cine)
Quem se exal ta sera hurnilhado, quem se humilha sera
exaltado. (Le, XVIII, 14)
Ao contrario da filosofia alema, que vai do ceu it terra, aqui
subimos da terra ao ceu (.. .) Nao e a consciencia que determina a
vida, e a vida que determina a consciencia, (Marx, A ideologia
alemii.v
Finalmente, a gradacao consiste em dispor as palavras na
ordem crescente de extensao ou importancia:
A pobreza viril, ativa e vigilante. (La Fontaine)
Aqui 0quiasmo esta a service de urn argumento de disso-
ciacao, Ao par ilusorio estabelecido pelo idealismo alemao,
que poe a "terra" como nao essencial e a "vida"como simples
exteriorizacao da consciencia, Marx opoe como verdadeiro 0
par inverso; a forma em X do argumento confere-lhe aparencia
de necessidade. No entanto, ele assenta numa alternativa sim-
plista: e a consciencia que determina a vida, ou 0 inverso? Po-
Portanto, e urn excelente meio de apresentar os argumentos: nao
so, mas tambem, e sobretudo ...
Flguras'tle pensamento
As figuras de pensamento sao, em principio, independen-
tes do som, do sentido e da ordem das palavras: so dizem respei-
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130 INTRODU<;AO A RET6RICA FIGURAS 131
Alegoria: figura didatica?
que, na Esc6cia, Rolling stones gather no moss tern, ao contra-
rio, sentido positivo: quem viaja nao cria cascao, esta sempre
novo.
E por isso que nao podemos concordar com Goethe e com
os romanticos, que opoem a alegoria - figura que teria apenas
urn sentido figurado - ao simbolo, que seria aberto e polis semi-co: vemos que a alegoria tambem pode ser assim. Fato e que ela
tern rna fama: e tachada de facticia, de ser criada para as neces-
sidades da causa, em resumo, de ser puramente didatica,
Nesse caso, trata-se de uma curiosa didatica, pois com ela
se acaba perdendo tempo. Platao, apos ter enunciado a alegoria
da Cavema, precisa explica-la; e Jesus tambem precisa dar a
chave de suas parabolas: estranha didatica que se condena a en-
sinar duas vezes! Mas veremos, com Rousseau (texto 11), que
o verdadeiro problema da educacao talvez nao seja "ganhar"
tempo.
Na realidade, se a alegoria e didatica, nao e por tomar as
coisas mais claras ou mais concretas; ao contrario, e por intri-
gar. A alegoria da Cavema e a parabola do Semeador intrigam
os discipulos, que sentem que 0 texto quer dizer alguma coisa a
mais do que esta dizendo, mas nao sabem 0 que; esperam a
explicacao do mestre, explicacao que nao estariam desejando
se 0mestre a tivesse dado sem preparacao previa. Existe uma
pedagogia muito antiga, a do misterio, que consiste em retardar
a solucao para incitar 0 discipulo a busca-la, para motiva-lo a
aprender. E nesse sentido que a alegoria e "didatica",
Donde seu papel tambem argumentativo: ela alicia as pes-soas, no sentido de que, se estas aceitarem 0 foro (a letra), se-
rao obrigadas a aceitar tambem 0 tema (espirito). Tomaremos
da Biblia (2 Sm XII, 1) 0 exemplo do profeta Nata, que vai di-
zer ao rei Davi:
to it relacao entre ideias. Mas essa definicao dos antigos levaria
a exc1ui-Ias do campo das figuras, e mesmo da retorica, que se
caracteriza pel a intima ligacao entre lingua e pensamento. A
nosso ver, essas figuras sao identificadas por tres criterios.
Em primeiro lugar, nao se referem a palavras ou it frase,
mas ao discurso como tal; 0 trocadilho implica algumas pala-
vras, enquanto que a ironia engloba todo 0 discurso; urn livro
inteiro pode ser ironico, Em segundo lugar, dizem respeito it
relacao do discurso com seu referente; ou seja, pretendem ex-
pressar a verdade: enquanto a metafora nao e verdadeira nem
falsa, a alegoria podera ser verdadeira ou falsa. Finalmente,
uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no
sentido literal ou no sentido figurado. Uma andorinha so ndo
f az v er ii o: a verdade do sentido meteorologico implica a verda-
de do sentido humano.
Esse triste proverbio - eles raramente sao alegres - ja e
uma alegoria. A alegoria e uma descricao ou uma narrativa que
enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar me-
taforicamente urna verdade abstrata. Ela e a estrutura do prover-
bio, da fabula, do romance de tese, da parabola'.
Apesar de ser uma sequencia de metaforas - andorinha
como boa nova, verao como felicidade - nem por isso a alegoria
e uma metafora expandida. Por que? Exatamente porque todos
esses termos sao metaforicos, enquanto na metafora expandida
os termos figurados se encaixam num contexto de termos pro-
prios, de tal modo que a mensagem so possa ter urn sentido, 0
figurado. Em Ponha um tigre no seu carro, tigre e metaforico, 0
resto nao; assim, ninguem achara que se trata de urn tigre de
verdade, exceto 0cineasta Jean-Luc Godard, que, para satirizar,
filma um tigre num motor. A verdadeira alegoria, cujos termos
sao todos metaforicos, apresenta duas leituras possiveis:
"Pedra que rola nilo cria limo" tambem pode ser lido em
sentido figurado: quem viaja muito nao cria amigos. Note-se
Ravia dois homens numa mesma cidade, urn rico e outro
pobre. 0 rico possuia gado pequeno e grande em abundancia. 0
pobrl nada tinha a nao ser uma ovelhinha ( ...) que ele amava
como filha. Urn hospede chega a casa do rico que, poupando-sede tomar urn dos animais de seu rebanho para servir ao viajante.
pega a ovelha do pobre para prepara-la ...
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132 INTRODUr;AO A RET6RICA FIGURAS 133
Essa narrativa indigna e in triga D avi, quer saber quem e esse
homem , "que merece a morte" . E 0 p ro fe ta re sp on de -lh e " Tu
e s e ss e h om em ."
E ra e le, D av i, q ue , in fla ma do d e pa ixa o p or B etsab a, ra p-
ta ra -a, en gra vid ara -a e d ep ois, a rra nja nd o tu do pa ra q ue 0ma-
rid o d ela m orresse n a g uerra , d esp osara- a. V em os ai a forca d aa le go ria . S e N ata tiv ess e sim ple sm en te e xp os to 0 crime, 0 re i
p od eria te r re spo nd id o qu e 0 am or nao tern le i, ou que havia
necessidade de um herdeiro para a coroa; poderia ate nao ter
o uv ido n ad a. A qu i, a ca usa e o uv ida an tes m esm o d e ser ex po s-
ta , e , a o c on de na r 0 rico, 0 re i pren de u- se em se u p ro prio v ere -
d ic to. P re sta nd o a te nc ao a na rra tiv a, D av i n ao p erc eb eu - ne m
d e lon ge - q ue se tra tav a d ele . S em a a le goria , te ria p orve ntu ra
entendido?
c ha r, d e v er 0 e sfra ng alh am en to d as p re te nso es d e p od er , s ab er
e v irtu de e xa ta me nte p orq ue q ue m faz a iro nia pa rec e le va- la s
a serio, Figura do patos e do etos - poe do seu lado quem ri -, a
i ro nia tam bem e fig ura d o log os, p or ressalta r u rn a rg um en to
d e in compa tib il id ad e p elo r id ic ul o.
A prec ie mo s a re plic a d e N ap ole ao III, q uan do th e m ostra-ram 0v io le nt o p an fle to d e V. H ug o c on tr a e le :
Pois bern, Senhores, ai esta Napoleiio, 0 Pequeno, por
Victor Hugo, 0Grande.
Ironia, grara e humor
o q ue e le q ui s d iz er e xa tam en te ? "E ele que se tom a por N apo-
leao ," "N ao m e atinge ." " Adm iro-o apesar de tudo com o poe-
t a" . .. T al ve z o s tr es .
A g ra ca , e m retoric a, e a iron ia q ue v ern a c alh ar, a re plic a
arguta, que e a m ais eficaz. Q uanto ao hum or, nao e um a espe-
c ie d e ir on ia ; e 0c on tra rio d a iro nia . E sta d en un cia a fa lsa s erie -dade em nom e de um a seriedade superio r - a da razao, do born
senso, da m oral -, 0 q ue c ol oc a 0 iro nis ta b ern a cim a d aq uilo
que ele denuncia ou critica: nao e 0 sa be r q ue faz d e S ocrate s
urn m estre , m as sua iron ia . N o hum or, e 0 p ro pr io su je ito q ue
ab an do na su a p ro pria se ried ad e, q ue ab dic a d a im po rta ncia, 0
que em principio exige dele certa calm a, certo dom inio de si -
sim , a fleum a britan ica e 0 humor sao uma coisa so -, e desse
m odo se explica que 0 prim eiro grau do hum or seja a palavra
d esc on tra ida n os m om en to s e m q ue to do s ja p erd era m a ca be ca ,
A n tid oto c on tr a to do s o s fa na tis m os , 0h um or te nd e p ar a 0 i rra-
c io na l e a s v eze s p ara 0n iil is m o. A ss im , s e a ir on ia e u ma a rm a,
o h um or e a lg o q ue d es ar ma . R eto ric a s up erio r.
N a iron ia, zo mb a-se d izen do 0 contrario do que se quer
d ar a e nten de r. S ua m ate ria e a an tifra se , se u o bjetiv o 0 sarcas-
m o; trata -se re alm en te d e u ma fig ura d e pe nsam en to , p ois tern
do is s en ti dos : Es afenix ... p od e ser to rn ad o a o p e d a le tra, co mo
a ave, ou entao segundo seu espirito , que aqui se opoe ao senti-
d o p ro prio d o te rm o.
A ir on ia p od e se r a me na o u c ru el, su til o u g ro ss e ir a, a ma rg a
o u e n gr ac a da . .. D e lim it ar emo s 0a ss un to c om d ua s p er gu nt as .
o q ue a to rn a " fin a" ? P ro va ve lm en te 0 a fa stam en to e nt reos dois sen ti d os, a le tra e 0 espiri to. E verdade que se pode
"m arcar" a ironia : pelo tom de voz, por ponto de exclam acao ,
aspas, e tc . S e clara dem ais, passa a ser facil. A iron ia pesada e
a esperada, a que sucum be ao peso do sen ti d o. A ironia e fina
quando seu verdadeiro sen tido se deixa esperar, quando sua
v itim a e a u ltim a p esso a a p erce be- la ; in do m ais lon ge , p od e-se
dizer que e aquela cujo sen tido nunca ficara com pletam ente
c la ro , q ue s em pr e d eix ara a lg um a d uv id a.
Por que e engracada? Por certo ha sempre uma dose de
a le gr ia sa dic a n a iro nia ,0
"prazer m aligno" de ver a bola m ur-
Figuras de enunciacdo: apostrofe,
prosopopeia, pretericiio, epanortose
C ettas fig ura s te rn p are nte sc o c om a iro nia , m as sua an ti-
fra se d iz re sp eito a e nu nc ia ca o, e n ao a o e nu nc ia do .
A apostrofe consiste em dirigir-se a algo ou alguem dife-
rente do audito rio real, para persuadi- Io m ais facilm ente. 0
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134 INTRODU(:AO A RETORICA FIGURAS 135
audit6rio ficticio pode ser urn ser presente, mas na maioria das
vezes esta ausente: sao mortos, antepassados, a patria, os deu-
ses, qualquer coisa:
Figuras de argumento: conglobaciio,
prolepse, apodioxe, cleuasmo
Onde estou? 0 que vi? Enganais-me, olhos meus?
