introduÇÃo 4 1 consideraÇÕes sobre o olhar12 3 … · em potencial, o que nos proporciona uma...
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INTRODUÇÃO .....................................................................................................................4
1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR...........................................................................12
1.1 O OLHAR COMO PROCESSO DE AUTO-CONHECIMENTO NOS MITOS DE ÉDIPO REI,NARCISO E NAS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA.....................................................................141.2 GRANDE SERTÃO: VEREDAS: POR QUE É QUE EU NÃO VI?.........................................................201.3 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A HISTÓRIA ..........................................24
2 OLHAR E APRENDER....................................................................................................29
2.1 "AS MARGENS DA ALEGRIA" E "OS CIMOS".................................................................................322.1.1 “Ver é ter à distância”.....................................................................................................................362.1.2 Às margens do invisível ..................................................................................................................432.1.3 Diálogo entre meninos: “As margens da alegria” e “Os cimos” .......................................................46
3 APRENDENDO A VER ...................................................................................................50
3.1 DE OLHOS VENDADOS: “SÃO MARCOS” .......................................................................................503.1.1 Duas visões em “São Marcos” ........................................................................................................563.1.2 Os sentidos da visão........................................................................................................................603.1.3 Bem-aventurados os que sabem ver................................................................................................. 65
3.2 O NARRADOR E SEU OLHAR: “A BENFAZEJA” .............................................................................713.2.1. Olhar para rever.............................................................................................................................733.2.2 Mula-Marmela: guia de cego...........................................................................................................783.2.3 Retrupé e Édipo: cegos e aleijados.................................................................................................. 80
3.3 A LUZ COMO METÁFORA: “SUBSTÂNCIA” ..................................................................................843.3.1 Ver é um desafio.............................................................................................................................89
4 VER O ESQUECIDO........................................................................................................95
4.1 “A MENINA DE LÁ” .........................................................................................................................1004.1.1 A palavra “de lá” ..........................................................................................................................1004.1.2 Palavra em movimento .................................................................................................................103
4.2 “UM MOÇO MUITO BRANCO” .......................................................................................................1074.2.1 Um olhar que toca ........................................................................................................................1074.2.2 O olhar do diferente......................................................................................................................110
4.3 “A TERCEIRA MARGEM DO RIO” .................................................................................................. 1184.3.1 Olhar e esperar ............................................................................................................................1184.3.2 Do outro lado do texto..................................................................................................................1214.3.3 Navegar é preciso.........................................................................................................................125
5 O ENCONTRO DO VELHO COM O NOVO: OLHARES ENTRECRUZADOS...........133
5.1 UM OLHAR PARA O VELHO: “UMA ESTÓRIA DE AMOR” .........................................................1345.2 EMPRESTA-ME O TEU OLHAR: “CARA- DE- BRONZE” .............................................................140
5.2.1 Em busca do “quem” das coisas....................................................................................................1465.2.2 Olhares multifacetados..................................................................................................................1525.2.3 A Casa de bronze..........................................................................................................................156
5.3 O VELHO ENSINA O NOVO A VER: “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA” ........................................1645.3.1 Discurso amoroso: de tardinha também se voa...............................................................................1665.3.2 O velho empresta ao jovem o seu olhar .........................................................................................169
5.4 UM OLHAR PARA O MISTÉRIO: "NENHUM, NENHUMA"...........................................................1755.4.1 Um olhar para a experiência..........................................................................................................1815.4.2 Um olhar para o passado...............................................................................................................184
5.5 AS CINZAS COMO METÁFORA: "ARROIO-DAS-ANTAS” ............................................................................1875.6 A ESTÓRIA REVISTA: "FITA-VERDE-NO-CABELO” ..................................................................................190
6 O OLHAR DO POETA ...................................................................................................201
6.1 OLHAR E ADMIRAR: “PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE” ........................................................................2046.1.1 Olhar para onde não se vê.............................................................................................................205
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6.1.2 O discurso infantil ........................................................................................................................2096.2 O MENINO PENSADOR: “CAMPO GERAL” ...............................................................................................216
6.2.1 Olhar para as pequenas coisas.......................................................................................................2226.2.2 O menino no homem ...................................................................................................................226
CONCLUSÃO ...................................................................................................................234
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................244
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INTRODUÇÃO
Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando. ("O Espelho", p. 437)
O desejo inicial deste estudo é apresentar uma faceta da obra de Guimarães Rosa, a
nosso ver, ainda pouco explorada, que é a construção das personagens infantis em sua obra.
Encontrar a infância como a encontramos, essencialmente nos textos em relevo, só foi
possível porque na leitura de toda a obra do autor, iniciada por Grande sertão: veredas,
captamos não um sentimento de infância propriamente dito, mas um sentimento de que o
mesmo ser que perfila as personagens infantis faz parte de um núcleo que move e impulsiona
todo o elenco rosiano. Várias vezes, ao lermos Riobaldo, encontramos o menino Miguilim ali
em potencial, o que nos proporciona uma visão do homem como um só, percorrendo em sua
solidão uma longa vereda, e carregando em seu ser a confluência de todos os tempos: o
presente, o passado e o futuro. Para nós, encontrar o Menino nos homens e mulheres
espalhados pela obra do autor foi um despertar para a notável capacidade de Rosa de criar um
homem único, cujas indagações transcendem até mesmo a faixa etária, com as suas
particularidades naturalmente.
Este homem aparece difundido, diluído pelos textos afora, como se em cada um
houvesse uma parte do outro. Riobaldo, nesse sentido, é aquele personagem nuclear, que,
fazendo parte de uma narrativa nuclear, para onde todas as outras convergem, simboliza um
homem em quem coexistem aglutinados todos os tempos. Por isso, não há como deixar de nos
voltarmos sempre a Grande sertão: veredas, pois lá estão as referências humanas, que
constituem nosso principal interesse no estudo da obra de Guimarães Rosa. Acreditamos que
o espírito do Menino lá se encontra, fazendo-se notar, pela primeira vez, no encontro de
Diadorim com Riobaldo. Neste momento, conhecemos a coragem do garoto Diadorim que se
funde com a natureza circundante, ao mesmo tempo que temos a visão do menino Riobaldo
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diante das demonstrações de força de Diadorim. Os significados deste primeiro encontro e
deste olhar ambos levariam consigo para a vida adulta.
Conscientes desta presença infantil oculta na grande obra de Rosa, podemos seguir
tranqüilos no encalço dos meninos visitados pela poesia do autor e do autor revisitado pela
poesia dos meninos. Isto porque, muitas vezes, não sabemos se o menino que nos fala é a
criança de Cordisburgo, que desde tenra idade conheceu as artimanhas do seu ser poético, ou
se esse homem que cresceu simplesmente aceita o sopro da infância que os seus personagens
lhe oferecem. Não havendo a necessidade de excluir uma ou outra possibil idade, ficamos com
as duas.
Sobre a obra de Rosa muito tem sido escrito e, por sua grandeza, o futuro deixa em
aberto diversificadas possibil idades de leitura. Estudos que privilegiam a sintaxe polêmica, o
ineditismo lexical, os temas metafísicos e outros tantos foram e ainda têm sido largamente
desenvolvidos em torno do trabalho do escritor. Todos estes recursos nos chamaram a atenção
e serviram como um incentivo para que prosseguíssemos na instigante tarefa de ler uma
escritura como a de Guimarães Rosa. Mas à medida que percebíamos estes recursos geniais e
surpreendentes, a presença de um outro, subliminar a estes, muito nos chamou a atenção.
Seduziu-nos a forma como o autor apresenta certos personagens cujos procedimentos
despadronizados nos propiciam um confronto que se inicia com o trabalho com a própria
linguagem, uma vez que esta corresponde justamente ao lugar marginal em que se encontram
os personagens com comportamentos questionadores da razão, do pensamento instaurado
pela lógica iluminista e racionalista. Ao questionar a razão como única forma de apreensão do
mundo, o autor cria uma linguagem que se torna o próprio questionamento. A constatação de
que este fator estava organicamente atrelado aos procedimentos de escrita do autor motivou-
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nos a buscar novo enfoque nas narrativas de João Guimarães Rosa, mas que não se prendesse
simplesmente aos aspectos ligados à linguagem, já ampla e ricamente explorados.
Na trilha deste raciocínio chegamos à conclusão de que se há um questionamento,
significa que há um olhar que vê de modo diferente, um olhar que brota de outras profundezas
e que possui uma qualidade bastante peculiar. Esta premissa tornou-se o ponto de partida
para o que viria a se constituir na singularidade do nosso trabalho, ou seja: alguns
personagens de Guimarães Rosa demonstram ter um olhar que, longe da turvação corriqueira,
penetra nas camadas invisíveis que deixaram de ser vistas por todos os que se acostumaram
demais a ver e não consideram que as experiências podem ser inaugurais. Este olhar desperto,
plurissignificativo e vazado de claridades pareceu-nos ter a capacidade de ressignificar a
própria vida, trazida à tona a cada novo dia. A definição do tema veio junto com a definição
dos personagens, nos quais este olhar pareceu-nos mais evidente.
Ainda que tenhamos tido vislumbres deste olhar a partir da narrativa fulcral que é
Grande sertão: veredas, foi na leitura das estórias protagonizadas por crianças, velhos e cegos
que esta particularidade ficou mais destacada. Exemplos típicos são a novela ou romancinho
"Campo geral" de Corpo de baile, e as narrativas de Primeiras estórias, as quais nos levaram
a pensar que, no fundo, todo o empenho do autor foi uma tentativa bem sucedida de revelar
um modo novo de ver, e que, para revelá-lo, ele precisou criar um modo novo de dizer. Foi
ficando cada vez mais claro para nós que os personagens rosianos caracterizam-se por um
olhar especulativo, indagador e introspectivo, e que também se deliciam com o que vêem.
Trata-se de olhares que conjugam num uníssono o que há dentro e o que há fora. É um Olhar
atravessado, limpo, sem turvações, alçando vôos no dentro e fundo de suas travessias.
