introdução à retórica. olivier reboul. são paulo_ martins fontes, 2004

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A ret6rica e a arte de convencer pelo

discurso; e tambem a teoria dessa arte,

criada pelos gregos e constitutiva do nosso

• humanismo.

Depots de urn longo eclipse ela voltou em

nossos dias com muita forca, a ponto de

ser aplicada a imagem, ao cinema, a

musica, ao inconsciente.

Cinco enfoques complementares sao

desenvolvidos nesta introducao: uma

apresentacao hist6rica do "sistema"

ret6rico, uma exposicao met6dica dos

procedimentos ret6ricos, uma aplicacao

pratica - "leitura ret6rica de diversos

textos", urn glossario com definicoes dos

termos tecnicos e uma filosofia da ret6rica.

I N T R O D U C A o A R E T O R I C A

Olivier Reboul, fil6sofo frances, e professorde Filosofia da Educacao na Universidade de

Estrasburgo. Escreveu, alem deste, os livros:

L an na ne e t ideoloqie, L e I an na ne d e l' ducation,

Q y' est-ce qu'apprendre?

Pro je to gni ll co d acapa Kat ia Harumi Terasaka

Execucao A d ri a na T r a n s la t ti

Imagem da capa Charles Sydney Hopkinson, Oliver Wendell

Holmes, 1930 (deta lhe). Harvard Law Art

Collection, Cambridge.

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I N T R O D U C A OA R E T O R I C A

O liv ie r R e b ou l

Traducao

IVONE CASTILHO BENEDETTI

M a rtin s F on tesS oo P au lo 2 00 4

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Indice analitico

Est a obra f oi pub li cada ori gi na lmen te emf ranc es c om 0 tltulo

INTRODUCTION A L A R H i:r OR IQ UE - T HE OR IE E T

PRATIQUE por Presses Universitaires de France.

Copyright © Presses Universuaires de France, 1991

Copyright © 1998, Livraria Martins Fontes Edi tora Ltdo. ,

Sao Paulo , para a preseme edicdo

l"ledi~o

. :: te -e t0 de1998

21~i~ao

-mmmro de2004

Prefacio .

Introduciio: Natureza efunciio da retorica .

Arte, discurso e persuasao......................................... XIV

Funcao persuasiva: argumentacao e orat6ria .. .. .. .. .. .. . XVII

A funcao hermeneutica XVIII

A funcao heuristica XIX

A funcao pedag6gica........ XXIo original

Vadim Vale inovi tch Nik it in

_Revis': sgraflcas

4naMaria O.M.Barbosa

Manse S imoe s Lea l

Producao graflea

Geraldo Alves

Pagina~aolFotolitos

Studio 3Desenvolvimento Editorial

Capitulo 1- Origens da retorica na Grecia .

Nascimento da retorica .

Origem judiciaria .

Corax .

Origem literaria: G6rgias ..

A retorica e os sofistas ..

Protagoras: 0homem medida de todas as coisas ..

Fundamento sofistico da ret6rica ..Isocrates ou Platiio? .

Isocrates, 0humanista .

Umapausa .

Texto 1- Platao, G6rgias, 455 d a 456 c, trad. M.

Croiset .

Retorica e cozinha .

De que "ciencia" se trata? ..

Dad os Internacionais de Ca~ na Pub~ (CIP)

(Camara B ra si le ir a do L iv re , SP, B ra si l)

Rebout, Olivier . 1925-

Introdu1fao a retorica I Olivier Reboul ~tradu1fao Ivone Cas ti lho

Benedet ti . - S ao P au lo : Mar ti ns Fon te s, 2 (X )4 . - ( Ju st ic a e d ir ei to ).

Titulo original: Introduction a la rhetorique

Bibliografia.

ISBN 85-336-2067-5

1 .Re t6 ri ca I .T i tu lo . I I. S ene.

04-6899 COO-808

indices para catatogo sistematico:

1. R et6rica 808

Todos os direi tos des ta edicao para 0 Brasil reservados J

Livraria Martins Fontes Edi tora Lil ia .

Rua Cons el he ir o Ramalho, 330 01325- 000 S ti o Pau lo SP Bras il

Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867

e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br

Capitulo II - Aristoteles, a retoriea e a dialetica ..

Uma nova definidio de retorica ..

XI

XIII

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2

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Texto 2 - Aristoteles, Retorica, livro I, cap. 2,

1355 a-b ..

Uma definicao mais modesta .

A argumentacao de Aristoteles ..

o que e dialetica? .

A dialetica e umjogo .

Tudo para ganhar .

Respeitar as regras do jogo ..

Utilidade do jogo dialetico .

Retorica e dialetica .

o que elas tern em comum .

Dialetica, parte argumentativa da retorica .

Moralidade da retorica ..

Conclusao: Aristoteles e nos ..

Capitulo III - 0 sistema ret6rico .

As quatro partes da retorica .Invendio .

Os tres generos do discurso ..

Os tres tipos de argumento: etos, patos, logos ..

Provas extrinsecas e provas intrinsecas .

Os lugares ("topoi") .

Observacoes sobre a invencao .

Disposiciio ("taxis") ..

Exordio ("prooimion", proemio) .

N - ("d' "")rra<;ao legesls .C fi - (" .. ,,)on irmacao pistis ..

Digressao ("parekbasis") e peroracao ("epilogos")

Por que a disposicao? ..

Elocucdo ("lexis 'J .

Lingua e estilo: uma arte funcional... .

Figuras ("schemata") e 0problema do desvio ..A -0 ("h .. 'J;a 'Ypocnsls .

Uma "hypocrisis" sem hipocrisia ..

o problema da memoria ..

o problema do escrito e do oral .

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Capitulo IV - Do seculo I ao XX .

Periodo latino .

Forma e fundo: pintura e cores verdadeiras .

Retorica e moral , .

Retorica e democracia .

Por que 0 declinio? .

Retorica e cristianismo .

Verdadeiras causas do declinio: retorica, verdade

e sinceridade .

Hoje: retoricas .

Uma retorica estilhacada ..

Retorica da imagem .

Retorica da propaganda e da publicidade .

Nova retorica contra nova retorica ..

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Capitulo V - Argumentacao .

As cinco caracteristicas da argumentaciio ..o auditorio pode ser "universal"? ..

Lingua natural e suas ambigiiidades ..

Premissas verossimeis: 0que e verossimil? .

Uma progressao que depende do orador .

Conclusoes sempre controversas .

o que e uma "boa" argumentaciio? .

Os sofistas e a argumentacao ..

Nao-parafrase e fechamento .

Argumen t ac i io p edagog ica , judiciaria, filoso fica .

Do pedagogico ao judiciario .

Uma controversia judiciaria: os expropriados e adesvalorizacao .

Argumentacao filosofica: onde esta 0 tribunal? ..

Capitulo VI - Figuras .

Figuras de palavras .

Figuras de ritmo .

Figuras de som: aliteracao, paronomasia, anta-

naclase ..

Um argumento ret6rico: a etimologia .

Figuras de sentido .

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Tropos simples: metonimias, sinedoques, meta-

foras..................................................................... 121

Tropos complexos: hipalage, enalage, oximoro,

hiperbole, etc. 123

Figuras de construfaO..... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 126

Figuras por subtracao: elipse, assindeto, aposio-

pese ou reticencia 126Figuras de repeticao: epanalepse, antitese 127

Figuras diversas: quiasmo, hiperbato, anacoluto,

gradacao 128

Figuras de pensamento 129

Alegoria: figura didatica? 130

Ironia, graca e humor 132

Figuras de enunciacao: apostrofe, prosopopeia,

pretericao, epanortose... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 133

Figuras de argumento: conglobacao, prolepse, apo-

dioxe, cleuasmo 135

Capitulo VIII - Como identificar os argumentos? .

Os elementos do acordo previa .

Fatos, verdades, presuncoes .

Os valores e 0preferivel .

Os lugares do preferivel .

Figuras e sofismas concernentes ao acordo previo

Primeiro tipo: argumentos quase logicos .

Contradicoes e incompatibilidade: 0ridiculo .

Identidade e regra de justica .

Argumentos quase matematicos: transitividade,

dilema, etc .

Definicao .

Segundo tipo: argumentos fundados na estrutura do

real .

Sucessao, causalidade, argumento pragmatico .

Finalidade: argumento de desperdicio, de dire-

~ao, de superacao .Coexistencia: argumento de autoridade, argu-

mento "ad hominem" .

Duplas hierarquias e argumento "a fortiori" .

Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a es-

trutura do real .

Exemplo, ilustracao, modelo .

Comparacao e argumento do sacrificio .

Analogia e metafora .

Quarto tipo: argumentos por dissociadio das nocoes

Absurdo ou "distinguo" .

o par aparencia-realidade .Outros pares .

Artificio e sinceridade .

Capitulo VII - Leitura ret6rica dos textos................... 139

Questiies preliminares............................................... 140

Orador: Quem? Quando? Contra 0que? Por que?

Como? 140

Auditorio e acordo previo 142

A questiio do genera: Pascal e La Fontaine 143

Texto 3 - Pascal, "Justica, forca" (Br. Min. N?

298, p. 470) 144

Texto 4 - La Fontaine, "0 lobo e 0 cordeiro",

Fabulas, I, 10....................................................... 144Situacao dos dois textos 146

A argumentacao dos dois textos. .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... 148

Observacoes sobre 0estilo dos dois textos 150

Os dois generos e seu imp acto ideologico 152

Questiies sobre 0 texto.... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 153

o que prova 0exemplo?... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 154

Entimema 155

o intertextual, 0 intratextual e 0motivo central... 157

Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson", 1853, Les

chdtiments, VII, 7 158

Capitulo IX - Exemplos de leitura ret6rica .

: 8 . ' :~:~~~l~~~~~:.~~..~.~.~:~:adeia de entimemas .

Figuras fortissimas .

A peticao de principio .

Texto 7 - Pierre Corneille, "Marques a", 1658 .

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_]

Texto 8 - Rene Descartes, Le discours de la m e-

thode, segunda parte .

Texto 9 - Uma entrevista com Francoise Dolto,

Liberation, 5 de fevereiro de 1987 .

Introducao .

Paragrafo (1) .

Paragrafo (2) .Paragrafo (3) .

Paragrafos (4) e (5) .

Observacoes criticas: 0motivo central .

Texto 10 - Alain, "Consideracoes", de 20 de

marco de 1910 .

Texto 11 - A educacao negativa, 1.-1. Rousseau,

Emilio, 2? livro .

Introducao: haven! motivo central? .

Oparadoxo .

A argumentacao .

As metaforas da educacao ..Conclusao: 0motivo central .

Texto 12 - Duas historias iidiches .

A guisa de conclusao .

Arte e naturalidade .

A ilusao do livro do mestre .

Da polemica ao dialogo .

Notas .BU' tfi ..

1 togra ia sumarta .i ndi ce r emis s iv o eglossario dos termos tecnicos .

Prefdcio205

209

210

211

212212

213

214

214Para comecar; a lg um as p al av ra s so br e e ste l iv ro , s ob re 0

q ue e le p re te nd e se r e sobre 0q ue d ele se p od e e sp era r.

E m ultidisc ip lin ar, c om o, a lia s, a p ro pria retoric a q ue,

d es de s eu s primordios, foi in strum ento co mum de juristas, filo-

sofo s, lite ra to s, preg ad ores, d e tod os a qu an to s co nc erne a co -

municacdo .E p lu ra lis ta , a ssim c om o ta mb em a retorica. E s ta , a s er vi ce

d as c au sa s e d as m a is d if er en te s t es es , e a lg o m ais q ue in str u-m en to n eu tr o, in dife re nte a o q ue ve ic ul a; u tiliza da e m to da s a s

co ntro versie s, o brig a c ad a u ma d as p arte s a le va r e m co nsid e-

r ac ii o a s c re n ca s e o s v al or es d o a dv er sd rio ; e ns in a 0s en ti do , s e

nd o d o re la tivo , pe lo m eno s d o plu ral, e p ostu la qu e a ve rd ad e

r es ul ta d o e nc on tr o d e d ois e nu nc ia do s, 0proferido e0ouvido.

Este livro pode ser lido de diversas m aneiras. D e cabo a

rabo, sem duvida. M as tam bem com o obra de referencia, a co-

m ec ar p elo in dic e. O u e ntdo lim ita ndo -se a d ete rm ina do ca pi-

tu lo , tendo-se em m ente que de qualquer m odo ele depende urn

p ou co d os c ap it ul os p re ce de nte s.

E teorico ep rd tic o a o m esm o te mp o. P or u rn l ad o p re te nd e

expor 0 qu e e r eto ric a, e xtra ir su a u nid ad e p ro fu nd a a tr av es

d as tr an sfi gu ra co es d e s ua h is to ria , d is cu tir s ua s i mp li ca ci ie s e

d is ti ng ui r s e1 t1 8i mi te s. P o r o utr o l ad o, v is a a a pl ic ar a r et or ic a

a in te rp l!~ ta r;a o d os t ex to s m a is d iv er s o s, o fe re ce nd o a ss im u rn

in stru m~ h erm en eu tico a os e stu da nte s e a os fu tu ro s p es q ui-

sadores.

F in al me nte , te rn vd ria s p re te nso es : se r u rn m an ua l a ca de -

mico e o utr as c ois as m a is . E sf or ca -s e, pois, p or s er o bje tiv o,

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XII INTRODU9AO A RET6RICA IntroductioNatureza e funcao da retorica

por dar informaciies independentes do seu autor e de suas pre-

ferencias. Mas um manual niio mereceria 0 nome de academi-

co, se seu autor niio se afirmasse tambem como pesquisador e

pensador; portanto, como alguem que ndo se contenta apenas

em expor, mas que se expiie. Eo leitor que julgue.Um livro no plural, portanto.

N.B. - A primeira visld, a retorica desencoraja pelo voca-

buldrio. Quantos nomes de argumentos e figuras! Sera real-

mente preciso falar em lugares em vez de provas, em hiperbole

em vez de exagero, em acao em vez de dicciio? Na verdade,

cada um desses term os tem um sentido um pouco diferente da-

quele que pretende traduzi-lo; e , portanto, insubstituivel. As-

sim como a medicina, apsicologia e a f ilosofia, a retorica tem

necessidade de um vocabulario tecnico.

Portanto, cumpre saber que epanortose niio e doenca depele, que hipotipose niio e um supositorio de bronze da antiga

medicina, e que tapinose niio e uma retorica de antas ... E ver-

dade que poderiam ser usados termos mais correntes, dizer

correciio em vez de epanortose, quadro em vez de hipotipose,

depreciaciio em vez de tapinose. Mas 0 sentido niio seria mais

o mesmo. Hipotipose e um quadro retorico, que desempenha

papel ao mesmo tempo poetico e argumentativo; epanortose euma correcdo retorica, que produz efeito de sinceridade (t'ou

melhor", "para dizer tudo ".. .); a tapinose e uma depreciaciio

retorica.

Apesar de inegdvel, a dificuldade lexica pode perfeitamen-

teser superada. E nosso indice-glossario deve possibili tar isso.

o que se espera de uma introducao a retorica e que logo de

inicio se defina 0 termo. Infelizmente, nao e facil, pois hoje em

dia 0 termo "retorica" assumiu sentidos bern diversos e ate di-

vergentes.

Em primeiro lugar, 0 sentido corrente nao poderia ser mais

pejorativo. Urn professor de literatura, depois de brilhante alo-cucao, ouve a seguinte felicitacao de urn colega: "Admirei sua

retorica", frase que ninguem tomou por cumprimento, nem mes-

mo 0 interessado. Para 0 senso comum, retorica e sinonimo de

coisa empolada, artificial, enfatica, declamatoria, falsa.

Entretanto, no comeco dos anos 60 os academicos redes-

cobriram a retorica e devolveram ao vocabulo sua nobreza, ao

mesmo tempo prestigiosa e perigo sa, mas nem por isso concor-

dando quanta ao seu sentido. Mencionemos aqui as duas posi-

coes extremas.

Uma delas, de Charles Perelman e L. Olbrechts- Tyteca, ve

a retorica como arte de argumentar, e busca seus exemplos mor-

mente entre os oradores religiosos, juridicos, politicos e ate

filosoficos. A outra, de Morier, G. Genette, J. Cohen e do "Gru-

po MU", considera a retorica como estudo do estilo, e mais

particularmente das figuras. Para os primeiros, a retorica visa

a convencer; para os ultimos, constitui aquilo que toma litera-

rio urn texto; e e dificil perceber 0que as duas posicoes tern em

comum'' .....

No entanto, e esse elemento comum que bern poderia ser 0

mais importante, ou seja, a articulacao dos argumentos e do es-

tilo numa mesma funcao. Ao dizermos isso, referimo-nos a

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XIV INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XV

retorica classica, que comeca com Aristoteles e se prolonga ate

o seculo XIX. E a ela que recorreremos para definir a retorica.

E verdade que se pode criticar a tradicao, mas ela pelo menos

tern a vantagem de nos oferecer elementos estaveis, indepen-

dentes das preferencias individuais e dos modismos. Pode-se

criticar a tradicao, e nao deixaremos de faze-lo quando for 0

caso, mas pelo menos saberemos 0 que estamos criticando e 0

que pretendemos suplantar.

E verdade que a retorica antiga da a palavra discurso urn

sentido claramente mais restrito, mas nos mostraremos que se

pode perfeitamente amp liar 0objeto da retorica sem a trair.

Questao "de ordem": este livro e retorico?

Arte, discurso e persuasiio

Portanto , a retorica diz respeito ao discurso persuas ivo, ou

ao que urn discurso tern de persuasivo. 0 que e pois persuadir?E levar alguem a crer em algurna coisa. Alguns distin-

guem rigorosamente "persuadir" de "convencer", consistindo

este ultimo nao em fazer crer, mas em fazer compreender. A

nosso ver essa distincao repousa sobre uma filosofia - ate

mesmo uma ideologia - excessivamente dualista, visto que

opoe no homem 0 ser de crenca e sentimento ao ser de inteli-

gencia e razao, e postula ademais que 0 segundo pode afirmar-

se sem 0 primeiro, ou mesmo contra 0 primeiro. Ate segunda

ordem, renunciaremos a essa distincao entre convencer e per-suadir.

Por outro lado, manteremos uma distincao pertinente, por-

quanta inerente ao proprio termo "persuadir":

C Eis, pois, a definicao que propomos: retorica e a arte de

persuadir pelo discurso.

Por discurso entendemos toda producao verbal, escrita ou

oral , cons tituida por urna frase ou por uma sequencia de frases,

que tenha comeco e fim e apresente certa unidade de sentido.

De fato, urn discurso incoerente, feito por urn bebado ou urn

louco, sao varies discursos tornados por urn so.

Conforme nossa definicao, a retorica nao e aplicavel a to-

dos os discursos, mas somente aqueles que visam a persuadir , 0

que de qualquer modo representa urn bela leque de possibilida-

des! Enumeremos as pr incipais: pleito advocaticio, alocucao

polit ic a, sermao, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fabu-

la, peticao, ensaio, t ratado de f ilosofia, de teologia ou de cien-

cias humanas . Acrescente-se a isso 0drama e 0romance, desde

que "de tese", e 0poema satirico ou laudatorio.

o que sobra entao de nao retorico? Os discursos (no senti-

do tecnico definido acima) que nao visam a persuadir: poema

lirico, tragedia, melodrama, comedia, romance, contos popula-

res, piadas. Acrescentemos os discursos de carater puramente

cientifico ou tecnico: modo de usar, em oposicao a anuncio

publicitario; veredicto, em oposicao a pleito advocaticio; obra

cientifica, em oposicao a vulgarizacao; ordem, em oposicao a

slogan: it proibido Jumar nao e retorico, ao passo que Eproibi-

doJumar, nem que seja "Gallia?", e retorico.

1)Pedro persuadiu-me de que sua causa era justa.

2) Pedro persuadiu-me a defender sua causa.

* Cigarro mentolado, geralmente preferido pelas senhoras. (N. do T.)

Distincao capital para compreender a retorica, pois em (1)

Pedro conseguiu levar-me a acreditar em alguma coisa, en-

quanto em (2) ele conseguiu levar-me afazer algurna coisa, nao

se sabendo se acredito nela ou nao, A nosso ver, a persuasaoretorica consiste em levar a crer (1), sem redundar necessaria-

mente no levar a fazer (2). Se, ao contrario, ela leva a fazer sem

levar a crer, nao e retorica.

Pode-se dizer, por exemplo, que alguem persuadiu alguem

a fazer alguma coisa por ameaca ou promessa, e que nisso resi-

dia toda a eficacia de sua argumentacao. Resposta: e verdade

que se ~ode falar de eficacia, mas nao de argumentacao. Esta

visa se'tiil>re a · levar a crer. Por certo, atraves de promessa ou

ameaca, pode-se persuadir alguem a cometer urn erro, mas

esse alguem estara persuadido de que 0erro nao e erro?

No entanto, Pascal escreve:

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XVI INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XVII

Ao advogado pago adiantadamente parecera bern mais jus-

ta a causa que defende! tPensees, p. 365)

mas em ret6rica ele e inevitavell) const ituem uma bela i lustra-

~ao; exatamente onde seus amigos jansenistas esperavam uma

argumentacao tecnica, que nao deixaria de ser pesada, Pascal

retoma as mesmas ideias na forma de panfleto ironico, eficaz

porque claro e j ocoso, e que ainda tern aver conosco. A arte de

persuadir produziu muitas obras-primas.Mas nao sera e1a tambem a arte de enganar, ou pelo menos

de manipular? Voltaremos a esse problema no Capitulo II. En-

quanta isso, para compreender melhor a ret6rica, interrogue-

mo-nos sobre suas funcoes: em outras palavras, sobre os servi-

cos que ela e capaz de prestar aos que a empregam, e talvez

tambem aos demais.

Na realidade, Pascal nada tern contra os advogados em

particular; e do homem que ele nao gosta, do genero hurnano

corrompido pela queda, cuja propensao para acreditar "no que

sabe ser falso" mostra ate que ponto ele e miseravel , Entretan-

to, se nos ativermos apenas aos fatos, poderemos admitir que 0

erro nao e regra, e que existe urn tipo de persuasao que nao se

obtem nem pelo dinheiro nem pela ameaca: a que conceme aret6rica.

Esta, diziamos, e uma arte. Este termo, traducao do grego

f ! : c h n e , e ambiguo, e ate duplamente ambiguo. Em primeiro lu-

gar, porque designa tanto urna habilidade espontanea quanta

uma competencia adquir ida atraves do ensino. Depois porque

designa ora urna simples tecnica, ora, ao contrario, 0que na cria-

~ao ultrapassa a tecnica e pertence somente ao "genic" do

criador. Em qual ou em quais desses sentidos se esta pensando

quando se diz que a ret6rica e uma arte? Em todos.

Para comecar, existe urna ret6rica espontanea, urna apti-

dao para persuadir pel a palavra que talvez nao seja inata - nao

entremos nessa discussao agora -, mas que tampouco e devida

a uma formacao especifica , e tambem existe urna ret6rica ensi-

nada com 0 nome, por exemplo, de "tecnicas de expressao e

comunicacao", que serve para formar vendedores ou poli ticos,

para ensinar-Ihes aquilo que outros vendedores, outros poli ti-

cos parecemja saber naturalmente. Quais sao os mais eficazes,

quais deles conseguem "se sair melhor"? Sem duvida os ulti-

mos. Mas tanto entre estes quanto entre os primeiros, encontra-

mos os mesmos procedimentos, intelectuais e afet ivos, proce-

dimentos que fazem da ret6rica urna tecnica.

Mas sera que se trata de simples tecnica? Nao, e muito

mais. 0 verdadeiro orador e urn artista no sentido de descobrir

argurnentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras de

que ninguem teria ideia e que se mostram ajustadas; artista

cujos desempenhos nao sao programaveis e que s6 se fazem

sentir posteriormente. Les provinciales de Pascal (outra vez,

Fund io p e rs ua s iv a: a rg umen ta c ii o e o ra to ri o

A primeira funcao da ret6rica decorre de sua definicao:arte de persuadir. E , alias, a mais evidente e a mais antiga; e 0

problema maior deste livro sera saber por que meios urn dis-

curso e persuasivo.

Aqui nos limitaremos a urna distincao realmente funda-

mental. Esses meios sao de ordem racional alguns, de ordem

afetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outros

mais afetivos, pois em ret6rica razao e sentimentos sao insepa-

raveis,

Os meios de competencia da razao sao os argumentos. E

veremos que estes sao de dois tipos: os que se integram no ra-

ciocinio silogistico (entimemas) e os que se fundamentam noexemplo. Ora, como ja notava Arist6teles , 0 exemplo e mais

afetivo que 0 silogismo; 0primeiro dir ige-se de preferencia ao

grande publico, enquanto 0 segundo visa a urn audit6r io espe-

cializado, como urn tribunal.

Os meios que dizem respeito a afetividade sao, por urn

l~ao, 0 etos, 0 carater que 0 orador deve assumir para chamar a

aten. ;ao e angariar a confianca do audit6rio, e por outro lado 0

patos, as tendencias, os desejos, as emocoes do audit6rio das

quais 0 orador podera tirar partido. De modo urn pouco dife-

rente, Cicero distingue doeere, deleetare e movere:

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XVIII INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XIX

demonstrativo argurnentativo oratorio

orador - aquele que fala ou escreve para convencer - nunca

esta sozinho, exprime-se sempre em concordancia com ou-

tros oradores ou em oposicao a eles, sempre em funcao de

outros discursos.

Ora, para ser persuasivo, 0orador deve antes compreender

os que the fazem face, captar a forca da retorica deles, berncomo seus pontos fracos. Esse trabalho de interpretacao e fei to

por todos de modo mais ou menos espontaneo, Ate a crianci-

nha mostra ser urn excelente hermeneuta, por exemplo quando

percebe que a ameaca dos pais e aterradora demais para ser

executada, ou quando interpreta uma frase do adulto no sentido

que the convem I.

Para ser born orador, nao basta saber falar; e preciso saber

tambem a quem se esta falando, compreender 0 discurso do

outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas cila-

das, sopesar a forca de seus argumentos e sobretudo captar 0

nao-dito. Ai vai urn exemplo dessa hermeneutica espontanea.Durante 0 debate de televisao que antecedeu as eleicoes presi-

denciais de 1981, Giscard d'Estaing disse a Mitterrand: "0 se-

nhor conhece a cotacao do marco hoje?" Mitterrand, que prova-

velmente nao sabia, adivinha que Giscard quer impor-se ao

publico como urn economista serio, urn especialista, urn mestre,

e lhe responde taco a taco: "Senhor Giscard, nao sou seu aluno."

E nao se falara mais de cotacao do marco durante todo 0debate.

Essa e a funcao hermeneutic a da retorica, s ignif icando

"hermeneutic a" a arte de interpretar textos. Na universidade

atual, essa funcao e fundamental, para nao dizer unica, Nao se

ens ina mais retorica como arte de produzir discursos, mas comoarte de interpreta-los, Alias, e 0 que faremos aqui. Mas ai a

retorica recebe outra dimensao; nao e mais urna arte que visa a

produzir, mas uma teoria que visa a compreender.

Docere (instruir, ensinar) e 0 lado argumentativo do dis-

curso.

Delectare (agradar) e seu lado agradavel, humoristico, etc.Movere (comover) e aquilo com que ele abala, impressiona

o auditorio,

Em resurno, 0persuasivo do discurso comporta dois as-

pectos: urn a que chamaremos de "argurnentativo"; e outro, de

"oratorio". Dois aspectos nem sempre faceis de distinguir.

Os gestos do orador, 0 tom e as inflexoes de sua voz sao

puramente oratorios. Todavia, 0que dizer das figuras de est ilo ,

aquelas famosas figuras a que alguns reduzem a retorica? A

metafora, a hiperbole, a antitese sao oratorias por contribuirem

para agradar ou comover, mas sao tambem argumentativas no

sentido de exprimirem urn argumento condensando-o, toman-

do-o mais contundente. Assim e a celebre metafora de Marx:

"A religiao e 0opio do povo."Se for introduzido urn ultimo termo, a demonstracao, meio

de convencimento puramente racional, sem nada de afetivo e

que escapa portanto ao dominio da retorica, chega-se ao se-

guinte esquema:

retorico

racional

A funcdo hermeneutica

Entretanto, por mais primordial, a funcao persuasiva nao

e unica. Se a retorica e a arte de persuadir pelo discurso, e pre-

ciso ter em mente que 0discurso nao e e nunca foi urn aconte-

cimento isolado. Ao contrario, opoe-se a outros discursos que

o precederam ou que the sucederao, que podem mesmo estar

implicitos, como 0 protesto silencioso das massas as quais se

dirige 0ditador, mas que contribuem para dar sentido e a1can-

ce retorico ao discurso. A lei fundamental da retorica e que 0

A {unfaO heuristica. , ~ . , .Arte de persuadir pressupoe que nao estamos sozinhos; so

pode ser exercida quando se interpreta 0 discurso de outrem.

Pois bern, sera mesmo preciso persuadir? Pode-se achar que a

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xx INTRODU9AO A RET6RICA INTRODU9AO XXI

persuasao nao passa de urn m odo - 0 m ais in sid io so d e to do s

por certo - de tom ar 0p od er , d e d om in ar 0 o u tr o p el o d is cu rs o.

Po dem os a cha r isso, e certo, desde que nos abstenham os de

p er su ad ir a lg ue m d is so !

N a rea lida de, q uan do u tiliza mo s a reto rica n ao 0 fazemos

so p ara o bte r c erto p od er; e ta mb em p ara s ab er, p ara e nc on tra r

a lg urn a c ois a. E es sa e a terce ira fu nca o d a reto rica , qu e d eno -

m in are mo s " heu ris tic a" , d o v erb o g re go e u ro , e u re ka, q ue sig -

n ific a e nc on tra r. E m re su mo , u rn a fu nc ao d e d es co be rta .

Claro que ela nao e o bv ia , H oje em d ia, qu an do fa lam os

em d esco berta , pensa mo s em cien cia , e a cien cia n ao q uer nem

saber de reto rica . Q uem sabe se por parte dos cientistas isso

na o e urn d eneg aca o, n ao 6 a recu sa d e en xerg ar sua propria

retorica, M a s p ou co imp or ta : 0q ue se perg un ta e 0q ue a r et or i-

c a p od e te r p ara d es co brir . ..

Convenham os, porem , que vivem os nurn m undo que nao

c on di z i nt ei ram en te c om 0 c on he cim e nt o c ie nt if ic o, u rn m u nd o

e m q ue a v erd ad e ra ra me nte e e vi de nt e, e a p re vis ao s eg ur a r ar a-

m en te p os si ve l. N o c am po e co no m ic o e p ol it ic o, e p re ci so t om a r

d eciso es sem sa ber co m to da a certeza se ela s sa o a s m elh ores,

v isto q ue 0 " com toda a certeza" so vern depois do feito ! N os

de bat es j u ri d ic o s, e p re cis o so brep uja r, sa be nd o- se q ue m uita s

v ezes n ao h a v ered icto o bjetiv o, n o sen tido em q ue e o bjetiva a

m ed id a d e u rn g alv ano metro . N a esfera da ed ucaca o, fa zem -se

pro gram as, refo rm as, sem n un ca se ter certeza de q ue a s co isas

s era o m elh ore s q ue a nte s e d e q ue o s a lu no s e nv olv id os re alm en -

t e t ir ar ao p ro ve it o d el as , q ue r d iz er , v in te a no s d ep oi s . ..E sse mundo de que estam os falando e 0 d a v ida ; q ua se

n ao c om po rta c erte za s c ie ntific as , d ess as q ue p os sib ilita m p re -

viso es seg ura s e deciso es irrepreensiv eis. M as tam pou co esta

en tregue ao acaso , ao aleato ric , ao caos. N ao se pode prever

co m tota l certeza , m as e possivel prever com m ais ou m enos

certeza , co m a lg um a prob abilid ade. N ao se po de d izer: " e v er-

d ad eiro " o u "e fa lso ", m as po de-se dizer: " e m ais ou m en os v e-

rossimil" .

C om o po is a ch ar a ve ro s sim il ? R eco rdem os a qu i a le i fun-

d amen ta l d a r et or ic a: 0 o rad or nu nca esta so zin ho . 0 a dv og ado

m ais ha bil tern d ia nte d e si o utro s a dv og ad os q ue fa zem 0mes-

m o trabalho em sentido inverso . D o m esm o m odo, 0 politico

c on fr on ta o u tr os p o li ti co s; 0p ed ag og o, o utr os p ed ag og os . C ad a

urn deles - essa e a regra do jogo - defende sua causa sendo tao

p ers ua siv o q ua nto po ss iv el, e c on trib ui a ss im p ara u rn a d ec is ao

q ue n ao th e pe rten ce , q ue in cu rn be a u rn te rc eiro : 0juiz.

N urn m un do s em e vid en cia , s em d em on stra ca o, s em pre vi-

sao certa , em n osso m und o h urna no , 0 papel d a reto rica, a o d e-

fen de r e sta o u a qu ela c au sa , e esclarecer a quele q ue d ev e d ar a

pa la vra fin al. C on tribu i - o nde n ao h a decisa o previa men te es-

crita - pa ra inv en ta r u ma so lu ca o. E fa z isso in stau ra nd o u rn d e-

b ate c on tra dito rio , s o p os siv el g ra ca s a se us " pro ced im en to s" ,

s em o s q ua is lo go d es ca mb aria pa ra 0t umu lt o e a v io le nc ia ,

A re to ric a p os su i r ea lm en te u rn a f un ca o d e d es co be rt a.

A funcdo pedagogica

A gora, poderem os ser censurados por term os am pliado

abusivamente 0 c am po d a re to ric a. D e fa to , s e n os re po rta rm os

aos program as esco lares da Idade M edia e da epoca classica ,

verificarem os que a retorica so adm ite a prim e ira das nossas

tre s fu nco es , fic an do a fu nc ao h erm en eu tica re se rv ad a it gra-

m a ti ca , e a f un ca o h eu ri st ic a it dialetica,

M as sera legitim o im por it cultu ra a s d iv iso es d e u rn pro -

g ra ma e sc ola r (p or ce rto e xig id as p elo s im pera tiv os d a pe da go -

g ia ), pa ra es ta nc a- la em d is cip lin as se m in ter- re la co es , em " es-pecialidades"? E m ais ou m enos com o afirm ar que a fisica nao

tern n en hu rn a rela ca o c om a m ate ma tic a, a le ga nd o q ue ela s te rn

p r of e sso re s d i fe r en t es .

M o stra rem os n o p ro xim o c apitu lo q ue , n a p ro pria e sc ola ,

gram atica, re to rica e diale tica nao passavam de partes de urn

m rsm o todo que se esclerosaram quando se separaram . A arte

d 6'ih sc urs o p ers ua siv o im plica a a rte d e c om pre en der e p os si-

b il it a a a rt e d e i nv en ta r.

Q ual e , pois, esse "m esm o todo" de que fazia parte a reto-

rica? Em term os modemos, cultura geral. E aqui tocam os na

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XXII INTRODUC;AO A RETORICA Capitulo I

Origens da retorica na Greciaultima funcao da retorica, que pode ser chamada de "pedago-

gica".No fim do seculo XIX, a retorica foi abolida do ensino

frances, e 0proprio termo foi riscado dos programas. Todavia,

como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavranao se suprimiu a coisa. A retorica permaneceu, so que desart i-

culada, privada de sua unidade intema e de sua coerencia, Em

todo caso os professores, quase sempre sem saberem, fazem

retorica'.Ensinar a compor segundo urn plano, a encadear os argu-

mentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encon-

trar as construcoes apropriadas e as figuras exatas, a falar dis-

tintamente e com vivacidade, nao serao retorica, no sentido

mais classico do termo? Demonstrar iamos com faci lidade que

os criterios segundo os quais urn professor de lingua, ou mes-

mo de filosofia, avalia urna redacao - respeito ao assunto, aoplano, it argumentacao, ao estilo, it personalidade -, que esses

criter ios sao encontrados, com outros nomes, na retorica chis-

sica (cf. infra, pp. 55-56).Deve-se ver nisso uma sobrevivencia lamentavel? Pode-se

achar, ao contrario, que esses principios sao formadores, que

deixar de respeita-los - errar na formulacao da questao, escre-

ver de modo incorreto, monotono, extremado, confundir tese

com argumento, expor de maneira desconexa, esconder-se atras

de cliches - e dar prova de incultura. Em outras palavras, eapartar-se dos outros e de si mesmo. E verdade que existem

outras culturas alem da escolar, mas nao existe cultura sem for-

macae retorica. E aprender a arte de bern dizer e ja e tambem

aprender a ser,

A melhor introducao it retorica e sua historia.Vamos, portanto, empreende-la, mas com duas observa-

~oes preliminares.

A prime ira e que a retorica e anterior it sua historia, e mes-

mo a qualquer historia, pois e inconcebivel que os homens nao

tenham utilizado a linguagem para persuadir. Pode-se, alias,encontrar retorica entre hindus, chineses, egipcios, sem falar

dos hebreus. Apesar disso, em certo sentido, pode-se dizer que

a retorica e uma invencdo grega, tanto quanto a geometria, a

tragedia, a filosofia. Em certo sentido e mesmo em dois senti-

dos. Para comecar, os gregos inventaram a "tecnica retorica",

como ensinamento distinto, independente dos conteudos, que

possibi litava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois ,

inventaram a teoria da retorica, nao mais ensinada como urna

habilidade util, mas como uma reflexao com vistas it compreen-

sao, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teo-

ria da arte, da literatura, da religiao.

Segunda observacao: escrever uma historia, como por

exemplo da rmisica, da pintura ou da filosofia, e repercorreruma evolucao, feita de transformacoes, perdas e criacoes. Ora,

paradoxalmente, entre os seculos V e IV antes da nossa era, os

gregos elaboraram A retorica, que, em seguida, "durante dois

milenios e meio, de Gorgias a Napoleao III", pode-se dizer que

n~ se mexeu mais'. As diversas epocas enriqueceram algurna

por~o do sistema, mas sem mudar 0 sis tema. Ainda hoje,

quando se fala em "retorica", seja a de urn filme ou a do in-

consciente, a referencia e sempre feita it retorica dos gregos. A

historia da retorica termina quando corneca.

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2 INTRODUC;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 3

Nascimento da ret6rica a verdade, nao haveria mais ambito judiciario, e os tribunais se

reduziriam a camaras de registro. Mas 0problema, tanto para

nos quanto para os gregos, e que as mas causas precisam dos

melhores advogados, pois, quanta pior a causa, maior 0recurso

a retorica. E constrangedor. Ora, em vez de se constrangerem,os primeiros retores se gabavam de ganhar as causas menos

defensaveis, de "transformar 0 argumento mais fraco no mais

forte", slogan que domina toda essa epoca.

Tomemos duas datas como referencia: 480 a.C., batalha

de Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram defini ti -

vamente sobre a invasao persa, quando comecou 0 grande pe-riodo da Grecia classica; 399, ainda antes da nossa era: morte

de Socrates.

Origem judiciariaCorax

A retorica nao nasceu em Atenas, mas na Sicilia grega por

volta de 465, apos a expulsao dos tiranos. E sua origem nao el iteraria, mas judiciar ia . Os cidadaos despojados pelos t iranos

rec1amaram seus bens, e a guerra civil seguiram-se imimeros

conflitos judiciaries', Numa epoca em que nao existiam advo-gados, era preciso dar aos litigantes urn meio de defender sua

causa. Certo Corax, discipulo do filosofo Empedocles, e 0 seu

proprio discipulo, Tisias, publicaram entao uma "arte oratoria"

(tekhne rhetorikei, coletanea de preceitos praticos que conti-

nha exemplos para usa das pessoas que recorressem a justica,Ademais, Corax da a primeira definicao da retorica: ela e "cria-

dora de persuasao'".

Como Atenas mantinha estreitos lacos com a Sicilia, e ate

processos, imediatamente adotou a retorica,

Retorica judiciaria, portanto, sem alcance literario ou filo-

sofico, mas que ia ao encontro de uma enorme necessidade.Como ndo exist iam advogados, os l it igantes recorr iam a logo-

grafos, especie de escrivaes publicos, que redigiam as queixas

que eles so tinham de ler diante do tribunal. Os retores, com

seu senso agudo de publici dade , ofereceram aos l itigantes e aos

logografos urn instrumento de persuasao que afirmavam ser

invencivel, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coi-

sa. Sua retorica nao argumenta a partir do verdadeiro, mas a

partir do verossimil (eikos).

Observemos que isso e inevitavel, Tanto entre nos quanta

entre os gregos. De fato, se no ambito judiciar io se conhecesse

Corax e considerado 0 inventor do argumento que leva seu

nome, 0 corax, e que deve ajudar os defensores das piores cau-

sas. Consiste em dizer que uma coisa e inverossimil por ser

verossimil demais. Por exemplo, se 0 reu for fraco, dira que

nao e verossimil ser ele 0 agressor. Mas, se for forte, se todas

as evidencias the forem contrarias, sustentara que, justamente,

seria tao verossimil julgarem-no culpado que nao e verossimilque ele 0 seja.

Antifonte (480-411), 0 melhor representante da retorica

judiciaria de Atenas, cita 0 seguinte exemplo de corax:

Se 0 odio que eu nutria pela vitima tomar verossimeis as

suspeitas atuais, nao sera ainda [mais] verossimil que, prevendo

essas suspeitas antes do crime, eu me tenha abstido de comete-

lo? (in Perelman- Tyteka, p. 608, cf.Aristoteles, Retorica, II, 24,

1402 a)

E 0 plei teante a seguir insinua que os verdadeiros criminosos

aproveitaram-se da verossimilhanca para cometer impunemen-

te aquele ato.

o mais macante e que 0 corax pode ser voltado contra seu

autor, afirmando que ele cometeu 0 crime por achar que pare-

ceft l.suspei to demais para que dele suspei tassem, e que chegou

a acurnular proposi tadamente acusacoes contra si mesmo, para

depois as refutar com facilidade.

- Argurnento simples: todas as evidencias estao contra ele.

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4 INTRODUr;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 5

- Corax 1:exatamente, ele sabia que seria 0primeiro sus-

peito, logo nao seria verossimil que cometesse 0crime.

- Corax 2: mas justamente por isso ele poderia comete-lo,

sabendo que nao suspeitariam dele.

De qualquer modo, os primeiros retores inventaram a dis-posicao do discurso judiciario, que Antifonte divide em cinco

partes; tambem elaboraram os lugares (topoi), argurnentos que

bastava decorar e chamar it baila em determinado momenta da

disputa juridica. Assim, no exordio, 0 orador comeca dizendo

que nao e orador, elogia 0talento do adversario, etc.

Conservou-se urn magnifico exemplo dessa eloqiiencia

epidictica em Elogio de Helena. Sabemos que para os gregos

Helena era 0 prototipo da mulher fatal. Esposa de Menelau,

deixou-se raptar por Paris, 0 troiano, e os gregos, para resgata-

la, lancaram-se numa guerra que durou dez anos. Em seu dis-curso Gorgias comeca louvando 0 nascimento de Helena de-pois sua beleza: '

Em mais de urn homem, ela despertou mais de urn desejo

amoroso; so por ela, por seu corpo, conseguiu reunir incontaveis

corpos, uma mult idao de guerreiros . .. (Les presocratiques,

p.1031)

Origem literaria: Gorgias

Com Gorgias surge uma nova fonte da retorica: estetica e

propriamente literaria. Nascido por volta de 485, Gorgias viveu

cento e nove anos, sobrevivendo, pois, a Socrates. Tambem si-

ciliano e discipulo de Empedocles, em 427 foi para Atenas

numa embaixada. Diz-se que ali sua eloqiiencia encantou os

atenienses a tal ponto que ele teve de prometer-lhes que volta-

ria. Essa historia e significativa.

Isso porque, ate entao, os gregos identificavam "literatu-

ra" com poesia (epica, tragica, etc.). A prosa, puramente fun-

cional, restringia-se a transcrever a linguagem oral comum.

Gorgias, urn dos fundadores do discurso epidictico, ou seja,

elogio publico, cria para esse fim uma prosa eloqiiente, multi-

plicando as figuras, que a tornam "uma composicao tao erudi-

ta, tao ri tmada e, por assim dizer, tao bela quanto a poesia"(Navarre, p. 86). Suas figuras sao, por urn lado, de palavras:

assonancias, rimas, paronomasias, ritmo da frase; por outro,

figuras de sentido e pensamento: perifrases, metaforas, antite-

ses. Exemplo de metafora: "Tumulos vivos", para os abutres.

Exemplo de antitese, 0 final do Elogio funebre aos herois ate-

nienses, cuja traducao e urn palido reflexo:

Mas entao como perdoar-Ihe 0 ter-se deixado raptar? 0

orador, atraves de urna enumeracao completa, inventaria todas

as possiveis causas desse rapto: ou ele se deveu ao decreto dos

deuses e do destino; ou ela foi arrebatada it forca; ou foi per-

suadida por discursos; ou foi vencida pelo desejo. Ora, em

nenhum dos casos Helena estava livre; em todos, foi subjugada

por urna forca superior it sua; portanto, nao e culpada. Gorgias

se detem no terceiro caso, a forca do discurso, e sua defesa deHelena na verdade e urna defesa da retorica:

o discurso e urn tirano poderosissimo; esse e1emento ma-terial de pequenez extrema e tota1mente invisive1alcam it pleni-

tude as obras divinas: porque a pa1avra pode por t im ao medo,

dissipar a tristeza, estimular a alegria, aurnentar a piedade. (Ibid.,

p.1033)

Assim, apesar de terem desaparecido, 0 ardor deles com

eles nao morreu, porem, imorta1, vive em corpos nao imortais,

ainda que e1esnao vivam mais. (Lespresocratiques, p. 1030)

Observemos que sua retorica e bastante sofistica, visto quese baseia em uma peticao deprincipio. De fato, asunicas cau-

sas possiveis por ele atribuidas ao ato de Helena sao precisa-

mente as que a inocentam; nao considera uma ultima possibili-

dade, a de que Helena tenha partido por livre e espontanea von-

ta~ .. Todavia, esse seu principio, de que 0 ato involuntarionao e culpavel, e bern novo para a epoca.

Alias, e no sentido mais tecnico que Gorgias merece a de-nominacao de sofista. Como todos os outros - Pitagoras, Pro-

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6 INTRODU9AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 7

dico, Trasimaco, Hipias, Critias, etc. -, ele foi professor; davade cidade em cidade licoes de eloquencia e de filosofia, co-

brando a cada urna delas 0 fabuloso salario de cern minas. Di-

gamos que por urn dia de trabalho ele recebia 0 salario diario

de dez mil operarios! 0 mesmo acontecera com Protagoras. Na

realidade, esse ensino preenchia urna necessidade, pois ate en-

tao os gregos so recebiam urna formacao elementar, sem nad~de parecido com urn ensino superior ou mesmo secundario. E

aos retores que se deve essa inovacao: ensino intelectual apro-

fundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro

objetivo senao a cultura geral.E verdade que logo Gorgias foi criticado pela enfase de

sua prosa, que carecia demais de simplicidade; 0verbo gorgia-

z-o ficou como sinonimo de grandiloqiiencia. Mas sua ideia deprosa "tao bela quanto a poesia" impos-se a todos os escritores

gregos, a comecar por Demostenes, Tucidides, Platao... G6r-

gias pos a ret6rica a servico dobelo.

\'

Ora, se admitirmos como ele que 0 ser nao existe, ou que nao

e cognoscivel nem comunicavel, nao estaremos reconhecen-

do ipso facto a onipotencia da palavra, palavra que nao esta

mais submetida a nenhum criterio extemo e da qual nem mes-

mo se pode dizer que e falsa? Nessas alturas estamos em ple-

na sofistica.

