introduÇÃo À psicologia analÍtica de jung

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1 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA ANALÍTICA DE CARL GUSTAV JUNG Kathy Amorim Marcondes – Prof. Dept. Psicologia UFES Carl Gustav Jung nasceu em 1875 na Suíça e faleceu em 1961, aos 85 anos de idade, então reconhecido como um dos maiores pensadores do século XX. Em 1900 graduou-se com honras em medicina e foi trabalhar como Assistente no Hospital Burgholzli de Zurique com Eugen Bleuler - famoso psiquiatra que o convida para integrar sua equipe de pesquisa. Jung rapidamente destacou-se na psiquiatria e passa a escrever artigos científicos de grande repercussão. Num desses artigos declara a sua admiração por algumas das proposições de Sigmund Freud, que na época estava sendo duramente criticado pela comunidade médica. Esse apoio foi decisivo para que Freud o recebesse para uma primeira conversa que durou 13 horas ininterruptas! A partir da aproximação inicial tornaram-se grandes amigos, de enorme intimidade. Contam-se 357 cartas, viagens, mútuas análises de sonhos e encontros familiares. Os debates acerca da Psicanálise aproximaram Jung do círculo de discípulos de Freud, mas é bastante conhecida a postura preferencial deste pelo o médico suíço, o qual esperava que fosse o “seu príncipe herdeiro”. “(...)De início, Freud considerou Jung não só seu discípulo mais bem-dotado como também o mais importante, seu príncipe coroado, o homem destinado a levar sua obra adiante no futuro. Como Freud costumava a dizer, Jung era Josué para seu Moisés. E desde o começo Freud percebeu de imediato as vantagens práticas desse relacionamento. Não só Jung mostrara ser um formidável defensor das teorias de Freud, não apenas tinha ele suas próprias pesquisas no Burghölzgli, que sustentavam independentemente as teorias freudianas numa época em que Freud ainda era discriminado de modo geral no âmbito da comunidade acadêmica, como o fato de Jung não ser nem judeu nem austríaco significava que a psicanálise podia se defender com mais facilidade das acusações de elitismo intelectual e sectário, podendo atrair o interesse simpático de um público bem mais amplo.” (PALMER, 2001, p. 118). Em 1910 quando a "Associação de Psicanalítica Internacional" foi fundada Jung foi eleito seu presidente. Em 1914 Jung renunciou à presidência da Associação e demitiu-se como membro devido as enormes divergências teóricas e metodológicas entre o seu pensamento e o de Freud. Esse rompimento marcou profundamente a história da psicologia pois Freud e seus seguidores edificariam a Psicanálise da qual Jung se afastou irremediavelmente, perdendo assim também o amigo. “Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessaram Freud: o dos ‘resíduos arcaicos’ e o da sexualidade. Espalhou- se o erro que não vejo o valor da sexualidade. Muito pelo contrário, ela desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão fundamental – mas não a única – da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial era, no entanto, aprofundar a sexualidade, além do seu significado pessoal e seu alcance de função biológica, explicando-lhe o seu lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse”.(JUNG, 1993, p.150). Jung entra num período de crise pessoal; permitiu-se explorá-la ao máximo como pesquisa de seu próprio inconsciente. Dessa crise emergiria com o material básico sobre o qual organizaria sua própria psicologia da personalidade. Reunindo sua experiência à reflexão elaborará as bases da Psicologia Analítica. Seu temperamento jovial reaparecerá anos mais tarde, mas sua pessoa estaria para sempre marcada pelo profundo mergulho ao inconsciente que se permitiu, e do qual emergiu com noções mais precisas sobre a estrutura da alma humana. Seu pensamento ultrapassou em muito o determinismo sexual da psicanálise. Jung emerge certo de que a vida humana é uma realização particular de uma tendência coletiva, governada pela psique, de desenvolvimento a condição do ser durante a sua vida. As crises, sintomas e doenças seriam oportunidades de elaboração e enriquecimento psíquico. A esse processo vital de crescimento psíquico denominou “processo de individuação”, e em suas memórias autobiográficas comenta que sua história é a história de um inconsciente que se realizou, ou seja, de um ser humano que concretizou sua tendência a superar-se, progredindo sempre. Estudou a energia psíquica como uma expressão da energia sempre a mesma em qualquer dimensão de análise, inclusive na física. Estudou o movimento compensatório de equilibração do sistema energético do psiquismo e determinou “tipos psicológicos” baseados em seus conceitos de introversão e extroversão energética. A partir das suas observações clínicas, do estudo da mitologia, simbologia, alquimia, gnose e religiões comparadas Jung extrapolou o cânone epistemológico positivista, hegemônico em sua época. Jung foi eleito vice-presidente da Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia (SMIP), em 1930. Foi condecorado em 1936, com o título de doutor honoris causa pela universidade de Harvard, EUA. O mesmo ocorreu em 1938 quando foi condecorado com o mesmo título pela Universidade de Oxford e na Índia diplomas de doutorado: Allahabad, Benares e Calcutá. Em 1945 foi honrado com o título de doutor honoris causa pela Universidade de Genebra. Em 1955 Jung fez uma última participação no Congresso Internacional de Psiquiatria em realizado em Zurique, onde foi homenageado como celebridade.

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INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA ANALÍTICA DE CARL GUSTAV JUNG Kathy Amorim Marcondes – Prof. Dept. Psicologia UFES Carl Gustav Jung nasceu em 1875 na Suíça e faleceu em 1961, aos 85 anos de idade, então

reconhecido como um dos maiores pensadores do século XX. Em 1900 graduou-se com honras em medicina e foi trabalhar como Assistente no Hospital Burgholzli de

Zurique com Eugen Bleuler - famoso psiquiatra que o convida para integrar sua equipe de pesquisa. Jung rapidamente destacou-se na psiquiatria e passa a escrever artigos científicos de grande repercussão. Num desses artigos declara a sua admiração por algumas das proposições de Sigmund Freud, que na época estava sendo duramente criticado pela comunidade médica. Esse apoio foi decisivo para que Freud o recebesse para uma primeira conversa que durou 13 horas ininterruptas! A partir da aproximação inicial tornaram-se grandes amigos, de enorme intimidade. Contam-se 357 cartas, viagens, mútuas análises de sonhos e encontros familiares. Os debates acerca da Psicanálise aproximaram Jung do círculo de discípulos de Freud, mas é bastante conhecida a postura preferencial deste pelo o médico suíço, o qual esperava que fosse o “seu príncipe herdeiro”.

“(...)De início, Freud considerou Jung não só seu discípulo mais bem-dotado como também o mais importante, seu príncipe coroado, o homem destinado a levar sua obra adiante no futuro. Como Freud costumava a dizer, Jung era Josué para seu Moisés. E desde o começo Freud percebeu de imediato as vantagens práticas desse relacionamento. Não só Jung mostrara ser um formidável defensor das teorias de Freud, não apenas tinha ele suas próprias pesquisas no Burghölzgli, que sustentavam independentemente as teorias freudianas numa época em que Freud ainda era discriminado de modo geral no âmbito da comunidade acadêmica, como o fato de Jung não ser nem judeu nem austríaco significava que a psicanálise podia se defender com mais facilidade das acusações de elitismo intelectual e sectário, podendo atrair o interesse simpático de um público bem mais amplo.” (PALMER, 2001, p. 118).

Em 1910 quando a "Associação de Psicanalítica Internacional" foi fundada Jung foi eleito seu

presidente. Em 1914 Jung renunciou à presidência da Associação e demitiu-se como membro devido as enormes divergências teóricas e metodológicas entre o seu pensamento e o de Freud. Esse rompimento marcou profundamente a história da psicologia pois Freud e seus seguidores edificariam a Psicanálise da qual Jung se afastou irremediavelmente, perdendo assim também o amigo.

“Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois

problemas que mais interessaram Freud: o dos ‘resíduos arcaicos’ e o da sexualidade. Espalhou-se o erro que não vejo o valor da sexualidade. Muito pelo contrário, ela desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão fundamental – mas não a única – da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial era, no entanto, aprofundar a sexualidade, além do seu significado pessoal e seu alcance de função biológica, explicando-lhe o seu lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse”.(JUNG, 1993, p.150).

Jung entra num período de crise pessoal; permitiu-se explorá-la ao máximo como pesquisa de seu

próprio inconsciente. Dessa crise emergiria com o material básico sobre o qual organizaria sua própria psicologia da personalidade. Reunindo sua experiência à reflexão elaborará as bases da Psicologia Analítica. Seu temperamento jovial reaparecerá anos mais tarde, mas sua pessoa estaria para sempre marcada pelo profundo mergulho ao inconsciente que se permitiu, e do qual emergiu com noções mais precisas sobre a estrutura da alma humana. Seu pensamento ultrapassou em muito o determinismo sexual da psicanálise. Jung emerge certo de que a vida humana é uma realização particular de uma tendência coletiva, governada pela psique, de desenvolvimento a condição do ser durante a sua vida. As crises, sintomas e doenças seriam oportunidades de elaboração e enriquecimento psíquico. A esse processo vital de crescimento psíquico denominou “processo de individuação”, e em suas memórias autobiográficas comenta que sua história é a história de um inconsciente que se realizou, ou seja, de um ser humano que concretizou sua tendência a superar-se, progredindo sempre. Estudou a energia psíquica como uma expressão da energia sempre a mesma em qualquer dimensão de análise, inclusive na física. Estudou o movimento compensatório de equilibração do sistema energético do psiquismo e determinou “tipos psicológicos” baseados em seus conceitos de introversão e extroversão energética. A partir das suas observações clínicas, do estudo da mitologia, simbologia, alquimia, gnose e religiões comparadas Jung extrapolou o cânone epistemológico positivista, hegemônico em sua época.

Jung foi eleito vice-presidente da Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia (SMIP), em 1930. Foi condecorado em 1936, com o título de doutor honoris causa pela universidade de Harvard, EUA. O mesmo ocorreu em 1938 quando foi condecorado com o mesmo título pela Universidade de Oxford e na Índia diplomas de doutorado: Allahabad, Benares e Calcutá. Em 1945 foi honrado com o título de doutor honoris causa pela Universidade de Genebra. Em 1955 Jung fez uma última participação no Congresso Internacional de Psiquiatria em realizado em Zurique, onde foi homenageado como celebridade.

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“Eranos” foi o único evento cultural que Jung fez questão de participar até o final de sua vida, reunião de pesquisadores de várias áreas do conhecimento humano. Essas conferências representavam uma excelente oportunidade para encontrar antigos amigos e conhecer novos intelectuais. Jung participou como conferencista de 1933 a 1951. Sua ultima palestra foi sobre o tema “Sincronicidade” – o princípio das relações não-causais.

“Eu só posso esperar e desejar que ninguém se torne “junguiano”. Eu não defendo uma doutrina, mas descrevo fatos e chamo atenção para certas opiniões que considero dignas de discussão(...) Eu deixo qualquer pessoa livre para lidar com os fatos a seu próprio modo, uma vez que eu também reclamo essa liberdade para mim (JUNG, 1999, p. 405)

Contudo, em 1948, foi inaugurado o Instituto Carl Gustav Jung de Zurique. Em 1959, Jung participou de um programa de TV da emissora britânica BBC, chamado “Face a Face”

com “John Freeman. Nessa entrevista, quando questionado sobre a religiosidade e sobre sua crença em Deus, Jung proferiu sua resposta mais famosa: “Não acredito, eu sei.” Freeman insistiu na divulgação de um livro onde suas idéias pudessem ser expressas para a população não médica. Depois de muito insistir Jung idealizou o livro “O homem e seus símbolos”, do qual escreveu apenas um artigo. Jung fez questão que essa fosse uma obra coletiva, com seus discípulos mais próximos pois intuía não conseguir terminá-la. Jung adoece e na tarde de 6 de julho, e morre aos 86 anos. Suas últimas palavras foram : “Esta noite, vamos tomar um vinho tinto realmente muito bom.”

De temperamento alegre, muitos filhos e muitos amigos, Jung deixou uma contribuição teórica impar que passou pelo diálogo interdisciplinar com a filosofia, religião, física quântica, arte, mitologia, ecologia, ciências ocultas e outros saberes. Assim a Psicologia Analítica tornou-se conhecida como uma psicologia profunda, aberta - como nenhuma outra -, ao pensamento contemporâneo transdisciplinar e como uma psicologia de ótica privilegiadamente holística da natureza humana e de suas questões existenciais.

A DINÂMICA PSICOLÓGICA A Psicologia Analítica adota uma perspectiva energética da psique humana que é base de seu

entendimento da dinâmica psíquica. Através deste princípio energético é vedada a possibilidade de se entender a psicologia ou a personalidade humana de forma estanque, contendo compartimentos isolados uns dos outros. Os conceitos que envolvem o funcionamento e dinamismo da psicologia humana devem, necessariamente, coadunar-se com os princípios de funcionamento e dinâmica energética, como qualquer outro sistema movido à energia. Por isso Jung conceitua (no sentido de representar um objeto de estudo através do pensamento) a psique e o corpo humano como diferentes níveis de organização de sistemas energéticos; ou seja o “psíquico” e o “corporal” sendo ambos movidos por energia, e sendo “energia” a mesma em cada um destes sistemas, torna-se forçoso admitir que manteriam várias características de funcionamento necessariamente semelhantes. Assim a dinâmica psicológica, para Jung, não é movida por uma energia sexual (a libido freudiana) nem por uma entidade conceitual abstrata ou transcendental e sim pela energia comum aos processos vitais.

“A delimitação do conceito de energia psíquica nos coloca diante de certas dificuldades, porque não temos nenhuma possibilidade de separar o psíquico do processo biológico em geral. O biológico comporta um ponto de vista energético, do mesmo modo que o psíquico, desde que o biólogo considere semelhante ponto de vista como útil e valioso. Da mesma forma que o psíquico, assim também o processo vital, em geral, não guarda para com a energia psíquica nenhuma relação de equivalência rigorosamente demonstrável.” ( JUNG, 1971, p. 16)

Compreendendo que quaisquer processos energéticos são movidos por aquilo que conceituamos

“energia”, Jung não difere a energia dos processos físicos, biológicos ou psíquicos. Assim, a adjetivação “energia psíquica”, por exemplo, caracterizaria apenas o processo e o uso da energia naquele determinado sistema.

Assumindo o princípio básico de que qualquer processo energético é efeito de polaridades antagônicas em movimento relativo de um a outro pólo, Jung entenderá os dinamismos da psique humana como um fenômeno energético manifesto através das polaridades básicas “inconsciente” e “consciência” e de todos os derivativos típicos do campo da psicologia.

Jung aceita o “princípio da equivalência” energética entre os sistemas psíquicos (considerando a psique um sistema parcialmente fechado, pois há trocas com o meio ambiente, embora estas façam variar pouco o valor energético médio total do psiquismo) que, essencialmente relacionado ao “princípio da compensação” energética (pelo qual o deslocamento de valores energéticos no consciente, por exemplo, são compensadas necessariamente com o mesmo valor de deslocamento para o inconsciente), são os princípios básicos de funcionamento da psique humana. Dessa forma o dinamismo psíquico busca manter o equilíbrio energético da psique através destes princípios que, funcionando de forma saudável, produzem a interação criativa entre o subsistema consciente e o inconsciente proporcionando uma vida adaptada e produtiva. Quando estes dinamismos não se dão de forma harmônica e sim desequilibrada, pode-se perceber estes efeitos nos quadros psicopatológicos então produzidos.

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Além dessa perspectiva energética é fundamental para a Psicologia Analítica a perspectiva evolutiva da psique humana. Por este prisma Jung compreende que em seu funcionamento milenar a psique humana foi aprimorando e marcando certos modelos interativos e reativos. Diferentemente da concepção freudiana que entendia que “abaixo” da consciência humana haveria um depositário inconsciente do material proveniente da própria vivência daquela pessoa, Jung acreditava que, ainda mais profundamente, a psique era provida de um inconsciente não pessoal, coletivo, herdado filogeneticamente como bagagem humana, provindo de toda a experiência de desenvolvimento da espécie.

“Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. (...) contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras são idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo.” (JUNG, 2000, p. 15)

Logo, segundo a Psicologia Analítica, cada ser humano é único, autônomo, direcionado e criativo, mas

dispõe de um conjunto de sistemas psíquicos, energeticamente ativados e mantidos, que visam ampará-lo na realização de sua potencialidade plena e que, parte deste sistema, é patrimônio coletivo, inconsciente, suprapessoal e apresenta conteúdos universais.

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos.(JUNG, 2000, p.53).

Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os “complexos” de tonalidade emocional,

conteúdos afetivamente acentuados, que constituem o aglomerado energético relativo a experiências da intimidade pessoal da vida subjetiva. Os complexos possuem um núcleo que exerce uma força consteladora sobre certos conteúdos psíquicos. "A força consteladora do núcleo corresponde à sua intensidade ou à sua energia."(JUNG, 1971, p. 11) Assim vivências traumáticas repetidas em relação à figura materna, por exemplo, acabarão por incorporar-se e fortalecer um complexo materno que, de fato, terá muito a ver com as experiências individuais daquela psique com a maternidade (papéis maternos, a própria mãe, exercício da própria maternidade).

Ao contrário, os conteúdos do inconsciente coletivo, denominados “arquétipos”, são tipos arcaicos primordiais, estruturas do inconsciente impessoal que representam todas as grandes situações humanas vivenciadas ao longo do desenvolvimento da espécie humana e não se relacionam essencialmente a vivência imediata de uma pessoa apenas.

Para Jung o arquétipo funcionaria como um nódulo de energia psíquica potencial, que, quando ativada, expressar-se-ia sob forma de imagens arquetípicas; por tanto, o que teríamos acesso pela alegoria de um sonho, por exemplo, seria na verdade a imagem pessoal ligada a um arquétipo virtual. O arquétipo em si é totalmente inacessível, mas as imagens arquetípicas que podem eventualmente ser produzidas pela psique e que estão gravadas no patrimônio cultural da humanidade, podem falar da ressonância de um arquétipo. “O arquétipo é uma tendência para formar [certas] mesmas representações de um motivo - representações que podem ter inúmeras variações de detalhe - sem perder sua configuração original.”(JUNG, 1993, p. 67). Haveria, assim, tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Jung considera que intermináveis repetições de certas situações e experiências imprimiram essas experiências na constituição psíquica, com o objetivo de poderem ser ativadas na experiência pessoal de cada ser se houvesse essa necessidade. Quando uma situação energética da psique corresponde ou pode ser equilibrada pela constelação de um arquétipo, então este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda razão e vontade.

“Afora as recordações pessoais, existem em cada indivíduo as grandes imagens “primordiais”,(...) ou seja, a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios. Essa hereditariedade explica o fenômeno, no fundo surpreendente, de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas, além de explicar por que os nossos doentes mentais podem reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações que conhecemos dos textos antigos. (...) Isso não quer dizer, em absoluto, que as imaginações sejam hereditárias;

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hereditária é apenas a capacidade de ter mais imagens, o que é bem diferente. (...) Essas imagens ou motivos, denominei-os arquétipos (ou dominantes).” (JUNG, 1981, p. 57)

Os arquétipos seriam subsistemas dinâmicos e autônomos, mas não estariam separados ou

independentes no inconsciente coletivo. Estas imagens virtuais poderiam se fundir ou compor entre si ou junto a outros elementos psíquicos, de acordo com a vivência subjetiva de cada um ou com a situação a ser ultrapassada. Assim, embora a estrutura arquetípica seja herdada (no sentido de uma tendência a construir representações análogas ou semelhantes), a imagem e o uso individual que o ser faria dela em sua vida psíquica, dependem tanto do dinamismo dado pelo inconsciente coletivo, quanto da dinâmica pessoal que lhe permita o surgimento.

No entendimento de Jung seria através da imagem arquetípica que a psique coletiva operaria sua influenciação sobre o psiquismo individual. Isso representaria uma possibilidade de crescimento e amadurecimento pessoal devido à incorporação de elementos coletivos atualizados na vivência pessoal.

Assim, os arquétipos permanecem “velando” pelo desenvolvimento humano e “emergem” na consciência quando o indivíduo compromete seu equilíbrio psíquico. Nestes momentos, o funcionamento arquetípico se inicia a fim de tentar uma nova equilibração psíquica baseada no funcionamento autônomo do arquétipo. Esta situação é a neurose (quando o ego, centro regulador da consciência movido pela racionalidade, está sob a influência de fatores inconscientes) e, em graus muito adiantados, a psicose (quando o ego já não tem mais nenhum controle sobre a personalidade). A aproximação arquetípica é tanto mais perigosa quanto mais longe de sua meta de desenvolvimento pessoal profundo o indivíduo está, como veremos adiante ao estudarmos o “processo de individuação”.

Quando muito desequilibrada energeticamente estiver a psique, maior a força de fascinação dos arquétipos. Para Jung o fascínio desses elementos pode ser percebido não só na atratividade facilmente percebida nas pessoas por seus sonhos e produções artísticas, mas também na história das civilizações (através de seus mitos e lendas) e na produção intelectual (leis e ciências) da humanidade que, para a Psicologia Analítica, também apresenta um desenvolvimento arquetípico.

“Pode-se perceber a energia específica dos arquétipos quando se tem ocasião de observar o fascínio que exercem. Parecem quase dotados de um feitiço especial. Qualidade idêntica caracteriza os complexos pessoais; e assim como os complexos pessoais têm a sua história individual, também os complexos sociais de caráter arquetípico têm a sua. Mas enquanto os complexos individuais não produzem mais do que singularidades pessoais, os arquétipos criam mitos, religiões e filosofias que influenciam e caracterizam nações e épocas inteiras.” (Grifos nossos. JUNG, 1992, p. 79)

OS PROCESSOS DE AUTO-REGULAÇÃO DA PSIQUE Uma das mais importantes contribuições da Psicologia Analítica é a concepção de diversos

mecanismos de auto-regulação da psique. As diferenciações dos níveis consciente e inconsciente pessoal e coletivo, que vimos acima, e os processos energéticos de balanceamento entre estes níveis psíquicos operam, segundo Jung, de forma auto-regulada. Não apenas a volição, que marca as escolhas do ego de um sujeito e que representam a sua vontade consciente, determina mudanças, opções, tendências, pendores, atitudes ou comportamentos. Outros “mecanismos” psíquicos também interferem na dinâmica global com o objetivo auto-regulador: os SONHOS, a PRODUÇÃO ARTÍSTICA e cultural, a PARTICIPAÇÃO RELIGIOSA ou social e o próprio impulsivo SINTOMA NEURÓTICO são tentativas auto-regulatórias da psique. Essa percepção permite visualizar claramente que tanto as escolhas que buscam a satisfação conscientemente orientada, quanto os dinamismos inconscientes e culturais são formas positivas de contribuição para o equilíbrio psíquico global e para o crescimento psicológico daquela pessoa humana em particular. Nestes “mecanismos” podemos perceber as interações dos diferentes níveis psíquicos atuando, muitas vezes, conjuntamente.

OS SONHOS Para Jung os “(...)sonhos são a reação natural do sistema de auto-regulação psíquica.(JUNG, 1990d, p.

121) trabalhando com imagens e com a carga emocional dessas sem nenhuma interferência da consciência e de seus valores. Assim a expressão de impulsos, fantasias ou soluções naturais à psique podem ser elaboradas pela psique sem a censura ou limitação egóica. O “(...)sonho deve ser tratado como um fato a respeito do qual não se fazem suposições prévias, a não ser a de que eles têm um certo sentido; em segundo lugar, é necessário aceitarmos que o sonho é uma expressão específica do inconsciente. (JUNG, 1992, p. 32)

A análise junguiana do sonho admite a investigação tanto da causalidade quanto da finalidade deste. Na primeira abordagem chega-se a complexos inconscientes que carregados de energia geram atividades psíquicas. O sonho exerce, então, uma função compensatória de energia psíquica entre os sistemas consciente e inconsciente oportunizando: reações de defesa, manifestação de complexos, redução de elementos supervalorizados, valorização de elementos conscientemente desprezados, etc. A análise da finalidade dos sonhos constitui a maior novidade da abordagem dos sonhos por uma teoria psicológica. Este entendimento baseia-se num inconsciente que ultrapassa as barreiras de uma ação por estímulo-reposta ou por memória pessoal. O inconsciente junguiano dispõe de todo o acúmulo de informações e sabedoria da espécie ao lidar

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com determinadas situações típicas e que, no caso específico de um sujeito humano, pode aparecer como num sonho com uma finalidade, ou seja, num sonho cujo fundamento não é reagir ou recordar, mas alertar e dirigir. Essa função prospectiva do sonho, mesmo não sendo propriamente “profética” (já que origina-se do inconsciente que dispõe de muitas diferentes fontes de entendimento dos problemas humanos), freqüentemente aponta caminhos ou prevê acontecimentos muito antes da consciência ser capaz de fazê-lo. Em ambos os casos, quando um sonho é fenômeno causado por uma vivência pessoal ou quando cumpre uma finalidade para o sonhador, vemos aí o exercício de funções auto reguladoras do psiquismo.

“Trata-se das mesmas relações que existem entre os sonhos e a consciência de um homem normal em estado de vigília. A conexão é, em substância, uma relação compensatória. Os conteúdos do inconsciente, com efeito, trazem à superfície tudo aquilo que é necessário, no sentido mais amplo do termo, para a totalização, isto é, para, a totalidade da orientação consciente. Se o indivíduo conseguir enquadrar harmonicamente na vida da consciência os fragmentos oferecidos ou forçados pelo inconsciente, resultará então, numa forma de existência psíquica que corresponde melhor à personalidade individual, e, por isso, também elimina os conflitos entre a personalidade consciente e inconsciente. É neste princípio que se baseia a moderna psicoterapia, na medida em que pode se libertar do preconceito histórico segundo o qual o inconsciente só abriga conteúdos infantis e inferiores. Nele certamente existe um recanto inferior, um quarto de despejo de segredos impublicáveis que não são propriamente inconscientes, mas dissimulados e apenas semi-esquecidos. Mas isto tem tanto a ver com o conteúdo, tomado como um todo, quanto, por exemplo, um dente cariado com a personalidade total. O inconsciente é a matriz de todas as afirmações metafísicas, de toda a mitologia, de toda a filosofia (desde que não seja meramente crítica) e de todas as formas de vida que se baseiam em pressupostos psicológicos. (Grifos nossos. JUNG, 1990c, p. 558 )

O PROCESSO ARTÍSTICO E A OBRA DE ARTE A arte representa para a Psicologia Analítica outra possibilidade de autoregulação psíquica por ter suas

raízes no mais profundamente obscuro e ainda humano do homem, ou seja, no inconsciente coletivo. Pode-se perceber a importância da arte nessas poucas palavras em latim que Jung não economizava: “Ars totum requirit hominen” (JUNG, 1988, p. 112) que significam: a arte regula o homem inteiro. O efeito regulatório adviria da própria atividade artística que, além de ser uma produção criativa, ou seja, movida pela energia criativa do inconsciente e não como resposta de simples adaptação, constitui-se numa possibilidade das mais visíveis de simbolização do material reprimido no inconsciente pessoal e da imagens arquetípicas do inconsciente coletivo.

Entretanto, como a amplitude da significação de uma obra de arte é imensa e expande-se sobre vários domínios intelectivos, isto não torna mais fácil sua discussão dentro do domínio psicológico que não é o domínio próprio da arte.

Para fazer justiça à obra de arte, a Psicologia Analítica deverá despojar-se totalmente do preconceito médico, pois a obra de arte não é uma doença e requer, pois orientação totalmente diversa. (...) Com relação a obra de arte é supérfluo investigar o condicionamento anterior. É preciso perguntar pelo sentido da obra. O condicionamento prévio só interessa na medida em que facilitar a melhor compreensão do sentido. A causalidade pessoal tem tanto a ver com a obra de arte, quanto o solo tem a ver com a planta que dele brota. (...) A insistência no pessoal, surgida da pergunta sobre a causalidade pessoal, é totalmente inadequada em relação à obra de arte, já que ela não é um ser humano mas algo suprapessoal. É uma coisa e não uma personalidade e, por isso não pode ser julgada por um critério pessoal. A verdadeira obra de arte tem inclusive um sentido especial no fato de poder se libertar das estreitezas e dificuldades insuperáveis de tudo o que seja pessoal, elevando-se para além do efêmero do apenas pessoal. (JUNG, 1985, p. 60)

Assim, fica claro que não é a natureza pessoal da manifestação artística que orienta o entendimento junguiano sobre a arte. Isto seria uma REDUÇÃO do próprio do artístico à uma causalidade psicológica, impensável dentro da Psicologia Analítica.

(...)Essas obras praticamente se impõem ao autor, sua mão é, de certo modo assumida, sua pensa escreve coisas que sua própria mente vê com espanto. A obra traz em si sua própria forma; tudo aquilo que ele gostaria de acrescentar, será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de aceitar, lhe será imposto. Enquanto seu consciente esta perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona. Mesmo contra a sua vontade tem de reconhecer que nisso tudo é sempre o seu “si-mesmo” que fala, que é a sua natureza mais íntima que se revela por si mesma anunciando abertamente aquilo que ele nunca teria coragem de falar. Ele apenas pode obedecer e seguir esse impulso aparentemente estranho; sente que sua obra é maior do que ele e exerce um domínio tal que ele nada lhe pode impor. Ele não se identifica com a realização criadora; ele tem consciência de estar submetido à sua obra. (JUNG, 1985, p. 61-2. Grifos nossos) (...) A obra nos oferece uma imagem elaborada no sentido mais amplo. Esta imagem, enquanto a pudermos conhecer como símbolo, é passível de análise. Mas se não conseguirmos descobrir nela um valor simbólico, estaremos constatando que ela nada mais significa, pelo menos para nós, do

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que aquilo que ela diz abertamente, ou seja: que ela é para nós nada mais do que aquilo que aparenta. Digo “aparenta” – pois é possível que nossa própria parcialidade não nos permita maiores idéias. (JUNG, 1985, p. 68)

Jung distingue, por tanto, obras de arte não simbólicas e obras de arte simbólicas. As primeiras fluem

do manancial do inconsciente pessoal, de material reprimido, ou seja, artificialmente mantidos abaixo do limiar da consciência; mantêm seu caráter regulatório de qualquer forma pois possibilitam, ainda assim, muito maior transito energético entre os sistemas psíquicos. A arte com simbologia, a obra de arte propriamente dita, ultrapassa em muito as questões pessoais de seu autor. Antes esse é por ela utilizado para erigir-se; melhor dizendo, a obra se utiliza do autor para fazer-se. O espírito do artista “serve” a sua própria construção enquanto artista, o que significa construir-se enquanto homem criador e não repetidor ou adaptador. O ser do artista se faz no ser arte.

(...)quem fala através de imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que qualifica de único e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino pessoal ao destino da humanidade e com isso também solta em nós todas aquelas forças benéficas que desde sempre possibilitaram a humanidade salvar-se de todos os perigos e também sobreviver a mais longa noite. Este é o segredo da ação da arte. O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização da obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente, pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado. É aí que está o significado social da obra de arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação do presente, a ânsia do artista recua ter encontrar no inconsciente aquele imagem primordial adequada para compensar de modo mais efetivo a carência e unilateralidade do espírito da época. Essa ânsia se apossa daquele imagem e, enquanto a extrai da camada demais profunda do inconsciente, fazendo com que se aproxime do consciente, ela modifica sua forma até que esta possa ser compreendida por seus contemporâneos. (...) a arte representa um processo de autoregulação espiritual na vida das épocas e das nações. (JUNG, 1985, p. 70-1)

Por tanto, é com muita reserva que Jung vê a possibilidade de uma psicologia discursar sobre uma obra

de arte visionária. Então se torna lícito perguntar que contribuição a Psicologia Analítica poderia dar à compreensão ou

admiração do problema central da criação artística? Para Jung como toda a ciência, também a psicologia tem apenas a modesta contribuição para o melhor e mais profundo conhecimento dos fenômenos da vida, mas está tão longe do saber absoluto quanto todas as outras ciências irmãs ou especulações das mais variadas.

“Falamos tanto sobre o sentido e significação da obra de arte, que já não podemos ocultar a dúvida que nos assalta em princípio: será que a arte realmente “significa”? talvez a arte nada signifique e não tenha nenhum “sentido”, pelo menos não como falamos até aqui sobre sentido. Talvez seja como a natureza que simplesmente é e não “significa”. Será que “significação” é necessariamente mais do que simples interpretação, que “imagina mais do que nela existe” por causa da necessidade de um intelecto faminto de sentido? Poder-se-ia dizer que arte é beleza e nisso ela se realiza e se basta a si mesma. Ela não precisa de sentido. A pergunta sobre o sentido nada tem a ver com a arte. Se me colocar dentro da arte, tenho que submeter-me à verdade desta afirmação. Quando, porém, falamos da relação da psicologia com a obra de arte, já estamos de fora da arte e nada mais nos resta senão especular e interpretar para que as coisas adquiram sentido, caso contrário, nem podemos pensar sobre o assunto. Precisamos reduzir a vida e a história, que se realizam por si mesmas, em imagens, sentido e conceitos, sabendo que, com isso, estamos nos afastando do mistério da vida. Enquanto estivermos presos ao próprio criativo, não vemos nem entendemos, e nem devemos entender, pois nada é mais nocivo e perigoso para a vivência imediata do que o conhecimento.” (JUNG, 1985, p. 66.)