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No conto "O Espelho", de Primeiras estórias, o autor tem oportunidade de teorizar
um pouco sobre o olhar. Antecedendo a narração, esta narrativa faz uma descrição de como
podemos nos iludir com os nossos olhos:
E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com quecresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetosinvertidos, daí seu desajeitado tactear; só pouco a pouco é que consegue retificar, sobre apostura dos volumes externos, uma precária visão. (ROSA, 1994, p. 438)
O que sobressai nas afirmações do autor é o caráter duvidoso do olhar. Ou seja, os
olhos não captam certezas, e o que eles vêem é apenas uma porção do que opera realmente na
coisa vista: "Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de
mim. " (Ibidem, p. 438) Este caráter enganoso do olhar vai inspirar várias narrativas em que
os olhos se dispõem como os órgãos responsáveis pela percepção mais das incertezas que
propriamente das certezas. Esta precariedade com que se olha vai ser um tema marcante nas
narrativas a serem apresentadas. Olhar, neste caso, deixa de ser um gesto automatizado e
ganha estatuto de postura filosófica e metafísica. Se o homem olha, não significa que esteja
vendo. Nas narrativas do autor precisamos rever o foco, o ponto de vista de onde vemos,
porque Guimarães Rosa sempre buscou ver as pessoas e as situações com olhos novos. Esta
necessidade lhe era tão essencial, que precisou criar uma escrita que fosse a tradução deste
olhar penetrante e incomum. Incomum não porque exótico mas porque conseguiu captar as
sutilezas onde estas pareciam não existir. Assim, as crianças, e também os loucos, os velhos e
os cegos configuram um novo paradigma do olhar que se desloca do comum para o insólito,
não porque eles sejam seres extraordinários, mas porque conseguiram manter acesa a flama
que os faz ver onde muitos já deixaram de fazê-lo. Sem dúvida que algumas situações são
acentuadas e nos tiram ainda mais do lugar, como é o caso de algumas estórias que vamos
mostrar. Mas se olharmos atentamente, veremos que onde parecia estar o sobrenatural ou o
fantástico, reside sim, um discurso que soube preencher as lacunas dos nossos esquecimentos
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e turvações diárias. Exemplos eficientes disso são "A menina de lá", "Um moço muito
branco", "Partida do audaz navegante" (de Primeiras estórias) e "Campo geral" (de Corpo de
baile).
Vale ressaltar que não só os personagens infantis revelaram esta habil idade bem
apurada, mas que em muitas estórias, ao lado delas e dialogando com elas, encontramos os
velhos, os quais, ocupando um patamar de quem já viveu todas as infâncias e encontrando-se
no limiar da existência, conseguem lançar sobre o mundo circundante um olhar tão inusitado
quanto o das crianças. Como a criança, o velho concentra em si a potencialidade do tempo:
para o segundo, o tempo que passou; para o primeiro o tempo que é e o que virá. Nas
sociedades ditas civil izadas o velho e a criança ocuparam e ainda continuam ocupando
posições marginais, uma vez que não correspondem às necessidades da realidade
instrumentalizada. Ambas as categorias possuem um traço que destoa do previsto e do
utilitário, e também porque o seu modo de viver ainda parece inadequado aos padrões
exigidos pela sociedade. Poderíamos dizer que eles são, de certo modo, excluídos e muito
freqüentemente apenas "tolerados" pelas instituições, sejam familiares, religiosas e/ou outras.
Porque o diferente constitui um incômodo e um desafio num mundo padronizado. A
freqüência com que os velhos aparecem na obra de Rosa nos faz pensar em sua função
espiritual em relação aos outros personagens, principalmente com relação aos mais jovens e
às crianças. Vó Izidra e Mãitina em "Campo geral", a velha e o velho de "Nenhum,
nenhuma," Manuelzão em "Uma estória de amor", as velhinhas de "Arroio-das-antas” , Lina,
em “A estória de Lélio e Lina”, Sigisberto, em “Cara-de-Bronze” e a avó de "Fita-verde-no-
cabelo" são apenas alguns exemplos da presença destes velhos que não cessam de,
silenciosamente ou não, desempenhar importantes papéis ao lado de crianças e jovens.
Veremos que muitas vezes, até por trás de uma aparente casmurrice, como é o caso da avó
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paterna de Miguilim, em "Campo geral", a tendência do velho é a de provocar a reflexão.
Parecendo ter a função de um superego dessas crianças, são os velhos que lhes mostram,
diante de situações obscuras - quando o herói está em apuros - soluções que as façam
prosseguir. Também eles não cessam de olhar, só que o que vêem está alinhavado ao que já
viram, o que lhes dá um sentido da premonição, ou de uma memória de futuro.
Nossa pesquisa atenta para os verbos “ver” e “olhar” , muito presentes no conjunto da
obra rosiana, como se o autor tivesse uma grande necessidade de captar o mundo
especialmente pelo sentido da visão. Prosseguindo no encalço desta singularidade,
verificamos que em alguns momentos este olhar faz parte de uma dialética expressa
paradoxalmente pela incapacidade de ver. Ou seja, deparamo-nos com vários personagens que
foram, por um motivo ou outro, privados da visão e que, não obstante, não deixaram de olhar.
Parece um paradoxo falar em personagens privados da visão quando o que se busca
defender é a força luminosa de um olhar. No entanto, a presença dos cegos na obra de Rosa
é apenas a outra extremidade da questão. Porque, se por um lado, o autor cria uma
ambientação para aqueles seres que vêem tão amplamente, isto não significa dizer que na
contramão deste olhar não exista o tema da privação desta possibil idade, o que nos leva a
refletir sobre a maleabil idade com que o autor trata o tema, colocando-nos diante de
personagens que ora vêem demais, e de outros que, não obstante não enxerguem, vêem o que
só poderiam ver justamente porque são ou estão cegos. Esta dialética do olhar nos ajuda a
confirmar as nossas hipóteses acerca de uma dedicação singular do autor ao tema,
confirmando que tudo na obra de Guimarães Rosa faz parte de uma coesão interna,
responsável pela sensação de que existe uma harmonia mesmo dentro do conflito e que os
seus personagens não são fragmentos do homem, mas constituem a sua totalidade.
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No entanto, é preciso lembrar que a ênfase no olhar na obra de Rosa não se
especifica apenas pelo sentido da visão propriamente dita. Sem dúvida que este sentido é
enormemente explorado pelo autor, e é o que mostraremos na apreciação de várias passagens.
Nesse aspecto o motivo infantil merece ser visto como um tema simbólico, pois a presença
da criança nos devolve um foco, uma camada do olhar em que o sentimento de renovação é
sempre despertado. A criança, de certo modo, nos obriga a movimentar o olhar.
Henriqueta Lisboa, nesse sentido, traz uma contribuição importante aos estudos
rosianos ao perceber o que ela chamou de "presença pertinaz da infância" na obra de
Guimarães Rosa. (LISBOA, 1991, p. 134) A autora considera a semelhança entre Rosa, as
crianças e os primitivos. Refere-se também a uma intuição amorosa do autor, ao seu gosto
pela vida e pela renovação desta através da escritura. A mediação entre esse espírito
"delirante" da criança e o leitor é feita por meio de uma escritura também dinâmica (seja do
ponto de vista sintático, lexical, semântico), mas que é encarada como uma atividade lúcida,
que percebe e valoriza certo instinto ontológico manifestado desde a mais tenra idade.
Radicalizando essa crença no espírito criador de Guimarães Rosa, aliado a um sentimento de
infância do qual o autor nunca se desvinculou, Lisboa chama a atenção para o fato de que
"Rosa é um criador delirante, suponho, exatamente, porque possui o sentimento da infância."
(LISBOA, 1991, p. 135)
Assim, buscaremos enfocar nos personagens de Rosa um modo de ver e de
apreender as experiências. Nesse sentido, a criança de Guimarães Rosa representa uma radical
oposição aos efeitos devastadores da crença na razão instrumental. Se os outros personagens
chamam a nossa atenção, as crianças o fazem de maneira especial, porque suas vivências e
percepções são radicalizadas.
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Representando a totalidade do ser humano, a criança simboliza, conforme nos diz
Jung,
tudo que é abandonado, exposto e ao mesmo tempo o divinamente poderoso, o começoinsignificante e incerto e o fim triunfante. A 'eterna criança' no homem é uma experiênciaindescritível, uma incongruência, uma desvantagem e uma prerrogativa divina, umimponderável que constitui o valor ou desvalor último de uma personalidade. (JUNG, 2000,p. 179)
Encontramos na palavra rosiana uma tentativa de fundar ou de encontrar sempre o
espírito de vida novo que a constitui, pois estamos apreciando um autor que prima pela
exploração dos recursos adormecidos da palavra e que fundou, mais que uma escrita, uma
variedade de enredos que se harmonizam e respondem a esta escrita. Não só enredos, mas
uma variedade de personagens cuja singularidade compõe este ideal de fundação, que reside
na diferença, naquilo que inaugura certo sentimento novo. Crianças, velhos, prostitutas, cegos,
visionários, homens-bicho fazem parte desta família de singulares e excluídos, e que nas
narrativas de Guimarães Rosa fundam, ao lado da palavra, um universo novo, desconhecido.
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1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR
Nem sempre é possível saber o que vem primeiro: fazemos perguntas para ver
melhor, ou precisamos ver melhor para melhor perguntarmos? Não importando a ordem a a
não ser como um jogo que nos dê a dimensão desta problemática dos personagens rosianos,
seguiremos nessa trilha em que se configuram, como eixo, a tensão entre os opostos,
solucionada no próprio processo de perguntar, aprender e ver – ou, mudando a ordem dos
verbos - ver, perguntar e aprender. Dizemos tudo isso a fim de especificarmos a
singularidade ou a dimensão do olhar na obra de Guimarães Rosa, que é, no fundo, o olhar
direcionado ao aprender. Em Rosa, nunca é demais dizermos, a mutabil idade constante das
coisas é vivida integralmente, não só nas situações apresentadas nos enredos, mas no que diz
respeito à linguagem movimentadíssima e irrequieta. O Real é colocado não como uma
verdade, mas como ambigüidade, e, por isso mesmo, questionado. As certezas são corroídas
de diversas formas, ininterruptamente. E esta desconstrução das certezas está implícita,
entrelinhavada no tecido que a sua linguagem não pára de tecer. Neste tecido, é possível se
amarrarem muitas texturas diferentes, advindas de várias origens, e o resultado da costura é
sempre inesperado. Toda a situação proposta no discurso rosiano anda na contramão da
história do pensamento ocidental que, ao longo dos séculos, buscou “domesticar” a nossa
percepção da realidade, criando uma inteligibil idade anterior à nossa percpeção das coisas.
Nesse sentido, Antônio Jardim faz uma crítica à linearização deste tipo de conhecimento que
desconsidera a ambigüidade como uma instância importante e necessária para a experiência
da verdade:
Produzimos instrumentos e os generalizamos, em todos os níveis e em todas as dimensões.Instrumentalizamos e generalizamos toda a realidade por meio de um instrumento e de umgênero que é entendido e colocado como perene – a idéia, o maior de todos os instrumentosjá inventados pelo ser humano. Conformou-se assim o saber no Ocidente comoconhecimento do gênero a priori, perdeu-se o sentido de verdade como o que se manifesta e
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se oculta, se vela se desvela, se vela e revela. A partir de então, procuramos uma identidadesem diferença, uma medida pela certeza e uma representação pela semelhança. (JARDIM:2003, p. 5)
Cremos que todos os personagens destes rincões do Brasil que Rosa nos oferece
como paisagem humana - para muitos desconhecida, até mesmo dos próprios brasileiros - são
seres perseguidos por um desejo de resposta acerca dessa contínua ambigüidade do Real. Não
é possível mensurar os seus procedimentos pelos critérios das certezas, assim como não é
possível compreendê-los pelo crivo da razão. Somente numa tentativa de ver como processo
de velamento e desvelamento é que as chances de os apreendermos se tornam mais plausíveis.