Existem, finalmente, figuras de pensamento dificeis de
definir sem recorrer it nocao de argurnento: mais que as outras,
elas demonstram a existencia de laces intimos entre estilo e ar-gumentacao,
A prolepse antecipa 0 argumento (real ou ficticio) do ad-
versario para volta-Ic contra ele: Dizer-nos que...
A conglobacao acumula argumentos para uma unica con-
clusao, A expolicao retoma 0mesmo argumento com formas
diferentes. A pergunta ret6rica apresenta 0 argumento em for-
ma de interrogacao.
o c1euasmo consiste no desgabo que 0 orador faz de si
mesmo, para angariar confianca e simpatia do audit6rio: Talvez
eu esteja sendo tolo, mas... Figura do etos, 0 cleuasmo tambem
afirma a vinganca do born senso sobre os especialistas ou os
eruditos, da vivencia sobre 0 livresco, da ingenuidade sobre a
sofisticacao. Desse modo, 0criado Sganarello diz a Don Juan:
Para 0 TA, esta seria urna "figura de comunhao" (p. 240),
que une 0 audit6rio ao orador. Para n6s e mais uma figura de
amplificacao, que permite ultrapassar 0 audit6rio real em dire-
9ao a urn audit6rio (mais) universal, ou, inversamente, em di-
recao a urn individuo que personifique 0audit6rio universal.
A prosopopeia consiste em atribuir 0discurso a urn orador
ficticio: antepassados, mortos, leis, como S6crates em Criton,
que e interpelado pelas leis de Atenas:
o que tentas (ao fugir), seria outra coisa senao destruir-
nos, a nos, as leis...?8
A pretericao, muito pr6xima da aposiopese, consiste em
dizer que nao se vai falar de alguma coisa, para melhor falar
dela. Eu tambem poderia ter dito que... Como se Ie no TA, ela e"0sacrificio imaginario de urn argumento" (p. 645).
A epanortose consiste em retificar 0que se acaba de dizer:
Ou melhor... Tambem e urna intrusao do c6digo oral na l ingua
escrita; faz 0discurso parecer mais sincero e, ademais, faz 0au-
dit6rio participar do encaminhamento dado pelo orador.
A contrafisao e uma especie de optativo que sugere 0 con-
trario do que diz: Tenhamfilhos entdo!
A epitrope ou permissao e uma figura de indignacao que
finge aceitar urn ato odioso de alguem para sugerir que esse
alguem seria capaz de comete-lo:
De minha parte, senhor, nunca estudei como vos, gracas a
Deus, e ninguem poderia se gabar de alguma vez ter-me ensina-
do algo; porem, com meu modesto senso, meu modesto juizo,
enxergo melhor que os livros...
A apodioxe e a recusa argumentada de argumentar, quer
em nome da superioridade do orador (Nao tenho lir;oespara
receber ...), quer em nome da inferioridade do audit6rio (Niio
cabe a voces dar-me licoes...) Trata-se de uma especie de vio-
lencia verbal. Mas sera so isso?
Somos todos judeus alemaes.
Eis aqui sangue, vem beber ... (cf. texto 5)
Assim como a hiperbole, sublinha urn argumento de di-
recao,
o celebre slogan de maio de 1968 respondia a quem ale-
gava que oPlider esquerdista Cohn-Bendit, sendo filho nao na-
turalizado de judeus alemaes, nao podia dirigir urn movimento
politico frances. 0 slogan nao recusava 0dialogo, mas rejeita-
va 0pretenso acordo previo imposto pelos adversaries para que
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136 INTRODUC;AO A RET6RICAFlGURAS 137
Songe, songe, Cephise a cette nuit cruelle
QuiJut pour tout unpeuple une nuit eternelle.
Figure-toi Pyrrhus, lesyeux etincelants,Entrant a la lueur de nospalais bnilants,
Sur tous mesfreres morts seJaisant unpassage
Et de sang tout couvert echauffant Iecarnage;
Songe aux cris des vainqueur, songe aux des mourants,
Dans laflamme etouffes, sous IeJer expirant;
Peins-toi dans ces horreurs Andromaque eperdue:
Voila comme Pyrrhus vint s'offrir a la vue!
sente (aqui os genindios); pelas metonimias: clarao, chama,
ferro; pela gradacao no horror: feral - eternal, gritos de triunfo
- ais dos que morrem; pela litote: abrindo passagem, para mos-
trar que os mortos queridos estavam reduzidos a detrito; tudo
isso para desembocar no Voila [li teralmente, eis --. E veras],
que conclui a hipotipose: inexoravel,
Depois dessa extensa enumeracao, alias incompleta, al-
guem perguntara se as figuras sao de fato uteis; nao seriam an-
tes nocivas, fonte de confusao e manipulacao? Afinal de contas,
por que falar de figuras?
E como perguntar: por que falar? Sempre que queremos
expressar sentimentos ou ideias abstratas, recorremos as figu-
ras. E 0 filosofo, 0 jurista, 0 teologo nao escapam dela tanto
quanta 0 homem (e a mulher) comum. Falar sem figuras, sim,
seria 0verdadeiro desvio, provavelmente mortal.
o problema nao e livrar-se das figuras - 0 que equivale a
livrar-se da linguagem;0
problema e conhece-las e compreen-der seu perigoso poder, para nao ser vitima dele; para tirar pro-
veito dele.
houvesse dialogo (ou seja, urn homem, que e judeu e alemao,
so tern de calar a boca): queremos discutir, sim, mas nao nesse
nivel! A apodioxe, aqui, nao e mais violencia, mas rejeicao a
violencia, 0 mesmo acontece com 0slogan americano Black is
Beautiful: reivindicamos aquilo pelo que somos desprezados.
Como se ve, existem figuras explosivas. Mas a mais ex-plosiva provavelmente e a hipotipose (ou quadro), que consiste
em pintar 0 objeto de que se fala de maneira tao viva que 0
auditorio tern a impressao de te-lo diante dos olhos. Sua forca
de pe~suasao provem do fato de que ela "most ra" 0 argumento,
assoclan~o 0patos ao logos. Dessa forma, Andromaca respon-
de a Cefisa, que a aconselha a casar-se com Pirro com esta
descricao do saque de Troia: '
Pensa, pensa, Cefisa na noite feral
Que para urn povo inteiro foi noite eternal.
Afigura-te Pirro com olhos luzentes
A entrar no clarao dos palacios ardentes,
Sobre meus irmaos mortos abrindo passagem
E de sangue coberto incitando a carnagem;
Ouve os gritos detriunfo, ouve os ais dos que c1amam
A morrer pelo ferro, abafados na chama.
A vagar nesse horror, vi:Andr6maca entao:
E veras qual de Pirro foi dela a visao!
~~sa evoca9.a~ quase a~ucina:oria (pensa, afigura-te) eaI?phflCada por mumeras ali teracoes: lueur - palais brtilants
[hteralmente, clarao, palacios em chama], pela enalage do pre-
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Capitulo VII
Leitura retorica dos textos
Toda a sequencia deste livro sera dedieada it interpretacao
de textos. Hoje em dia, dispotnos de varies metodos para esse
fim - analise do conteudo, analise estrutural, hermeneutica,
etc. -, eada urn com suas virtudes e com suas fraquezas. 0 que
propomos aqui nada mais e que a propria retorica, em sua fun-
r;aointerpretativa; aborda 0 texto com a seguinte pergunta: em
que ele e persuasivo? Portanto, quais sao seus elementos argu-mentativos e oratorios?
Nossa leitura e retorica tambem por sua ati tude em rela-
r;aoao texto. Certos metodos dizem-se puramente objetivos,
abordando 0 texto com "neutralidade". Outros sao partidarios
declarados da desconfianca, ese, como nos, proeuram no tex-
to procedimentos retoricos, e para mostrar que sao mistifica-dores. Outros, enfim, como a hermeneutica, considerando 0
texto sagrado, como fazem teologos e juristas, explicam-no
com 0 unico objetivo de entende-lo, e postulam que ele tern
razao sistematicamente, de tal modo que, se 0comentador en-contrar nele erros ou contradicoes, tera sido porque nao 0 en-
tendeu.
') A leitura retorica, por sua vez, nao objetiva dizer que 0
texto tern razao ou deixa de te-la. Nem por isso e neutra, poisnao hesita em fazer juizos de valor, em mostrar que tal argu-
mento e forte ou fraco, que tal conclusao e legitima ou erronea,
Critica e'pondera, sem se abster de admirar, tendo como postu-
lado que 0 texto, tanto em sua forca quanto em suas fraquezas,
pode ensinar algurna coisa. A leitura retorica e urn dialogo.
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140 INTRODU9AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 141
(.. .) e nao compreender em meus juizos nada mais que aquilo
que se apresentar a meu espirito com tal clareza e distincao queeu nao tenha ensejo de duvidar.
urn autor. Assim, a famosa regra do Discurso do metoda, cujo
final acabamos de citar e que identifica verdade com eviden-
cia, pode muito bern ser apresentada como urn axioma logico,
mas nem por isso deixara de ser dirigida contra alguem. Reco-
nhece-se Arist6teles, cuja dialetica integra 0 campo da verossi-
milhanca na filosofia, enquanto a regra da evidencia leva arejeitar como falso tudo 0que e apenas verossimil.
Contra quem, logo por que? 0 discurso tende a persuadir
de algo, mas esse algo pode ser multiplo, 0 texto muitas vezes
tern urn objetivo imediato e outro distante, 0mais importante.
o autor do Discurso do metoda quer persuadir seus leitores do
valor de seu metodo, mas principalmente do valor de sua em-
presa global, a saber, da ciencia que esse metodo produzira,
tornando-nos "senhores e donos da natureza". Num texto ironi-
co (cf. texto 10), 0 objetivo real e absolutamente oposto ao ob-
jetivo declarado.
Finalmente, como 0 autor se manifesta em seu discurso?
Esse e 0 problema da enunciacao, Quando Jean-Jacques Rous-
seau (texto 11) diz Eu ousaria expor aqui.. ., e Jean-JacquesRousseau que esta falando, ninguem mais. Quando Descartes
enuncia 0Penso, logo sou, e 0 eu universal que esta falando,
como em matematica, Mas quando Descartes escreve em nos-
so texto: meusjuizos, meu espirito, que eu niio tenha, quem e 0
eu? Por certo ele, Descartes, pois e 0primeiro a dizer isso, mas
tambem cada um de n6s, pois ele pretende servir de modelo.
Portanto, um eu intermediario entre 0da audacia pessoal e 0do
pensamento universal.Cumpre mencionar dois casos notaveis. 0 primeiro e aque-
le em que 0eu do discurso nao e 0 de seu autor: isso se observa
na citacao ou na prosopopeia, 0 segundo e 0 caso em que nao
ha eu algum, em que 0discurso se apresenta como puro enun-
ciado, assim como os textos escritos por juristas ou ge6grafos.
Mas a ausencia de marc as de enunciacao nao significa ausen-
cia de eramciacao; os textos mais objetivos na forma as vezes
sao os mais tendenciosos.
Questdes preliminares
Diante de urn texto, deve-se comecar fazendo certo mime-
ro de perguntas, que podem ser chamadas de lugares da inter-
pretacao. Algumas dessas perguntas dizem respeito ao orador;
outras, ao audit6rio; outras, enfim, ao discurso, no sentido tee-nico que a ret6rica atribui a esses termos.
Orador: Quem? Quando?
Contra 0que? Por que? Como?
Primeira pergunta: quem fala? Ao contrario de certas ana-
lises estruturais, a leitura ret6rica assume a responsabilidade
dessa pergunta, considerando uteis quaisquer informacoes re-
ferentes a vida do autor e a sua doutrina. Mas essas informa-
coes raramente sao indispensaveis. E, assim, a leitura ret6ricapostula que 0 texto tern autonomia e e entendido por si mesmo.