Protdgoras: 0 homem medida de todas as coisas

o elo entre a sofistica e a retorica so aparece plenamenteem Protagoras'. Originario da Abdera, na Tracia, Protagoras

(c. 486-410) tambem era urn mestre itinerante, que ensinava ao

mesmo tempo eloqiiencia e filosofia e tambem ganhava quan-

tias fabulosas. No entanto, foi mais engajado que G6rgias. Che-

gando a Atenas, fez a seguinte profissao de fe agnostica:

Quanto aos deuses, nao es tou em condicoes de saber se

existem ou se nao existem, nem mesmo 0que sao. (Ibid., p.I 000)

A retorica e os sofistas

Quando as pessoas nao tern memoria do passado, visao do

presente nem adivinhacao do futuro, 0 discurso enganoso tern

todas as facilidades, (Ibid., p. 1033)

o que logo the valeu urna condenacao it morte, da qual, menos

heroico que Socrates, livrou-se fugindo.

Com isso, foi urn autor enciclopedico. Poi decerto 0 pri-

meiro a interessar-se pelo genero dos substantivos, pelos tem-

pos dos verbos, bern como pela psicologia das personagens de

Homero; em surna, pelo que depois sera chamado de "gramati-

ca". Passa tambem por fundador da eristica, que depois vira a

ser dialetica, Partindo do principio de que a todo argumentopode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado

ou refutado, ele ensina a tecnica eristica, arte de veneer uma

discussao contraditoria ("eristica" vern de eris, controversia).

Essa arte, extremamente elaborada, nao hesita em recorrer aos

piores sofismas. Do tipo:

}, .. .

•."...0 rato (mys) e urn animal nobre pois e dele que provem os

misterios ... (Aristoteles, Retorica, 140I a)

Pode-se ser branco e naobranco aomesmo tempo, porquanto

o etiope e negro (napele) e branco nos dentes. (inNavarre, p. 65)

A servico do belo querera dizer a service daverdade? Essa

questao implica toda a relacao entre a retorica e a sofistica.Observemos que 0 ensinamento de Gorgias comportava

uma vertente filosofica. Poi conservado 0 resurno de urn de

seus discursos, intitulado Do ndo-ser; ou da natureza', com

este promissor inicio:

Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que

exista alguma coisa, 0homem nao a pode apreender; em terceiro

lugar, mesmo que ela possa ser apreendida, nao pode ser formu-

lada nem explicada aos outros. (Lespresocratiques, p. 1022)

Havera algum elo entre esse agnosticismo e a ret6rica?

Em Elogio deHelena, ele diz:

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8 INTRODU<;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRiCIA 9

E pouco compreensivel como oradores celebres, gregos

alem de tudo, a comecar por Protagoras, puderam impor-se com

tais estupidezes. De fato, se grandes pensadores, como Aristo-

teles e Platao, envidaram tantos esforcos para refutar os sofis-

tas, e sinal de que estes nao eram negligenciaveis nem estupi-

dos, e que, acima de suas artimanhas publici tar ias, eles ensina-

yam algo importante . Mas 0que?

E dificil saber, pois so os conhecemos atraves de seus ini-

migos. Recordemos as teses de Protagoras: 0homem e a medi-

da de todas as coisas; em outras palavras, as coisas sao como

aparecem a cada homem; nao M outro criterio de verdade. 0

que produz 0mais completo relat ivismo, porque, se uma coisa

parece bela a urn, feia a outro, fria a urn, quente a outro, grande

a urn, pequena a outro, sera as duas coisas ao mesmo tempo.

Nao M mais nenhuma objetividade, nem mesmo logica, pois 0

principio de contradicao nao vale mais. A cada urn a sua verda-de, e todas sao verdades. A cada urn: mas, em Protagoras, 0"ca-

da urn" e tanto a cidade quanto 0 individuo; e a cidade que, em

nome de seu proprio interesse, decide sobre os valores e as ver-

dades. Isso equivale a dizer que nos sa l ingua, nossas ciencias,

nossos valores esteticos e morais nao passam de convencoes

que mudam de uma cidade para outra, que variam segundo a

historia e a geografia: "Bela justica a que e delimitada por urn

rio . ..", did Pascal, admit indo que assim e , e lamentando.Relativismo pragmatico, tal parece ter sido a doutrina de

Protagoras. Nao existe verdade em si , mas uma verdade de cada

individuo, de cada cidade; e 0 importante e aquilo que the per-mite fazer-se valer e impor-se, que e precisamente a retorica.

Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto a

violencia quanto a tolerancia, Por isso ela nos parece ao mes-

mo tempo fascinante e ambigua; e e esse 0 sentimento que se

tern diante do Protagoras de Platao,

Platao parece ter detestado 0 grande sofista, que ele afir-

rna ser pervertedor de jovens, e a quem objeta que nao e 0ho-

mem a medida de todas as coisas, mas sim Deus. E, no entanto,

Platao escreveu dois past ichos, dois trechos brilhantes que ele

atribui a Protagoras. 0primeiro e 0mito da origem do homem,

em Protagoras (320 c s.), meditacao antropologica espantosa-

mente profunda e moderna. 0segundo e a autodefesa de Prota-

goras em Teeteto (166 a). Esses dois textos nos apresentam urn

Protagoras cativante e respeitavel, urn mestre de humanismo e

tolerancia . Acreditar em que, em quem?

Fundamento sofistico da retorica

De qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram

a retorica como arte do discurso persuasivo, objeto de urn ensi-

no sistematico e global que se fundava nurna visao de mundo.

Ensino global: e aos sofis tas que a retorica deve os primei-

ros esbocos de gramatica, bern como a disposicao do discurso

e urn ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a ideia de

que a verdade nunc a passa de acordo entre interlocutores, acor-

do final que resulta da discussao, acordo inicial tambem, sem 0

qual a discussao nao seria possivel . A eles se deve a insistencia

no kairos, momento oportuno, ocasiao que se deve agarrar na

fuga incessante das coisas, ao que se da 0 nome de espirito da

oportunidade ou de replica vivaz, e que e a alma de qualquer

retorica viva. Sim, todos os elementos de uma retorica riquissi-

rna, que serao encontrados depois, especialmente em Aristo-

teles.

No entanto, 0 fundamento que dao it retorica parece-nos

bern perigoso. E de perguntar se eles nao a comprometeram

para sempre, ao just if ica- la como 0 fizeram pela incerteza e pe-

10 sucesso. Mas, afinal, por que esse laco, aparentemente inque-

brantavel, entre 0 sofis ta e 0retor?

Certamente porque 0mundo do sofista e urn mundo sem

verdade, urn mundo sem realidade objetiva capaz de criar 0

consenso de todos os espiritos, para dizerem que dois e dois

sao quatro e que Toquio existe ... Privado de uma realidade ob-

jetiva~,'\.logos,0discurso humano fica sem referente e nao tern

outro criterio senao 0 proprio sucesso: sua aptidao para con-

veneer pela aparencia de logica e pelo encanto do estilo. A uni-

ca ciencia possivel e, portanto, a do discurso, a retorica.

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10 INTRODUr;:AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 11

Isecrates ou Platio?

bastante grave; ele escreveu sua propria defesa, confiou-a a urn

discipulo e... perdeu a causa. Nem por isso deixou de publicar

sua defesa, A troca, como modelo a ser seguido. Foi, alias, co-

mo modelos que publicou inumeros discursos, alguns juridi-

cos, outros epidicticos.

Em surna, urn grande professor de retorica, admirado pe-

los contemporaneos e sempre admiravel, Ao contrario de seus

predecessores, recusa-se a fazer malabarismos propagandisti-

cos e rejeita a aprendizagem automatica de lugares e outros

procedimentos. Ensina sempre recorrendo a reflexao do alunoe fazendo seus grandes discipulos cooperarem na genese de

seus proprios discursos, que leem, discutem e corrigem com 0

mestre'. Alias, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam de

capacitar qualquer urn a persuadir qualquer urn, ele mostra que

o ensino nao e todo-poderoso" , A seu ver, para ser orador, sao

necessarias tres condicoes, Para comecar, aptidoes naturais.

Depois, pratica constante. Finalmente, ensino sistematico. Pra-

tica e ensino podem melhorar 0orador, mas nao cria-lo.

Apesar de, como Gorgias, querer urna prosa literaria, des-

preza a grandiloquencia e cria uma prosa que se distingue com-

pletamente da poesia: sobria, clara, precisa, isenta de termos

raros, de neologismos, de metaforas brilhantes, de ritmos mar-

cados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa. Sem

ser poetica, tern urn ritmo que se deve ao equilibrio do periodo

e a clausula que a fecha; e eufonica, evitando as repeticoes des-graciosas de silabas e os hiatos.

Principalmente, moraliza a retorica ao afirmar alto e bornsom" que ela so e aceitavel se estiver a service de urna causa

honesta e nobre, e que nao pode ser censurada, tanto quanto

qualquer outra tecnica, pelo mau uso que dela fazem alguns.

Alias, para Isocrates, ensino literario e formacao moral estao

ligados, para dizer 0minimo. De fato, ele ensina que a retorica

deve ter urn objetivo para depois procurar todos os meios de

atin~lo sem nada deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim a

organizar urn discurso, nao se estaria tambem ensinando a

govemar a propria vida? 0 ensino literario e uma escola de

estilo, de pensamento e de vida. Ideia bern grega, de que a har-

Concretamente, 0 que muda? Muda que 0 discurso nao

pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossimil, so

podera ser eficaz; em outras palavras, proprio para convencer,

que no caso equivale a veneer, a deixar 0 interlocutor sem re-

plica. A finalidade dessa retorica nao e encontrar 0verdadeiro,

mas dominar atraves da palavra; ela ja nao esta devotada ao sa-

ber, mas sim ao poder.

Os sofistas foram com certeza os primeiros pedagogos, e

o objetivo de sua educacao nao deixa de ser nobre: capacitar os

homens "a govemar bern suas casas e suas cidades'", Entre-

tanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas 0 sa-

ber fazer a service do poder.

Com a sofistica, a retorica e rainha, mas rainha despotica

.porquanto ilegitima. Agora, 0elo entre retorica e sofistica e fa-

tal: sera possivel salvar a primeira da segunda?

Vimos que a retorica veio atender a diversas necessidades

dos gregos: necessidade de tecnica judiciaria, de prosa litera-

ria, de filosofia, de ensino. Ora, Isocrates vai conseguir satisfa-

zer sozinho essas quatro exigencias, ao propor urna retorica

mais plausivel e mais moral que ados sofistas.

Alias, a partir do final do seculo V , esse termo passou a ser

pejorativo, e devemos agradecer Isocrates por ter libertado a re-

torica do dominio sofistico. 0 problema esta em saber sede fatofoi uma libertacao real, e se afinal Isocrates nao deixou as coi-

sas como estavam. E exatamente isso que Platao critica nele.

Isocrates, 0 humanista

Ateniense da gema, Isocrates viveu noventa e nove anos

(436-338). Sua voz fraca e sua invencivel timidez impediram-

no de ser orador. Por isso, virou professor de arte oratoria. Aos

oitenta anos, foi-lhe movida uma especie de processo fiscal

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12 INTRODUr;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 13

monia e 0valor por excelencia, que rege a existencia tanto quan-

to rege 0 discurso. Estamos aqui na origem do humanismo,

para 0 qual Isocrates contr ibui, a lias, com um fundamento an-

tropologico,

A palavra , diz ele , e "a unica vantagem que a natureza nosdeu sobre os animais, tornando-nos assim super iores em todo 0

resto'?", Em outras palavras, todas as nossas tecnicas, toda a

nossa ciencia, tudo 0que somos devemos a fala. Donde ele in-

fere uma conclusao politica: os gregos, povo da palavra, for-

mam na verdade uma unica nacao, nao pela raca, mas pela lin-

gua e pel a cultura. Devem, portanto, renunciar as guerras fra-

tricidas e unir-se.

Isocrates, que se proclama anti-sofista, tambem nao rei-

vindica 0nome de retor. Ele se diz "filosofo". Mas, convencido

(de que 0homem nao pode conhecer as coisas assim como sao,

colocando a dialetica de Platao no mesmo nivel de inutilidadeda eristica dos sofistas, integra a filosof ia na arte do discurso" .

Ela e para a alma 0 que a ginastica e para 0 corpo, formacao

intelectual e moral, boa para os jovens, mas inutil para perse-

guir por toda a vida (a mesma critic a que sera feita a Socrates"

por Calicles), Em suma, para Isocrates, "f ilosof ia" e culturageral , centrada na arte oratoria; numa palavra: retorica.

Nesse caso, qual e seu merito em relacao aos sof is tas? Uma

contribuicao tipicamente grega, 0 sentido da beleza. Ele escreve

em seu Elogio de Helena que a beleza e "0 mais venerado, 0

mais precioso, 0 mais divino dos bens" (54). E a beleza que

constitui a harmonia do discurso e da vida, e a educacao e eticapelo simples fato de ser estetica, Se a linguagem e peculiar ao

homem, a bela linguagem e valor por excelencia: e a retorica,

confundida com a filosofia, e a rainha das ciencia, Mas sera

possivel separar 0discurso do ser, a beleza da verdade?

fundo contra a re tor ica, especialmente no livro que the dedica,

Gorgias, um dos tex tos mais fortes de toda a lite ratura.

Mas comecemos com uma pausa, dando pela ultima vez a

palavra ao sof is ta re tor . Pois nesse d ialogo Platao the da a pala-

vra. Poe em cena seu mestre Socrates a discutir retorica com

Gorgias e mais dois de seus discipulos. Alias, parece que 0Gor-

gias historico e menos visado em Gorgias do que Isocrates.

No comeco, Socra tes , f ingindo ignorar 0 que e retorica,pede a Gorgias que a defina. Ela e - responde 0 outro - "0 po-

der de persuadir pelo discurso" assembleias de qualquer tipo

(452 e): ela e, portanto, "criadora de persuasao" (peithous de-

miurgos). Socrates entao faz uma pergunta capital para 0 que

se segue: sera que a retorica tem cienc ia daquilo de que persua-

de? E Gorgias responde que ela nao precisa disso ( tan to quanto

quem faz propaganda de um remedio nao precisa ser medico).

Mas entao para que precisamos dela: nos debates publicos nao

se buscara 0conselho de especialistas, e nao retores? A respos-

ta de Gorgias merece ser citada por in teiro .

Texto 1- Platiio, G6rgias, 455 d a 456 C, trad.M. Croiset

Umapausa

G6RGIAS - Vou tentar, Socrates, revelar-te claramente 0

poder da retorica em toda a sua amplitude (...). Nao ignoras por

certo que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e de

toda a organizacao de vossos portos se deve por urn lado aos

conselhos de Temistocles e por outro aos de Pericles, mas emnada aos dos homens do oficio.

S6CRATES - E isso realmente 0 que se relata a respeito de

Temistoc1es, e, quanto a Pericles, eu mesmo 0 ouvi propor a

construcao domuro intemo.

OORGIAS - E, quando setrata de urna dessas eleicoes de que

falavas ha pouco, podes verificar que tambem sao os oradores que

e~~melhante materia dao s~upare~ere que a fazemtri~ar:. S6CRATES - Posso venficar ISSO com espanto, Gorgias, e

por isso me pergunto ha muito tempo que poder e esse da retori-

ca. Ao ver 0 que sepassa, ela se me aparece com uma coisa de

grandeza quase divina.

Se Isocrates enaltece a retorica, que para ele e toda a filo-sofia, Platao, em nome da filosofia, aplica-se a uma critic a de

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14 INTRODUr;AO A RET6RICA ORIGENS DA RET6RICA NA GRECIA 15

urna visao global e da arte da palavra, ou seja, que saiba ouvir e

fazer-se ouvir.

E seria facil continuar os exemplos de Gorgias: sao os pre-

sidentes das empresas que decidem, nao os engenheiros; os

grandes ministros raramente sao especialistas em seu setor: urn

Ministro da Sande nao precisa ser medico, urn Ministro da Edu-

cacao nao precisa ser professor, e os melhores comandantes

das guerras nao sao militares: pensemos em Clemenceau ou

em Churchill. Quem realmente decide nao sao os especialistas,

mas aqueles que, gracas it cultura e it arte da eloqiiencia, sao

capazes de fazer-se ouvir e arbitrar.

Alias, e por isso que Protagoras, em outro dialogo, afirma

que educa os jovens nao para toma-los tecnicos em alguma

coisa, mas para sua educacao all'epi paideia, ou seja, para sua

cultura geral".

Na sequencia de seu discurso, Gorgias amplia 0argumen-

to, mas por isso mesmo 0 enfraquece, pois exige demais dele.

Depois de mostrar 0 poder da retorica, quer transforma-lo em

onipotencia, Para isso acrescenta outro exemplo, menos verifi-

cavel, mas tambem plausivel, 0 do orador que convence 0 en-

fermo. Continuamos no verossimil: para levar urn paciente a

admitir que tern de sofrer para curar-se, e preciso coisa diferen-

te da ciencia medica: psicologia.

Mas no fim a argumentacao incha a ponto de explodir,

com 0 exemplo - puramente ficticio - do concurso. A assem-

bleia preferira 0orador ao medico, caso 0 orador queira fazer-

se eleger medico! No fundo e 0ponto de vista da publicidade,

que afirma, a torto e a direito, que consegue vender e "vender-

se". No entanto 0eu afirmo (phemi) de Gorgias nao e realmen-

te autorizado pelo que precede; de fato os exemplos, por mais

nurnerosos e eloqiientes que sejam, nao provam tudo; nao que

nao provem nada, mas nao provam nada de universal. Desse

modo, os exemplos de Gorgias provam que nem tudo podem os

especiattstas, e nao que nada podem; provam que a retorica e

capaz de alguma coisa, e ate muito, mas nao que e onipotente.

Na verdade, seria facil contra-argumentar mostrando que, sem

medicos ou outros especialistas, 0 retor nao iria muito longe; a

G6RGIAS - Se soubesses tudo, Socrates, verias que ela

engloba em si, por assim dizer, e mantem sob seu dominio todos

os poderes. You dar-te uma prova impressionante disso:

Aconteceu-me varias vezes acompanhar meu irmao ou

outros medicos it casa de algurn doente que recusava urna droga

ou que nao queria ser operado a ferro e fogo, e sempre que asexortacoes do medico resultavam vas eu conseguia persuadir 0

doente apenas com a arte da retorica. Que urn orador e urn medi-

co andemjuntos pela cidade que quiseres: se comecar uma dis-

cussao nurna assembleia popular ou numa reuniao qualquer para

decidir qual dos dois devera ser eleito medico, af irmo que 0

medico sera anulado e que 0 orador sera escolhido, se isso lhe

agradar.

o mesmo aconteceria com qualquer outro artesao: 0oradorse faria escolher diante de qualquer outro concorrente, pois nao

ha assunto sobre 0 qual urn homem que conhece retorica nao

consiga falar diante damultidao demaneira mais persuasiva que

urn homem do oficio, seja ele qual for. Ai esta 0que e retorica, edo que ela e capaz.

Para comecar, cabe admirar a ironia de Socrates (§ 4), que

finge nao compreender e espantar-se. Observemos tambem

que, sem explicitar, Gorgias ilustra a teoria de Isocrates, para

quem a palavra e apanagio do homem e origem detodos os seus

"poderes"; donde se pode concluir que 0 dominio da palavra

sera tambem 0dominio de todas as tecnicas.

Gorgias, porem, nao utiliza oraciocinio. Argumenta atra-

yes do exemplo. Na verdade, para provar sua tese, a onipoten-cia da retorica, ele parte de dois fatos bern conhecidos, de que

seu proprio interlocutor foi testemunha (§ 2). Esses exemplos

sao muito fortes, pois bastam para por em xeque a pretensao

dos especialistas e refuta-Ia, Ainda hoje nao sao os especialis-

tas que promovem vendas, mas publicitarios. Ainda hoje como

na Grecia, as decisoes politicas nao sao tomadas por especia-

listas. Por que? Porque estao em falta? Ao contrario, talvez por

existirem em excesso, por ser necessario selecionar os melho-

res, que raramente sabem se impor. E preciso, portanto, urn"retor", urn nao-especialista que em contrapartida disponha de

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16 INTRODUC;AO A RET6RICA OR/GENS DA RET6RICA NA GRECIA 17

Deve-se usar a retorica com justica, assim como todas as

armas. (Gorgias, 457 b; cf. Isocrates, A troca, 251 a 253)

crates faz outra pergunta completamente diferente: os tiranos

fazem 0 que querem? Naturalmente fazem 0 que lhes agrada,

mas sera realmente 0que querem? Fazer 0que se quer implica

saber do que se trata, conhecer 0objeto da vontade e seu valor

real. Ora, 0 retor e 0 tirano nao conhecem nada disso. Pois seu

unico criterio e 0 prazer, e 0 prazer nunca indica 0 verdadeiro

bern; so da uma satisfacao aparente e fugaz. Assim como a

culinaria cujo objetivo unico seja lisonjear nossa gula nao nos

da saude, pelo contrario, tambem a retorica apenas lisonjeia,

sem preocupacao com 0 verdadeiro bern. Aquilo que a culina-

ria e para a medicina, ciencia da saude, a retorica e para ajusti-ca, ou seja, sua falsa cara, sua imitacao.

Poder da retorica? Urn poder sem freios como 0do tirano,

e sem controle. Mas e poder de verdade? Polos afirma que 0

tirano e 0 homem onipotente, pois pode fazer "tudo 0 que lhe

agrada": despojar, exilar, matar, etc., sem as peias de lei algu-

rna. Ora, Socrates abstem-se de criticas morais, do tipo "naoesta certo". Mostra simplesmente que "nao e forte", que essepoder que 0 retor e 0 tirano se atribuem nao passa de impoten-

cia, porque nao fundado em verdade, porque nao pode justifi-

car 0que esta propondo ou sepropondo. 0 tirano considera-se

urn monstro, mas urn monstro feliz; na verdade, e apenas fraco

e infeliz, mais digno de lastima que suas vitimas.

cidade que0tivesse elegido medico nao seria enganada por mui-

to tempo!

Em suma, partindo de urn argumento muito forte, Gorgias

o enfraquece, depois 0destroi, exigindo dele 0que ele nao po-

deprovar.

Retorica e cozinha

A sequencia do dialogo e uma refutacao progressiva e to-tal da retorica.

Para comecar, e 0proprio Gorgias que, como Isocrates, li-

mita 0peder dela, subordinando-a Iimoral:

Gorgias (ou Isocrates"), retor honesto, subordina a retori-

ca a urnamoral que the e completamente exterior; mas nao es-

taria ele dessa forma mascarando as fraquezas e os perigos da

retorica? Pois, afinal, mesmo a service de urna boa causa, a ar-

rna continua sendo urna arma, e nao e infalivel que 0 seu poderseja sempre totalmente controlavel,

Socrates comeca fazendo Gorgias confessar que a retorica

assim definida nao necessita conhecer aquilo de que esta falan-

do, como por exemplo a medicina. Donde a seguinte conclusao

desdenhosa:

POLOS - 0 homem miseravel e digno de piedade sem a

menor duvida e aqueJe que foimorto injustamente.SOCRATES- Menos do que aquele que mata, Polos... (469 b)

Logo, quem leva a melhor sobre 0 sabio e urn ignoranteque esta falando a ignorantes. (459 b; "sabio" no sentido de com-

petente)

E a retorica, com todo 0 seu prestigio, sofre da mesma impo-

tencia; nao passa de tecnica cega e rotineira que, longe de pro-

porcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam para

serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os sem

ajuda-los, prejudicando-os mesmo (463 a 465). A onipotencia

da retorica nao passa de impotencia:

' ' ' - .

o debate torna-se mais agressivo com 0discipulo de Gor-

gias, Polos, jovem que recorre menos a sutilezas e escnipulos

que seu mestre. Como ele se embevece com a onipotencia da

retorica, Socrates demonstra que esse poder teria a mesma na-

tureza dopoder do tirano, 0que Polos admite, achando por cer-

to que the dirac que a retorica e perigosa, imoral, etc. Ora, So-

Os oradores e os t iranos sao os mais fracos dos homens.

(466 d)

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18 INTRODUr;:AO A RETORICA ORIGENS DA RETORICA NA GRECIA 19

Platao rejeita a confianca que os sofistas como Is6crates

atribuem a linguagem. S6 the reconhece valor se a service do

pensamento, unico a atingir as "ideias", a verdade inteligivel:

A autentica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro,

nao existe e nao poderajamais existir. (Fedro, 260 e)

beriam disso! Ha urn born tempo estariamos livres de acoes

erroneas e erraticas, e poderiamos preyer 0 futuro com segu-

ranca e tomar decisoes irrefutaveis, Ora, nesse ponto, Is6crates

continua tendo razao: nao e por ai. A "ciencia" que Platao opoe

a ret6rica ainda esta para ser feita e, sem duvida, estara sempre.

Notemos que, em Fedro, ele parece reabili tar a ret6rica.

Mas trata-se de urna ret6rica a servico da dialetica, metodo da

verdadeira filosofia, que "capacita a falar e a pensar" (266 b).

Uma ret6rica do verdadeiro, que nao procura 0beneplacito das

multidoes, mas dos deuses (273 e). Mas essa ret6rica, que nao

passa de expressao da filosofia, perde toda a autonomia, e mes-

mo toda a existencia pr6pria.

Conc1uindo, como diz muito bern Barbarin Cassin", Pla-

tao apresenta-nos duas ret6ricas, quer dizer, duas a mais. A pri-

meira, ados sofistas e de Is6crates, nao e arte, mas urna falsaadulacao, A segunda e apenas urna expressao da fi losofia, sem

conteudo pr6prio. Hoje em dia, reencontramos esse dualismo

ester il entre urna publicidade que s6 procura agradar , para ven-

der, e uma pretensa "ciencia hurnana" que nao resolve os pro-

blemas hurnanos, abstendo-se mesmo de formula-los. Entre-

tanto, esse conflito talvez nao seja fatal . Deve ser possivel urna

outra retorica.

E por isso que a ret6rica nao e nem mesmo 0 que pretende ser ,

urna tekhne, urna arte.

Em resurno, Platao volta contra 0 retor 0 seu pr6prio argu-

mento. Seu pretenso "poder" nada e. Por que? Porque ele des-

conhece 0verdadeiro, porque the falta a ciencia, especialmente

a da justica, unica que concede 0 poder real e a felicidade.

Assim cemo e a medic ina que proporciona 0 verdadeiro bem-

estar, nao a confeitaria.

De que "ciencia" se trata?

S6 que 0 argumento de Platao sustenta-se apenas por seu

pressuposto: de que, no dominio dajust ica e da fel ic idade, exis-

te urna "ciencia", urn conhecimento tao seguro quanto a medici-

na, que, assim como esta desqualifica a culinaria, autorizaria a

desqualificar a ret6rica. E Platao esta bern convencido disso.

Para ele, essa ciencia, a dialetica, proporciona urn conhecimen-

to das coisas eticas e politicas tao seguro quanto as ciencias da

natureza, e ate mais seguro (cf. Republica, livros VII e VIII).

Mas essa ciencia existe? Quando S6crates lanca a Polos a cele-bre f6rmula: "Mais vale sofrer a injustica do que a cometer",

querendo dizer com isso que a vitima nao s6 e menos desonesta

como tambem menos infel iz, porquanto 0 mal nao esta nela,

tern razao. Mas sera que podemos saber urna unica vez e urna

vez por todas 0que e 0justo e 0que e 0 injusto?

Hoje em dia, certamente em sentido diferente, alguns au-

tores afirmam tambem que existe uma ciencia da politica, da

etica, da educacao, 0que lhes permite condenar , como Platao,

tudo 0 que e ret6rico, a que dao 0nome de "literario" ou mes-

mo "filos6fico". Mas afinal, se tal ciencia existisse, todos sa-

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Capitulo II

Aristoteles, a retorica e a dialetica

Arist6teles (384-322) nasceu - quinze anos depois da

morte de S6crates - em Estagira, cidadezinha litoranea entre

Salonica e 0monte Atos. Entra com dezessete anos na Acade-

mia de Platao e ali f ica vinte anos, abandonando-a por nao po-

der suceder ao mestre; vai fundar urna escola concorrente, 0

Liceu. Fil6sofo e sabio universal, soube conciliar em si duastendencias pouco conciliaveis: 0espirito de observacao e 0 es-

pirito de sistema.

Antes de fundar 0Liceu, foi preceptor do filho do rei Fili-

pe da Macedonia, que mais tarde se distinguiu como urn dos

maiores genies militares e politicos de todos os tempos, con-

quistando para a pequena Grecia todo 0Oriente, desde 0Egito

ate a I ndi a,

Arist6teles e Alexandre, 0Grande: 0que 0primeiro pode

ter ensinado ao segundo? Urn militar tentou responder:

o poder do espirito implica uma diversidade que nunca seencontra unicamente na pratica da atividade profissional, do

mesmo modo como nao nos divertimos apenas em familia. A

verdadeira escola do comando esta na cultura geral. Por meio

dela, 0pensamento e posto em condicoes de exercer-se, com or-

dem, de distinguir 0 essencial do acessorio nas coisas, de perce-

ber os prolongamentos e as interferencias, em surna, de elevar-

~,,\a urn nivel em que 0 conjunto aparece sem 0 prejuizo dos

matizes. Nao ha ilustre capitao que nunca tenha tido gosto nem

sentimento pelo patrimonio do espirito hurnano. Por tras das

vitorias de Alexandre, encontramos sempre Aristoteles. (Char-

les de Gaulle, V er s I ' ar me e d e m e ti er , 1934)

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22 INTRODUC;AO A RET6RlCA ARlST6TELES, A RET6RlCA E A DIALETICA 23

Belo elogio da retorica. Retorica que Aristoteles vai re-

pensar de cabo a rabo, integrando-a de inicio num sistema filo-

sofico bern diferente daquele dos sofistas, e depois transfor-

mando-a em sistema.

sua funcao nao e [somente] persuadir, mas ver 0 que cada casocomporta de persuasivo. 0 mesmo se diga de todas as outras

artes, pois tampouco cabe a medicina dar saude, porem fazer

tudo 0que for possivel para curar 0doente.

Uma nova defini~ao de ret6ricaUma definidio mais modesta ...

Texto 2-Aristoteles, Reterica, livro I, cap. 2, 1355 a-bNos mesmos traduzimos esse texto capital, utilizando a

traducao de Mederic Dufour, a de Rhys Roberts, na edicao in-

glesa, e evidentemente 0texto grego.

Se compararmos esse trecho com 0 de Gorgias (texto 1),

veremos nos dois casos que se trata de urn elogio a retorica,Gorgias a celebra por seu poder, Aristoteles por sua utilidade.

Ambos admitem (como Isocrates) que ela pode ser usada deso-

nestarnente (adikOs), 0que em nada subtrai 0seu valor.Entretanto, se e que Gorgias e Aristoteles estao falando da

mesma coisa, nao falam da mesma maneira. 0 discurso do

sofista e digno quando muito de urna praca publica; sua argu-

mentacao pelo exemplo da guinadas. 0 de Aristoteles, ao con-

trario, e muito coeso; procede por silogismos implicitos, ou

entimemas. Em surna, passa-se de urna arenga propagandisti-

ca, do tipo "voces vao ver 0que voces vao ver", para urna argu-

mentacao rigorosa.

E essa nova argumentacao da urna ideia mais profunda e

solida da retorica. Para comecar, ja nao a apresenta como poder

de dominar, mas como poder de defender-se, 0que logo de caraa toma legitima. Em seguida, os argumentos contraries aomau

uso sao muito mais fortes, porque 0 explicam; e precisamentepor ser urn bern (agathon) que a retorica pode ser pervertida,

assim como a forca, a saude, a riqueza. Com excecao da virtu-

de moral, todos os bens sao relativos. Mas, enfim, nem por isso

deixam de ser bens, pois mais vale ser forte que fraco, sadio

que dotDte..-.Do mesmo modo, e preferivel saber utilizar a for-ca do discurso.

Em resurno, enquanto a defesa de Gorgiasou de Isocratesconsistia em fazer da retorica urn instrumento neutro, que so

(1) A retorica e util, porque, tendo 0 verdadeiro e 0 justo

mais forca natural que os seus contraries, se osjulgamentos nao

sao proferidos como conviria, e necessariamente por sua unica

culpa que os litigantes [cuja causa e justa] sao derrotados. Suaignorancia merece, portanto, censura.

(2) Ainda mais: conquanto possuissemos a ciencia maisexata, ha certos homens que nao seria facil persuadir fazendo

nosso discurso abeberar-se apenas nessa fonte; 0 discurso se-

gundo a ciencia pertence ao ensino, e e impossivel emprega-loaqui, onde as provas e os discursos (logous) devem necessaria-

mente passar pelas nocoes comuns, como vimos em Topicos, a

respeito das reunifies comurnauditorio popular.

(3) Ademais, e preciso ser capaz de persuadir dos pros edos contras, como no silogismo dialetico, Nao para por ospros

e os contras em pratica - pois nao se deve corromper pela per-

suasaol -, mas para saber claramente quais sao os fatos e para,

caso alguem sevalha de argumentos desonestos, estar em condi-

~oesde refuta-lo (...)

(4) Alem disso, se e vergonhoso nao poder defender-se

com 0proprio corpo, seria absurdo que nao houvesse vergonha

em nao poder defender-se com a palavra, cujo uso e mais pro-prio ao homem que 0do corpo.

(5) Objetar-se-a que a retorica pode causar series danos

pelo uso desonesto desse poder ambiguo da palavra? Mas 0

mesmo sepode dizer de todos os bens, salvo da virtude (...)

(6) Fica claro, pois, que, assim como a dialetica, a retorica

nao pertence a urn genero definido de objetos, mas e tao univer-sal quanto aquela. Claro tambem que e util, Claro, por fim, que

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24 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 25

Nosso texto objetiva estabelecer esse valor. Isso e feitocom quatro argurnentos mais uma prolepse (§5), para final-

mente passar a definicao.Os quatro argumentos tern por finalidade provar a tese,

exposta desde 0 inicio: "A retorica e util" (khresimosy; em ou-

tras palavras, dela sepode esperar aquilo que se espera de todas

as tecnicas: urn servico; e 0 que vao mostrar os quatro argu-

mentos, cada urn por sua vez.

o primeiro argumento parece responder a uma objecao

implicita: nao e possivel contentar-se com expor simplesmente

o verdadeiro e 0justo, sem recorrer a artificios oratorios? Aris-

toteles leva em conta a objecao, dizendo: sim, 0verdadeiro e 0

justo sao por natureza (physei) mais fortes que seus contraries.

So que a experiencia mostra - aqui, argumento pelo exemplo -

que muitos veredictos dos tribunais sao iniquos. Como expli-

car isso? Pelo erro dos litigantes, que nao souberam fazer valer

seus direitos, que nao conseguiram sobrepujar a retorica de

seus adversaries, capazes de "tomar mais forte 0 argurnento

mais fraco", de fazer 0 injusto prevalecer sobre 0 justo. Se a

arte pode ter vantagem sobre a natureza, e preciso urn suple-

mento de arte para devolver a natureza seus proprios direitos.E isso 0que 0 terceiro argumento desenvolve tecnicamen-

teoE preciso ser capaz de defender tao bern 0 contra quanto 0

pro, claro que nao para torna-los equivalentes - como preten-

diam os sofistas -, mas para compreender 0mecanismo da ar-

gumentacao adversaria e assim a refutar.

o quarto argumento amplia 0debate, ligando novamente a

retorica a condicao humana, como ja fazia Isocrates, 0 grandeausente-presente de todo 0debate. Se a palavra e caracteristica

do homem, e mais desonroso ser vencido pela palavra que pelaforca fisica. Para interpretar a polissemia do termo grego lo-

gos, 0tradutor ingles emprega rational speech.

Na verdade, esses argurnentos valem nao somente para 0

discurso judiciario como tambem para todos os tipos de discur-

sos publicos. No campo do direito, da politica, da vida intema-

cional, vivemos sempre urna situacao polemica, em que as ar-

mas mais eficazes sao as da palavra, visto que so ela - e nao a

forca fisica - define 0justo e 0 injusto, 0util e 0nocivo, 0no-

bre e o; .sprezivel. A retorica, arte ou tecnica da palavra, e,

portanto, indispensavel. E ai esta 0que a legitima.

Mas 0que dizer entao da objecao de Platao, qual seja, que

a retorica e inteiramente estranha a verdade? Parece-nos que 0

valia pelo uso, Aristoteles the confere urn valor positivo, ainda

que relativo.Ou talvez porque relativo. Voltemos, pois, a sua definicao

"corrigida" da retorica. Ela nao se reduz, diz ele, ao poder de

persuadir (subentendido: ninguem de coisa nenhurna); no es-sencial, e a arte de achar os meios de persuasao que cada casocomporta. Em outras palavras, 0 born advogado nao e aquele

que promete a vitoria a qualquer custo, mas aquele que abre

para a sua causa todas as probabilidades de vitoria.

E aqui surge urna vez mais a personagem paradigmatica

do iatros, do medico. Para Gorgias, ele estava submetido ao re-

tor, pois dele dependia inteiramente, quer para convencer seu

paciente, quer mesmo para ser nomeado. Em Platao, e, ao con-

trario, 0medicoque faz papel bonito; e ele que sabe e podecurar, enquanto 0 retor nao passa de envenenador que nao sabe

nem como nem por que envenena, urna vez que sua pretensa

arte nao passa de rotina cega. Pode-se observar que 0medico

de Aristoteles tern bern menos seguranca do que faz; ele nada

pode fazer pelos doentes incuraveis, e mesmo aos outros nao po-

de prometer a cura, mas simplesmente dar-lhes todas as oportu-

nidades de curar-se. Ainda que nossa medicina seja hoje infini-

tamente mais cientifica que a de Aristoteles, nao pode prome-

ter mais. Aqui 0medico ja nao esta abaixo do retor, nem acima;

ambos estao frente a frente, sendo cada urn detentor de urna

arte que so tern poder porque reconhece seus limites.

Em resurno, dando a retorica urna definicao mais modestaque ados sofistas, ele a toma muito mais plausivel e eficaz.

Entre 0 "tudo" dos sofistas e 0 "nada" de Platao, a retorica secontenta com ser algurna coisa, porem de valor certo.

A argumentacdo de Aristoteles

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26 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 27

segundo argumento de Aristoteles (§ 2) responde implicitamen-

te a ele. A retorica, dizia Platao, que se autodefine como arte

onipotente, nao e arte de modo algum, pois e cega no que faz e

no que quer. Por ignorar 0verdadeiro, nao e nem mesmo verda-

deiro poder. 0 que responde Aristoteles?

"Conquanto possuissemos a ciencia ..." E preciso entender

bern 0 que esta em jogo. Aristoteles opoe-se aos sofistas, para

os quais tudo e relativo, e tambem, como sempre, a Isocrates,

para quem uma ciencia absoluta, a moda de Platao, nao passa

de logro, visto que 0 homem podera chegar apenas a opinioes

justas, ou melhor, mais ou menos justas (A troea, VI, 271).

Quanto a Aristoteles, admite que existe uma ciencia exata, e

ate "inteiramente exata" (akribestatei. Assim como Platao, ad-

mite uma ciencia que, por via demonstrativa, parta do verda-

deiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Pla-

tao que a ciencia mais exata e impotente para convencer certos

auditorios, aos quais falta instrucao, E preciso, portanto, utili-zar nocoes "comuns", ou seja, acessiveis ao comum dos mor-

tais . Suponhamos que uma comissao medica queira fazer cam-

panha contra 0 tabagismo: vai precisar achar para difundir coi-

sa bern diferente de um curso de medicinal Tal e a interpreta-

~ao corrente do texto de Aristoteles . No entanto, ela nos parece

evidente e banal demais para nao ser suspei ta .

Com efei to, no fim da alinea, Aristoteles refere-se a diale-

tica dos T6pieos. Atendo-nos a essa interpretacao, poderiamos

acreditar que a dialetica nao passa de quebra-galho, devido a

incultura dos auditorios populares, uma maneira de falar aos

ignaros, que so tern a seu favor (quando muito) 0 senso co-mum. A retorica seria entao a filosofia do pobre, 0que no fun-

do nos remete a Platao,

Na verdade, e preciso retomar a frase obscura: "0discurso

segundo a ciencia pertence ao ensino". Em outras palavras, um

discurso submetido as exigencias cientificas so pode ser feito

numa escola, numa instituicao especial, com seus metodos,

seus mestres, programas progressivos, etc. Ora, nao e a mesma

coisa quando se fala diante de urn tribunal, ou em praca publi-

ca, onde nao se tern nem mesmo 0 tempo para expor cientifica-

mente. Mas sera por causa da incultura do auditor io?

Parece que 0problema esta em outro lugar. 0 dominio da

retorica, 0 das questoes judiciarias e politicas, nao e 0mesmo

da verdade cient if ica, mas do verossimil. 0 proprio Aristoteles

diz isso em outro texto:

Seria tao absurdo aceitar de urn matematico discursos sim-plesmente persuasivos quanto exigir de urn orador (retor) de-

monstracoes invenciveis. (Etica a Nicomaco, I, 1094b)

A retorica nao e, pois, a prova do pobre. E a arte de defen-der -se argumentando em situacoes nas quais a demonstracao

nao e possivel, 0 que a obriga a passar por "nocoes comuns",

que nao sao opinioes vulgares, mas aquilo que cada um pode

encontrar por seu born senso, em dominios nos quais nada seria

menos cientifico do que exigir respostas cientificas.

Numa palavra, Aristoteles salva a retorica, colocando-a

em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe U r n papel modesto,mas indispensavel num mundo de incertezas e de confl itos . E aarte de encontrar tudo 0 que um caso contem de persuasivo,

sempre que nao houver outro recurso senao 0 debate contradi-

torio. Para entender melhor isso, passemos ao exame da rela-

~ao entre a retorica e a dialetica',

o que e dialetica?

Sabe-se que os gregos eram grandes esportistas , prat ican-

tes de toda especie de lutas e competicoes. Mas tambem se des-tacavam numa disputa esportiva fora dos estadios e ginasios,

ou puramente verbal, a dialetica, Dois adversaries se enfren-

tam diante do publico: um sustenta uma tese - por exemplo,

que 0prazer e 0bern supremo -, e a defende custe 0que custar;

o outro ataca com todos os argumentos possiveis. 0 vencedor

sera aquele que, prendendo 0 adversario em suas contradicoes,

conSe8uir reduzi-lo ao silencio, para grande alegria dos espec-

tadores.

Parece que a primeira dialetica foi a eristica dos sofistas,

ar te da controversia que permitia fazer triunfar 0 absurdo ou 0

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28 INTRODUr;AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 29

falso. Socrates e depois Platao puseram a dialetica a service do

verdadeiro, transformando-a no proprio metodo da filosofia.

Para Aristoteles, a dialetica nao esta menos a service do

verdadeiro do que do falso; ela trata do provavel:

Em filosofia, e preciso tratar as questoes segundo a verda-de,mas em dialetica somente segundo a opiniao-.

Em nossa opiniao, a melhor resposta para esse tipo de cri-

tica e mostrar que a dialet ica nao e nem moral nem imoral, sim-

plesmente porque, no fundo, ela e urn jogo. Nurn jogo, 0 pro-

blema e ganhar . E, neste, veneer e convencer; em outras pal a-

vras, urna proposicao enunciada pelo adversario e admitida

como provada, sem que se possa voltar a ela.

Como em todos os jogos, a polemica so e conflito na apa-

rencia: urn prelio esportivo ou urna partida de xadrez estao tao

longe de ser urn conflito real quanto urn rei do xadrez esta lon-

ge de urn monarca historico; assim, quem defende urna tese po-

de muito bern nao acreditar nela; defende-a por jogo .. . Enfim,

como todo jogo, a dialetica nao tern outro fim alem de si mes-

rna: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E enisso que se distingue das atividades serias: da filosofia por

urn lado e da retorica por outro, ainda que Ihes seja - como ve-

remos - indispensavel,

Em sintese, urn jogo analogo ao xadrez, em que 0 acaso

tern posicao infima. Urn jogo em que se deve fazer de tudo

para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras ... da 1 0 -

.gica.

A dialetica de Aristoteles e apenas a arte do dialogo orde-

nado. 0 que a distingue da demonstracao filosofica e cient if ica

e raciocinar a partir do provavel. 0 que a distingue da eristica

sofista e raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente

as regras da logica.

A dialetica e urnjogo

o silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes,

necessarias , que provam sua conclusao explicando-a de modo

indubitavel , 0 silogismo dialet ico parte de premissas simples-

mente provaveis, os endoxa, aquilo que parece verdadeiro a

todo 0mundo, ou a maioria das pessoas, ou ainda aos indivi-

duos competentes. 0 endoxon opoe-se, pois , ao paradoxon (0

paradoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opiniao aceita) .

Sao assim, hoje em dia, os conceitos de "normal" ou de "matu-

ridade": nao possuem nenhurn rigor cientifico, mas sao uteis

para que as pessoas se entendam, tanto nas ciencias hurnanas

quanto na vida social ; ser iam bons exemplos de endoxa.Portanto, a dialetica renuncia a verdade das coisas em be-

neficio da opiniao aceita. Substitui a pergunta cientifica: "0

que e ? " por esta outra: "0 que Ihe parece?", A verdade e queAristoteles toma 0cui dado de distinguir 0verdadeiro consenso

do consenso aparente iphainomenon endoxon), com que se con-

tentam os sofistas.

Hoje, quem Ie os Topicos pergunta-se com freqiiencia 0

que distingue Aristoteles dos sofistas. Desconfia-se que seu

objetivo nao e ensinar a buscar a verdade, mas sim a manipular

o adversario e mesmo a engana-lo.

Tudo para ganhar

No embate dialetico, e preciso antes de tudo levar em con-

sideracao 0 adversario concreto que temos diante de nos e dis-

por os argumentos por via de conseqiiencia. Por exemplo, se 0

adversario e iniciante, sera atacado com exemplos ou analogias;

se for experiente, ser-lhe-ao opostos raciocinios dedutivos" ,

Aristoteles, alias, ensina procedimentos, "truques" proprios

a desorientar 0adversario, impedi-lo de ver aonde se quer che-

gar (como no xadrez); por exemplo, encontrar formas de argu-

mentacao que dissimulem a conclusao, para que 0 adversario

nao s<i& aonde se esta indo realmente; inserir na argumenta-

~ao proposicoes inuteis para melhor esconder 0 jogo, etc.'; do

mesmo modo, finge-se imparcialidade, fazendo objecoes a

si mesmo; as vezes nao se hesita em concluir 0 verdadeiro a

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7/11/2019 Introdução à retórica. Olivier Reboul. São Paulo_ Martins Fontes, 2004

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30 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 31

partir de premissas falsas, em se verificando que 0 adversario

admite estas ultimas mais facilmente que as verdadeiras!" No

todo, as aparencias sao salvas. Tem-se ate 0 direi to de jogar

com as palavras (como os sofistas!), quando, por culpa do

adversario, se esta "absolutamente impossibil itado de discutir

de outra mane ira . . ."7 .

Na verdade, pouco importa se 0 defensor sustenta uma

tese provavel ou improvavel; pouco importa se a tese e dele, de

outro, ou de ninguem. 0 importante e acharem que ele defen-

deu bern, que argumentou bri lhantemente"; por fim, caso 0

quest ionador tenha vencido ressal tando todos os absurdos de-

correntes da tese, 0 defensor deve poder "mostrar" que a culpa

nao e sua, mas da propria tese; em surna, que ele defendeu 0

melhor que pode urna tese que nao era sua", Assim,

contrario, se obstinar, nao estara fazendo mais que chicanice,

pois estara bloqueando 0 debate de modo totalmente arbitra-

rio", Analogamente, e preciso evitar que as objecoes acabem

virando obstrucao, 0que equivale a desperdicar tempo e paral i-

sar a discussao para nao perder. De modo mais geral, deve-se

evitar discutir com qualquer urn, porque, se 0 adversario ignoraas regras do debate, este so podera abespinhar-se, ja que cada

urn recorrera a qualquer meio para impor sua conclusao".

As regras que dizem respeito aos argumentadores, acres-

centam-se as que dizem respeito a argumentacao,

Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeito

aos termos. Muitas vezes os debates sao deturpados por se util i-

zarem premissas ambiguas. Vejamos, entre milhares de exem-

plos, este sofista registrado tuLogica de Port-Royal (p. 217):

n um d eb at e d ia le ti co , 0 ob je ti vo d o q u es ti on a do r e p ar ec er , p or

to do s o s rn eio s, e sta r faz en do um a re futac ao , e 0 o bje tiv o d o d e-fensor e p ar ec er n ao e st ar s en do a fe ta do p ess oa lr ne nte e m n ad a.