Por meio de uma leitura e interpretação destes personagens compreendemos, sobretudo, que a
verdade é, de fato, inapreensível. Não será pela resposta que este homem terá chances de
chegar a uma compreensão do Real, mas por meio de perguntas. E é fazendo perguntas que
ele prossegue. Nas narrativas de Rosa os personagens olham muito, porque perguntam muito,
porque querem saber. E para saber é preciso, sobretudo, olhar. Este desejo de olhar e de
compreender revela a inserção do homem no mistério que é o Cosmo. Este mistério, é o que
acredita Guimarães Rosa, poderá ser melhor sondado e depurado numa literatura que esteja
impregnada dos conteúdos que constituem a condição humana, muitos deles insondáveis a
“olho nu” . Em entrevista ao seu tradutor Gunter Lorenz, Rosa reflete sobre o que espera de
sua literatura: “...Por isso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que
transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. A lógica,
prezado amigo, é a força com a qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas
superando a lógica é que se pode pensar com justiça.” (LORENZ, 1991, p. 93)
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1.1 O OLHAR COMO PROCESSO DE AUTO-CONHECIMENTO NOS MITOS DE
ÉDIPO REI, NARCISO E NAS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA
No capítulo 1, da abertura da Metafísica, Aristóteles assim reflete:
Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer dassensações, pois, fora até da sua util idade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todasas outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operarcoisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todosos sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre.(ARISTÓTELES, 1978, p. 12)
A reflexão de Aristóteles acerca deste sentido, a seu ver, privilegiado, pode ser uma
porta de entrada para interpretarmos alguns mitos em que o sentido da visão foi empregado
como porta para a percepção, mas de forma contraditória. Paradoxalmente, algumas vezes, é
preciso impedir os olhos de verem, a fim de que o que estava velado, seja, enfim, desvelado.
Neste sentido, a exaltação do sentido da visão, proposta por Aristóteles, tem outras
repercussões na obra de Guimarães Rosa, por ser esta justamente o lugar ideal no qual o lado
oculto do visível florescerá.
Inspirados nas reflexões que o olhar nos tem trazido, não podemos nos esquecer de
alguns mitos ou mitologemas em que a visão e a perda desta como processo de auto-
conhecimento é significativamente enfocada. O mito de Édipo Rei, por exemplo, apresenta
teias de significados que não se esgotam e que ainda hoje dizem muito ao homem e à
sociedade de nossa época. Encontramos, neste mito, um homem em busca da verdade, mas
que, diante da revelação trágica desta, vê-se totalmente tensionado pelo seu passado, pela
inevitabil idade com que o destino se cumpre, e pela sua impotência diante dele. Deste modo,
se Édipo é aquele que quer saber, e que quer realmente ver, após consegui-lo, faz o processo
oposto, ou seja, prefere fechar os olhos, cegando-se literalmente. O seu gesto de furar os olhos
tem para nós um significado muito especial. Como veremos mais à frente, na contramão da
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visão, a perda desta não se configura como falta ou lacuna, mas como um outro canal que é
acionado quando há a privação da capacidade física de ver. Mais do que simples cegueira, o
que vemos é um outro processo de enxergar, desencadeado em função da privação da visão.
Os significados da cegueira auto-provocada por Édipo, ainda que muitos, podem ser
resumidos para nós em uma faceta: ao furar os olhos é que Édipo se volta para onde ainda
não fora, ou seja, para o seu interlocutor interno, por meio de quem encontrará outros
caminhos de conhecimento da natureza humana e de si mesmo . Até perder os olhos, Édipo
buscou interlocutores fora de si, perguntando, indagando, decifrando enigmas, sempre voltado
para o outro, para as pistas oferecidas pelo outro. Na tentativa de traçar o mapa de sua história
pregressa, de reconstituir sua origem, ele se lança para fora, e todos os seus gestos são
impulsivos, dirigidos para a exterioridade. Sua inteligência e poder lhe propiciam decifrar o
enigma da terrível esfinge, e coincidente e ironicamente, a resposta que ele dá a ela diz
respeito a sua humanidade. É ele mesmo a resposta, é o homem. Mas Édipo precisava passar
por muitas provações para encontrar a verdade e o caminho do auto-conhecimento. O fato de
ter destruído a esfinge com o seu raciocínio e a resposta certa libertou o povo de Tebas do
castigo e da expiação, dando a Édipo respeito diante dos tebanos. Por outro lado, o herói
trágico precisava de muito mais para ver-se. Édipo tinha pela frente a árdua tarefa do auto-
conhecimento, e o primeiro passo fora a descoberta de sua origem. Os presságios funestos do
oráculo, dos quais ele tanto fugira, mostraram-se inevitavelmente para ele, e era esta verdade
que ele precisava ver, sem, ao mesmo tempo, a ela sucumbir.
Poderia Édipo fugir do seu destino? Tal pergunta aponta, no fundo, para uma outra
de caráter mais universal: pode o homem fugir do seu destino? Mas Édipo, novamente,
movido pela impulsividade do seu comportamento, diante da verdade da qual fugira e para a
qual se lançara todo o tempo, rasga os olhos. Está aí colocada a desmedida, a desmesura que
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gera e alimenta os acontecimentos da tragédia. Édipo é vítima da própria desmedida e, quem
sabe, da própria descompostura do destino. A partir do momento em que fura os olhos,
começa uma nova estória para Édipo.
Esta passagem é extremamente inspiradora para nós e para a perspectiva do nosso
trabalho, porque acreditamos que a partir dela uma mudança radical vai se operar no seio
deste homem perturbado por toda sorte de inquietações. Sua jornada daqui para a frente é
impulsionada por uma outra visão, que é a visão de dentro. É neste sentido que uma
apreciação deste mito e de outros, que exporemos mais adiante, se faz tão necessária.
O que o mito de Édipo tem a nos ensinar? De que maneira a tragédia de Sófocles
pode contribuir para uma expansão das nossas reflexões sobre os atos do olhar na obra de
Guimarães Rosa? O que há de comum entre estes olhares? Longe de desejarmos fazer um
estudo comparado dos mitos e da obra de Rosa, o que buscamos com estas referências aos
mitologemas clássicos é mostrar que o anseio pelo conhecimento é comum ao homem de
todas as épocas e de todas as culturas. Outro ponto é que a busca deste conhecimento é um
processo doloroso e muitas vezes dificultado por uma série de contingências que atravancam a
revelação da verdade tão almejada pelo homem, na busca da decifração do seu destino,
destino que, ao se cumprir, é atravessado por situações inóspitas, repletas de contrariedades.
Mas neste processo, o homem aprenderá a ver. E, paradoxalmente, é justamente a forma como
ele vê que interfere de forma comprometedora no seu processo do conhecer.
Dentro de uma perspectiva fenomenológica do olhar, o mito de Narciso é, ao lado do
de Édipo, uma narrativa muito inspiradora, pois neste caso há um aprendizado estreitamente
ligado aos atos do ver. Na verdade, este aprendizado, para ambos, Édipo e Narciso, se dá de
modo paradoxal, se pensarmos em como a relação de ambos com a visão ou com a
experiência da visão ocorre nas adversidades. Não pretendemos fazer um estudo comparado
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desses dois mitologemas, mas de certo modo buscaremos apontar aqueles pontos fulcrais em
que para ambos a verdade ou a busca da verdade e o encontro com esta se resolve na antítese
“abrir e fechar os olhos” .
Debruçando agora um pouco sobre o segundo mito, vemos que Narciso abre os olhos
para si mesmo, negando ou subvertendo os presságios. Édipo fecha literal e metaforicamente
os olhos ao se dar conta de seu destino, do cumprimento de um destino traçado. Abrir e fechar
os olhos são dois gestos que, nesse caso, se complementam. Um para ver melhor: fechar.
Outro: abrir para penetrar em si mesmo, beber-se, e afogar-se na própria fonte, no próprio
espelho, onde se confundem vaidade, encantamento e perplexidade diante da própria imagem
nunca vista. Narciso nunca se viu, nunca aprendeu a se ver, e não se vendo, nunca soube ver o
outro. Desfaz esta cegueira, atirando-se radicalmente na própria imagem. Sedento de si
mesmo, entrega-se, anula-se para, quem sabe, transcender a própria materialidade de sua
imagem. Terá sido necessária esta morte, provocada pela sedução do olhar, para que Narciso
renascesse? No lugar em que ele se afoga nasce uma flor, uma promessa. Como na obra de
Rosa, elementos naturais sempre surgem, aqui e ali : um tucano, um vagalume, o rio que corre
sempre se renovando.
No entanto, se Narciso ironicamente sucumbiu pelo que seria uma dádiva, sua
beleza extremada, e pela sua visão turva e inadequada, o mesmo não se pode dizer sobre
Édipo, que, mesmo quando traído pelo chamado do olhar, e em seguida pela privação deste,
pôde em um outro momento ter sua visão restaurada num plano existencial. Édipo teve a
oportunidade de aprender. Fazendo uma analogia com o conto "São Marcos", do livro
Sagarana, observamos que só a falta da visão é que trouxe nova presença deste mesmo
sentido, ampliado para o espaço interno e até mesmo para a escuta dos outros sentidos que
foram despertos. Em Édipo a falta resgata, restaura uma nova janela: é abertura. Restaurado,
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Édipo conquista nova visão, a de dentro, e pode recomeçar em paz e com dignidade a sua
jornada. O protagonista de "São Marcos" também, nos seus minutos de cegueira, penetra em
recônditos insuspeitados antes. Aprende a respeitar as diferenças, a ver que o outro é uma
realidade tanto quanto ele próprio, e que há outras formas de existência.
Miguili m, na novela “Campo geral” , até os oito anos também não precisou aprender
a desenvolver toda a força do seu olhar interior? O que terá acontecido quando ele recupera a
qualidade de sua visão ? Isto não nos responde a narrativa genial de “Campo geral” , porque, é
a partir justamente do final, que um novo capítulo poderia ser começado. Miguilim vai ver
agora com os olhos de fora. Édipo sempre viu com os olhos de fora, mas precisou perdê-los
para ver a partir de outro campo visual. Narciso é seduzido pelo chamado do seu olhar. Ele
estava condenado a não se ver, ver-se seria morrer. Mas ele o faz, confundindo-se consigo
mesmo, vendo em si o outro. Não terá sabido ver? Ou no fundo já sabia que olhava a si
mesmo? O que estes mitos nos ensinam? Como poderão dialogar com as narrativas de
Guimarães Rosa? O que podemos responder é que eles já estão em intenso diálogo, e que nos
provam mais uma vez que o grande e eterno problema do homem é conhecer-se. E para isto,
precisa olhar.