E ainda que seja util conhecer a doutrina do autor para com-
preender seu pensamento, e imitil elucidar cada uma de suas
afirmacoes com citacoes tomadas no restante de sua obra. Quan-
to mais se puder interpretar 0 texto em si mesmo, melhor.
Na verdade, a pergunta indispensavel e: quando? E preci-so conhecer a epoca do discurso, nem que seja para evitar con-
tra-sensos nos termos. Lemos, por exemplo:
o que significa compreender aqui? 0 leitor moderno sera
tentado aver nele 0 sentido de entender, explicar. Ora, se sou-
bermos que 0 texto e de 1637, descobriremos que 0 autor quer
dizer coisa bern diferente: "incluir em meus juizos". Nao no
sentido de "entender", mas no sentido de "conter".
Outra pergunta: contra quem? Isso porque e raro que urn
discurso persuasivo nao seja ipsofacto dissuasivo, que nao ata-
que, pelo menos implicitamente, uma opiniao, uma doutrina,
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142 INTRODUr;:AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 143
Auditorio e acordo previa 1 0 XVII, partiam de urn postulado comurn, a verdade do cris-
tianismo: cada urn dos protagonistas afirmava representar 0
"verdadeiro" cristianismo. 0 acordo inicial tambem dizia res-
peito aos metodos da controversia e aos assuntos espinhosos
que cumpria evitar, como a graca e a predestinacao'. Nas ques-
toes em que nao haja nenhurn acordo inicial, pode haver vio-
lencia ou ignorancia reciproca, nao controversia.
Pode-se objetar que e dificil interpretar urn discurso quan-
do se ignora 0 acordo previo que ele pressupoe. Mas esse acor-
do e revelado pelo pr6prio texto: pelo nao-dito, pela ausencia
das provas que seriam de esperar, por suas f6rmulas estereoti-
padas, alusoes, expressoes como: "e certo que", "todos sa-
bern", "deve-se admitir", etc. Tambem neste caso 0 texto expli-
ca 0 texto.
Faltam as perguntas referentes ao discurso em si: do que
trata, 0 que diz, como diz? Em ret6rica e a terceira pergunta
que mais importa. Neste capitulo limitar-nos-emos a especifi-
car seus aspectos preliminares.
A quem se esta falando: em outras palavras, qual e 0 audi-t6rio real do discurso? Sabe-se que, na ap6strofe, nao se trata
do audit6rio aparente. Isso ocorre quando os candidatos de
urna eleicao travam urna polemica na televisao, e cada urn fin-
ge dirigir-se aquele que esta diante de si, mas, como nao pode
esperar convence-lo a lhe dar seu voto, na verdade esta-se diri-
gindo ao publico eleitor. Assim (cf. supra, p. 9): "Senhor Mitter-
rand, esta a par da cotacao do marco?" Mitterrand e 0audit6rio
ficticio; 0 audit6rio real e 0 telespectador, que vai ficar saben-
do que Mitterrand nao esta a par da cotacao do marco.
A quem: essa pergunta nao e feita apenas pelo interprete,
mas por certo tambem pelo orador. Pois a regra de ouro da rete-
rica e levar em conta 0 auditorio. Ora, os audit6rios distin-
guem-se de diversas maneiras.
Em primeiro lugar pelo tamanho, que pode ir de urn unico
individuo (por exemplo, nurna carta) a toda a hurnanidade. Com-
preende-se facilmente que a importancia do publico influencie
a natureza da mensagem.
Em segundo lugar, pelas caracteristicas psicol6gicas de-
correntes de idade, sexo, profissao, cultura, etc.
Em terceiro lugar, pela competencia, Ninguem se dirige a
urn grupo de medicos como se fosse urn grupo de doentes, a urn
grupo de especialistas como se fosse urn publico leigo. A com-
petencia distingue nao s6 os conhecimentos necessaries como
tambem 0nivel de argumentacao e ate 0vocabulario.Em quarto lugar, pela ideologia, seja ela politica, religiosa
ou outra. Pois nao e so 0 argumento que muda segundo a ideo-
logia; 0vocabulario tambem.
Orador, audit6rio: e impossivel que urn se dirija ao outro
se nao houver entre ambos urn acordo previo, De fato, nao ha
dialogo, nem mesmo argumentacao, sem urn entendimento mi-
nimo entre os interlocutores, entendimento referente tanto aos
fatos quanta aos valores. Pode-se ate dizer, sem paradoxo, que
o desacordo s6 e possivel no ambito de urn acordo comum.
Assim, as controversias entre catolicos e protestantes, no secu-
A questao do genero: Pascal e La Fontaine
Uma questao capital na leitura ret6rica e a do genero, que
comanda estreitamente 0conteudo persuasivo do discurso.
o genero agrupa obras que apresentam caracteristicas fun-
damentais em comum: tragedia, poema lirico, tese, etc. Sem
duvida e impossivel fazer uma classificacao exaustiva dos ge-neros, porem 0mais util para a leitura ret6rica e a comparacao,
Se quisermos determinar as caracteristicas de urn genero, pre-
'; cisamos perguntar 0 que 0 distingue do genero mais pr6ximo;
por exemplo 0melodrama da tragedia, a novela do romance, a
aula da conferencia.
Nossa tese, inspirada no livro de Angenot, Le discours
pamphletaire, e de que 0genero enseja nao so injuncoes de es-
tilo, extensao e vocabulario, mas tambem injuncoes ideol6gi-
cas. Segundo a escolha que se faca, de tratar urn assunto na for-
ma de ensaio ou de panfleto, nao se dira a mesma coisa, nao se
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144 INTRODU(:AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 145
tirarao as mesmas conclusoes. 0 genero circunscreve 0 pens a-
mento.
"Vamos mostrar isso", comparando dois textos. Sao da mes-
rna epoca: Pascal morreu em 1662; 0primeiro livro das F 'abulas
foi publicado em 1668. Falam do mesmo assunto, que se pode-
ria resumir pela expressao alema das Faustrecht, 0 direito dopunho, 0 que e urn oximoro. Mas nao dizem a mesma coisa,
precisamente porque nao sao do mesmo genero; e por mais que
o genic dos dois autores transgrida as "leis do genero" nem por
isso este deixa de inflectir 0pensamento deles; tanto e verdadeque adotar urn genero e nao s6 "assinar urn contrato com 0 lei-
tor'? como tambem ingressar numa visao de mundo.
Texto 3 - Pascal, "Justic«, forca" (Br. Min. N, D 298, p. 470)
U n l ou p s ur vie nt a j eu n, q ui e he re ha it a ve ntu re ,
E t q ue lafaim e n c es l ie ux attirait.
"Q ui te re nd si h ard i d e tr ou ble r m on br eu va ge ?
D it e et a ni ma l plein d e r ag e:
T u s er as c hd ti e d e t a t em er it e.
- S ir e, repond l'a gn ea u, q ue V ot re Majeste
N e se m ette p as e n c ole re ;
Ma is p lu ti it q u ' el le c on si de re
Q ue je m e v as d es alt er an t
D a ns I e c ou ra nt
P lu s d e v in gt p as a u-d es so us d 'E ll e;
E t q ue p ar c on se qu en t, e n a uc un e facon,
J e n e p u is t ro ub /e r s a b oi ss on .
- T u l a t ro ub le s, r ep rit c et te b et e c ru el le ;
E t je s ais q ue d e m oi tu m edis I 'a n p ass e.
- C om me nt I ' au ra is-je fa it si je n 'e ta is p as n e?
R ep rit I'ag ne au ;je te te e nc ore m a m er e.
S i c e n 'e st to i, c ' es t d on e t on f r er e.Je n 'e n a i po in t. - C 'e st d one q ue lq u'u n d es tie ns;
C ar v ou s n e m 'e pa rg ne z g ue re ,
V ou s, v as b er ge rs e t v as c hi en s.
O n m e I' a dit: il faut que je m e ve nge. "
L a d es su s, a u fo nd d es fo re ts
L e lo up I 'e mp orte e t pu is Ie m an ge ,
S an s a ut re fo rm e d e p ro ce s.
E justo que 0 justo seja seguido, e necessario que 0mais
forte seja seguido. A justica sem forca e impotente; a forca semjustica e tiranica, Ajustica sem forca e contraditada porque sem-pre ha perversos; a forca sem justica e acusada. Portanto, e pre-cisojuntar justica e forca; e,para isso, que seja forte aquilo que ejusto, ouque sejajusto aquilo que e forte.
A justica esta sujeita a discussoes, a forca e facilmentereconhecivel e nao se discute. Assim, nao se pode dar forca ajustica, porque a forca contradisse ajustica, dizendo que esta era
injusta, e que s6 ela mesma era justa. E assim, nao podendo
fazer que 0justo fosse forte, fez-se 0forte serjusto.
A razao domais forte e sempre a melhor razao:E 0que vamos mostrar agora.
Un a gn ea u s e d es al te ra it
D an s Ie c ou ra nt d 'u ne on de p ure .
Urn cordeiro a sede matavaNurna corrente de agua pura.
Chega emjejum urn lobo, a busca de aventura,Lobo que a fome a tallugar levava.
"Estas turvando minh' agua, Que atrevimento!
Disse aquele animal raivento:
Secas castigado por tal temeridade.
Responde 0cordeiro: - Que Vossa Majestade
PNao se deixe destarte irar;
Pois antes cabe considerar
Que esta agua que you tomando
Desce escoando
Texto 4- La Fontaine, "0lobo eo cordeiro", Fabulas, 1,10
L a r ai so n d u p l us fo rt e st t ou jo ur s l a m ei ll eu re :
N ou s I ' al lo ns m on tr er to ut a I ' he ur e.
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146 INTRODUC;AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 147
Por vinte passos apos V O S ;
Eque por conseguinte nao posso jamais
Turvar a agua que tomais.
- Mas turvas, respondeu aquela fera atroz;
Ebern sei que me difamaste ano passado.
- Como, senhor, seeu nem tinha sido gerado?
Se inda mamo, disse 0cordeiro a mais.
Setu nao es, e teu irmao.
Senao ostenho. - E urn dos teus entao;Porque v os n ao me poupais,
Vos, vosso pastor e 0cao,
Contaram-me: curnpre a vinganca agora."
Epara a mata e seus recessos
o lobo 0carrega e devora,Sem outra forma de processo.
Apoia-se num acordo previo que possibili ta 0 desacordo; esse
acordo e a filosofia de Descartes, que opoe categoricamente
as duas "substancias": corpo e pensamento. Ora, como ajusti-
ca esta do lado do pensamento, que e infinitamente superior
ao corpo, Pascal pode estabelecer um argumento de dupla hie-
rarquia:
Pensamento > corpo,
portanto
Justica > forca.
Partindo desse argumento, admitido por seus leitores, Pascal
vai mostrar que estamos numa situacao absurda, insustentavel,
porque, mesmo nao declarando e nem sequer estando cientes,
invertemos a hierarquia natural. Aqui encontramos a atitudecentral de Pascal: levar 0 homem sem Deus a compreender e
sentir 0absurdo de sua condicao, de que nenhuma filosofia po-
de dar consciencia.
Situaciio dos dois textos
o texto de Pascal e um "pensamento", que poderia ser
classificado no mesmo genero dos "aforismas" de Nietzsche e
das "consideracoes" de Alain. Todavia, e preciso levar em con-
ta 0projeto do autor: escrever uma "Apologia da religiao cris-
ta", cujo rascunho e constituido por Pensees e tudo 0 que nos
ficou dessa obra!
o genero apologetico, que comeca com a Apologia de S o-
crates e viceja em nossos dias com os Ce queje crois... [Aquilo
em que acredito ... ], pertence na verdade ao epidictico dos anti-gos. Visa a persuadir de um valor fundamental, unindo uma ar-
gumentacao mais ou menos rigorosa a urn testemunho que en-
gaja 0autor: "Deus existe, encontrei-me com ele."