É certo que Jung não vê a essência da obra de arte constituída pelas particularidades pessoais e, ao

contrário, pensa que sua particularidade é a de elevar-se muito acima do aspecto pessoal: “(...)provinda do espírito e do coração, fala ao espírito e ao coração da humanidade.” (1985, p.89). Por isso não se pode esperar que o artista seja o intérprete de sua própria obra.

(...)Configurá-la foi sua tarefa suprema. A interpretação deve ser deixada aos outros e ao futuro. Uma obra-prima é como um sonho que apesar de todas as suas evidências nunca se interpreta a si mesmo e também nunca é unívoco. (...)quem se aproxima da obra de arte deixando que esta

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atue sobre ele, tal como ela agiu sobre o poeta. Pode compreender seu sentido, é preciso permitir que ela nos modele, do mesmo modo que modelou o poeta. (JUNG, 1985, p. 93)

A PARTICIPAÇÃO RELIGIOSA A Psicologia Analítica compreende a religião como fenômeno humano de dimensões psicológicas

profundas. Jung empreendeu vasta pesquisa relativa aos simbolismos religiosos e, assim, concluiu estarem ali representados e manifestos importantes processos psicológicos.

(...)O estudo da psicologia dos primitivos, o folclore, a mitologia e a ciência comparada das religiões abre a perspectiva de um horizonte mais amplo da psique humana e nos oferece os meios indispensáveis para a compreensão dos processos inconscientes. (JUNG, 2000c, p. 91)

Jung entende como dinamismos regulatórios da psique tanto a produção arquetípica dos fundamentos

religiosos quanto o tipo de participação que a ritualização dos mesmos permite ao indivíduo, dentro do amplo espectro de diferentes possibilidades religiosas.

Ao participar de um mito pela fé (monoteísta, politeísta ou, disfarçadamente, científica) ou pelo rito de uma organização religiosa, o homem entra em contato com um tipo de organização que lhe precede a existência embora, muitas vezes e por seu maior objetivo, lhe concede a compreensão do sentido da sua própria existência.

Jung sabia, como nós ainda hoje, a impopularidade de se considerar seriamente a religião dentro do saber científico. Entretanto, este homem de mente aberta e descontraída não se importou muito com as convenções formais e sua esterilidade. Investigou e correlacionou cuidadosamente a psicologia e religião sem ver nisso um risco de contágio maldito. Longe disso, sua investigação séria e escrupulosa o levou a uma atitude cada vez mais tolerante e respeitosa para com toda a forma religiosa. Desde as manifestações religiosas dos povos mais selvagens às centenas de subdivisões internas do cristianismo, desde o culto antigo a Zeus antropomórfico ao deus sem face do ascendente islamismo, desde o politeísmo ao ateísmo de algumas religiões orientais, desde o cumprimento da função religiosa através da crença indiscriminada na ciência ou nos demônios... Jung via - em qualquer destas formas numinosas - o poder do mito religioso: a experiência íntima de que algo exterior ao percebido como “eu”, rege e dá sentido à existência deste “eu”.

Para Jung a religião era “uma das expressões mais antigas e universais da alma humana” (JUNG, 1990c, p. 1). É preciso esclarecer que de nenhum modo a Psicologia Analítica adota ou privilegia determinado conjunto de valores religiosos supostamente verdadeiros ou promulgados por uma igreja qualquer de forma superiormente legítima em relação a outra igreja qualquer. Outra consideração reiterada por Jung em muitas oportunidades é a de que seus escritos não constituiriam uma versão teológica e nem sequer versariam sobre a teologia do ponto de vista teológico.

Para Jung era esclarecedor que o vocábulo latim religio, provável origem da palavra religião, derivasse do verbo religare ou relegere. O primeiro significa algo próximo de “ligar de novo, reatar”. O segundo significa “cuidado e atenção minuciosa para a observação do numinoso”. Talvez esses verbos tenham dotado o vocábulo do cunho de religiosidade entendida como os detalhes a serem observados na ritualística dos cultos que objetivavam, em última instância, novamente reunir o homem ao divino. Podemos nos aproveitar destas idéias para construir uma tradução simples do termo como “re-ligação” e, a partir daí, perceber a religião como tentativa de re-fazer a reunião do que havia sido separado, reintegrando uma unidade perdida.

Esta religação seria uma tarefa de regulação psíquica visando o desenvolvimento da psique global. Historicamente os confrontos da humanidade com o numinoso foram sendo imortalizados em rituais e

símbolos religiosos. A manutenção psíquica desta lembrança respondia a uma finalidade evolutiva. Como o numinoso era (e é) sempre discriminado como algo externo à consciência que o percebia e, além disso, sentido de forma misteriosa e reverente, o efeito desta percepção nos primórdios de estruturação da consciência humana, era o de insuflar-lhe a energia da numinosidade: discriminando o numinoso a consciência participava da numinosidade. Assim, lentamente essa consciência foi sendo afastada de sua inconsciência natural e pretérita, diminuindo sua ampla ignorância de si e do mundo, possuindo e reverenciando a numinosidade criadora.

Entretanto, este confronto era também arriscado. Concluiu, por tanto, que a religião constituir-se-ia em um dos mecanismos preventivos da possibilidade de colapso individual frente ao confronto com um símbolo: uma pauta pré-estabelecida e padronizada de confronto com o numinoso em que as consciências individuais correriam menos risco. Assim, a finalidade evolutiva de ampliação da modificação da consciência pretendida pela confrontação com o numinoso continuaria possível, benéfica e, sobretudo, mediada de forma segura. A necessidade destes mecanismos reguladores fazem da religiosidade, praticamente, uma função psíquica inconsciente importante. Podemos encarar a religião, por tanto, como uma forma institucionalizada de evitar riscos psíquicos a fim de que cada novo membro do grupo humano não tenha que enfrentar, perigosamente sozinho e desamparado: nem os poderes naturais que desconheça, nem os sentimentos avassaladores da experiência humana do viver e do morrer, nem o alarmante esvaziamento de sentido própria existência e nem o medo petrificante do que lhe seja sobrenatural.

Ainda que grande parte dos riscos psíquicos viessem da própria psique, o homo religiosus os projetou para fora de si - no mito, e os controlou desde fora de si - no rito.

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Para Jung todas as representações religiosas baseiam-se em fundamentos arquetípicos. As religiões mantiveram vivos dogmas e rituais que representam processos psíquicos de emergência e/ou vivência dos arquétipos, porém, como vimos, de forma mais segura. Através dos rituais e guardados pelos dogmas, a poderosa força inconsciente desponta na consciência, possibilita a experiência do numinoso, porém, não abala a estrutura da consciência. A demarcação da interface entre a consciência e a experiência numinosa, isto é, o ofício religioso, tem a “(...)finalidade evidente de substituir a experiência imediata por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados. A Igreja Católica os mantém por força de sua autoridade absoluta. A Igreja Protestante (...) os mantém pela ênfase na fé da mensagem evangélica.” (JUNG, 1990c, p. 42)

Os símbolos religiosos mantêm o vigor e a respeitabilidade das formações arquetípicas nem perigosamente desmesuradas nem perigosamente esquecidas (o que, via de regra, poderia provocar um contra-ataque poderoso do inconsciente através dos mecanismos de compensação energética, deixando a consciência subjugada). Os arquétipos produzidos pela repetição da experiência humana estão traduzidos nas representações simbólicas da religiosidade. Cumprem suas funções psíquicas influenciando confortavelmente a consciência desde fora de si mesma, através do símbolo.

Mal o inconsciente nos toca e já o somos, na medida em que nos tornamos inconsciente de nós mesmos. Este é o perigo originário que o homem primitivo conhece instintivamente. (...)Uma onda do inconsciente pode facilmente arrebatá-lo e ele se esquecer de quem era, fazendo coisas nas quais não se reconhece. (...)Todo esforço da humanidade concentrou-se por isso na consolidação da consciência. Os ritos serviam para esse fim, assim como as représentations colletives, os dogmas; eles eram os muros construídos contra os perigos do inconsciente. (...) São esses muros erigidos desde os primórdios que se tornaram mais tarde os fundamentos da Igreja. Portanto, são esses os muros que desabam quando os símbolos perdem a sua vitalidade. Então o nível das águas sobe, e catástrofes incomensuráveis se precipitam sobre a humanidade. (JUNG, 2000, p.32)

Podemos concluir que os sistemas religiosos possuem uma função preventiva à catástrofes

psicológicas na medida em que permitem que circule energia entre os diferentes dinamismos da psique. Outra função bastante relacionada a função preventiva é a terapêutica, pois os males psíquicos não

podem de todo serem evitados, mas podem ser combatidos quando estão em dimensões ainda recuperáveis do ponto de vista do balanceamento energético da psique. Por tanto, quando os sistemas religiosos tecem significações precisas para a dor e o sofrimento humanos, estabelecendo para os momentos excepcionalmente difíceis da vida humana uma possibilidade de entendimento, aceitação e re-significação, acabam tratando feridas que de outra forma, ou seja, que sem fé, poderiam ser incuráveis.

O que são religiões? São sistemas terapêuticos. E o que fazemos nós, psicoterapeutas? Tentamos curar o sofrimento da mente humana, do espírito humano, da psique, assim como as religiões se ocupam dos mesmos problemas. Assim, Deus é um agente de cura, é um médico que cura os doentes e trata dos problemas do espírito; faz exatamente o que chamamos psicoterapia. (JUNG, 1990d, p.168)

Segundo a Psicologia Analítica os sistemas religiosos organizam experiências que podem ser

consideradas curativas em determinados momentos para determinadas pessoas. O caráter curativo de tais experiências adviriam da revitalização e/ou reorientação que podem promover no indivíduo sofredor. Essa “cura” dos sofrimentos pode advir de várias das funções religiosas isoladas ou combinadas.

Portanto, entre as possibilidades curativas do exercício de uma fé religiosa encontra-se: - a re-equilibração energética entre aspectos ocultos e manifestos da psique individual que podem ser projetados em aspectos de uma imagem coletiva ou num símbolo, isto é, em aspectos sentidos como exteriores ao próprio indivíduo; - o sentimento de pertencimento a uma comunidade religiosa que apóia o indivíduo solitário; - o entendimento do sofrimento como purificação, libertação ou aperfeiçoamento individual e, assim, o torna suportável e angaria forças psíquicas para seu enfrentamento e até superação; - as vantagens de atitudes psicológicas simplificadoras de conflitos e valorizadas religiosamente como o arrependimento e o perdão das ofensas; - a mais valia sentida em relação a si mesmo quando o indivíduo percebe-se instrumento de uma vontade divina, entre outras...

Em quaisquer dessas possibilidades de contribuição para a cura do sofrimento humano deverá haver um entendimento de um “deus todo poderoso” que sustentará a fidedignidade da experiência individual curativa. Estando muito além da vontade ou sentimentos humanos, este deus pode - se quer e se o indivíduo o procura e o honra - preservá-lo do mal ou atribuir-lhe uma nova significação aceitável. Neste deus há uma face curativa e outra criativa, simultaneamente.

A religião é uma terapêutica “revelada por Deus”. Suas idéias provêm de um conhecimento pré-consciente, que se expressa sempre e por toda parte, através de símbolos. Embora nossa inteligência não as apreenda, elas estão em ação porque nosso inconsciente as reconhece como expressão de fatos psíquicos de caráter universal. Por isso basta a fé, quando existe. Toda a

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ampliação e fortalecimento da lógica racional, entretanto, leva-nos para longe e para fora dos símbolos. É a sua prepotência que impede a compreensão de tais símbolos. (JUNG, 1990c, p. 200)

A potencialidade curativa de tais experiências vem do contato que permitem entre a totalidade da

psique individual (consciência e inconsciente) com os símbolos ancestrais da psique coletiva. Este contato fortalece o indivíduo pois lhe restaura, com segurança, o canal de comunicação entre o ego e o si-mesmo dispostos no sistema consciente e inconsciente da psique, respectivamente. Este eixo ego-si-mesmo é de fundamental importância em determinados momentos do processo de individuação.

(...)Como pode um homem ser Filho de Deus e ter nascido de uma Virgem? Isto é como que uma bofetada em plena face. (...)mas se tomarmos essas coisas como são, isto é, como símbolos, teremos forçosamente de admirar sua verdade profunda e declarar-nos gratos àquela Instituição que não somente as conservou mas também as desenvolveu através de dogmas. (JUNG, 1990c, p. 200) É indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa: aquele que a tem, possui, qual inestimável tesouro, algo que se converteu para ele numa fonte de vida, de sentido, de beleza, conferindo novo brilho ao mundo e à humanidade. (JUNG, 1990c, p. 105)

A antiga necessidade psicológica deus permanece, ainda que nossa racionalidade a desencante e a

desloque para outros espaços dessacralizados.

(...) A nível primitivo, o homem teme magos e feiticeiros. Modernamente, observamos os micróbios com igual medo. No primeiro caso, todos acreditam em espíritos; no segundo, acredita-se em vitaminas. Antigamente as pessoas eram possuídas do demônio; hoje elas o são, e não menos, por idéias etc. O fator subjetivo é constituído, em última análise, pelas formas eternas da atividade psíquica. (...)Nossa fatalidade são as ideologias, que correspondem ao AntiCristo há tanto tempo esperado. O nacional-socialismo (Nazismo) se assemelha tanto a um movimento religioso quanto qualquer outro movimento a partir de 622 dC. O comunismo tem a pretensão de instaurar o paraíso na terra. Estamos, de fato, mais protegidos contra as más colheitas e epidemias, do que criança nossa miserável inferioridade espiritual, que parece oferecer tão pouca resistência às epidemias psíquicas. (JUNG, 1990c, p. 492-3)

E se pode ser verdade que são representações de deus a sustentar ideologias até mesmo atéias,

também é verdade que os atributos que usamos para qualificar a divindade vêem de nossas próprias possibilidades individuais e culturais. Deus e homem mantém a mesma relação compensatória que já abordamos entre a consciência e o inconsciente.

As imagens de deus atraem, convencem e fascinam pois são criadas a partir da matéria originária da revelação da divindade. Estas proporcionam ao homem o pressentimento do divino ao mesmo tempo que o protege da experiência direta com o divino.

“Toda pregação teológica é um mitologema, uma série de imagens arquetípicas que se destina a dar uma descrição mais ou menos exata da totalidade transcendência inimaginável...” (JUNG, 2000c, pg. 261) Por tanto, podemos concluir que até mesmo o conceito de deus é psiquicamente necessário e que, por essa generalidade, “não insiste em um nome determinado, mas pode ser chamado de razão, energia ou mesmo de eu”. (JUNG, 1990c, p.312 ) (...) Esta realidade psíquica e extremamente poderosa tem sido chamada de “Demônio” ou “Deus”, em todas as épocas, com exceção dos últimos tempos, em que nos tornamos de tal modo recatados em assuntos de religião (ainda bem!) que falamos, aliás acertadamente, de “inconsciente”, pois Deus se tornou algo realmente inconsciente. Aliás isto acontece sempre e em relação a todas aquelas coisas que são interpretadas, explicadas e dogmatizadas por longo tempo, até ficarem a tal ponto recobertas de imagens e palavras humanas que já não é mais possível enxergá-las. (...) “Deus” é uma experiência primordial do ser humano, e desde épocas imemoriais o homem se entregou ao esforço inaudito de expressar de algum modo esta experiência inefável, de integrá-la em sua vida mediante a interpretação e o dogma, ou então negá-la. (Jun, 1990c, p. 323)

O SINTOMA NEURÓTICO Conforme vimos todos os movimentos energéticos da psique visam, em última instância, recompor o

equilíbrio que permita o desenvolvimento harmônico daquele ser humano. Tanto coletivamente, na forma de nossas expressões culturais, sociais, artísticas e religiosas, quanto pessoalmente na forma de nossos sonhos, imaginação criadora e produções sintomáticas (psicossomáticas ou psiconeuróticas). Então podemos entender que o sintoma neurótico também é mais uma das tentativas autoreguladoras da psique.