(VIII, 5, 159a)

N ao es 0q ue s ou ;

e u s ou h or ne rn ;

l og o, n ao e s h or ne rn .

Respeitar as regras do jogo

Sofisma porque, na conclusao, "ser homem" e tornado no

sentido universal, enquanto na premissa menor ele e tornado

em sentido particular: este homem, e nao todo 0 homem ou

qualquer homem".

Outros sofismas dizem respeito a forma do raciocinio. Por

exemplo, a peticao de principio, que toma como aceita a tese

que se quer demonstrar, enunciando-a com outras palavras";

em que a conclusao e extraida de premissas menos provaveis

que ela, ou de premissas excessivamente numerosas para que

se possa compreender a razao do que esta sendo conc1uido; eem que se chega a conclusao por meio de urn raciocinio impro-

prio ao assunto, como por exemplo urn raciocinio nao geome-

trico para estabelecer uma conclusao geometrica",

Vimos que, contra certos adversaries malevolentes ou li-

mitados, 0 verdadeiro pode ser conc1uido de premissas falsas .

Mas.jnesmo nesse caso, continua proibido transgredir as re-

gras d&raciocinio; sejam as premissas certas, provaveis ou fal-

sas, 0raciocinio deve ser correto.

A passagem.do falso ao verdadeiro deve ser dialet ica, nao

eristica (161 a).

Urn jogo, portanto, mas que deve ser jogado respeitando-

se as regras. Sim, deve-se fazer de tudo para ganhar, mas nao

por quaisquer meios. Porque a trapaca, transgressao das regras

logicas, induz de chofre a destruicao do jogo. E e exatamente

por is so que Aristoteles tanto insiste nas regras da dialetica,que a opoem a sofistica, essa t rapaca, As principais sao as que

seguem:

Para comecar, as que - sem serem propriamente logicas -

tern por objetivo permitir a conclusao, 0 fim do jogo, num tem-

po limitado.

Assim, se e verdade que, a partir de casos particulares, por

mais nurnerosos que sejam, nunca se pode concluir por urna

proposicao universal, cumpre entretanto que 0adversario, apos

certa quantidade de exemplos, acei te essa passagem para 0uni-

versal , a menos que ele proprio gere urn contra-exemplo. Se, ao

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32 INTRODUC;10 A RETORICA ARISTOTELES, A RETORICA E A DIALETICA 33

Enfim, urna regra apropriada ao "jogo" dialetico: so serao

feitas perguntas que possam ser respondidas com sim ou com

nao. Por exemplo, nao se deve perguntar: "0 que e 0 bern?",

mas: "0 bern se reduz ao prazer?" (158 a)

Utilidade dojogo dialetico

E 0pr6prio Arist6teles, no capitulo 2 do primeiro l ivro dos

Topicos, fixa os beneficios secundarios oferecidos pela dialeti -

ca. Aponta tres: uso pedag6gico, uso filosofico e uso social

("homiletico", que diz respeito diretamente a retorica).o uso pedagogico sera explorado pelo ensino durante cer-

ca de vinte e cinco seculos! "E a gymnasia: Nos embates diale-

ticos , argumenta-se para avalia r as forcas, e nao para debater",

"com 0prop6sito de exercitar-se e provar-se, e nao de ins truir-

se?", Se desse jogo nao se extrair verdade alguma, pelo menos

se adquirira urn t reinamento intelectual, urn metodo que permi-

ta argumentar sobre qualquer assunto.

o'uso filosofico divide-se em dois. Em primeiro lugar, a

dialetica, que desempenha urn papel epistemologico por per-

mitir (e s6 ela 0 faz) estabelecer atraves de um exame contradi-

torio os primeiros principios de cada ciencia e os principios

comuns a todas . Foi gracas a um exame dia letico que Aris tote-

les estabeleceu os pr imeiros principios da f isica, da moral e ate

o pr incipio de contradicao,

A outra funcao e interna a filosofia. A dialetica da ao f ilo-

sofo uma competencia que the e indispensavel: "Numa pala-

vra, e dialetico quem esta apto a formular proposicoes e obje-

<;oes."!7Proposicao: extrair 0universal de varies casos particu-

lares ; objecao: achar um caso par ticular que permita infirmar

uma proposicao universal... E ainda mais, a dialetica da ao fil6-

sofo "a capacidade de abarcar apenas com um olhar ( o o . ) as

consequencias de uma e de outra hipotese"; assim, so lhe resta

"fazer ajusta escolha entre ambas?".

Mas 0 filosofo nao joga. Ut il iza a formacao que a dialetica

lhe da para buscar a verdade. No uso Iudico da dialetica, cada

urn leva em conta os objetivos reais ou provaveis do adversario

que tern diante de si. No usa filos6fico, tem-se em mente todas

as objecoes possiveis , ainda que estas jamais tenham sido for-

muladas nem sejam formulaveis, 0 filosofo esta diante de um

adversaho que renasce a cada instante, pois esta sempre insa-

tisfeito: ele mesmo.

Resta a funcao homiletica da dialetica:

A dialetica e, pois, urnjogo cujo objetivo consis te em pro-

var ou refutar urna tese respeitando-se as regras do raciocinio. 0

papel do inquiridor "e concluir a discussao de modo que 0 de-

fensor sus tente os mais extravagantes paradoxos, como conse-

qiiencias necessarias de sua tese" (159 b). Ao outro, em contra-

par tida, cabe defender sua tese por todos os meios. 0 essencial

e que cada urn mostre que raciocinou bern e utilizou todos os

argumentos a seu alcance. E esse "mostrar" ja nao e simples

aparencia; e 0 sofista que raciocina na aparencia, exatamente

como 0 trapaceiro, que faz de conta que es ta jogando. Quanto adialetica, e uma argumentacao que vai da aparencia a aparencia,mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E 0 que

reforca a inda mais a ideia de jogo e a af irmacao de Aristoteles:

quando um dos dois adversar ies raciocina mal, a discussao vira

chicana, e 0 faltoso "impede 0 born cumprimento da obra co-

mum" (161 a); como em todo jogo, cada parceiro persegue seu

proprio objetivo, porem ambos perseguem urn objetivo comurn,

que e chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas

ambos querem levar a born termo "a obra comurn".

Finalmente, qual e 0prove i to do jogo dialetico? Aristote-

les por certo responderia - e todos os gregos com ele - que esse

jogo tern fim em si mesmo. Joga-se por jogar, discute-se pela

beleza e pelo prazer de uma disputa bern travada, prazer com-

par tilhado, alias , pelo publico. Entretanto, Ar istote les diz em

outro lugar que, embora esse jogo tenha fim em si mesmo,

pode-se tambem "jogar com vista a uma atividade seria"". Po-

de-se, com efeito, ignorar 0valor insubst ituivel do jogo na edu-

cacao? Pode-se ignorar 0aspecto dejogo intelectual que se en-

contra tanto na matematica quanta na filosofia?

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34 INTRODUC;AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 35

Sua utilidade no contato com os outros e explicada pelo

fato de que, depois de prepararmos 0 inventario das opinioes da

maioria (ton pollan), nao estaremos falando a ela a partir de

pressupostos que lhe sejam estranhos, mas a partir de pressupos-

tos que lhe sao proprios, sempre que a quisermos persuadir ...

(1,2,101 a)

Dessa forma, ela passa a ser antistrofos da dialetica, ou seja,

esta no mesmo plano.

o que elas tem em comum

Retorica e dialetica

No mesmo plano: vejamos agora como Aristoteles prova

isso. Seus argumentos podem ser resumidos em cinco".

Primeiramente, a ret6rica e a dialetica sao capazes tanto

de provar uma tese quanto 0 seu contrario; 0 que nao significa

que as duas teses sejam necessariamente equivalentes, pois

entao se cairia na sofis tica; quer dizer que se pode argumentar

mesmo em favor de uma tese fraca.

Em segundo lugar, a ret6rica e a dialetica sao universais,

no sentido de nao serem ciencias , de nao implicarem nenhuma

especial izacao e de possibil itarem a discussao de tudo 0que for

controverso.

Em terceiro lugar, ainda que ambas sejam praticadas por

habito ou mesmo por acaso, podem tambem ser ensinadas me-

todicamente, e sao nesse caso "tecnicas".

Em quarto lugar, ao contrario da sofistica, ambas sao ca-

pazes de fazer a distincao entre 0 verdadeiro e 0 aparente: a

dialetica, entre 0 verdadeiro si logismo e 0 sofisma: a ret6rica ,entre 0 realmente persuasivo e 0 logro.

Em quinto lugar, elas utilizam dois tipos identicos de ar-

gumentacao: inducao e deducao, que se situam entre a demons-

tracao (apodeixis) propria da ciencia e a eristica enganadora

dos sofistas.

Esses argumentos sao tao fortes que dialetica e retorica

chegam a parecer dois termos que, no fundo, designam a mes-

rna disciplina! Mas nao e nada disso. A retorica e apenas uma

"aplicacao", entre outras, da dialetica; e uma de suas quatro

funcoes. Inversamente, a ret6rica utiliza a dialetica como urn

meio,fntre outros, de persuadir. Mais ou menos como 0medi-

co utiliza as ciencias biologicas, mas tambem a psicologia, a

psicanalise, etc.

E preciso deixar claro que esta passagem e precisamente

aquela it qual Aristoteles remete no segundo argumento de

nosso texto de Retorica. "Contatos com os outros": essa e exa-

tamente a area da retorica, e ai temos uma ideia dos services

que a dialetica pode prestar-lhe.

Qual e entao a relacao entre dialetica e ret6rica? A estapergunta Aristoteles responde desde a prime ira frase de seu

livro: a retorica e antistrofos da dialetica" (Retorica, I, 1354 a).

o problema e que nao se conhece bern 0sentido de antistrofos.

Os tradutores ut il izam ora "analogo", ora "contrapart ida". E-

o que nao simplifica as coisas - a explicacao do proprio Arist6-

teles e urn tanto confusa. Nesse primeiro capitulo, ele escreve

que a ret6rica e 0 "rebento" da dialet ica , isto e, sua aplicacao,

mais ou menos como a medicina e a aplicacao da biologia. Mas

depois ele a qualifica como uma "parte" da dialetica. Diz tam-

bern que ela the e "semelhante" (omoion), portanto que a rela-

«ao das duas seria de analogia. Antistrofos: e macante urn l ivrocomecar com termo tao obscuro!

Na nossa opiniao, esse termo deve ser visto como uma

provocacao . .. Isto porque Aristoteles argumenta quase sem-

pre contra Platao. Como se sabe, este ultimo desprezava a re-

t6rica e exaltava a dialetica, na qual via 0 metodo por exce-

lencia da fi losofia , unico que permitia alcancar 0 absoluto, 0

"aipotetico". Aristoteles inicia, pois, 0 seu livro com urn ges-

to de desafio a Platao, Faz a dialetica descer do ceu para a ter-

ra e, inversamente, reabilita a retorica, atribuindo-lhe urn pa-

pel mais modesto do que the atribuiam os antigos retores.

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36 INTRODU9AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 37

Dialetica, parte argumentativa da retorica Se nao e justo encolerizar-se contra quem nos tenha feito

mal sem intencao, quem nos fez bern por obrigacao nao tern

direito a nenhum reconhecimento. (1397 a)

Se os deuses nao sao oniscientes, muito mais razoes ha

para que oshomens nao 0sejam. (1397 b)

E certo que a retorica utiliza a dialetica para convencer. Eparece mesmo que, no capitulo primeiro do livro I, Aristoteles

limita a retorica a tecnica da prova; diz, alias, que 0 orador so

deve ocupar-se com problemas de fato e deixar para 0 juiz apreocupacao de avalia-los. Em surna, urna retorica honesta, po-

rem inexpressiva... que nao sera exatamente a que Aristoteles

vai desenvolver em seu livro. Esta, longe de limitar-se a ser

aplicacao, vai subordinar a si a dialetica como urn meio entre

outros de convencer.

Eja no capitulo 2 0autor introduz em sua retorica elemen-

tos de persuasao que nada tern a ver com a dialetica, que so

conhece provas de ordem intelectual. A retorica, diz Aristote-

les, comporta tres tipos de provas (pisteis) como meios de per-

suadir. Os dois primeiros sao 0etos e 0patos, que estudaremos

no proximo capitulo; constituem.a parte afetiva da persuasao,o terceiro tipo de prova, 0 raciocinio, resulta do logos, consti-tuindo 0elemento propriamente dialetico da retorica".

o proprio Aristoteles diz que "esses dois metodos", a de-ducao e a inducao, "sao necessariamente identicos nas duas

tecnicas" (1356 b ). Identicos nao apenas em termos de estrutu-

ra, mas tambem de conteudo. Em retorica como em dialetica,

os dois tipos de raciocinio apoiam-se no verossimil, 0 eikos,

termo constante entre os antigos retores, que Aristoteles com-

para ao endoxon da dialetica. Fique claro que, limitada ao ve-

rossimil, a argumentacao continua racional. 0 eikos (por exem-

plo, 0 filho amar 0pai) e 0que acontece com mais freqiiencia,portanto 0 que apresenta grande probabilidade e pode ser pre-

sumido salvo prova em contrario (cf. 1357a).

Nesse sentido, a retorica assim como a dialetica opoe-se asofistica, que se compraz com 0 inverossimil e 0 "prova" por

meio de uma aparencia de raciocinio. Assim, no capitulo 24 do

livro II, Arist6teles detem-se numa analise dos sofismas que

retoma de modo mais abreviado a analise feita em Topicos. E

no capitulo 23 expoe os lugares, ou seja, os tipos de argurnen-

tos verossimeis que servem de premissas ao raciocinio ret6ri-

co. Por exemplo:

A partir dai, pode-se desculpar "X" por nao ser grato, ou

"Y" por seter enganado. Embora nao sejam irrefutaveis, esses

argurnentos sao altamente verossimeis.

Numa palavra, a dialetica constitui a parte argumentativa

da ret6rica. Cabe esclarecer, porem, que a argumentacao nlio

tern a mesma funcao, portanto 0mesmo sentido, em ambos os

casos. A dialetica e urn jogo especulativo. A retorica, por sua

vez, nao e urn jogo. E urn instrumento de acao social, e seu

dominio e 0da deliberacao (buleusis); ora, esse dominio e pre-

cisamente 0do verossimil. De fato, nao se delibera sobre 0que

e evidente - por exemplo, para saber sea neve e branca! - nemsobre 0 que e impossivel; delibera-se sobre fatos incertos, mas

que podem realizar-se, e realizar-se em parte atraves de nos.

Por exemplo, a cura deurn doente, a vitoria na guerra, etc."

Em resumo, a retorica e urna "aplicacao" da dialetica, no

sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de per-

suasao. Mas instrumento que nao a dispensa de modo algum

dos instrumentos afetivos.

Moralidade da retorica

Mas ai surge urna questao sobre a ret6rica que nao existia

com referencia a dialetica, Como vimos, esta ultima em simes-

rna e somente umjogo, cuja moralidade consiste em nao trapa-

cear, em respeitar as regras internas, sem as quais 0 jogo nao

seria mais jogo. A retorica, ao contrario, e uma disciplina seria,

pois esta ligada a acao social e contribui para decisoes graves,como cohdenar ou absolver, entrar em guerra ou viver em paz,

etc. Pode-se, pois, formular a questao de sua moralidade: sera

honesto 0metodo de debater e persuadir, ou trata-se de mani-

pulacao desonesta?

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38 INTRODUC;AO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DJALETICA 39

"Se a lei nosfor favoravel"

assim ela produzira consequencias iniquas. 0 segundo e a

recusa do arbitrario, pois afinal cada urn pode invocar as leis

"nao escritas" de Antigona para revogar a lei que 0 incomoda;

e como se alguem alegasse erro medico "para passar-se por

mais habil que os medicos" (ibid.)!

S6 que a situacao nao e mais de dialetica, mas de proces-so, em que ha bens emjogo, talvez mesmo vidas. E aconselhar

o litigante a adotar, segundo a causa, ora uma tese, ora seu con-

trario, parece urn tanto amoral. Mas nao se deve esquecer que a

condicao do litigante, como alias a do politico, e de nao estar

sozinho; ele tern diante de si outro litigante, a quem compete

fazer de tudo para desmentir sua argumentacao; ambos tern por

missao preparar 0 julgamento: cada urn faz valer tudo 0 que

possa servir a sua propria causa. Quem define e 0juiz.

A ret6rica s6 e exercida em situacoes de incerteza e confli-

to, em que a verdade nao e dada e talvez jamais seja alcancada

senao sob a forma de verossimilhanca. Afinal de contas, 0de-bate entre Creonte e Antigona, entre a razao de Estado, que

exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, et ica, que se

resigna com a injustica, esse debate nao se encerrou, e pode-se

acreditar que nao nunca se encerrara,

A unica coisa que sepode fazer, na falta de urna demons-

tracao rigorosa, e confiar no debate contraditorio em que cada

orador "se esforca por detectar tudo 0 que seu caso comportade persuasivo" ...

A essa pergunta, que ainda teremos oportunidade de formu-

lar,vimos 0querespondeArist6teles: a ret6rica e urna tecnicautil,

freqiientemente indispensavel. Se seu usa as vezes e desonesto,

nao cabe censurar a tecnica, mas 0 tecnico. No entanto, lendo a

seguiros conselhos da ret6rica de Aristoteles, perguntamo-nos se

ela nao se reduz a urna manipulacao digna de sofistas. Discutire-mos esse assuntoa partir deurn exemplo concreto.

No capitulo 15do livro I, Aristoteles da conselhos ao liti-

gante sobre 0 que dizer; primeiro se a lei lhe for contraria, de-

pois se a lei lhe for favoravel. Numa primeira leitura, tem-se a

impressao de que ele legitima todas as "velhacarias de advoga-

dos". Para destacar bern isso, dispusemos os dois textos lado a

lado, invertendo ligeiramente a ordem dos argumentos, para que

cada urn corresponda a seu contra-argumento.

"Se a lei nos e desfavordvel"

- "e preciso recor rer a lei comum,com razoes mais equanimes e mais

justas";

- "dizer que a formula dojuramento

em minha alma e consciencia signi-

fica nao nos atermos estritamente aletra da lei";

- "dizer que osprincipios de eqiiida-

de sao permanentes e nunca mudam,

nem a lei comum, que e baseada na

natureza";- c itar "a lei ni io escri ta de Ant igo-

na", unico criterio dejustica das leis

escritas, alias muitas vezes ambiguas,

anacronicas ou contraditorias entre si.

- H e preciso expJicar que ninguem

[gortanto nenhuma cidade] escolhe

o bern absoluto, mas sim seu proprio

bern";

- "dizer que a formula em minha al-

ma e consciencia nao tern por objeti-

vo obter uma sentenca contraria alei, mas escusar 0 juiz de perjurio,

caso ele tivesse ignorado 0sentido

real da lei";

- "dizer que nao M diferenca entre

nao ter lei e nso recorrer aquelas que

temos!"

Conclusiio: Aristoteles enos- "dizer que querer ser mais sabio

que as leis e justamente 0 que proi-

bern es sas leis [nao escritas] que

costumam serelogiadas" (75 a).

Ret6rica e dialetica sao, pois, duas disciplinas diferentes,

mas que se cruzam como dois circulos em interseccao, A diale-

tica e urn jogo intelectual que, entre suas possiveis aplicacoes,

comporta a ret6rica. Esta e a tecnica do discurso persuasivo

que, ertttt outros meios de convencer, utiliza a dialetica como

instrumento intelectual. Pois bern, se os dois circulos podem

cruzar-se, e porque se situam no mesmo plano, e - indo mais

longe - porque pertencem em sentido estrito aomesmo mundo.

Note-se que 0 debate e propriamente dialetico, pois opoe

dois endoxa. 0 primeiro e a recusa do legalismo, em nome da

"eqiiidade" (epieikes), que poe ajustica acima do direito posi-

tivo e faz dojuiz urn arbitro, que pode corrigir a lei quando esta

"deixar de desempenhar sua funcao de lei" (ibid.), porque

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4 0 INTRODUc;:JO A RET6RICA ARIST6TELES, A RET6RICA E A DIALETICA 41

E certo que nao desempenham 0mesmo papel . "A dialeti-

ca", diz Pierre Aubenque, "refuta no real ( ... ) mas s6 demons-

tra na aparencia?". Na retorica, em que nao se sustenta uma

tese, mas se defende uma causa, em que nao se joga com ideias,

mas 0que esta emjogo no discurso e 0destino judiciario, poli-

tico ou etico dos homens, na ret6rica, e preciso levar a serio 0

"na aparencia", como verossimil que faz as vezes de uma evi-

dencia sempre inapreensivel.

Em todo caso , elas per tencem ao mesmo mundo. 0 que

significa isso?A ret6rica de Arist6teles esta bern pr6xima da ret6rica de

Is6crates em termos de conteudo. A diferenca e que em Arist6-

teles a ret6rica e uma arte situada bern abaixo da filosofia e das

ciencias exatas. Estas, "demonstrativas", atingem verdades "ne-

cessarias", que, como os teoremas, s6 podem ser 0 que sao,

possibilitando compreender e prever, A ret6rica, por sua vez,

s6 atinge 0verossimil, aquilo que acontece no mais das vezes,mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizer

que ela s6 e possivel em cer to mundo.

Para Arist6teles, existem dois mundos. Primeiro, 0mundo

divino, 0 "ceu", nao cognoscivel' pel a fe, mas, ao contrario,

pela razao demonstrativa. Es ta conhece tanto 0 divino invisi-

vel , Deus, quanta 0 divino visivel, a saber , os as tros, obje to da

astronomia matematica, vis to que seus movimentos sao neces-

sarios, portanto calculaveis e previsiveis.

Abaixo, 0mundo "sublunar", a Terra, onde existem acaso,

contingencia, imprevisibilidade, onde nunca e possivel a ciencia

perfeita, mas onde existe 0 provavel, 0 verossimil. Mundo, en-

fim, aberto it ac;:aohumana. Citemos mais uma vez Aubenque:

provavel, onde a decisao e mais ou menos justa. Mundo onde,

embora possamos "refutar no real", com uma cer teza demons-

trativa, devemos nos contentar com provas mais ou menos con-

vincentes, com opcoes mais ou menos razoaveis.

Esse mundo ja nao e nosso, dirac. Nao mesmo, porem vai

continuar sendo ainda enquanto nao tivermos chegado it cien-cia total. Ai en tao e 0homem que ja nao sera.

Quadro comparativo

Campo para

Alvo Modalidade Aristoteles Campo para nos

Demonstracao: Eu, nos Necessaria L o gi ca , c ie nc ia s L o gi ca , c ie nc ia s

saber exatas, exatas

metafisica e naturais

Dialetica: Tu Provavel Universal, Ciencias

jogo, (endoxon) principios humanas,

exercicio primeiros filosofia,

Ret6rica:

teologia

V6s Verossimil Judiciario, Os mesmos, mais

convencer (eikos) politico, pregacao,

urn publico epidictico propaganda,

publicidade

Sofistica: Impessoal, Falsa-aparencia Ilusao Idem

dominar eles

pelo logro

Num mundo perfeitamente transparente a ciencia, isto e ,onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do

que e , niiohaveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, paraa a~iiohumana".

Notas. - Para comecar, a distribuicao nao e mais identica

it de Arist6te les . A metaf isica passou para segundo plano, en-

quanto as ciencias da materia tomaram-se demonstrativas, e

referem-se ao necessar io ( fisica, quimica, etc.) . A natureza e 0

campo da sofistica nao mudaram, ainda que 0 sofista ja nao

se confesse como tal; esse e 0 campo em que se pode tomar a

"aparencia" de razao pela razao: na verdade, todos os cam-

pos! Note-se, por fim, que a sofistica, ao fingir que se dirige a

"ti", ou a "v6s" , manipula na realidade 0 "eles" ou 0 "alguem";

nao e exasamente a "ti" que 0 sofista se dirige, mesmo que

finja fazer isso, mas sim it coisa em ti.

Quanto a ret6rica, seu campo ampliou-se muito a partir

de Arist6teles, 0 que provaria a fecundidade de seu sis tema.

Nenhum lugar tambem para a re t6r ica , que e uma ar te . Mas

vivemos em urn mundo que nao e 0 da pura ciencia; em urn

mundo que nao e umjogo, mas que nem p()r isso esta submeti-

do ao cego acaso. Mundo onde a previsao e mais ou menos

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Capitulo III

o sistema retorico

Aristoteles, portanto, reabilitou a retorica ao integra-la

numa visao sistematica do mundo, onde ela ocupa seu lugar,

sem ocupar, como entre os sofistas, 0 lugar todo. Mais ainda,

Aristoteles transformou a propria ret6rica num sistema, que

seus sucessores completarao, mas semmodificar.

Passaremos, pois, ao estudo desse sistema ret6rico, nao

sem perguntar, no que se refere a cada urn deles, qual a sua re-lacao com 0homem do seculo xx.

As quatropartes da retorica

o sistema comeca com uma classificacao: a ret6rica e de-

composta em quatro partes, que representam as quatro fases

pelas quais passa quem compoe urn discurso, ou pelas quais

acredita-se que passe. Na verdade, essas partes sao principal-

mente os grandes capitulos dos tratados de ret6rica.

Quais sao elas? Para nao criar confusao, manteremos seus

nomes tradicionais, do latim.

A primeira e a invencao theuresis, em grego), a busca que

empreende 0orador de todos os argumentos e de outros meios

de persuasao relativos ao tema de seu discurso.

A segunda e a disposicao (taxis), ou seja, a ordenacao des-

ses argttIilentos, donde resultara a organizacao intema do dis-

curso, seu plano.

A terceira e a elocucao (texis), que nao diz respeito a pala-vra oral, mas a redacao escrita do discurso, ao estilo. E ai que

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44 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 45

entram as famosas figuras de estilo, as quais alguns, nos anos

60, reduziam a retorica!

A quarta e a a<;ao(hypocrisis), ou seja, a profericao efetiva

do discurso, com tudo 0 que ele pode implicar em termos de

efeitos de voz, mimicas e gestos. Na epoca romana, a acao sera

acrescentada a memoria.Essa classificacao pode parecer bern escolar: na verdade

nao e bern assim que as coisas acontecem quando se prepara

urn discurso. Pode-se ir de urna tentativa de a<;ao- proferir al-

gumas frases - para buscar em seguida argurnentos; escrever

antes de encontrar urn plano, etc. Mas pouco importa a ordem

cronologica, As quatro partes na realidade sao as quatro "tare-

fas" (erga) que devem ser curnpridas pelo orador. Se este dei-

xar de cumprir alguma delas, seu discurso seravazio, ou desor-

denado, ou mal escrito, ou inaudivel.

Portanto, urn advogado que prepare urna defesa, urn estu-

dante que prepare uma exposicao, urn publicitario que prepareurna campanha, todos deverao, se nao passarem sucessivamen-

te por essas quatro fases, curnprir pelo menos as tarefas que

cada urna delas representa: compreender 0 assunto e reunir to-

dos os argumentos que possam servir (invencao); po-los em

ordem (disposicao); redigir 0 discnrso 0melhor possivel (elo-

cucao); finalmente, exercitar-se proferindo-o (acao).

tres? Aristoteles responde: "porque ha tres especies de audito-

rio" (Retorica, 1358 a); e a necessidade de adaptar-se a elesque confere tracos especificos a cada genero: conforme as p.es-

soas a quem nos dirigimos, nao falaremos da mesma maneira,

o discurso judiciario tern como auditorio 0 tribunal; 0 delibe-

rativo, a Assembleia (Senado); 0 epidictico, espectadores,

todos os que assistem a discursos de aparato, como panegiri-

cos, oracoes funebres ou outras.

Os atos dos tres discursos nao sao osmesmos. 0judiciario

acusa (acusacao) ou defende (defesa). 0deliberativo aconse-

lha ou desaconselha em todas as questoes referentes a cidade:

paz ou guerra, defesa, impostos, orcamento, importa~o~s, le-

gislacao (cf. 1359 b). 0 epidictico censura e, na maiona das

vezes, louva ora urn homem ou uma categoria de homens, co-

mo os mortos na guerra, ora urna cidade, ora seres lendarios,

como Helena...'Aristoteles, que nunca esquece que e filosofo, mostra que

os tres generos tambem se distinguem pelo tempo. 0judiciario

refere-se ao passado,pois sao fatos passados que curnpre

esclarecer, qualificar e julgar. 0deliberativo refere-se ao futu-

ro, pois inspira decisoes e projetos. Finalmente, 0 epidictico

refere-se ao presente, pois 0orador propoe-se a admiracao dos

espectadores, ainda que extraia argumentos do passado e do

futuro.

o principal e que os valores que servem de normas a esses

discursos nao sao os mesmos. Enquanto 0judiciario diz respei-

to aojusto e ao injusto, 0 deliberativo diz respeito ao util e ao

nocivo. UtiI a quem? A cidade, e a nada mais; e 0 interesse co-letivo, nacional, pode ser perfeitamente injusto; assim, 0 ora-dor politico pouco esta preocupado em saber

Inven~ao

Antes de empreender urn discurso, e preciso perguntar-sesobre 0que ele deve versar, portanto sobre 0 tipo de discurso, 0

genero queconvem ao assunto. Veremos que essa questao do ge-

nero tambem diz respeito a interpretacao do discurso. se nao ha nenhuma injustica em reduzir povos vizinhos a escra-vidao, mesmo que eles nada tenham feito demal. (1358 b)

as Ires generos do discurso Hoje, UfiaIllOS luvas de pelica.. . Mas sera que encontramos

muitos politicos para propor medidas justas, porem nocivas a

nacao? Quanto ao epidictico, os valores que 0 inspiram sao 0

nobre e ° viI (kalon, aiskhron), valores que nada tern a ver comSegundo os antigos, os generos oratorios sao tres: judicia-

rio, deliberativo (ou politico) e epidictico. Por que exatamente

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46 INTRODU(:AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 47

o interesse coletivo, e que nao se confundem tampouco com 0

"justo", pelo menos no sentido de legal.

Aristoteles quase nao se detem nos estilos respectivos

dos tres generos; esclarece, todavia, que 0 epidictico e "0mais escrito dos tres" (1413 b, 1414 a). Em compensacao,

mostra durante longo tempo que 0 tipo de argumentacao dostres nao e 0mesmo. 0 judiciario, que dispoe de leis e se diri-ge a urn auditorio especializado, utiliza de preferencia racio-

cinios silogisticos (entimemas), proprios a esclarecer a causa

dos atos. 0 deliberativo, dirigindo-se a urn publico mais mo-

vel e menos culto, prefere argumentar pelo exemplo, que,

alias, perrnite conjecturar 0 futuro a partir dos fatos passa-

dos: Dionisio pede uma guarda; ora, todos os futuros tiranos

conhecidos da historia pediram uma guarda; logo, Dionisio

vai tomar-se tirano (1357 b). Quanto ao epidictico, recorre

sobretudo it amplificacao, pois os fatos sao conhecidos pelo

publico, e eumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando suaimportancia e sua nobreza (1368 a). Hoje em dia mesmo,

quando se faz 0 elogio de urn morto, parte-se daquilo que to-

dos conhecem, para exaltar seus meritos e calar 0resto.

Alias, mesmo que 0epidictico e 0deliberativo tenham igual

conteudo, assumirao modalidades diferentes. Quando 0delibe-

rativo aconselha: "/

sentimento civico e patriotico. Pronunciado, alem do mais,

durante jogos entre cidades (por exemplo, Olimpiada), refor-

cou nos gregos 0sentimento de pertencer a uma mesma eultura

que estava acima de todas as guerras intestinas (ef. 6 Gregos!

de Gorgias, 1414 b). Em suma, 0 epidictico nao dita uma esco-

lha, mas orienta escolhas futuras.Significa dizer que ele e essencialmente pedag6gico. No

vastissimo terreno que abre, os sucessores de Arist6teles in-

cluirao a hist6ria, essa "mem6ria dos grandes feitos do passa-

do". Mais tarde, na era crista, 0genero epidictico sera enrique-

cido com toda a pregacao religiosa.

o fato e que a teoria dos tres generos hoje e bem mais res-

tritiva; ha tantos outros tipos de discursos persuasivos alem des-

ses tres! Mas 0merito de Arist6teles foi mostrar que os discur-

sos podem ser classificados segundo 0audit6rio e segundo a fi-

nalidade. Voltaremos a essa questao no capitulo VII.

Nao nos devemos gabar daquilo que devemos it sorte,

Os tres generos do discurso

Auditorio Tempo Ato Va/ores Argumento-tipo

Judiciario Juizes Passado Acusar Justo Entimema

(fatos por Defender Injusto (dedutivo)

julgar)

Deliberativo Assembleia Futuro Aconselhar Util Exemplo

Desaconselh ar Nocivo (induti vo)

Epidictico Espectador Presente Louvar Nobre Amplificacao

Censurar Viiepidictico descreve:

Ele nao se gabou daquilo que devia it sorte. (1368 a)

Os tre s tip os d e a rg um en to : e to s, p alo s, lo go s

Pergunta: sera mesmo que 0genero epidictico faz parte da

ret6rica, admitindo-se que esta s6 diz respeito aos diseursos

persuasivos?

De fato, como mostraram tao bern Perelman- Tyteka (TA,

§§ 11 e 12), 0 epidictico e persuasivo, mas a longo prazo, aoversar sobre problemas que nao exigem decisoes imediatas.

Usando 0 exemplo para fazer 0elogio de certo her6i, reforca 0

Determinado 0 genero do discurso, a primeira tarefa do

orador e encontrar argurnentos.AriS\6teles define tres tipos de argumentos, no sentido ge-

neralissimo de instrumentos de persuadir (pisteis): etos e patos,

que sao de ordem afetiva, e logos, que e racional.

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48 INTRODu(;AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 49

o etos e 0 carater que 0orador deve assumir para inspirarconfianca no auditorio, pois, sejam quais forem seus argumen-

tos logicos, eles nada obtem sem essa confianca:

Por isso e que sua eqiiidade e praticamente a mais eficaz

das provas. (1356 a)

etos e 0patos como dois tipos de afetividade: a primeira calma,

comedida, duradoura, submetida ao controle mental; a segunda

subita, violenta, irreprimivel, portanto irresponsavel. Quinti-

liano, como a retorica ulterior, distingue bern dois tipos de afe-

tividade, mas sem definir nitidamente que urna e do orador e a

outra do auditorio.Em todo caso, a retorica criou urna verdadeira psicologia,

de que tirara proveito toda a literatura, em particular 0 teatro.

Toda a analise dos sentimentos e das paixoes derivada retorica.

Se 0 etos diz respeito ao orador e 0 patos ao auditorio, 0

logos (Aristoteles nao emprega esse termo, que utilizamos para

simplificar) diz respeito Iiargumentacao propriamente dita do

discurso (cf. 1356 a). E 0 aspecto dialetico da retorica, que

Aristoteles retoma inteiramente dos Topicos.

Como em Topicos, distingue dois tipos de argumentos, 0

entimema, ou silogismo baseado em premissas provaveis, que

e dedutivo, e 0 exemplo, que a partir dos fatos passados con-clui pelos futuros, e que e indutivo. As premissas provaveisdos entimemas sao: ou verossimilhancas (eikota), como por

exemplo que urn filho ama 0 pai, ou indicios seguros, como

por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indi-

cios simples, como por exemplo que a presenca de cinza indica

que houve fogo. Voltaremos a esses diversos argurnentos no

capitulo VIII.

Como entao dispor favoravelmente 0auditorio? E verdadeque a resposta depende do proprio auditorio, cujas expectativas

variam segundo a idade, a competencia, 0nivel social, etc. 0

orador, portanto, nao tera 0mesmo etos se estiver falando com

velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em

todo caso, ele deve preencher as condicoes minimas de credibi-

lidade, mostrar-se sensato, sincero e simpatico. Sensato: capaz

de dar conselhos razoaveis e pertinentes. Sincero: nao dissimu-

lar 0 que pensa nem 0 que sabe. Simpatico: disposto a ajudar

seu auditorio (cf. II, 1, 1377b e tambem 1366a).Note-se que etos e urn termo moral, "etico", e que e defi-

nido como 0 carater moral que 0 orador deve parecer ter,

mesmo que nao 0 tenha deveras. 0 fato de alguem parecer sin-

cero, sensato e simpatico, sem 0 ser, e moralmente constrange-dor; no entanto, ser tudo isso sem saber parecer nao e menos

constrangedor, pois assim as melhores causas estao fadadas ao

fracasso.

o patos e 0 conjunto de emocoes, paixoes e sentimentos

que 0 orador deve susci tar no auditorio com seu discurso.

Portanto, ele precisa de psicologia, e Aristoteles dedica boa

metade de seu livro II Iipsicologia das diversas paixoes - cole-ra, medo, piedade, etc. - e dos diversos caracteres (dos ouvin-

tes), segundo a idade e a condicao social. Aqui, 0 etosja nao eo carater (moral) que 0orador deve assumir, mas 0carater (psi-

cologico) dos diferentes publicos, aos quais 0 orador deve

adaptar-se.

No entanto, ha nisso eerta ambigiiidade de que sofrera a

retorica ulterior. Quintiliano (VI, 2, 12 s.) dedica tambem urn

longo estudo ao etos e ao patos, termos que ele mantem em

grego, alegando (eomo nos) que sao intraduziveis. Define 0

Provas extrinsecas e pro vas intrinsecas

Na realidade, 0 orador dispoe de dois tipos de provas: as

atekhnai, ou seja, extra-retoricas, e as entekhnai, ou seja intra-

retoricas. Vamos denomina-las, respeetivamente, extrinsecas e

intrinsecas (no seculo XVII, eram traduzidas por naturais e ar-

tificiais).

Asprovas extrinsecas sao as apresentadas antes da inven-

cao: testemunhas, confissoes, leis, eontratos, etc. Do mesmo

modo, num discurso epidietico, tudo 0que se sabe da persona-

gem eujo elogio se faz.

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50 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 51

As provas intrinsecas sao as criadas pelo orador; depen-

dem, pois, de seu metodo e de seu talento pessoal, sao sua ma-

neira propria de impor seu relatorio. Vimos isso no capitulo

anterior: 0 texto-lei , prova extr inseca, pode ser objeto de urna

argumentacao intrinseca contradi toria, conforme essa lei seja

favoravel ou desfavoravel ao orador (cf. supra, p. 50); do mes-mo modo, quem nao tiver testemunhas dira que os testemunhos

sao subjet ivos, muitas vezes comprados, e que e melhor julgarsegundo as verossimilhancas (cf. 1376 a). 0orador transforma

assim sua desvantagem em vantagem.

Nurn elogio funebre, as provas extrinsecas sao aquilo que

se sabe do defunto, que nem sempre e bonito; 0 argumento in-

trinseco e a amplif icacao, que tira partido das provas extr inse-

cas:

zir " lugar" por argurnento. Mas lembremos que esse termo tern

pelo menos tres sentidos, que exporemos por niveis de tecnici-

dade.

1) No sentido mais antigo e mais simples, 0 lugar e urn ar-gumento pronto que 0defensor pode colocar em determinado

momenta de seu discurso, muitas vezes depois de 0 ter apren-dido de cor. Numa forma menos rigida, esses lugares sao en-

contrados em toda a retorica antiga. Assim, no discurso judi-

ciario, os lugares da peroracao que conc1uem a acusacao:

Se deixardes impune 0 seu crime, haven! multidoes de imi-

tadores. Muitos esperam com impaciencia 0 vosso veredicto.

(Chaignet, p. 132,e Navarre, p. 305)

transforrnar 0 impetuoso em franco, 0 arrogante em respeitavel,

o temerario em bravo, 0prodigo em liberal. (1367 b)

Como lugares de amplificacao, servem para persuadir os

juizes de que a causa ultrapassa a pessoa do reu, que ela com-

promete 0 futuro.

Urn lugar das defesas modernas e 0da infdncia injeliz, quepermite charnar it baila circunstancias atenuantes. No seculo

XVII, servia, ao contrario, it acusacao, pois via-se na infancia

infel iz do acusado indicios de que ele sempre fora pervert ido, e

que so poderia reincidir; essa nao era urna prova de que ele era

escusavel, mas ao contrario irrecuperavel (cf. A. Kibedi-Varga,

1970, p. 145).

No primeiro sentido, 0 lugar e , po is, urn argumento-tipo,cujo a1cance varia segundo as culturas. Sao encontrados no dis-

curso epidictico: os melhores sao os que partem ...; tambem se-

rao vistos no discurso publicitario.

2) Em sentido mais tecnico, 0 lugar ja nao e urn argumen-to-tipo, e urn tipo de argumento, urn esquema que pode ganhar

os conteudos mais diversos. Por exemplo, 0 lugar do mais e do

menos:

Moliere retomou esse procedimento nurna cena do Misan-

tropo, descrevendo a retorica do arnor, que transforma os defei-

tos da amada em "perfeicoes":

A magra 0que tern e altura e liberdade;A gorda ternporte cheio demajestade; (...)

A altiva tern a alma digna duma coroa;

A patife e perspicaz, e a tola e tao boa. (II,5)/1

/

Logro? Sabe-se la: quem disse, e com que direito, que ele

era temerario e nada mais, que ela era tola e nada mais? Fala-sede objetividade, mas essa nao e tantas vezes a mascara da

malevolencia? Em todo caso, e dificil conhecer alguem que,

nesse dominio das relacoes humanas, possa ser realmente obje-

tivo.

Os lugares (t'topoi ")

Seos deuses nao sao oniscientes, muito menos os homens.

EleBate nos vizinhos, pois bate no pai. (Ret6rica, II, 1397b)

Como encontrar os argumentos? Por lugares. Esse termo etao corrente quanta obscuro. Na duvida, pode-se sempre tradu-

Ou, de modo posi tivo, todos os lugares do tipo:

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52 INTRODUf:;JO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 53

Quem pode 0mais pode 0menos. (1392 a, b)

Considera-se que ninguem ignora a lei.

Uma lei nao pode serretroativa.

Vejamos urn exemplo simples: urn estudante que precisa

fazer urna dissertacao nao sabe ainda se vai adotar urn plano

por perguntas ou urn plano por tese-antitese-sintese; 0 proprio

fato de interrogar-se assim so e possivel atraves de urn lugar: a

questao dos tipos de planos!

Esse terceiro sentido da palavra lugar e muito notado numlugar proprio do genero judiciario, 0do estado da causa (stasis,

status). Suponhamos que alguem e processado por urn crime: a

acusacao e a defesa vao propor-se as mesmas perguntas, que a

antiga retorica sintetiza em quatro:

1.Estado de conjectura: ele matou realmente?

2. Estado de definicao: trata-se de crime premeditado, nao

premeditado, de homicidio involuntario?

3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido 0

crime voluntario, quais sao as circunstancias que podem acusar

ou escusar 0reu: motivo patriotico, religioso?

4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se 0 tribu-nal e realmente competente , se a instrucao foi suficiente, etc .'

Naturalmente, 0 lugar no sentido de questao tambem pode

ser urn lugar-comum, no sentido de que, sobre qualquer espe-

cie de assunto, podemos interrogar sobre 0 tipo de ser, os tipos

de causas, etc. Mas, no terceiro senti do, 0 lugar e sempre urna

questao que permite encontrar argurnentos que sirvam a tese,inventar as premissas de urna conclusao dada.

Esta exposicao, que desejamos tao clara quanta possivel ,

ficara incompleta se nao considerarmos 0que se tomou 0 lugar

depois de Arist6teles: termo abrangente que se aplica aos dados

mais heterocli tos. Assim, na ret6rica medieval, teremos topoi,especies de trechos esperados e ate obrigatorios, como 0 lugar

da modestia afetada; 0 lugar do puer senilis, da crianca ajuiza-

da como urn velho; 0 lugar da paragem agradavel, da paisagem

paradisiac a; 0 lugar dos impossiveis:

Altamente verossimil, esse lugar do mais e do menos esta

longe de ser evidente, porem; como toda verossimilhanca,

pode ser contestado. Seria incontestavel se aplicado a realida-

des homogeneas, como por exemplo 0dinheiro: quem pode darmil francos pode dar cern; mas isso nao despertar ia interesse. Einteressante quando se aplica a dados heterogeneos, como por

exemplo aos saberes e aos poderes; mas ai deixa de ser eviden-

teo Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de

quem sabe mais; 0mesmo para 0poder: urna enfermeira pode

coisas que urn medico nao pode, etc. Quem pode 0mais nao

pode necessariamente 0menos.

Classicamente, da-se a esses lugares 0 nome de "luga-

res-comuns", pois se aplicam a toda especie de argumenta-

cao; no caso atual nao passa de opiniao banal expressa de mo-

do estereotipado, enquanto 0 lugar comum classico e urn es-quema de argumento que se aplica aos dados mais diversos.

Tecnicamente, opoe-se ao lugar pr6prio, tipo de argumento

particular a urn genero de discurso. Assim os lugares judi-

ciarios:

Note-se, alias, que 0 segundo depende do primeiro; de fato,

uma lei retroativa aplica-se a pessoas que nao poderiam conhe-

ce-la, pois ela nao existia no momento em que essas pessoasagiraml

3) No sentido mais tecnico, 0 dos Topicos, 0 lugar nao eurn argumento-t ipo nem urn tipo de argumento, mas uma ques-

tao t ipica que possibil ita encontrar argurnentos e contra-argu-

mentos:

os lugares (...) sao como etiquetas dos argumentos, sob as quais

vamos buscar 0 que ha para dizer num ou noutro sentido, (Ci-

cero, Orador, 46)

o fo~o queima dentro do gelo,

o sorficou negro. (Theophile de Viau)

Lugar que se encontra nos panfletos: teremos visto tudo!

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54 INTRODUC;AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 55

Existem igualmente lugares metafisicos, lugares teol6gi-

cos (a autoridade da Escritura e dos concilios) , lugares risi-• 3

velS...

Finalmente, lugar e tudo 0 que possibilita ou facilita a in-

vencao, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invencao

deixa de se-lo a medida que setorna facil!

A disposicao, em si, e urn lugar, ou seja, urn plano-tipo ao

qual se recorre para construir 0 discurso. A ret6rica classica

quase nao fala da disposicao do discurso judiciario. Em que

pode ela nos interessar? Unicamente pela(s) func;ao(c;oes)de-

sempenhada(s) por cada uma de suas partes.

Os autores propuseram diversos planos-tipo, que iam deduas a sete partes. Ficaremos com 0 mais classico, em quatro

partes: ex6rdio, narracao, confirmacao e peroracao.Observacoes sobre a invenciio

Na realidade, a propria nocao de invencao pode parecer-

nos muito ambigua. De fato, ela se situa entre dois p610s opos-

tos. Por urn lado, e 0 "inventario", a deteccao pelo orador detodos os argurnentos ou procedimentos retoricos disponiveis.

Por outro, e a "invencao" no sentido moderno, a criacao de ar-gumentos e de instrumentos de prova; ate 0 etos, explica Aristo-

teles, a confianca inspirada pelo orador, deve ser "obra de seudiscurso" (1356 a); em outras palavras, 0 importante nao e 0

carater que ele ja tern, e que 0 audit6rio conhece, mas e 0 cara-ter que ele cria.

Invencao inventario, que hoje se poderia deixar a cargo de

urn computador, ou invencao criacao? Na realidade, talvez se-

jamos nos que criamos urna oposicao onde os antigos nao a

viam. Nao imaginavam criacao ex nihilo, e achavam que qual-

quer invencao e feita, por urn lado, a partir de materiais dados(lugares extrinsecos) e por outro de regras mais ou menos estri-

tas (lugares intrinsecos); mas achavam tambem que com ela a

criatividade do orador, longe de desvanecer-se, afirma-se aindamais. Originalidade, sim, mas como fruto da arte, ou seja, de

urna pratica e de urn ensino.

E xo rd ia ( rp ro oi mi on " , p ro em io )

Disposi~io ("taxis")

Exordio e a parte que inicia 0 discurso, e sua funcao e es-

sencialmente fatica: tornar 0 auditorio d6cil, atento e benevo-

lente.Docil significa em situacao de aprender e compreender; por

isso, e preciso fazer urna exposicao clara e breve da questao que

vai ser tratada, ou ainda datese que sevai tentar provar.