A quem Pascal se dirige? Aquilo que se chamava de "hon-
netes gens" em seu tempo, mais precisamente aos libertinos*.
Quando ele se gaba, eu 0rebaixo; quando se rebaixa, eu 0
gabo; e sempre 0contradigo, ate que ele entenda que e urn mons-
tro incompreensivel. (p. 216; 0"ele" e "nos'")
Em resumo, toda "apologia" repousa na antitese entre nos-
sa grandeza e nossa miseria, nossa grandeza de direito, como
criaturas de Deus, e nossa miseria de fato, como pecadores de-pois da queda de Adao. Antitese filos6fica que 0genic de Pas-
cal torna ret6rica, como demonstra 0quiasmo final: justo-forte-
forte-justo.
Situemos agora a fabula. Em principio, a fabula e uma ale-goria que se reputa capaz de ilustrar, de mostrar, uma verdade
moral. Portanto, e essencialmente pedag6gica, e, alias, 0 autor
destina seu livro I as criancas.
No entanto, a justificativa oficial da fabula, pela moral, ja
nao se sustenta em La Fontaine. Em primeiro lugar, porque a
alegoria e muitissimo mais longa do que aquilo que diz demons-
* Termo designativo dos cristaos que, no seculo XVI, iniciaram e de-
senvolveram correntes de independencia religiosa em relacao it Igreja Cato-
lica. Mais tarde esse termo, que da ideia de liberdade, adquiriu conotacao de
vida dissipada e anti-religiosa. (N. do T.)
148 /NTRODUC;AO A RET6RICA
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LE/TURA RET6RICA DOS TEXTOS 149
trar, a "moral"; parece que, para 0 autor, ela se transformou
num fim em si, na alegria de encenar; mas, justamente, essa
maravilhosa encenacao e ao mesmo tempo urn prazer e urna
li<;ao.Em segundo lugar, porque a moral nao e a que se espera-
va; em Fedro, modelo latino do autor, a mesma fabula termina-
va assim:
Esta fabula e escrita contra aqueles que, com falsas alega-
90es, oprimem os inocentes.
mente. Pode-se objetar que a forca tambem e enfraquecida pe-
los conflitos com outras forcas, Mas basta que ela seja reco-
nhecivel, que se saiba onde esta, ao pas so que isso nao aconte-
ce com a justica. Portanto, a forca pede explorar essa dupla ca-
rencia e apropriar -se da justica, dizendo "que s6 ela mesma era
justa". Conseqiiencia: a hurnanidade, sempre e em todo lugar[sujeito indeterminado no texto], s6 pode tomar 0 segundo ca-
minho, em que 0 justo e posto a servico do forte, substituindo
assim a justica por sua falsificacao.
o que Pascal mostra nao e que a forca reina sobre 0 dire i-
to, pois esse reinado nada mais teria de hurnano, e sim que a
forca reina porque esta disfarcada de direito.
La Fontaine, ao contrario, nao denuncia; apenas enuncia. E a
unica "moral" que aparece na fabula e francamente imoral.
Rousseau afirmava que essas fabulas nao convem em absoluto
as criancas; como psic6logo, estava coberto de razao; como
pedagogo, completamente errado; pois, se as criancas fosse
ensinado apenas 0 que e "para criancas", nao se iria muito
longe ...Em todo caso, La Fontaine utiliza 0genero "fabula" trans-
gredindo-o; para ele, a pedagogia nao passa de pretexto. Ape-
sar disso, ensina tanto quanto Pascal, mas de outro modo.
Em La Fontaine, a argumentacao se da em dois niveis.
Primeiro, no nivel do narrador: Vamosmostrar ... Na ver-
dade ele nao mostra nada, pois nao se pode extrair de urn exem-
plo apenas, e 0mais ficticio, urna lei universal: e sempre... E deduvidar que La Fontaine tenha achado seriamente que estava
mostrando algurna coisa, e sobretudo que tenha acreditado pes-
soalmente que a razao do mais forte e sempre a melhor. A
nosso ver sua argumentacao e puramente ironica; em outras
palavras, 0que ele mostra e tao enorme que 0que se impoe e atese contraria,
No segundo nivel, a argumentacao dos dois interlocutores.
A do lobo e 0 pr6prio discurso da ma-fe, A do cordeiro, que
comeca com urna preparacao psicol6gica (que VossaMajes-
tade...) e uma demonstracao (em sentido estrito) urn tanto pe-dante, mas evidente: e fisicamente impossivel turvar a agua do
lobo. Este limita-se a responder: Mas turvas, 0 que e uma apo-
dioxe, uma recusa pura e simples do argurnento contrario,
No entanto - e talvez ai apareca a verdadeira licao da fa-
bula -, a coisa nao e tao simples. 0 lobo, afinal, se acha obriga-
do a argumentar. 0 fato de ter a forca e de ter fome nao lhe
basta; es~a superioridade e da ordem do necessaria, e 0 lobo se
querjusto, nem que seja com maus argumentos; Bem sei que...
Se niio es... e entao... Porque...: cada frase e justificada, 0 que
prova que 0 lobo nao s6 precisa comer como tambem ter razao.
A argumentaciio dos dois textos
A argumentacao de Pascal e ao mesmo tempo clara e den-
sa. Opondo as duas formas de seguir, por razao e por necessi-
dade (no sentido de inevitavel), mostra que ambas sao insufi-
cientes, e que s6 existem unidas. Sozinhas, a justica e impoten-te e a forca e odiosa, porque ilegitima. A humanidade, portan-
to, s6 pode sobreviver associando-as. A questao e saber qual
das duas sobrepujara a outra, 0 que exprime 0 primeiro quias-
mo: subordinar 0 forte ao justo ou 0justo ao forte?
Ora, 0homem de fato escolheu 0 segundo termo, e Pascal
explica por que. Acontece que urn elemento veio romper 0
equilibrio. Diante da forca, ajustica padece de carencia; nao de
urna, mas de duas: ela nao s6 e impotente, como tambem esta
sujeita a discussiies, ou seja, e fraca mesmo em sua pr6pria
ordem, 0pensamento. Enquanto isso, a forca e 0 que e , plena-
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150 INTRODU9AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 151
Observaciies sobre 0 estilo dos dois textos
opoe-se ao estilo epico e ao tragico, mas tambem it secura da
fabula antiga. Note-se ainda a extrema economia de meios em
Pascal; seu quiasmo, por exemplo, nada tern de ornamentacao;
eo pr6prio movimento do pensamento. E bern uma figura de
conteudo, independente em principio do autor e da situacao, no
sentido de que, se quisermos dizer a mesma coisa, nao podere-
mos dizer de outro modo; 0quiasmo tern a me sma necessidade
de uma f6rmula matematica como a x b =b x a.
o humor do fabulista e , ao contrario, figura da enuncia-
<;ao.Nao M humor sem humorista, e 0 "tom" do fabulista su-
gere que a fabula nao seja lida no primeiro grau. 0 fato e que,apesar da diferenca de estilo, os dois textos dizem mais ou
menos a mesma coisa. Mas s6 "mais ou menos". Observemos
as diferencas.
A prime ira delas, menor na aparencia, diz respeito ao tem-
po dos verbos. La Fontaine procede por uma sequencia de ena-lages: matava a sede... chega... 0 presente, ins6lito, e aspec-
tual; marc a 0 acontecimento, a surpresa. Assim tambem a de-
sordem dos marcadores de narrativa: responde, respondeu, e 0
presente narrativo do fim: carrega-o. Essas figuras contribuem
para a vivacidade da narrativa.
Pascal, por sua vez, comeca no presente e passa brusca-
mente para 0perfeito: Assim, ndo sepode dar..., tambem pr6xi-
mo do estilo oral. Mas, neste caso, ja nao estamos na ficcao; 0
tempo tern valor cronol6gico absoluto, 0que distingue a apolo-
gia tanto da fabula quanta da exposicao filos6fica intemporal:
Penso, logo... Pois Pascal descreve urn acontecimento, algo que
surgiu no tempo, depois da queda de Adao, Seu primeiro para-
grafo era filos6fico: analise 16gica. 0 segundo e hist6rico, por-
que teol6gico.
A segunda diferenca diz respeito it personificacao. E aessencia da fabula; curiosamente, Pascal se aproxima dis so,
pois sua raetonimia aforca ... dizendo que equivale a personifi-
car a forca, 0que torna tragico 0debate. A forca que fala aqui eo discurso dos fortes, que nao tern outro peso senao 0 da forca
deles. A forca que fala na fabula e 0 lobo.
o que torna a fabula singularmente complexa e que 0 lobo aca-
ba trazendo it tona um argumento totalmente convincente: Por-
que vas ndo mepoupais ... E e verdade; se agarrado pelos pas-
tores, 0 lobo seria morto. Por isso, segundo as regras dajustica,
ele tern direito de matar 0 cordeiro. Para Louis Marin), 0 lobo
pertence ao mundo da natureza, e ° cordeiro ao mundo da cul-
tura; e entre os dois nao e possivel arbitragem alguma: so vale a
lei do mais forte.
Em suma, 0 lobo da a verdadeira justificativa. Mas La
Fontaine decerto percebeu que, se ficasse nisso, a fabula se tor-
naria tragica, e deixaria de ser fabula. Por isso, logo completa 0
argumento com Ja me contaram, que, em vez de reforcar, des-
tr6i 0argumento, pois 0que era uma evidencia natural, que nao
exigia c omp ro va ca o - a luta mortal entre lobos e homens -
acaba sendo uma simples opiniao, um dizem ("dizem que dois
e dois sao quatro"!). Argumento fraco e pouco coerente do ho-mem enfurecido.
Fato e que 0 lobo faz uma defesa, apresenta sua decisao -
cumpre [a vinganra] - como resultado de uma argumentacao
que a torna legitima. Note-se que ela se ap6ia num endoxon da
epoca, ou seja, que a vinganca pode ser um dever, algo que
cumpre realizar. E 0 sem outra forma de processo, subenten-
dendo que houve processo, acentua ainda mais essa ironia.
Em suma, antitese tragica mas clara em Pascal, ironia pra-
zenteira mas turbida em La Fontaine: tao turbida quanto a pr6-
pria vida. Talvez caiba mais falar de humor.
A elocucao, portanto 0estilo, acentua de modo impressio-
nante a diferenca entre os dois generos. A fabula e em versos, 0
pensamento e em prosa. Mas, tambem neste caso, 0 genic
transgride 0genero, e os dois autores reduzem a oposicao, Pois
ambos se aproximam do estilo oral. Com suas frases curtas e
seus assindetos, Pascal opoe-se aos periodos de Bossuet. E La
Fontaine, com seus versos irregulares, seu andamento vivaz,
LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 153
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152 INTRODUC;AO A RET6RICA
o que dizer desse lobo e de outros anim~is? Serii~alego-
rias? Antes vale dizer: simbolos, porque passiveis de vanas In-
terpretacoes. 0 lobo e 0 "marginal" que, ar~scan~o-se a ~entirmedo e passar fome, preferiu a liberdade a coleira do cao. 0
lobo tambem e 0poderoso, aquele que 0 cordeiro chama - nao
sem razao - deMajestade ... La Fontaine, que de ordinario exi-be uma deferencia total pelos monarcas, niio os esta aqui des-
mascarando em sua verdade? Afinal, 0 lobo e 0 cordeiro sim-
bolizam certa relacao entre os homens, ou mesmo certa relacao
no homem, pois niiosomos nos ora cordeiros, ora lobos?~ ani-
mal da fabula exprime nossa natureza em seu determinismo
inexoravel: homens conduzidos pelo aquem de si mesmos, sem
remissao.omesmo pessimismo visto em Pascal, tirando 0tragico.