A radicalização dramática a que são levados estes mitos deixa vir à tona, escapar e
realçar o que de mais importante há neles, que é ao que nos temos dedicado nesta pesquisa:
como se dá o aprendizado através do olhar. Este olhar que vê e capta o mundo do inteligível e
da transcendência – porque, conforme dissemos, por trás do visível há o invisível à espera de
ser visto e decifrado.
Em “Campo geral” , Miguili m tem nas mãos um enigma. É o bilhete que Tio Terez
lhe entregou sigilosamente e lhe pede que entregue à mãe. A partir da posse desse bilhete, o
menino começa a se inquietar com todo tipo de indagações. Agora ele queria saber as
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diferenças entre o certo e o errado, ele queria descobrir o que é o agir correto. Ele desejava
decifrar o enigma. Deveria entregar o bilhete? Esta dúvida é mais um desafio para o caminho
do aprendizado do menino que quer, obsessivamente, entender. Por isso faz tantas perguntas.
Na palavra enigma significando "o falar por meios-termos, dizer veladamente, dar a
entender", como a define Brandão (2001, p. 259), está implícito o desejo de olhar. Porque é
justamente nesse não desvelar-se totalmente, base de todo enigma, que reside o seu aspecto
sedutor. Quanto mais enigmático mais desejamos olhar, mesmo que corramos o risco de
sermos devorados pela esfinge. O que se vela parece estar sempre à espera de um olhar
espontâneo e profundo que o possa revelar, torná-lo visível. É especialmente nesse aspecto
que o enigma nos seduz. Decifrar um enigma representa sair das trevas para a luz. E neste
sentido, podemos pensar que imbricado ao ato de educar, olhar e aprender, está o misterioso
processo de decifrar. O mito do mais belo dos homens assemelha-se ao de Édipo. Narciso se
perde no momento em que se encontra. "Sin non uiderit."
Édipo se perde no momento em que descobre a sua identidade. Mas voltará depois
com a visão interior recuperada, ao lado de sua filha Antígona. Neste aspecto o mito de Édipo
aponta para uma esperança. Em Narciso a alegoria ou metáfora desta esperança é a flor que
nasce nas águas em que ele se afogou. Miguili m já nasce privado da visão clara, mas fortalece
seus olhos de dentro. José, em "São Marcos", ganha força para ver com os outros sentidos e,
principalmente com a intuição, somente quando perde a luz dos olhos. Todos esses
personagens e muitos outros têm enigmas para decifrar. E passam por verdadeiras provas de
iniciação, cada qual a seu modo. Para sobreviver às emboscadas e sair das trevas para a luz, o
iniciado precisará passar por uma profunda educação ou reeducação do olhar. Porque ter
olhos não significa necessariamente saber ver.
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Tirando-nos do lugar, tensionando a lógica formal com um universo aparentemente
não-lógico, ou fora da ordem, seja no que diz respeito aos enredos, à sintaxe e ao léxico
singular e constantemente reinventado, as narrativas de João Guimarães Rosa são um convite
a olhar o que há de invisível em nós mesmos: no enunciado, por trás do enunciado, no
discurso do narrador que às vezes fala como um anti-narrador, justamente porque se lança ao
jogo sedutor do velar e do desvelar.
Nesse sentido, a obra de Rosa é um grande enigma, um processo constante de
decifração para o leitor. E é por isso, também, que os mitos abordados estão tão próximos da
obra deste autor, porque, como eles, a obra rosiana exige um olhar corajoso, que aceite o
desafio da esfinge voluptuosa, ou seja: a decifração mesma do texto, tecido com as linhas do
mistério, dos segredos e do desejo.
1.2 GRANDE SERTÃO: VEREDAS: POR QUE É QUE EU NÃO VI?
Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava?” (Grande sertão: veredas, p. 98)
O homem de Guimarães Rosa deseja um mundo ordenado, em que o bem esteja
separado do mal. No entanto, suas percepções do mundo dizem respeito a um mundo em que
ver, organizar, esclarecer só se organizam nas tensões.
Em Grande sertão: veredas estas intenções são reiteradas e metaforizadas na relação
do homem com o sertão, que, por sua vez, representa muito mais que o espaço geográfico tal
como o conhecemos. Para mapear este sertão seria preciso uma geografia que se propusesse a
desenhar, menos que os caminhos, os descaminhos percorridos pelo homem. Riobaldo é o
peregrino de um sertão literal e metafórico, mas dissociado, para quem os mapas utilizados
em seu desbravamento são encontrados à medida que ele o vai percorrendo, ou então, são
por ele mesmo reinventados. O mote "Viver é muito perigoso", que se repete durante os
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relatos do protagonista, ou "O sertão é o mundo" mostram que o ponto de partida para a
reflexão é a busca de localização em determinado espaço, e que, somente a partir da
demarcação deste e do reconhecimento de seus limites será possível travar os embates entre o
mundo de fora e o de dentro. Ou seja, a realidade externa é comparável à interna, e a alegoria
sertão/mundo seria suficiente para revelar que viver requer a capacidade de encontrar saídas,
trilhas, uma vez que o sertão não é um lugar de fácil acesso. O sertão é um tema de reflexão
para o protagonista: "Sertão,- se diz-, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De
repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”(ROSA, 1994, p. 244), Ou: “Sertão
é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão
é quando menos se espera; digo.” (ROSA, 1995, p. 184); e ainda esta concepção que beira ao
metafísico: “Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais
certa e de mais juízo.” (ROSA, 1994, p. 184). Nesta última proposição, fica clara a referência
espacial que parte do centro, do núcleo para as periferias, bem como fica mostrado, de forma
implícita, por meio da linguagem do sertanejo, que as verdades só são válidas se questionadas.
Revela-se, deste modo, a dificuldade de se estabelecer fronteiras rígidas entre o que é e o que
não é, entre a lucidez e a insanidade, entre a certeza e a dúvida. Estas tensões transbordam na
fala rude e ao mesmo tempo sofisticada do jagunço, porque suas diversas e constantes
especulações se estabelecem a partir de um espaço físico, geográfico, demarcado, mas como
profícua metáfora responsável por ocultar e revelar outro lugar: o da indagação, o do
perguntar que não cessa, e para o qual não há demarcações possíveis. Assim, o sertão mineiro
configura-se como uma perfeita alegoria de um sertão universal, porque extrapola as marcas
do regionalismo e eleva o homem, sem que este saia do seu lugar, à condição de um
desbravador que tem como meta maior os desafios impostos não apenas pelo seu espaço
geográfico, mas também pelas limitações representadas pelo grande SERTÃO, que é o
mundo, ou a própria vida.
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A capacidade ou o desejo de indagar, em Riobaldo, são antigos, e o acompanham até
a maturidade. Sua racionalidade brota justamente de suas percepções sensoriais, no que diz
respeito seja à sua relação com o sertão, à sensualidade experimentada no amor por
Diadorim, ou até mesmo aos sentimentos ambíguos e confusos que nutre pela imagem ou
presença do Diabo. Sobre esse ponto é bom nos lembrarmos das reações físicas do
protagonista após o possível encontro e pacto com o Diabo nas Veredas Mortas. Riobaldo
apresenta várias reações físicas, e os seus sentidos parecem mais apurados. No entanto,
mesmo que tenha conquistado a clareza de que precisava para liderar o bando de jagunços na
batalha definitiva, as interrogações não cessam de o importunar, e a maior de todas, metáfora
grandiosa do romance, refere-se à existência ou não do Diabo. Sem dúvida, esta é a grande
pergunta de Riobaldo, da qual só um olhar prodigioso poderá libertá-lo. A esta pergunta alia-
se o relacionamento ambíguo com Diadorim, que é a causa de sua alegria, mas também de
mais perguntas que o afligem. Mas, para esta interposição do destino, ele não conseguiu um
olhar apropriado, e o mistério acerca da verdadeira natureza de Diadorim só lhe foi desvelado
quando eles já não podiam mais realizar ou consumar o seu destino amoroso. Diadorim é a
"neblina" de Riobaldo, confundindo-o, seduzindo-o e afastando-o. Conforme Fernando
Correia Dias, sobre Riobaldo, é sempre bom lembrar "o seu sentido de mistério, que nos
lembra também, como outros aspectos, o cunho medieval de sua estória. O destino o intriga.
O risco o fascina."(DIAS, 1991, p. 406)
Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, embora tente demarcar os territórios e
estabilizar as tensões, deixa claro no seu discurso que isto é tarefa impossível e que só poderá
encontrar a harmonia na aceitação da própria diversidade e multiplicidade que é o mundo.
Neste aspecto é que o sentido da visão, ampliado aqui para o da percepção, é valiosíssimo,
pois é a partir da visão perceptiva que este mundo pessoal e do próprio sertão (onde vivem e
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convivem todas as alteridades do protagonista) poderá ser equacionado, flexibil izado dentro
de suas potencialidades e contrariedades. Dentro desta ótica, outro personagem pungente de
Guimarães Rosa é Miguili m, protagonista de “Campo geral” . Menino de ainda nem oito anos,
ele possui uma percepção que também resulta num sincero e obsessivo desejo de organizar e
compreender. Para Riobaldo e Miguili m, olhar e compreender são atos gêmeos, colados.
Mas é em Grande sertão: veredas que a obsessão pelo olhar encontra seu ápice.