Atento: nesse ponto os antigos multiplicavam procedi-

mentos - dizer que nunca se ouviu nem viu nada de tao espan-

toso ou de tao grave -, procedimentos infladores, pois osjuizes

deviam ficar bern cansados com eles! Alias - observa Aristote-

les -, 0 exordio e 0 momento do discurso que exige menos

atencao; nas partes seguintes, ao contrario, a atencao tende a

relaxar-se, sendo preciso renova-la.

Benevolente: e ai que 0 etos assume toda a sua impor-

tancia. Urn dos lugares mais correntes consistia em escusar-se

da propria inexperiencia e em louvar 0 talento do adversario

(cf. Navarre,pp. 223 s.)

A ret6rica do exordio se aplica aos outros generos de dis-

curso? Aristoteles afirma que 0 deliberativo quase nao precisa

do exordio, pois 0 audit6rio ja sabe do que se trata. Quanto ao

epidicti$o, 0 ex6rdio consiste em fazer 0 audit6rio sentir que

esta p~s;oalmente implicado no que se vai dizer, em inclui-lo

no fato (cf.Retorica, 1415 b).A retorica do ex6rdio consiste as vezes em suprimi-lo,

em ir direto ao que interessa. Assim, 0 celebre ex abrupto

Para definir com outros termos, a ret6rica apresenta-se

como urn codigo a service da criatividade. E esse duplo aspec-

to se encontra em suas outras partes, mais propriamente esteti-

cas e literarias que a invencao.

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56 INTRODUf;AO A RET6RICAo SISTEMA RET6RICO 57

de Cicero: "Ate quando, Catilina, vais abusar da nossa pa-

ciencia?"

Hoje em dia, completaremos essa teoria do ex6rdio com

duas consideracoes. Primeiro, a fala improvisada, sobretudo

em lugar publico, quando a intervencao nao e programada: e

preciso toda uma arte para fazer-se admitir, ou seja, ouvir. De-pois, 0 discurso escrito: urn livro deve captar a benevolencia ja

na primeira pagina; se deve, como?

E evidente que a maneira de apresentar os fatos ja e, em si,

urn argumento.

o que acontece com a narracao nos outros dois generos?

No deliberativo - diz Arist6teles - ela quase nao tern razao de

ser , pois es~e discurso trata do futuro; no maximo, pode forne-

cer exemplos. No epidict ico, ao contrario, e tao importante queha interesse em dividi-Ia segundo as questoes: os fatos que ilus-

tram a coragem, os que ilustram a generosidade, etc.

Na Idade Media vai constituir-se uma nova ret6rica da

narracao; desliga-se do genero judiciario, mas insere-se na da

pregacao, com os exempla, hist6rias geralmente fict icias que

ilustram 0tema do sermao, Hoje em dia a publicidade e, princi-

palmente, a propaganda utilizam narracoes breves, tambem a

titulo de exemplos.

Narraciio ("diegesis ")

A narracao e a exposicao dos fatos referentes a causa, ex-

posicao aparentemente objet iva, mas sempre orientada segun-

do as necessidades da acusacao ou da defesa. 0 fato e que, se

na o for objetiva, devera parecer. E e na narracao que 0 logos

supera 0 etos e 0 patos. Para ser eficaz, deve ter tres qualida-des: clareza, brevidade e credibilidade.

Como ser claro? Ao mesmo tempo pelos termos emprega-

dos e pela organizacao do texto, de preferencia cronol6gica,

mas recorrendo as vezes aos retornos, aosflash-backs.

Como ser breve? Eliminando tudo 0 que seja inutil, todos

os fatos anteriores ao caso, todas as circunstancias que nao

esclarecam nada, mostrando que no fundo tudo leva aquilo . ..

Como ser crivel? Enunciando 0 fato com suas causas,

sobretudo se 0 fato na o for verossimil; mostrando que os atos

se afinam com 0 carater de seu autor, com tudo 0 que se sabe

dele:)

Confirmaciio ("pis tis ")

Conselhos especiais para narracoes falsas: cuidar para que

tudo 0que se inventa seja possivel e nao seja incompativel nem

com a pessoa, nem com 0 lugar, nem com 0 tempo; vincular, se

cabivel, a ficcao a algo de verdadeiro; evitar cautelosamente

qualquer contradicao (...) e niioforjar nada que possa ser refuta-

doporuma testemunha. (0. Navarre, pp. 248-249)

Em seguida vern uma parte ni tidamente mais longa, a con-

firmacao, ou seja, 0 conjunto de provas, seguido por uma refu-

tacao (confutatio), que destr6i os argumentos adversaries.

Com a invencao, vimos os dois grandes tipos de argumen-

tos, 0 exemplo e 0 entimema. Convem precisar que a amplifi -

cacao, pr6pria do genero epidict ico, pode tambem servir a con-

firmacao judiciaria; como dira Cicero, ela permite amp liar 0

debate, remontar da "causa" a "questao" (thesis) que the esta

subjacente; assim, alem dessa traicao, propor 0 problema da

confianca, da patria, etc. (cf . Do orador, 46).Tempo forte do logos, a confirmacao recorre, porem, ao

patos, despertando piedade ou indignacao.

Note-se, com O. Navarre, que a confirmacao nem sempre

esta separada da narracao. Nos oradores classic os do seculo.

IV (Iseu, Is6crates , Dem6stenes), acontece de 0discurso intei-

ro apressntar-se como uma unica narracao, em que cada se-

quencia constitui uma prova. Assim, em Eginetica, defesa de

urn herdeiro cuja heranca e contestada por uma parenta, Is6-

crates expoe os fatos passados, mostrando sucessivamente tres

Na verdade, basta ref leti r nas regras da narracao falsa para

ver que sao as mesmas da verdadeira; no primeiro caso, s6 epreciso aplica-las de maneira mais estrita.

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58 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 59

coisas: 1) 0testamento e legal; 2) e justo, e Isocrates prova is so

narrando os inumeraveis servicos prestados pelo herdeiro ao

defunto; 3) ele tern bons sentimentos, po i s respeita os legiti-

mos interesses da familia'.

Em suma, narracao e confirmacao sao duas tarefas que 0

orador deve curnprir, mas nada 0obriga a realiza-las sucessiva-mente. Quintiliano dira, alias (II, 13, 7), que impor urn plano-

tipo ao orador e tao estupido quanto impor uma estrategia- tipo

a urn general! No fundo, pouco importa em que ordem 0gene-

ral e 0 orador atingem seus objetivos, 0 importante e que os

atinjam.

Existe urna outra questao no que se refere a confirmacao:

e a da ordem dos argurnentos. Deve-se comecar pelos mais fra-

cos e acabar pelos mais fortes? Nesse caso, ha 0risco de cansar

o auditorio. Optar pela ordem inversa? Mas 0 auditorio nao

entendera bern, achara que estao sendo queimados cartuchos a

toa, esquecera a forca dos primeiros argumentos. Cicero, emDo orador (II, § 313), preconiza a ordem "homerica", que con-

siste em comecar pelos argumentos fortes, continuar com os

mais fracos e terminar com outros argumentos fortes. Mas esse

plano supoe que 0 orador tern urn mimero suficiente de argu-

mentos fortes para reparti-Ios assim.

Perelman-Tyteka (TA, p. 661) afirmam que a forca de urn

argumento e urna nocao relativa, pois urn argumento e mais ou

menos forte em funcao dos que 0precederam. Portanto, parte-

se de urn argumento cuja forca nao dependa da dos outros; ou

ainda de urn contra-argumento que refute urna objecao que

pese sobre qualquer argumento possivel, como por exemplo aafirmacao de que 0 orador e desonesto e ) venal, 0 que toma

suspeito tudo 0que ele disser. Em nossa opiniao, convem con-

testar a propria ideia da pluralidade de argumentos; cada dis-

curso so teria urn unico argumento capaz de conquistar a deci-

sao, e os outros nao passariam de maneiras diferentes de apre-

sentar ou nao seriam mais que contra-argumentos que respon-

deriam as objecoes possiveis. Assim, remetemos a dupla argu-

mentacao de Aristoteles em Retorica, I, 15 (cf. supra, p. 50).

Nos dois casos, desenvolve-se urn argurnento unico apresen-

tando diversos aspectos seus e refutando os argumentos con-

trarios,

Se nos at ivermos a ordem "homeric a", teremos 0 seguin-

te: 1) apresentacao do argumento; 2) refutacao dos contra-ar-

gurnentos; 3) retomada do argumento com nova forma.

Essa tese do argurnento unico e provada a contrario: urndiscurso que acurnula argumentos diferentes , sem nexos entre

si, parecera .estar lancando mao de qualquer expediente, por-

tanto ser de ma-fe.

Note-se que, em Roma, a confirmacao freqiientemente

era seguida por uma altercacao, breve debate com a parte ad-

versaria,

Digressiio (t'parekbasis") eperoraciio ("epilogos")

No discurso judiciario, preve-se urn momento de "relaxa-mento", a digressao, trecho movel, "destacavel", como diz

Roland Barthes, que se pode colocar em qualquer momento

do discurso, mas de preferencia entre a confirmacao e a pero-

racao.

Narrat iva ou descricao viva (ekphrasisi, a digressao tern

como funcao distrair 0 auditorio, mas tambem apieda-lo ou

indigna-lo; pode ate servir de prova indireta quando feita como

evocacao historica do passado longinquo. Hoje em dia, esse

termo tomou-se pejorat ivo. Os professores, em particular , es-

tigmatizam a digressao, ainda que a util izem a vontade em suas

aulas, alias de pleno direito'.A peroracao e 0que se poe no fim do discurso. Alias, po-

de ser bastante longa e dividir-se em varias partes . Mencione-

mos as principais.

1) Amplificacao (auxese, importada do genero epidicti -

co. Se 0 acusador, por exemplo, tiver mostrado a realidade do

delito/jasistira entao em sua gravidade, mostrara que e vital

para a cidade castigar 0 culpado de maneira exemplar , ao pas-

so que absolve-lo seria incitar outros a imita-lo (cf. Navarro,

pp. 307 s.).

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6 0 INTRODUr;AO A RET6RICAo SISTEMA RET6RICO 61

2) Paixao, trecho que visa a despertar piedade ou indigna-

~ao no audit6rio. Assim, a ap6strofe de Cicero a Verres:Elocucao ("h!xis")

Se teu pai houvera dejulgar-te, grandes deuses, que pode-

ria e1efazer? (in Quintiliano, VI, 1,3)

A elocucao, em sentido tecnico, e a redacao do discurso. Das

quatro partes da ret6rica, diz-nos Cicero' que esta e a mais pro-pria ao orador, aquela em que ele se exprime com? tal. Tese esta

que vale para toda producao literaria: faco um livro; p~sso ter

muitos conhecimentos e muitas ideias, um plano magnifico, mas

meu livro nada sera enquanto eu nao 0 tiver escrito; e, quem sabe

se, uma vez escrito, nao exibira outras ideias e plano bern diferen-

te do que eu tivera no inicio? 0 verdadeiro salto criador esta entre

a obra escrita e aquilo que a prepara.

3) Recapitulacao (anacefalease), que resume a argumen-

tacao. Notemos que uma conclusao nao deve constituir urn no-

vo argumento, pois nesse caso nao passaria de uma parte a

mais, e 0discurso careceria de unidade.

Note-se, enfim, que a peroracao e 0 momenta por exce-

lencia em que a afetividade se une it argumentacao, 0que cons-

titui a alma da ret6rica.

Lingua e estilo: uma artefuncional

Par que a disposiciio?A elocucao e, pois, 0ponto em que a ret6rica encontra a

literatura. Todavia, antes de ser uma questao de estilo, diz res-peito it lingua como tal. Para os antigos, 0 primeiro pro!,lema

da elocucao e 0da correcao lingiiistica. 0 orador deve por-se a

servico, ou melhor, sentir-se responsavel por aquilo que os gre-

gos chamavam de to hellenizein, os latinos de latinitas, e que

traduziriamos por "born vernaculo". Naquelas culturas , em que

o ensino ainda estava pouco desenvolvido, as exigencias da

arte orat6ria fixaram a lingua como instrumento indispensavel

para quem se quisesse fazer entender por todos. Hoje em dia

tambem, quem quiser persuadir 0 grande publico nao po~:ra

permit ir-se incorrecoes nem preciosismos, salvo em ocasioes

muito precisas. .,A ret6rica foi a prime ira prosa literaria e durante muito

tempo permaneceu como a unica; por isso, precisou distin~uir-

se da poesia e encontrar suas pr6prias normas. Por que? Afinal ,

urn discurso poetico pode ser perfeitamente convincente. S6

que a poesia grega utilizava uma lingua arcaizante, bastante

esoterica e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portan-

to, era pr~ciso recorrer it prosa, mas a uma prosa digna de riva-

lizar com a poesia. Em suma, entre 0hermetismo dos poetas e

o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa orat6ria devia encon-

trar suas pr6prias regras.

o plano antigo do discurso judiciario e muito particular,

mas nos apresenta 0 problema da uti lidade da disposicao: afi-

nal, por que fazer urn plano? A nosso ver, por tres raz6es.

A disposicao tern primeiramente uma funcao economica:

permite nada omitir sem nada repet ir ; em suma, possibil ita que

o orador "se ache" a cada momenta do discurso.

Depois, quaisquer que sejam os argumentos que organize, a

disposicao e em si mesma um argumento. Gracas a ela, 0orador

faz 0audit6rio encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que esco-

lheu, conduzindo-o assim para 0objetivo que propos. Essa meta-

fora do caminhoeconfirmada por termos como "preambulo"

(sinonimo de ex6rdio) ou "digressao" (desvio do rumo).

Finalmente, a disposicao tern fun~~o heurist ica, por per-

mitir interrogar-se metodicamente. Pois, em suma, 0que e fa-zer um plano? E formular-se uma serie de perguntas distintas,

const ituindo cada uma delas uma parte ou uma subparte . Saber

fazer urn plano e saber fazer-se perguntas e trata- las uma ap6s

outra, agindo de tal modo que cada uma delas nasca da respos-

ta precedente. E por isso que acreditamos - talvez de acordo

com os antigos - que 0 verdadeiro plano, 0plano organico, so

aparece ap6s a redacao, a elocucao,

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62 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 63

Estas' diziam respeito a escolha das palavras e a constru-<;aodas frases, 0 que produzia um discurso ao mesmo tempo

correto e bonito; mas sera mesmo que essas coisas sao diferen-

tes? Para os antigos, parece que correcao e beleza nao eram

separaveis. De qualquer modo, 0 fato e que a prosa oratoriadeve distinguir-se ao mesmo tempo da poesia e da prosa vul-

gar. Para isso: escolher as palavras no vocabulario usual, evi-

tando tanto arcaismos quanto neologismos; utilizar metaforas e

outras figuras, desde que sejam claras, ao contrario das dos

poetas; evitar qualquer frase metric a, como os versos dos poe-

tas, e qualquer frase arri tmica, para encontrar frases com ritmo

flexivel e sempre a servico do sentido.

Portanto, a retorica criou uma estet ica da prosa, uma este-

t ica puramente funcional, da qual tudo 0 que e imitil e exclui-

do, em que 0minimo efeito de esti lo se just if ica pela exigencia

de persuadir, em que qualquer art if ic io gratui to engendra pre-

ciosismo ou vulgaridade.o que conservar dessas consideracoes sobre 0 esti lo? A

nosso ver, tres pontos, que correspondem respect ivamente aos

tres poles do discurso: assunto, auditor io e orador.

omelhor estilo, ou seja, 0mais eficaz, e aquele que se adap-ta ao assunto. 1880 significa que ele sera diferente conforme 0

assunto. Os lat inos distinguiam tres generos de est ilo: 0 nobre

(grave), 0 simples (tenue) e 0 ameno (medium), que d e l lugar aanedota e ao humor. 0orador eficaz adota 0estilo que convem a

seu assunto: 0nobre para comover (movere), sobretudo na pero-

racao; 0 simples para informar e explicar (docere), sobretudo na

narracao e na confirmacao; 0 ameno para agradar (delectare),sobretudo no exordio e na digressao. A primeira regra e, portan-

to, 0da conveniencia (prepon,decorumv,:)

A segunda regra e a da clareza, em outras palavras, a

adaptacao do estilo ao auditorio. Pois a clareza e relativa: 0

que e claro para urn publico culto pode parecer obscuro para

quem e menos culto e infantil para especialistas. Ser claro e

por-se ao alcance de seu auditorio concreto. Agora, sera pos-

sivel falar de clareza em si? Em todo caso, pode-se falar da

obscuridade em si: a do discurso que nenhum auditorio pode

realmente penetrar, visto que seus termos e sua construcao

padecem de ambigii idade intrinseca. Certos oradores, em ma-

teria de politica, diplomacia, publicidade, utilizam essas

ambigii idades para esquivar-se aos problemas mais embara-

cosos ou entao para conjugar publicos diversos. Admitindo-

se que a honestidade permite esse tipo de manobra, ainda cum-

pre que ela seja consciente, que a obscuridade seja decorrente

de uma decisao, e nao, como quase sempre acontece, da im-

potencia. Quanto ao resto, fiquemos com estas palavras de

Quintiliano:

A primeira qualidade da fala e a clareza, e quanto menos

talento se tern, maior e 0 esforco para guindar-se e inflar-se,

assim como os nanicos que se alevantam nas pontas dos pes.

(11,3,8)

Estilo Objetivo Prova Momento do diseurso

nobre = grave comover = movere patos Pero racao (paixao),

digressao

simples = tenue explicar = doeere log os N arracao, c onfirm acao ,

recapitalucao

ameno = medium agradar = deleetare etos Exordio, d ig ressao

A terceira regra diz respeito ao proprio orador, que deve

mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, di-

namico, imprevisto, engracado ou caloroso, numa palavra:

vivaz. Essa regra da vivacidade tomamos de emprestimo a um

pastor retorico do s ec ulo X VIII, G . Campbell , que a expoe como termo vivacity. Para ser vivaz, e preciso observar regras de

esti lo bern precisas . Primeiro, a escolha das palavras, sempre

que possivel concretas: deve-se preferir "fonte" a "origem",

"aqui jaz Alexandre" a "aqui jaz 0 corpo de Alexandre". De-

pois, 0 ritmo das palavras, ao qual voltaremos. Finalmente, a

brevida~, que const itui a forca das maximas:

Todos querem viver muito, mas ninguem quer viver velho.

(Swift, citado, p. 337)

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64 INTRODUr;AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 65

Em suma, nao so se fazer entender, mas tambem fazer-se "sa-

borear" (relish, p. 237).

Essas regras, porem, nao passam de linhas gerais: evitar

ser redundante, inutilmente abstrato, etc. 0 sabor do discurso

nao seganha com regra algurna; quem 0faz e 0autor.

A vivacidade e capital para 0 etos, pois ela toma 0 discur-

so marcante, agradavel, cativante; e, principalmente, confere-

lhe 0 indispensavel cunho de autenticidade. 0 verdadeiro estilo

e 0do discurso onde e possivel encontrar 0 seu autor.

sivo transforma-la no trace distintivo da retorica. Dirac que 0

latim de Cicero constitui urn desvio em relacao a lingua latina?Na verdade, a retorica nao se reduz a figuras, que so consti-

tuem urna parte de urna parte deurna de suas partes.

Pois bern, cumpre definir as proprias figuras como des-

vios? A primeira vista, sim. A metafora desvia-se do sentidoproprio, substituindo 0 significado por urn outro que the e se-

melhante; assim tambem a ironia, que substitui 0 significado

por urn que the e contrario:

Figuras (t'schemata ")e 0problema do desvio

- esse leila,por esse homem valente =metafora;

- esse leila,por esse homem covarde =ironia.

Campbell demonstra que a vivacidade depende das figu-

ras. 0 Evangelho, em vez de dizer os reis mais gloriosos, em-

prega urna personificacao: "Salomao em toda a sua gloria ...", 0

que e bern mais vivaz.

Durante muito tempo os antigos trataram as figuras como

meios de exprimir-se de modo marcante, com encanto e emo-

~ao. Tentaram classifica-las, mas nao chegaram a entender-se

(nem nos, alias). Fiquemos com a classificacao mais simples, a

de Cicero, que distingue as figuras de palavras, como 0trocadi-

lho e a metafora, das figuras de pensamento, como a ironia ou a

alegoria. Voltaremos a falar mais detidamente sobre as diversas

figuras.

Por enquanto, proporemos a questao de saber se e possivel

definir figura sem introduzir a nocao de desvio, como porexemplo na metafora: desvio do sentido derivado em relacao

ao sentido proprio. A teoria do desvio conheceu seu momenta

de gloria nos anos 60, quando ele foi tao inchado que chegou a

significar toda a retorica. Os retoricos da epoca, sobretudo J.

Cohen, Roland Barthes e 0Grupo Ml.I,limitavam a retorica ao

estudo das figuras de estilo, que definiam~omo urn desvio em

relacao a norma, ao "grau zero", e portanto reduziam retorica a

desvio...

No entanto, mesmo que se possa definir a figura como

desvio, 0que ainda precisa ser provado, parece totalmente abu-

Alias, os classicos definiam figura como desvio, desde

Aristoteles, que dizia dametafora: "e para atingir maior grande-

za que ela se afasta (exallattai) daquilo que convem" (Ret6rica,

III, 1404 b), ate Quintiliano, que explica 0 prazer (delectatio)proporcionado pelas figuras, por terem 0 "merito manifesto de

afastar-se do uso corrente" (II, 13, 11), e precisa: "a figura seria

urn erro senao fosse intencional" (IX, 3, 2).

o fato e que, mesmo limitado a figura, a nocao de desvioapresenta urnproblema triplo.

Em primeiro lugar, desvio em relacao a que? Que "nor-

ma" e essa, esse "grau zero" da qual a figura sedesviaria: 0co-digo lingiiistico, digamos, 0 vernaculo? Nao vemos que ele

proiba figuras. A logica? Mas nao e a logica que rege a lingua:sol e feminino em alemao, 0 inverso para a lua; nenhurna "logi-

ca" nisso, seja em alemao, seja em portugues. 0 sentido primi-tivo, etimologico? Veremos quanto essa nocao e ideologica, ou

mesmo mitica; ademais, utilizar urn termo em sentido arcaico

- por exemplo, humile para 0que esta no chao - ja e uma figu-

ra. 0 uso normal, ou seja, 0 modo como todos falam? Mas

todos falam com muitas incorrecoes, por urn lado, e por outro

com muitas figuras, portanto com desvios. 0 discurso funcio-

nal dds~ientistas? Esse de fato e 0ponto de vista de J. Cohen,que compara os textos dos escritores e dos poetas com urn gru-

po-controle, formado por textos de autores cientificos do fimdo seculo XIX; mas nos custa enxergar como esses textos, tra-

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6 6 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 6 7

balhados para adaptar-se ao assunto de que tratam, seriam mais

"normativos" ou mais "normais" que os dos escritores.

Na realidade, a nocao de desvio e relativa; urn discurso se

desvia de outro discurso em funcao de seus objetivos, de seus

publicos e de seus generos respectivos, sem que nenhum deles

const itua norma absoluta . Assim tambem: e urn desvio ir a umarecepcao noturna em traje de praia, mas tambem e desvio ir a

praia em traje de gala.

Mas nao se pode dizer simplesmente que a figura se desvia

do sentido pr6prio? Por certo, mas isso s6 vale para algumas,

na o para as figuras de palavras ou para as de construcao (cf. cap.

VI). E, principalmente, 0 sentido pr6prio e realmente a norma?

A teoria do desvio considera a figura como dupla operacao: a) 0

autor propoe um enunciado que se desvia da norma, esse ledo,

b) que 0 receptor descodif ica voltando a norma, "esse bravo".

Mas, ou se trata de uma operacao com resultado nulo, e nao

teria nenhum interesse alem do prazer inegavel de fazer buracospara tapa-los, ou se trata de uma operacao positiva, mas que

implica entao que a figura diz mais do aquilo com que e traduzi-

da, seu pretenso sentido pr6prio.

A~io ("hypocrisis")

A acso e 0 arremate do trabalho ret6rico, a profericao do

discurso. E essencial porque, sem ela, 0 discurso nao atingiria

o publico. Sua funcao, diria Jakobson, e acima de tudo fatica.

Ao the perguntarem qual e a primeira qualidade do orador,

Dem6stenes respondeu: a acao; e a segunda: a acao; e a tercei-

ra: a acao (Brutus, 142)...

Uma "hypocrisis'' sem hipocrisia

Ja nao ha Pireneus.

Ar;:ao, que em grego e hypocrisis, no inicio, antes de ad-

quirir sent ido pejorat ivo, significava a interpretacao do adivi-

nho, depois a interpretacao do ator, a acao teatral. Assim como

o hipocrita, 0 autor finge sentimentos que nao tern, mas sabe

dis s o, e seu publico tambem. Assim tambem 0 orador: pode

exprimir 0 que na o sente, e sabe disso; mas nao pode informar

seu publico, ou destruiria seu discurso. 0ator que finge bern e

um artista; 0orador que finge bern seria urn mentiroso ...

o fato e que 0 orador sincero nao pode deixar de "repre-

sentar" segundo regras semelhantes as do ator . Se renunciasse

a isso, se abandonasse a hypocrisis, trairia sua mensagem. A

acao, diz Cicero, "faz 0 orador parecer aquilo que quer pare-

cer" (Brutus, 142).

Seja sincero ou nao, precisa dela.

Quanto a isso, os oradores antigos eram vezeiros ... che-

gando - diz Quintiliano (XIII, 3, 59) - a "cantar" suas defesas.

Alias, 0 mesmo Quintiliano dedica todo 0 capitulo 3 de seu

livro IX a acao, nao s6 ao trabalho da voz e da respiracao, mas

tambem as mimicas do rosto, a gestualidade do corpo; tudo se

inc1ui: ombros, maos, t6rax, coxas ... que e preciso por a servi- .

90 das diversas paixoes que e preciso exprimir" .

Isso'~ tern interesse hist6rico. 0 conteudo da acao hoje emais simples e flexivel. Mas a ar;:aocontinua sendo indispensa-

vel, alias mais que nunca, numa epoca em que 0 discurso oral,

gracas aos meios de comunicacao de massa, readquiriu impor-

Se traduzido por: Ja nao ha fronteiras (entre Franca e Espanha) ,

perde-se algo de essencial. A figura confere urn sentido extra.

Urn ultimo problema, para n6s essencial, e saber se a defi-

nicao de figura como desvio permite explicar seu poder per-

suasivo. De fato, se a figura e percebida pelo audit6rio comodesvio, e ai que nao da certo. Ela pode ser considerada pesada

ou poetic a, engracada ou nao, mas nao funciona. A figura efi-

caz pode ser definida como algo que se desvia da expressao

banal, mas precisamente por ser mais rica, mais express iva,

mais eloqiiente, mais adaptada, numa palavra mais justa do

que tudo que a poderia substituir. E, ~e fizermos questao de

falar em desvio, e a figura, a f igura bem-sucedida, que consti-

tui a norma.

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68 INTRODU9AO A RET6RICA o SISTEMA RET6RICO 6 9

tancia capital. Certas regras antigas permanecem, como a im-

postacao da voz, 0dominio da respiracao, a variedade do tom e

da elocucao, regras sem as quais 0discurso nao passa.

Outras regras dizem respei to a conveniencia , aqui adapta-

~ao do discurso ao canal. Nos anos 30, os oradores politicos

forcavam a voz diante do microfone, embora este permitisse

justamente utilizar voz suave, calma e descontraida. Em todo

caso, a diccao sempre faz parte da retorica,

oproblema do escrito e do oral

oproblema da memoria

o que apresenta outro problema: a relacao entre 0 discur-

so escrito e 0 oral. Ao lermos os antigos retores temos a im-

pressao de que para eles 0 discurso e essencialmente escri to , e

que 0problema da a~ao e unicamente de "interpreta- lo", assimcomo urn pianista interpreta urna sonata , portanto de pronun-

cia- lo com c1areza e vivacidade depois de 0 ter redigido e me-

morizado. E verdade que as peripecias do debate politico e ju-

diciario obrigariam a improvisar (alias, os discursos publicados

dos oradores antigos foram reescritos), mas pouco importa:

eles nao parecem ter pensado num esti lo especifico do discurso

oral, talvez porque a lingua falada estivesse longe demais da

lingua escrita.

Para nos, 0discurso oral deve ser bern mais lento que urna

leitura, ou 0auditorio perderia 0 f io da meada. Deve ser redun-

dante, para suprir a memoria. Finalmente, 0mais importante, a

lingua nao e exatamente a mesma: exige frases mais curtas,

expressoes mais concretas e familiares, ou entao 0 discurso

parecera artificial. Concretamente, fala-se evitando a forma sin-

tet ica do futuro, subst ituindo mesoclises e ate encl ises por pro-

c1ises, usando "pra" em vez de "para", dizendo "acho" em vez

de "acredito". Quintiliano, que pode sermuito "modemo", aeon-

selha 0orador a:

Pois bern, como eram proferidos os discursos: eram lidos,

proferidos a partir de notas, de improviso? Parece que, para os

antigos, comecava-se aprendendo de cor. Donde a importancia

da memoria (mnemei, que para certos autores latinos constituia

a quinta parte da retorica: a arte de memorizar 0discurso.

Para Cicero (Brutus, 140,215, 301), isso e urna aptidao

natural, nao uma tecnica; portanto, nao pode ser parte da retori-

ca. Para Quintiliano, ao contrario, a memoria nao so e urn dom

como tambem urna tecnica que se aprende (cf. XI, 2,passim); e

indica processos mnemotecnicos, como decompor 0 discurso

em partes , que serao memorizadas uma apos outra, associando

a cada urna urn sinal mental para lembrar de proferi-1a no mo-

mento certo: uma ancora para 0trecho sobre 0navio, urn dardo

para 0trecho sobre 0combate (29). Mas, alem desses "truques",

faz tres observacoes essenciais.

Primeiro, a memoria depende antes de mais nada do esta-

do fis ico: para lembrar-se e preciso ter dormido bern, estar com

boa saude, etc.

Depois , urn discurso e facil de memorizar por sua estrutu-

ra (ordo), ou seja , por sua coerencia , pelo encadeamento logico

de suas partes , pela eurri tmia de suas frases.

Finalmente, e "dominando" 0discurso que temos mais con-

dicoes de ajustar-nos as objecoes e de improvisar. Portanto,

em vez de se opor a criatividade, a memoria e fator essencial

para ela.

cuidar principalmente de fazer que sejam ouvidos como descon-

traidos desdobramentos muito cerrados, e a dar as vezes a im-

pressao de estar refletindo, hesitando, buscando aquilo que foi

levado bernpronto. (XI, 2,47)

Ninguem fala "como livro", mas como gente.

Mostrar que a retorica e urn sistema e mostrar que ela tern

urn sentide ao mesmo tempo rico e preciso. Toda a sequencia

deste livro sustenta a tese de que e possivel utilizar a retorica

sem fazer referencia a esse sistema, que na verdade constitui

uma das chaves da nossa cultura .

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Capitulo IV

Do seculo I aoXX

De que forma os seculos foram enriquecendo 0 sistema

retorico? Tambem aqui convem deixar claro que nao tentamos

tracar uma historia da retorica nem urn panorama. Limitamo-

nos a lembrar alguns grandes problemas, que foram surgindo

em diferentes epocas, desde Cicero ate nos.

Periodo latino

Depois de Isocrates e Aristoteles, a retorica se instala na

cultura grega helenistica como disciplina essencial, tao impor-

tante quanto para nos a matematica. Os romanos tambem ade-

rirao, assimilando-a. Como?

Forma efundo: pintura e cores verdadeiras

Aqui nos limitaremos a mencionar as obras axiais: Do

orador, de Cicero, completada por 0 orador, 55 e 46 a.C., e

Instituiciio oratoria, de Quintiliano, escrita provavelmente em

93 d.C. Essas obras constituem admiraveis tratados de retorica,

escritos por praticantes. Note-se que, ao contrario dos gregos,

os romanos tinham advogados; que nao tinham 0direito de ser

pagos, mas tinham urn consolo: eram ressarcidos com presen-

tes. Cieeeo e Quintiliano foram ambos grandes advogados que,

em seus livros, "teorizaram" sobre sua pratica.A prime ira tarefa da retorica latina foi traduzir os termos

gregos. Por exemplo, metafora em Cicero transforma-se em

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72 INTRODUr;AO A RETORICA DO SECULO IAO..IT 73

tralatio, epidictico e demonstrativum. Tekhne rhetorike sera

chamada de ars oratoria, ou rhetorica. Significativo: a palavra

grega rhetor tera duas traducoes: orator, que e 0 executante, 0

fazedor de discursos, e rhetor, que e 0 professor, geralmente

grego.

Essa dualidade apresenta urn problema de fundo,0

do pa-pel da tecnica na eloquencia. Pois 0 retor ensina urna tecnica,

com seus lugares, seus planos-tipo, suas figuras. Mas a verda-

deira eloquencia tern a ver com recei tas? Nao, responde Cicero;

se ela e autentica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele

seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruido em todas as

areas essenciais: direito, filosofia, historia, ciencias, As receitas

retoricas, os "truques" para se impor sao ineficazes.

o estilo tambem nada tern de artificial; longe de ser urn

omamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do fun-

do. A escolha das palavras (electio), a composicao das frases,

as figuras, 0 ritmo - principalmente 0 r itmo - sao expressoes

naturais do que se tern para dizer , e tudo 0que soa artificial deve

ser riscado:

mente por Cicero como humanitas, nossa cultura geral. S6 ela

permite exprimir-se de modo justo e apropriado, elevar 0debate

da causa a thesis, do caso particular a questao geral subjacente.

Por exemplo, 0advogado, ao pedir 0castigo do reu, elevar-se-a,

tomando consideracoes historicas em apoio, aos problemas da

defesa social, da exemplaridade do castigo, etc.

Retorica e moral

Se houver nobreza nas proprias coisas de que se fala, das

palavras brotara uma especie de fulgor natural. (Do orador,

III, 125)

o mesmo se aplica a Quintiliano que, no apogeu do Impe-

rio, retoma de modo mais sistematico as ideias de Cicero. Ele

tambem considera a retorica como arte funcional, que exclui

tudo 0que seja inutil, arte que procede do mesmo espirito dos

aquedutos romanos e da discipl ina legionaria. 0 est ilo deve seu

brilho a funcao, analogamente ao brilho das armas da legiao

em ordem de batalha (cf. X, 1,29). A arte oratoria, portanto,em vez de criar "desvio" permite atingir a expressao mais jus-

ta, e nosso pretenso "grau zero" do discurso "normal" para

Quintiliano nao passaria de inaptidao, desjeito, incultura, "gar-

rulice improvisada'",

Inversamente, retorica e sinonimo de cultura, e a Institu-

tio oratoria, "Formacao do orador", apresenta-se como urn

tratado completo de educacao a partir da primeira infancia,

que possibil ita classificar seu autor, sem muito anacronismo,

como pedagogo. Nao entraremos no merito de seus conselhos

notaveis , muitas vezes bern atuais , como 0 de sempre levar 0

aluno a propor-se questoes. Diga-se que ele abre 0 campo doensino retorico, por nele incluir a gramatica, como explicacao

dos textos, e a dialetica, como tecnica de argumentacao (cf. II,

21, 12). Porem 0mais importante, como educador, e que ele se

esforca por reconciliar a retorica e a etica, que Aristoteles ha-

via separado.

Quando define a retorica como scientia bene dicendi, arte

de bern falar (II, 15, 5; 16, 38), a palavra "bern" para ele tern

sentido nao so estetico como tambem moral. A quantos censu-

ram a retorica por persuadir tanto do pior quanta do melhor,

E 0homem culto que tern algo para dizer nao precisa dos cur-

sos de expressao dos retores. E por isso que Cicero chama as

figuras de estilo de lumina, pois elas trazem a lume 0 que que-

remos dizer (cf . Oorador, 85, 95, 134).0 discurso para ele e

urn organismo vivo cujas partes desempenham todas urn papel;

portanto, se forem aplicados omamentos, eles nao passarao de

"pintura", enquanto 0que conta eo "colorido da pele", sinal de

boa saude'.

Entao e melhor renunciar a retorica? Nao, pois a ausencia

de retorica, em vez de signif icar sinceridade, nao passa de inap-

tidao, incapacidade para exprimir-se e convencer. Portanto, uma

retorica, e que seja ensinada. Mas trata-se de urn ensino em pro-

fundidade, que pega 0 homem desde a infancia e forma-o na-

quilo que os gregos chamam de Paideia, traduzido magnifica-

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74 INTRODU9AO A RET6RICA DO SECULO lAO X X " 75

Onde houver causa injusta, nao havera retorica. (II, 17, 31)

Mas da outra explicacao, menos banal. A arte orat6ria de-

senvolvera-se na sociedade em que era indispensavel, qual seja,

a democracia. Quando todas as decisoes eram submetidas a de-

bates publicos, 0 futuro orador formava-se naturalmente no fo-

rum, ouvindo as discussoes e depois tomando parte delas; des-

cobria assim as tecnicas dos diversos oradores e, principalmen-te, as reacoes do publico. "Hoje" (na epoca dos imperadores),

quando esses debates nao sao mais correntes, osjovens apren-

dem eloquencia na escola, ou seja, de modo artificial, sem ou-

tro publico senao camaradas tao pueris quanta eles, sem outros

temas de debate senao assuntos irreais, absurdos.

Em surna,urna vez que a funcao cria 0orgao, a eloqiiencia

desenvolveu-se na sociedade que precisava dela, a democracia,

e nao sobreviveu a esta senao de maneira artif icial. Mas nao

devemos enxergar em Tacito urn velho democrata embrulhado

em virtuosa nostalgia. Ele lembra que aquela democracia sig-

nificava menos liberdade e mais desordem e violencia, e que apaz romana, concretizada pelos imperadores, vale mil vezes

mais que 0 regime de anarquia que a precedeu. Raciocinando

por analogia, ele afirma que nao se deve sentir saudade da de-

sordem democratica s6 porque ela produziu grandes oradores,

assim como nao se sente saudade da guerra s6porque ela pro-

duz her6is (37, 7).

Fato e que esse trecho de Tacite foi transformado em ver-

dadeiro lugar-comurn, afirmando-se que a grande ret6rica teria

morrido com a liberdade, dando lugar apenas a ret6rica artifi-

cial, ornamental e vazia. Sera verdade?

Em certo sentido, a hist6ria da educacao romana confirma

isso. Tudo ocorre como se os romanos tivessem ganho, com a

ret6rica, urn instrumento que nao lhes servia para grande coisa.

Nas aulas de ret6rica, usavam-se, como exercicio, "declama-

coes", discursos puramente ficticios. Eram de tres tipos. Os

elogios, discursos epidicticos, tratavam de personagens hist6ri-

cas ou lerttiarias e eram completadas por paralelos (por exem-

plo, entre Aquiles e Heitor). Os suas6rios eram discursos poli-

ticos, mas fora da situacao vivida:

Quintiliano responde que nao se pode atribuir "0 nome de 0

mais bela dos oficios a quem aconselhe perversidades" (15,

17), e chega a dizer:

Em suma, ela nao s6 e uma arte, mas uma virtude. E, a acusa-

~ao de que urn homem mau pode as vezes utilizar uma ret6rica

excelente para chegar a seus fins, ele responde:

Urn bandido pode bater-se com valentia, e a coragern nern

por isso deixara de ser virtude. (II, 20, 10)

Note-se que esses dois argumentos nao combinam: de acordo

com 0primeiro, a ret6rica a service de uma causa imoral nao e

ret6rica; de acordo com 0 segundo, ela continua ret6rica e con-

tinua virtude!Na realidade, 0que reconcilia ret6rica e moral e a cultura,

para Quintiliano valor supremo. Concordando com Is6crates,

ele escreve que, sendo a linguagem e a razao caracteristicas do

homem, a ret6rica que as cultiva constitui a virtude hurnana

por excelencia. Falar bern e ser homem de bern; inversamente,

s6 0 homem de bern, honesto e culto, fala bern. Pode-se dizer

que a Institutio oratoria propoe os fundamentos da educacao

humanista.

Retorica e democracia

Na epoca imperial, urn pouco depois de Quintiliano, urn

texto celebre de Tacite, Dialogo dos oradores, levanta proble-

ma bern diferente. No fim dessa conversa, os protagonistas se

perguntam por que a eloquencia entrou em decadencia depois

de Cicero. Para isso, 0 orador Messala da uma primeira expli-

cacao: esse declinio se deve "a preguica dos jovens", tanto

quanta ao desleixo de sua educacao; hist6ria tantas vezes repe-

tida desde entao., '/

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76 INTRODU9AO A RETORICA DO SECULO lAO XY 77

Anibal, no dia seguinte a Canas, esta pensando semarchara

sobre Roma. (inMarrou, p. 415)Por que 0declinio?

As controversias, enfim, eram discursos favoraveis ou contra-

rios a alguma coisa. Os exemplos utilizados eram ficticios, as

vezes inverossimeis, alegando-se que a dificuldade era forma-dora por si mesma. Assim 0 caso do "duplo sedutor", que era

preciso defender e acusar:

Na realidade, foi no seculo XIX que a retorica realmente

declinou, a ponto de quase desaparecer. Seria interessante sa-

ber por que.

Retorica e cristianismo

A lei aqui sera: a mulher seduzida escolhera entre a conde-

nacao a morte do sedutor ou 0casamento com ele, sem dote. Na

mesma noite, urn homem violenta duas mulheres. Uma pede sua

morte, a outra escolhe casar-se com ele. (inMarrou, p. 415)

Urn grande problema que se apresenta no fim da Antigui-

dade e 0 da relacao entre a retorica e a nova religiao, 0 cristia-

nismo. Este, de fato, situa-se em ruptura total com a cultura an-

t iga, cujo "ceme" e consti tuido pela retorica: cul tura paga, ido-

latra e imoral, que so poderia afastar a redencao, "unica coisa

necessaria" .

No entanto, como mostrou tao bern H.-I. Marrou, os cris-

taos logo acei taram a escola romana e a cultura que ela veicula-va. Em seguida, quando todas as estruturas administrativas do

Imperio desmoronaram, foi a Igreja que se tomou depositaria

desse cultura antiga, retorica inclusive. E verdade que grande

mimero de pais da Igreja rejeitam os autores pagaos, como imi-

teis e perigosos, mas admitem a lingua e a retorica dos pagaos

(cf . Marrou, 460 s.). Por que? Por duas razoes.

A prime ira e que a Igreja, em seu papel missionario e em

suas polemicas, nao podia prescindir da retorica, muito menos

da lingua (grega ou latina). Nao podia deixar esses meios de

persuasao e de comunicacao em maos de adversaries. Santo

Agostinho escreve assim, no fim do seculo IV:

Essas khreias lembram 0exercicio da conferencia dos advoga-

dos estagiar ios: a lei pune 0marido se ele comete adulterio no

domicilio conjugal. Ora, urn marido e surpreendido em fla-

grante delito de adulterio com a vizinha, no muro que divide as

duas residencias. Ele e passivel das penas da lei?

Em Vida cotidiana em Roma, Jeronimo Carcopino fustiga

esse ens ino retorico totalmerite apartado da vida: "retorica

irreal", "virtuosidades verbais", "formalismo incuravel"

(pp. 135 s.). H.-I. Marrou e mais matizado; mostra que essa

cultura formal a longo prazo produzia resultado positivo: for-

maya advogados, administradores, embaixadores capazes de

falar com eficacia nas situacoesmais ineditas . Afinal, tambem

seria possivel falar de formalismo com referencia a nossas dis-

sertacoes e a nossos problemas de matematica,

Se 0ensino da retorica perdurou durante 0 Imperio Roma-

no, se sobreviveu em Bizancio, tanto sob 0 islamismo quanto

na Europa medieval, com metodos semelhantes, significa que

nao era tao imit il . E verdade que a retorica perdeu os grandes

debates politicos, que so recuperara nas democracias moder-

nas, mas ganhou outros generos: a epistola , a descricao, 0 tes-

tamento, 0discurso de embaixada, a consolacao, 0conselho ao

principe, etc. 0"fim da retorica" nao passa de lugar-comum no

mau sentido do termo, ou seja, nao retorico.

Quem ousaria dizer que a verdade deve enfrentar a mentira

com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se

esfon;:ampor persuadir do falso saberiam desde 0exordio tomar

o auditorio docil e benevolente, enquanto os defensores da ver-

dade seriam incapazes disso? (Doutrina crista, IV , 2,3)'. ,

A segunda razao e que a propria Biblia e profundamenteretorica. Nao sobejam nela metaforas, alegorias, jogos de pala-

vras, antiteses, argumentacoes, tanto quanto nos textos gregos,

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78 INTRODU9AO A RET6RICA DO SECULO lAO XX 79

se niio mais? Sao Paulo bern que afirma que niio tern a sophia

logou, "arte do discurso" (1 Cor I, 17), mas acrescenta a argu-

mentacao de urn rabino as antiteses de urn orador grego.

Portanto, a Biblia era urn modelo, porem mais ainda: urn

problema. Com efei to, niio bastava ser l ida, precisava ser com-

preendida; e, para interpreta- la , nunc a era demais ut il izar todosos recursos da retorica, A hermeneutica da Idade Media e todaalegorica: propoe que todo texto biblico tern outro sentido alem

do literal. Outro, ou melhor, varies. Tomemos como exemplo a

palavra Jerusalem (pois essa interpretacao dizia respeito sobre-

tudo a palavra): 1) ela tern urn sentido proprio ou historico, de

cidade onde viveram David, Salomiio, etc .; 2) tern tambem urn

sentido alegorico, que se refere ao Cristo, e Jerusalem signifi-

ca Igreja; 3) tern urn sentido tropologico, ou seja, moral, e Je-

rusalem significa a alma do cristae, tentada, cast igada, curada;

4) finalmente tern urn sentido anagogico, relativo a ressurrei-

<;i ioe ao reino de Deus, e Jerusalem significa a cidade de Deus,

depois do Juizo Final.

Tomemos 0 texto seguinte, interessante por possibil itar

destacar os mecanismos da alegoria; e urn breve comentario

sobre Exodo, XI, 12:

brios, mas continuam uti lizando a hermeneutic a dos quatro sen-

t idos, que funciona como urn lugar da retorica.

Verdadeiras causas do declinio:

retorica, verdade e sinceridade

A meia-noite sairei pela terra do Egito. E todo primogenitomorrera.;

Portanto, 0 cristianismo nada tern a ver com 0 declinio da

retorica. Esta, ao contrar io, desenvolveu-se durante toda a Ida-

de Media, tanto na literatura profana quanto na pregacao. A

part ir do Renascimento, voltou aos canones antigos, e seu ensi-

no constitui 0cicIo essencial de toda a escolar idade, tanto entre

os protestantes e os jansenistas quanto entre os jesuitas'. No

entanto, e nesse periodo que comeca 0 declinio da retorica, As

novas ideias viio dar-lhe 0 golpe mortal, rompendo 0 elo entre

o argumentat ivo e 0oratorio, que the davam forca e valor.

Foi di to que essa cisiio ocorreu a partir do seculo XVI, como hurnanista Pedro Ramus (Pierre de la Ramee, 1515-1572).

Este de fato separa resolutamente a dialetica, arte da argumen-

tacao racional, da retorica, reduzida "ao estudo dos meios de

expressiio omados e agradaveis" (TA, p. 669), em suma a elocu-

<;iio.Mas nada prova que a atitude de Ramus tenha sido dura-

doura; ao contrario, os retoricos que apareceram ate 0 seculo

XIX, sobretudo na Inglaterra, continuam completos, incIuindo

tanto a invencao e a disposicao quanto a elocucao,

Apesar disso, no seculo XVII ocorre uma fratura tambem

grave com Descartes, que vai destruir urn dos pilares da retori-

ca, a dialetica, em outras palavras a propria possibilidade deargumentacao contraditoria e probabilista. Em sua autobiogra-

fia intelectual, que abre 0Discours de la methode, ele escreve:

Como comentar esse versiculo terrivel?