A moral da fabula expressa, pois, 0necessaria de Pascal:
todo bajulador... segundo fores poderoso ou miseravel.: A svezes ela valida de modo preocupante esse primado do neces-
sario. Assim, em "0 lobo pastor":
o que e falso de algum modo sempre aparece.Quem for lobo aja como tal:
Pois isso e 0mais certo, afinal.
Os dois generos e seu impacto ideologico
Apesar disso, pudemos demonstrar que a fabula, por ofe-
recer interpretacoes muito diversificadas, e tambem 0 antidoto
do maniqueismo: 0lobo nao esta completamente errado ...
A apologia, com suas antiteses e seus quiasmos, e 0gene-ro da grandeza, mas tambem da negacao. Para ela, 0 homem ecoisa diferente do que e , ou melhor, daquilo que acha que e . 0projeto do apologista, seja ele Socrates ou Pascal, e antes de
tudo perturbar, para levar0
homem a superar seu ponto devista, a olhar para outro lugar, para urn alem de simesmo.
Mas, quando a apologia contradiz ou protesta, a fabula
lanca um olhar resignado e brincalhao, Por isso e menos ironia- que denuncia 0mundo em nome de uma verdade superior -
que humor, pois limita-se a descrever 0mundo em seu absurdo.
Nao diz 0que esta certo, nem 0que esta errado, diz 0que e . Soconhece este mundo, e adverte-nos de suas ciladas enquanto
nos diverte. A etica da fabula e reacionaria, pois ensina a resig-nacao, Mas com que felicidade!
Nossos dois autores, escolhendo um a apologia e 0 outro a
fabula, nao poderiam chegar a conclusoes identicas'.Pois a esco-
lha de um genero nao e apenas a escolha deum estilo e de uma
argumentacao. E necessariamente uma escolha ideol?gica, q~eacarreta certa visao do mundo e do homem. Pascal nao podena
ter expresso seu pensamento em forma de fabula, Por que?
A fabula pretende exprimir certa natureza do homem pela
interpretacao dos animais e das arvores, que falam uma lingua-
gem familiar, pitoresca, muitas vezes comica: uma ence~a~aoe um dialogo. E a rejeicao absoluta tanto da grandeza epica
quanta da profundidade filos6fica; 0 que ela poe em ce~a e .0homem, mas 0 homem subjugado pela a<;iiodas forcas arumais
que tern em si. E, mesmo quando a fabula ~po~ home~s. em
cena, e1essao tiio pouco livres para mudar, sao tao mecamcos
quanto os animais. Assim, em "0 homem e a cobra":
Questees sobre 0 texto
Ouvindo isso, 0animal perverso
(Estou falando da serpente,
e nao do homem: facil seria enganar-se) ...
Uma questao inicial importante e , evidentemente, a dadisposicao, do plano do texto; voltaremos a ela em nossos co-
mentarios, Aqui observaremos que os textos muitas vezes sao
apenas excertos, nao havendo portanto proposito em buscar a
todo custe uma introducao e uma conclusao, que poderiam
perfeitamente estar em outro lugar.
Outra questao inicial: estamos diante de que tipo de argu-
mentacao? Segundo Aristoteles, M dois tipos, duas estruturas
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154 /NTRODUC;AO A RET6RICA LE/TURA RET6RICA DOS TEXTOS 155
argumentativas, e apenas duas: 0 exemplo, que vai do particu-
lar ao geral , do fato it regra, sendo portanto uma inducao, e 0
entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma
deducao.
Cabe lembrar que 0 texto 1, de Gorgias, pretende provar
por dois exemplos 0 poder da retorica, enquanto no texto 2Aristoteles prova a utilidade da retorica por meio de entimemas.
o que prova 0 exemplo?
todos os tiranos conhecidos para 0 tirano em geral, principal-
mente porque a palavra "tirano" nao e univoca: Dionisio nao era
tirano como era Hitler!
o exemplo nao permite provar que uma proposicao e uni-
versal; so pode provar que uma proposicao nao e universal, que
nao pode comecar com sempre nem com nunca. Mas, para essaprova negativa, basta um unico exemplo; basta mostrar que um
remedio nao curou uma vez para demonstrar que ele nem sem-
pre cura. A funcao logica do exemplo e negativa, serve para
infirmar.
Mas na argumentacao serve tambem para confirmar, fun-
((aOpositiva que nao tern na demonstracao: a de tomar plausi-
vel um enunciado, como vimos com Aristoteles (cf. Topicos,
VIII, 2, 157 a, 158 a e 160 b).Assim, emjustica, se houverum
acumulo de acusacoes contra um reu, compete a este produzir
um contra-exemplo (como um alibi), caso contrario sera consi-
derado culpado e ate condenado.
Em retorica, 0 exemplo (paradeigma) tern sentido bern
mais amplo que 0 do nosso banal "exemplo". E uma inducaodialetica, que vai do fato ao fato, passando pela regra subenten-
dida. Aristoteles mesmo da 0seguinte exemplo de... exemplo:
quer-se provar que Dionisio (politico de Siracusa) aspira a tor-
nar-se tirano. Parte-se de um fato verificado: Dionisio pede
uma guarda pessoal. Ora, sabe-se que todos os tiranos conheci-
dos da historia comecaram a carreira pedindo uma guarda.
Portanto, pode-se inferir que Dionisio tambem se tornara tira-
no. Portanto, prova-se esse fato (futuro) com uma regra que
pode ser estabelecida a partir de fatos passados: "Todo aspiran-
te it tirania pede uma guarda pessoal" (Ret6rica, I,2, 1357b).
o problema entao e saber se a propria regra e comprovada
pelos fatos invocados com esse objetivo. Admitindo-se que
todos os politicos conhecidos, que pediram uma guarda, torna-
ram-se tiranos, poder-se-ia dizer que isso sempre acontecera,notadamente com Dionisio? Observe-se que 0elo entre guarda
e tirania talvez fosse urn elo de causalidade na cidade grega; ja
nao 0 e hoje, pois mesmo nas democracias acha-se natural que
os estadistas tenham uma guarda pessoal. Entao, 0que 0exem-
plo pode provar?
Em primeiro lugar, 0 exemplo e realmente demonstrativo
quando se pode mostrar que os casos sao em mimero limitado,
e que a regra se aplica a todos. Mas na argumentacao 0conjun-
to dos casos na maioria das vezes e ilimitado; portanto, a indu-
((aOnao e possivel; nao se pode passar de maneira logica de
Entimema
Passemos agora it vertente dedutiva da argumentacao, ao
silogismo. Pode-se considerar 0 silogismo como uma velharia
escolar, mas isso nao impede que ele esteja sendo feito 0tempo
todo, como 0alter da prosa. Quando 0 lobo diz:
Estas turvando minh'agua, Que atrevimento!
esse minha condensa urn polissilogismo: turvar 0 que e meu eI atrevimento (sacrilegio). Ora, essa agua e minha; tu a estas tur-
vando; logo ...
o silogismo utilizado pela argumentacao cotidiana cha-
ma-se entimema; emprega-se esse termo para distingui-lo do
silogisrao demonstrativo. As premissas do entimema nao sao
proposicoes evidentes, mas nem por isso sao arbitrarias; elas
sao endoxa, proposicoes geralmente admitidas, portanto veros-
simeis. Recordemos 0texto 2, de Aristoteles:
156 INTRODU9AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 157
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Alem disso, se e vergonhoso nao poder defender-se com 0
proprio corpo, seria absurdo que nao houvesse vergonha em nao
poder defender-se com a palavra, cujo uso e mais proprio ao ho-mem que 0do corpo.
partes - e de natureza indutiva ou dedutiva, se os.se, pois o~
portanto ... que contem anunciam exemplos ou entimemas. Fi-
nalmente se examina se a argumentacao nao e sofistica, ou
seja, se ela nao pede aos argumentos mais do que eles podem
provar.Tambem neste caso trata-se de urn polissilogismo implici-
to, que, como vemos, se ap6ia em dois endoxa: 0 uso da pala-
vra e mais pr6prio ao homem que 0 do corpo; e vergonhosonao poder defender-se fisicamente. Este ultimo aspecto podia
ser considerado evidente no tempo de Arist6teles; ja nao e evi-dente para n6s, que nao achamos desonroso chamar a policia
quando somos atacados fisicamente ...
Entimema, silogismo do verossimil, mas tambem silogis-
mo abreviado, cujas premissas enunciadas - como no caso do
texto de Arist6teles - sao apenas as necessarias. Assim, em vez
do silogismo completo:
o intertextual, 0 intratextual e 0motivo central
Maior: todo homem e mortal;
Menor: Socrates e homem;
Conclusao: Socrates e mortal,
Sem chegarmos a afirmar, como Kibedi-Varga, que todo
discurso responde a uma pergunta', admitiremos que ele sem-
pre replica - explicitamente ou nao - a outros discursos, seja
apoiando-se neles, seja refutando-os, seja completando-os. ~
alusao e a figura da intertextualidade; isso acontece quando di-zemos que todos fazem silogismos sem saber, "como 0alter da
prosa".
Nao entraremos aqui nas complexas discussoes sobre aintertextualidade. Simplesmente distinguiremos 0 intertextual
do intratextual. Este ultimo e a presenca explicita de outro dis-curso no discurso. Presenca que semanifesta de duas maneiras.
Primeiro pela citacao, que pode servir para apoiar 0 ora-
dor, constituindo entao urn verdadeiro argumento de autorida-
de, ou entao pode servir de destaque, de prova contra 0 a~ver-
sario: "Vejam 0que ele ousa dizer!" Finalmente, pode servir de
documento de analise, como ocorre em nossos textos.
Depois pela f6rmula, cuja autoridade, ao contrario, vern
do anonimato. Mais vale um "toma" que dois "te darei"eurn
adagio; nao e 0 pensamento de alguem; e a verdade de t~d~s,expressa pela "sabedoria do povo". A f6rmula pode ser adagio,
proverbio, maxima, slogan; este ultimo, por sua vez, pode ser
publicitario, politico ou ideo16gico, como Inimigo hereditario,
Faca 0 amor e niio a guerra, Black is Beautiful. Em todos os
casos a f6rmula e uma frase curta, incisiva, facil de guardar,
cuja ftm~ao e resumir urn pensamento complexo, dando-lhe
mais forca justamente por ser resumido. Ceme do discurso, a
f6rmula contem 0 fecho daquilo que e ret6rico; Morrer porDanzig ...:0slogan dos pacifistas de direita em 1939nao admi-
limitamo-nos a dizer: "Por ser homem, S6crates e mortal." 0pr6prio Arist6teles diz: quando uma premissa e evidente paratodos, e superfluo enuncia-la (Retorica, I, 2, 57 a). No entanto,se omitida, sera simplesmente por ser superflua?
Assim, 0 slogan frances lancado pelo govemo antes da
derrota de 1940, Venceremos porque somos os mais fortes, e
urn silogismo abreviado, cuja premissa maior (os mais fortes
sempre vencem) e omitida. Mas, na realidade, se ela tivesse
sido enunciada, 0 slogan nao teria sido enfraquecido? De fato,
os franceses poderiam ter-se perguntado se os mais fortes real-
mente sempre ganham, notando entao que urn principio desses
tern desagradavel semelhanca com os principios do inimigo
hitlerista.