Riobaldo é o personagem fulcral no que se refere ao aprendizado do olhar. Suas falas deixam
claras as diversas tentativas que o personagem faz para compreender o seu lugar, se não, para
encontrá-lo. Mas ele sabe que este aprendizado é perigoso e que são necessários muitos
esforços para compreender o seu, ou os seus destinos. Suas reflexões estão carregadas de
dúvidas e de desejos:
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso ascoisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares desaída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vaidar na outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.Viver nem não é muito perigoso. (ROSA, 1994, p. 28)
Esta confissão do protagonista é reveladora e traduz o sentimento de muitos outros
personagens diluídos na obra rosiana. A necessidade de ver e de rever é marcante no relato
de Riobaldo. Diante de um interlocutor silencioso, ele pode se dar ao privilégio de dizer e
desdizer-se, tirar as suas próprias conclusões. É ele que, sozinho, perfaz o seu caminho, num
diálogo simulado com o outro, mas que, na verdade, é um mergulho dentro de si mesmo. A
presença de um interlocutor silencioso ameniza o tom carregado do monólogo-diálogo,
porque partilhadas as aflições do protagonista com um interlocutor que não ouvimos, temos a
ilusão de que Riobaldo é compreendido por alguém, e que este interlocutor o ajuda a clarear
as vistas. Como o interlocutor, seguimos silenciosos nas trilhas do aprendizado de Riobaldo,
que mais uma vez confessa, por meio de indagações e constatações:
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Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seuperceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já estáempurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantosassombros... um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo:o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não tiro sombras dosburacos. (ROSA, 1994, p. 46)
1.3 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A HISTÓRIA
Na tentativa de nos fixarmos neste olhar de que temos falado apresentaremos, no
capítulo seguinte, um esboço das narrativas em que o foco da nossa tese se deterá. Julgamos
adequado um estudo que privilegie uma comparação ou uma associação entre duas ou mais
estórias, de modo que estas constituam uma espécie de blocos que tenham como eixo o
olhar, mas que por outras características comuns possam dialogar entre si. Chamamos de
características comuns aquelas principalmente ligadas ao perfil dos personagens, ou seja, o
que há de comum entre eles, e, nos perguntamos de que modo um não é o complemento ou o
oposto-complementar do outro. Não foi difícil conseguirmos esta articulação entre os
personagens, uma vez que, como já dissemos, as narrativas de Rosa não são um universo
estanque, mas formidavelmente se articulam umas com as outras.
Iniciaremos com os seguintes contos de Primeiras estórias: "As margens da alegria"
e "Os cimos". Trata-se de estórias que abrem e fecham o livro e são protagonizadas por dois
meninos, ou quiçá o mesmo, que vivem processos similares, metaforizados pelo tema da
viagem. Interessa-nos como abertura do presente trabalho esta possibil idade de refletirmos
sobre os processos de iniciação, de maturidade e de encontro com a dor. Nesse sentido, estas
estórias são exemplares. Publicado em 1962, “Primeiras estórias” revela um escritor a quem
não falta o domínio do gênero do conto curto.
Na seqüência faremos uma análise de "São Marcos", de Sagarana, e de "A
Benfazeja", do livro Primeiras estórias. A escolha destas duas narrativas se deve ao fato de
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que em ambas o tema do ver e do ocultar é muito bem pontuado, e nas duas somos
convidados a olhar, mas por meio de códigos e recursos narrativos distintos.
Outra narrativa muito inspiradora neste sentido e iluminada é “Substância”, também
do livro Primeiras estórias. Neste conto, impressionou-nos o genial enfoque dado pelo autor
aos jogos de luz, revelados na força inaugural do sol, que tudo revela, mas que, por outro
lado, pode turvar este delicado sentido que é a visão. Nesta estória, a luz solar pareceu-nos
evocar a própria extensão do ser da protagonista. É o que buscaremos ver.
Ainda em Primeiras estórias faremos uma leitura de "A menina de lá" e de "Um
moço muito branco", na observância das empatias entre os dois protagonistas, e no que eles
nos oferecem como personagens singulares, cujo olhar também nos parece singular. Neste
grupo de estórias buscaremos discutir a comunhão e o diálogo que existem da infância com a
velhice, uma vez que a presença de velhos e crianças soou-nos como uma oportunidade de
relacionarmos as duas faixas etárias, e de refletirmos sobre como elas podem se
complementar.
Do livro No Urubuquaquá, no Pinhém1, destacamos os delicadíssimos contos "Cara-
de-Bronze" e “A estória de Lélio e Lina” , visto que nestas narrativas temos um profícuo
encontro do velho e do jovem, e o tema da viagem, em ambas, constitui uma vez mais a busca
do auto-conhecimento e do conhecimento para o outro. Na primeira estória, a peregrinação
feita pelo jovem diz respeito à busca da Poesia, ou à essência das coisas. Na segunda, o
peregrino faz uma jornada que o iniciará na linguagem do amor, propiciada pelo seu encontro
com a velha Rosalina.
1 No Urubuquaquá, no Pinhém faz parte de Corpo de baile, livro que posteriormente se desdobrou em
três volumes, a saber: No Urubuquaquá, no Pinhém, Manuelzão e Miguilim e Noites do sertão.
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Três outras narrativas de livros distintos são-nos também muito preciosas: trata-se de
"Nenhum, nenhuma" (do livro Primeiras estórias)), "Fita-verde-no-cabelo" ( do lívro Ave,
Palavra)2 e "Arroio-das-antas", (do livro Tutaméia)
Quebrando a estrutura da análise por blocos das narrativas, faremos uma leitura de
"A terceira margem do rio", quando então teceremos uma reflexão sobre duas formas de
olhar que são a do filho (narrador da estória) e a do pai. Neste caso os dois personagens estão
muito interligados, e o olhar de um está diretamente condicionado ao do outro, principalmente
no que diz respeito ao filho em relação ao pai.
Como desfecho do estudo das breves narrativas, discutiremos também isoladamente
"Partida do audaz navegante", do livro Primeiras estórias, em que procuraremos nos
concentrar mais especificamente nas potencialidades poéticas e filosóficas da infância, que
irrompem naturalmente, sem exageros ou superficialidades na voz da menina Brejeirinha.
Nesta estória impressionou-nos a forma tênue como o autor colocou na fala da protagonista
temas metafísicos, e como ele captou o olhar da protagonista, no que ele tem de maiores
alegrias e claridades.
A última parte do nosso estudo propõe um percurso mais demorado na novela
"Campo geral", do livro Manuelzão e Miguili m. Trata-se de uma narrativa mais extensa, que
quanto ao gênero oscila entre novela ou "romancinho". Considerada pelo autor a sua
preferida, ela traz uma forte carga de emoção, porque apresenta muitos momentos da infância
de Guimarães Rosa, e porque a trama que envolve as crianças aponta para conflitos familiares
complexos e delicados, dos quais os protagonistas Miguil im e seu irmão Dito participam sem
a adequada maturidade e compreensão. É um texto que revela o lado sombrio da infância,
dificultado, na maioria das vezes, pela interferência dos adultos. Nela temos uma visão dos
2 Ave, palavra, livro póstumo do autor, publicado em 1970, é uma obra que reúne contos, crônicas e
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olhares infantis, mas de forma mais impactante, porque no universo das crianças há muitos
adultos e tramas. Deste modo, o olhar dos protagonistas não pára de se expandir e de
vasculhar os porquês das coisas, de sofrer, de se encantar, e de não compreender. No
entanto, ao mesmo tempo que nos vemos diante de conflitos perturbadores, podemos respirar
junto com os pequenos protagonistas sob um céu aberto e limpo, e aprender a olhar com eles a
natureza em torno, as pequenas e grandiosas belezas do Mutum, que é onde se passa a estória
de Miguili m e de sua família.
O pequeno Miguilim será o personagem em torno do qual desenvolveremos de
forma mais minuciosa a nossa pesquisa e sobre quem nos inspiraremos para tecer as nossas
reflexões sobre a infância e os procedimentos literários utilizados pelo autor para apresentá-la.
Com base nesta narrativa, dada a sua riqueza e extensão, dialogaremos com as crianças das
outras estórias, partindo sempre do princípio de que nas narrativas de Guimarães Rosa o olhar
da criança é uma possibil idade de examinarmos por contraste o olhar do adulto e
descobrirmos de que modo as formas de olhar se diferenciam. No primeiro, há ainda o
encantamento, o espanto, o susto, o atravessamento das coisas – conjugado a um olhar que só
vê e vive o que vê. No segundo, há o olhar posto em questão pela própria criança. Além disso,
não podemos nos esquecer de que em todas as narrativas, não obstante as adversidades
encontradas pelas crianças em seu percurso, as páginas da infância ainda podem ser lidas
como um momento único, mágico e numinoso na vida do ser humano.
Devido às características e singularidades de cada narrativa citada no decorrer do
trabalho, haverá capítulos mais extensos que os outros, o que não significa maior valorização
de uma narrativa em função de outras. No entanto, há alguns textos que exigem maiores e
minuciosos desdobramentos, dadas as suas peculiaridades e as possibil idades de diálogos com
poesia em prosa e verso.
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outras narrativas. Nesse sentido, “São Marcos” , “Cara-de-Bronze”, “A menina de lá”, “Fita-
verde-no-cabelo” “Campo geral” e algumas outras narrativas terão um enfoque mais
aprofundado, o que não comprometerá o aspecto de organicidade que pretendemos dar a este
trabalho.
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2 OLHAR E APRENDER
Os personagens do livro Primeiras estórias vivem uma realidade enigmática, que se
oferece em toda a sua complexidade, ambigüidade e imprecisão. Eles se entrecruzam no que
diz respeito à sua singularidade e à quebra dos cânones ou dos padrões de comportamento.
Então, embora cada um seja único, ao final da coletânea, podemos observar como um só
personagem incorpora todos os outros, como se fosse a coletividade mostrada pouco a pouco,
de forma separada. Para tanto, o autor precisou mostrar diversas individualidades;
prevalecendo, ao final, a unidade, e importando, sobretudo, a quebra absoluta dos padrões e
a revelação da tensão entre os contrários. Primeiras estórias apresenta, em estilo bastante
diferente de Grande sertão: veredas e dos outros livros de Guimarães Rosa, o tema da
perplexidade estreitamente vinculado ao tema da busca da identidade na singularidade e na
diferença. E a estes temas está vinculado, sobretudo, o ato de ver. Para representar e/ou
simbolizar tais procedimentos e intenções não poderia ter sido mais lúcida e adequada a
escolha dos personagens. Conforme Costa Lima " 'Primeiras estórias', no seu todo, mostra o
autor ainda explorando veios novos ou aprofundando antigos.” (LIMA, 1991, p. 500) E
continua: "Em Guimarães Rosa, o mundo se abre como problema. Ele é perplexidade e
mistério. Às vezes pode ele raiar numa "verdade extraordinária" : a alegria cósmica, de que o
amor é apenas uma das expressões. Outras vezes o mundo se fecha no seu círculo de enganos.