Não sou totalmente pessimista em relação a uma neurose. Em muitos casos deveríamos dizer: ´Graças a Deus, ele decidiu ficar neurótico`. Essa é uma tentativa de autocura, bem como qualquer

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doença física também o é. Não se pode mais entender a doença como um ens per se, como uma coisa desenraizada, como há um tempo atrás se julgava que fosse. A medicina moderna, a clínica geral por exemplo, concebe a doença como um sistema composto de fatores prejudiciais, e de elementos que levam à cura. O mesmo se dá com a neurose, que é uma tentativa do sistema psíquico auto-regulador de restaurar o equilíbrio, que em nada difere da função dos sonhos, sendo apenas mais drástica e pressionadora.(JUNG, 1990d, p. 174)

Jung estabelece importantes diferenciações etiológicas e teleológicas entre as manifestações de

desordem mental conforme o grau de comprometimento da adaptabilidade da pessoa ao seu mundo e ao grau de invasão arquetípica no controle das funções da consciência. A psicose constituiria-se numa total incapacidade egóica de adaptar-se a realidade visto que a manifesta vivência arquetípica em seu estado selvagem natural sobrepô-se totalmente às estruturas conscientes e, por tanto, dialogais. A neurose sendo uma manifestação da perda da harmonia psíquica entre os sistemas, poderia se mostrar mais ou menos comprometedora das funções egóicas de adaptação à realidade conforme envolvesse mais ou menos energia psíquica movimentada pelos complexos pessoais desarmonizados.

A neurose é uma dissociação da personalidade devido à existência se complexos. Ter complexos é, em si, normal; mas se os complexos são incompatíveis, a parte da personalidade que é por demais contrária à parte consciente, se separa. E se a fissura atingir a estrutura orgânica, a dissociação será uma psicose, uma condição esquizofrênica, como o termo pode denotar. Então cada complexo passa a ter vida própria e isolada, sem que a personalidade possa uni-los. Os complexos divididos, por serem inconscientes, encontram apenas meios indiretos de expressão, ou seja, através de sintomas neuróticos. Ao invés de sofrer um conflito psicológico, a pessoa sofre de neurose. Qualquer incompatibilidade de personalidade pode causar dissociação, e uma separação muito grande entre o pensamento e o sentimento, por exemplo, já constitui uma ligeira neurose. Quando não nos sentimos totalmente equilibrados m relação a um determinado assunto, aproximamo-nos da condição neurótica. A idéia de dissociação psíquica é a maneira mais segura com que consigo definir uma neurose.(JUNG, 1990d, 173)

Continuando seu refinamento no entendimento do material psicopatológico gerador do sintoma

neurótico, Jung não considerará que as crises, sintomas e doenças poderiam ser meros ecos do lixo inconsciente a gritar em rebeldia ou desordem pura e simples. Ao contrário, Jung entendia conforme seus longos estudos do material de pacientes psicóticos e atendimentos de pacientes sofredores de neuroses, que o inconsciente construía oportunidades ricas e criativas de elaboração e enriquecimento psíquico através da simbolização que a doença se tornava. Em outras palavras: o inconsciente teria uma razão própria e bastante forte para, rompendo o equilíbrio com a consciência, ser mapeado numa condição geradora de sintoma neurótico.

Para a Psicologia Analítica quando um desequilíbrio energético se apresenta na forma de “sintoma”, isso é entendido como a manifestação de uma força, uma tendência ao aperfeiçoamento daquele ser, em plena atuação. O inconsciente está atuando visando a recuperação de uma harmonia que permita o crescimento pessoal segundo os interesse mais íntimos, nem sempre conscientes, daquela pessoa humana. Assim, não é o aspecto destrutivo ou repressivo do sintoma o seu principal sentido. O sintoma simplesmente denuncia e sinaliza com implacabilidade que está em curso uma rota contrária a individuação (realização plena da subjetividade) e que a vigilante psique está em ação para que essa rota seja retomada. Assim há uma infinidade de manifestações sintomáticas neuróticas, tantas quantas são as possibilidades de escolhas humanas, diárias e cotidianas, e que podem rápida ou demoradamente ir nos afastando de nossa marcha própria para a realização plena de si mesmo.

“(...)por mais diversas que sejam essas patologias, todas têm uma causa e uma cura comuns: elas resultam da perturbação do equilíbrio psíquico, de uma disrupção do fluxo de energia libidinal, o que só pode ser restaurado mediante a integração de ambas as partes da psique, a consciência e o inconsciente, numa unidade dinâmica e recíproca. Neste sentido, portanto, seja qual for a forma que tome, a neurose aponta para sua própria terapia: ela abre o mundo interior da psique e traz a superfície os elementos que vão estabelecer um novo equilíbrio na personalidade.” (PALMER, 2001, p. 141)

São os erros e desvios acumulados ao longo da vida e/ou as extremas dificuldades vivenciais porque

passam os pacientes e que não são devidamente simbolizadas é que rompem o equilíbrio psíquico e acabam por produzir o sofrimento cristalizado na forma de um sintoma. Logo, a proporção da dor do sintoma nos mostra a proporção de nosso distanciamento de quem verdadeiramente somos e não estamos podendo exercer.

“(...) a psiconeurose, em última instância, é o sofrimento de uma alma que não encontrou o seu

sentido. Do sofrimento da alma é que brota toda a criação espiritual e nasce todo homem enquanto espírito: ora, o motivo do sofrimento é a estagnação espiritual, a esterilidade da alma. (...) o enfermo

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procura aquilo que o empolgue e venha conferir, enfim, ao caos e à desordem de sua alma neurótica, uma forma que tenha sentido.

Estará o médico à altura dessa tarefa? Ele poderá encaminhar seu paciente, antes de tudo, a um teólogo ou filósofo, ou abandoná-lo às incertezas e perplexidades de sua época. Enquanto médico, sua consciência profissional evidentemente não o obriga a abraçar determinada concepção de mundo. Mas o que acontecerá quando perceber, com inelutável clareza, as causas do mal de que o seu paciente sofre, isto é, que ele é carente de amor e não possui senão a sexualidade; que lhe falta a fé, porque ele receia a cegueira; que vive sem esperança, porque a vida e o mundo o decepcionaram profundamente; e que atravessa a existência mergulhado na ignorância, porque não soube perceber sua próprio significação?

Numerosos pacientes cultos se recusam categoricamente a procurar um teólogo. Quanto ao filósofo, nem sequer querem ouvir falar a respeito. (...) Onde encontrar os grandes sábios da vida e do mundo que não se limitem a falar do sentido da existência, mas que também o possuam? Aliás não se pode imaginar qualquer sistema ou verdade que tragam ao doente aquilo de que necessita para a vida, a saber, a crença, a esperança, o amor e o conhecimento.

Estas quatro conquistas supremas do esforço e das aspirações humanas são tantas outras graças que não podem ser ensinadas ou aprendidas, nem dadas ou tomadas, nem retiradas ou adquiridas, pois estão ligadas a uma condição irracional que foge ao arbítrio humano, isto é, à experiência viva que se teve. Ora, é completamente impossível fabricar tais experiências. Elas ocorrem, não de modo absoluto, mas infelizmente, de modo relativo. Tudo o que podemos dentro de nossas limitações humanas, é tentar um caminho de aproximação rumo a elas. Há caminhos que nos conduzem à proximidade das experiências, mas deveríamos evitar de dar a estas vias o nome de “métodos”, pois isto age de maneira esterilizante sobre a vida, e além disso, a trilha que leva a uma experiência vivida não consiste em um artifício, mas em uma empresa arriscada que exige o esforço incondicional de toda a personalidade. (JUNG, 1990c, p.332-3)

Percebemos, por tanto, que a terapia, na visão junguiana, é uma tentativa ativa e cuidadosa de

estabelecimento de uma parceria e diálogo com o cliente a fim de que este se reoriente em seu próprio caminho. A relação psicoterapêutica tenta investigar profundamente o inconsciente do paciente, aprofundar o entendimento das vivências geradoras de conflito e desequilíbrio e tentar estabelecer passos de construção de novos significados, valores e atitudes mais condizentes com sua realização plena.

Se nos perguntamos o que é esta plenitude no caminho daquele ser, podemos dizer, dentro da Psicologia Analítica, que é a verdade daquela existência. Para Jung a “verdade é aquilo que nos ajuda a viver – a viver adequadamente.” (JUNG, 1990b, p.288)

Se, como dissemos antes, os arquétipos auxiliam no encaminhamento da vivência equilibrada dos seres humanos, os “caminhos aplainados” pelo psicoterapeuta que forem respaldados nas vivências arquetípicas universais, estarão em sintonia com os esforços internos, inconscientes da psique daquele paciente, visando o mesmo que o terapeuta: o desenvolvimento da personalidade, a adequação ao processo de individuação ou, em outras palavras, a cura.

Por tanto, a “doença” é uma expressão simbólica do drama daquele ser com vínculos na experiência universal; seu drama é correlato com outros tantos já expressos coletivamente pelos mitos da civilização. Nestes mitos, em seus ritos e imagens evocadas, estão formas ancestrais de enfrentamento das questões humanas que se modificam ao longo da história das culturas apenas de forma periférica, mantendo, no fundo, as estruturas similares. Em todas as civilizações as alegrias e sofrimentos humanos passam pelos sentimentos em torno ou da origem da vida, de deus, do sentido da morte, da saudade das perdas, da conquista das virtudes, do lamento aos vícios, da complementaridade do masculino e do feminino, da necessidade de conhecer, conquistar, resguardar ou transmitir. Enfim, somos humanos e nossos sofrimentos são humanos. O que nos torna psiquicamente doentes são nossos sofrimentos e necessidades. Estes mesmos sofrimentos e necessidades estão expressos no conhecimento acumulado pela vivência de inúmeras gerações que nos precederam.

Para Jung, por tanto, os mitos relatam os dramas arquetípicos da espécie humana e podem ser orientadores do psicoterapeuta na busca do significado mais profundo do sintoma neurótico de seu paciente desenrolado no seu drama particular. “Os arquétipos aparecem nos mitos e contos de fadas, bem como no sonho e nos produtos da fantasia psicótica. (...) No indivíduo, os arquétipos aparecem como manifestações involuntárias de processos inconscientes, cuja existência e sentido só pode ser inferido; no mito, pelo contrário, trata-se de formações tradicionais de idades incalculáveis.” (JUNG, 2000, pg.155).

Mas o que haveria de terapêutico neste entendimento dos mitos e de todos os seus correlatos? Obviamente a história pessoal jamais se repete, somos singularidades, mas as situações pelas quais a singularidade deverá transcorrer para desenvolver-se são estruturalmente arquetípicas. Virá das imagens arquetípicas impregnadas de sabedoria universal, possibilidades dialogais psicoterapeuticamente interessantes. Para Jung a “(...)razão se torna um contra-senso quando ela se afasta do coração; e uma vida psíquica sem idéias universais sofre de desnutrição.”(JUNG, 1990b, p.311) Antes de qualquer resposta individual às questões humanas momentaneamente nomeadas como sintomas de uma patologia psíquica, a aproximação com os grandes temas universais localiza o homem dentro de sua grande família humana, dimensiona seus problemas como problemas humanos.

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Quando o terapeuta ajuda o paciente a elaborar as imagens universais expressas nos símbolos de seus sonhos, nas histórias que o terapeuta sugere ou lê, nas imagens ou leituras de obras de arte plástica, literária ou musical e, principalmente, na desarmonia que seu sintoma neurótico denuncia e propõe reverter, a consciência pode desfrutar do conforto da longevidade daquelas experiências e reutilizá-las no seu próprio enquadramento particular. Este enquadramento pode restaurar o equilíbrio das energias psíquicas transitando entre os sistemas inconscientes e conscientes. Este é o caminho da “cura” significativa. Em outras palavras podemos dizer que o terapeuta ajuda o paciente a ler a metáfora do instrumento que está utilizando seja este seu próprio sintoma, um livro, um quadro ou um sonho. Para Jung um “(...) conteúdo arquetípico sempre se expressa em primeiro lugar metaforicamente.” (JUNG, 2000, p. 158).

É importante compreender que Jung não pretende de forma alguma “explicar” para o paciente seu

sintoma, ou seu sonho, ou o mito que lhe é semelhante. Ao contrário só o que é produzido pela consciência do paciente pode ser usado na reequilibração entre essa mesma consciência e o inconsciente que se expressa pela metáfora. Inclusive as próprias metáforas do inconsciente sequer permanecem as mesmas também sofrendo alterações conforme a atitude da consciência frente aos símbolos sugeridos. Um mito, um sonho ou um sintoma jamais poderiam sofrer essa espécie de redução a questões psicológicas que poderiam ser decifradas e seguidas como orientações morais de conduta orientadas por um terapeuta sem perderem assim, definitivamente, seu potencial curativo. “É qualidade específica do mito fabular e querer dizer o incomum, o extraordinário e até mesmo o impossível. (...)Mas o que mito realmente quer dizer, disso não temos a menor idéia. Ele expressa fatos e situações psíquicas, exatamente como o sonho normal e as delusões de um doente mental. Descreve fatos psíquicos de modo figurado, cuja existência não pode ser desfeita por meio de simples explicação.” (JUNG, 2002, p. 167)

O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO A Psicologia Analítica é, definitivamente, uma psicologia de perspectiva evolutiva. O referencial que usa

para abordar as questões psicológicas fundamenta-se na evolução da espécie humana, respeita os marcos desse desenvolvimento e percebe as ressonâncias desta evolução disponíveis em cada novo membro da espécie. Essa psicologia do desenvolvimento considera que o inconsciente primitivo diferenciou-se gradualmente conforme a necessidade de adaptação e a criatividade no relacionamento com o mundo real. “(...) O inconsciente é a mãe criadora da consciência. A partir do inconsciente é que se desenvolve a consciência durante a infância, tal como ocorreu nas eras longínquas do primitivismo, quando o homem se tornou homem.” (JUNG, 1988, p. 120). E, tal como ocorreu, ficou indelevelmente marcado na humanidade e é novamente refeito, no mesmo caminho, para cada novo membro. Para a Psicologia Analítica, portanto, cada desenvolvimento individual, ontogenético, rememora a filogênese de toda a sua espécie. Assim, como a sociedade humana desenvolveu a linguagem oral em seu alvorecer, também nossas crianças aprendem a se comunicar oralmente em tenra idade. Replicamos em nosso desenvolvimento individual, porém muito rapidamente, o longo caminho de desenvolvimento de nossa família humana.

Como vimos, o inconsciente coletivo é, pois, uma herança da espécie impulsionando e modelando a possibilidade de desenvolvimento individual de seus novos membros. Contudo, cada novo ser terá a sua disposição essa estrutura psicológica interativa entre sistemas conscientes e inconscientes para impulsioná-lo até o ponto de sua maturidade física. Então, no ápice da vida impõe-se mais uma escolha arquetípica: a de trilhar um caminho absolutamente próprio ou seguir em frente dentro da média ou na medida do seu caminho até ali. Neste ponto a natureza humana pode inovar, alternar, construir, experimentar, avançar e a decisão/construção não está tomada a priori, nem é fácil, nem tem modelos ou amparos. É a derradeira aventura de ser completamente humano: um encontro com o divino criador dentro de si.

Aos que forem bem sucedidos em sua realização de si mesmo será oportunizado experimentar a sua contribuição particular ao desenvolvimento humano. A Psicologia Analítica acredita que a totalidade dos modelos arquetípicos coletivos e dos processos psicológicos pessoais vividos até ali, visam amadurecer o ser humano para capacitá-lo para a realização desta conquista. A este importante momento de “virada” e “escolha” a Psicologia Analítica designou de “metanóia” e ao longo percurso na busca da realização plena do existir de “processo de individuação”.

Como vimos anteriormente, as dimensões psíquicas, diferenciadas a partir do inconsciente original, passaram a operar relações regidas pela dinâmica energética assim como qualquer outro fenômeno energético. A energia tem seus padrões próprios de realização e os princípios energéticos de compensação e equivalência, conforme apresentados acima, determinam o relacionamento entre os sistemas psíquicos conscientes e inconscientes. A fim de manter o equilíbrio deste dinamismo a psique pode colocar material inconsciente numa posição de influência ou determinação em relação à consciência. Isso se dá, pois o material e a experiência psíquica do inconsciente coletivo sendo muito mais abrangente e anterior a experiência pessoal de um indivíduo, pode lhe ser útil na solução de suas questões ou problemas de caráter psicológico, colocando-lhe algumas possibilidades que não seriam produzidas por sua racionalidade (mesmo sendo este o processo dominante da consciência!). Os sonhos, as obras de arte e a produção cultural, os rituais e a sabedoria religiosa, bem como a própria produção de sintomas neuróticos, podem ser considerados instrumentos dos mais variados graus de interação entre o inconsciente e a consciência em busca de caminhos para o

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desenvolvimento. Também vimos anteriormente que a compreensão destes caminhos de autoregulação psíquica nos permite perceber a importância do acervo cultural e simbólico da humanidade para o desenvolvimento de cada pessoa em particular. Veremos agora que o motor, a direção e a meta destes fenômenos, bem como da própria existência humana, é o processo de individuação. Este conceito possibilita o entendimento mais detalhado da interação processual entre o desenvolvimento coletivo da humanidade (com seu saldo em forma de herança arquetípica) e o desenvolvimento individual, (que ganha importante autonomia sob completa responsabilidade pessoal das escolhas realizadas) justamente no cume da realização deste processo.