Tecnicamente, M outras teorias l6gicas diferentes da aris-
totelica, a comecar pelas est6icas. Mas, para a leitura ret6rica
dos textos, basta perguntar se 0 discurso - ou alguma de suas
158 INTRODU(:AO A RET6RICA
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LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 159
tia replica; era imitil argumentar com urn "nao se deve", ou
"convem evitar", pois ninguem teria ousado sustentar 0contra-
rio! Em surna, a formula e urn argumento condensado que se
torna peremptorio gracas a forma, a concisao e a felicidadeestilistica. Tudo0que sepode fazer e opor-lhe outra formula:
I I e n tr a s ur Ie p on t d 'A rc ole ,
I I e n s or ti t. -
V oid de I' or, vie ns p ille e t vole ,
Pe t i t, p e t it .
Porvir radioso - Porvir tenebroso.
§3 B er li n, V ie nn e etaient ses ma i tresses;
I l les f o rca i t,
Leste, e t p r en an t l e s f or te r es se s
Pa r le corset.
I I t ri om p ha d e c en t b as ti ll es
Qu 'if investit.-
V oi d p ou r toi, void des filles,
Pet i t, p e t it .
Finalmente, diante de urn texto, sempre ha interesse em
perguntar se ele nao tern urn motivo central. Entendemos por
motivo central urn procedimento retorico, figura ou argumen-
to, que serve de principio organizador para 0 texto, que permite
dizer: e ironia, e alegoria, e argurnento de autoridade, etc. As-sim, 0motivo central de nosso texto 1 (G6rgias) e a hiperbole,
urna hiperbole ironica, pois Gorgias atribui aos retores poderes
tao espantosos que custa acreditar. 0 do texto 3 (Pascal) e 0
quiasmo. E certo que nao se pode distinguir urn motivo centralem todos os textos, mas e util procurar urn, porque, encontran-do-o, encontramos logo a unidade viva do discurso. Ai vai urn
exemplo.
§4 II p assa it le s m onts e t lesplaines,
T en an t e n m ain ,
L a p alm e, la fo ud re et le s re ne s
D u g en re h um ai n.II e ta it i vr e d e s a g lo ir e
Q ui r et en ti t. -
V oid d u s an g, accours, viens boire,
Pet it , p e t it .
Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson", 1853, Les chatiments,
VII, 7
§5 Quand if to mb a, ld ch an t Ie m on de ,
L 'im me nse m er
Ouvrit a s a chut e p r of on d e
S on g ou jJ re am er ;
II y p lo ng ea , s in is tr e a rc ha ng e,
E t s ' eng lout i t. -
Toi, t u t e n o ie ra s d an s lafange,Pet i t, p e t it .
§1 Sa g r an d eu r eblouit I 'histoire.
Quinze ans, ilfutL e d ie u q ue t ra in ai t l a v ic to ir e
S ur u n a jJ t1 t;
L 'E ur op e s ou s s a l oi guerriere
S e d eba u it=
T oi , s on s in ge , m a rc he d er ri er e,
Pe t i t, p e t it .
§ 1 Sua grandeza ofuscou a historia.
Quinze anos foi
Deus levado pela vitoria
Sobre urn armao;
Sob sua lei guerreira a Europa
P Se debateu. -
Tu, seu simio, marchas atras,
6 pequenino.
§2 Na po le on d an s l a b at ai ll e,
G ra ve e t s er ei n,
Guidait a t ra v er s l a m i tr a il leL ' ai g le d 'a ir a in .
LE1TURA RETORICA DOS TEXTOS 161
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160 INTRODU9AO A RET6RICA
§ 2 E N apo leao n a batalha,
G ra ve e s er en o ,
Guiava atraves da me t r alh a
A aguia d e b r on z e.
E le e ntro u n a po nte d e A rco le ,
D e la s ai u. -E is a qu i o ur o, p il ha e r ou ba ,
6 pequenino.
Qual e 0 genero desse poema? Curiosamente, parecem ser
dois. 0 titulo indica "Chanson" [Cancao J , e, pela forma, real-
mente e uma cancao: ritmo leve, com alternancia de versos de
oito e quatro pes, redundancias, sintaxe solta, sentido as vezes
subordinado a rima - versos 6 dos §§ 1 e 3 -, descuidos ate de-
sejaveis no estilo "cancao", Finalmente, 0mais importante e 0refrao, so que, onde se esperava alguma especie de "dondin-
dondao", tem-se Petit, petit, amplificado pela necessidade de
ser dito quase duas vezes mais devagar que 0 verso anterior.
Pois a cancao esta a service de outro genero.
E a diatribe, modo epidictico mas negativo. Victor Hugo
recorre, portanto, it forma ligeira e sem rodeios da cancao para
dar maior destaque a violencia de suas imprecacoes. Como ex-
plicar essa curiosa dualidade de generos?
Pelo motivo central , justamente, a antitese. 0poema co-
meca com Sua grandeza [Sagrandeur] e acaba com pequenino
[petit]. A antitese entre tio e sobrinho retorna a cada estrofe,
mas com forma urn poueo diferente, verdadeira expolicao:
§ 1, deus e seu simio; § 2, guia e ladrao; § 3, conquistador e ve-
nal; § 4, homem glorioso e covarde cruel; § 5, queda grandiosa
e fim ignobil,
A antitese na o e maniqueista, pois 0 p ro pr io N a po le ao e
culpado, e deve ser castigado. Mas, mesmo em sua queda, 90n-
tinua grande, como indica 0 oximoro sinistro arcanjo.
Tu e a ap6strofe que surge a cada refrao - na verdade 0
poema e dirigido ao grande publico -, e a apostrofe se especifi-
ca em epitropes: pilha e rouba, vem beber, que fingem permitirque 0 t irano pratique atos ignobeis para sugerir que ele e capazdesses atos: tu, ao passo que Ele ...
As outras figuras, numerosas, amplificam mais a antite-
se. As metonimias possibilitam a criacao de simbolos: Aguia
de bronze, raio e redeas, alem da mais nova, armdo, simbolo
do exercito em guerra, a que se opoem as metonimias do re-
frao: OUfO - sangue. As sinedoques - da especie humana (§
4),0 mundo (§ 5) - possibilitam a hiperbole e sobretudo a per-
sonificacao: a historia que ele ofusca (§ 1); a vitoria, que a le-
vava (§ 1).
§ 3 B er lim, V ie na , s ua s am an te s;
E le a s f or ca va ,
L es to , t om a nd o f or ta le za s
P e la c in t ur a .
E le t ri un fo u d e c er n b as ti lh as
Q ue ataco u. -
E is aq ui a s m oc as, sa o tua s,
6 pequenino.
§ 4 T ra nsp un ha m on te s e p la nic ie s,
T endo n a m ao
As p a lma s, ° r aio e a s r ed ea s
D a e sp ec ie h um a na .
I ne br ia va -s e d e s ua g lo ri a
Q ue re tum bo u. -
E is a qu i s an gu e, v er n b eb er ,
6 pequenino.
§ 5 Q uando caiu , largando 0mundo,
oma r ime n so
A b ri u- Ih e n a q ue da p ro fu nd a
S eu p eg o a ma rg o;
La me rg ul ho u, s in is tr o a rc an jo ,
N el e e ng ol fo u- se . -
T u, tu te a fo ga ras n a la ma,
6 pequenino.
Les chdtiments [Os castigos] denunciam Napoleao III
como urn abominavel tirano que subiu ao trona por meio de urn
crime, a golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.
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162 INTRODUC;rlO A RET6RICA Capitulo VIII
Como identificar os argumentos?Personif icacao tambem pelas metaforas: 0 deus =largan-
do 0mundo - cem bastilhas - engolfou-se, e principalmente pe-
las metaforas expandidas: Amantes - forcava - cintura, 0mar
imenso abriu, etc.
Personif icacao: nota-se que 0 t io sempre esta ligado, mes-
mo quando se trata de abstracoes, a poderes personificados, ou
mesmo divinizados, enquanto ao sobrinho so tocam materia e
coisas inertes: sangue, ouro, lama... introduzidas por Eis aqui.
Assim, as cidades transformam-se em mulheres, que Napoleao
conquista, enquanto as mulheres do simio sao apenas mocas,
mercadoria venal.
Em resumo, tudo esta a service da antitese, ate a oposicao
entre 0 estilo epico das estancias e 0 estilo seco, entrecortado,
do refrao. A antitese, como diziamos, e 0 oposto no mesmo:
aqui 0mesmo e representado pela estrutura identica das estro-
fes , das quais 0 tio ocupa sempre tres quartos, e pela repeticao
de petit.
E possivel encontrar argumentos nessa cancao? Sim, exem-
plos e urn argumento macico de incompatibilidade; 0 poema
ridiculariza a pretensao do despota a ser urn segundo Napoleao,
quando nao passa de seu simio. Mas 0 argumento na o e marca-do, pois, como quer a lei do genero, a cancao e paratactica, ou
seja, sem nexos logicos expressos; por exemplo, 0assindeto do
§ 2: entrou... saiu.
Pergunta: Napoleao III foi realmente esse tirano abjeto e
sanguinario? Seria born matizar. Principalmente porque, em
materia de tirania, houve tanta gente mais competente depois
dele que chegamos a pensar que 0poeta talvez tenha desperdi-
cado talento. Mas, em retorica, 0que importa e 0 talento.
Como identificar os argumentos que contribuem para tor-
nar persuasivo urn discurso? Para responder, utilizaremos a
classificacao do Traite de I 'argumentation [Tratado da argu-
mentacao (TA) ] de Perelman- Tyteca.
A bern da verdade, ja encontramos urna classificacao dos
argumentos, a de Aristoteles , que os divide em: indutivos (exem-
plo) e dedutivos (entimema); sera preciso criar mais urna?
Sim, porque Aristoteles nao trata da forma da argumenta-
9ao, da relacao entre as premissas. 0 TA , ao contrario, estuda 0
conteudo das pr6prias premissas, define tipos de argumentos
(lugares) que permitem propor uma premissa, mais precisamen-
teuma premissa maior, a qual se pode depois subsurnir 0 caso
em questao. Por exemplo, a frase de Leibniz:
Tendo cuidado dos passaros, Deus nao negligenciara as
criaturas racionais que lhe sao infinitamente mais caras... (in TA ,
p.456)
e urn entimema que se baseia numa premissa maior implicita: 0
que Deus concede as criaturas insignificantes tambem concede
1s criaturas nobres; premissa maior val idada por urn argumen-
to afortiori;o T A distingue entao quatro tipos de argumentos:
- os quase logicos, do tipo "urn tostao e urn tostao";- os que se fundam na estrutura do real, como 0 argumento a
fortiori- osque fundam a estrutura doreal, como a analogia;
164 INTRODUf;AO A RET6RlCACOMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 165
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- os que dissociam uma nocao, como 0distinguo entre a aparen-
cia e a realidade.
As verdades sao ainda menos diretas; sao nexos necessa-
rios, como e = 112 GP, ou entao sao provaveis, como uma lei
tendencial.
As presuncoes tern funcao capital, pois constituem 0 que
chamamos de "verossimil", ou seja, 0 que todos admitem ate
prova em contrario, Por exemplo, nao esta provado que todos
os juizes sao honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se
alguem desmente em tal ou tal caso , cabe-lhe 0 onus da prova.
o verossimil e a confianca presumida.
Em todo caso, a presuncao varia segundo os auditorios e
as ideologias. Assim, para urn conservador, 0costume nao pre-
cisa ser justificado, e sim a mudanca, Para urn liberal , 0 que
nao compete justificar e a liberdade, mas sim a coercao. Para
urn socialista, a igualdade e de direito, cumprindo justificar a
desigualdade. 0 orador, portanto, precisa conhecer as presun-
coes de seu auditorio.
Por isso, utilizaremos essa riquissima analise, mas indo
alem do simples resumo. Tentaremos contribuir com exemplos
de nossa lavra e, eventualmente, com criticas.