É assim que o mundo é aberto por Guimarães Rosa como um leque de perspectivas." (Ibidem,
p. 500)
Primeiras estórias é uma obra idiossincrática na trajetória do autor, pois apresenta
vários desdobramentos temáticos sempre relacionados à questão da relativização das certezas,
por meio de jogos constantes com uma linguagem que traz no seu bojo a inquietação dos
personagens, retratada nas singularidades dos seus procedimentos. É um livro repleto de
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elementos do plano mágico-simbólico, que se revelam na escolha dos personagens, no olhar
do narrador, na posição de onde vêem os meninos e meninas, na luminosidade sugerida no
jogo de luz e sombra, nas falas das crianças, no plano das reminiscências, e na evocação à
loucura, como forma não de desordem, mas de busca de uma outra instauração da ordem. É
uma coletânea de estórias povoada de crianças, loucos, cegos, e excluídos. Se a razão é
considerada um instrumento para uma apreensão ordenada do real, nestas estórias este
conceito é polemizado. E os comportamentos normais são colocados em choque. A presença
das crianças compõe poeticamente este questionamento do real, e o conceito de Razão, neste
caso, pode ser mostrado somente em tensão com o que é e o que parece ser. Porque a
compreensão das crianças, por exemplo, vai muito além do que elas sabem dizer. As suas
respostas extrapolam as definições. E neste sentido a expressão "Pré-consciência" – proposta
por Alfredo Bosi, é muito adequada, pois diz respeito a "modos pré-lógicos da cultura: o mito,
a psique infantil ." (BOSI, 1970, p. 484)
É importante ressaltarmos que a opção por estes personagens excepcionais está
muito relacionada com o próprio espírito criador do autor, que conseguiu construir uma obra
que fosse o espelho de sua própria inquietação. Tudo, em suas narrativas, revela este anseio
pela renovação e pela busca de uma palavra ainda por dizer, porque, subjacente a estes
procedimentos literários, está, mais que tudo, a busca de uma essência perdida, anestesiada no
homem. Fazemos das palavras de Maria Luísa Ramos nossas, pois traduzem
adequadamente o que estamos tentando dizer:
Com efeito, é essa a condição essencial do estilo de Guimarães Rosa: renovar, redescobrir,criar. E, assim como procura desvendar nas desgastadas palavras de todos os dias a sualatente expressividade, lança-se inteiro na ansiosa busca do humano, oculto na brutalmediocridade da massificação. Talvez, por essa razão, o escritor explore tanto aspersonagens infantis, a ponto de abrir e fechar o volume com estórias que envolvem oMenino, assim sem nome, sem comportamento estereotipado, reagindo com o maisespontâneo fervor às coisas do mundo e ao seu peculiar suceder. (RAMOS, 1991, p. 515,516)
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No intuito de ilustrarmos estes comportamentos não-estereotipados dos personagens
rosianos, mencionaremos, brevemente, alguns temas que aparecem na coletânea de Primeiras
estórias.
Em "A benfazeja" a cegueira física e espiritual, bem como o preconceito, são
nucleares no desenvolvimento da narrativa. A pergunta mais importante desta estória, a nosso
ver, é: sabemos olhar?
Nos contos "As margens da alegria", "Os cimos", "A menina de lá" e "Partida do
audaz navegante" há o transbordamento da infância. Inquietude, imaginação genuína, atitudes
líricas, vôos literais e metafóricos, disparates poéticos, intuições de toda espécie são os
ingredientes mais importantes para a composição destes enredos que nos fascinam por sua
singeleza carregada de uma força primitivamente humana. Por outro lado, estas estórias
revelam também, e de forma extremada, a inquietude de uma imaginação que quase beira a
angústia. Perguntas como "o que é o real", ou "o que é o imaginário" subjazem nas
entrelinhas. Exemplo máximo são os contos "Partida do audaz navegante" e "O Espelho".
Neste último o tema do olhar é princípio para a reflexão filosófica. Um verdadeiro tratado
sobre as formas do olhar se oculta e se revela por trás de uma expressão literária, que, por si
só, já se manifesta como uma nova percepção do olhar. Neste conto, a estória se torna um
pretexto para divagações e especulações que nos levam a um cenário composto por espelhos,
que são verdadeiros reflexos e ecos de imagens que o narrador vai apresentando e
questionando enquanto narra. Em "O espelho" há um profundo questionamento do Real,
sugerido pela própria imagem do espelho, do duplo. O que se vê é o que se é. Conto
filosófico, muito nos sugere acerca dos possíveis enganos do olhar.
Em “A terceira margem do rio", dúvida, melancolia e contemplação configuram
um cenário dividido entre terra e água. O passado, as lembranças e a memória são os
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impulsos poéticos que sustentam o misterioso conto "Nenhum, nenhuma", sendo possível
afirmar que o passado assume, em alguns momentos, a forma de um personagem. Conto de
indefinições, nele a verdade das coisas é tensionada pelas lembranças confusas do narrador.
O passado também será real, ou quando o narramos, ele entra no plano da ficção? Qual é a
certeza que temos acerca do vivido?
Em "Um moço muito branco", novamente surge a evocação ao mistério que se perde
em descrições factuais. Novamente nos deparamos com o jogo de luz e sombra. Novamente
alguém estranho precisa aparecer para lançar algum tipo de luz nova sobre a comunidade
cega. De forma muito tênue, o narrador mostra que do grotesco e assustador pode surgir um
ser delicado e claro de visão, ou seja, dos escombros de um possível terremoto, aparece um
homem muito branco, que reacenderá, sem que o saiba, alguns feixes de luz apagados.
Com relação às outras estórias, os temas serão abordados dentro de outra perspectiva
que será apresentada nos próximos capítulos.
2.1 "AS MARGENS DA ALEGRIA" E "OS CIMOS"
E, de olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante.. ("Os cimos", p. 511)
O Título Primeiras estórias soa-nos bastante sugestivo. Afinal de contas, trata-se de
estórias que vêm antes de outras, constituindo uma espécie de gênese, ou de uma tentativa de
encontrar a raiz, o momento primordial em que as coisas se dão, bem como o desejo de
encontrar aquela palavra mais primitiva e descolada de tudo. É um título que sinaliza o desejo
profundo do autor de encontrar e agarrar uma palavra pura, limpa, sem roupagens
corrompidas, brotada de um terreno fecundo e insólito.
Correspondendo a esta ordem do que vem primeiro, irrompe já a primeira narrativa
intitulada "As margens da alegria". E como fechamento, outra estória, de teor bastante
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parecido, intitulada "Os cimos". Na primeira estória, o personagem está à margem, apesar dos
seus sobrevôos. Na última, ele já chegou ao cimo. Em ambas temos um menino como
protagonista. Este menino, sem dúvida, percorre outras narrativas espalhadas pela obra de
Rosa. Entre as margens e os cimos muitas estórias se desenrolam, sem que se percam umas
das outras.
Em "As margens da alegria", de 1962, Rosa coloca-nos diante de um Menino que, na
sua lenta descoberta do mundo, transforma tudo o que lhe passa diante dos olhos em
experiência de dor e alegria, vida e morte. Essa aprendizagem se dá a partir da relação direta
com a natureza em toda a sua dinâmica, para a qual o Menino volta um olhar sem reservas,
cheio de admiração. Aqui a infância aparece como o lugar do crescimento, da descoberta, da
aprendizagem. O Menino tem como primeira fonte de conhecimento o olhar: "espiar",
"avistar", "ver" e "vislumbrar" são verbos que percorrem toda a narrativa. É, portanto, através
do olhar atento e encantado que ele conhece e re-conhece todas as coisas que encontra. "O
menino agora vivia; [diz o narrador] sua alegria despedindo todos os raios." E continua: "Ele
queria poder ver ainda mais vívido – as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se
pronunciava." (ROSA, 1994, p. 389)
A primeira grande experiência de maravilhamento, no entanto, se dá no instante em
que o Menino avista, no terreiro, o peru, que se exibia em todo o seu esplendor: "Belo, belo!
Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. (...) Satisfazia os olhos, era
de se tanger trombeta." (ROSA, 1994, p. 390) Na primeira narrativa, o Menino tem um olhar
maravilhado diante de tudo que lhe vai sendo apresentado. É do alto (do avião) que ele vai
desbravando as paisagens externas. Das alturas ao chão ele mantém o encantamento, e mesmo
na terra o que se oferece ao seu olhar não é maculado pela pequenez do chão, mas é
fantasiado e revisto pelo lance final quando surge o vagalume. O olhar deste menino é
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seduzido todo o tempo. Expectador atento, seus olhos incessantemente parecem estar
extasiados com o que se lhe oferece.
Mas nem tudo é alegria no percurso do Menino. De repente ele começa a conhecer o
mundo pelo viés da dor e da perda. Se antes o que os seus olhos captavam era um espetáculo
de cenas fundantes, o momento seguinte é captado pelo seu olhar como um cenário de
destruição. E é assim que a narração revela esse olhar que se vê impossibil itado de reter a
árvore que fora destruída. "Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o
acertamento – o inaudito choque – o pulso da pancada." (ROSA, 1995, p. 392)
Em "As margens da alegria" e "Os cimos" o protagonista chamado de o Menino
percorre os espaços aéreos. É curioso notar que em ambos os casos O Menino faz uma
viagem aérea, mas sob pretextos diferentes. O que fica de essencial nas duas narrativas é a
transformação realizada no protagonista após as experiências destas viagens. Na primeira
estória o Menino perde a alegria nascida no seu vôo de iniciação. Ao iniciar a viagem, no
espaço aéreo tudo se lhe desdobrava em felicidades. Ele era o acondicionado da alegria e
vivenciava as emoções mais singulares. No entanto, lançado ao chão, vive a experiência do
efêmero diante do encontro-desencontro com a ave morta. Expansão e contração aqui se
alternam bruscamente.
Narrada na terceira pessoa, esta estória conta a primeira viagem de avião feita pelo
Menino à cidade grande. Inicia-se com a frase, em letras maiúsculas: "ESTA É A ESTÓRIA."
(ROSA, 1994, p. 389) Acompanhado pelos tios, que são puras expressões de amor e afeto, o
protagonista vive um momento singular em sua vida. A viagem lhe é inédita e lhe causa
sentimentos de fascínio e leveza. O processo de crescimento é aí apresentado no momento em
que o narrador substitui "um menino" por "O Menino".
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A estória apresenta quatro momentos específicos: o da viagem, quando o Menino
vive uma experiência aérea, paradisíaca, e outros três acontecimentos terrestres. Um deles é a
aparição do peru no quintal da casa onde estava. O peru "completo, torneado, redondoso", o
"peru para sempre", o peru transbordando de "calor, poder e flor" (ROSA, 1994, p. 390)
representa o auge da vitalidade do Menino. No entanto, a terrível sensação da efemeridade é
experimentada no outro momento quando o protagonista, ao voltar do passeio, ávido de vê-lo,
depara-se apenas com "umas penas, restos, no chão". (Idem, Ibidem) O brusco
desaparecimento do peru representa o movimento oposto aos dois anteriores. Neste momento,
o Menino vivencia a experiência da morte: "O Menino recebia em si um miligrama de morte."
(ROSA, 1994, p. 390-91)
Em "Os cimos", estória que encerra a série de contos de Primeiras estórias, de
menino a Menino, outra era a vez, outra a estória, mas ainda assim velha é a estória. Nesta o
Menino vive a experiência da perda imanente da mãe, desde o início de sua viagem.