Pode ser interpretado historicamente porque, como se le,quando a Pascoa e celebrada, 0 anjo exterminador atravessa

(pertransit) 0 Egito. Alegoricamente, a Igreja passa (transit) da

descrenca it fe pelo batismo. Tropologicamente, a alma deve

passar (transire) do vicio it virtude pela conversao e pelo arre-

pendimento. Anagogicamente, 0Cristo passou (transivit) da con-

dicao mortal it imortalidade, para nos fazer passar (transire) da

miseria deste mundo it fe eterna'.

Eu apreciava muito a eloquencia e era apaixonado por poe-

sia , mas achava que uma e outra eram dons do espirito, e nao

frut~~do estudo. Aqueles que tern raciocinio mais forte e que

digen!m melhor seus pensamentos, para torna-los claros e inteli-

giveis, sao os que sempre conseguem persuadir me1hor daquilo

que propoem, ainda que so falassem baixo bretao e nunca tives-

sem aprendido retorica.Como se ve, essa tripla alegoria e construida sobre 0 tema

da passagem. Hoje em dia, os pregadores sao bern mais so-

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80 INTRODUC;AO A RET6RICA DO SECULO lAO X¥ 81

Como se ve, Descartes cons idera tanto 0objet ivo da reto-

rica ("persuadir") quanta suas quatro partes: invencao ("racio-

cinio"), disposicao ("digerem", no sentido de organizam), elo-

cucao ("tomar claros"), acao ("fa lassem"). Considera tudo da

ret6rica, salvo a ret6rica . .. como arte que se poderia "aprender"

por "estudo"; ideia retomada depois por Pascal:

servem senao para insinuar falsas ideias no espirito, despertar

paixoes e seduzir pelo julgamento, de tal modo que na verdade

sao perfeitos logros. (inTodorof, pp. 77-78)

A verdadeira eloqiiencia escamece da eloquencia. (p. 321)

Se Locke admite urn ens ino da re tor ica para a elocucao, e

ainda mais severo que Descartes, pois faz da retorica a arte damenti ra. Quanto ao resto, apesar de suas oposicoes filosoficas,

estao de acordo. Descartes situa a verdade na evidencia das

ideias claras e distintas; Locke, na experiencia dos sentidos.

Mas ambos veem a retor ica como urn anteparo artific ial entre 0

espirito e a verdade. Ambos desconfiam da linguagem, que so

vale como veiculo neutro de uma verdade independente dela,

de uma verdade que nada tern a ver com as controversias da

dialetica. A retorica nao pode mais ter pretensoes a invencdo

alguma.

E certo que ela ainda podera servir aos debates juridicos, apol it ica e a pregacao . E por isso ainda hayed tratados de retori-

ca ate 0 seculo XIX.

Mas ai duas novas corren tes de pensamento conduzirao ao

seu desenlace.

A prime ira e 0positivismo, que reje ita a retorica em nome

da verdade cientif ica . Ela sera excluida ate mesmo de sua ulti-

ma trincheira, a elocucao, sendo subst ituida pela filologia e pela

historia cient ifica das li teraturas. A ult ima obra propriamente

retorica na Franca e de Pierre Fontanier, publicada em 1818 e

1827, que G. Genette reeditara em 1968 com 0 titulo Les figu-

res du discours, es tudo notavel, modes tamente destinado aos

alunos da pemil tima serie do estudo secundario,

A segunda corrente e 0 romantismo, que rejeita a retorica

em nome da sinceridade. "Paz com a sintaxe, guerra a retori-ca", exclama Victor Hugo, querendo dizer com isso que 0 es-

critor deve respeitar 0 codigo da lingua, mas sem se sobrecar-

regar com urn segundo codigo.

Em 1885, a retorica desaparece do ensino frances, substi-

tuida pela-vhistoria das literaturas grega , latina e francesa" .

Fim.

Mais a inda : com seu "ba ixo bretao" Descartes rejeita 0privile-

gio de uma lingua nobre, objeto da retorica, olatim.

Pr incipalmente no paragrafo seguinte ele repudia a diale-

tica, por nunca oferecer mais que opinioes verossfrneis e suje i-

tas a discussao, ao pas so que a verdade so pode ser evidente,

portanto unica e capaz de criar acordo em todos os espiritos.

Com a diivida metodica, Descartes tomara a atitude de consi-

derar nao como verdadeiro, mas como falso, tudo 0 que so e

verossimil, e sua filosofia se apresentara como urn encadea-

mento de evidencias , analogo a uma demonstracao matemati-

ca. Enfim, contra 0debate de var ias pessoas , que e a dialetica,ele afirma que so se pode encontrar a verdade sozinho, por urn

retorno a si mesmo (cf. infra, texto 8).

A retorica deixa portanto de ser arte e perde seu instru-

mento dialetico, Basta encontrar a verdade por sua razao, "E as

palavras para expressa-la chegam facilmente" (Boileau).

Outros filosofos, os empiristas ingleses, chegam a mesmacondenacao. Para eles, qua lquer verdade vern da experiencia

sensivel, e a retorica, com seus ar tificios verbais, so faz afastar

da experiencia, Locke assim escreve:

Confesso que, em discursos nos quais procuramos mais

agradar e divertir que instruir e aperfeicoar 0 julgamento, mal

podemos fazer passar por erros essas especies de ornamentos

que tomamos de empres timo as figuras. Mas, se quisermos .

representar as coisas como sao, e preciso reconhecer que, exce-tuando a ordem e a nit idez, toda a arte daretorica, todas as apli -

cacoes artificiais e figuradas que nela se fazem das palavras, se-

gundo as regras que a eloqiiencia inventou, para outra coisa nao

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82 INTRODUC;AO A RET6RICA DOSECULOI AOAX 83

Hoje: retorlcas Os tres paragrafos que seguem contem exemplos desse es-

tilhacamento,Ou melhor: falsa saida de cena. Pois se a retorica perdeu 0

nome nem por isso morreu. Nao so sobrevive, como se viu, no

ensino literario, nos discursos juridicos e polit icos, como tam-

bern vai renovar-se com a comunicacao de massa, propria doseculo xx. Finalmente, a partir dos anos 60 aparece na Franca

e na Europa urna nova retorica, que logo conhecera imenso su-

cesso. A palavraja nao da medo.

Retorica da imagem

Uma retorica estilhacada

"Vivemos no seculo da imagem", eo que se ouve com fre-

qiiencia . Cliche bern contestavel , pois os outros seculos comu-

nicaram-se bern mais pela imagem que pelo texto escrito. Alem

do mais, e raro que as nossas imagens possam prescindir do

texto escrito para serem legiveis.

Assim, e perfei tamente possivel fazer a interpretacao rete-

rica de estatuas romanas, de leones, de portais romanos, etc. ,

imagens que se vinculam ao genero epidictico, para gloria de

urn soberano ou de Deus. Mas e normal que essa retorica se in-

teresse mais pelas producoes atuais, sobretudo pelas imagens

publicitarias, persuasivas por essencia.o pontape inicial da retorica da imagem, na Franca, foi

dado por Roland Barthes, em seu artigo publicado em Communi-

cations no ano de 1964. Nele, Barthes analisa urn cartaz feito

para as massas Panzani, mostrando que alem de sua denotacao

- legumes frescos e pacotes de macarrao saindo de urna sacola

- 0 cartaz persuade pela conotacao: as cores verde, branca e

vermelha sugerem italianidade; os legumes, frescor e natureza;

a sacola, cozinha artesanal, etc. Ainda que as massas em ques-

tao sejam francesas e industrializadas! Mas Barthes faz mais

semiotica que retorica,

o que se pode dizer e que, se e impropria para produzirargumentacao, a imagem e porem notavel para amplificar 0

etos e 0patos.

Tomemos como exemplo 0 cartaz da oposicao que inau-

gurou a campanha eleitoral para as eleicoes legislativas de

1986. Como texto, 0cartaz contem 0slogan: Vivementdemain!,

e em le,tras menores: Avec Ie RPR!*. 0slogan expressa a ex-

pectativ~ de toda oposicao: chegar ao govemo. A sequencia

Apesar de tudo, a retorica atual e bern diferente daquela

que substitui.

Para comecar , seu objetivo ja nao e produzir discursos, po-

rem interpreta-los, e assim se aproxima mais da gramatica dos

antigos. Pode-se dizer que ja nao se aprende a fazer discursos?

Aprende-se, mas esse ensino, que no fundo se identifica com a

formacao literaria e filosofica, ja nao e visto como retorica -

ou nao e ainda.

Em segundo lugar , 0campo da modema retorica alargou-

se muito. Longe de limitar-se aos tres generos oratorios dos

antigos, ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas mo-

demas do discurso persuasivo, a comecar pela publicidade, e

mesmo dos generos nao persuasivos, como a poesia. Nao con-

tente com reivindicar todo 0campo do discurso, vai bern alem,

pois se apodera de todas as especies de producoes nao verbais.

Elabora-se assim uma retorica do cartaz, do cinema, da musi-ca, sem falar da retorica do inconsciente.

Finalmente, e mais importante, a retorica modema e urnaretorica estilhacada, fragmentada em estudos distintos. Distin-

tos nao so pelo objeto, mas pela propria definicao que dao apalavra "retorica", de tal modo que cabe perguntar se esse ter-

mo ainda tern algurn sentido preciso. Esse estilhacamento, que

afeta, alias, a arte e a filosofia, e urn dos grandes sinais da nos-

sa cultura, indice de que ela esta bern viva, pois e a vida que es-

tilhaca as formas rigidas. Mas tambem de que, como acontece

com tudo 0que e vivo, ha 0risco de morrer. * Literalmente, "Vivamente amanha" e "Com 0RPR". (N. do T.)

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84 INTRODUC;AO A RET6RICA DO SECULO lAO XX 8 5

"Equipe": a s pe ssoa s estao c om o s braces no s ombr os d as o u tr as

ou estao de bracos;

" r esp ei ta v el " : u sam t ra je soc ia l, c om g r ava ta ;

" t ra b al ho" : t ir a ram os pa le t os ; 0ven to l ev an ta a s g r ava ta s ;

" ju ve n tu de " : q u a se t od o s t er n m e no s d e q ua re n ta a n os ; o s m a is

i do s os e st ao n o m e io ; s in e doq ue : a lg un s j ov en s p ar a m a rc ar

juventude.

caso das m assas P an zan i ... M as de urn a sugestao , que po r certo

s e e nc on tra ria e m q ua lq uer im ag em p ub lic ita ria. E m to do c as o,

e ss es d ois c artaz es , alia s b elis sim os (b ele za fu nc io na l), m os -

t ra m b er n d ua s c oi sa s:

1 ) A retorica d a i ma gem d es en vo lv e 0 o ra to rio e m d etri-

m e nt o d o a rg um e nt at iv o .2) A im age m nao e eficaz, nem m esm o legivel, sem urn

m in im o d e te xto .

A im ag em e re to ri ca a s er vi ce d o d is cu rs o, n ao em s eu lu ga r.

s ug ere q ue 0beneficiario de ssa expec ta ti v a e 0RPR, e nao do s

o ut ro s p ar ti do s d e oposicao,

A im ag em : J ac qu es C hira c, 0 lid er, n o c en tro de u ma lin ha

de do ze pesso as, das quais duas m ulheres joven s, em posicoes

simetricas, qu e avancam por urn prado, debaixo de urn ceu

i me ns o, o nd e e st a e sc ri to 0slogan.o etos e s ug er id o p ela s c on ot ac oe s d a i ma gem:

Retorica dapropaganda e dapublicidade

op at os t am bem n as ce d as c on ot ac oe s:

P od e- se c on sid era r a p ro pa ga nd a (p olitic a , m ilita r, e tc. ) e

a p ub lic i d ad e c om o in ve nc oe s d o s ec ulo xx. A in da q ue n os so s

an cestrais n ao n os ten ham esperado para defen der seus parti-

d os e c ria r s ua s m erc ad oria s, 0 que eles faziam era co isa bernd ife re nte , p or u ma bo a ra za o.

A pro pagan da e a publicidade perten cem a co mun icacao

de massa. 0 que e m as sa ? U r n m im er o i nd ef in id o, g er alm en te

im en so , de in dividuo s cujo un ico elo e receber a m esm a m en -

s ag em . U rn c am el6 q ue v en de u rn tira- ma nc ha s n a fe ira d irig e-

se a algum as pessoas e adapta-se as reaco es delas. 0 an un cian -

te de urn tira-m an chas n a televisao dirige-se a m ilhoes de des-

c on he cid os c ujo u nic o e lo e a m en sagem a que estao subm eti-

dos. A m assa, em si, e p as si va e a tom iz ad a.

N a v er da de e a com unicacao de massas que cria a m assa.

P ara q ue ela e xis ta , s ao n ec es sa rie s m eio s d e c om un ic ac ao m o-dem os, de gran de difusao , co mo 0 c ar ta z o u 0 ami nc io d e t ele -

v is ao . N is so , a m as sa s e d is tin gue d a m ultid ao , c on ju nto d e p es -

s oa s r eu ni da s p ar a a lg ur na c oi sa , q ue p od e r ea gi r i me di at am en -

te a m ensagem que recebem . A m ultidao aplaude ou infam a; a

massa nao tern voz nem rosto . E a comunicacao de massa esem pre in direta. U tiliza algum can al, do cartaz ao film e, co m-

p le xo e cs ro , 0 q ue i mp li ca c on se qi ie nc ia s p ar a 0 p ro pr io c on -

t eu do d o d is cu rs o .

Em p ri me ir o lu ga r, g er alm en te e breve, po is lim itada n o

tem po ou n o espaco , 0 qu e q ua se n ao th e p os sib ilita a rg urn en -

" im p et o i rr es is ti ve l" : a l in h a o ndu la n te s ug er e um a v ag a q ue no senvolve ; meta fora ;

" s aude " : t odos e s ta o i ncr iv e lmen te b r onze ados ;

" di nami sm o" : a e qu ip e a va nc a; n um a p ri me i ra v er sa o, e st av a

imovel , 0que e ra b e rn menos convi ncen te ;

"patriot ismo": 0 c eu e a zu l, a s c am is as s ao b ra nc as , o s v es ti do s

da s duas mu lhe re s sao ve rme lhos;

" o tim ismo" : a s dozepe s soas (bor n nume ro , 0dos apost o lo s ), o s -

t e nt am u rn so rr iso comer c ia l, 0 q ue v ale u a o c art az 0 nome

de "oui s ti t i- sexe"*.

E ss e c ar ta z e o bra de p ro fis sio na is d a p ub lic id ad e, c om o

alias todos os dos outros partidos nessa cam panha'. N ote-se

que a co no tacao en riquece a den otacao , e que em certo sen tido

a co ntradiz. P ois a im agem da a en ten der que to do s o s figuran -

tes da equipe irao tom ar-se ministros de Chirac, ao passo que

a lg un s n ao s e to mara m; 0ma i s impor ta n te e que ele nao m os-

tra os principais colaboradores de Chirac, que nao eram nem

urn po uco jo ven s. N ao se trata de um a m en tira, tan to quan to n o

* Ouistiti e sagiii, mico. (N. do T.)

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86 INTRODU9AO A RETORICA DOSECULO lAO XX 87

tacoes sutis, mas autoriza, em compensacao, ajogar com ambi-

giiidades. Sua satisfaciio ou 0 dinheiro de volta: otimo, mas em

que condicoes? X lava mais branco: mas 0que e como? Em se-

gundo lugar, embora menos claro e menos preciso, 0discurso ecompletado pelo conteudo nao Iingii is tico da mensagem, pela

musica, pela imagem, que no fundo desempenham 0 papel daacao, parte nao verbal da antiga retorica. Mas a publici dade vai

renovar a invencao tambem.

Primeiro ela cria seus proprios lugares, no sentido de ar-

gumentos-tipo ("somos jovens") ou de perguntas para chegar a

eles ("Como parecer jovem?"). Lembremos os lugares mais

conhecidos: juventude, seducao, saude, prazer, status, diferen-

ca, natureza, autenticidade, relacao qualidade/preco.

Depois, a publici dade privilegia 0 etos e, principalmente,

o patos, em relacao ao logos. Em outras palavras, a mensagem

e bern mais oratoria que argumentativa. 0 proprio patos - psi-

cologia utilizada pelos meios de comunicacao de massa - e di-ferente do da retorica antiga. Inspira-se, pelo menos atualmen-

te, na psicanalise, Dieter Flader, em seu estudo de 1976 sobre a

estrategia da publicidade, insiste no lado infantilizante dessa

retorica, voltada para a necessidade que ha nos consumidores

de se sentirem seguros e amados. Es lohnt sich bestimmt ("Sim,

vale a pena!"), proclama 0slogan, incitando a deixar de lado a

angust ia da duvida, a entregar-se a voz paterna onisciente e

onipotente. Lee matchfrei ("Lee e liberdade"); Lee ja nao e urnobjeto, calcas banais, porem urn ser personalizado que cuida de

nos, e a liberdade que nos proporciona encontra verdadeiro

senti do no inconsciente: l ivra-nos da angust ia de sermos adul-

tos. Significa que todas essas mensa gens, ao eliminarem 0

tempo e as relacoes causais, ao criarem uma fusao narcisica en-

tre 0objeto e 0ego, jogam com a necessidade de regressao afe-

tiva. Ve-se 0mesmo fenomeno nos "revolucionarios" de 1968;

seus slogans mais fortes:

Poder-se-ia retorquir a Flader que sua explicacao e parcial,pois ha outras motivacoes alem do retorno a infancia; a liber-

dade deLee talvez seja tambem a comodidade do corpo, a libe-

ra<;aosexual, a saida da infancia (e nfio a volta a ela!). Mas, no

conjunto, ele tern razao; 0 patos ganha do logos, e esse patos

inova em relacao a tradicao retorica.Mas, se mudar seu conteudo, a publicidade se inserira no

sistema retorico; comporta invencao, disposicao - plano da men-

sagem, estrutura do cartaz -, elocucao e principalmente acao.

Numa propaganda eleitoral, por exemplo, nao so a voz e essen-cial como tambem todo 0 comportamento, a aparencia do can-

didato, que e a forma moderna do etos.

Caberia mostrar aqui 0 que distingue a propaganda da pu-

blicidade. Limitemo-nos a observar que elas tendem a confun-

dir-se, pois os part idos poli ticos confiam suas campanhas cada

vez mais a publicitarios. Donde a pergunta: a publicidade e real-

mente compativel com a democracia?

Pode-se responder: sim, porquanto e retorica, e a base da

retorica e a argumentacao contraditoria, Toda publicidade e con-traditada por outras, e quem nao achar que X lava mais branco

sempre pode comprar Y; assim tambem, quem nao gosta do

sorriso comercial deste candidato tern a liberdade de votar em

outro. Certo, mas a publicidade limita a liberdade de escolha

por situar 0 debate em tal nivel que na verdade nao ha debate,

conservando da argumentacao apenas 0 que ela tern de mais

sumario e oferecendo como termos de escolha apenas objetos

- brancura, sorriso - que nao tern grande relacao com proble-

mas reais. A democracia precisa de urn povo adulto, e a retori-

ca publicitaria devolve as massas a infancia,

Nova retorica contra nova retorica

Sob a calcada, a praia.

E proibido proibir.Seja realista, peca 0impossivel.

Nossnos 60, assiste-se ao nascimento de uma "nova reto-

rica". Mas que retorica? Houve varias, e a que estava mais na

moda naquela epoca afirmava-se puramente li teraria, sem rela-

<;aoalguma com a persuasao, Tinha-se entao esquecido tao bernfaziam parte da recusa global de ser adultos.

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88 INTRODUr;AO A RET6RICA DO SECULO lAO XX " 89

Nem a Biblia, nem 0C6digo Civil, nem poder algum pode

nos obrigar a partir do dominio da antiga ret6rica. ("Rhetorique

de I'argumentation et des figures", in Figures et conflits rhetori-

ques, p. 126)

de valor? 0 que nos permite afirmar que isto e justo ou que

aquilo nao e belo? Buscaram, pois, a logic a do valor, paralela a

da ciencia, e acabaram por encontra- la na antiga retorica, com-

pletada, como convern, pela dialetica. A grande descoberta desse

tratado - a palavra "descoberta" comporta urn pressuposto, mas

nos 0 assumimos - e que, entre a demonstracao cientifica e aarbitraria das crencas, M uma logic a do verossimil, a que dao 0

nome de argumentacao, vinculando-a a antiga retorica.

No essencial, esse livro e urn estudo dos diversos tipos de

argumentos, a que voltaremos no capitulo VIII; e certo que

abre espaco para as figuras, porem urn espaco menor, reduzin-

do-as a condensados de argumentos; por exemplo, a metafora

condensa uma analogia. Em surna, uma retorica centrada na in-

vencao, e nao na elocucao.

Portanto, tambem incompleta. De fato, se 0 tratado des-

creve maravilhosamente as estrategias da argumentacao, deixa

de reconhecer os aspectos afet ivos da Retorica, 0deleetare e 0movere, 0encanto e a emocao, essenciais contudo a persuasao.

Na Franca, 0Traite de I 'argumentation foi ignorado pelos

meios l iterar ios, fechados para tudo 0 que nao fosse estilistica,

e ate pelos meios filosoficos, de tal modo a ideia de urn tercei-

ro caminho, entre a logic a formal e a ausencia de logica, era es-

tranha a cultura da epoca, Pelo menos na Franca, pois conti-

nuava familiar aos anglo-saxoes, que, alias, nunca tinham es-

quecido de todo a retorica,

o pensamento de Perelman so teve penetracao realmente no

fim dos anos 70. E mesmo entao seus esquemas argumentativos

foram utilizados bern menos para interpretar os autores que para"desmistifica-los'' . Pois na epoca 0 lado retorico dos discursos

era considerado indicio de manipulacao ideologica:

o que significava a palavra "retorica" que ela virou rotulo de

coisa completamente diferente.

Esse movimento, que incluiu Jean Cohen, 0 grupo MU,

Gerard Genette, Roland Barthes, transforma a retorica em "co-

nhecimento dos procedimentos da l inguagem caracteristicos

da literatura" tRhetorique generale, p. 25). E esses procedi-

mentos sao reduzidos as figuras de estilo, definidas como des-

vios do "grau zero", que seria a prosa nso literaria. Henri Mo-

rier chegou a fazer urn Diciondrio de retorica e poetica sem

falar de argumentos, lugares, disposicoes. Essa "nova retorica"

limita-se, pois, a elocucao, e desta so fica com as figuras. Em

suma, uma retorica sem finalidade alguma.

Nao nos cabe desprezar essas obras, tao ricas e muitas ve-

zes apaixonantes. Mas trata-se de retorica? Urn representante

do grupo MU responde rejeitando qualquer argumento de au-

toridade:

Por certo, mas M outro poder, 0 do dicionario. E nosso

temor e de que, a forca de infringi-Io, cheguemos a Torre de

Babel...

Em todo caso, a retorica literaria opoe-se outra corrente,

de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts- Tyteca, cujo livro mais

importante, Traite de I'argumentation, la nouvelle rhetorique,foi publicado por Presses Universitaires de France em 1958 e

quase nao teve sucesso na epoca * .Essa obra, que se insere na grande tradicao retorica de Aris-

toteles, Isocrates e Quintiliano, e realmente a teoria do discurso

persuasivo. Seus autores partiram de urn problema, nao lingiiis-

tico nem li terar io, mas fi losofico: como fundamentar osjuizos

A ret6rica aparece, assim, como a face significante da ideo-

logia. (R. Barthes, "La rhetorique de I'image", p. 49)

Essa'retcrica da desconfianca, preconizada por Barthes e

por tantos outros, parece-nos singularmente redutora, tanto dos

textos que interpreta quanto da propria ideia de retorica. A

nosso ver, a teoria de Perelman- Tyteca permite uma leitura re-* Tratado de argumentacdo, Sao Paulo, Martins Fontes, 1996. (N.

do E.)

L/

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90 INTRODU<;:AO A RET6RICA Capitulo V

A rgumen tariiotorica dos textos que se fundam no dialogo, e nao na descon-

fianca, como tentaremos mostrar no ultimo capitulo.

Para chegar hi, e preciso negar-se a opcao mortal entre re-t6rica da argumentacao e retorica do estilo. Uma nunca esta

sem a outra",

No fim dos anos 60, urn academico, professor de materna-

tica, fundou urn instituto de pesquisas sobre 0 ensino, onde se

elaborava aquilo que recebeu 0nome de matematica nova. Urn

dia, diante de seus colegas, fez a seguinte pergunta: "Sera pos-

sivel demonstrar que nossa reforma tornara 0 ensino mais efi-

caz?" Pergunta honesta, porem ingenue. Pois, afinal, a eficacia

de urn ensino de matematica nao se demonstra matematica-mente! Essa e urna pergunta que nao esta realmente clara - 0

que significa "eficaz"? -, portanto a resposta nao pode ter a

evidencia de urna lei cientifica.

o que nao significa que a pergunta nao tern resposta. Se aausencia de demonstracao significasse nao-saber, nao haveria

ciencias hurnanas. Ora, elas existem, mas os conhecimentos que

proporcionam sao de ordem diferente do das ciencias "duras".

Isso para ilustrar a tese deste capitulo e de todo 0 livro:

entre a demonstracao cientifica ou 16gicae a ignorancia pura e

simples, ha todo urn dominio da argumentacao.

Esta constitui urn metodo de pesquisa e prova que fica a

meia distancia entre a evidencia e a ignorancia, entre 0neces-

sario e 0 arbitrario, Tanto quanto a dialetica - que eia continua

com outra forma -, constitui urn dos pilares da ret6rica. Os fi-

losofos, desde Descartes, acreditaram que esse pilar estivesse

destruido; no entanto eles mesmos precisam dele...

A itt6rica em si cornpoe-se de dois elementos: argumen-

tativo e oratorio. E ai vai nossa segunda tese: a importancia da

oratoria e maior quanto mais urgente for a questao, mais restri-

to 0acordo previo, e menos acessivel a argumentacao logica 0

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92 INTRODUr;AO A RET6RICA ARGUMENTAr;AO 93

audit6rio. Urn advogado sera bern mais orador se 0 tribunal

comportar urn juri; urn politico sera bern mais orador diante

das massas que diante do Parlamento, e mais ainda quanto me-

nor for 0 tempo que tiver para tomar a palavra. E entao que 0

etos e 0patos tendem a suplantar 0 logos, e e ai tambem que sur-

gem as figuras.Essas sao as duas teses que tentaremos defender com ar-

gumentos.

se audit6r io, termo que se aplica ate aos lei tores . Urn audit6r io

e, por definicao part icular , diferente de outros auditor ios, Pri-

meiro pela competencia, depois pelas crencas e finalmente

pelas emocoes, Em outras palavras, sempre ha urn ponto de

vista , com tudo 0 que esse termo comporta de relat ivo, l imita-

do, parcial. Ora, como a argumentacao pode modificar esseponto de vista sem recorrer pouco ou muito ao etos e ao patos?

Responderao que os proprios Perelman- Tyteca introdu-

zem a nocao de auditorio universal , que esta acima de qualquer

ponto de vista, portanto talvez de qualquer retorica. Mas onde

esta esse auditorio equal seria a sua utilidade para 0 argumen-

tador?

Sera urn auditorio nao especializado? E 0 que se pensava

as vezes no seculo XVII, com 0 testemunho de Moliere e Pas-

cal. Admitindo-se isso, a relacao entre 0 orador e 0 audit6rio

nem por isso deixara de ser retorica; por certo muito mais, pois

a vulgarizacao e bern mais ret6rica que a ciencia. E se 0pr6prioorador finge nao ser especialista, como Pascal em Provincia-

les, e estar interrogando ingenuamente especial is tas, na verda-

de esta utilizando uma figura completamente orat6ria, 0cleuas-

rno (ou autodepreciacao).

Sera urn auditorio nao particular, sem paixoes, sem pre-

conceitos, a humanidade racional, em suma? Mas invocar esse

auditor io, f ingindo que ele existe , poderia nao passar de artif i-

cio. Em politica, faz-se apelo ao homem acima dos partidos, ao

homem comum, ao homem de born senso, ao uomo qualun-

que... Nada de mais ideo16gico. Agora, sera que 0proprio filo-

sofo nao esta sendo ideologo quando afirma dirigir-se ao ho-

mem racional que esta acima de seu auditorio real (os leito-

res)? "Homens, sede humanos!", exclama Rousseau. Sera que

na verdade nao estava interpelando os intelectuais parisienses

de seu tempo? Dirigir-se ao "homem" por cima do ombro de

seu audit6rio real e utilizar uma figura completamente orat6-

ria, a ap6strofe.

Em suma, 0 auditorio universal poderia ser apenas uma

pretensao, ou mesmo urn truque retorico, Mas achamos que ele

pode ter funcao mais nobre, a do ideal argumentativo. 0 orador

As cinco caracteristicas da argumentacao

Como definir a argumentacao? Certamente nao como um

conjunto ou uma sequencia de argumentos! Pode-se definir 0

argumento como uma proposicao destinada a levar a admissao

de outra. Urn indicio serve de argumento a urn policial ou a urn

advogado, etc.: "pois", "de fato", "porquanto" ... e tambem aexpressao: "Considerando os fatos como sao ..."

Como se ve, certos argumentos sao demonstrativos, ou-

tros argumentativos, nao se podendo definir a argumentacao

senao a parti r do argumento. Argumentacao e uma totalidade

que so pode ser entendida em oposicao a outra totalidade: a de-

monstracao,

Inspirando-nos livremente em Perelman- Tyteca, diremos

que a argumentacao distingue-se da demonstracao por cinco

caracteristicas essenciais: 1) dirige-se a urn auditorio; 2) ex-

pressa-se em lingua natural; 3) suas premissas sao verossimeis;

4) sua progressao depende do orador; 5) suas conclusoes sao

sempre contestaveis, Veremos que todas essas caracter ist icas

incluem 0 componente oratoria da retorica e justificam nossa

segunda tese.

o auditorio pode ser "universal"?

Sempre se argumenta diante de alguem, Esse alguem, que

pode ser urn individuo ou urn grupo ou uma multidao, chama-

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94 INTRODU(:AO A RET6RICA ARGUMENTA(:AO 95

sabe bern que esta tratando com urn auditorio particular, mas

faz urn discurso que tenta supera-lo, dirigido a outros audito-

rios possiveis que estao alem dele, considerando implicitamen-

te todas as suas expectativas e todas as suas objecoes. Entao 0

auditorio universal nao e urn engodo, mas urn principio de su-

peracao, e por ele sepode julgar da qualidade de uma argumen-tacao'.

mam isso; e certo que argumentam e ensinam, mas por repeti-

coes, aliteracoes, ritmos, metaforas, alegorias, enigmas, que de-

senvolvem a funcao poetica em detrimento da funcao critica,

como se observa ainda em nossos proverbios,

Em suma, a argumentacao oral em geral e menos logica e

mais oratoria que a escrita. No entanto, cabe ressaltar uma ex-pressao, que se ouve nos debates mais tecnicos, e nso so nas

brigas de familia: "Se pelo menos pudessemos explicar pes-

soalmente!" Ela comprova que falta alguma coisa a argumenta-~ao escrita, que a oral tem urn valor insubstituivel, que a orato-

ria pode ser, de certa forma, heuristica.

Lingua natural e suas ambigiiidades

Na demonstracao e grande 0 interesse de se utilizar uma

lingua artificial, por exemplo a da algebra ou da quimica. A ar-

gumentacao desenrola-se sempre em lingua natural (exemplo,

frances), 0que significa utilizar com grande frequencia termos

polissemicos e com fortes conotacoes, como "democracia",

que esta longe de ter 0mesmo sentido e 0mesmo valor paratodos os oradores. Alem disso, a propria sintaxe pode ser fonte

de ambigiiidade. Tomemos como exemplo 0adagio: 0 homem

e 0 lobo do homem, que nao e apenas urn proverbio popular,

mas foi lugar da filosofia do seculo XVII. 0 que quer dizer? A

que corresponde a metafora do lobo: ser cruel, e verdade, po-

rem solitario ou em matilha? Neste ultimo caso, os lobos,

mesmo humanos, nao se comem uns aos outros, e e possivelcontinuar sendo lobos mesmo sendo irmaos! E significa "sem-

pre" ou "na maioria das vezes"? E 0 artigo 0 refere-se ao ho-

mem em sua essencia, ao homem natural anterior a cultura ou

ao homem de hoje? Em surna, 0 adagio tem tantas armadilhasquanta urn slogan publicitario. 0 mais notavel, porem, e que

nao sentimos sua ambigiiidade; basta ouvi-Io para que nos pa-

reca clarissimo. E que em lingua natural consideramos claro

aquilo que e apenas familiar.

Outra observacao: quando se fala de argumentacao, e pre-

ciso perguntar se ela e escri ta ou oral , pois isso muda tudo.

Uma argumentacao oral deve combater dois inimigos mortais:

desatencao e esquecimento; e so pode fazer isso por meio de

procedimentos oratorios. As chamadas culturas "orais" confir-

Premissas verossimeis: 0que e verossimil?

Do fato de0auditorio ser sempre particular, parece decor-

rer a terceira caracteristica, 0 carater simplesmente vero-simildas premissas, que nao sao evidentes em si, mas que "parecem

verdadeiras" a esse auditorio. Essa constatacao parece fadar-

nos ao relativismo: "A cada urn sua verdade."

Mas essa "constatacao" e erronea, pois repousa num jogo

etimologico de palavras. De fato, a verossimilhanca nao esta

ligada ao auditorio, e nossa terceira caracteristica e logicamen-te independente da primeira. 0 verossimil nao decorre de igno-

rancia, incompetencia ou preconceitos do auditorio, mas do

proprio objeto. Quando se trata de questoes juridicas, econo-

micas, politicas, pedagogicas, talvez tambem eticas e filos6fi-

cas, nao se l ida com 0 verdadeiro ou 0falso, mas com 0maisou 0 menos verossimil. Inversamente, num mundo onde tudo

fosse cientificamente certo, ja nao seria possivel argurnentar,

nem... agir. Em surna, a argumentacao nao deve resignar-se ao

verossimil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve res-

peita-lo como inerente a seu objeto e nao ter pretensoes a urn

cientificismo que nao passaria de engodo, que na verdade seria

anticientifico.

o que e entao 0verossimil? Para encurtar: tudo aquilo em

que a confianca epresumida. Por exemplo, osjuizes nem sem-

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96 INTRODUr;AO A RET6RICA ARGUMENTAr;AO 97

pre sao independentes, os medicos nem sempre capazes, os

oradores nem sempre sinceros. Mas presurne-se que0 sejam; e,

se alguem afirma 0 contrario, cabe-lhe 0 onus da prova. Sem

esse tipo depresuncao, a vida seria impossivel; e e a propria vida

que rejeita 0ceticismo.

Curnpredeixar claro que a argumentacao, mesmo se apoian-do no verossimil, pode comportar elementos demonstrativos,

no sentido de necessaries e, portanto, indubitaveis. De modo

geral, alias, esses elementos sao negativos; pode-se demonstrar

que urn projeto de lei nao e incompativel com a constituicao,

mas nao que sera benefice com certeza. E, se ha uma etica na

argumentacao, e de respeitar esses elementos demonstrativos

sempre que eles existirem.

Suponhamos, por exemplo, urndebate historico sobre0caso

Dreyfus: e certo que ele sempre comporta aspectos controver-sos, mas pode-se e deve-se considerar como "demonstrado" que

o capitao Dreyfus nao era culpado, que nao foi ele 0 autor dadocumentacao criminosa. Duvidar disso seria demonstrar par-

cialidade racista, e nao prudencia e objetividade.

Premissas verossimeis: 0 simples fato de invoca-las equi-

vale, pois, a apelar para a confianca do auditorio, para a sua

"presuncao", e comporta urn aspecto oratorio.

mesma conclusao; a palavra "alias", desconhecida na demons-

tracao, e freqiiente na argumentacao:

Demonstracao:-B-C-D ..· z

A ordem dos argurnentos e,pois, relativamente livre, e de-

pende do orador; vimos, de fato, que a disposicao dos antigos

compreendia dois planos-tipo, mas nada havia de necessario, e

podiam ser subvertidos. Por outro lado, depende do auditorio,

no sentido de que 0orador dispoe seus argurnentos segundo as

reacoes, verificadas ou imaginadas, de seus ouvintes. Em surna,

a ordem nao e logica, e psicologica.

Assim, ainda que 0 exordio seja muito util, pode-se as ve-zes comecar ex abrupto, como Cicero: "Ate quando, Catilina,

abusaras da nossa paciencia?" Ou ainda como de Gaulle, no

discurso feito emArgel em4 dejunho de 1958: "Eu entendi."

Se essas frases tivessem sido postas no interior do discur-

so,teriam perdido grande parte de sua eficacia.

Umaprogressiio que depende do oradorConclusiies sempre controversas

Se as premissas nao sao verossimeis, a progressao dos ar-

gumentos nada tern a ver com uma demonstracao. A. Lalandedefine assim a argumentacao: "Serie de argumentos, todos ten-

dentes a mesma conclusao,"Definicao que nos parece inadequada, devido a palavra

"serie", que lembra urna progressao linear. Se pudermos com-

parar a demonstracao a urna cadeia de argumentos ("essas lon-

gas cadeias de razoes" de Descartes), em que cada urn e com-

provado por aqueles que 0precedem, e cuja ordem e, portanto,

logica, a argumentacao sera mais semelhante a urnfuso de ar-

gumentos, independentes uns dos outros e convergentes para a

Nurna argumentacao, a conclusao nao e, ou nao e so, urn

enunciado sobre0

mundo; ela expressa acima de tudo0

acordoentre os interlocutores. Portanto, tern as seguintes caracteristi-

cas. Primeiramente, deve ser mais rica que as premissas, ao

centrario da demonstracao, em que a conclusao "sempre segue a

pior parte'"; se a argumentacao ficasse ai, seria esteril, ou esta-

ria limitada a ser apenas refutacao, Em segundo lugar, a conclu-

sao e reivindicada pelo orador como algo que deve impor-se,encerrarS debate. Mas, no que serefere ao auditorio, este nao e

obrigado a aceita-la; continua ativo e responsavel tanto pelo sim

quanta pelo nao; e principalmente nesse sentido que a conclu-

sao e controversa: ela compromete tanto quem a aceita quanta

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98 INTRODU9AO A RET6RICA ARGUMENTA9AO 99

E com referencia it atividade da fala que 0 filhote de ho-

mem se situa; a palavra "infantil" e formada por duas unidades,

in efari, que significam: "nao falar". Portanto, e a partir deumacarencia, de uma ausencia, que a crianca e percebida'.

Quanto a esta, a lguns acham que poderia ser formalizada,

ou seja , expressa em lingua art ificial . Mas 0verdadeiro proble-

ma e outro. Uma formalizacao s6 tern vantagem se for fecunda,

se permitir descobrir pelo calculo outros dados alem daqueles

que ela transcreve.

Nao nos parece que tal calculo seja possivel com a argu-mentacao; suas estruturas podem ser descritas , mas nso dedu-

zidas. Por que? Porque a argumentacao e dir igida ao homem

total, ao ser que pensa, mas que tambem age e sente.

quem a recusa. Urn born exemplo, que J.-B. Grize retirou de

uma obra pedag6gica, ilustra essas tres caracteristicas:

A conclusao que se segue ao portanto e bern mais r ica que

as premissas, po is 0 autor passa da opiniao dos romanos - opi-

niao que ele infere, e de maneira bern contestavel, a partir da

etimologia - a uma verdade universal: a crianca e percebida,que 0 autor coloca como necessaria . Mas 0 audit6rio pode nao

aceita-la, pois talvez nao atribua mais valor a etimologia do

que atribuiria a urn trocadilho. Seja como for, uma conclusao

nao e obrigat6ria: e sempre contestavel; mas 0 e em maior ou

menor grau. Tambem aqui e preciso renunciar ao tudo ou nada

em favor do mais ou menos verossimil.

Concluiremos que a argumentacao rejei ta a al ternat iva "ra-

cional ou emotivo". Pois as premissas sao crencas, e as crencas

sempre tern urn conteudo afetivo, e s6 pode ocorrer 0mesmo

com a conclusao, mesmo que em caminho 0 discurso consiga

modificar a afetividade; se 0orador transformar medo em con-

fianca, tris teza em alegria, tera l ibertado 0 audit6r io de senti-

mentos negativos, mas nao de sentimentos.

o que e uma "boa" argumentacao?

Antes de prosseguir, convem perguntar se opor assim ar-

gumentacao e demonstracao nao tern algo de forcado,

Pierre Oleron afirma assim que a pr6pria demonstracao

cientifica nao e tao pura e rigorosa quanto diz Perelman. No

pr6prio cerne das ciencias exatas encontram-se controversias

em que ambas as partes tern 0desejo de convencer, "de exercer

influencia'". Convem principalmente - cremos n6s - dist inguir

entre demonstracao logico-matematica, puramente formal, e

demonstracao experimental , na qual intervem tambem outros

criterios alem da validade logica, como por exemplo a falsifi-

cacao de Karl Popper, que seria muito instrutivo comparar a ar-

gumentacao'.

Ora, dizer que qualquer argumentacao e ret6rica, ou, em

outros termos, que comporta uma parte de orat6ria, nao sera

torna-Ia suspeita? Nao sera ela ipso facto manipuladora, seja

por confusao, seja por omissao, seja por seducao? Em suma,uma argumentacao pode ser boa? Como?

Note-se que, aplicado a argumentacao, 0 termo "boa" re-

fere-se a dois valores diferentes , ou mesmo opostos. Uma "boa"

argumentacao e a mais eficaz ou a mais honesta? E as duas

nem sempre estao juntas! Aqui nos ateremos ao problema da

honestidade.

Ora, se uma argumentacao e mais ou menos desonesta,

nao e porque seja mais ou menos ret6rica. Caso contrario Pla-

tao, cujos textos sao infini tamente mais ret6ricos, pelo conteu-

do orat6rio, que os de Arist6teles, seria menos honesto que es-

tel Entao, segundo quais criterios avaliar a honestidade dumaargumentacao?

o primeiro que vern a mente e 0da causa. Uma argumen-

ra<;ao valeria pela causa a que serve. Mas como explicar que

uma causa excelente seja as vezes defendida por rna argumen-

tacao? E, principalmente, como sabemos que uma causa e boa?o criterio-supoe que 0 valor da causa seja conhecido antes da

argumentacao encarregada de estabelece-lo: 0 que equivale a

julgar antes do processo, a eleger antes da campanha eleitoral ,

a saber antes de aprender. Nao existe dogmatismo pior.

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7/11/2019 Introdução à retórica. Olivier Reboul. São Paulo_ Martins Fontes, 2004

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1 0 0 INTRODUC;10 A RETORICA ARGUMENTAC;10

Outro criterio, este interno, consiste em respeitar os ele-

mentos demonstrativos, ou seja , logicos, que a argumentacao

comporta. Em outras palavras: agir de tal modo que ela nao

seja sofistica.

mas, ainda que tenha muitas outras coisas censuraveis, Pode-se

responder , porem, que a argumentacao, pelo fato de comportar

elementos demonstrat ivos, pode abusar deles , sendo pois sofis-

tica no senti do estr ito. Vejamos os dois t ipos de argumentacao

descritos por Aristoteles,

oexemplo torna-se sofistico quando dele se extrai uma

conclusao que ultrapassa 0que ele mostra, quando se "extrapo-

la" do particular ao universal: tal e tal politicos de esquerda

aprovam essa medida; logo, a esquerda aprova essa medida.

o entimema torna-se sofis tico quando infr inge as regras

do silogismo, quando conclui alem daquilo que a logica lhe

permite. Vejamos a seguinte proposicao:

Os sofistas e a argumentacdo

Inspirando-nos em Lalande" , digamos que 0 sofisma e urnraciocinio cuja validade e apenas aparente e que ganha adesao

por fazer crer em sua logica. Pode servir assim para legitimar

interesses, amor-proprio e paixoes,

Portanto, e pela forma que urn raciocinio e sofistico, e naopor seu conteudo, Vejamos dois exemplos de silogismo.

o primeiro "demonstra" que 0sal mata a sede:

Dupont, par serdeputado de direita, precisou votar essa lei.

o entimema e valido se for admitida sua principal implicita:

- Beber agua mata a sede;- ora, 0 sal obriga a beber agua;

-logo, 0sal mata a sede.

Todos os deputados de direita votaramessalei.

Agora, urn segundo exemplo:

o segundo "demonstra" que 0barato e caro:

- Tudo 0que e raro e caro;- ora, urn born cavalo barato e raro;-logo, urn born cavalo barato e caro.

- Todos os deputados de direita votaram essa lei;

- ora, Durand votou essa lei;

-logo ...

o primeiro e urn sofisma grosseiro, que reside no equivo-

co do termo medio: beber = obrigar a beber, significando 0

segundo na realidade 0contrario do primeiro.

o segundo e urn verdadeiro silogismo, perfeitamente vali-

do. Donde vern entao 0 absurdo de sua conclusao? Do fato de

que as premissas sao falsas, e de que 0raciocinio prova isso pelo

absurdo. Prova que 0que e raro nem sempre e caro; ou ainda queurn born cavalo barato nem sempre e raro (em caso de rna venda,

por exemplo). Em suma, nao ha sofisma no sentido estrito, mas

urn erro que consiste em transformar 0provavel em certo.

Alguns autores arguem a oposicao entre demonstracao e

argumentacao, afirmando que esta nao pode comportar sofis-

Logo, nada! Nao se tern 0 direito de concluir . Durand po-

de ter votado a lei sem ser deputado de dire ita.

Vejamos urn terceiro entimema:

Essa medida e de esquerda porque foi tomada por urn go-verno de esquerda.

Basta enunciar a principal implicita:

Qualquer medida tomada por urn govemo de esquerda e deesquerda,

•para perceber que e falso, pois acontece de urn governo de di-

reita tomar medidas de esquerda e vice-versa. 0 entimema e

valido, mas sua premissa e falsa.

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102 INTRODUC;AO A RET6RICA ARGUMENTAC;AO 103

Em suma, urn entimema e sofistico quando conclui mais

do que deve. E falso quando toma por verdadeira urna premis-

sa, geralmente implicita, que e desmentida pelos fatos.

Podemos ir mais longe: urna argumentacao e sofistica, ou

pelo menos erronea, quando sua conclusao vai alem dos argu-

mentos que supostamente a estabelecem. Mas, dirac alguns, isso

nao acontece sempre? N6s mesmos afirmamos que urna conclu-

sao argumentativa e mais rica que suas premissas. E entao?

De olhos fechados compro tudo na primavera.

Ate 0dia em que urn outro respondeu:

Quando abro os olhos, euvou ao Louvre * .

Niio-parafrase eJechamento

o que ilustra urn principio fundamental: s6 sepode refutar urna

ret6rica em seu pr6prio plano, por meio de outra ret6rica.

Nao-parafrase e fechamento: demos numerosos exemplos

dis so em outros textos', Aqui ficaremos sat isfeitos com urn s6,

oja mencionado inicio da prime ira Catil inaria de Cicero:

Sofisma da argumentacao seria, portanto, ela dizer mais do

que sabe. Pois bern, existe a maneira de "dizer". Pode-se afir-

mar excluindo qualquer objecao - para comecar em simesma-,

mas tambem se pode propor sem impor, favorecer ao maximo a

pr6pria afirmacao, deixando-a aberta as criticas alheias. Essa

abertura constitui a honestidade da argumentacao,

Mas nao estara esta comprometida pela ret6rica? Aqui

cabe interrogar sobre 0 "dizer" pr6prio da ret6rica. Pelo que

dissemos acima, urn discurso e ret6rico quando, para persuadir,

alia seu componente argurnentativo a seu componente orat6rio,

a forma ao conteudo. Isso acarreta duas consequencias.

A prime ira e que 0 discurso ret6rico nunca e completa-

mente parafraseavel; em outras palavras, nao pode ser traduzi-

do, nem mesmo em sua pr6pria lingua, por urn discurso que

tenha absolutamente 0mesmo sentido. Vejamos 0 argumento

quase logico mencionado no TA :

Quo usque tandem abutere, Catilina,patientia nostra?

Os amigos demeus amigos sao meus amigos.