Os elementos do acordo prevlo
Vimos que nao ha argumentacao possivel sem algum acor-
do previo entre 0 orador e seu audit6rio. Quais sao os elemen-
tos, as "premissas comuns" (TA, § 15), implicitas ou explicitas,
que constituem esse acordo?
Fatos, verdades, presuncoes
o acordo repousa primeiramente sobre fatos, e fatos ja sao
argurnentos. Por exemplo, urn jomalista que quer mostrar 0 ca-
rater "antidemocratico" de nosso ensino cita uma estatistica:
25% dos jovens franceses concluem 0 curso secundario, contra
75% de americanos (Vial, Le Monde, 4 de janeiro de 1985).
No entanto, a nocao de fato esta longe de ser clara. 0 que
e fato? A unica resposta possivel e: urna verificacao que todos
podem fazer, que se impoe ao auditorio universal, que parece
ser 0caso de nosso "fato estatistico".Contudo, como todo argumento, 0fato pode ser contestado.
Como? Primeiramente recorrendo a pessoas competentes: espe-
cialistas mostraram que 0 fato em questao e apenas aparente,
assim como se provou que nao e 0Sol que gira em torno da Ter-
ra. Depois, mostrando que 0 fato em questao e incompativel com
outros fatos, comprovados. Finalmente, contestando 0 valor ar-
gurnentativo do fato, sua "interpretacao"; em nosso exemplo,
diremos que 0nivel do diploma do termino do curso secundario
nos Estados Unidos nada tem que ver com 0de nosso baccalau-
real, que ele nao permite entrar na universidade, etc.
Os valores e 0preferivel
Os valores estao simultaneamente na base e no termo da
argumentacao. Mais ainda que os fatos, variam segundo 0
auditorio. E certo que ha valores universais, mas estes sao for-
mais; toda sociedade admite 0justo e 0belo, mas com conteu-
dos bem diferentes. De qualquer modo, essa pretensao ao uni-
versal e, em si me sma, urn argurnento; quem grita: "Franceses
primeiro!" dira que "isso ejusto".
Sera entao preciso renunciar aos juizos de valor para atingir
a objetividade? Nos dominios da argumentacao - jurid ico, poli-
t ico, estetico, etico, etc. - e impossivel, pois neles todas as ques-
toes (inocente ou culpado; util ou nocivo; bela ou feio; bem ou
mal) sao formuladas em termos de valor. Digamos que, assim
como os fatos, os valo res sao presurnidos; todos admitem sem
provas, hsje em dia, que 0 desemprego e urna calamidade, e a
quem sustentasse urnjuizo de valor contrario competiria provar.
Perelman- Tyteca dist inguem dois tipos de valores. Os va-
lores abstratos, como a justica ou a verdade, que se fundam na
16 6 INTRODU9AO A RET6RlCA COMO IDENTIFICAR OSARGUMENTOS? 167
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AS lugares do preferivel
preocupa; quanto mais 0 sabio se eleva, mais se aproxima do
uno, do ser verdadeiro, do valor absoluto. Descartes (cf. texto
8) afirma que as obras perfeitas sao aquelas em que "uma uni-
ca pessoa trabalhou". Excelente exemplo do lugar da unidade e
o famoso titulo de Bossuet Variacoes das /grejas protestantes,
que por si so e uma refutacao do protestantismo: se ele fosseverdadeiro seria unico, Na verdade, 0 argumento tambem vale-
ria contra 0cristianismo ...
A nosso ver, os outros lugares identificados pelo TA se
integram nos acima descritos, ou deles derivam: 0lugar da or-
dem pertence ao da unidade; 0 lugar do existente, ao da quanti-
dade (0que existe e superior it "quimera"); 0 lugar da essencia,
ao da qualidade: superioridade do essencial em relacao ao aci-
dental, ao fortuito; fala-se assim, por exemplo, de urn "belo ca-
so" para se referir a urna doenca interessante.
razao; assim: "Devemos preferir a verdade aos amigos" (Aris-
toteles), E os valores concretos, como Franca, Igreja, que exi-
gem virtudes como obediencia, fidelidade: prefiro minha mae
it justica, dizia Camus. Urn mesmo argumento pode combinar
esses dois tipos: "Todos os homens sao iguais porque sao fi-
lhos de Deus."Na verdade, quem diz valores diz hierarquia de valores.
Assim, prefere-se 0justo ao util , acredita-se ser melhor sacrifi-
car 0cao que seu dono (Malebranche).
Como justificar as escolhas? Recorrendo a valo res ainda
mais abstratos, que 0 TA denomina lugares do preferivel. Esses
lugares expressam urn consenso generalissimo sobre 0meio de
estabelecer 0 valor de urna coisa. Podem ser divididos em tres
especies,
1) Lugares da quantidade: e preferivel aquilo que propor-
ciona mais bens, 0 bern maior, 0mais duravel, ou ainda 0 que
propicia 0 "mal menor". Por essa optica, 0normal- no sentido
do mais freqiiente - determina a norma, 0 obrigatorio; assim,
expressoes como "E isso 0que todos fazem", "isso 0que todos
pens am" , sao dadas como argumentos, e, assim como Socrates
em G6rgias, e preciso uma contra-argumentacao para dissociar
a norma do normal.
2) Os lugares da qualidade tern sentido contrario. A per-gunta "De que vale 0que nao e eterno?", responde-se "Estime-
se tudo aquilo que nao sera visto duas vezes." Desse modo, 0
unico passa a ser 0preferivel; enquanto se despreza 0banal, 0
intercambiavel, " a sociedade de consumo", valoriza-se 0 raro,
o precario, 0 insubstituivel. A norma ja nao eo normal, e 0ori-
ginal, ate m.esmo 0marginal, 0 anomalo,
3) Os lugares da unidade de algum modo sintetizam os dois
anteriores: 0 que e urn, ou efeito de urn unico, e por isso mes-
mo superior. Na hierarquia do ser, Platao coloca bern embaixo
o "multiple" (ta polla), com que a "multidao" (oi polloi) se
Figuras e sofismas concernentes ao acordo previa
Segundo 0 TA, certas figuras contribuem para reforcar 0
acordo previo: figuras de escolha, como a definicao oratoria;
figuras de presenca, como a epanalepse e principalmente a hi-
potipose, que faz do espetaculo urn argurnento e do argurnento
urn espetaculo; figuras de comunhao, como a alusao, a pergun-
ta retorica, etc.
Cabe mencionar, finalmente, dois sofismas referentes ao
acordo previo, 0 primeiro e a ignoratio elenchi, ignorilncia docontra-argumento oposto, ou ainda do verdadeiro assunto de de-
bate. Esse sofisma pode ser voluntario e tatico, ou entao passio-
hal: "Discute-se acaloradamente, e muitas vezes urn nao entende
o outro" (Port-Royal,p. 243). Essa ignorilncia e urn erro de argu-
mentacao, pois contribui para impossibilitar 0debate.
o segundo sofisma, ainda mais corrente, e a peticao de
principio.Segundo 0TA, nao se trata de urn argumento, mas de
urn "erro de argumentacao" (p. 153), que consiste em argu-
mentar como se 0auditorio admitisse a tese que se esta tentan-
do leva-lo a admitir , quando,justamente, ele nao a admite! Mas,
168 INTRODU9AO A RET6RICA COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 169
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assim definida, a peticao de principio se reduz a urn erro psi co-
logico, 0 dicionario Lalande da urna definicao mais objetiva
disso, que se refere na realidade a argumentacao: "Tomar por
admitida, sob forma urn tanto diferente, a propria tese que se
quer demonstrar." Segundo a Logica de Port-Royal, Aristote-
les, ao querer provar que a Terra e 0centro do mundo, teria co-
metido uma peticao de principio . Diz ele:
A natureza das coisas pesadas e tender para 0 centro do
mundo. Ora, a experiencia nos mostra que as coisas pesadas ten-
dem para 0 centro da Terra. Portanto, 0 centro da Terra e 0 cen-tro domundo.
bilidades, que variam segundo os meios e as culturas. Assim,
ser comunista e funcionar io publico aparece como incompati-
vel em certas democracias ocidentais, mas nao em outras. Em
todo caso, a argumentacao refutara essa tese mostrando que ela
e incompativel com alguma outra.
Pode-se rejeitar esse argurnento de duas maneiras: logica,
dissociando os conceitos por distinguo; empirica, buscando urna
conciliacao pela acao, Exemplo de resolucao logica: urn profes-
sor ensina as criancas que e preciso obedecer aos pais, e que nao
se deve mentir. Mas 0 que fazer quando 0 pai manda mentir?
Pode-se mostrar que so ha incompatibilidade quando a regra su-
bentende "sempre" com obedecer e "nunc a" com mentir. Ou
ainda, que a obediencia a urna ordem injusta nao e obediencia,A incompatibilidade esta vinculada a retorsao, que consis-
te em retomar 0 argumento do adversario mostrando que na
verdade este e aplicavel contra ele mesmo. Aos adversaries
que, em 1789, negam que os deputados devam assurnir 0nome
de "representantes do povo", Mirabeau retorque assim:
A premissa maior desse silogismo na verdade nao passa de uma
peticao de principio. Pois como Aristoteles sabe que as coisas
pesadas tendem para 0 centro do mundo? Ele simplesmente
acredita nisso, e acredita porque acha que a Terra e 0centro do
mundo, 0que seria preciso provar!
Primeiro tipo: argumentos quase 16gicosadoto, defendo e proc1amo [essa qualificacao] pela mesma razao
que leva a combate-lal Sim, e porque 0nome de povo nao e sufi-cientemente respeitado na Franca, porque esta deslustrado,
coberto pela ferrugem do preconceito (.. .) que devemos nos
impor a tarefa de nao s6 alca-lo como tambem de enobrece-lo.
(16 dejunho de 1789)
o TA comeca com urn grupo de argurnentos que denomi-
na quase logicos, Essa expressao pode surpreender, pois afinal
urn argumento e logico ou nao e! Mas sabemos que a argumen-
tacao rejeita a lei do tudo ou nada. Na realidade, cada urn dos
argumentos quase logicos e aparentado com urn principio logi-
co, como a identidade ou a transitividade; e, assim como eles,
sao a priori, no sentido de que nao fazem apelo a experiencia,Mas, ao cont rario dos principios logicos da demonstracao, po-
dem ser todos refutados demonstrando-se que nao sao "pura-
mente Iogicos" (cf. § 45 s.) .
o caso mais celebre e a autofagia, argumento que consiste
em mostrar que 0 enunciado do adversario se destroi por si
mesmo:
Aos positivistas que afirmam que toda proposicao verda-
deira e analitica ou de natureza experimental, perguntaremos se
o que eles acabam de dizer e uma proposicao analitica ou expe-rimental. (TA,p. 275)
Contradicoes e incompatibilidade: 0 ridiculo
A contradicao pura, do tipo "e branco e nao branco", e
rarissima na argumentacao, que nao pode recorrer a prova por
absurdo. 0 que se encontra, em compensacao, sao incompati-
o ridicule esta para a argumentacao assim como 0 absur-
do esta para a demonstracao: e preciso ressaltar urna incompa-
tibilidade, e a ironia e a figura que condensa esse argumento
pelo riso:
170 INTRODU9AO A RET6RICA COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 171
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No momento em que, nurn teatro de provincia, 0 publico
se preparava para cantar A Marselhesa, urn policial sobe no pal-
co para anunciar que e proibido tudo 0 que nao consta do car-
taz: "E voce, interrompe urn dos espectadores, esta no cartaz?"
(TA,p.274)
gos sao meus amigos, que se pode ate desenvolver algebrica-
mente:
Observe-se que, quando a incompatibilidade e nociva -por exemplo com a negacao das camaras de gas -, ela ja nao e
ridicula, porem odiosa. 0 ridiculo e 0 odioso desenvenenado,
que nao provoca escandalo, porem riso.