O processo de individuação é um dos conceitos mais originais da Psicologia Analítica central para entendimento do funcionamento da psique humana. Consideramos que “(...) o processo de individuação é o eixo da Psicologia Junguiana.”(NISE, 1981, p. 101).

O desenvolvimento do processo de individuação pode ser visualizado na imperiosa marcha permanente rumo a superação da condição anterior que é característica do ser humano. Assim como a humanidade evoluiu lenta e inexoravelmente, o ser nascido se torna humano por desenvolver essa sua tendência a crescer e “evoluir” (entendido aqui como a superação do estágio anterior quer seja de imobilidade, ignorância, inoperância ou enfado perceptual). O processo de individuação se expressa fundamentalmente como a busca pela mobilidade, conhecimento, habilidade e destreza, novos estímulos e novas configurações de formas e padrões... ou seja, em outras palavras: a busca da autosuperação. O ser humano sairá, através do processo de individuação, da imersão caótica e sem autopercepção em que se encontrava para buscar experiências; então, ele as registrará e aprenderá, primeiro conforme os padrões de sua espécie. Uma vez conquistada a autopercepção e o autoreconhecimento começará a aprender também segundo suas próprias pesquisas, desenvoltura e determinação. Assim o ser humano se diferenciará da totalidade psíquica (estado de indiferenciação) de onde partiu em busca da experiência maior de tornar-se Si-mesmo.

“O conceito de individuação não representa papel de somenos em nossa psicologia. De modo geral, pode-se dizer que a individuação é o processo de constituição e particularização da essência individual, especialmente, o desenvolvimento do indivíduo – segundo o ponto de vista psicológico – como essência diferenciada do todo, da psicologia coletiva. A individuação é, portanto, um processo de diferenciação cujo objetivo é o desenvolvimento da personalidade individual. A necessidade de individuação é natural, enquanto o impedimento da individuação por uma normalização exclusiva ou preponderante, de acordo com os padrões coletivos, será prejudicial para a atividade vital do indivíduo, para a sua vivência pessoal”. (JUNG, 1991. p. 525)

Para Jung a meta da individuação, ou seja, tornar-se si mesmo diferenciado da totalidade psíquica

originária, é uma meta para atingir-se gradualmente e em longo prazo. Por isso a individuação é considerada um processo em curso do nascimento até a morte e que, como qualquer processo, atravessa etapas, intercursos, acelerações e esvaziamentos... O que caracterizaria a saúde psíquica é a permanência seqüencial, gradual e cumulativa de experiências que permitam o desenvolvimento constante de cada um, ao encontro de sua própria realização. (...)Individuação significa tornar-se um ser único na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais intima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois traduzir “individuação” como “tornar-se si-mesmo” ou “o realizar do si-mesmo”. (JUNG, 1981, p. 163)

Para atingir este desenvolvimento pleno da personalidade Jung entendeu ser muito importante que a oposição consciência e inconsciente não se tornassem demasiadamente rivais ou desprezíveis uma para outras. Ao contrário, explorando fortemente a concepção de que a vida psíquica é determinada pela movimentação de contrários opostos, Jung compreendeu que a interação dos diferentes sistemas psicológicos – contrapondo-se para apoiarem o processo de individuação – era condição de equilíbrio psíquico e produtividade psicológica.

A energia psíquica desta interação pode seguir um movimento progressivo ou regressivo. A progressão se dá quando o ego consciente está ajustando, de forma satisfatória e produtiva, as exigências sociais e as inconscientes (incorporando criativamente suas tendências e pendores). A antítese desse processo é a regressão que ocorre quando desequilíbrios energéticos, devido a causas externas ou internas, impedem o fluxo de energia para o exterior, e a libido retorna para o inconsciente. Como vimos, Jung não acreditava que esse fosse um processo exclusivamente negativo, por quanto a energia investida no inconsciente podia, muitas vezes, reativar núcleos ou estruturas arquetípicas que detinham o conhecimento acumulado de muitas gerações das formas e alternativas possíveis para as dificuldades que o indivíduo enfrenta naquele momento. Mas, na direção progressiva ou regressiva, a meta a ser atingida é a individuação; o processo de individuação dá-se na continuidade das experiências adaptadas e felizes e também nos retrocessos e engasgos que fazem com que outros recursos, melhores e mais eficientes, até mesmo inconscientes, sejam incorporados a percepção consciente e integrados a totalidade psíquica da pessoa humana. Este é o processo de individuar-se: rico e trabalhoso.

Portanto, o desenvolvimento da individualidade não pode dar-se apenas mediante as relações interpessoais do indivíduo (conforme a maioria de outras teorias psicológicas da personalidade), mas

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necessariamente também pelo desenvolvimento e intercâmbio dos vários elementos dos diferentes sistemas psíquicos.

Se, por um lado, admite a importância dos acontecimentos passados na explicação da estrutura atual da personalidade (não só na vida individual, mas também na evolução da humanidade), a teoria junguiana, também compreendeu, por outro lado, que a estrutura psíquica está constantemente progredindo atraída por um centro que não lhe é a princípio muito claro ou compreensível. Essa compreensão é gradual, conforme o indivíduo avance no seu amadurecimento psicológico. Para cada etapa da vida haverá um tipo de preocupação predominante e que fará sentido para o projeto total de uma existência. Assim o egocentrismo infantil, o destemor juvenil e a determinação prudente da vida adulta constituem atitudes psicológicas diferenciadas e apropriadas em diferentes momentos da vida. Entretanto, após a meia idade, um novo horizonte de preocupações será mais adequado à nova etapa do desenvolvimento humano. Em qualquer destes momentos porém, tanto as condições causais quanto as finalistas estão atuando na marcha inexorável rumo a superação das dificuldades para estabelecer uma consciência de si mais ampla e plena de sentido.

Embora a individuação seja uma tendência instintiva a realizar plenamente as potencialidades inatas do ser é importante não se confundi-la com o desenvolvimento do individualismo, nem com a busca da perfeição. Ao contrário de tudo isso, individuar-se seria o processo de "completação", no sentido de aceitação de nossos opostos e contrários, de nossas fraquezas e forças, de nosso papel e tempo no mundo. Sobretudo a individuação busca permitir a experiência de doação de si para o mundo, um sacrifício dos interesses meramente individuais e absolutamente transitórios como a existência individual, por uma doação e compaixão para com as outras pessoas, para com a vida e para consigo mesmo.

Para Jung esse processo de mudança do centro da personalidade deslocando-se do ego extrovertido para o eixo que liga o ego (individual) ao Si-Mesmo (nossa ligação com o transcendente) tende a ocorrer na meia idade, quando o indivíduo tem seus interesses e objetivos da juventude substituídos por interesses mais culturais, filosóficos e/ou espirituais. Essa transição é um acontecimento decisivo na vida do indivíduo tanto pela sua possibilidade que crescimento e transcendência, quanto pela possibilidade de um prejuízo psíquico enorme se a transferência não se der de forma a envolver toda a energia utilizada nos investimentos anteriores.

Vários são os caminhos que levam à conscientização, mas eles obedecem a certas leis. Geralmente a mudança começa com o início da segunda metade da vida. O meio da vida é um tempo de suma importância psicológica. (...) O meio da vida é um tempo de desenvolvimento máximo, quando a pessoa ainda está operando e trabalhando com toda a sua força e todo o seu querer. Mas neste momento tem início o entardecer, e começa a segunda metade da vida. A paixão muda de aspecto e passa a ser dever, o querer transforma-se inexoravelmente em obrigação (...). Em vez de olhar para a frente, muitas vezes olha-se para o passado; principia-se a prestar contas sobre a maneira pela qual a vida se desenvolveu até o momento. Procura-se encontrar motivações verdadeiras e surgem descobertas. O indivíduo consegue conhecer sua peculiaridade por meio da consideração crítica de si próprio e de seu destino. Mas estes conhecimentos não lhe são dados de graça. Chega-se a tais conhecimentos por abalos violentos. (JUNG, 1988, p. 198-9) “A integração (ou processo de tornar-se homem) é preparada pelo lado da consciência, como já indicamos, ou pela tomada da consciência das pretensões egoísticas; o indivíduo percebe os seus motivos e procura formar uma idéia objetiva e o mais completa possível de sua própria natureza. Trata-se de um ato de reflexão sobre si mesmo, da concentração daquilo que se achava disperso e cujas partes nunca foram colocadas adequadamente numa relação de reciprocidade, de confronto consigo mesmo, visando a conscientização (...), uma operação consciente e voluntária do eu, e, por outro lado significa também um aflorar espontâneo do si-mesmo que já existia. A individuação aparece como a síntese de uma nova unidade que se compõe de partes anteriormente dispersas, e também com manifestação de algo que preexistia ao eu e é inclusive seu pai ou criador, e sua totalidade. Com a conscientização dos conteúdos inconscientes, nós, de certo modo, criamos o si-mesmo, e neste sentido ele é também nosso filho. “ (JUNG, 1990c, p. 267)

Jung descreve arquetipicamente as etapas da metanóia (a crise no ápice do desenvolvimento físico,

decisiva para o amadurecimento psicológico e rejuvenescimento do sentido da existência humana) iniciando pelo desmascaramento da Persona (o arquétipo que impele à adoção de atitudes aceitáveis socialmente, mesmo que reprováveis eticamente). Nestes momentos o ser vai diferenciando-se da máscara que usa para adaptar-se socialmente, e entra em contato com suas expressões mais íntimas. É preciso ter coragem de desmascarar-se a si próprio e perceber a penúria de sentido para a vida que nos obriga a ir além das aparências até o despertar da felicidade autêntica de existir. Na individuação a Persona passa a ser utilizada como um sistema de defesa e percebida como uma capa de revestimento diferenciada da realidade interior e própria do ser. Numa segunda etapa o indivíduo deve entrar em contato e perceber sua Sombra (arquétipo que nos impele a extirpar de nossa autoconsciência os aspectos reprováveis e miseráveis de nós mesmos), ou seja, seus aspectos menos cúmplices da boa imagem que tem de si. Como a Sombra aglomera complexos reprimidos, pequenas fraquezas e até forças e traços maléficos, acaba constantemente negada como parte da pessoa; suas manifestações são quase sempre inconscientes. O valor de reconhecê-la está na possibilidade de

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aclaramento de sua influência, e/ou no descobrimento de certos aspectos positivos que pode também conter e que não teriam energia suficiente para ultrapassar as convenções mais ordinárias. As virtudes da compaixão pelos outros e o contato profundo consigo mesmo prepara então a eclosão de uma associação consistente com o Self ou Si-Mesmo (arquétipo central da psique coletiva). A partir dessa associação uma estima mais sincera por si mesmo e pelas humildes possibilidades, porém reais, de sua pessoa dão um novo sentido a vida daquele ser humano. A partir de então o envelhecimento não se constituirá num castigo terrível, mas no cumprir de sua caminhada. Essa posição conferirá a este envelhecimento novos desdobramentos e possibilidades. Caracterizando a etapa seguinte a metanóia ocorrerá o contato com a Anima ou Animus (arquétipo oposto a personalidade sexual assumida na Persona), ou seja, com as figuras arquetípicas que representam a parcela da individualidade com traços característicos do sexo oposto ao da própria pessoa, e que aumentará as faculdades perceptivas e a orientação interna da pessoa.

(...)o processo de individuação desenvolve um simbolismo cujos similares mais próximos devem ser procurados nas concepções folclóricas, gnósticas, alquimistas e outras de natureza ‘mística’, bem como no xamanismo. (...) O processo de individuação é um fato biológico – simples ou complicado, dependendo das circunstâncias – mediante o qual todo o ser vivo torna-se aquilo que está destinado a ser desde o começo. Este processo, naturalmente, se manifesta no homem tanto psíquica quanto somaticamente. Do lado psíquico ele produz, por ex., a bem conhecida quaternidade, cujos paralelos podem ser encontrados tanto nos manicômios como no gnosticismo e em outros exotismos também, seja dito, na alegoria cristã.(JUNG, 1990c, p. 310)

Essa alta freqüência com que o processo de individuação aparece nos simbolismos das mitologias

religiosas explica-se. Como vimos os rituais religiosos tentam organizar a experiência íntima de significação para a vida do homem. Esta plenitude é, de diversas formas diferentes, associada ao encontro ou vivência de Deus. Para tanto, o homem deve sempre seguir um percurso de aventuras que envolvem coragem, determinação e bons princípios, uma luta final onde seu próprio eu é mortificado e, então, o encontro glorioso com Deus, com seu destino, mesmo que seja com sua morte (ou outro tipo de nova vida). O desenvolvimento psicológico segue, pelo processo de individuação, etapas muito próximas dessas metáforas apresentadas nas religiões do mundo.

Quando o comportamento do ego está de acordo com o eixo ego-Si-Mesmo (que o leva ao processo de individuação concretizado a bom termo) este recebe as nutritivas energias de seu interior. O inconsciente não precisa invadir a consciência, pois naturalmente a mesma já se relaciona equilibradamente com os aspectos inconscientes da personalidade total. Entretanto, quando o ego não administra tão bem o comportamento do indivíduo, não é raro a influência (proporcional) de um complexo ou dinamismo arquetípico para tentar a autoregulação da psique. Em casos onde a distância entre a potencialidade individual de desenvolvimento e o comportamento atual do indivíduo vai ficando muito grande, esse desequilíbrio psíquico pode levar a perturbações neuróticas.

O tratamento dessas perturbações, a psicoterapia na abordagem junguiana, visará reestruturar o uso dessas forças antagônicas da psique, facilitar a simbolização do sintoma neurótico e encontrar uma forma de integrar a orientação inconsciente dentro dos marcos referenciais concretos do paciente.

“A única coisa que não podemos em circunstância alguma tolerar é a falta de significado. Tudo, até a morte e a destruição pode ser encarado desde que tenha significado. Até em meio à abundância e à plenitude, a falta de um sentido significado interior é insuportável.” (WHITMONT, 2003, p. 74)

O processo de individuação é exatamente a busca incessante de sentido para a vida humana, o

impulsionador psicológico dessa busca por significado. Nos sonhos, mitos e outras representações simbólicas aparecem expressões dessa função

transcendente que busca a integração para o desenvolvimento. Nas obras de arte a expressão mais característica, presente em várias sociedades de diversas formas diferentes, deste encontro com a totalidade é a mandala.

“Expressão por excelência da totalidade psíquica é a mandala. Mandala, palavra sânscrita, significa círculo, ou círculo mágico. Seu simbolismo inclui toda imagem concentricamente disposta, toda circunferência ou quadrado tendo um centro e todos os arranjos radiados ou esféricos. O centro da mandala representa o núcleo central da psique (self), núcleo que é fundamentalmente uma fonte de energia. “A energia do ponto central manifesta-se na compulsão quase irresistível para levar o indivíduo a tornar-se aquilo que ele é, do mesmo modo que todo o organismo é impulsionada a assumir a forma característica de sua natureza, sejam quais forem as circunstâncias.”(Jung).” (SILVEIRA, 1974, p. 100)

Jung notou que pacientes em processo de reestruturação podiam começar a pintar ou desenhar

mandalas, ou a sonhar com as mesmas, dando prova do desenvolvimento da função de integração.

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A PSICOLOGIA DO HERÓI Vimos que para a Psicologia Analítica é possível diferenciar tantos arquétipos quantas as situações

típicas na vida. Experiências como: a maternidade, a morte, paixões inconfessáveis, a amizade leal, entre outras como as advindas da própria experiência sensorial do mundo físico: a alternância entre claro e escuro, a sucessão das estações do ano, florescer e morrer etc... apresentam-se na história da espécie como situações repetidas tipicamente por centenas de gerações. Todas essas retumbantes idéias e representações da experiência humana conformaram a organização dos arquétipos.

A Psicologia Analítica identificou alguns dos mais nítidos e freqüentes na experiência clínica junguiana: da Mãe, do Pai, da Criança, do Herói, do Velho Sábio, da Morte, e da Totalidade ou do Si-Mesmo (também chamado arquétipo de Deus ou “Self”) e alguns especiais pelo relacionamento direto com a estrutura egóica que são os arquétipos da Persona, Sombra e a sizígia Anima/Animus. Todos esses arquétipos, entretanto, se tiverem de representar-se na experiência pessoal de um indivíduo (devido aos desequilíbrios que já comentamos), o fazem em forma de imagens pessoais, inspiradas no núcleo arquetípico. O arquétipo em si é sempre inacessível à racionalidade ou a descrição empírica; o que se pode dele constatar são as imagens arquetípicas, ou seja, as representações empíricas influenciadas pelos núcleos arquetípicos, filtrados pela cultura e ainda compostos com a participação das preferências e possibilidades individuais. Mesmo assim, tão distanciadas de sua origem, essas imagens possuem forte carga emocional e são facilmente reconhecíveis por transcender a experiência individual, impactar com profundidade praticamente inexplicável e permitir um grande número de associações significativas. O estudo das imagens arquetípicas e de seu dinamismo, ocorridos comparativamente nas semelhanças dessas imagens nas diferentes culturas e épocas, no material espontâneo da psique delirante, nas produções artísticas, nos temas mitológicos e nas produções oníricas, revelam muito do funcionamento da psique humana. Por isso o estudo de um arquétipo pode ser tão frutífero para a clínica psicológica. Obviamente o arquétipo não aparece em si e também não se repete com a mesma imagem de pessoa para a pessoa, mas as semelhanças nas situações e padrões energéticos característicos de um arquétipo podem fornecer à consciência atenta material para reflexão incomparavelmente rico pois que foi trazido, sem preconceitos, desde as profundezas do ser para a claridade de sua razão autoconsciente.