Ele mostra perfeitamente 0 efeito persuasivo decorrente da

alianca da forma com 0 fundo. Lembremos que essa pergunta

orat6ria substitui 0 ex6rdio, e que, se aparecesse mais tarde nodiscurso, produziria menos efei tos. Const itui uma ap6strofe,

que, alias, vai durar quase ate 0 fim da arenga; ora, se formos

parafrasear a ap6strofe: "ate quando Catilina abusard . .. " em vez

de "ate quando, Catil ina, abusaras . .. " , perderemos muito. Por

ser nao-parafraseavel, a pergunta tambem e fechada, pois e sem

replica. De fato ela contem tres pressupostos. Admitamos que

Catilina tenha respondido: "Vou parar ja"; sua resposta teria

deixado intactas tres afirmacoes: 1) houve paciencia; 2) ele

abusou dela; 3) essa paciencia era "nossa". Note-se, enfim, que

Cicero conseguiu fundir numa mesma frase duas figuras opos-

tas: a ap6strofe e a prosopopeia: finge dirigir-se a outro (Cati-

lina), e nao a seu audit6rio, mas faz 0 seu audit6rio (0 Senado)

-falar por sua voz: pa ti en ti a n o st ra .

Mas quem nao percebe que, sem essa ret6rica, sem esse

elemento orat6rio, Cicero arriscava-se a fracassar? Sua argu-

mentac;aoioi eficaz: seria por isso desonesta?

E simples perceber que, se substituirmos amigos por alia-

dos ou por quem me ama ... 0 argumento desaparece integral-

mente.

A segunda e que urn discurso ret6rico e sempre mais ou

menos fechado, sem replica. Urn born slogan e aquele que ex-

clui qualquer resposta; e mau (ineficaz) em caso contrario. Nos

anos 30, uma grande loja anunciava:* Note-se que em frances ha rima: Quand je les ouvre,je vais au Lou-

vre. (N. do T.)

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104 INTRODU9AO A RETORICA ARGUMENTA9AO 105

A nosso ver, a caracteristica da boa argumentacao nao esuprimir 0 aspecto ret6rico - uma argumentacao inexpressiva

nao e obrigatoriamente mais honesta -, mas equilibra-lo, se-

gundo dois criterios.

A nao-parafrase pode-se opor 0 criterio da transparencia:

que0

ouvinte fique consciente ao maximo dos meios pelosquais sua crenca esta sendo modificada; 0encanto e a poesia do

discurso nao serao destruidos por isso, mas serao dominados.

Ao fechamento, pode-se opor 0 criterio da reciprocidade:

que a relacao entre 0orador e 0 audit6rio nao seja assimetrica,

que 0 auditorio tenha direito de resposta. Esses dois criterios

nao tomam a argumentacao menos retorica, porem mais ho-

nesta.

Naturalmente, esse mais e relativo. Uma mensagem publi-

citaria e bern menos transparente e reciproca que urna argu-

mentacao academics. No limite inferior, encontramos esse fe-

nomeno proprio do nosso seculo, a lingua estereotipada da pro-paganda, mensagens sem nenhuma transparencia nem sentido

preciso, sem nenhuma reciprocidade, pois se trata do discurso

de urn poder cuja "ret6rica" nao tern outra funcao alem de ex-

cluir a critica.

A linguagem estereotipada da propaganda nao e a ret6ri-

ca; e apenas sua perversao mais caricatural. 0 que salva a reto-

rica e precisamente 0que exclui esse tipo de linguagem: 0dia-

logo.

outros, deve atrair e prender a atencao, ilustrar os conceitos,

facilitar a lembranca, motivar ao esforco, Iremos mais longe:

aquilo que hoje chamamos de "transposicao didatica" faz parte

da retorica; ensinar uma materia e conferir- lhe uma clareza,

uma coerencia que ela nao tern necessariamente como ciencia,

e passar da invencao it elocucao e it acao, porem muitas vezes

em detrimento do conteudo propriamente cientifico. As peda-

gogias ativas, que tendem a suprimir a aula professoral, nao

escapam a essa regra: 0 que ha de mais ret6rico do que conhe-

cer antes aqueles que vao ser instruidos e obter sua adesao?

Note-se enfim que, mesmo quando se trata de ensinar a de-

monstrar, so se obtem resultados atraves da argumentacao reto-

rica. E aqui tomamos a liberdade de transcrever uma experien-

cia pessoal do tempo do liceu:

- A professora: Durand, mostre que essas duas retas sao

paralelas. - Durand: Esta se vendo, professora! -A professora:

Durand, aprenda de uma vez por todas que em matematica naose vi!nada, demonstra-se.

Argumentaeao pedag6gica, judiciaria, filos6fica

Esses imperativos ressaltam 0 aspecto assimetrico do en-

sino, mesmo quando se afirma que ha dialogo ou cooperacao.

S6 que 0 verdadeiro professor nunca dissimula sua ret6rica; ao

contrario: ensina os procedimentos retoricos que possibilitam

ensinar, eleva assim os alunos a tomar-se mestres no assunto.

o ensino e, pois, urna relacao assimetrica que trabalha por suaabolicao, para que 0 aluno se tome, se possivel, igual ao mes-

tre. Ai esta ajustificativa do "poder docente".

Poder-se-ia pensar que 0 ensino define urn modelo de re-torica "transparente" e "reciproca" que deveria ser encontrada

em todos os outros setores, pelo menos nas democracias. Con-

venhamos que isso e utopia. E acrescentamos: utopia das maispemiciosas.

Tomemos como exemplo 0 setorjudiciario. Se nos atives-

semos aomodelo pedagogico, urn processo penal deveria ser

urn dialogo ap6s 0 qual 0 reu confessaria livremente seu crime

e pediria para ser castigado. Esse, alias, era 0ponto de vista de

Platao em Gorgias, e foi isso 0que os processos stalinistas pre-

Dialogo: vamos ve-Io em acao em tres casos peculiares:

ensino,justica e filosofia.

Dopedagogico aojudiciario

o ensino nao pode prescindir da pedagogia; e toda peda-gogia e ret6rica. 0 professor e urn orador que, como todos os

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106 INTRODUC;10 A RET6RICA ARGUMENTAC;10 107

tenderam realizar: processos pedag6gicos cujo objetivo era

educar nao s6 0publico mas tambem os culpados, ou pretensos

culpados ...

Nossa democracia nao tern essa pretensao. Distingue nit i-

damente a et ica dojudiciar io , em que as decisoes nao implicam

a anuencia do culpado. Nao se espera que0

reu aceite0

vere-dicto que 0 condena; ninguem the diz: "Nao queremos coagi-

1 0 . . . " Admite-se que a justica pode coagir. E isso e inevitavel,

pois Msempre 0 risco de que a anuencia do condenado seja

obrigat6ria, portanto hip6crita. Em todo caso, nada e mais

nocivo que introduzir a relacao pedag6gica nos dominios nao

educacionais; isso nao e libertar os homens, mas sim infantili -

za-los.

No judiciario, 0 dialogo "ecumenico" da lugar ao debate

polemico, em que 0 objet ivo nao e convencer a parte adversa-

r ia , mas uma terceira parte, 0 t ribunal . E 0 advogado nada tern

de professor; sua finalidade e fazer de tudo para tornar valida acausa de seu cliente, para the dar todas as oportunidades de

vit6ria. S6 que 0advogado nao esta sozinho, mas tern diante de

si colegas capazes de desmentir sua ret6rica, de contradita- la

com outra. E as duas partes preparam dessa maneira 0 julga-

mento do tribunal.

tr ibunal que designa peritos e depois , eventualmente, uma nova

pericia, de tal modo que 0processo pode durar muito tempo.

Assim, em 1909, grande numero de expropriados entrou

com uma ac;ao na justica que durou ate 1913. Mas as indeniza-

c;6es foram suspensas em 1914 por causa da guerra. Em 1919,

os expropriados voltaram it justica devido it desvalorizacao;

nessa epoca, a moeda belga perdera a metade do valor e, em

1926, no fim do caso, seis setimos do valor! Caberia indenizar

os expropriados segundo 0 valor nominal fixado em 1913,

como se nada tivesse acontecido? Nesse caso, as diferentes ca-

maras do tribunal de Bruxelas deram respostas contradi t6rias.

Em resumo, os veredictos de tipo A eram favoraveis aos expro-

priados, os do tipo B contraries.

A) S6 uma das camaras julgou que seria preciso recalcular

o valor da indenizacao - digamos em 1926 multiplica-la por

sete -, argiiindo que a lei previa urn ressarcimento "justo", ou

seja, que permitisse ao expropriado adquir ir bern equivalente

ao que possuia na epoca da expropriacao. Alem do mais, julga-

va a camara: nao se pode atribuir ao expropriado a responsabi-

l idade pela duracao do processo, pois ele "t inha 0direi to de fa-

zer tudo 0que est ivesse ao seu alcance" para obter a indeniza-

Gaomais favoravel (in Foriers, p. 311).

Ate aqui, temos a impressao de que se trata de uma de-

monstracao pura e simples, porquanto 0veredicto so podia con-

tar com a anuencia dos interessados.

B) No entanto, varias camaras do mesmo tribunal toma-

ram a decisao contraria, mesmo diferindo em termos de argu-

mentos. Vejamos os mais notaveis,o montante da indenizacao deve levar em conta unica-

mente 0 valor do im6vel na epoca da expropriacao, e nao as

"f lutuacoes" que se seguiram. Nao fosse assim (argumento por

absurdo), caso esse valor tivesse baixado, ser ia preciso reduzir

proporcionalmente a indenizacao. Em todo caso, "a avaliacao

dependeria de fatores arbitrarios" (p. 314).

Outro argumento: 0Estado que desvaloriza a moeda deci-

de apenas diminuir seu poder aquisitivo; nao decide ipsofacto

elevar os precos. Inflacao nao e desvalorizacao, e apenas uma

Uma controversia judic iaria:

os expropriados e a desvalorizaciio

Vejamos urn exemplo de controversia em direi to civil , queagitou a opiniao publica da Belgica entre 1920 e 1926, mas que

tern a ver com muitos outros paises', Trata-se da indenizacao

devida aos expropriados. Falaremos em linhas gerais, sem nos

perder em detalhes tecnicos,

A expropriacao em caso de util i dade publica e uma venda

forcada, Os proprietaries sao obrigados legalmente a ceder seu

im6vel ao Estado (ou as comunas), do qual se tornam entao

"credores"; a unica coisa que podem conte star e 0montante da

indenizacao proposta . Se fizerem isso, a questao vai parar nurn

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108 INTRODU9AO ,4'RET6R1CAARGUMENTA9AO 109

d e s ua s c on se qu en cia s m ais o u m en os p re vis iv eis ; a co nte ce a te

d e urn E stad o d es valo riz ar s em q ue o s p re co s s ub am (a rg um en -

to de dissociacao ). Po rtan to , se 0 e xp ro pr ia do f or i nd en iz ad o

segundo 0 v alo r d o im 6v e1 do ze an os d ep ois , c ria -s e u rn p re ce -

d en te p ar a a e sp ec ul ac ao .

U r n u lt im o a rg um en to e m ais fo rte, po rque dirigido a urn

a ud it6 rio b ern m ais a mp lo e m en os e sp ec ia liz ad o: e a regra dejustica. A desvalo rizacao e urn a m edida adversa que atin ge to-

dos os credores, e deve atingi-los com igua1 dade. O ra, se for

co ncedida um a in den izacao co mpen sat6ria apen as aos expro -

p ri ad o s, c ri ar -s e- a um a " c at eg or ia d e p ri vi le gi ad o s" .

S eg un do a rg um en to : u rn a d iss oc ia ca o, A te e nta o a s c am a-

ras tinham considerado a moeda como meio de pagamento .

Leclerc vai m ostrar que a m oeda tam bem e - sobretudo - um

in stru me nto d e m ed id a d a e co no mia . O ra , a s de sv alo riz ac oe s

h av ia m c ria do um a n ov a m ed id a

que na verdade e sete vezes menor que a antiga. Doravante 0

franco legal e outro bern diferente do franco legal estabelecidopela legislacao ab-rogada. (p. 321)

Nao e concebivel que 0expropriado tenha mais direito [queos outros credores] de prevalecer-se de uma desvalorizacao da

moeda que ocorreu posteriorrnente [a expropriacao], (p. 316)

A ultim a frase introduz um a nova retorsao: S egundo V .

E x:', n ao d ev em s er le vad as e m c on ta as " flu tu ac oe s" p os te rio -

re s it e xp ro pria ca o; o ra, a ce ita nd o o utro fra nco le ga l, e sta se n-

do feito aquilo que V Ex'.' condenam . N ote-se a epanalepse:

f ra nco l eg a l.

E ss e e xemp lo m os tr a q ue c er to s ra ci oc in io s a pa re nt em en -

te d em on stra tiv os n a rea lid ad e s ao a rg um en ta tiv os e re t6 ric os .

C ad a u rn re po us a s ob re p rin cipio s a pe na s v ero ss im eis : B a te m-

se it le tra d a le i, c uja in fra ca o ab riria a s p orta s p ara a a rb itrarie -

dade e a desigualdade. A apoia-se na eqiiidade e nega que se

deva observar apenas a lei num a situacao que ela pr6pria nfio

p rev ira (a d es va lo riz aca o). F in alm en te , C te rn g an ho d e c au sa

s ob re B utiliz an do a rg um en to s d e B .

A pr6pria solucao decorre do debate contradit6rio . M as

sera ela racio nal? N ao , po r certo, po rem certam ente " mais ra-

zoavel".

F in alrn en te , u m a rg um en to q ue re sp on de ao u ltim o d e A : o s

expropr ia dos, d i la ta ndo 0 p ro ce ss o, s ao c au sa do re s d o p r6 priop re ju iz o, e d ev em c on si de ra r- se o s u ni co s r es po ns av ei s p or e le .

C om o se ve, en quan to A favo rece 0 e xp ro pr ia do , B f av o-

rece 0 expro priado r, que po dera pagar em m oeda que vale sete

v ez es m en os . E nq ua nto A ju lg a em n om e da ''jus ta '' re pa ra ca o,

B ju lg a s eg un do 0 texto da lei, em no me do risco de arbitrarie-

dade, e atem -se apenas ao sentido legal da palavra ''justo '' -

assim co mo se fala de " justas n upcias" (p. 3 19 ). A qu i e nc on -

tramos 0d eb at e- ti po d e A ri st 6t ele s ( cf. supra, p . 5 0).

C) A s sentencas de tipo B ganhavam em num ero, m as in-

dignaram a o pin iao publica. A C orte S uprem a deu parecer fa-

voravel as sentencas de tipo A em 1 92 9, depois de um a defesa

v eeme nt e f ei ta p elo p ro cu ra do r g er al, P au l L ec le rc .

E sta o po e a B d ois a rg um en to s.

P rim eiro um a reto rsao da regra de justica. S e e que nao se

d ev e c ria r d es ig uald ad es d ia nte d a le i, p or q ue s 6 o s e xp ro pria -

d os d ev er ia m p ag ar o s c us to s d a d es va lo ri za ca o? 0Estado

Argumentaciio filosofica: onde esta 0 tribunal?

foi evidentemente culpado por fazer recair sobre uma c1asse

social em particular os custos da reparacao, unicamente porque

essa c1asseestava em situacao de deixar-se pilhar (p. 320; "pi-

lhar": metafora hiperbolica),

1 E a filo so fia? P oderia ser co mparada a um a co ntro versia

.. e m q ue c ad a fil6 so fo s eria ad vo ga do d e s ua p r6 pria c au sa d ia n-

te de urn tribun al que seria ... quem sen ao 0 le it or ? M as 0 leitor

d ificilm en te a dm itira s er m elh or juiz d o q ue a que le s q ue e le le ;

ju lg ar a p hr a s i, e v erd ad e, m as n ao p ara o s o utro s.

o fato e q ue o s fil6 so fo s n ao fo rm ula m 0 p ro blema d es sa

m an eira, principalm en te - co mo vim os - a partir de D escartes.

O s m aio res d ele s a firm am s er d em on stra tiv os , " ap odic tic os ",

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1 10 INTRODU9AO A RET6RICA ARGUMENTA9AO 111

dizia Kant na lingua de Aristoteles; ese, as vezes, aceitam 0

termo argumentacao e deixando claro que ela nao poderia ternada que fosse retorico.

A essa pretensao dos fil6sofos, de serem demonstrativos

podem ser opostos tres argumentos, dos quais os dois primei-

ros decorrem do lugar da unidade. 0 primeiro e que os filoso-fos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas,

embora a demonstracao so possa redundar numa verdade uni-

ca. 0 segundo, ainda mais forte, e que as estruturas da demons-tracao nao sao asmesmas, segundo setrate de cartesianos Kant,

Hegel, Bergson, Husserl, neopositivistas e outros. Ha uma so

matematica, enquanto existem varias filosofias.

o terceiro argumento (exemplo) mostra que na verdade osfilosofos todos recorreram, em maior ou menor grau, a argu-

mentacao. Descartes argumenta para provar que e precisodemonstrar. Spinoza, que constr6i toda a Etica "de more geo-

metrico" (segundo 0 metodo geometrico), acrescenta a suasdemonstracoes os mais importantes "escolios", que as ilustram

de modo pedagogico e retorico: tudo acontece como se ele ti-

vesse escrito seu livro duas vezes, a primeira para Deus e a se-

gunda para nos. Hegel procede da mesma maneira na Enciclo-

pedia. E hoje em dia? Hoje em dia parece que a filosofia cin-

diu-se: de urn lado urna investigacao Iogica rigorosa, porem es-

teril; de outro, urn discurso retorico que, por falta de interro-

gar-se sobre sua propria argumentacao, incide no arbitrario,

No entanto, a pretensao de ser demonstrativo comporta

certa dose de verdade, pois permite distinguir 0filosofo do ad-

vogado, tanto quanto, alias, do pedagogo.o proposito do filosofo e encontrar, e niio ensinar 0 que

outros encontraram, ainda que muitas vezes se encontre mais

ensinando. Assim tambem, sua tarefa nao e defender urna cau-sa, e sim sustentar uma tese. Onde esta a diferenca?

Uma causa exige urn juizo hie et nunc; uma tese visa a

uma explicacao de a1cance universal; ela nao responde a per-

gunta: "Catilina e injusto?", mas a outra bern diferente: "0 que

e justo e injusto?" E mesmo que a pergunta tenha alcance prati-co, como aqui, e de longo prazo e para todos. Se cumprisse

vincular a filosofia a urn dos tres generos, seria ao epidictico.

De fato, numa causa e sempre preciso suplantar, impor urn ve-redicto para por fim ao debate. Uma tese, porem, nunca e im-posta, e sim proposta. Mas a quem?

Consideremos urn exemplo em que seve a pior retorica (a

mais facil) passar como por milagre a servir a filosofia, mila-

gre chamado Socrates, Em Eutidemo de Platao, 0 sofista Dio-

nisodoro fala assim do ensino:

Quereis que [0 aluno] passe a ser sabio e nao seja mais

ignorante? (...)Uma vez que quereis que ele deixe de ser 0que e ,desejais sua morte? (283 s.)

Ele utiliza urn sofisma, afallacia accidentis, em que se

muda urn nexo acidental: nao ser mais ignorante (nexo aciden-

tal), nao ser mais, portanto morrer. Essa metafora do ensino

como morte e urn tanto freudiana, e lonesco, alias, realiza-a emA liciio, em que 0 professor, por ardor pedagogico, acaba ma-tando 0pobre aluno...

Ai entra 0humor de Socrates; em vez de desmentir a me-

tafora (morrer), brinca com ela e extrai urna licao:

Se [esses sofistas] sabem aniquilar aspessoas detal manei-

ra que as transformam de viciosas e insensatas em virtuosas e

sabias (...), que matem esse menino para torna-lo sabio, e a nos

tambem por acrescimo, (285 b)

o grosseiro sofisma transforma-se em metafora, ao mesmo

tempo pedagogica e religiosa. Todo verdadeiro ensino e emcerto sentido - sentido metaforico, portanto retorico - uma

morte. E urn novo nascimento.Convem lembrar que em Eutidemo, assim como em todos

os dialogos, os interlocutores sao apenas vozes interiores de

Platao, que ve a filosofia como urn dialogo consigo mesmo; por

isso, quando 0 fil6sofo propoe uma tese, 0faz primeiro a simes-

mo. E a retorica entao? Como todo dialogo, 0 dialogo interior

tarnbem a utiliza, mas confrontando-a logo com uma outra. Por-

tanto, 0que distingue 0 filosofo - mesmo quando fala depolitica

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112 INTRODUr;AO A RET6RICA Capitulo VI

Figurasou de direito - do politico e do advogado e que ele sustenta ao

mesmo tempo 0pro e 0 contra, e que ele e ao mesmo tempo 0

advogado e seu adversar io, Mas qual e 0tribunal?o audit6rio universal , responderia Perelman. Mas deixe-

mos claro que ele nao esta em lugar nenhum, senao em cada

um de n6s. Em Gorgias, quando S6crates declara a Polos que0

culpado e mais digno de lastima que sua vitima, e 0 culpado

impune mais infel iz que 0punido, Polos exclama que ninguem

admitiria tais paradoxos! E S6crates:

Tens por ti, Polos, todo 0mundo exceto eu. E eu nao peco

anuencia nem testemunho de ninguem, senao de ti. (475 e)o que e f igura? Urn recurso de est ilo que permite expres-

sar-se de modo simultaneamente l ivre e codificado. Livre, no

sentido de que nao somos obrigados a recorrer a ela para comu-

niear-nos; dessa forma, qualquer urn podera dizer que vai se

suicidar para por fim a uma paixao culposa, sem precisar re-

correr a s figuras de Fedra:

Ai esta 0supremo tr ibunal , Em Polos. Em cada urn.

Ai esta 0que tentamos demonstrar neste capitulo" . Inicial-

mente, que a argumentacao existe como meio de prova dist into

da demonstracao, mas sem incidir na violencia e na seducao,

Depois, que ela comporta uma parte de oratoria, e que os anti-

gos tinham razao em unificar seus elementos racionais e afeti-

vos num mesmo todo, a retorica.

Essa uniao vamos agora observar nas figuras.

Para ocultar da luz uma chama tao negra.

Codificado, porque cada figura constitui uma estrutura .co-

nhecida, repet ivel , t ransmissive! ' Assim, no verso de Racine,

identificam-se quatro metaforas e urn oximoro (chama ta o

negra). .A expressao "figuras de ret6riea" nao e pleonasmo, pots

existem figuras nao ret6ricas, que sao poeticas, humorist icas

ou simplesmente de palavras. A figura s6 e de retorica quando

desempenha papel persuasivo.

A religiao e 0opio do povo.

A esta metafora, Raymond Aron responde com outra:

o marxismo e 0opio dos intelectuais .

•Marx e Aron tern pelo menos alguma coisa em comum:

nao fazem metaforas por gosto nem por questao de estilo, mas

para convencer. A figura de ret6rica e funcional.

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114 INTRODUC;AO A RETOR/CA F/GURAS 115

Mas como? Quando os antigos falam das figuras, e para

evocar 0 prazer que elas proporcionam, que eles relacionam

com 0 deleetare e mais raramente com 0movere. A figura se-

ria, portanto, urna fruicao a mais, uma licenca estilistica para

facilitar a aceitacao do argumento. Assim e que na Retorica a

Herenio encontra-se urn exemplo de epanalepse:

Figuras de pensamento, como a alegoria, a ironia, que di-

zem respeito a relacao do discurso com seu sujeito (0 orador)

ou com seu objeto.

F ig ur as d e p ala vr as

Como se urn dardo atingisse varias vezes 0mesmo lugar

docorpo.

o que caracteriza as figuras de palavras? 0 fato de serem

intraduziveis, de poderem ser destruidas por menos que se

mude sua materia sonora. Por isso, parecem reservadas a poe-sia ou, a rigor, ao humorismo. Entretanto, devem desempe-

nhar bern alguma funcao argumentativa, porque os filosofos

mais racionalistas recorrem a elas. Assim, basta traduzir a

expressiio Soma sema de Platao - "corpo, urn tumulo" - para

destrui-la, a nao ser que se perca 0poder da metafora.

Essas figuras se dividem em dois grupos:

Nao te abalaste quando urna mae te beijou os pes, nao te

abalaste? (IV, 38)

Por que esta repeticao? Segundo 0autor, tern duas funcoes: emo-

cionar 0audit6rio e ferir a parte contraria:

Se 0argumento e 0prego, a figura eo modo de prega-lo ...

Perelman- Tyteca tambem veem na repeticao urna figura

de "presenca", uma das que fazem sentir 0 argumento. Para

eles, porem, ela nao se reduz ao patos; nao e apenas 0que faci-

lita 0argumento, mas constitui 0proprio argumento; desse mo-

do, 0 primeiro Niio te abalaste ... indica urn fato; 0 segundo,

depois de quando uma mae, ressalta 0 carater chocante desse

fato, incompativel (argumento) com os valores da humanidade.

Para 0 TA , toda figura de ret6rica e urn condensado de argu-

mento: a metafora e condensado de analogia, etc. A nosso ver,

essa teoria e intelectualista demais; esquece-se do prazer da

figura, que deriva ora da emocao, ora da comicidade, mas sem-

pre do patos.

Aqui estudaremos a funcao argumentativa das principais

figuras de retorica', que classificaremos conforme suas rela-

c;oes com 0discurso em que se encaixam.

Figuras de palavras, como ° trocadilho, a rima, que dizem

respeito a materia sonora do discurso.

Figuras de senti do, como a metafora, que dizem respeito a

significacao das palavras ou dos grupos de palavras.

Figuras de construcao, como a elipse ou a antitese, que di-

zem respeito a estrutura da frase, por vezes do discurso.

Figuras de ritmo

Para os antigos, 0 ritmo da frase tern importancia capital,

pois e a musica do discurso, 0que torna a expressiio harmonio-

sa ou tocante, sempre facil de ser retida. 0 problema e que os

elementos constitutivos do ritmo, como 0 acento tonico e a ex-

tensao das silabas, nao sao marcados em todas as linguas. Des-

se modo, por exemplo 0slogan alemao de 1968:

tern estrutura especular: iambico, troqueultroqueu, iambico. Os

esquerdistas franceses, por exemplo, foram obrigados a atri-

buir-lhe urn ritmo arbitrario:

'" E so 0 comeco; sigamos a luta. (N. do T.)

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116 INTRODUC;AO A RETOR/CA FlGURAS 1 17

Beber ou guiar, convem optar. (5+ 5)

b) Silabas: paronomasia: Traduttore, traditore, de cuja tra-

ducao nao sobra grande coisa (tradutor, traidor). A rima e urna

paronomasia no final das palavras, que retoma em ritmo regu-

lar: Valery au tri, Anemone au telefone [Valery na triagem,

Anemone no telefone] (slogan dos carteiros em greve, em

1975, que brinca com 0 nome do presidente frances e de sua

esposa).

c) Palavras: a figura baseia-se ora na homonimia, ora na

polissemia.

A partir da homonimia, cria-se 0 trocadilho, que aproxima

duas palavras identicas no som, mas com sentido diferente.

Freqiientemente grosseiro, e fino quando cria urna relacao

inesperada com a situacao. Freud, em 0 chiste, conta que, nurn

baile, urna italiana da urn born troco a Napoleao, quando este

lhe pergunta se todos os italianos dancavam tao mal: Non tutti,

ma buona parte ... 0 imperador podia entender: nem todos, mas

boa parte, e podia entender tambem que se tratava de urn nome

proprio, 0 seu.

A figura que se baseia na polissemia e a antanaclase, que

se aproveita de dois sentidos ligeiramente diferentes de uma

mesma palavra; como por exemplo no slogan que aconselha 0

exame de mamas:

No entanto, os proverbios, os slogans, certas "frases anto-

logic as" muitas vezes tern urn ritmo proprio gracas ao qual fi-

cam na memoria:

Qsc@s @dtam/ e_a/ c~ra~'@llap~ssa,_ ,

F~a9a_al!l9r,a.9fuc;a~.J;rra,_ ,

Vejamos algumas figuras de ritmo mais complexas. A pa-

risose e urn periodo composto por dois membros de mesma ex-

tensao:

A clausula e uma sequencia ritmica que termina urn perio-

do, como esta com seis pes que termina a celebre peroracao de

Danton:

Pour fes vaincre, Messieurs, if nousfaut de l 'audace, en-

core de l'audace, toujours de l'audace, et faFrance est sauvee.(in Suhamy, p. 76) _ _ - _ ~-

[Para vence-los, senhores, precisamos de audacia, mais au-

dacia, sempre audacia, e a F r anc a e s ta salva.]

Em todos os casos, 0 ritmo gera urn sentimento de eviden-

cia proprio a satisfazer 0 espirito, mas tambem a conseguir sua

adesao ... Poe 0pensamento sobre trilhos.

Eu tenho peito.

Enquanto 0 trocadilho e sobretudo fatico, deixando 0 ad-

versario sem palavras por desarma-lo, a antanaclase tern a1can-ce argumentativo, permitindo pseudotautologias:

Figuras de som: aliteraciio,

paronomasia , an tanaclase Negocios sao negocios ...

As figuras de som imp licam fonemas, silabas ou palavras.

a) Fonemas: aliteracao, em que ha repeticao de urna mes-

rna letra na frase, como por exemplo na frase de De Gaulle, que

lembra 0resmuninhar dos velhos mal-hurnorados:

Ligada 11antanaclase esta a derivacao, que associa uma

palavra a outra de igual radical. Assim, no discurso de 30 de

maio de 1968, de Gaulle denunciava os contestadores que im-

pediaru P

La grogne, farogne et fahargne. (r, gn [nh])

[Resmungo, rezinga, rabugem]

os estudantes de estudar, os professores de ensinar [les enseig-

nants d'enseigner], os trabalhadores de trabalhar.

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118 INTRODU(:AO A RETORICA FlGURAS 119

Umargumento retorico: a etimologia

criar uma his t6ria do vocabulario. Por exemplo, em latim clas-

sico, puer designa a crianca, infans 0 bebe, aquele que nao

fala (fari, falar ). Mais tarde, as designacoes das faixas etarias

acabam com outra distribuicao, e infans designa aquele que

ainda nao chegou a adolescencia, Mas, dai a pretender que a

infdncia e, "por definicao", 0periodo em que nao ha fala, naotern 0menor fundamento, e propriamente erroneo. Na verda-

de, 0 argumento etimol6gico esquece-se de outra lei l ingiiist i-

ca, a de que a palavra s6 tern sentido sincronicamente, ou

seja, no sistema presente de uma lingua. Desse modo, a pala-

vra "infancia" s6 tern sentido em relacao a "lactacao" e a

"adolescencia"; e 0 latim nao tern autoridade alguma nesse

sentido.

o argumento etimol6gico as vezes cai no ridiculo. Cabe

citar nesse aspecto os adversaries de Freud que, no inicio do

seculo, pretendiam refuta-lo aduzindo 0 "sentido etimol6gico"

de histeria, derivado do grego hystera, utero , para af irmar que,

"por definicao", histeria s6 poderia ser doenca de mulher! Everdade que depois disso os psicanalistas inventaram muitas

outras' ...

Etimologia como parte da hist6ria das linguas, sim. Eti-

mologia como argumento, talvez, porem do mesmo tipo da an-

tanaclase, e nao do trocadilho.

Uma ultima observacao sobre as figuras de palavras: deve-

se evitar 0 abuso. Lembremos J.-J. Rousseau que, em Emilio,

vocifera contra La Fontaine, dado as criancas como "moral":

Se ele tivesse dito: lesprofosseurs d 'enseignet; les ouvriers [ope-

rarios] de travail/er, 0 argumento de incompatibilidade ter ia

desaparecido.

Pergunta: de onde vern a forca persuasiva das figuras de

palavras? Elas facilitam a atencao e a lembranca, mas nao e s6isso. Lembremos 0 principio lingiiistico da arbitrariedade do

signo, segundo 0 qual as palavras nao sao "motivadas": nao ha

razao para dizer mesa, em vez de Tisch ou tavola. Esse princi-

pio tambem se aplica as nossas figuras de palavras: nao e por-que dois signif icantes sao identicos que seus signif icados tam-

bern 0 sejam; e, no entanto, tudo acontece como se fossem iden-

t icos. As figuras de palavras instauram uma harmonia aparen-

te, porem incisiva, sugerindo que, se os sons se assemelham,

provavelmente nao e por acaso. A harmonia e comprovada pelo

prazer '.

Que prazer? Do achado, da "felicidade de estilo" (Alain).

Podemos ir mais longe. Segundo os psicologos, a crianca des-

conhece a arbitrariedade do signo; para ela, a palavra tern rela-

9aO com a coisa. Cabe perguntar se 0 adulto, que se deleita

com uma figura de palavras - seja ela engracada ou poetica -

nao es ta no fundo sentindo 0prazer de retornar a infancia,

Entre as figuras de palavras, e preciso contar a etimologia,

que serve de argumento tanto para as definicoes quanta para asdissociacoes. Recorrer a e timologia para definir 0 "verdadei-

ro" sentido de uma palavra na verdade e urn ato de poder pelo

qual 0 orador impoe seu "senti do", portanto seu ponto de vista,

ao audit6rio.

Note-se que muitas vezes a etimologia e falsa: "religiao"seria relacionavel com "relego" [percorrer de novo, revisitar]

ou com "religo" [religar]? "Educacao" viria de educere (con-

duzir para fora)? Conjecturas ou fantasias. Mas, ainda que

verdadeira, a etimologia teria algum valor? E evidente que

nao se deve rejeitar a hist6ria das palavras. Caberia mesmo

s an s s on ge r q ue I' a po lo gu e, e n le s a mu sa nt , l es a bu se

[sempensar que ° ap6Jogo, distraindo, trai].

Se ele t ivesse di to: en les amusant, les trompe [distraindo, en-

gana], nao haveria atrativo. "Les amuse et les abuse" [distrai

e trail seria vistoso demais, nouveau-riche demais; desviaria

a aten9a9 da tese em vez de valoriza-la. Ret6rica, arte fun-

cional.,

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120 INTRODUC;AO A RETORICA FIGURAS 121

Figuras de sentido T ro po s s im p le s: m e to nim ia s, s in ed oq ue s, m e ta fo ra s

Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes,

as de sentido dizem respeito aos significados. Portanto, podem

ser traduzidas sem - ou sem nem tantos - estragos. Consistem

em empregar urn termo (ou varies) com urn sentido que nao lhee habitual. 0o lh o e sc uta ... Esta es tranha metafora de Claudel

poderia levar a pensar em "desvio", transgressao da norma le-

xical segundo a qual 0 olho deve enxergar e nao se intrometer

no servico dos vizinhos ... Mas, restabelecendo-se 0 termo pro-

prio, perde-se sentido, pois 0 olho que "escuta" uma obra de

arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Por-

tanto escuta e 0 termo exato. Isso acontece com toda verdadei-

ra figura.

Em outras palavras, a figura de sent ido desempenha papel

lexical; nao que acrescente palavras ao lexico, mas enriquece 0

sentido das pa1avras.

"Ja disse mil vezes." "Tenho mil coisas para dizer ..." A

palavra "mil" perde 0 sentido quantitativo para expressar algo

como: vezes demais (para repetir outra vez), coisas demais

(para dizer tudo agora ). A hiperbole cria 0sentido.

Desse modo, a figura de sentido e urn tropo, urn signifi-

cante tornado no sentido de outro, escuta por olha com reve-

rencia . Mas nem todo tropo e uma figura de sentido. Quando 0

tropo e lexicalizado a tal ponto que nenhum outro termo pro-

prio poderia substitui- lo, passa a ser catacrese. Assim, asas do

aviiio na origem era uma metafora, mas nao e mais figura, po isnao ha como dizer de outra forma.

Inversamente, por falta de referencias culturais, uma figu-

ra pode ser incompreensivel; torna-se entao enigma, mas ai

deixa de ser retorica, Podemos dizer da figura de sentido aqui-

10 que Aristoteles dizia da metafora: deve ser clara, nova e

agradavel. Nova, porem clara e por isso mesmo agradavel, como

o enigma que se tern a alegria de desvendar. A meio caminho

entre 0 enigma e 0 cliche, a figura de sentido desempenha seu

papel retorico.

Trataremos agora das tres figuras de sentido de que deri-

yam todas as outras.

A metonimia designa uma coisa pelo nome de outra que

lhe esta habitualmente associada. Seu poder argumentat ivo eantes de tudo 0da denominacao, que ressalta 0aspecto da coisa

que interessa ao orador. Assim, 0tr on o e 0altar e uma metoni-

mia valorizadora; 0sa br e e 0aspersorio e metonimia deprecia-

tiva, que reduz 0exercito a exterminio, e a Igreja a supersticao.

Baseada no nexo habitua l, a forca argumentativa da meto-

nimia provem da familiaridade, e essa forca desaparece quando

a metonimia vern de outra cultura. Para quem acha, por exem-

plo, que 0poder ministerial se chama ga bi ne te , p a st a ou mes-

mo Esplanada , e dificil entender como 0Imperio Otomano po-

de usar 0Diva

como simbolo do poder.

Everdade que a psica-

nalise ja deveria nos ter acostumado com isso, mas entre os tur-

cos era 0ocupante do diva quem detinha 0poder ...

Diz-se com frequencia que, em vis ta da poetica metafora,

a metonimia e prosaica e pobre. No entanto, existem "metoni-

mias vivas". Quando, em 1700, 0 embaixador da Espanha

declarou Ja n do h a P ir en eu s, deve ter produzido urn belo efeito

surpresa; se tivesse dito apenas "acabaram-se as fronteiras",

teria perdido a conotacao de cadeia inospita , quase intranspo-

nivel, que so 0 divino poder dos reis poderia abolir, poder ca-

paz de mover montanhas ...

o importante e que, mais que os outros tropos, a metonimiacria simbolos, como por exemplo Afo ice e 0m artelo , A rosa e a

cruz. Nesse sentido, condensa urn argumento fortissimo.

A sinedoque distingue-se da metonimia por des ignar urna

coisa por meio de outra que tern com ela urna relacao de neces-

sidade , de tal modo que a pr imeira nao existiria sem a segunda;

por exemplo c em c ab ec as por cern pessoas, sinedoque da parte,

ou c em mo rta is , sinedoque da especie. Donde sua funcao pro-

pria: ela e a figura que condensa urn exemplo. Muito corrente

em pedagogia ( tridngulo por todos os t riangulos; soneto por

todos os sonetos), serve tambem it propaganda: p artid o d os

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122 INTRODU9AO A RET6RICA FlGURAS 123

trabalhadores, sinedoque da parte. Na verdade, nada prova que

o partido em questao represente todos os trabalhadores.

Isso tambem se observa com a antonomasia, sinedoque

que consiste em designar uma totalidade ou uma especie pelo

nome de urn individuo considerado seu representante: Joffre

ganhou a batalha do Marne, como se ele estivesse la sozinho!

Sabe-se muito bern como 0 referido Joffre mot ivou a s inedo-

que: Nao sei se fui eu que a ganhei, so sei que eu sou quem a te-

ria perdido! 0 slogan dos anos 30, Hitler e a guerra, fazia re-

cair sobre Hitler todo 0 peso do hitlerismo. Tambem aqui se

encontra a argumentacao pelo exemplo ,

A metafora designa uma coisa com 0 nome de outra que

tenha com ela uma relacao de semelhanca, Voltaremos depois a

seu papel argumentat ivo. Aqui di remos algumas palavras sobre

sua genese. Diz-se que a metafora e uma comparacao abrevia-

da, que substitui 0 e como por e : Ela e [bela como] uma rosa; 0olho [olha como se] escuta. Mas que comparacao? Se esta se

referir a realidades homogeneas, sua abreviacao nao redundara

em metafora: Pedro e [alto como] um gigante; Joiio e [baixo

como] um ando. Trata-se antes de hiperboles por meio de sine-

doques. E 0mesmo se eu disser: Esta dgua esta [fria como]

umapedra degelo.

Suponhamos agora que se diga: Sofia e uma pedra de gelo.Ha de fato uma comparacao (e pouco benevolente), mas de ou-

tro tipo, porque Sofia nao e da especie dos seres que podem

transformar-se em gelo; a semelhanca em que se baseia essa

metafora provem de termos heterogeneos, que nao tern materia

nem medida em comum; Sofia nao e nem uma pedra de gelo,

nem e como uma pedra de gelo. Entao, como poderemos en-

tender a metafora? Por uma semelhanca de relacoes entre ter-

mos heterogeneos (cf. infra, pp. 193 a 196).

Em resumo, se desenvolvermos a metafora e the restitui r-

mos seu como, teremos uma figura de comparacao especial,

que os antigos chamavam de eikon, simile, e que, como os in-

gleses, chamaremos de simile. 0 simile e uma cornparacao en-

tre termos heterogeneos: Ela canta como um rouxinol, que se

abrevia em metafora como 0 rouxinol',

o simi le, como a metafora que dele deriva, e fonte de poe-

sia, pois aproxima seres cuja semelhanca antes nao fora perce-

bida; cria, como em Claudel, 0que em seguida vai parecer evi-

dente. Se for inesperado demais, dara origem a comicidade:bonita como um aviiio.falada como a torre de Pisa. Sua criati-

vidade permite entender 0poder argumentativo da metafora'.

Tropos complexos: hipalage,

enalage, oximoro, hiperbole, etc.

Desses tres tropos basic os derivam outros.

A hiperbole e a figura do exagero. Baseia-se numa meta-

fora (Estou morto de cansacoi, ou numa sinedoque (As massas

laboriosas, para certo numero de trabalhadores).

Para entende-la , comecemos pela admiravel definicao de

Pierre Fontanier:

A hiperbole aumenta ou diminui as coisas em excesso,

apresentando-as bern acima ou bern abaixo do que sao...

Temos ai a estrutura da hiperbole: auxese quando amplia em

sentido positivo (esse gigante); tapinose, em sentido nega-

tivo (esse anoo), sendo sempre 0 significado figurado bern

maior ou bern menor que 0 significado proprio. Por que esse

exagero?

... nao com 0intuito de enganar, mas de levar 11propria ver-

dade, e de fixar, atraves do que ela diz de incrivel, aquilo em que

e realmente preciso crer.

Em suma, nao e uma figura da mentira, como quando se diz

que alguem esta morto, se ele esta bern vivo; e uma figura de

expressao, como em Estou morto, que nao engana ninguem.

Porem, I"tra exprimir 0que?

o inexprimivel, por cer to. A nosso ver, a funcao semanti-

ca da hiperbole e dizer que de fato nao conseguimos dizer, e

dar a entender que aquilo de que estamos falando e tao grande,

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1 24 INTRODU9AO A RET6RICA FIGURAS 1 2 5

tao bonito, tao importante (ou 0 contrario) que a linguagem

nao poderia exprimir. Donde 0papel fundamental da hiperbole

na ret6rica religiosa, visto que s6 ela pode designar aquilo que

nao sepode denominar.

Mas, alem da expressao, ela condensa urn argumento, 0de

direcao: se comecarmos assim, onde vamos parar? A hiperboleamplifica 0 argumento, colocando-se ja de inicio nesse ponto

final, como veremos nos textos 11e 12.

Se, em vez de dizer Estou morto, eu disser Estou meio

cansado, estarei substituindo a hiperbole pela litote, que nao euma hiperbole ao contrario, como a tapinose, mas 0 contrario

da hiperbole. Figura do etos, por mostrar 0 orador modesto,

prudente, comedido, a litote possibilita outras figuras, como a

insinuacao, 0eufemismo e sobretudo a ironia: Niio, 0doutor X

ainda ndo matou todos os seus doentes... Como muitas vezes

acontece, essa litote procede pela negacao de uma hiperbole:

matou.

A hipalage e urn deslocamento de atribuicao. Como no

celebre verso de Virgilio, que fala dos mortos a vagarem pelos

Infernos:

o oximoro e a mais estranha das figuras; consiste em unir

dois termos incompativeis, fazendo de conta que nao sao:Essa

escura claridade que cai das estrelas (Corneille), 0 sol negro

(Nerval). Como e possivel? M. Prandi responde" que ele indica

urn conflito entre dois enunciadores: urn deles - todo 0mundo

- diz que esta fazendo sol, e 0outro - 0poeta - declara metafo-ricamente que para ele tudo esta negro. Assim, quando qualifi-

ca Antigona de santamente criminosa, S6focles quer dizer que

ela e criminosa para 0 poder (Creonte), porem santa para os

deuses e para sua consciencia, Perelman- Tyteca veem no oxi-

moro uma dissociacao condensada, por exemplo entre a apa-

rencia - criminosa - e a realidade - santamente.

Finalmente, dois tropos complexos, simetricos,

Urn deles e a metafora expandida, sequencia coerente demetaforas, que alias permite a personificacao e... 0 humor;

como por exemplo a metafora tambem citada por Prandi:

o inconsciente da minha maquina de escrever comete es-tranhos lapsos.

Ibant obscuri sola sub nocteper umbram...

(lam escuros por entre a sombra na noite solitaria...)

Outro e a metalepse, que e para a metonimia 0que a meta-fora expandida e para a metafora: uma sequencia coerente. As-sim, no Eclesiastes se diz:

Se ele tivesse falado em noite escura e almas solitarias, 0efeito

de hipotipose teria sido destruido; estaria perdida a expressivi-

dade do quadro.

Dai a forca argumentativa da hipalage. Por metonimia:

liberdade deprecos, por liberdade dos comerciantes, como se

eles nada tivessem que ver com os precos, como se estes decor-

ressem de um determinismo natural.

A enalage e urn deslocamento grarnatical: do adjetivo

para 0adverbio, como em Votecerto; de uma pessoa para ou-

tra e de um tempo verbal para outro, como em 0 que estare-

mosfazendo?, por "0que voce esta fazendo?" A enalage torna

as coisas mais presentes, embora tambem mais confusas; em

Pensar frances, de Petain, qual era exatamente 0 sentido de

"frances"?

Quando a porta esta fechada para a rna, quando cessa a voz

do moinho, quando se cala 0 canto do passaro (... ), quando ha

temor da subida e pavores em caminho ... (XII, 4, 5)

Obscura e terrivel metalepse para dizer: quando se esta velho.

Essa figura designa a velhice atraves de seus efeitos: ce-

gueira, surdez, fadiga, etc. Mas e redutora, pois s6 leva emconta os efeitos negativos; poderia ate considerar os efeitos po-

sitivos da terceira idade: prudencia, paciencia, etc. De fato,

todas as figuras de sentido sao redutoras, por focalizarem certo

aspecto e-sobretudo certo valor do objeto que apontam em de-

trimento dos outros. Donde seu papel argumentativo.

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126 INTRODUC;AO A RETORICA F1GURAS 127

Figuras de construeao Alem do trocadi lho nas ultimas palavras, recorre-se ao as-

sindeto; 0que se deve acrescentar entre 1 e 2, e entre 2 e 3: por-

tanto ou mas?

A aposiopese, ou reticencia, interrompe a frase para passar

ao auditorio a tarefa de completa-la; figura por excelencia da in-

sinuacao, do despudor, da cahmia, mas tambem do pudor, da ad-miracao, do amor, sua forca argumentativa advem do fato de

retirar 0argumento do debate para incitar 0outro a retoma-lo por

sua conta, a preencher por sua conta os tres pontos de suspensao.

As figuras abaixo dizem respeito a construcao da frase, ou

mesmo do discurso. Algumas procedem por subtracao, outras

por repeticao, outras por permutacao,

Figuras por subtraciio: elipse,

assindeto, aposiopese ou reticencia

A elipse consiste em retirar palavras necessarias a cons-trucao, mas nao ao sentido. Isso acontece, por exemplo, no pro-

verbio Longe dos olhos, longe do coraciio e no slogan CRS

SS *. As palavras que desaparecem sao adjuntos ou copulati-

vos, como 0 verbo ser, 0 artigo, a preposicao, etc., mas isso

tambem pode acontecer com vocaculos plenos.