+ x + =+ Os amigos demeus amigos sao meus amigos.+ x - =- Os amigos de meus inimigos sao meus inimigos.
- x + =- Os inimigos de meus amigos sao meus inimigos.
- x - = + Os inimigos de meus inimigos sao meus amigos.
Identidade e regra dejustica
Este ultimo argumento foi empregado por Churchill em 1941:
quando a Alemanha invadiu a URSS, ele proc1amou que esta
era sua aliada. No entanto, a relacao nao e realmente logica:
pode-se detestar 0 amigo do amigo por urna questao de ciume,
Digamos que 0 argurnento incita a presurnir confianca, Ja que
voce e amigo de meu amigo, YOU trata-lo como tal.
Outro argumento e a divisao: divide-se urn todo - a tese
por provar - em partes, e, depois de mostrar que cada uma de-
las tern a propriedade em questao, conc1ui-se que 0 todo tern
essa mesma propriedade. Esse argumento so e rigoroso quando
o todo e as partes sao homogeneos; assim, 0 lugar Quem pode 0
mais pode 0pouco so vale se 0 poder e de natureza identica: 0
medico pode tanto quanto a enfermeira no campo dela?
Na divisao repousa 0 dilema, raciocinio que prova que os
dois termos de urna altemativa levam it me sma conseqiiencia,
sendo esta a tese. Ainda e preciso que a altemativa seja real-
mente urna altemativa! "E branco ou nao branco" e urna alter-
nativa logica; "E branco ou preto" nao e, a menos que se tenha
provado que as cores intermediarias estao excluidas. Vejamos
o seguinte dilema:
Outros argurnentos fazem apelo ao principio de identida-
de, A e A, mas sem se reduzirem a ele. Expressoes como Mu-
lher e mulher, Negocios sao negocios sao pseudotautologias,
pois 0 atributo nao tern exatamente 0mesmo sentido do sujei-
to: mulher - ser feminino - e mulher - ser fragil, enganador,
etc.! Mas e dificil refutar a aparencia de identidade.
Na identidade baseiam-se a regra de justica: tratar da mes-
rna mane ira os seres da mesma categoria; 0 precedente: a ad-
missao de urn ato autoriza a cometer atos semelhantes; a reci-
procidade: Olho por olho.
Argumentos "quase" logicos apenas, pois a expressao
"me sma categoria" e problematica. Por exemplo, nurn exame:
"X recuperou-se com 9,5; por que nao Y, que teve 9,7?" Admi-
tir isso e estabelecer a media em 9,5, e exc1uir qualquer delibe-racao. Outro exemplo: "0 que e honroso aprender tambem e
honroso ensinar" (Quintiliano, citado p. 298); mas aprender e
ensinar sao realmente reciprocos?
Por que vos fazer uma repreensao? Se fordes honestos, nao
a merecereis; se fordes desonestos, ela nao vos perturbaral (Re-
torica a Herenio, IV, 52)
Outros argumentos quase logicos apoiam-se em formulas
matematicas. Assim e a transitividade: Os amigos de meus ami-
Esse dilema so seria rigoroso se os dois termos - honesto, de-
sonesto ~tfossem os unicos, e nao se pudesse ser urn e outro ao
mesmo tempo; urn pouco de urn, urn pouco de outro ...
o argumento ad ignorantiam mostra que todos os casos
possiveis devem ser exc1uidos, salvo urn, que e justamente a
Argumentos quase matemdticos:
transitividade, dilema, etc.
172 INTRODU9AO A RET6RICACOMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 173
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Na realidade, toda definicao e um argumento, pois impoe
determinado sentido, geralmente em detrimento dos outros. Tor-
na-se perigo sa e abusiva quando, sendo apenas normativa, p~e-
tende-se descritiva; quando, sendo condensada ou oratona,
pretende-se completa. Assim, no texto 6, veremos que Millner
passa sem aviso previo de: "Entendo por escola" para "a e~co~a
e isto" e depois: "So e isto." Em sendo um argumento, a propna
definicao deveria ser argumentada.
tese por provar, cuja admissao se pede por falta de coisa me-
lhor; mostra-se que todos os candidatos a urn posto sao inacei-
taveis, salvo urn (0proprio), ao qual se concedera entao 0be-
neficio da duvida, Esse argumento e muito util em casos de
urgencia; aparece com freqiiencia na "moral provisional" de
Descartes.
o TA dedica a definicao urn longo estudo que aqui inter-
pretaremos livremente (cf. T A , § 50).
Definicao e urn caso de identificacao, pois com ela se pre-
tende estabelecer uma identidade entre 0que e definido e 0que
define, de tal modo que se tenha 0direito de substituir um pelo
outro no discurso, sem mudar 0 sentido, de dizer tanto homem
quanta animal racional. Na realidade, essa identidade so e per-
feita nas linguas artificiais - como a algebra - ou ainda para os
termos tecnicos: pecas de maquinas, por exemplo. Na argu-
mentacao, consideraremos quatro tipos de definicao.
1)Normativa, que na verdade e uma denominacao, pois im-
poe como convencao 0uso de uma palavra, como por exemplo 0
termo falsificar na epistemologia de Popper. Nao e nem verdadei-
ra nem falsa; basta ater-se a ela em toda a argumentacao.
2) Descritiva (ou "real"), que pretende enunciar 0 uso -
sentido corrente - do termo definido. Falsificar ja nao tern
o sentido de Karl Popper, mas 0do dicionario: "Alterar volun-
tariamente com intuito de fraudar." A definicao descrit iva pode
entao ser verdadeira ou falsa; falsa se nao descrever real mente
ouso.
3) Condensada, definicao descritiva que se restringe as
caracteristicas essenciais: "Entendo por universidade a institui-
cao que associa pesquisa fundamental a ensino superior." Omi-
te grande numero de coisas, como a formacao dos adultos.
4) Oratoria (cf. p. 233), definicao imperfeita, pois 0 que
define e 0que e definido nao sao realmente permutaveis: "Guer-
ra e toda a nacao num esforco de vitoria,"
Segundo tipo: argumentos fundados
na estrutura do real
Os argumentos do segundo tipo ja nao se apoiam na logica,
porem na experiencia, nos elos reconhecidos entre as coisa.s.
Aqui, argumentar ja nao
eimplicar, e explicar: "0adversan~
diz isso porque tern interesse em dize-lo" (argumento ad homi-
nem). Inversamente, estima-se que, quanta mais fatos uma tese
explicar, mais provavel sera ela.
Sucessiio, causalidade, argumento pragmatico
Pode-se argumentar constatando uma sucessao constante
nos fatos, e deles inferindo urn nexo causal; se urn exercito
sempre tern excelentes informacoes sobre 0 inimigo, infere-s:
que seu servico de inteligencia e excelente~ e ~ue ~~mpre seraassim. Mas nao se trata de uma demonstracao cientifica.
Em primeiro lugar, 0argumento e apenas provavel, e 0 so-
fisma esta sempre a espreita: post hoc, ergopropter hoc, "se-
quencia, portanto conseqiiencia". 0mais importante e que 0
argumento na verdade quer estabelecer um juizo de val~r, mos-
trar 0 valor do efeito a partir do valor da causa, ou 0mverso.
Assim, lm nosso texto 7, Corneille, a partir do valor da poesia,
conclui pelo valor do autor.
o argumento pragmatico deriva disso: e "0argumento que
permite apreciar urn ate ou urn acontecimento em funcao de
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T er n v ir tu de s d e r na is p ar a n ao s er c ris ta !
xistente. Eo argumento do desperdicio: dec1ara-se que e preci-
so continuar a guerra porque, caso contrario, todos os mortos
teriam tombado em vao; que e preciso continuar a emprestar
aos paises superendividados, caso contrario a bancarrota deles
anularia qualquer possibilidade de quitacao; ou ainda que todos
tern 0 dever de empregar seus "talentos" inatos; que e precisovotar para nao deixar de expressar sua opiniao, etc.
o argumento de direcao consiste em rejeitar uma coisa -
mesmo admitindo que em si e inofensiva ou boa - porque ela
serviria demeio para um fim que nao sedeseja. Quando seargu-
menta que 0 salario dos escrivaes e baixo demais, 0 contra-ar-
gumento e que todas as categorias de funcionarios iriam exigir
aumento. E 0argumento da readio em cadeia, daperda do con-
trole: sevoce ceder desta vez aos terroristas... Em que esse argu-
mento se distingue do argumento do precedente? 0 precedente
fundamenta um direito, enquanto a direcao preve um fato.
No argumento da superacao, ao contrario, a finalidade
desempenha papel motor. Ele parte da insatisfacao inerente ao
valor: nunca ninguem e born demais, justo demais, desinteres-
sado demais. 0 ideal inacessivel mostra em cada conquista urn
trampolim para uma conquista superior, num progresso sem
fim. 0 obstaculo transforma-se entao num meio de passar para
um estagio superior, como a doenca que imuniza, 0 fracasso
que educa. "Perfeito e 0oposto de aperfeicoar", dizia P . Valery;
aqui, opta-se pelo aperfeicoamento ao infinito, pelo melhor
contra 0bom.
A hiperbole, convem lembrar, e a figura que condensaesses dois argumentos. E 0 que acontece na seguinte piada:
diante de todos osjornalistas, 0Presidente atravessa 0Sena an-
dando sobre as aguas. Urn grande jornal de oposicao traz como
manchete no dia seguinte: "0 Presidente nao sabe nadar!" Su-
bentendido: ele poderia fazer qualquer coisa, nunca estaria
born. A anedota dramatiza 0 "qualquer coisa". A epitrope tam-
bern e u r n argumento de direcao levado ao extremo: Eis aqui
sangue, vem beber...
Duas observacoes sobre a finalidade. A primeira e que
acontece cria-la para atender as necessidades da causa, como
suas consequencias favoraveis ou desfavoraveis'' (TA, p. 358).
Por exemplo, que outra boa raziio seteria para adotar uma lei, a
nao ser 0 conjunto de beneficios que dela se pode esperar (A.Smith)?
o argumento pragmatico goza de tal verossimilhanca que
de imediato presume confianca, Em outras palavras, a quem 0
contestar incumbira justificar. Se digo: e preciso ser sincero,
mesmo que disso muitas vezes resultem conseqtiencias desfa-
voraveis, cabe a mim defender essa tese, etica, contra 0 argu-
mento pragmatico. Sobre ele 0utilitarismo funda seus valores
pois afirma que e born 0que e util a maioria; sobre ele 0prag-matismo funda a verdade: verdade e a crenca que nos prestaservico.
Suas fraquezas? Em primeiro lugar, geralmente e1e opta
pe1asconseqiiencias; 0banqueiro falara da rentabilidade de um
investimento, e nao de sua seguranca. Importante: esse argu-
mento elimina os valores superiores: so porque triunfa, uma
causa e boa? Finalmente, como Socrates objetava a Gorgias
(texto 1): 0 que e realmente util ou realmente nocivo? 0 argu-
mento pragmatico so e valido quando ja se sabe isso, ou entao
quando nao setern outro meio de conhecer esse realmente.
Finalidade: argumento de desperdicio,
de direciio, de superaciio
A finalidade, rejeitada pe1aciencia, desempenha papel ca-pital nas acoes humanas, e dela e possivel extrair varies argu-
mentos, todos fundados na ideia de que 0 valor de uma coisa
depende do fim cujo meio e ela, argumentos que nao expri-
mem 0porque, mas 0para que.
Diz Polieuto de sua mulher, inda paga:
afirmando assim que, se nao se tornasse crista, suas virtudes de
nada serviriam, seriam meios maravilhosos para urn fim ine-
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