Neste momento nos aprofundaremos no estudo do arquétipo do Herói que nos será particularmente importante pois, como veremos, é neste dinamismo arquetípico que se fundamentam os mitos dos heróis.

(...) uma série de arquétipos é o principal constituinte da mitologia, que esses arquétipos mantêm entre si uma relação orgânica e que a sua sucessão por estágios determina o crescimento da consciência. No curso do seu desenvolvimento ontogenético, a consciência individual do ego tem de passar pelos mesmos estágios arquetípicos que determinaram a evolução da consciência na vida da humanidade. Na sua própria vida, o indivíduo tem de seguir a estrada percorrida antes dele pela humanidade, estrada na qual esta deixou marcas da sua jornada impressas na seqüência arquetípica das imagens mitológicas. (NEUMANN, 1995, p. 13-14)

Se consideramos que os arquétipos ressoam a história da longa constituição da natureza humana,

temos que o arquétipo do Herói representa um estágio da evolução da consciência humana onde vislumbra-se o momento de crescimento e avanço da estruturação do ego. A trajetória do Herói é também a trajetória do fortalecimento do ego enquanto estrutura central da consciência. Como os arquétipos só são acessíveis através das imagens arquetípicas, o arquétipo do herói só pode ser evidenciado através das imagens arquetípicas a ele relacionadas, ou seja, através das configurações, narrativas e imagens mitológicas de heroísmo.

A evolução da consciência por estágios é, ao mesmo tempo, um fenômeno humano coletivo e um fenômeno individual particular. Assim, deve-se considerar o desenvolvimento ontogenético uma recapitulação modificada do desenvolvimento filogenético. Essa interdependência de coletivo e individual representa dois concomitantes psíquicos. De um lado, a história primitiva do coletivo é determinada por imagens primordiais interiores cujas projeções se manifestam no exterior como poderosos fatores – deuses, espíritos ou demônios – que se convertem em objetos de culto. De outro, os simbolismos coletivos do homem também aparecem no indivíduo, e o desenvolvimento, ou mau desenvolvimento, psíquico de cada indivíduo é regido pelas mesmas imagens primordiais que determinam a história coletiva do homem. (NEUMANN, 1995, p. 16)

Os mitos da criação, as grandes cosmogonias religiosas, falam do próprio aparecimento da consciência.

Há sempre um mundo ou condição anterior ( o inconsciente ) à criação e depois o mundo criado ( a consciência ) e todos os seus perigos e regras de sustentação fora da totalidade indiferenciada originária. Passada esta fase de estruturação inicial a consciência e o ego humano – já cientes de si –, separados da totalidade originária, devem agora construir sua natureza, seu próprio mundo, vencer seus obstáculos, organizar seus códigos e valores. Os mitos heróicos dizem justo dessa etapa: a longa saga, a luta pelo crescimento e autonomia.

Estas experiências da vida humana coletiva, recordada pelos mitos dos heróis (gregos, hindus, assírios, mongóis, não importa!) serão repetidas individualmente, obviamente dentro do percurso e na duração próprias de cada pessoa.

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Com o mito do herói, entramos numa nova fase do desenvolvimento estadial. Houve uma mudança radical no centro de gravidade, porque já não prepondera mais a universalidade cósmica do mito, como sempre ocorre quando se trata do mito da criação; a preponderância agora é o centro do mundo como lugar onde está o homem, e se tornou definitivamente visível. No desenvolvimento das fases, isso significa que, no mundo do herói, o ego e a consciência não apenas alcançam a autonomia, mas que a personalidade total do homem, na sua distinção da natureza, quer esta seja o mundo ou o inconsciente, está focalizada. Aquilo que, na separação dos Pais Primordiais – que, na verdade, já faz parte do mito heróico – , ainda era possível representar de modo universal-cósmico, entrou agora na fase da formação da figura e da personalidade humanas. Assim sendo, o herói é o precursor arquetípico da humanidade em geral. O seu destino é o modelo que deve ser seguido e que, na humanidade, sempre o foi – na verdade, com atrasos e intervalos, mas o suficiente para que os estágios do mito heróico façam parte dos constituintes do desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. O processo de masculinização se cristaliza agora definitivamente e, desse modo, passa a ser decisivo para a estrutura da natureza do ego e da consciência. Com o nascimento do herói, tem início a batalha primordial, a luta com os Primeiros Pais. O problema dos Pais Primordiais, em suas formas pessoal e transpessoal, domina toda a existência do herói, no nascimento, na luta e na transformação. Pela obtenção do masculino e do feminino – que não é o paterno e o materno – e pela formação de uma estrutura interna da personalidade, na qual os estágios novos, assim como os superados, encontram o seu lugar, completa-se um desenvolvimento que é antecipado coletivamente nas projeções mitológicas do mito herói, que se manifestam na formação da personalidade humana. (NEUMANN, 1995, p. 107)

Para a compreensão das características típicas e das mais específicas dos heróis míticos é necessário ponderar sobre a composição básica dessas imagens arquetípicas: os símbolos. Por constituírem a matéria-prima das organizações possíveis da narrativa mítica, os símbolos devem ser compreendidos em sua significância e profundidade.

(...) As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas narrado para fazer a criança dormir – da mesma forma como o sabor do oceano se manifesta numa gota ou todo o mistério da vida num ovo de pulga. Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte. (CAMPBELL, 2003, p. 16-17)

Por tanto, a força da simbologia mítica vem de sua muito profunda origem psíquica. Em si mesmos, os

“(...)símbolos e arquétipos são as projeções do aspecto criador de conteúdo, forma, ordem e sentido da natureza humana. Por isso, os símbolos e figuras simbólicas são os dominantes de toda cultura humana, antiga e moderna.” (NEUMANN, 1995, p. 265). Os símbolos aparecem em qualquer cultura em todos os momentos históricos da civilização humana justamente porque acompanharam, construindo e incentivando, a ereção dessas culturas.

Os símbolos são, no entendimento de Jung, mecanismos psicológicos de transformação de energia que atuam desde a origem da psique. Essa transformação “(...)da energia por meio do símbolo é um processo que vem se realizando desde os inícios da humanidade, e ainda continua. Os símbolos nunca foram inventados conscientemente; foram produzidos sempre pelo inconsciente pela via da chamada revelação ou intuição.” (JUNG, 1971, p. 46-7)

O objetivo dessa produção é manter aberta a possibilidade de trocas e interações entre o sistema consciente e o inconsciente benéficas à estruturação de ambos. Com a ajuda dos símbolos a energia pode ser desviada de seu curso normal na consciência, conduzida para uma atividade outra, que complementa, direciona ou enriquece criativamente a mesma, a partir de uma carga energética antes inconsciente.

A importância dessas esferas para o equilíbrio cultural reside no fato de que elas garantem a unidade das funções psíquicas através da prevenção do cisma entre consciência e inconsciente. Nesse sentido, devemos elucidar o papel do símbolo para a consciência. O mundo dos símbolos forma uma ponte entre a camada da consciência em vias de se emancipar e sistematizar e o inconsciente coletivo, com os seus conteúdos transpessoais. Enquanto esse mundo existir como mundo operante no ritual, no culto, no mito, na religião e na arte, não haverá ruptura entre as duas camadas; isso porque, por meio do mundo operante dos símbolos, um lado do sistema psíquico influencia o outro e o força a posicionar-se.” (Grifos nossos. NEUMANN, 1995, p. 261-2)

Guardando, por tanto, essa relação de profunda intimidade com os arquétipos, os símbolos são

vigorosas fontes de aprofundamento nos caminhos do desenvolvimento humano. O símbolo, entretanto, sempre é também uma expressão do lado espiritual, como princípio formativo inerente ao inconsciente, pois também “o espírito aparece na psique sob a forma de impulso”, como um “princípio sui generis”. Para o desenvolvimento da consciência humana, esse lado espiritual do símbolo não é um fator qualquer, e sim diretamente o fator decisivo. Ao lado do

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aspecto comovedor do símbolo, há o aspecto do significado, do sentido, que indica e insinua e quer ser interpretado. Esse é o aspecto que fala à compreensão e exige consciência e reflexão e não apenas sentimento e comoção. O fato de esses dois aspectos atuarem lado a lado no símbolo constitui a sua natureza característica, ao contrário do signo e da alegoria, associados a significados fixos, determinados pelo conteúdo. O símbolo, que, enquanto vivo e ativo ultrapassa a capacidade da consciência que o experimenta, é a “formulação de uma parte considerável do inconsciente”, fato que constitui o seu efeito inquietante e atraente. Por causa disso, a consciência sempre volta a ele e, na meditação e na contemplação, gira apo seu redor, executando a circumambulatio que se repete, como atuação externa, em tantos ritos e cultos. Na “vida simbólica”, o ego não toma um conteúdo, mediante o lado racional da consciência, a fim de analisá-lo, isto é, decompô-lo e, dessa forma, digeri-lo, mas, em vez disso, a totalidade da psique se expõe ao efeito do símbolo e se deixa “co-mover” por ele. Essa permeabilidade afeta toda a psique e não unicamente a consciência. Imagem e símbolo são, como produtos criativos do inconsciente, manifestações do aspecto espiritual existente na alma humana. Na imagem emergente se exprime o significado e a tendência atribuidora de sentido do inconsciente, quer numa visão, sonho ou fantasia, quer numa imagem interior, que surge externamente, como, por exemplo, na parição de um deus. O interior se “exterioriza” por meio do símbolo. Através do símbolo, a consciência do homem se torna espiritualmente capaz e atinge a autoconsciência: `O homem aprende e reconhece o seu próprio ser apenas até o ponto em que é capaz de fazê-lo visível na imagem dos seus deuses.´ O mito, a arte, a religião e a linguagem são expressões simbólicas do espírito criador do homem; neles esse espírito criador se torna “objeto” que pode ser percebido e obtém autoconsciência por meio da consciência do homem.” (Grifos nossos. NEUMANN, 1995, p. 263-4)

Por tanto, podemos dizer que os símbolos são os constituintes das imagens arquetípicas que podemos

acompanhar nas narrativas míticas e, como tais, não podem ser “interpretados” de forma fixa, como sinais unívocos, pois não o são, nem, tão pouco, como expressões subjetivas, como testemunho dos sentimentos ou vivências pessoais de outrora guardados como tradição literária. Os símbolos só podem ganhar significado se se conectam com o movimento energético que rege a psique coletiva e individual.

A natureza do símbolo o coloca ao lado dos mitos por serem, ambos, interligados e essencialmente polissêmicos.

Jamais uma resposta simbólica deve ser entendida concretamente ou tomada ao pé da letra, porque seria confundida com a resposta matematicamente lógica da consciência que diz: “isto é isto, aquilo é aquilo”. A declaração da identidade – e a da lógica da consciência, erigida sobre ela – não tem valor para a psique nem para o inconsciente. A psique, como o sonho, mistura; fia e tece, combinando cada coisa com cada outra coisa. O símbolo é, por conseguinte, uma analogia; é mais uma equivalência do que uma equação; nisso reside a sua riqueza de significados, mas, da mesma maneira, o seu caráter instável. Apenas o grupo simbólico, um compacto de analogias parcialmente contraditórias, pode fazer que algo desconhecido e incompreensível para a consciência se torne mais inteligível e conscientizável. (Grifos nossos. NEUMANN, 1995, p. 26-27)

Assim como não é adequado uma interpretação personalista do mito, por representar um evento

transpessoal, também não é adequado reduzir a simbologia a uma elaboração definitiva e única. O mais rico e instrutivo é deixar-se impregnar pela atmosfera numinosa e... permitir ao símbolo, simbolizar.

Agora então, podemos pensar os mitos dos heróis, cuja simbologia estão relacionadas com o arquétipo do herói. “(...) A natureza do herói é tão multifária quanto as aflitivas situações da vida real. No entanto, ele sempre é compelido a sacrificar a vida normal, seja qual for o modo como esta o afete, quer sob a forma da mãe, do pai, do filho, da pátria, da namorada, do irmão ou do amigo.” (NEUMANN, 1995, p. 269-270)

O herói é, por tanto, a personagem mitológica, de caráter transpessoal, que agrega componentes que o destacam da média por assumir um desafio superlativo. Não é sua condição subjetiva o ponto fundamental de seu destaque heróico, mas muito mais fundamentalmente, posicionar-se dentro de um dinamismo arquetípico, ou seja, representar uma tendência/potência coletiva.

“(...) no mito do herói jamais se trata da história pessoal de um indivíduo qualquer, mas sempre de um evento transpessoal e ideal de significado coletivo. Mesmo as características quase-pessoais são de natureza arquetípica, por mais que os heróis individuais, os seus destinos e os alvos das suas respectivas lutas com o dragão possam sugerir que diferem uns dos outros. Mesmo que interpretemos a luta e seu objetivo, no nível subjetivo, como um processo interior do herói, o evento é transpessoal. A vitória e a transformação do herói, mesmo quando apresentadas como eventos “interiores”, são para cada ser humano um evento válido, que deve ser contemplado para ser imitado na vida, ou, pelo menos, para que o sinta. Enquanto a moderna historiografia, com seu viés personalista, se inclina a representar os eventos coletivos da vida das nações e da

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humanidade como dependentes de impulsos personalistas de monarcas e líderes, o mito reflete a personalidade transpessoal através dos eventos singulares da vida do herói.” (NEUMANN, 1995, p. 152)

O heroísmo mítico narra de capacidades extra-ordinárias, logo inacessíveis ao homem ordinário, mas –

simbolicamente – sua luta se apresentará modelar e servirá a todo e qualquer homem de forma particular e específica. Os mitos de herói sempre apresentam a “(...)figura de um homem poderoso ou de um homem-deus que combate todo mal personificável bem como toda espécie de inimigos, dragões, cobras, monstros e demônios, e livra seu povo da destruição e da morte.”(JUNG, 1990d, p. 240). Estes heróis vão trocando de roupagens culturais (Aquiles, Sherlock Homes, Batman, Super man, Neo ou Frodo) mas permanecem representantes da disposição humana de, desafiada, lutar.

A figura do herói é uma imago típica que existe desde tempos imemoriais. Eu a denomino arquétipo (do grego arché, começo), pelo qual entendo uma tendência preexistente do espírito humano de construir representações míticas. (...) Encontramos essas representações praticamente em toda parte e sempre se caracterizam pelo mesmo motivo ou por motivos semelhantes. Não podemos atribuí-las a nenhuma época específica, ou a alguma região do planeta, ou a alguma raça. Onipresentes no espaço e no tempo, de origem desconhecida, podem reproduzir-se mesmo onde está excluída a tradição por meio da migração dos povos.(JUNG, 1990d, p. 233)

O que queremos aqui reforçar é a origem coletiva da estrutura básica do mito do herói. A origem

arquetípica possibilita a repetição de certas padronagens nos dramas heróicos que podem ser apresentadas em várias sistematizações, como por exemplo:

1. Por Brandão: “Otto Rank tentou mesmo formular um esquema do que ele denominou lenda-padrão do herói.

(...)Consoante com Rank o herói descende de ancestrais famosos ou de pais da alta nobreza: habitualmente é filho de um rei. Seu nascimento é precedido por muitas dificuldades. (...) Durante a gravidez ou mesmo anterior à mesma, surge uma profecia, sob a forma de sonho ou de oráculo, que adverte acerca do perigo do nascimento da criança, uma vez que põe em perigo a vida do pai ou de seu representante. Via de regra, o menino é exposto num monte ou num 'recipiente', cesto, pote, urna, barco, é abandonado nas águas, as mais das vezes, do mar. É recolhido e salvo por pessoas humildes: pastor, pescador, ou por animais e é amamentado por uma fêmea de algum animal, ursa, loba, cabra... ou ainda por uma mulher de condição modesta. Transcorrida a infância, durante a qual o adolescente, não raro, dá mostras de sua condição e natureza superiores, o “futuro herói” acaba descobrindo, e aqui as circunstâncias variam muito, sua origem nobre. Retorna à sua tribo ou a seu reino, após façanhas memoráveis, vinga-se do pai, do tio ou do avô, casa-se com uma princesa e consegue o reconhecimento de seus méritos, alcançando, finalmente o posto e as honras a que tem direito. Mas, após tantas lutas, o fim do herói é comumente trágico. A grande glória lhe será reservada post mortem. (...) O mito revela, ao longo de todo o seu desenvolvimento, um esforço por libertar-se dos pais e esse mesmo desejo se depreende das fantasias individuais do menino, quando busca a sua emancipação. Nesse sentido o eu do menino se comporta como o herói do mito e, na verdade, o herói deve ser sempre interpretado como um “eu” coletivo, dotado de todas as excelências.” E mais adiante, arremata o estudioso austríaco: “Na realidade, os mitos dos heróis equivalem, em função de muitas de suas características essenciais, às idéias delirantes de alguns psicóticos, que sofrem de delírios de perseguição e de grandeza, isto é, dos paranóicos. Seu sistema delirante esta construído de forma muito semelhante ao mito do herói, revelando assim os mesmos temas psicológicos que a novela familiar do neurótico”.(Grifos nossos. BRANDÃO, 2000, p.20-1).