Parece que a elipse e antes urn meio de criar figuras do

que propriamente uma figura. Por meio de cortes na frase, ela

produz metonimia, enalage (Pense [com vistas a uma coisa]

grande), oximoro (0 sol [nao impede que para mim tudo seja]

negro), metafora (Sofia e [fria como] uma pedra de gelo).o assindeto e uma elipse que suprime os terrnos conec-

tivos, tanto cronologicos (antes, depois) quanta logicos (po-

rem, pois, portanto). 0 assindeto e ao mesmo tempo expres-

sivo, pelo efeito surpresa (Vim, vi, venci), e pedagogico, pois

deixa por conta do auditorio 0 trabalho de restabelecer 0 elo

que falta, e isso 0 arregimenta, torna-o cumplice do orador, adespeito de suas reticencias. Assim 0 slogan criado em 1987

pelo governo frances, apos a decretacao da liberacao dos

precos:

Figuras de repeticdo: epanalepse, antitese

Chamamos de epanalepse a figura de repeticao pura e

simples. Propoe duplo problema, 0 da correcao e 0 da utilida-

de. Que urn aluno repita uma palavra na frase ... 0 professor

mandara substitui-Ia por urn sinonimo, Mas sera que 0 profes-sor vai corrigir 0 homem e 0 lobo do homem? E ai que entra a

utilidade da repeticao; se a frase dissesse "e lobo para seu se-

melhante", estaria destruido 0argumento de incompatibilidade

que sugere: 0homem e aquilo que nao deveria ser, pois tern 0

homem como semelhante.

Evidentemente, a epanalepse tambem diz respeito ao pa-

tos. Quando de Gaulle exclama em sua mensagem de 18 de

junho de 1940:

Pois a'Franca nao esta sozinha, nao esta sozinha, nao esta

sozinha,

esta expressando sua conviccao patetica, que tudo parecia des-

mentir entao.

Os precos estao livres. Voces sao livres. Nao digam sim a

qualquer preco.

Nao se deve confundir epanalepse com antanaclase, que ea repeticao de uma palavra com sentidos diferentes, nem com a

perissologia, repeticao de uma mesma ideia com palavras dife-

rentes.p

Da-se 0 nome de antitese a oposicao filos6fica de teses

ou a uma oposicao retorica, que sobressai gracas a repeticao;AABA, AACA, etc. A antitese e a oposicao no mesmo.

* CRS = Compagnie republicaine de securite, policia para repressao

de tumultos; SS=esquadroes militares da Alemanha nazista. (N. do T.)

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128 INTRODUC;AO A RET6RICA FIGURAS 129

omesmo pode ser representado por palavras identicas: de-se dizer que, se a vida determina a consciencia, esta , em tro-

ca, muda a vida. A causalidade linear e entao substituida pela

retroacao, Tambem neste caso 0 argumento e sedutor, porem

redutor.

Cabe mencionar mais tres figuras de construcao,

o anacoluto perturba a sintaxe da frase:

Fulminados hoje pela forca mecanica, poderemos veneer

no futuro com urna forca mecanica superior. (ibid.)

o mesmo tambem pode ser representado pelo equilibrioritrnico:

Et monte sur le fai te il aspire a deseendre (Comeille)

[Esubido no cume ele aspira a descer.]

omaior filosofodo mundo, sobre urnapranchamais largadoque necessario, se embaixo houver urn precipicio, ainda que sua

razao 0convenca de sua seguranca, prevalecera sua imaginacao.

Deve-se comer para viver, e nao viver para comer.

o sujeito do verbo deveria ser 0 filosofo mas, para nossa sur-

presa, e a imaginacao, Seria 0 anacoluto um "desvio em rela-

<;ao it norma"? Parece que sim, e ate um erro; qualquer profes-

sor teria despachado 0aluno Pascal a golpes de tinta vermelha ...

No entanto, sera possivel expressar de forma diferente a derro-

ta da filosofia?A nosso ver, 0 anacoluto nao constitui urn erro, mas e a in-

cursao do codigo da lingua oral no codigo da lingua escrita, 0

que torna a expressao mais pessoal e a argumentacao mais viva.

o hiperbato, ou inversao retorica, e um caso particular de

anacoluto:

A identidade dos dois hexametros reforca a oposicao.

Figuras diversas: quiasmo,

hiperbato, anaco/uto, gradaciio

o quiasmo e uma oposicao baseada numa inversao, AB-

BA, e nao mais na repeticao:

As vezes comico, 0 quiasmo no entanto integra-se muito

bern nas visoes tragicas do mundo, de Sao Paulo a Karl Marx: Chorosa empos seu carro, quereis vos que me vejam? (Ra-

cine)

Quem se exal ta sera hurnilhado, quem se humilha sera

exaltado. (Le, XVIII, 14)

Ao contrario da filosofia alema, que vai do ceu it terra, aqui

subimos da terra ao ceu (.. .) Nao e a consciencia que determina a

vida, e a vida que determina a consciencia, (Marx, A ideologia

alemii.v

Finalmente, a gradacao consiste em dispor as palavras na

ordem crescente de extensao ou importancia:

A pobreza viril, ativa e vigilante. (La Fontaine)

Aqui 0quiasmo esta a service de urn argumento de disso-

ciacao, Ao par ilusorio estabelecido pelo idealismo alemao,

que poe a "terra" como nao essencial e a "vida"como simples

exteriorizacao da consciencia, Marx opoe como verdadeiro 0

par inverso; a forma em X do argumento confere-lhe aparencia

de necessidade. No entanto, ele assenta numa alternativa sim-

plista: e a consciencia que determina a vida, ou 0 inverso? Po-

Portanto, e urn excelente meio de apresentar os argumentos: nao

so, mas tambem, e sobretudo ...

Flguras'tle pensamento

As figuras de pensamento sao, em principio, independen-

tes do som, do sentido e da ordem das palavras: so dizem respei-

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130 INTRODU<;AO A RET6RICA FIGURAS 131

Alegoria: figura didatica?

que, na Esc6cia, Rolling stones gather no moss tern, ao contra-

rio, sentido positivo: quem viaja nao cria cascao, esta sempre

novo.

E por isso que nao podemos concordar com Goethe e com

os romanticos, que opoem a alegoria - figura que teria apenas

urn sentido figurado - ao simbolo, que seria aberto e polis semi-co: vemos que a alegoria tambem pode ser assim. Fato e que ela

tern rna fama: e tachada de facticia, de ser criada para as neces-

sidades da causa, em resumo, de ser puramente didatica,

Nesse caso, trata-se de uma curiosa didatica, pois com ela

se acaba perdendo tempo. Platao, apos ter enunciado a alegoria

da Cavema, precisa explica-la; e Jesus tambem precisa dar a

chave de suas parabolas: estranha didatica que se condena a en-

sinar duas vezes! Mas veremos, com Rousseau (texto 11), que

o verdadeiro problema da educacao talvez nao seja "ganhar"

tempo.

Na realidade, se a alegoria e didatica, nao e por tomar as

coisas mais claras ou mais concretas; ao contrario, e por intri-

gar. A alegoria da Cavema e a parabola do Semeador intrigam

os discipulos, que sentem que 0 texto quer dizer alguma coisa a

mais do que esta dizendo, mas nao sabem 0 que; esperam a

explicacao do mestre, explicacao que nao estariam desejando

se 0mestre a tivesse dado sem preparacao previa. Existe uma

pedagogia muito antiga, a do misterio, que consiste em retardar

a solucao para incitar 0 discipulo a busca-la, para motiva-lo a

aprender. E nesse sentido que a alegoria e "didatica",

Donde seu papel tambem argumentativo: ela alicia as pes-soas, no sentido de que, se estas aceitarem 0 foro (a letra), se-

rao obrigadas a aceitar tambem 0 tema (espirito). Tomaremos

da Biblia (2 Sm XII, 1) 0 exemplo do profeta Nata, que vai di-

zer ao rei Davi:

to it relacao entre ideias. Mas essa definicao dos antigos levaria

a exc1ui-Ias do campo das figuras, e mesmo da retorica, que se

caracteriza pel a intima ligacao entre lingua e pensamento. A

nosso ver, essas figuras sao identificadas por tres criterios.

Em primeiro lugar, nao se referem a palavras ou it frase,

mas ao discurso como tal; 0 trocadilho implica algumas pala-

vras, enquanto que a ironia engloba todo 0 discurso; urn livro

inteiro pode ser ironico, Em segundo lugar, dizem respeito it

relacao do discurso com seu referente; ou seja, pretendem ex-

pressar a verdade: enquanto a metafora nao e verdadeira nem

falsa, a alegoria podera ser verdadeira ou falsa. Finalmente,

uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no

sentido literal ou no sentido figurado. Uma andorinha so ndo

f az v er ii o: a verdade do sentido meteorologico implica a verda-

de do sentido humano.

Esse triste proverbio - eles raramente sao alegres - ja e

uma alegoria. A alegoria e uma descricao ou uma narrativa que

enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar me-

taforicamente urna verdade abstrata. Ela e a estrutura do prover-

bio, da fabula, do romance de tese, da parabola'.

Apesar de ser uma sequencia de metaforas - andorinha

como boa nova, verao como felicidade - nem por isso a alegoria

e uma metafora expandida. Por que? Exatamente porque todos

esses termos sao metaforicos, enquanto na metafora expandida

os termos figurados se encaixam num contexto de termos pro-

prios, de tal modo que a mensagem so possa ter urn sentido, 0

figurado. Em Ponha um tigre no seu carro, tigre e metaforico, 0

resto nao; assim, ninguem achara que se trata de urn tigre de

verdade, exceto 0cineasta Jean-Luc Godard, que, para satirizar,

filma um tigre num motor. A verdadeira alegoria, cujos termos

sao todos metaforicos, apresenta duas leituras possiveis:

"Pedra que rola nilo cria limo" tambem pode ser lido em

sentido figurado: quem viaja muito nao cria amigos. Note-se

Ravia dois homens numa mesma cidade, urn rico e outro

pobre. 0 rico possuia gado pequeno e grande em abundancia. 0

pobrl nada tinha a nao ser uma ovelhinha ( ...) que ele amava

como filha. Urn hospede chega a casa do rico que, poupando-sede tomar urn dos animais de seu rebanho para servir ao viajante.

pega a ovelha do pobre para prepara-la ...

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132 INTRODUr;AO A RET6RICA FIGURAS 133

Essa narrativa indigna e in triga D avi, quer saber quem e esse

homem , "que merece a morte" . E 0 p ro fe ta re sp on de -lh e " Tu

e s e ss e h om em ."

E ra e le, D av i, q ue , in fla ma do d e pa ixa o p or B etsab a, ra p-

ta ra -a, en gra vid ara -a e d ep ois, a rra nja nd o tu do pa ra q ue 0ma-

rid o d ela m orresse n a g uerra , d esp osara- a. V em os ai a forca d aa le go ria . S e N ata tiv ess e sim ple sm en te e xp os to 0 crime, 0 re i

p od eria te r re spo nd id o qu e 0 am or nao tern le i, ou que havia

necessidade de um herdeiro para a coroa; poderia ate nao ter

o uv ido n ad a. A qu i, a ca usa e o uv ida an tes m esm o d e ser ex po s-

ta , e , a o c on de na r 0 rico, 0 re i pren de u- se em se u p ro prio v ere -

d ic to. P re sta nd o a te nc ao a na rra tiv a, D av i n ao p erc eb eu - ne m

d e lon ge - q ue se tra tav a d ele . S em a a le goria , te ria p orve ntu ra

entendido?

c ha r, d e v er 0 e sfra ng alh am en to d as p re te nso es d e p od er , s ab er

e v irtu de e xa ta me nte p orq ue q ue m faz a iro nia pa rec e le va- la s

a serio, Figura do patos e do etos - poe do seu lado quem ri -, a

i ro nia tam bem e fig ura d o log os, p or ressalta r u rn a rg um en to

d e in compa tib il id ad e p elo r id ic ul o.

A prec ie mo s a re plic a d e N ap ole ao III, q uan do th e m ostra-ram 0v io le nt o p an fle to d e V. H ug o c on tr a e le :

Pois bern, Senhores, ai esta Napoleiio, 0 Pequeno, por

Victor Hugo, 0Grande.

Ironia, grara e humor

o q ue e le q ui s d iz er e xa tam en te ? "E ele que se tom a por N apo-

leao ," "N ao m e atinge ." " Adm iro-o apesar de tudo com o poe-

t a" . .. T al ve z o s tr es .

A g ra ca , e m retoric a, e a iron ia q ue v ern a c alh ar, a re plic a

arguta, que e a m ais eficaz. Q uanto ao hum or, nao e um a espe-

c ie d e ir on ia ; e 0c on tra rio d a iro nia . E sta d en un cia a fa lsa s erie -dade em nom e de um a seriedade superio r - a da razao, do born

senso, da m oral -, 0 q ue c ol oc a 0 iro nis ta b ern a cim a d aq uilo

que ele denuncia ou critica: nao e 0 sa be r q ue faz d e S ocrate s

urn m estre , m as sua iron ia . N o hum or, e 0 p ro pr io su je ito q ue

ab an do na su a p ro pria se ried ad e, q ue ab dic a d a im po rta ncia, 0

que em principio exige dele certa calm a, certo dom inio de si -

sim , a fleum a britan ica e 0 humor sao uma coisa so -, e desse

m odo se explica que 0 prim eiro grau do hum or seja a palavra

d esc on tra ida n os m om en to s e m q ue to do s ja p erd era m a ca be ca ,

A n tid oto c on tr a to do s o s fa na tis m os , 0h um or te nd e p ar a 0 i rra-

c io na l e a s v eze s p ara 0n iil is m o. A ss im , s e a ir on ia e u ma a rm a,

o h um or e a lg o q ue d es ar ma . R eto ric a s up erio r.

N a iron ia, zo mb a-se d izen do 0 contrario do que se quer

d ar a e nten de r. S ua m ate ria e a an tifra se , se u o bjetiv o 0 sarcas-

m o; trata -se re alm en te d e u ma fig ura d e pe nsam en to , p ois tern

do is s en ti dos : Es afenix ... p od e ser to rn ad o a o p e d a le tra, co mo

a ave, ou entao segundo seu espirito , que aqui se opoe ao senti-

d o p ro prio d o te rm o.

A ir on ia p od e se r a me na o u c ru el, su til o u g ro ss e ir a, a ma rg a

o u e n gr ac a da . .. D e lim it ar emo s 0a ss un to c om d ua s p er gu nt as .

o q ue a to rn a " fin a" ? P ro va ve lm en te 0 a fa stam en to e nt reos dois sen ti d os, a le tra e 0 espiri to. E verdade que se pode

"m arcar" a ironia : pelo tom de voz, por ponto de exclam acao ,

aspas, e tc . S e clara dem ais, passa a ser facil. A iron ia pesada e

a esperada, a que sucum be ao peso do sen ti d o. A ironia e fina

quando seu verdadeiro sen tido se deixa esperar, quando sua

v itim a e a u ltim a p esso a a p erce be- la ; in do m ais lon ge , p od e-se

dizer que e aquela cujo sen tido nunca ficara com pletam ente

c la ro , q ue s em pr e d eix ara a lg um a d uv id a.

Por que e engracada? Por certo ha sempre uma dose de

a le gr ia sa dic a n a iro nia ,0

"prazer m aligno" de ver a bola m ur-

Figuras de enunciacdo: apostrofe,

prosopopeia, pretericiio, epanortose

C ettas fig ura s te rn p are nte sc o c om a iro nia , m as sua an ti-

fra se d iz re sp eito a e nu nc ia ca o, e n ao a o e nu nc ia do .

A apostrofe consiste em dirigir-se a algo ou alguem dife-

rente do audito rio real, para persuadi- Io m ais facilm ente. 0

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7/11/2019 Introdução à retórica. Olivier Reboul. São Paulo_ Martins Fontes, 2004

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134 INTRODU(:AO A RETORICA FIGURAS 135

audit6rio ficticio pode ser urn ser presente, mas na maioria das

vezes esta ausente: sao mortos, antepassados, a patria, os deu-

ses, qualquer coisa:

Figuras de argumento: conglobaciio,

prolepse, apodioxe, cleuasmo

Onde estou? 0 que vi? Enganais-me, olhos meus?

Existem, finalmente, figuras de pensamento dificeis de

definir sem recorrer it nocao de argurnento: mais que as outras,

elas demonstram a existencia de laces intimos entre estilo e ar-gumentacao,

A prolepse antecipa 0 argumento (real ou ficticio) do ad-

versario para volta-Ic contra ele: Dizer-nos que...

A conglobacao acumula argumentos para uma unica con-

clusao, A expolicao retoma 0mesmo argumento com formas

diferentes. A pergunta ret6rica apresenta 0 argumento em for-

ma de interrogacao.

o c1euasmo consiste no desgabo que 0 orador faz de si

mesmo, para angariar confianca e simpatia do audit6rio: Talvez

eu esteja sendo tolo, mas... Figura do etos, 0 cleuasmo tambem

afirma a vinganca do born senso sobre os especialistas ou os

eruditos, da vivencia sobre 0 livresco, da ingenuidade sobre a

sofisticacao. Desse modo, 0criado Sganarello diz a Don Juan:

Para 0 TA, esta seria urna "figura de comunhao" (p. 240),

que une 0 audit6rio ao orador. Para n6s e mais uma figura de

amplificacao, que permite ultrapassar 0 audit6rio real em dire-

9ao a urn audit6rio (mais) universal, ou, inversamente, em di-

recao a urn individuo que personifique 0audit6rio universal.

A prosopopeia consiste em atribuir 0discurso a urn orador

ficticio: antepassados, mortos, leis, como S6crates em Criton,

que e interpelado pelas leis de Atenas:

o que tentas (ao fugir), seria outra coisa senao destruir-

nos, a nos, as leis...?8

A pretericao, muito pr6xima da aposiopese, consiste em

dizer que nao se vai falar de alguma coisa, para melhor falar

dela. Eu tambem poderia ter dito que... Como se Ie no TA, ela e"0sacrificio imaginario de urn argumento" (p. 645).

A epanortose consiste em retificar 0que se acaba de dizer:

Ou melhor... Tambem e urna intrusao do c6digo oral na l ingua

escrita; faz 0discurso parecer mais sincero e, ademais, faz 0au-

dit6rio participar do encaminhamento dado pelo orador.

A contrafisao e uma especie de optativo que sugere 0 con-

trario do que diz: Tenhamfilhos entdo!

A epitrope ou permissao e uma figura de indignacao que

finge aceitar urn ato odioso de alguem para sugerir que esse

alguem seria capaz de comete-lo:

De minha parte, senhor, nunca estudei como vos, gracas a

Deus, e ninguem poderia se gabar de alguma vez ter-me ensina-

do algo; porem, com meu modesto senso, meu modesto juizo,

enxergo melhor que os livros...

A apodioxe e a recusa argumentada de argumentar, quer

em nome da superioridade do orador (Nao tenho lir;oespara

receber ...), quer em nome da inferioridade do audit6rio (Niio

cabe a voces dar-me licoes...) Trata-se de uma especie de vio-

lencia verbal. Mas sera so isso?

Somos todos judeus alemaes.

Eis aqui sangue, vem beber ... (cf. texto 5)

Assim como a hiperbole, sublinha urn argumento de di-

recao,

o celebre slogan de maio de 1968 respondia a quem ale-

gava que oPlider esquerdista Cohn-Bendit, sendo filho nao na-

turalizado de judeus alemaes, nao podia dirigir urn movimento

politico frances. 0 slogan nao recusava 0dialogo, mas rejeita-

va 0pretenso acordo previo imposto pelos adversaries para que

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136 INTRODUC;AO A RET6RICAFlGURAS 137

Songe, songe, Cephise a cette nuit cruelle

QuiJut pour tout unpeuple une nuit eternelle.

Figure-toi Pyrrhus, lesyeux etincelants,Entrant a la lueur de nospalais bnilants,

Sur tous mesfreres morts seJaisant unpassage

Et de sang tout couvert echauffant Iecarnage;

Songe aux cris des vainqueur, songe aux des mourants,

Dans laflamme etouffes, sous IeJer expirant;

Peins-toi dans ces horreurs Andromaque eperdue:

Voila comme Pyrrhus vint s'offrir a la vue!

sente (aqui os genindios); pelas metonimias: clarao, chama,

ferro; pela gradacao no horror: feral - eternal, gritos de triunfo

- ais dos que morrem; pela litote: abrindo passagem, para mos-

trar que os mortos queridos estavam reduzidos a detrito; tudo

isso para desembocar no Voila [li teralmente, eis --. E veras],

que conclui a hipotipose: inexoravel,

Depois dessa extensa enumeracao, alias incompleta, al-

guem perguntara se as figuras sao de fato uteis; nao seriam an-

tes nocivas, fonte de confusao e manipulacao? Afinal de contas,

por que falar de figuras?

E como perguntar: por que falar? Sempre que queremos

expressar sentimentos ou ideias abstratas, recorremos as figu-

ras. E 0 filosofo, 0 jurista, 0 teologo nao escapam dela tanto

quanta 0 homem (e a mulher) comum. Falar sem figuras, sim,

seria 0verdadeiro desvio, provavelmente mortal.

o problema nao e livrar-se das figuras - 0 que equivale a

livrar-se da linguagem;0

problema e conhece-las e compreen-der seu perigoso poder, para nao ser vitima dele; para tirar pro-

veito dele.

houvesse dialogo (ou seja, urn homem, que e judeu e alemao,

so tern de calar a boca): queremos discutir, sim, mas nao nesse

nivel! A apodioxe, aqui, nao e mais violencia, mas rejeicao a

violencia, 0 mesmo acontece com 0slogan americano Black is

Beautiful: reivindicamos aquilo pelo que somos desprezados.

Como se ve, existem figuras explosivas. Mas a mais ex-plosiva provavelmente e a hipotipose (ou quadro), que consiste

em pintar 0 objeto de que se fala de maneira tao viva que 0

auditorio tern a impressao de te-lo diante dos olhos. Sua forca

de pe~suasao provem do fato de que ela "most ra" 0 argumento,

assoclan~o 0patos ao logos. Dessa forma, Andromaca respon-

de a Cefisa, que a aconselha a casar-se com Pirro com esta

descricao do saque de Troia: '

Pensa, pensa, Cefisa na noite feral

Que para urn povo inteiro foi noite eternal.

Afigura-te Pirro com olhos luzentes

A entrar no clarao dos palacios ardentes,

Sobre meus irmaos mortos abrindo passagem

E de sangue coberto incitando a carnagem;

Ouve os gritos detriunfo, ouve os ais dos que c1amam

A morrer pelo ferro, abafados na chama.

A vagar nesse horror, vi:Andr6maca entao:

E veras qual de Pirro foi dela a visao!

~~sa evoca9.a~ quase a~ucina:oria (pensa, afigura-te) eaI?phflCada por mumeras ali teracoes: lueur - palais brtilants

[hteralmente, clarao, palacios em chama], pela enalage do pre-

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Capitulo VII

Leitura retorica dos textos

Toda a sequencia deste livro sera dedieada it interpretacao

de textos. Hoje em dia, dispotnos de varies metodos para esse

fim - analise do conteudo, analise estrutural, hermeneutica,

etc. -, eada urn com suas virtudes e com suas fraquezas. 0 que

propomos aqui nada mais e que a propria retorica, em sua fun-

r;aointerpretativa; aborda 0 texto com a seguinte pergunta: em

que ele e persuasivo? Portanto, quais sao seus elementos argu-mentativos e oratorios?

Nossa leitura e retorica tambem por sua ati tude em rela-

r;aoao texto. Certos metodos dizem-se puramente objetivos,

abordando 0 texto com "neutralidade". Outros sao partidarios

declarados da desconfianca, ese, como nos, proeuram no tex-

to procedimentos retoricos, e para mostrar que sao mistifica-dores. Outros, enfim, como a hermeneutica, considerando 0

texto sagrado, como fazem teologos e juristas, explicam-no

com 0 unico objetivo de entende-lo, e postulam que ele tern

razao sistematicamente, de tal modo que, se 0comentador en-contrar nele erros ou contradicoes, tera sido porque nao 0 en-

tendeu.

') A leitura retorica, por sua vez, nao objetiva dizer que 0

texto tern razao ou deixa de te-la. Nem por isso e neutra, poisnao hesita em fazer juizos de valor, em mostrar que tal argu-

mento e forte ou fraco, que tal conclusao e legitima ou erronea,

Critica e'pondera, sem se abster de admirar, tendo como postu-

lado que 0 texto, tanto em sua forca quanto em suas fraquezas,

pode ensinar algurna coisa. A leitura retorica e urn dialogo.

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140 INTRODU9AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 141

(.. .) e nao compreender em meus juizos nada mais que aquilo

que se apresentar a meu espirito com tal clareza e distincao queeu nao tenha ensejo de duvidar.

urn autor. Assim, a famosa regra do Discurso do metoda, cujo

final acabamos de citar e que identifica verdade com eviden-

cia, pode muito bern ser apresentada como urn axioma logico,

mas nem por isso deixara de ser dirigida contra alguem. Reco-

nhece-se Arist6teles, cuja dialetica integra 0 campo da verossi-

milhanca na filosofia, enquanto a regra da evidencia leva arejeitar como falso tudo 0que e apenas verossimil.

Contra quem, logo por que? 0 discurso tende a persuadir

de algo, mas esse algo pode ser multiplo, 0 texto muitas vezes

tern urn objetivo imediato e outro distante, 0mais importante.

o autor do Discurso do metoda quer persuadir seus leitores do

valor de seu metodo, mas principalmente do valor de sua em-

presa global, a saber, da ciencia que esse metodo produzira,

tornando-nos "senhores e donos da natureza". Num texto ironi-

co (cf. texto 10), 0 objetivo real e absolutamente oposto ao ob-

jetivo declarado.

Finalmente, como 0 autor se manifesta em seu discurso?

Esse e 0 problema da enunciacao, Quando Jean-Jacques Rous-

seau (texto 11) diz Eu ousaria expor aqui.. ., e Jean-JacquesRousseau que esta falando, ninguem mais. Quando Descartes

enuncia 0Penso, logo sou, e 0 eu universal que esta falando,

como em matematica, Mas quando Descartes escreve em nos-

so texto: meusjuizos, meu espirito, que eu niio tenha, quem e 0

eu? Por certo ele, Descartes, pois e 0primeiro a dizer isso, mas

tambem cada um de n6s, pois ele pretende servir de modelo.

Portanto, um eu intermediario entre 0da audacia pessoal e 0do

pensamento universal.Cumpre mencionar dois casos notaveis. 0 primeiro e aque-

le em que 0eu do discurso nao e 0 de seu autor: isso se observa

na citacao ou na prosopopeia, 0 segundo e 0 caso em que nao

ha eu algum, em que 0discurso se apresenta como puro enun-

ciado, assim como os textos escritos por juristas ou ge6grafos.

Mas a ausencia de marc as de enunciacao nao significa ausen-

cia de eramciacao; os textos mais objetivos na forma as vezes

sao os mais tendenciosos.

Questdes preliminares

Diante de urn texto, deve-se comecar fazendo certo mime-

ro de perguntas, que podem ser chamadas de lugares da inter-

pretacao. Algumas dessas perguntas dizem respeito ao orador;

outras, ao audit6rio; outras, enfim, ao discurso, no sentido tee-nico que a ret6rica atribui a esses termos.

Orador: Quem? Quando?

Contra 0que? Por que? Como?

Primeira pergunta: quem fala? Ao contrario de certas ana-

lises estruturais, a leitura ret6rica assume a responsabilidade

dessa pergunta, considerando uteis quaisquer informacoes re-

ferentes a vida do autor e a sua doutrina. Mas essas informa-

coes raramente sao indispensaveis. E, assim, a leitura ret6ricapostula que 0 texto tern autonomia e e entendido por si mesmo.

E ainda que seja util conhecer a doutrina do autor para com-

preender seu pensamento, e imitil elucidar cada uma de suas

afirmacoes com citacoes tomadas no restante de sua obra. Quan-

to mais se puder interpretar 0 texto em si mesmo, melhor.

Na verdade, a pergunta indispensavel e: quando? E preci-so conhecer a epoca do discurso, nem que seja para evitar con-

tra-sensos nos termos. Lemos, por exemplo:

o que significa compreender aqui? 0 leitor moderno sera

tentado aver nele 0 sentido de entender, explicar. Ora, se sou-

bermos que 0 texto e de 1637, descobriremos que 0 autor quer

dizer coisa bern diferente: "incluir em meus juizos". Nao no

sentido de "entender", mas no sentido de "conter".

Outra pergunta: contra quem? Isso porque e raro que urn

discurso persuasivo nao seja ipsofacto dissuasivo, que nao ata-

que, pelo menos implicitamente, uma opiniao, uma doutrina,

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142 INTRODUr;:AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 143

Auditorio e acordo previa 1 0 XVII, partiam de urn postulado comurn, a verdade do cris-

tianismo: cada urn dos protagonistas afirmava representar 0

"verdadeiro" cristianismo. 0 acordo inicial tambem dizia res-

peito aos metodos da controversia e aos assuntos espinhosos

que cumpria evitar, como a graca e a predestinacao'. Nas ques-

toes em que nao haja nenhurn acordo inicial, pode haver vio-

lencia ou ignorancia reciproca, nao controversia.

Pode-se objetar que e dificil interpretar urn discurso quan-

do se ignora 0 acordo previo que ele pressupoe. Mas esse acor-

do e revelado pelo pr6prio texto: pelo nao-dito, pela ausencia

das provas que seriam de esperar, por suas f6rmulas estereoti-

padas, alusoes, expressoes como: "e certo que", "todos sa-

bern", "deve-se admitir", etc. Tambem neste caso 0 texto expli-

ca 0 texto.

Faltam as perguntas referentes ao discurso em si: do que

trata, 0 que diz, como diz? Em ret6rica e a terceira pergunta

que mais importa. Neste capitulo limitar-nos-emos a especifi-

car seus aspectos preliminares.

A quem se esta falando: em outras palavras, qual e 0 audi-t6rio real do discurso? Sabe-se que, na ap6strofe, nao se trata

do audit6rio aparente. Isso ocorre quando os candidatos de

urna eleicao travam urna polemica na televisao, e cada urn fin-

ge dirigir-se aquele que esta diante de si, mas, como nao pode

esperar convence-lo a lhe dar seu voto, na verdade esta-se diri-

gindo ao publico eleitor. Assim (cf. supra, p. 9): "Senhor Mitter-

rand, esta a par da cotacao do marco?" Mitterrand e 0audit6rio

ficticio; 0 audit6rio real e 0 telespectador, que vai ficar saben-

do que Mitterrand nao esta a par da cotacao do marco.

A quem: essa pergunta nao e feita apenas pelo interprete,

mas por certo tambem pelo orador. Pois a regra de ouro da rete-

rica e levar em conta 0 auditorio. Ora, os audit6rios distin-

guem-se de diversas maneiras.

Em primeiro lugar pelo tamanho, que pode ir de urn unico

individuo (por exemplo, nurna carta) a toda a hurnanidade. Com-

preende-se facilmente que a importancia do publico influencie

a natureza da mensagem.

Em segundo lugar, pelas caracteristicas psicol6gicas de-

correntes de idade, sexo, profissao, cultura, etc.

Em terceiro lugar, pela competencia, Ninguem se dirige a

urn grupo de medicos como se fosse urn grupo de doentes, a urn

grupo de especialistas como se fosse urn publico leigo. A com-

petencia distingue nao s6 os conhecimentos necessaries como

tambem 0nivel de argumentacao e ate 0vocabulario.Em quarto lugar, pela ideologia, seja ela politica, religiosa

ou outra. Pois nao e so 0 argumento que muda segundo a ideo-

logia; 0vocabulario tambem.

Orador, audit6rio: e impossivel que urn se dirija ao outro

se nao houver entre ambos urn acordo previo, De fato, nao ha

dialogo, nem mesmo argumentacao, sem urn entendimento mi-

nimo entre os interlocutores, entendimento referente tanto aos

fatos quanta aos valores. Pode-se ate dizer, sem paradoxo, que

o desacordo s6 e possivel no ambito de urn acordo comum.

Assim, as controversias entre catolicos e protestantes, no secu-

A questao do genero: Pascal e La Fontaine

Uma questao capital na leitura ret6rica e a do genero, que

comanda estreitamente 0conteudo persuasivo do discurso.

o genero agrupa obras que apresentam caracteristicas fun-

damentais em comum: tragedia, poema lirico, tese, etc. Sem

duvida e impossivel fazer uma classificacao exaustiva dos ge-neros, porem 0mais util para a leitura ret6rica e a comparacao,

Se quisermos determinar as caracteristicas de urn genero, pre-

'; cisamos perguntar 0 que 0 distingue do genero mais pr6ximo;

por exemplo 0melodrama da tragedia, a novela do romance, a

aula da conferencia.

Nossa tese, inspirada no livro de Angenot, Le discours

pamphletaire, e de que 0genero enseja nao so injuncoes de es-

tilo, extensao e vocabulario, mas tambem injuncoes ideol6gi-

cas. Segundo a escolha que se faca, de tratar urn assunto na for-

ma de ensaio ou de panfleto, nao se dira a mesma coisa, nao se

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144 INTRODU(:AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 145

tirarao as mesmas conclusoes. 0 genero circunscreve 0 pens a-

mento.

"Vamos mostrar isso", comparando dois textos. Sao da mes-

rna epoca: Pascal morreu em 1662; 0primeiro livro das F 'abulas

foi publicado em 1668. Falam do mesmo assunto, que se pode-

ria resumir pela expressao alema das Faustrecht, 0 direito dopunho, 0 que e urn oximoro. Mas nao dizem a mesma coisa,

precisamente porque nao sao do mesmo genero; e por mais que

o genic dos dois autores transgrida as "leis do genero" nem por

isso este deixa de inflectir 0pensamento deles; tanto e verdadeque adotar urn genero e nao s6 "assinar urn contrato com 0 lei-

tor'? como tambem ingressar numa visao de mundo.

Texto 3 - Pascal, "Justic«, forca" (Br. Min. N, D 298, p. 470)

U n l ou p s ur vie nt a j eu n, q ui e he re ha it a ve ntu re ,

E t q ue lafaim e n c es l ie ux attirait.

"Q ui te re nd si h ard i d e tr ou ble r m on br eu va ge ?

D it e et a ni ma l plein d e r ag e:

T u s er as c hd ti e d e t a t em er it e.

- S ir e, repond l'a gn ea u, q ue V ot re Majeste

N e se m ette p as e n c ole re ;

Ma is p lu ti it q u ' el le c on si de re

Q ue je m e v as d es alt er an t

D a ns I e c ou ra nt

P lu s d e v in gt p as a u-d es so us d 'E ll e;

E t q ue p ar c on se qu en t, e n a uc un e facon,

J e n e p u is t ro ub /e r s a b oi ss on .

- T u l a t ro ub le s, r ep rit c et te b et e c ru el le ;

E t je s ais q ue d e m oi tu m edis I 'a n p ass e.

- C om me nt I ' au ra is-je fa it si je n 'e ta is p as n e?

R ep rit I'ag ne au ;je te te e nc ore m a m er e.

S i c e n 'e st to i, c ' es t d on e t on f r er e.Je n 'e n a i po in t. - C 'e st d one q ue lq u'u n d es tie ns;

C ar v ou s n e m 'e pa rg ne z g ue re ,

V ou s, v as b er ge rs e t v as c hi en s.

O n m e I' a dit: il faut que je m e ve nge. "

L a d es su s, a u fo nd d es fo re ts

L e lo up I 'e mp orte e t pu is Ie m an ge ,

S an s a ut re fo rm e d e p ro ce s.

E justo que 0 justo seja seguido, e necessario que 0mais

forte seja seguido. A justica sem forca e impotente; a forca semjustica e tiranica, Ajustica sem forca e contraditada porque sem-pre ha perversos; a forca sem justica e acusada. Portanto, e pre-cisojuntar justica e forca; e,para isso, que seja forte aquilo que ejusto, ouque sejajusto aquilo que e forte.

A justica esta sujeita a discussoes, a forca e facilmentereconhecivel e nao se discute. Assim, nao se pode dar forca ajustica, porque a forca contradisse ajustica, dizendo que esta era

injusta, e que s6 ela mesma era justa. E assim, nao podendo

fazer que 0justo fosse forte, fez-se 0forte serjusto.

A razao domais forte e sempre a melhor razao:E 0que vamos mostrar agora.

Un a gn ea u s e d es al te ra it

D an s Ie c ou ra nt d 'u ne on de p ure .

Urn cordeiro a sede matavaNurna corrente de agua pura.

Chega emjejum urn lobo, a busca de aventura,Lobo que a fome a tallugar levava.

"Estas turvando minh' agua, Que atrevimento!

Disse aquele animal raivento:

Secas castigado por tal temeridade.

Responde 0cordeiro: - Que Vossa Majestade

PNao se deixe destarte irar;

Pois antes cabe considerar

Que esta agua que you tomando

Desce escoando

Texto 4- La Fontaine, "0lobo eo cordeiro", Fabulas, 1,10

L a r ai so n d u p l us fo rt e st t ou jo ur s l a m ei ll eu re :

N ou s I ' al lo ns m on tr er to ut a I ' he ur e.

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146 INTRODUC;AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 147

Por vinte passos apos V O S ;

Eque por conseguinte nao posso jamais

Turvar a agua que tomais.

- Mas turvas, respondeu aquela fera atroz;

Ebern sei que me difamaste ano passado.

- Como, senhor, seeu nem tinha sido gerado?

Se inda mamo, disse 0cordeiro a mais.

Setu nao es, e teu irmao.

Senao ostenho. - E urn dos teus entao;Porque v os n ao me poupais,

Vos, vosso pastor e 0cao,

Contaram-me: curnpre a vinganca agora."

Epara a mata e seus recessos

o lobo 0carrega e devora,Sem outra forma de processo.

Apoia-se num acordo previo que possibili ta 0 desacordo; esse

acordo e a filosofia de Descartes, que opoe categoricamente

as duas "substancias": corpo e pensamento. Ora, como ajusti-

ca esta do lado do pensamento, que e infinitamente superior

ao corpo, Pascal pode estabelecer um argumento de dupla hie-

rarquia:

Pensamento > corpo,

portanto

Justica > forca.

Partindo desse argumento, admitido por seus leitores, Pascal

vai mostrar que estamos numa situacao absurda, insustentavel,

porque, mesmo nao declarando e nem sequer estando cientes,

invertemos a hierarquia natural. Aqui encontramos a atitudecentral de Pascal: levar 0 homem sem Deus a compreender e

sentir 0absurdo de sua condicao, de que nenhuma filosofia po-

de dar consciencia.

Situaciio dos dois textos

o texto de Pascal e um "pensamento", que poderia ser

classificado no mesmo genero dos "aforismas" de Nietzsche e

das "consideracoes" de Alain. Todavia, e preciso levar em con-

ta 0projeto do autor: escrever uma "Apologia da religiao cris-

ta", cujo rascunho e constituido por Pensees e tudo 0 que nos

ficou dessa obra!

o genero apologetico, que comeca com a Apologia de S o-

crates e viceja em nossos dias com os Ce queje crois... [Aquilo

em que acredito ... ], pertence na verdade ao epidictico dos anti-gos. Visa a persuadir de um valor fundamental, unindo uma ar-

gumentacao mais ou menos rigorosa a urn testemunho que en-

gaja 0autor: "Deus existe, encontrei-me com ele."

A quem Pascal se dirige? Aquilo que se chamava de "hon-

netes gens" em seu tempo, mais precisamente aos libertinos*.

Quando ele se gaba, eu 0rebaixo; quando se rebaixa, eu 0

gabo; e sempre 0contradigo, ate que ele entenda que e urn mons-

tro incompreensivel. (p. 216; 0"ele" e "nos'")

Em resumo, toda "apologia" repousa na antitese entre nos-

sa grandeza e nossa miseria, nossa grandeza de direito, como

criaturas de Deus, e nossa miseria de fato, como pecadores de-pois da queda de Adao. Antitese filos6fica que 0genic de Pas-

cal torna ret6rica, como demonstra 0quiasmo final: justo-forte-

forte-justo.

Situemos agora a fabula. Em principio, a fabula e uma ale-goria que se reputa capaz de ilustrar, de mostrar, uma verdade

moral. Portanto, e essencialmente pedag6gica, e, alias, 0 autor

destina seu livro I as criancas.

No entanto, a justificativa oficial da fabula, pela moral, ja

nao se sustenta em La Fontaine. Em primeiro lugar, porque a

alegoria e muitissimo mais longa do que aquilo que diz demons-

* Termo designativo dos cristaos que, no seculo XVI, iniciaram e de-

senvolveram correntes de independencia religiosa em relacao it Igreja Cato-

lica. Mais tarde esse termo, que da ideia de liberdade, adquiriu conotacao de

vida dissipada e anti-religiosa. (N. do T.)

148 /NTRODUC;AO A RET6RICA

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LE/TURA RET6RICA DOS TEXTOS 149

trar, a "moral"; parece que, para 0 autor, ela se transformou

num fim em si, na alegria de encenar; mas, justamente, essa

maravilhosa encenacao e ao mesmo tempo urn prazer e urna

li<;ao.Em segundo lugar, porque a moral nao e a que se espera-

va; em Fedro, modelo latino do autor, a mesma fabula termina-

va assim:

Esta fabula e escrita contra aqueles que, com falsas alega-

90es, oprimem os inocentes.

mente. Pode-se objetar que a forca tambem e enfraquecida pe-

los conflitos com outras forcas, Mas basta que ela seja reco-

nhecivel, que se saiba onde esta, ao pas so que isso nao aconte-

ce com a justica. Portanto, a forca pede explorar essa dupla ca-

rencia e apropriar -se da justica, dizendo "que s6 ela mesma era

justa". Conseqiiencia: a hurnanidade, sempre e em todo lugar[sujeito indeterminado no texto], s6 pode tomar 0 segundo ca-

minho, em que 0 justo e posto a servico do forte, substituindo

assim a justica por sua falsificacao.

o que Pascal mostra nao e que a forca reina sobre 0 dire i-

to, pois esse reinado nada mais teria de hurnano, e sim que a

forca reina porque esta disfarcada de direito.

La Fontaine, ao contrario, nao denuncia; apenas enuncia. E a

unica "moral" que aparece na fabula e francamente imoral.

Rousseau afirmava que essas fabulas nao convem em absoluto

as criancas; como psic6logo, estava coberto de razao; como

pedagogo, completamente errado; pois, se as criancas fosse

ensinado apenas 0 que e "para criancas", nao se iria muito

longe ...Em todo caso, La Fontaine utiliza 0genero "fabula" trans-

gredindo-o; para ele, a pedagogia nao passa de pretexto. Ape-

sar disso, ensina tanto quanto Pascal, mas de outro modo.

Em La Fontaine, a argumentacao se da em dois niveis.

Primeiro, no nivel do narrador: Vamosmostrar ... Na ver-

dade ele nao mostra nada, pois nao se pode extrair de urn exem-

plo apenas, e 0mais ficticio, urna lei universal: e sempre... E deduvidar que La Fontaine tenha achado seriamente que estava

mostrando algurna coisa, e sobretudo que tenha acreditado pes-

soalmente que a razao do mais forte e sempre a melhor. A

nosso ver sua argumentacao e puramente ironica; em outras

palavras, 0que ele mostra e tao enorme que 0que se impoe e atese contraria,

No segundo nivel, a argumentacao dos dois interlocutores.

A do lobo e 0 pr6prio discurso da ma-fe, A do cordeiro, que

comeca com urna preparacao psicol6gica (que VossaMajes-

tade...) e uma demonstracao (em sentido estrito) urn tanto pe-dante, mas evidente: e fisicamente impossivel turvar a agua do

lobo. Este limita-se a responder: Mas turvas, 0 que e uma apo-

dioxe, uma recusa pura e simples do argurnento contrario,

No entanto - e talvez ai apareca a verdadeira licao da fa-

bula -, a coisa nao e tao simples. 0 lobo, afinal, se acha obriga-

do a argumentar. 0 fato de ter a forca e de ter fome nao lhe

basta; es~a superioridade e da ordem do necessaria, e 0 lobo se

querjusto, nem que seja com maus argumentos; Bem sei que...

Se niio es... e entao... Porque...: cada frase e justificada, 0 que

prova que 0 lobo nao s6 precisa comer como tambem ter razao.

A argumentaciio dos dois textos

A argumentacao de Pascal e ao mesmo tempo clara e den-

sa. Opondo as duas formas de seguir, por razao e por necessi-

dade (no sentido de inevitavel), mostra que ambas sao insufi-

cientes, e que s6 existem unidas. Sozinhas, a justica e impoten-te e a forca e odiosa, porque ilegitima. A humanidade, portan-

to, s6 pode sobreviver associando-as. A questao e saber qual

das duas sobrepujara a outra, 0 que exprime 0 primeiro quias-

mo: subordinar 0 forte ao justo ou 0justo ao forte?

Ora, 0homem de fato escolheu 0 segundo termo, e Pascal

explica por que. Acontece que urn elemento veio romper 0

equilibrio. Diante da forca, ajustica padece de carencia; nao de

urna, mas de duas: ela nao s6 e impotente, como tambem esta

sujeita a discussiies, ou seja, e fraca mesmo em sua pr6pria

ordem, 0pensamento. Enquanto isso, a forca e 0 que e , plena-

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150 INTRODU9AO A RET6RICA LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 151

Observaciies sobre 0 estilo dos dois textos

opoe-se ao estilo epico e ao tragico, mas tambem it secura da

fabula antiga. Note-se ainda a extrema economia de meios em

Pascal; seu quiasmo, por exemplo, nada tern de ornamentacao;

eo pr6prio movimento do pensamento. E bern uma figura de

conteudo, independente em principio do autor e da situacao, no

sentido de que, se quisermos dizer a mesma coisa, nao podere-

mos dizer de outro modo; 0quiasmo tern a me sma necessidade

de uma f6rmula matematica como a x b =b x a.

o humor do fabulista e , ao contrario, figura da enuncia-

<;ao.Nao M humor sem humorista, e 0 "tom" do fabulista su-

gere que a fabula nao seja lida no primeiro grau. 0 fato e que,apesar da diferenca de estilo, os dois textos dizem mais ou

menos a mesma coisa. Mas s6 "mais ou menos". Observemos

as diferencas.

A prime ira delas, menor na aparencia, diz respeito ao tem-

po dos verbos. La Fontaine procede por uma sequencia de ena-lages: matava a sede... chega... 0 presente, ins6lito, e aspec-

tual; marc a 0 acontecimento, a surpresa. Assim tambem a de-

sordem dos marcadores de narrativa: responde, respondeu, e 0

presente narrativo do fim: carrega-o. Essas figuras contribuem

para a vivacidade da narrativa.

Pascal, por sua vez, comeca no presente e passa brusca-

mente para 0perfeito: Assim, ndo sepode dar..., tambem pr6xi-

mo do estilo oral. Mas, neste caso, ja nao estamos na ficcao; 0

tempo tern valor cronol6gico absoluto, 0que distingue a apolo-

gia tanto da fabula quanta da exposicao filos6fica intemporal:

Penso, logo... Pois Pascal descreve urn acontecimento, algo que

surgiu no tempo, depois da queda de Adao, Seu primeiro para-

grafo era filos6fico: analise 16gica. 0 segundo e hist6rico, por-

que teol6gico.

A segunda diferenca diz respeito it personificacao. E aessencia da fabula; curiosamente, Pascal se aproxima dis so,

pois sua raetonimia aforca ... dizendo que equivale a personifi-

car a forca, 0que torna tragico 0debate. A forca que fala aqui eo discurso dos fortes, que nao tern outro peso senao 0 da forca

deles. A forca que fala na fabula e 0 lobo.

o que torna a fabula singularmente complexa e que 0 lobo aca-

ba trazendo it tona um argumento totalmente convincente: Por-

que vas ndo mepoupais ... E e verdade; se agarrado pelos pas-

tores, 0 lobo seria morto. Por isso, segundo as regras dajustica,

ele tern direito de matar 0 cordeiro. Para Louis Marin), 0 lobo

pertence ao mundo da natureza, e ° cordeiro ao mundo da cul-

tura; e entre os dois nao e possivel arbitragem alguma: so vale a

lei do mais forte.

Em suma, 0 lobo da a verdadeira justificativa. Mas La

Fontaine decerto percebeu que, se ficasse nisso, a fabula se tor-

naria tragica, e deixaria de ser fabula. Por isso, logo completa 0

argumento com Ja me contaram, que, em vez de reforcar, des-

tr6i 0argumento, pois 0que era uma evidencia natural, que nao

exigia c omp ro va ca o - a luta mortal entre lobos e homens -

acaba sendo uma simples opiniao, um dizem ("dizem que dois

e dois sao quatro"!). Argumento fraco e pouco coerente do ho-mem enfurecido.