2. Por Campbell: “A aventura do herói pode ser resumida no seguinte (...): O herói mitológico, saindo de sua

cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali, encontra um presença sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão). Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela união sexual coma deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua própria divinização (apoteose) ou, mais uma vez – se as forças se tiverem mantido hostis a ele –, pelo roubo, por parte do herói, da bênção que ele foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna sob sua proteção (emissário);

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se não for essa o caso, ele empreende uma fuga e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar de retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A bênção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir). As mudanças que permeiam a escala simples do monomito desafiam a descrição. Muitos contos isolam e ampliam grandemente um ou dois elementos típicos do ciclo completo (o motivo do teste, o motivo da fuga, a abdução da noiva); outros encadeiam um certo número de ciclos independentes e os transformam numa série simples (tal como ocorreu na Odisséia). Diferentes personagens ou episódios podem ser fundidos(as), assim como um elemento simples pode reduplicar-se e reaparecer sob muitas formas diferentes.” (Grifos nossos. CAMPBELL, 2003b, p. 241-242)

O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno – que podem ser considerados a unidade nuclear do monomito. (CAMPBELL, 2003b, p. 36)

3. Por Neumann: “Só o conflito do ego com os fatores transpessoais leva à criação da personalidade e à formação das

suas instâncias. Por isso, o herói serve de modelo; as suas tarefas e sofrimentos ilustram aquilo que mais tarde caberá a cada indivíduo. A formação da personalidade é retratada em termos simbólicos na sua vida – ele é a primeira “personalidade” e o seu exemplo é seguido por todos quantos se tornam personalidades. Os três elementos básicos do mito do herói foram o herói, o dragão e o tesouro. (Grifos nossos. NEUMANN, 1995, p. 148)

Em numeroso mitos, o objetivo da luta do herói é a libertação de uma cativa do poder de um monstro. Este é arquetipicamente um dragão, uma bruxa ou um feiticeiro, que, arquétipos também, possuem ainda componentes personalísticos, ou então, um pai ou uma mãe malévolos, apresentados personalisticamente. (...) No final, a cativa sempre se torna a esposa do herói, sendo a união com ela um dos principais resultados de qualquer luta com o dragão. Os velhos mitos da fertilidade e os rituais subjacentes a todos os festivais da primavera e do ano novo formam o protótipo cúltico de que o mito do herói constitui um segmento. A vitória sobre monstros e inimigos é a condição da união triunfal do jovem herói-rei com a Deusa Terra, que depois restaura, de maneira mágica, a fertilidade do ano. A libertação e conquista da cativa mediante a luta com o dragão são o desenvolvimento posterior do antigo ritual da fecundidade. (...) A transformação da masculinidade, que ocorre no herói pela luta com o dragão, inclui também uma transformação da sua relação com o elemento feminino, expressa simbolicamente pela libertação da cativa do poder do dragão, o que significa a separação do aspecto de feminilidade da imagem de Mãe Terrível. (...) À união entre o filho adolescente e a Grande Mãe segue-se uma fase de desenvolvimento em que o homem adulto se une a uma parceira feminina da sua própria idade e tipo, no hieros gamos. Só agora a masculinidade atingiu a maturidade e pode se tornar fecunda; o homem já não é o instrumento de uma Mãe Terra onipotente, mas assume ele mesmo, paternalmente, o cuidado e a responsabilidade pela sua geração, estabelecendo, pela relação permanente com a mulher, a família como núcleo de toda cultura patriarcal e, mais além, a dinastia e o Estado. Com a libertação da cativa e a fundação de um novo reino, a era patriarcal entra em vigor. Esta ainda não é patriarcal no sentido da subjugação da mulher, mas em termos do exercício da autoridade plena do homem sobre os seus rebentos. (NEUMANN, 1995, p. 152-3)

Podemos perceber que as diferentes sistematizações destes autores concordam em um aspecto

central: haveria uma seqüência, um desdobramento por etapas sucessivas, nas quais o herói mítico é testado, desenvolvido e atinge (ou não) o status heróico em definitivo.

Chamaremos aqui de enfrentamentos do herói, exatamente os desdobramentos sucessivos característicos da aventura heróica. O primeiro enfrentamento do herói passa-se, em geral, na sua própria origem.

O fato de o herói ter dois pais ou duas mães constitui uma característica essencial do cânone do mito do herói. Além do seu pai pessoal, há um pai “superior”, isto é, uma figura arquetípica de pai aparecendo ao lado da mãe pessoal, de igual maneira, a figura de uma mãe “superior”. Essa dupla origem, com as suas figuras parentais pessoal e suprapessoal opostas entre si, constela o drama da vida do herói. (...) Faz parte do cânone mitológico do herói-redentor ser órfão de pai e mãe, ter com freqüência um pai e uma mãe divinos e costumar ter como mãe a própria Mãe Deusa ou então uma “noiva de Deus”. Essas mães são mães-Virgens, mas esse fato não corrobora o que a psicanálise tentou reconhecer nele. Aqui a virgindade significa – como geralmente, no mundo antigo – não pertencer a nenhum homem específico, quer dizer, é essencialmente sagrada, não como pureza física, mas como abertura psíquica para Deus. Vimos que a virgindade é um aspecto importante da Grande Mãe, do seu poder criador, que não depende de nenhum parceiro masculino. Mas há também o elemento procriador masculino agindo nela. No início, no nível urobórico [etapa inicial onde a consciência ainda está envolvida pelo inconsciente, por tanto, indiferenciada]O nascimento do herói é atribuído, de maneira expressa, a uma virgem. A virgem e o leviatã que o herói tem de

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vencer são dois aspectos do arquétipo da mãe: ao lado da mãe sombria e terrível, há outra mãe, luminosa e benéfica. E, do mesmo modo que o aspecto assustador de dragão da Grande Mãe, a “Anciã do Ocidente”, é, como imagem arquetípica da humanidade, eterno, assim também o aspecto amigável, a abundante e imortalmente bela Virgem-Mãe do herói-sol tem o seu arquétipo eterno na “Donzela do Oriente”, pouco importando a passagem do matriarcado para o patriarcado. (Grifos nossos. NEUMANN, 1995, p. 108)

Para saber de onde vem o herói terá de reconhecer sua origem, mas – para isso, como condição necessária – diferenciar-se dela, ou seja, afastar-se dessa Grande Mãe inconsciente ou deste pai divino para ver-se diferente destes.

(...) Uma vez ele é um homem como os outros diante do coletivo; mas, ao lado disso, não só se sente estranho diante do coletivo, como também, no seu íntimo, experimenta algo que, apesar de fazer “parte dele” e quase “ser ele mesmo”, só pode ser designado como estranho, incomum e divino. Nos estados de elevação, quando age, reconhece e realiza como herói, ele se sente como “inspirado”, como algo extraordinário ou como filho de uma divindade. Assim, o herói, através da sua diferença em relação aos outros, experimenta o seu progenitor suprapessoal como bastante diferente do seu pai pessoal terreno, cuja natureza coletiva e corporal compartilha. (NEUMANN, 1995, p. 110)

Em certos mitos o fator heróico será um fator masculino justamente por designar o afastamento da

totalidade originária geradora, identificada com o feminino; arquetipicamente essa identificação/simbiose com a Grande Mãe, simultaneamente devoradora e protetora. Para que o feminino criativo do inconsciente possa ter uma relação de nutrição, não controladora, para com o herói, é preciso que este tenha se separado deste feminino, – neste sentido –, seja masculino. O masculino será a comprovação da diferenciação, da firmeza de vontade que preservará diferenciados o ego e a consciência superando a dependência e conforto da natureza infantil temerosa e desejosa da Grande Mãe. Por isso “(...) no mito do herói, o ego obtém a sua própria posição como fator masculino e justamente por isso a natureza dessa masculinidade deve ser também esclarecida como conteúdo simbólico.” (NEUMANN, 1995, p. 111) Por tanto, simbolicamente o herói é masculino, ainda quando a personagem heróica fosse feminina, na etapa introdutória do heroísmo mítico, ou seja, em relação a origem. “O grupo masculino é o lugar de nascimento, não só da consciência e da “masculinidade superior”, mas também da individualidade e do herói.” (NEUMANN, 1995, p. 115)

O outro enfrentamento, sempre relacionado com o primeiro, é o enfrentamento das conseqüências deste nascimento. Expulsa pelo pai-rei ameaçado, ou melhor dizendo, pela situação simbólica de inadequação entre a sua origem e a ordem estabelecida, a criança terá de enfrentar seu destino.

Em suma: a criança do destino tem de enfrentar um longo período de obscuridade. Trata-se de uma época de perigo, de impedimento ou desgraça extremos. Ela é jogada para dentro, em suas próprias profundezas, ou para fora, no desconhecido; de ambas as formas, ela toca as trevas inexploradas. E essa é uma zona de presenças insuspeitadas, benignas e malignas: aparecem um anjo, um animal solícito, um pescador, um caçador, uma anciã ou um camponês. Criado na escola animal, ou como Siegfried, debaixo da terra, entre os gnomos que nutrem as raízes da árvore da vida, bem como sozinho em algum pequeno cômodo (essa história já foi contada de mil formas), o jovem aprendiz do mundo aprende a lição das forças-semente, que residem precisamente além da esfera do mensurável e do nomeado. Os mitos concordam com o fato de ser necessária uma capacidade extraordinária para enfrentar e sobreviver a essa experiência. São abundantes as anedotas sobre infâncias marcadas pela força, pela inteligência e pela sabedoria precoces. Héracles estrangulou uma serpente que fora enviada ao seu berço pela deusa Hera. Maui da Polinésia laçou e retardou o sol – para dar à sua mãe o tempo necessário ao cozimento dos alimentos. Abraão, como vimos, alcançou o conhecimento do Único Deus. Jesus confundiu os sábios. O bebê Buda havia sido deixado, certo dia, sob a sombra de uma árvore; suas amas perceberam que a sombra não se moveu por toda a tarde e que a criança sentava-se de modo fixo, num transe iogue. (CAMPBELL, 2003b, p. 316-317)

De qualquer forma, associado ao nascimento do herói, estará sua necessidade de enfrentamento de

seus enormes desafios. (...) a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação, diretas e penetrar no domínio da experiência e da assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas”. Esse é processo conhecido na filosofia hindu e budista com viveka, “discriminação” [entre o verdadeiro e o falso]. (CAMPBELL, 2003, p. 27)

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Então, um desafio surge e o herói tem de partir para a luta, para a ação. Este partir simboliza a separação da “mãe”, do conhecido, do estabelecido.

Uma das partes do mito da luta do herói com o dragão é a conquista ou assassinato da mãe. A masculinização bem-sucedida do ego encontra expressão em sua combatividade e prontidão para expor-se ao perigo simbolizado pelo dragão. Foi a identificação do ego com o lado masculino da consciência que primeiro estabeleceu a divisão psíquica em opostos, o que permite que o ego enfrente o dragão do inconsciente. Essa luta é representada como penetração na caverna, descida ao mundo inferior, ser engolido, ou, enfim, “incesto com a mãe”. Vemos isso, de modo mais claro, nos mitos do herói apresentados como mitos solares; neles, a devoração do herói pelo dragão – noite, mar, mundo inferior – corresponde à jornada noturna do sol, da qual este emerge vitoriosamente após haver conquistado as trevas. (...) A questão é mais profunda e alcança um nível mais primordial. O medo do dragão não corresponde ao temor ao pai, mas a algo muito mais elementar: o temor do elemento masculino ao feminino em geral. (NEUMANN, 1995, p. 122-123)

O forte ego do herói parte, enfim, para a batalha definitiva. Essa luta é o enfrentamento mor da aventura

do herói. Tanto maior a luta, tanto maior o inimigo, mais força terá o herói de deter e usar para provar-se merecedor da conquista.

Com que perigos luta o herói? “Os perigos do inconsciente, o seu caráter despedaçador, destruidor, devorador e castrador, apresentam-se ao herói como monstros, prodígios, bestas, gigantes etc., que ele deve vencer. Uma análise dessas figuras mostra serem elas bissexuais como a uroboros, dotadas de qualidades simbólicas masculinas e femininas. Por isso, o herói tem ambos os Primeiros Pais contra si e deve vencer tanto a parte feminina da uroboros. (...) A estrutura do “pai”, pessoal ou transpessoal, é dúplice como a da mãe: positiva e negativa. Na mitologia, há, ao lado do pai positivo e criador, o pai negativo e destruidor. Ambas as imagens acham-se tão vivas na alma do homem moderno quanto estiveram nas projeções da mitologia.” (NEUMANN, 1995, p. 135)

Esses grandes perigos são símbolos do que deve ser conquistado, vencido. Têm ainda grandes semelhanças com a estrutura urobórica totalizante, por isso perigosa, pois homogenizadora das potencialidades individuais indiferenciadas na inconsciência.

Enquanto não se identificar com aquilo que chamamos de “céu” masculino, o herói não poderá iniciar a luta com o dragão. A identificação culmina com o sentimento de que ele é o Filho de Deus, encarnando em si todo o poder do céu. Daí vem a afirmação de que os heróis sempre são gerados por um deus. O auxílio celestial, o sentimento de ter raízes fincadas no alto, na divindade paternal – que não é cabeça da família, mas espírito criador –, é a única coisa que possibilita o combate ao dragão da Grande Mãe. Representando e defendendo esse mundo espiritual diante do dragão, o herói se transforma no libertador e salvador, inovador e portador da sabedoria e da cultura. (...) A transformação do herói na luta com o dragão é uma transfiguração, glorificação e até deificação. Trata-se do nascimento de um modo de ser superior da personalidade. (NEUMANN, 1995, p. 117)

Para vencer esses perigos e se transformar no herói adulto todo herói deve enfrentar seus grandes

inimigos. Estes se apresentam nas mais variadas formas: Dragões, Tiranos, Monstros, Deidades Malignas. Contudo, o sentido simbólico destes inimigos permanecerá sendo a oposição exata da busca do herói, ou seja, ser modelo de ganho baseado na própria força bem direcionada. Se o exemplo modelar do herói edifica a idéia do benefício do uso das virtudes, da coragem e também do respeito pela força do que é temível, o inimigo do herói, por tanto, se lhe opõe justo nisso: exemplo da acumulação paralisante.

A figura do monstro-tirano é familiar às mitologias, tradições folclóricas, lendas e até pesadelos do mundo; e suas características, em todas as manifestações, são essencialmente as mesmas. Ele é o acumulador do benefício geral. É o monstro ávido pelos vorazes direitos do “meu e para mim”. A ruína que atrai para si é descrita na mitologia e nos contos de fadas como generalizada, alcançando todo o seu domínio. Esse domínio pode não ir além de sua casa, de sua própria psique torturada ou das vidas que ele destrói com o toque de sua amizade ou assistência, mas também pode atingir toda a sua civilização. O ego inflado do tirano é uma maldição para ele mesmo e para o seu mundo – pouco importa quanto seus negócios pareçam prosperar. Auto-aterrorizado; dominado pelo medo; alerta contra tudo, para enfrentar e combater as agressões do seu ambiente – que são, primariamente, reflexos dos incontroláveis impulsos de aquisição que se encontram em seu próprio íntimo –, o gigante da independência autoconquistada é o mensageiro do desastre do mundo, muito embora, em sua mente, ele possa estar convencido de ser movido por intenções humanas. Onde quer que ponha a mão, há um grito (que, se não se eleva do exterior, vem – mais terrivelmente – de cada coração): um grito em favor do herói redentor, o portador da espada flamejante, cujos golpes, cujo toque e cuja existência libertarão a terra. (CAMPBELL, 2003, p. 25)

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Assim podemos concluir que a luta contra o dragão representa a luta pela afirmação da consciência que se discrimina do mundo e, também, afirma seus valores relacionais com o mundo divino. Isso representa uma possibilidade que os perigos que o herói tem de superar na verdade só lhe fortalecem! Os próprios dinamismos arquetípicos da Grande Mãe e do Pai estarão apoiando a conduta heróica que se afinizar com essa tendência, também inconsciente (estudada no processo de individuação) de superar-se. “O herói é apoiado pela mãe boa sob a forma da sua própria mãe e da virgem fraternal, quer fundidas ou como figuras distintas. O pai divino do herói intervém em situações decisivas como auxiliar ou permanece em segundo plano, na expectativa.” (NEUMANN, 1995, p. 139)

O padrão arquetípico da aventura do herói inclui uma ajuda inesperada que se lhe apresenta sempre que sua conduta permite honrar este encontro com a sua “sorte”. Reconhecer essa orientação falará da humildade associada a força do herói.

Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da jornada do herói se dá com uma figura protetora (que, com freqüência, é uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se. (CAMPBELL, 2003b, p. 74) Tendo as personificações do seu destino a ajudá-lo e a guiá-lo, o herói segue em sua aventura até chegar ao “guardião do limiar”, na porta que leva à área da força ampliada. Esses defensores guardam o mundo nas quatro direções – assim como em cima e embaixo –, marcando os limites da esfera ou horizonte de vida presente do herói. (CAMPBELL, 2003b, p. 82) Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas. Essa é a fase favorita do mito-aventura. Ela produziu uma literatura mundial plena de testes e provações miraculosos. O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana. (CAMPBELL, 2003b, p. 102)

Perceber aceitar e integrar essa ajuda mítica pode ser considerada também outro enfrentamento do

herói. Por tanto, seus enfrentamentos não exigem somente força, destreza e coragem, mas também discernimento.

Durante as lutas o herói deve enfrentar inúmeros desafios particulares de cada situação. É também comum que estes enfrentamentos sejam ou acabem sendo relacionados, finalmente, com a libertação ou conquista de uma cativa.

O alvo mitológico da luta contra o dragão é quase sempre a virgem, a cativa ou, de modo mais geral, a “preciosidade difícil de ser obtida”. (...) nos tempos primitivos, em que não existia o problema do parceiro, no sentido que tem para o homem moderno, a conquista e a libertação da cativa significavam muito mais. A luta por ela era uma forma de chegar a um acordo entre o masculino e o feminino – sendo este, no entanto, tal como os pais primordiais, transpessoal, ou seja, representante de um fator psíquico-coletivo da humanidade. (...)e nas aventuras e perigos envolvidos na luta por ela e na conquista que traz a sua libertação. (NEUMANN, 1995, p. 151) Na cativa, o elemento feminino já não se apresenta como arquétipo superior e transpessoal, como inconsciente subjugador, mas como criatura humana e parceira com a qual o homem pode se unir pessoalmente. E, mais do que isso, ela algo que clama por ser resgatado, liberto, redimido, e exige que o homem mostre ser um homem, não apenas como o portador do instrumento fálico de fertilização, mas também como potência espiritual, herói. O elemento feminino espera vigor, argúcia, desenvoltura, bravura, proteção e prontidão para lutar. (NEUMANN, 1995, p. 154) (...)Mas a cativa a ser libertada sempre é pessoal e, portanto, uma possível parceira do homem, enquanto os perigos que ele tem de supera são forças transpessoais, que prendem a cativa objetivamente ou impedem o herói subjetivamente na sua relação com ela. Além desses mitos de resgate e de morte do dragão, há aqueles em que o herói mata o monstro com a assistência de uma figura feminina amigável. Nessa série, a mulher – Medéia, Ariadne, Atena, por exemplo – é ativamente hostil ao dragão do arquétipo da mãe devoradora. Esse mitos nos mostram o lado fraternal-auxiliador e espiritual da mulher, ombro a ombro com o herói, como a sua amada, guia e auxiliar, ou como o Eterno Feminino redentor. Repetidamente se destaca nessas figuras – também nos contos de fada – o aspecto fraternal, cujo amor puramente humano e complementar, devido ao seu modo de ser diferente e a sua abnegação, assiste o herói no perigo. (...) Mãe, irmã, esposa e filha são os quatro aspectos naturais de toda relação masculina com o feminino. (NEUMANN, 1995, p. 155) Pela experiência com a cativa e com a auxiliadora, ou com uma das duas, aparta-se do mundo ameaçador-monstruoso do inconsciente, pertencente às mães, uma esfera que, como alma ou anima, forma a contra-parte humano-feminina do herói e da sua consciência egóica. A pesar de possuir características transpessoais, a figura da anima está mais próxima do ego, e o contato com

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ela não só é possível, mas é ainda a fonte de fecundidade. A intimidade do homem com o aspecto da “feminilidade superior” é uma ajuda importante na superação do ventre castrador, cheio de presas, da Górgona, que barra o caminho para a cativa, o acesso ao ventre verdadeiramente feminino, receptivo e gerador. (NEUMANN, 1995, p. 156)

A cativa feminina que é alcançada através das provas de estabilidade e força do ego heróico. Assim,

estas provas lembram os ritos da puberdade que permitem o acesso à maioridade e, com ela, à todas as prerrogativas adultas. Logo, o herói que vence as provas/rituais de iniciação torna-se adulto, possui a identidade masculina não mais infantilizada ou submetida aos Pais Primordiais (ou familiares) dentro do papel de filho, e então, faz por merecer a conquista de sua mulher.

A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende. À medida que ele progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa passa, aos seus olhos, por uma série de transfigurações: ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mis do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se pudesse alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto, serão libertados de todas as limitações. A mulher é o guia para o sublime auge da aventura sensual. Vista por olhos inferiores, é reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é condenada à banalidade e à feiúra. Mas é redimida pelos olhos da compreensão. O herói que puder considerá-la tal como ela é, sem comoção indevida, mas com a gentileza e a segurança que ela requer, traz em si o potencial do rei, do deus encarnado, do seu mundo criado. (CAMPBELL, 2003b, p. 117)

O enfrentamento deste feminino permite que se desdobre o casamento mítico do herói com a cativa ou

princesa. Os dois pólos diferenciados podem integrar-se. (Como na antiga fala alquímica: só aquilo que foi bem separado pode ser bem reunido!).

O casamento místico com a rainha-deusa do mundo representa o domínio total da vida por parte do herói; pois a mulher é vida e o herói, seu conhecedor e mestre. E os testes por que passou o herói, preliminares de sua experiência e façanha últimas, simbolizaram as crises de percepção por meio das quais sua consciência foi amplificada e capacitada a enfrentar a plena posse da mãe-destruidora, de sua noiva inevitável. Com isso, ele aprendeu que ele e seu pai são um só: ele está no lugar do pai. Assim expresso, em termos tão extremos, o problema pode parecer distante dos assuntos das criaturas humanas comuns. Não obstante, todo fracasso em lidar com uma situação da vida deve traduzir-se, no final, como restrição à consciência. As guerras e as explosões emocionais são paliativos da ignorância; os arrependimentos, iluminações que vêm tarde demais. Todo o sentido do mito onipresente da passagem do herói reside no fato de servir essa passagem como padrão geral para homens e mulheres, onde quer que se encontrem ao longo da escala. Assim sendo, o mito é formulado nos mais amplos termos. Cabe ao indivíduo, tão-somente, descobrir sua própria posição com referências a essa fórmula humana geral e então deixar que ela o ajude a ultrapassar as barreiras que lhe restringem os movimentos. Quem são e onde se encontram os ogros? São reflexos dos enigmas não resolvidos de sua própria humanidade. O que são seus ideais? São os sintomas do modo como ele percebe a vida. (Grifos nossos. CAMPBELL, 2003b, p. 121)

O retorno do herói, este seu último enfrentamento, pode ser até bastante trágico (no sentido leigo, ou seja, envolver morte súbita, traição, perdas etc.), como não é raro nos mitos. O fundamental, entretanto, não é o que se passa com o herói depois que retorna. Fundamental é ter retornado. Significativa é a sua volta vitoriosa dos perigos inconscientes que enfrentou, pois sua volta representa a valorização do lugar dos outros que têm como modelo e a valorização de sua própria história e lugar. Este é o aprendizado valorativo fundamental do herói: integrar o mundo visitado e o mundo vivido.

Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si – diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além. Não obstante – e temos diante de nós uma grande chave da compreensão do mito e do símbolo –, os dois reinos são, na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante, resume todo o sentido da façanha do herói. Os valores e distinções que parecem importantes na vida normal desaparecem com a terrificante assimilação do eu naquilo que antes não passava de alteridade. (CAMPBELL, 2003b, p. 213)

Efetivamente voltar de uma conquista pode constituir um enfrentamento heróico porque não necessariamente o herói pode estar disposto a afastar-se da situação que encontrou no novo mundo conquistado. Nesse sentido há ainda heróis míticos que têm de ser resgatados.

“O herói pode ser resgatado de sua aventura sobrenatural por meio da assistência externa. Isto é, o mundo tem de ir ao seu encontro e recuperá-lo. Pois a bênção do domicílio profundo não é abandonada com facilidade em favor da auto-dispersão do estado vígil. “Quem, tendo deixado mo mundo”, lemos, “desejaria retornar? Quem assim estivesse, lá ficaria”. E, no entanto, enquanto se estiver vivo, a vida chamará. A sociedade, que tem ciúme daqueles que dela se afastam, virá bater

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sua porta. Se o herói (...) não estiver disposto a retornar, aquele que o perturbar sofrerá um pavoroso choque; mas, por outro lado, se aquele que foi chamado apenas estiver sendo retardado – aprisionado pela beatitude do estado de existência perfeita (que se assemelha à morte) –, é efetuado um evidente resgate, e o aventureiro retorna.” (CAMPBELL, 2003b, p. 206)

Considerando os heróis gregos temos que estes além de um nascimento complicado, descendem de

um deus com uma simples mortal ou de uma deusa com um mortal, e por vezes lhes é atribuído uma "dupla paternidade”, aparecem os dois padrinhos (às vezes divinos) que se agregam aos pais carnais. Este nascimento já demonstra que, consoante com o pensamento grego, o herói, “aquele que é nascido para servir”, viverá a sua inalterável moira: o herói é descendente de um Deus e de um Mortal, está e estará entre essas duas naturezas, a divina e a humana, naturezas definidoras de identidades imutáveis enquanto a sua natureza fracassada ou imortalizada em seus feitos dependerá de como viverá a vida que tem de viver. Por mais que relute ou ronde em círculos o herói acaba por defrontar-se com seu destino e a partir daí preparar seu futuro depois da morte.

“(...)A palavra grega moîra (...) é parte, lote, quinhão, aquilo que coube a cada um por sorte, o destino. Associada a Moîra tem-se o seu sinônimo (...) Aîsa. Note-se logo o gênero feminino de ambos os termos, o que remete a idéia de fiar, ocupação própria da mulher; o destino é simbolicamente fiado para cada um. (...) O Destino jamais foi personificado [nas literatura homérica], e em conseqüência Moîra e Aîsa nunca foram antropomorfizadas: pairam soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas a categorias de divindades distintas. A Moîra é, em tese, fixo e imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. (BRANDÃO, 2001, p.140)

Considerando esta apropriação da palavra moira entendemos que o intransferível destino do herói o

leva, desde o nascimento, de encontro com as lutas que deverá travar. Esse destino é tão forte que mesmo os deuses, e até Zeus, todo poderoso, não pode forçar um destino diverso; ao contrário, Zeus é muitas vezes o executor dos caminhos da moira dos homens, heróis e outros deuses, cumprindo ele mesmo a sua própria.

Exatamente por nascer herói essa criança já vem ao mundo com “(...) duas virtudes inerentes à sua natureza e condição: a ΰµή (timé), a “honorabilidade pessoal” e a άρεή (areté) "excelência", a superioridade em relação aos outros mortais, o que predispõe a feitos gloriosos, desde a mais tenra infância.” (BRANDÃO, 2000, p. 23) Essa predisposição inata pode também atrapalhar bastante a vida do herói por facilitar que caia na hýbris, ou seja, que caia no descomedimento: perigoso e de conseqüências sempre inexoráveis.

“(...)A pior das hýbris é aquela em que o herói, sob o impulso de sua timé e areté, que afinal são outorga de um deus, seu godfather, seu ancestral, se lança na competição com o divino ou até mesmo na loucura de tentar ultrapassá-lo!(...) A timé e a areté, sufocada pela hýbris, fazem do herói vencedor uma vítima da vaidade e da exaltação quimérica. (BRANDÃO, 2000, p. 217)

Por tanto, há que se entender o pensamento grego sobre o heroísmo de forma a contemplar os

aspectos profundamente antagônicos da potencialidade heróica. Se por um lado o nascimento do herói lhe confere areté, ou seja, honorabilidade, o uso indevido desta vantagem facilmente lhe coloca na situação de descumprimento da medida, da ultrapassagem do métron, ou seja, do justo tamanho, do justo fazer, dentro da precaução devida e obediência às coisas como elas devem ser. Desobedecendo a sua medida, o seu “direito”, sobrevirá ao herói a hybris conseqüente e, assim, o cumprimento da moira de forma muito mais custosa, dramática ou mesmo letal.

Por tanto, por mais especiais que sejam, os heróis não escapam da conseqüência de sua hamartía e nem mesmo os seus descendentes. Obviamente os próprios heróis podem ter inclusive sua moira relacionada a hamartía de seus antecedentes familiares. O herói grego está dentro do mundo grego, como dissemos e neste mundo a palavra harmatía significa comumente “errar o alvo” no sentido de errar o caminho que se deve seguir, cometer um erro, uma falta, uma inadvertência. Mas é preciso entender que este erro grego não é jamais relacionado ao sentido cristão de erro como algo que o julgamento moral condenaria. Para os gregos não havia julgamento de intenções, erro e destino, para os gregos antigos, dentro do mundo mítico, são fatos, dados, feitos, realizações.

Uma harmatía é um ato, comportamento, atitude, um fazer indevido. Se uma hamartía é cometida dentro de uma família, dentro de um génos, ou seja de um membro da família para outro, essa falta deve ser reparada, vingada pelo parente mais próximo. “A essa idéia de direito do génos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber: qualquer harmatía cometida por um membro do génos recai sobre o génos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e descendentes “em sagrado” ou “em profano”. (BRANDÃO, 2001, p. 77). Por tanto, um herói poderia trazer tanto a vingança para sua família quanto, errando, jogar sobre seus descendentes provas muito difíceis e até uma maldição de extinção. Mais uma vez aqui se revela a ambivalência do caráter do herói no mundo grego.

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O que vai caracterizar os grandes heróis gregos será justamente a sabedoria nos momentos decisivos onde tiveram a serenidade de observar o métron, vingar a harmatía ou cumprir as conseqüências da mesmas e, assim, aceitar e cumprir sua moira que jamais excede à sua natureza entre homens e deuses.

“Os heróis gregos, embora não ultrapassem esta fronteira entre o humano e o divino, abrem a perspectiva de uma promoção de um mortal a um estatuto senão divino pelo menos próximo do divino. (...) A piedade, como a sabedoria, ordena, com efeito, não pretender igualar-se a um deus. Os preceitos de Delfos: `Sabe o que tu és´, `Conhece-te a ti mesmo´, não têm outro sentido. O homem deve aceitar seus limites. A heorização restringer-se-á, pois, excetuando os grandes heróis lendários, como Aquiles, Teseu, Orestes ou Hércules, aos primeiros fundadores de colônias ou a personagens que adquiriram aos olhos de uma cidade um valor simbólico exemplar(...). Nunca concernem a um personagem ainda vivo, mas a um morto que aparece, mais tarde, como portador de um numem, uma potência sacral temível, quer em virtudes de particularidades físicas extraordinárias: estatura, força, beleza; quer pelas próprias circunstâncias de sua morte, se foi atingido pelo raio ou se desapareceu sem deixar rastro, quer pelas maldades atribuídas a seu fantasma, que parece então ser necessário apaziguar.” (VERNANT, 1994, p.55) “O Herói é uma personagem especial, que sempre deve estar preparado para a luta, para os sofrimentos, para a solidão e até mesmo para as perigosas catábases à outra vida. As iniciações da efebia servem-lhe de escudo e de respaldo para as grandes gestas da vida, mas a iniciação nos Mistérios parece predispô-lo para a última aventura, para a derradeira agonia: a morte, que na realidade, o transformará no verdadeiro protetor de sua cidade e de seus concidadãos. E fato curioso, alguns heróis após a morte, passam a ter igualmente direito a um culto mistérico!.” (BRANDÃO, 2000, p. 51)