Fato e que 0 lobo faz uma defesa, apresenta sua decisao -

cumpre [a vinganra] - como resultado de uma argumentacao

que a torna legitima. Note-se que ela se ap6ia num endoxon da

epoca, ou seja, que a vinganca pode ser um dever, algo que

cumpre realizar. E 0 sem outra forma de processo, subenten-

dendo que houve processo, acentua ainda mais essa ironia.

Em suma, antitese tragica mas clara em Pascal, ironia pra-

zenteira mas turbida em La Fontaine: tao turbida quanto a pr6-

pria vida. Talvez caiba mais falar de humor.

A elocucao, portanto 0estilo, acentua de modo impressio-

nante a diferenca entre os dois generos. A fabula e em versos, 0

pensamento e em prosa. Mas, tambem neste caso, 0 genic

transgride 0genero, e os dois autores reduzem a oposicao, Pois

ambos se aproximam do estilo oral. Com suas frases curtas e

seus assindetos, Pascal opoe-se aos periodos de Bossuet. E La

Fontaine, com seus versos irregulares, seu andamento vivaz,

LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 153

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152 INTRODUC;AO A RET6RICA

o que dizer desse lobo e de outros anim~is? Serii~alego-

rias? Antes vale dizer: simbolos, porque passiveis de vanas In-

terpretacoes. 0 lobo e 0 "marginal" que, ar~scan~o-se a ~entirmedo e passar fome, preferiu a liberdade a coleira do cao. 0

lobo tambem e 0poderoso, aquele que 0 cordeiro chama - nao

sem razao - deMajestade ... La Fontaine, que de ordinario exi-be uma deferencia total pelos monarcas, niio os esta aqui des-

mascarando em sua verdade? Afinal, 0 lobo e 0 cordeiro sim-

bolizam certa relacao entre os homens, ou mesmo certa relacao

no homem, pois niiosomos nos ora cordeiros, ora lobos?~ ani-

mal da fabula exprime nossa natureza em seu determinismo

inexoravel: homens conduzidos pelo aquem de si mesmos, sem

remissao.omesmo pessimismo visto em Pascal, tirando 0tragico.

A moral da fabula expressa, pois, 0necessaria de Pascal:

todo bajulador... segundo fores poderoso ou miseravel.: A svezes ela valida de modo preocupante esse primado do neces-

sario. Assim, em "0 lobo pastor":

o que e falso de algum modo sempre aparece.Quem for lobo aja como tal:

Pois isso e 0mais certo, afinal.

Os dois generos e seu impacto ideologico

Apesar disso, pudemos demonstrar que a fabula, por ofe-

recer interpretacoes muito diversificadas, e tambem 0 antidoto

do maniqueismo: 0lobo nao esta completamente errado ...

A apologia, com suas antiteses e seus quiasmos, e 0gene-ro da grandeza, mas tambem da negacao. Para ela, 0 homem ecoisa diferente do que e , ou melhor, daquilo que acha que e . 0projeto do apologista, seja ele Socrates ou Pascal, e antes de

tudo perturbar, para levar0

homem a superar seu ponto devista, a olhar para outro lugar, para urn alem de simesmo.

Mas, quando a apologia contradiz ou protesta, a fabula

lanca um olhar resignado e brincalhao, Por isso e menos ironia- que denuncia 0mundo em nome de uma verdade superior -

que humor, pois limita-se a descrever 0mundo em seu absurdo.

Nao diz 0que esta certo, nem 0que esta errado, diz 0que e . Soconhece este mundo, e adverte-nos de suas ciladas enquanto

nos diverte. A etica da fabula e reacionaria, pois ensina a resig-nacao, Mas com que felicidade!

Nossos dois autores, escolhendo um a apologia e 0 outro a

fabula, nao poderiam chegar a conclusoes identicas'.Pois a esco-

lha de um genero nao e apenas a escolha deum estilo e de uma

argumentacao. E necessariamente uma escolha ideol?gica, q~eacarreta certa visao do mundo e do homem. Pascal nao podena

ter expresso seu pensamento em forma de fabula, Por que?

A fabula pretende exprimir certa natureza do homem pela

interpretacao dos animais e das arvores, que falam uma lingua-

gem familiar, pitoresca, muitas vezes comica: uma ence~a~aoe um dialogo. E a rejeicao absoluta tanto da grandeza epica

quanta da profundidade filos6fica; 0 que ela poe em ce~a e .0homem, mas 0 homem subjugado pela a<;iiodas forcas arumais

que tern em si. E, mesmo quando a fabula ~po~ home~s. em

cena, e1essao tiio pouco livres para mudar, sao tao mecamcos

quanto os animais. Assim, em "0 homem e a cobra":

Questees sobre 0 texto

Ouvindo isso, 0animal perverso

(Estou falando da serpente,

e nao do homem: facil seria enganar-se) ...

Uma questao inicial importante e , evidentemente, a dadisposicao, do plano do texto; voltaremos a ela em nossos co-

mentarios, Aqui observaremos que os textos muitas vezes sao

apenas excertos, nao havendo portanto proposito em buscar a

todo custe uma introducao e uma conclusao, que poderiam

perfeitamente estar em outro lugar.

Outra questao inicial: estamos diante de que tipo de argu-

mentacao? Segundo Aristoteles, M dois tipos, duas estruturas

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154 /NTRODUC;AO A RET6RICA LE/TURA RET6RICA DOS TEXTOS 155

argumentativas, e apenas duas: 0 exemplo, que vai do particu-

lar ao geral , do fato it regra, sendo portanto uma inducao, e 0

entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma

deducao.

Cabe lembrar que 0 texto 1, de Gorgias, pretende provar

por dois exemplos 0 poder da retorica, enquanto no texto 2Aristoteles prova a utilidade da retorica por meio de entimemas.

o que prova 0 exemplo?

todos os tiranos conhecidos para 0 tirano em geral, principal-

mente porque a palavra "tirano" nao e univoca: Dionisio nao era

tirano como era Hitler!

o exemplo nao permite provar que uma proposicao e uni-

versal; so pode provar que uma proposicao nao e universal, que

nao pode comecar com sempre nem com nunca. Mas, para essaprova negativa, basta um unico exemplo; basta mostrar que um

remedio nao curou uma vez para demonstrar que ele nem sem-

pre cura. A funcao logica do exemplo e negativa, serve para

infirmar.

Mas na argumentacao serve tambem para confirmar, fun-

((aOpositiva que nao tern na demonstracao: a de tomar plausi-

vel um enunciado, como vimos com Aristoteles (cf. Topicos,

VIII, 2, 157 a, 158 a e 160 b).Assim, emjustica, se houverum

acumulo de acusacoes contra um reu, compete a este produzir

um contra-exemplo (como um alibi), caso contrario sera consi-

derado culpado e ate condenado.

Em retorica, 0 exemplo (paradeigma) tern sentido bern

mais amplo que 0 do nosso banal "exemplo". E uma inducaodialetica, que vai do fato ao fato, passando pela regra subenten-

dida. Aristoteles mesmo da 0seguinte exemplo de... exemplo:

quer-se provar que Dionisio (politico de Siracusa) aspira a tor-

nar-se tirano. Parte-se de um fato verificado: Dionisio pede

uma guarda pessoal. Ora, sabe-se que todos os tiranos conheci-

dos da historia comecaram a carreira pedindo uma guarda.

Portanto, pode-se inferir que Dionisio tambem se tornara tira-

no. Portanto, prova-se esse fato (futuro) com uma regra que

pode ser estabelecida a partir de fatos passados: "Todo aspiran-

te it tirania pede uma guarda pessoal" (Ret6rica, I,2, 1357b).

o problema entao e saber se a propria regra e comprovada

pelos fatos invocados com esse objetivo. Admitindo-se que

todos os politicos conhecidos, que pediram uma guarda, torna-

ram-se tiranos, poder-se-ia dizer que isso sempre acontecera,notadamente com Dionisio? Observe-se que 0elo entre guarda

e tirania talvez fosse urn elo de causalidade na cidade grega; ja

nao 0 e hoje, pois mesmo nas democracias acha-se natural que

os estadistas tenham uma guarda pessoal. Entao, 0que 0exem-

plo pode provar?

Em primeiro lugar, 0 exemplo e realmente demonstrativo

quando se pode mostrar que os casos sao em mimero limitado,

e que a regra se aplica a todos. Mas na argumentacao 0conjun-

to dos casos na maioria das vezes e ilimitado; portanto, a indu-

((aOnao e possivel; nao se pode passar de maneira logica de

Entimema

Passemos agora it vertente dedutiva da argumentacao, ao

silogismo. Pode-se considerar 0 silogismo como uma velharia

escolar, mas isso nao impede que ele esteja sendo feito 0tempo

todo, como 0alter da prosa. Quando 0 lobo diz:

Estas turvando minh'agua, Que atrevimento!

esse minha condensa urn polissilogismo: turvar 0 que e meu eI atrevimento (sacrilegio). Ora, essa agua e minha; tu a estas tur-

vando; logo ...

o silogismo utilizado pela argumentacao cotidiana cha-

ma-se entimema; emprega-se esse termo para distingui-lo do

silogisrao demonstrativo. As premissas do entimema nao sao

proposicoes evidentes, mas nem por isso sao arbitrarias; elas

sao endoxa, proposicoes geralmente admitidas, portanto veros-

simeis. Recordemos 0texto 2, de Aristoteles:

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Alem disso, se e vergonhoso nao poder defender-se com 0

proprio corpo, seria absurdo que nao houvesse vergonha em nao

poder defender-se com a palavra, cujo uso e mais proprio ao ho-mem que 0do corpo.

partes - e de natureza indutiva ou dedutiva, se os.se, pois o~

portanto ... que contem anunciam exemplos ou entimemas. Fi-

nalmente se examina se a argumentacao nao e sofistica, ou

seja, se ela nao pede aos argumentos mais do que eles podem

provar.Tambem neste caso trata-se de urn polissilogismo implici-

to, que, como vemos, se ap6ia em dois endoxa: 0 uso da pala-

vra e mais pr6prio ao homem que 0 do corpo; e vergonhosonao poder defender-se fisicamente. Este ultimo aspecto podia

ser considerado evidente no tempo de Arist6teles; ja nao e evi-dente para n6s, que nao achamos desonroso chamar a policia

quando somos atacados fisicamente ...

Entimema, silogismo do verossimil, mas tambem silogis-

mo abreviado, cujas premissas enunciadas - como no caso do

texto de Arist6teles - sao apenas as necessarias. Assim, em vez

do silogismo completo:

o intertextual, 0 intratextual e 0motivo central

Maior: todo homem e mortal;

Menor: Socrates e homem;

Conclusao: Socrates e mortal,

Sem chegarmos a afirmar, como Kibedi-Varga, que todo

discurso responde a uma pergunta', admitiremos que ele sem-

pre replica - explicitamente ou nao - a outros discursos, seja

apoiando-se neles, seja refutando-os, seja completando-os. ~

alusao e a figura da intertextualidade; isso acontece quando di-zemos que todos fazem silogismos sem saber, "como 0alter da

prosa".

Nao entraremos aqui nas complexas discussoes sobre aintertextualidade. Simplesmente distinguiremos 0 intertextual

do intratextual. Este ultimo e a presenca explicita de outro dis-curso no discurso. Presenca que semanifesta de duas maneiras.

Primeiro pela citacao, que pode servir para apoiar 0 ora-

dor, constituindo entao urn verdadeiro argumento de autorida-

de, ou entao pode servir de destaque, de prova contra 0 a~ver-

sario: "Vejam 0que ele ousa dizer!" Finalmente, pode servir de

documento de analise, como ocorre em nossos textos.

Depois pela f6rmula, cuja autoridade, ao contrario, vern

do anonimato. Mais vale um "toma" que dois "te darei"eurn

adagio; nao e 0 pensamento de alguem; e a verdade de t~d~s,expressa pela "sabedoria do povo". A f6rmula pode ser adagio,

proverbio, maxima, slogan; este ultimo, por sua vez, pode ser

publicitario, politico ou ideo16gico, como Inimigo hereditario,

Faca 0 amor e niio a guerra, Black is Beautiful. Em todos os

casos a f6rmula e uma frase curta, incisiva, facil de guardar,

cuja ftm~ao e resumir urn pensamento complexo, dando-lhe

mais forca justamente por ser resumido. Ceme do discurso, a

f6rmula contem 0 fecho daquilo que e ret6rico; Morrer porDanzig ...:0slogan dos pacifistas de direita em 1939nao admi-

limitamo-nos a dizer: "Por ser homem, S6crates e mortal." 0pr6prio Arist6teles diz: quando uma premissa e evidente paratodos, e superfluo enuncia-la (Retorica, I, 2, 57 a). No entanto,se omitida, sera simplesmente por ser superflua?

Assim, 0 slogan frances lancado pelo govemo antes da

derrota de 1940, Venceremos porque somos os mais fortes, e

urn silogismo abreviado, cuja premissa maior (os mais fortes

sempre vencem) e omitida. Mas, na realidade, se ela tivesse

sido enunciada, 0 slogan nao teria sido enfraquecido? De fato,

os franceses poderiam ter-se perguntado se os mais fortes real-

mente sempre ganham, notando entao que urn principio desses

tern desagradavel semelhanca com os principios do inimigo

hitlerista.

Tecnicamente, M outras teorias l6gicas diferentes da aris-

totelica, a comecar pelas est6icas. Mas, para a leitura ret6rica

dos textos, basta perguntar se 0 discurso - ou alguma de suas

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LEITURA RET6RICA DOS TEXTOS 159

tia replica; era imitil argumentar com urn "nao se deve", ou

"convem evitar", pois ninguem teria ousado sustentar 0contra-

rio! Em surna, a formula e urn argumento condensado que se

torna peremptorio gracas a forma, a concisao e a felicidadeestilistica. Tudo0que sepode fazer e opor-lhe outra formula:

I I e n tr a s ur Ie p on t d 'A rc ole ,

I I e n s or ti t. -

V oid de I' or, vie ns p ille e t vole ,

Pe t i t, p e t it .

Porvir radioso - Porvir tenebroso.

§3 B er li n, V ie nn e etaient ses ma i tresses;

I l les f o rca i t,

Leste, e t p r en an t l e s f or te r es se s

Pa r le corset.

I I t ri om p ha d e c en t b as ti ll es

Qu 'if investit.-

V oi d p ou r toi, void des filles,

Pet i t, p e t it .

Finalmente, diante de urn texto, sempre ha interesse em

perguntar se ele nao tern urn motivo central. Entendemos por

motivo central urn procedimento retorico, figura ou argumen-

to, que serve de principio organizador para 0 texto, que permite

dizer: e ironia, e alegoria, e argurnento de autoridade, etc. As-sim, 0motivo central de nosso texto 1 (G6rgias) e a hiperbole,

urna hiperbole ironica, pois Gorgias atribui aos retores poderes

tao espantosos que custa acreditar. 0 do texto 3 (Pascal) e 0

quiasmo. E certo que nao se pode distinguir urn motivo centralem todos os textos, mas e util procurar urn, porque, encontran-do-o, encontramos logo a unidade viva do discurso. Ai vai urn

exemplo.

§4 II p assa it le s m onts e t lesplaines,

T en an t e n m ain ,

L a p alm e, la fo ud re et le s re ne s

D u g en re h um ai n.II e ta it i vr e d e s a g lo ir e

Q ui r et en ti t. -

V oid d u s an g, accours, viens boire,

Pet it , p e t it .

Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson", 1853, Les chatiments,

VII, 7

§5 Quand if to mb a, ld ch an t Ie m on de ,

L 'im me nse m er

Ouvrit a s a chut e p r of on d e

S on g ou jJ re am er ;

II y p lo ng ea , s in is tr e a rc ha ng e,

E t s ' eng lout i t. -

Toi, t u t e n o ie ra s d an s lafange,Pet i t, p e t it .

§1 Sa g r an d eu r eblouit I 'histoire.

Quinze ans, ilfutL e d ie u q ue t ra in ai t l a v ic to ir e

S ur u n a jJ t1 t;

L 'E ur op e s ou s s a l oi guerriere

S e d eba u it=

T oi , s on s in ge , m a rc he d er ri er e,

Pe t i t, p e t it .

§ 1 Sua grandeza ofuscou a historia.

Quinze anos foi

Deus levado pela vitoria

Sobre urn armao;

Sob sua lei guerreira a Europa

P Se debateu. -

Tu, seu simio, marchas atras,

6 pequenino.

§2 Na po le on d an s l a b at ai ll e,

G ra ve e t s er ei n,

Guidait a t ra v er s l a m i tr a il leL ' ai g le d 'a ir a in .

LE1TURA RETORICA DOS TEXTOS 161

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160 INTRODU9AO A RET6RICA

§ 2 E N apo leao n a batalha,

G ra ve e s er en o ,

Guiava atraves da me t r alh a

A aguia d e b r on z e.

E le e ntro u n a po nte d e A rco le ,

D e la s ai u. -E is a qu i o ur o, p il ha e r ou ba ,

6 pequenino.

Qual e 0 genero desse poema? Curiosamente, parecem ser

dois. 0 titulo indica "Chanson" [Cancao J , e, pela forma, real-

mente e uma cancao: ritmo leve, com alternancia de versos de

oito e quatro pes, redundancias, sintaxe solta, sentido as vezes

subordinado a rima - versos 6 dos §§ 1 e 3 -, descuidos ate de-

sejaveis no estilo "cancao", Finalmente, 0mais importante e 0refrao, so que, onde se esperava alguma especie de "dondin-

dondao", tem-se Petit, petit, amplificado pela necessidade de

ser dito quase duas vezes mais devagar que 0 verso anterior.

Pois a cancao esta a service de outro genero.

E a diatribe, modo epidictico mas negativo. Victor Hugo

recorre, portanto, it forma ligeira e sem rodeios da cancao para

dar maior destaque a violencia de suas imprecacoes. Como ex-

plicar essa curiosa dualidade de generos?

Pelo motivo central , justamente, a antitese. 0poema co-

meca com Sua grandeza [Sagrandeur] e acaba com pequenino

[petit]. A antitese entre tio e sobrinho retorna a cada estrofe,

mas com forma urn poueo diferente, verdadeira expolicao:

§ 1, deus e seu simio; § 2, guia e ladrao; § 3, conquistador e ve-

nal; § 4, homem glorioso e covarde cruel; § 5, queda grandiosa

e fim ignobil,

A antitese na o e maniqueista, pois 0 p ro pr io N a po le ao e

culpado, e deve ser castigado. Mas, mesmo em sua queda, 90n-

tinua grande, como indica 0 oximoro sinistro arcanjo.

Tu e a ap6strofe que surge a cada refrao - na verdade 0

poema e dirigido ao grande publico -, e a apostrofe se especifi-

ca em epitropes: pilha e rouba, vem beber, que fingem permitirque 0 t irano pratique atos ignobeis para sugerir que ele e capazdesses atos: tu, ao passo que Ele ...

As outras figuras, numerosas, amplificam mais a antite-

se. As metonimias possibilitam a criacao de simbolos: Aguia

de bronze, raio e redeas, alem da mais nova, armdo, simbolo

do exercito em guerra, a que se opoem as metonimias do re-

frao: OUfO - sangue. As sinedoques - da especie humana (§

4),0 mundo (§ 5) - possibilitam a hiperbole e sobretudo a per-

sonificacao: a historia que ele ofusca (§ 1); a vitoria, que a le-

vava (§ 1).

§ 3 B er lim, V ie na , s ua s am an te s;

E le a s f or ca va ,

L es to , t om a nd o f or ta le za s

P e la c in t ur a .

E le t ri un fo u d e c er n b as ti lh as

Q ue ataco u. -

E is aq ui a s m oc as, sa o tua s,

6 pequenino.

§ 4 T ra nsp un ha m on te s e p la nic ie s,

T endo n a m ao

As p a lma s, ° r aio e a s r ed ea s

D a e sp ec ie h um a na .

I ne br ia va -s e d e s ua g lo ri a

Q ue re tum bo u. -

E is a qu i s an gu e, v er n b eb er ,

6 pequenino.

§ 5 Q uando caiu , largando 0mundo,

oma r ime n so

A b ri u- Ih e n a q ue da p ro fu nd a

S eu p eg o a ma rg o;

La me rg ul ho u, s in is tr o a rc an jo ,

N el e e ng ol fo u- se . -

T u, tu te a fo ga ras n a la ma,

6 pequenino.

Les chdtiments [Os castigos] denunciam Napoleao III

como urn abominavel tirano que subiu ao trona por meio de urn

crime, a golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.

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162 INTRODUC;rlO A RET6RICA Capitulo VIII

Como identificar os argumentos?Personif icacao tambem pelas metaforas: 0 deus =largan-

do 0mundo - cem bastilhas - engolfou-se, e principalmente pe-

las metaforas expandidas: Amantes - forcava - cintura, 0mar

imenso abriu, etc.

Personif icacao: nota-se que 0 t io sempre esta ligado, mes-

mo quando se trata de abstracoes, a poderes personificados, ou

mesmo divinizados, enquanto ao sobrinho so tocam materia e

coisas inertes: sangue, ouro, lama... introduzidas por Eis aqui.

Assim, as cidades transformam-se em mulheres, que Napoleao

conquista, enquanto as mulheres do simio sao apenas mocas,

mercadoria venal.

Em resumo, tudo esta a service da antitese, ate a oposicao

entre 0 estilo epico das estancias e 0 estilo seco, entrecortado,

do refrao. A antitese, como diziamos, e 0 oposto no mesmo:

aqui 0mesmo e representado pela estrutura identica das estro-

fes , das quais 0 tio ocupa sempre tres quartos, e pela repeticao

de petit.

E possivel encontrar argumentos nessa cancao? Sim, exem-

plos e urn argumento macico de incompatibilidade; 0 poema

ridiculariza a pretensao do despota a ser urn segundo Napoleao,

quando nao passa de seu simio. Mas 0 argumento na o e marca-do, pois, como quer a lei do genero, a cancao e paratactica, ou

seja, sem nexos logicos expressos; por exemplo, 0assindeto do

§ 2: entrou... saiu.

Pergunta: Napoleao III foi realmente esse tirano abjeto e

sanguinario? Seria born matizar. Principalmente porque, em

materia de tirania, houve tanta gente mais competente depois

dele que chegamos a pensar que 0poeta talvez tenha desperdi-

cado talento. Mas, em retorica, 0que importa e 0 talento.

Como identificar os argumentos que contribuem para tor-

nar persuasivo urn discurso? Para responder, utilizaremos a

classificacao do Traite de I 'argumentation [Tratado da argu-

mentacao (TA) ] de Perelman- Tyteca.

A bern da verdade, ja encontramos urna classificacao dos

argumentos, a de Aristoteles , que os divide em: indutivos (exem-

plo) e dedutivos (entimema); sera preciso criar mais urna?

Sim, porque Aristoteles nao trata da forma da argumenta-

9ao, da relacao entre as premissas. 0 TA , ao contrario, estuda 0

conteudo das pr6prias premissas, define tipos de argumentos

(lugares) que permitem propor uma premissa, mais precisamen-

teuma premissa maior, a qual se pode depois subsurnir 0 caso

em questao. Por exemplo, a frase de Leibniz:

Tendo cuidado dos passaros, Deus nao negligenciara as

criaturas racionais que lhe sao infinitamente mais caras... (in TA ,

p.456)

e urn entimema que se baseia numa premissa maior implicita: 0

que Deus concede as criaturas insignificantes tambem concede

1s criaturas nobres; premissa maior val idada por urn argumen-

to afortiori;o T A distingue entao quatro tipos de argumentos:

- os quase logicos, do tipo "urn tostao e urn tostao";- os que se fundam na estrutura do real, como 0 argumento a

fortiori- osque fundam a estrutura doreal, como a analogia;

164 INTRODUf;AO A RET6RlCACOMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 165

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- os que dissociam uma nocao, como 0distinguo entre a aparen-

cia e a realidade.

As verdades sao ainda menos diretas; sao nexos necessa-

rios, como e = 112 GP, ou entao sao provaveis, como uma lei

tendencial.

As presuncoes tern funcao capital, pois constituem 0 que

chamamos de "verossimil", ou seja, 0 que todos admitem ate

prova em contrario, Por exemplo, nao esta provado que todos

os juizes sao honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se

alguem desmente em tal ou tal caso , cabe-lhe 0 onus da prova.

o verossimil e a confianca presumida.

Em todo caso, a presuncao varia segundo os auditorios e

as ideologias. Assim, para urn conservador, 0costume nao pre-

cisa ser justificado, e sim a mudanca, Para urn liberal , 0 que

nao compete justificar e a liberdade, mas sim a coercao. Para

urn socialista, a igualdade e de direito, cumprindo justificar a

desigualdade. 0 orador, portanto, precisa conhecer as presun-

coes de seu auditorio.

Por isso, utilizaremos essa riquissima analise, mas indo

alem do simples resumo. Tentaremos contribuir com exemplos

de nossa lavra e, eventualmente, com criticas.

Os elementos do acordo prevlo

Vimos que nao ha argumentacao possivel sem algum acor-

do previo entre 0 orador e seu audit6rio. Quais sao os elemen-

tos, as "premissas comuns" (TA, § 15), implicitas ou explicitas,

que constituem esse acordo?

Fatos, verdades, presuncoes

o acordo repousa primeiramente sobre fatos, e fatos ja sao

argurnentos. Por exemplo, urn jomalista que quer mostrar 0 ca-

rater "antidemocratico" de nosso ensino cita uma estatistica:

25% dos jovens franceses concluem 0 curso secundario, contra

75% de americanos (Vial, Le Monde, 4 de janeiro de 1985).

No entanto, a nocao de fato esta longe de ser clara. 0 que

e fato? A unica resposta possivel e: urna verificacao que todos

podem fazer, que se impoe ao auditorio universal, que parece

ser 0caso de nosso "fato estatistico".Contudo, como todo argumento, 0fato pode ser contestado.

Como? Primeiramente recorrendo a pessoas competentes: espe-

cialistas mostraram que 0 fato em questao e apenas aparente,

assim como se provou que nao e 0Sol que gira em torno da Ter-

ra. Depois, mostrando que 0 fato em questao e incompativel com

outros fatos, comprovados. Finalmente, contestando 0 valor ar-

gurnentativo do fato, sua "interpretacao"; em nosso exemplo,

diremos que 0nivel do diploma do termino do curso secundario

nos Estados Unidos nada tem que ver com 0de nosso baccalau-

real, que ele nao permite entrar na universidade, etc.

Os valores e 0preferivel

Os valores estao simultaneamente na base e no termo da

argumentacao. Mais ainda que os fatos, variam segundo 0

auditorio. E certo que ha valores universais, mas estes sao for-

mais; toda sociedade admite 0justo e 0belo, mas com conteu-

dos bem diferentes. De qualquer modo, essa pretensao ao uni-

versal e, em si me sma, urn argurnento; quem grita: "Franceses

primeiro!" dira que "isso ejusto".

Sera entao preciso renunciar aos juizos de valor para atingir

a objetividade? Nos dominios da argumentacao - jurid ico, poli-

t ico, estetico, etico, etc. - e impossivel, pois neles todas as ques-

toes (inocente ou culpado; util ou nocivo; bela ou feio; bem ou

mal) sao formuladas em termos de valor. Digamos que, assim

como os fatos, os valo res sao presurnidos; todos admitem sem

provas, hsje em dia, que 0 desemprego e urna calamidade, e a

quem sustentasse urnjuizo de valor contrario competiria provar.

Perelman- Tyteca dist inguem dois tipos de valores. Os va-

lores abstratos, como a justica ou a verdade, que se fundam na

16 6 INTRODU9AO A RET6RlCA COMO IDENTIFICAR OSARGUMENTOS? 167

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AS lugares do preferivel

preocupa; quanto mais 0 sabio se eleva, mais se aproxima do

uno, do ser verdadeiro, do valor absoluto. Descartes (cf. texto

8) afirma que as obras perfeitas sao aquelas em que "uma uni-

ca pessoa trabalhou". Excelente exemplo do lugar da unidade e

o famoso titulo de Bossuet Variacoes das /grejas protestantes,

que por si so e uma refutacao do protestantismo: se ele fosseverdadeiro seria unico, Na verdade, 0 argumento tambem vale-

ria contra 0cristianismo ...

A nosso ver, os outros lugares identificados pelo TA se

integram nos acima descritos, ou deles derivam: 0lugar da or-

dem pertence ao da unidade; 0 lugar do existente, ao da quanti-

dade (0que existe e superior it "quimera"); 0 lugar da essencia,

ao da qualidade: superioridade do essencial em relacao ao aci-

dental, ao fortuito; fala-se assim, por exemplo, de urn "belo ca-

so" para se referir a urna doenca interessante.

razao; assim: "Devemos preferir a verdade aos amigos" (Aris-

toteles), E os valores concretos, como Franca, Igreja, que exi-

gem virtudes como obediencia, fidelidade: prefiro minha mae

it justica, dizia Camus. Urn mesmo argumento pode combinar

esses dois tipos: "Todos os homens sao iguais porque sao fi-

lhos de Deus."Na verdade, quem diz valores diz hierarquia de valores.

Assim, prefere-se 0justo ao util , acredita-se ser melhor sacrifi-

car 0cao que seu dono (Malebranche).

Como justificar as escolhas? Recorrendo a valo res ainda

mais abstratos, que 0 TA denomina lugares do preferivel. Esses

lugares expressam urn consenso generalissimo sobre 0meio de

estabelecer 0 valor de urna coisa. Podem ser divididos em tres

especies,

1) Lugares da quantidade: e preferivel aquilo que propor-

ciona mais bens, 0 bern maior, 0mais duravel, ou ainda 0 que

propicia 0 "mal menor". Por essa optica, 0normal- no sentido

do mais freqiiente - determina a norma, 0 obrigatorio; assim,

expressoes como "E isso 0que todos fazem", "isso 0que todos

pens am" , sao dadas como argumentos, e, assim como Socrates

em G6rgias, e preciso uma contra-argumentacao para dissociar

a norma do normal.

2) Os lugares da qualidade tern sentido contrario. A per-gunta "De que vale 0que nao e eterno?", responde-se "Estime-

se tudo aquilo que nao sera visto duas vezes." Desse modo, 0

unico passa a ser 0preferivel; enquanto se despreza 0banal, 0

intercambiavel, " a sociedade de consumo", valoriza-se 0 raro,

o precario, 0 insubstituivel. A norma ja nao eo normal, e 0ori-

ginal, ate m.esmo 0marginal, 0 anomalo,

3) Os lugares da unidade de algum modo sintetizam os dois

anteriores: 0 que e urn, ou efeito de urn unico, e por isso mes-

mo superior. Na hierarquia do ser, Platao coloca bern embaixo

o "multiple" (ta polla), com que a "multidao" (oi polloi) se

Figuras e sofismas concernentes ao acordo previa

Segundo 0 TA, certas figuras contribuem para reforcar 0

acordo previo: figuras de escolha, como a definicao oratoria;

figuras de presenca, como a epanalepse e principalmente a hi-

potipose, que faz do espetaculo urn argurnento e do argurnento

urn espetaculo; figuras de comunhao, como a alusao, a pergun-

ta retorica, etc.

Cabe mencionar, finalmente, dois sofismas referentes ao

acordo previo, 0 primeiro e a ignoratio elenchi, ignorilncia docontra-argumento oposto, ou ainda do verdadeiro assunto de de-

bate. Esse sofisma pode ser voluntario e tatico, ou entao passio-

hal: "Discute-se acaloradamente, e muitas vezes urn nao entende

o outro" (Port-Royal,p. 243). Essa ignorilncia e urn erro de argu-

mentacao, pois contribui para impossibilitar 0debate.

o segundo sofisma, ainda mais corrente, e a peticao de

principio.Segundo 0TA, nao se trata de urn argumento, mas de

urn "erro de argumentacao" (p. 153), que consiste em argu-

mentar como se 0auditorio admitisse a tese que se esta tentan-

do leva-lo a admitir , quando,justamente, ele nao a admite! Mas,

168 INTRODU9AO A RET6RICA COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 169

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assim definida, a peticao de principio se reduz a urn erro psi co-

logico, 0 dicionario Lalande da urna definicao mais objetiva

disso, que se refere na realidade a argumentacao: "Tomar por

admitida, sob forma urn tanto diferente, a propria tese que se

quer demonstrar." Segundo a Logica de Port-Royal, Aristote-

les, ao querer provar que a Terra e 0centro do mundo, teria co-

metido uma peticao de principio . Diz ele:

A natureza das coisas pesadas e tender para 0 centro do

mundo. Ora, a experiencia nos mostra que as coisas pesadas ten-

dem para 0 centro da Terra. Portanto, 0 centro da Terra e 0 cen-tro domundo.

bilidades, que variam segundo os meios e as culturas. Assim,

ser comunista e funcionar io publico aparece como incompati-

vel em certas democracias ocidentais, mas nao em outras. Em

todo caso, a argumentacao refutara essa tese mostrando que ela

e incompativel com alguma outra.

Pode-se rejeitar esse argurnento de duas maneiras: logica,

dissociando os conceitos por distinguo; empirica, buscando urna

conciliacao pela acao, Exemplo de resolucao logica: urn profes-

sor ensina as criancas que e preciso obedecer aos pais, e que nao

se deve mentir. Mas 0 que fazer quando 0 pai manda mentir?

Pode-se mostrar que so ha incompatibilidade quando a regra su-

bentende "sempre" com obedecer e "nunc a" com mentir. Ou

ainda, que a obediencia a urna ordem injusta nao e obediencia,A incompatibilidade esta vinculada a retorsao, que consis-

te em retomar 0 argumento do adversario mostrando que na

verdade este e aplicavel contra ele mesmo. Aos adversaries

que, em 1789, negam que os deputados devam assurnir 0nome

de "representantes do povo", Mirabeau retorque assim:

A premissa maior desse silogismo na verdade nao passa de uma

peticao de principio. Pois como Aristoteles sabe que as coisas

pesadas tendem para 0 centro do mundo? Ele simplesmente

acredita nisso, e acredita porque acha que a Terra e 0centro do

mundo, 0que seria preciso provar!

Primeiro tipo: argumentos quase 16gicosadoto, defendo e proc1amo [essa qualificacao] pela mesma razao

que leva a combate-lal Sim, e porque 0nome de povo nao e sufi-cientemente respeitado na Franca, porque esta deslustrado,

coberto pela ferrugem do preconceito (.. .) que devemos nos

impor a tarefa de nao s6 alca-lo como tambem de enobrece-lo.

(16 dejunho de 1789)

o TA comeca com urn grupo de argurnentos que denomi-

na quase logicos, Essa expressao pode surpreender, pois afinal

urn argumento e logico ou nao e! Mas sabemos que a argumen-

tacao rejeita a lei do tudo ou nada. Na realidade, cada urn dos

argumentos quase logicos e aparentado com urn principio logi-

co, como a identidade ou a transitividade; e, assim como eles,

sao a priori, no sentido de que nao fazem apelo a experiencia,Mas, ao cont rario dos principios logicos da demonstracao, po-

dem ser todos refutados demonstrando-se que nao sao "pura-

mente Iogicos" (cf. § 45 s.) .

o caso mais celebre e a autofagia, argumento que consiste

em mostrar que 0 enunciado do adversario se destroi por si

mesmo:

Aos positivistas que afirmam que toda proposicao verda-

deira e analitica ou de natureza experimental, perguntaremos se

o que eles acabam de dizer e uma proposicao analitica ou expe-rimental. (TA,p. 275)

Contradicoes e incompatibilidade: 0 ridiculo

A contradicao pura, do tipo "e branco e nao branco", e

rarissima na argumentacao, que nao pode recorrer a prova por

absurdo. 0 que se encontra, em compensacao, sao incompati-

o ridicule esta para a argumentacao assim como 0 absur-

do esta para a demonstracao: e preciso ressaltar urna incompa-

tibilidade, e a ironia e a figura que condensa esse argumento

pelo riso:

170 INTRODU9AO A RET6RICA COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 171

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No momento em que, nurn teatro de provincia, 0 publico

se preparava para cantar A Marselhesa, urn policial sobe no pal-

co para anunciar que e proibido tudo 0 que nao consta do car-

taz: "E voce, interrompe urn dos espectadores, esta no cartaz?"

(TA,p.274)

gos sao meus amigos, que se pode ate desenvolver algebrica-

mente:

Observe-se que, quando a incompatibilidade e nociva -por exemplo com a negacao das camaras de gas -, ela ja nao e

ridicula, porem odiosa. 0 ridiculo e 0 odioso desenvenenado,

que nao provoca escandalo, porem riso.

+ x + =+ Os amigos demeus amigos sao meus amigos.+ x - =- Os amigos de meus inimigos sao meus inimigos.

- x + =- Os inimigos de meus amigos sao meus inimigos.

- x - = + Os inimigos de meus inimigos sao meus amigos.

Identidade e regra dejustica

Este ultimo argumento foi empregado por Churchill em 1941:

quando a Alemanha invadiu a URSS, ele proc1amou que esta

era sua aliada. No entanto, a relacao nao e realmente logica:

pode-se detestar 0 amigo do amigo por urna questao de ciume,

Digamos que 0 argurnento incita a presurnir confianca, Ja que

voce e amigo de meu amigo, YOU trata-lo como tal.

Outro argumento e a divisao: divide-se urn todo - a tese

por provar - em partes, e, depois de mostrar que cada uma de-

las tern a propriedade em questao, conc1ui-se que 0 todo tern

essa mesma propriedade. Esse argumento so e rigoroso quando

o todo e as partes sao homogeneos; assim, 0 lugar Quem pode 0

mais pode 0pouco so vale se 0 poder e de natureza identica: 0

medico pode tanto quanto a enfermeira no campo dela?

Na divisao repousa 0 dilema, raciocinio que prova que os

dois termos de urna altemativa levam it me sma conseqiiencia,

sendo esta a tese. Ainda e preciso que a altemativa seja real-

mente urna altemativa! "E branco ou nao branco" e urna alter-

nativa logica; "E branco ou preto" nao e, a menos que se tenha

provado que as cores intermediarias estao excluidas. Vejamos

o seguinte dilema:

Outros argurnentos fazem apelo ao principio de identida-

de, A e A, mas sem se reduzirem a ele. Expressoes como Mu-

lher e mulher, Negocios sao negocios sao pseudotautologias,

pois 0 atributo nao tern exatamente 0mesmo sentido do sujei-

to: mulher - ser feminino - e mulher - ser fragil, enganador,

etc.! Mas e dificil refutar a aparencia de identidade.

Na identidade baseiam-se a regra de justica: tratar da mes-

rna mane ira os seres da mesma categoria; 0 precedente: a ad-

missao de urn ato autoriza a cometer atos semelhantes; a reci-

procidade: Olho por olho.

Argumentos "quase" logicos apenas, pois a expressao

"me sma categoria" e problematica. Por exemplo, nurn exame:

"X recuperou-se com 9,5; por que nao Y, que teve 9,7?" Admi-

tir isso e estabelecer a media em 9,5, e exc1uir qualquer delibe-racao. Outro exemplo: "0 que e honroso aprender tambem e

honroso ensinar" (Quintiliano, citado p. 298); mas aprender e

ensinar sao realmente reciprocos?

Por que vos fazer uma repreensao? Se fordes honestos, nao

a merecereis; se fordes desonestos, ela nao vos perturbaral (Re-

torica a Herenio, IV, 52)

Outros argumentos quase logicos apoiam-se em formulas

matematicas. Assim e a transitividade: Os amigos de meus ami-

Esse dilema so seria rigoroso se os dois termos - honesto, de-

sonesto ~tfossem os unicos, e nao se pudesse ser urn e outro ao

mesmo tempo; urn pouco de urn, urn pouco de outro ...

o argumento ad ignorantiam mostra que todos os casos

possiveis devem ser exc1uidos, salvo urn, que e justamente a

Argumentos quase matemdticos:

transitividade, dilema, etc.

172 INTRODU9AO A RET6RICACOMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 173

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Na realidade, toda definicao e um argumento, pois impoe

determinado sentido, geralmente em detrimento dos outros. Tor-

na-se perigo sa e abusiva quando, sendo apenas normativa, p~e-

tende-se descritiva; quando, sendo condensada ou oratona,

pretende-se completa. Assim, no texto 6, veremos que Millner

passa sem aviso previo de: "Entendo por escola" para "a e~co~a

e isto" e depois: "So e isto." Em sendo um argumento, a propna

definicao deveria ser argumentada.

tese por provar, cuja admissao se pede por falta de coisa me-

lhor; mostra-se que todos os candidatos a urn posto sao inacei-

taveis, salvo urn (0proprio), ao qual se concedera entao 0be-

neficio da duvida, Esse argumento e muito util em casos de

urgencia; aparece com freqiiencia na "moral provisional" de

Descartes.

o TA dedica a definicao urn longo estudo que aqui inter-

pretaremos livremente (cf. T A , § 50).

Definicao e urn caso de identificacao, pois com ela se pre-

tende estabelecer uma identidade entre 0que e definido e 0que

define, de tal modo que se tenha 0direito de substituir um pelo

outro no discurso, sem mudar 0 sentido, de dizer tanto homem

quanta animal racional. Na realidade, essa identidade so e per-

feita nas linguas artificiais - como a algebra - ou ainda para os

termos tecnicos: pecas de maquinas, por exemplo. Na argu-

mentacao, consideraremos quatro tipos de definicao.

1)Normativa, que na verdade e uma denominacao, pois im-

poe como convencao 0uso de uma palavra, como por exemplo 0

termo falsificar na epistemologia de Popper. Nao e nem verdadei-

ra nem falsa; basta ater-se a ela em toda a argumentacao.

2) Descritiva (ou "real"), que pretende enunciar 0 uso -

sentido corrente - do termo definido. Falsificar ja nao tern

o sentido de Karl Popper, mas 0do dicionario: "Alterar volun-

tariamente com intuito de fraudar." A definicao descrit iva pode

entao ser verdadeira ou falsa; falsa se nao descrever real mente

ouso.

3) Condensada, definicao descritiva que se restringe as

caracteristicas essenciais: "Entendo por universidade a institui-

cao que associa pesquisa fundamental a ensino superior." Omi-

te grande numero de coisas, como a formacao dos adultos.

4) Oratoria (cf. p. 233), definicao imperfeita, pois 0 que

define e 0que e definido nao sao realmente permutaveis: "Guer-

ra e toda a nacao num esforco de vitoria,"

Segundo tipo: argumentos fundados

na estrutura do real

Os argumentos do segundo tipo ja nao se apoiam na logica,

porem na experiencia, nos elos reconhecidos entre as coisa.s.

Aqui, argumentar ja nao

eimplicar, e explicar: "0adversan~

diz isso porque tern interesse em dize-lo" (argumento ad homi-

nem). Inversamente, estima-se que, quanta mais fatos uma tese

explicar, mais provavel sera ela.

Sucessiio, causalidade, argumento pragmatico

Pode-se argumentar constatando uma sucessao constante

nos fatos, e deles inferindo urn nexo causal; se urn exercito

sempre tern excelentes informacoes sobre 0 inimigo, infere-s:

que seu servico de inteligencia e excelente~ e ~ue ~~mpre seraassim. Mas nao se trata de uma demonstracao cientifica.

Em primeiro lugar, 0argumento e apenas provavel, e 0 so-

fisma esta sempre a espreita: post hoc, ergopropter hoc, "se-

quencia, portanto conseqiiencia". 0mais importante e que 0

argumento na verdade quer estabelecer um juizo de val~r, mos-

trar 0 valor do efeito a partir do valor da causa, ou 0mverso.

Assim, lm nosso texto 7, Corneille, a partir do valor da poesia,

conclui pelo valor do autor.

o argumento pragmatico deriva disso: e "0argumento que

permite apreciar urn ate ou urn acontecimento em funcao de

174 /NTRODU9AO A RETORICA ('OMO /DENT/FICAR osARGUMENTOS? 175

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T er n v ir tu de s d e r na is p ar a n ao s er c ris ta !

xistente. Eo argumento do desperdicio: dec1ara-se que e preci-

so continuar a guerra porque, caso contrario, todos os mortos

teriam tombado em vao; que e preciso continuar a emprestar

aos paises superendividados, caso contrario a bancarrota deles

anularia qualquer possibilidade de quitacao; ou ainda que todos

tern 0 dever de empregar seus "talentos" inatos; que e precisovotar para nao deixar de expressar sua opiniao, etc.

o argumento de direcao consiste em rejeitar uma coisa -

mesmo admitindo que em si e inofensiva ou boa - porque ela

serviria demeio para um fim que nao sedeseja. Quando seargu-

menta que 0 salario dos escrivaes e baixo demais, 0 contra-ar-

gumento e que todas as categorias de funcionarios iriam exigir

aumento. E 0argumento da readio em cadeia, daperda do con-

trole: sevoce ceder desta vez aos terroristas... Em que esse argu-

mento se distingue do argumento do precedente? 0 precedente

fundamenta um direito, enquanto a direcao preve um fato.

No argumento da superacao, ao contrario, a finalidade

desempenha papel motor. Ele parte da insatisfacao inerente ao

valor: nunca ninguem e born demais, justo demais, desinteres-

sado demais. 0 ideal inacessivel mostra em cada conquista urn

trampolim para uma conquista superior, num progresso sem

fim. 0 obstaculo transforma-se entao num meio de passar para

um estagio superior, como a doenca que imuniza, 0 fracasso

que educa. "Perfeito e 0oposto de aperfeicoar", dizia P . Valery;

aqui, opta-se pelo aperfeicoamento ao infinito, pelo melhor

contra 0bom.

A hiperbole, convem lembrar, e a figura que condensaesses dois argumentos. E 0 que acontece na seguinte piada:

diante de todos osjornalistas, 0Presidente atravessa 0Sena an-

dando sobre as aguas. Urn grande jornal de oposicao traz como

manchete no dia seguinte: "0 Presidente nao sabe nadar!" Su-

bentendido: ele poderia fazer qualquer coisa, nunca estaria

born. A anedota dramatiza 0 "qualquer coisa". A epitrope tam-

bern e u r n argumento de direcao levado ao extremo: Eis aqui

sangue, vem beber...

Duas observacoes sobre a finalidade. A primeira e que

acontece cria-la para atender as necessidades da causa, como

suas consequencias favoraveis ou desfavoraveis'' (TA, p. 358).

Por exemplo, que outra boa raziio seteria para adotar uma lei, a

nao ser 0 conjunto de beneficios que dela se pode esperar (A.Smith)?

o argumento pragmatico goza de tal verossimilhanca que

de imediato presume confianca, Em outras palavras, a quem 0

contestar incumbira justificar. Se digo: e preciso ser sincero,

mesmo que disso muitas vezes resultem conseqtiencias desfa-

voraveis, cabe a mim defender essa tese, etica, contra 0 argu-

mento pragmatico. Sobre ele 0utilitarismo funda seus valores

pois afirma que e born 0que e util a maioria; sobre ele 0prag-matismo funda a verdade: verdade e a crenca que nos prestaservico.

Suas fraquezas? Em primeiro lugar, geralmente e1e opta

pe1asconseqiiencias; 0banqueiro falara da rentabilidade de um

investimento, e nao de sua seguranca. Importante: esse argu-

mento elimina os valores superiores: so porque triunfa, uma

causa e boa? Finalmente, como Socrates objetava a Gorgias

(texto 1): 0 que e realmente util ou realmente nocivo? 0 argu-

mento pragmatico so e valido quando ja se sabe isso, ou entao

quando nao setern outro meio de conhecer esse realmente.

Finalidade: argumento de desperdicio,

de direciio, de superaciio

A finalidade, rejeitada pe1aciencia, desempenha papel ca-pital nas acoes humanas, e dela e possivel extrair varies argu-

mentos, todos fundados na ideia de que 0 valor de uma coisa

depende do fim cujo meio e ela, argumentos que nao expri-

mem 0porque, mas 0para que.

Diz Polieuto de sua mulher, inda paga:

afirmando assim que, se nao se tornasse crista, suas virtudes de

nada serviriam, seriam meios maravilhosos para urn fim ine-

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