Acompanhado por esse sentimento, ele dialoga com os seus pensamentos, enquanto viaja, e o
mundo que o enreda é descrito pela ótica de sua tristeza. Também ele é um ascensionado, mas
na dor. Também ele precisa chegar à terra, como o outro menino, para, então, cumprir com o
seu processo de iniciação, edificar sua integridade enquanto ser dialeticamente construído. Na
viagem de volta, surge novamente o sentimento da perda: do seu querido companheiro, o
boneco macaquinho.
A viagem que ambos os protagonistas fazem no avião é muito simbólica para nós
que estamos observando a mirada e o foco com que estes personagens olham. Porque olhar de
cima é muito diferente de olhar de baixo. É a partir do alto que os meninos começam as suas
respectivas viagens, a primeira viagem. No entanto, inevitavelmente eles voltam para o chão,
onde terão que ver e viver outras experiências. O que nos importa nestas estórias é uma
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verificação do olhar admirativo, aquele que não cessa de se encantar e de se espantar, seja
quando eles iniciam a viagem do alto, seja quando eles pisam o chão e podem ver tudo de
perto. E o seu olhar é outro.
2.1.1 “Ver é ter à distância”
O título deste sub-capítulo inspira-se numa das premissas de um filósofo
contemporâneo que muito se tem dedicado ao tema do olhar. Trata-se de Merleau-Ponty.
Nestes dois contos que abrem e fecham respectivamente o conjunto das vinte e uma estórias
do livro, temos, de fato, o que consideramos um verdadeiro aprendizado do olhar. O que estas
estórias apresentam de especial para nós é a imagem do avião que leva e conduz o Menino.
Conforme Manuel Antônio de Castro, o verbo educar significa "conduzir para fora, fazer
desabrochar, fazer eclodir o ser humano que cada um é (...) Para fora não indica um
deslocamento espacial, mas a irrupção estruturante do vigor do ser do homem". (CASTRO,
1994, p.135) Deste modo a imagem das crianças sendo levadas para um outro lugar nos faz
pensar nesse espírito que as conduz para um aprendizado. Não só estas crianças, mas, como
temos observado em outras estórias, as crianças deixam provisoriamente o espaço conhecido
de suas casas e são conduzidas ou se conduzem para outros lugares. Em alguns casos elas
regressam, e em outros não. E a mudança espacial sugere, também, os movimentos internos
que são feitos para o crescimento e a evolução.
Quando acompanhamos o percurso dos meninos nas narrativas supracitadas, muitos
aspectos nos chamam a atenção. O primeiro deles é a generosidade dos mediadores naturais
que os acompanham nessa travessia, e que nos fazem pensar em eixos de harmonização das
disparidades impostas pelas contingências da vida diária, ou pelo mundo das contingências.
Não seriam esses mediadores os pontos de resolução ou de intersecção entre as dicotomias?
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Apesar da pergunta, a nossa ênfase está na forma e nos caminhos como essa viagem é feita e
nos significados que ela produz. 3
Parece-nos muito adequada a escolha do avião como veículo que faz a primeira
passagem dessas crianças. Será que vemos melhor do alto? Não parece bastante sugestivo e
alegórico que esta primeira viagem seja feita por via aérea? De que forma o nosso olhar ganha
em qualidade e em possibil idades, quando temos oportunidade de avistarmos o mundo do
alto? São duas as posições de onde se encontram ou para onde vão os meninos. Na primeira
estória o menino está às margens da alegria, beirando-a, tão próximo, tão estreitamente ligado
a ela, que é quase como se a tocasse com os olhos, com os quais vai ser afetado por todos os
privilégios que esta viagem lhe proporciona desde o início. Ele está, sim, reinando nos
espaços aéreos da alegria almejada, sem imaginar que lá embaixo terá que aprender a ver uma
outra porção da realidade, porque a vida congrega muitas possibil idades e nuances, porque
viver é sempre muito perigoso. E é sempre muito perigoso ver, pois neste ato está concentrada
também a exigência ou a necessidade de aprender. O ditado popular muito conhecido "O que
os olhos não vêem o coração não sente" possui valiosa carga semântica, porque se baseia
justamente na experiência popular, e naquilo que se crê a partir do que não se vê e do que
deve ser evitado. Neste ditado resvala a crença de que o sentimento e as emoções mais
profundas estão aliadas, antes de mais nada, ao que se vê. Quem pouco vê, menos risco tem
de sofrer, é o que também insinua o ditado.
No entanto, se não vemos, como saberemos? Como aprenderemos? Como partícipes
de um dilema ou de um impasse precisamos a todo momento nos lançarmos ao exercício do
3 (O tema da viagem foi amplamente explorado por Guimarães Rosa. Estórias como as supracitadas
fazem parte de um conjunto de outras narrativas em que é explorado o aprendizado por meio das viagens.Exemplo valiosíssimo é "Cara–de-Bronze", que será cuidadosamente apreciada.
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olhar, que, por sua vez, nos propicia a experiência de vôos maiores, pois, quanto mais vemos,
de mais ânsia de compreensão e de luz padecemos.
Os Meninos desta estória possuem um sentido da coragem e, na estória final, o
protagonista, não obstante esteja sofrendo, percebe-se que é vendo que ele aprende. Sem
dúvida não era isto que ele desejava ver. Mas como prever? Como pouparmos sempre os
nossos olhos do que o coração não deseja ver e saber? Como evitar este aprendizado da dor?
Neste ponto, Guimarães Rosa é um grande mestre para nós, porque ele não desfigura a dor,
nem a banaliza, mas dissolve-a neste constante processo que é o perguntar. O Menino de "As
margens da alegria" ainda está às margens, porque o seu processo de conhecimento da dor e
da alegria está apenas iniciando-se. Neste momento da estória, precisamos recordar que o
elemento de luz tão necessário ao processo de aprendizado aparece no desfecho do conto,
ainda que não traga de volta o peru e a árvore para o protagonista, primeiros objetos da sua
alegria de olhar. No entanto, há uma concil iação de dois elementos, que são interiorizados
pelo Menino.
Na segunda estória, muitas coisas já aconteceram. Já se passaram, não muitos anos,
mas muitas estórias, e o Menino, se é que é o mesmo, volta. No entanto, a sua posição é
outra, e a dimensão de sua dor é bastante profunda, se considerarmos que agora ele viaja para
se afastar da mãe que está muito doente e precisa de cuidados. Ele vai mais alto, mais
profundamente no seu aprendizado da dor . Sua viagem tem outro objetivo, mas o significado
é o mesmo da primeira. Aprender, reconhecer, e superar. Novamente aí o aprendizado está
ligado ao ver, ou vice-versa, porque ele está diante de uma situação de conflito, da qual não
pode fugir . A viagem de avião propicia-lhe muitas descobertas, e como o Menino da primeira
estória, seus olhos captam a paisagem em toda a sua amplitude.
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Na primeira estória, as tensões a que temos nos referido são apresentadas
inicialmente pelos espaços aéreo e terrestre, pelo deslumbramento causado diante da
contemplação do peru, pelo desencantamento ao vê-lo morto e bicado por outro, e novamente
pela restauração da alegria no surgimento de um vagalume que aparece inesperadamente. As
perguntas são mais intuídas e sugeridas que reveladas. Elas não são totalmente verbalizadas
pelo Menino, mas o narrador que o conhece, que está atento ao que ele vê, sugere as
artimanhas das quais o seu espírito foi presa nas poucas horas em que se passa o enredo,
poucas e suficientes para que tivéssemos um vislumbre de como a vida é mutação constante, e
independentemente do nosso querer. Ao Menino só foi restaurada a paz porque ele soube ver
o vagalume. O que é um vagalume perto da grandiosidade e dos encantos de uma ave como
um peru? No entanto, ele soube ver a luz, a centelha de luz que vinha daquele pequeno inseto.
E foi com esta centelha que ele conseguiu restabelecer a luminosidade que permeara a sua
viagem até o incidente no quintal. A dicotomia foi resolvida, não porque o final tenha sido
feliz, mas porque ele pôde ver, no vagalume, uma possibil idade.
Não é o que se vê que importa, mas o como se olha. Talvez este seja o grande
aprendizado que estes personagens rosianos, aos quais incluímos os narradores, tenham para
nos ensinar. Até quando o seu olhar vacila, titubeia e se engana, como é o caso de Riobaldo
em Grande sertão: veredas, ainda assim e talvez por isso mesmo, estamos aprendendo com
ele.
Esta pequena e primeira estória mostra também que as resoluções que o narrador
encontra para revelar as dicotomias irrompem do fundo de um campo de visão sempre
possível, e que nos traz mais uma pergunta, para a qual, já há lampejos de respostas. É
possível lançar às dicotomias um olhar que lhes devolva a unidade, que as misture? Esta é
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uma pergunta que talvez encontrará respostas no decorrer desta escritura, e na expressão de
Riobaldo, quando se refere ao mundo como "mundo misturado".
Voltando-nos um pouco para "As margens da alegria", é possível dizer que o
primeiro aprendizado do Menino é, sem dúvida, o da alegria.
Na obra de Rosa, o sentido unilateral das coisas é desmitificado o tempo todo. Sem
colunas que os sustentem, os conceitos cristalizados podem "respirar", e é em outros lugares
que poderão ser polemizados. A metáfora dos meninos sobrevoando a terra é, nesse sentido,
muito significativa, porque antes de mais nada, a ampliação do campo de visão é favorecida, e
também porque às crianças é oferecida a oportunidade de se libertarem da fixidez do chão e se
lançarem ao vôo primeiro que é o abraço do céu e de tudo o que os seus olhos poderão
contemplar do alto.
Tem um significado especial para nós o lugar de onde esse Menino vê. A situação do
Menino é de um observador do universo, que se vai descortinando aos seus olhos como um
presente. Sua relação com as coisas vistas e contempladas é a de quem vê de cima. E isto
muda tudo. Além desta posição, digamos, privilegiada destes meninos, pela visão panorâmica
que lhes é proporcionada, a altura evoca um outro significado, ou outros, que nos remetem a
uma idéia de hierarquia do olhar. Isto se considerarmos que quem abre a galeria de
personagens desta coletânea é um menino e que quem vai fechar é também um menino, na
mesma posição, das alturas para a terra. Depois de contada a primeira estória, todas as outras
são narradas já com as crianças na terra, para retornar novamente o Menino a mais uma
viagem de avião.
É inspirador para as nossas reflexões lembrar Ricardo Reis, numa de suas imagens
poéticas que diz o seguinte: “Mais alto estão os deuses (...) visíveis à nossa alta vista.”
(PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 337). A criança vê por inteiro, vê amplamente primeiro,
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para só depois separar o que vê. Mas de qualquer modo, este seu primeiro olhar pode ser
comparado com o olhar dos deuses, dos poetas, dos artistas.
É assim que, de acordo com Reis, os deuses olham, de cima, à distância. "Vê de
longe a vida (...) Imita o Olimpo no teu coração." (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 337).
Em cuidadoso estudo sobre os olhares de Fernando Pessoa e dos seus heterônimos, Perrone
explica que " A altura é o desafio enfrentado por Ricardo Reis. Não podendo olhar dos céus,
como os deuses, Ricardo Reis busca ao menos o alto das colinas, "longe de homens e de
cidades", onde ninguém, nem coisa alguma, lhe vede a vista. (Ibidem, p. 337)
Olhar como os deuses, continua a autora, é, para Ricardo Reis, ter um conhecimento
imediato, total, sintético, oposto ao conhecimento analítico da ciência humana, "contemplação
estéril " que olha "até não ver nada com seus cansados olhos" (Ibidem, p. 338) Já os deuses, ao
contrário, conforme comenta a autora, possuem um olhar clarividente, ou o olhar ideal.
Nestas duas estórias que emolduram o livro Primeiras estórias, o sertão é visto do
avião e há a presença dominante da ave (peru e tucano) e do avião.
Em "As margens da alegria" o olhar do menino é um olhar que abarca as coisas
vistas, porque o mundo é, pela primeira vez, descortinado a ele como um espetáculo, e porque
a paisagem sobrevoada é nova, vista pela primeira vez. Tudo estava se inaugurando. Mesmo
ao chegar à terra, são novas as significações que ele terá que criar com o seu olhar. Os
elementos naturais vistos e abarcados agradam-lhe docemente aos olhos, mas também, ele o
descobre mais tarde, podem feri-lo. Não se exclui nada nessa narrativa, nem mesmo a dor;
tudo é abarcado, e experienciado pelo olhar. Pelo contrário, a cena do peru morto sendo
comido por outro é bem real, e o menino está parado diante dela, vendo-a com os mesmos
olhos que anteriormente contemplaram e se deliciaram com a imagem majestosa do peru no
quintal. O que podemos abstrair dessas imagens é, inicialmente, e já como ponto de partida
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para as considerações sobre as outras estórias, que o ato de olhar é um aprendizado ao qual
estamos sempre expostos, e para o qual podemos ou não dar os significados que estiverem ao
nosso alcance. O que muda com a chegada do vagalume, ao final da estória, não é a
substituição de um objeto de contemplação por outro, como simploriamente julgamos muitas
vezes podermos enganar as crianças diante da perda de algo querido. Pelo contrário, a
experiência da perda foi vivida, e a presença de uma criatura tão minúscula como o vagalume
só teve importância graças à perda do majestoso peru. Mas isto porque olhamos ambos como
um conjunto, ou dentro de um conjunto, em que nada é excluído. O Menino desta estória olha
com admiração. Mas, além disso, ao ver, percebe as diferenças e adquire mais conhecimento.
Das margens ele poderá chegar aos Cimos, que é de onde os deuses vêem melhor.
As tensões existenciais são mostradas por meio da apresentação dos espaços
geográficos: céu e terra; espaço rural, espaço urbano. Podemos dizer que todo o sofrimento ou
conflito dos personagens está tensionado entre o que podemos chamar de duas partes de um
mesmo eixo, mas desunidos de seu centro. Essa luta é muito marcada pelo ato de perguntar,
que, por sua vez, remete ao ato de aprender, o qual está em estreito ato dialógico com o ato
de ver.
O que mais nos angustia não será a nossa incompreensão acerca dos mistérios? E por
isso mesmo, diante desta impossibil idade de apreensão do obscuro, os personagens de Rosa,
ao invés de tentarem apreendê-lo, vivem-no intensamente. E é o que de mais fascinante há
em sua obra. É o que lembra Riobaldo, em Grande sertão: veredas: “Ah, o que eu não
entendo, isso é que é capaz de me matar...” (ROSA, 1994, p. 211) Para o Menino,
recentemente iniciado no aprendizado do "deslumbramento", o impacto da morte do Peru e a
visão de outro da sua mesma espécie bicando-lhe a cabeça é algo incompreensível, e que o
seu olhar interno ainda não consegue captar. A separação entre o deslumbrar-se e o indignar-
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se é um aprendizado difícil e doloroso: "O menino não entendia." (ROSA, 1994, p. 44) Olhar
também é uma tentativa de entender. De ver para crer, ou se não, para descrer. Não só este
menino tem dificuldades com o que vê. Riobaldo, jagunço corajoso, respeitado por todos,
sofria por não ver, e depois por ter constatado que não viu o que sempre estivera tão próximo.
“Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?” (ROSA, 1994,
p. 220), pergunta-se mais uma vez Riobaldo. Para este, seu campo de visão só se alargou
depois que o tempo passou e ele pôde parar, tomada a distância, e ver o que se passara.
Muitas vezes somos traídos pelo que vemos, porque somos o próprio processo que
vivemos, somos a própria dor e a alegria que vivemos, somos o sujeito e o objeto, não nos
distanciamos. Não é de se espantar a posição privilegiada que tem o narrador. Por isso, ele vê
tão bem, e tem aprendido tanto com os personagens. A sua posição é outra, e, portanto, é
outro o seu foco. O desafio maior desses personagens, velhos, jagunços experientes,
fazendeiros, crianças, mulheres... refere-se ao aprendizado da harmonia, da organização das
coisas, da busca da completude.4
2.1.2 Às margens do invisível
Ao tratarmos do olhar na obra de Guimarães Rosa, tornamo-nos mais propensos a
buscar o invisível que o visível. Porque é justamente lá, no lugar do invisível, que moram as
quase-certezas, configuradas no mistério das coisas, que não se desvelam a não ser para um
olhar que sabe captar, e às vezes - sem consciência disso - o que não é precisamente captável
pela vista, o que habita o espaço do possível e que, para ser abraçado, precisa estar,
simultaneamente, despojado da crença excessiva no poder do olhar. Portanto, como num
paradoxo, para encontrar o lugar onde habita o invisível é preciso desvendar o olhar.
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Esse olhar desvendado quem melhor o possuiria do que as crianças? É um olhar
desvendado, desarmado, desavisado, desenviesado, que pode ver o invisível e, como o do
Menino de "As margens da alegria", perceber que "A vida podia às vezes raiar numa verdade
extraordinária." (ROSA, 1994, p. 389) É ainda, como o olhar de Nhinhinha, a menina de lá,
que pode ver o que ninguém vê. Por que só ela vê? E por que todos acham extraordinário o
que ela vê? Será mesmo extraordinário o que ela vê, ou será que ela apenas capta o invisível,
aquilo que deixou de ser entrevisto? As crianças de Rosa têm uma relação sensorial com o
mundo que as cerca, especialmente no que diz respeito à visão. No mundo delas há um vasto
espaço para a vivência das paixões e dos desejos, e as suas indagações se dão num corpo-a-
corpo com a realidade, enormemete explorada pelo sentido da visão. Por isso, muitas crianças
parecem não ser deste mundo, mas de um outro, de um lugar desconhecido. No entanto, elas
apenas conseguem ver à distância, sem saírem do seu microcosmo, que já é um grande
universo para suas especulações.
O olhar atravessado do menino de “As margens da alegria” também sabe prolongar o
que consegue ver, o que deve ficar de afetos para a sua alma. Por isso, ele sabia, em algum
canto do seu ser, que se tivesse olhado mais, e se demorado nesse olhar, ele manteria na
memória a primeira experiência, a da alegria. Na iminência da perda, por que ele não se
demorou mais no olhar?: "Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o
peru – aquele. O peru – seu desaparecer no espaço." (ROSA, 1994, p. 391) Também
Riobaldo, naturalmente que em uma dimensão diferente, questiona-se sobre o fato de não ter
olhado apropriadamente. Se ele soubesse, se ele tivesse olhado mais, teria visto que Diadorim
não era o que parecia ser? Mas, por outro lado, nosso olhar às vezes segue a contramão das
revelações. “Não é no escuro que a gente percebe a luzinha dividida?”(ROSA, 1994, p. 199) É
4 Com relação às crianças cremos que Miguilim é o maior representante desta busca, e dos adultos
Riobaldo.
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o que pergunta/afirma/questiona Riobaldo, que tanto e com tanta força olhou para o que talvez
ele já tivesse des-coberto. Na força em que se concentrava o seu olhar residia uma aflição por
descobrir, por acertar o alvo do problema de sua existência. Por isso, olhava intensamente
para tudo, e para Diadorim, principalmente, motivo maior de suas dúvidas: “Olhei bem para
ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu
tinha inventado.” (ROSA, 1994, p. 188)
O ato de olhar não é um dado pronto, completo e absoluto. É um processo que
permanece mesmo depois de lançado o olhar. Este momento primeiro em que julgamos ver
não é senão o início de um longo aprendizado que permanece, não obstante nos tenhamos
distanciado do objeto contemplado. Olhamos para guardar e para compreender, e muitas
vezes, para, só mais tarde, muito mais tarde, rever e aprender. Lançado o olhar, aberto o
campo de visão, estamos aprendendo.
Nosso olhar é também sinônimo de desejo. Olhamos porque desejamos, porque a
experiência do olhar pode erotizar a vida: "O Menino via, vislumbrava. (...) Ele queria poder
ver ainda mais vívido - as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se pronunciava.
(ROSA, 1994, p. 390) Novaes nos lembra que "O olhar deseja sempre mais do que lhe é dado
a ver. " (NOVAES, 1988, p. 9) E é isto que o Menino de "As margens da Alegria" e de "Os
cimos" almeja: ver o que está além, compreender, apreender.
Esta perspectiva de um olhar que busca alcançar o inalcançável, o que está além das
aparências, convida-nos a dialogar com o sentido invisível que há nas coisas visíveis,
conforme nos diz Merleau-Ponty em suas reflexões sobre o olhar: “...O sentido é invisível,
mas o invisível não é o contrário do visível: o visível possui, ele próprio, uma membrura do
visível, e o in-visível é a contrapartida secreta do visível, não aparece senão nele, (...) não se
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pode vê-lo aí, e todo o esforço para vê-lo o faz desaparecer, mas ele está na linha do visível,
é a sua pátria virtual, inscreve-se nele (em fil igrana). (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 198-200)
2.1.3 Diálogo entre meninos: “As margens da alegria” e “Os cimos”
Em "Os cimos" a figura do tucano representa a unidade de tudo, a bondade natural
das coisas, no sentido que lhes deu Plotino. Para a figura do pássaro confluem os outros
elementos da natureza: o sol, o dia, a luz. O poder poético da linguagem é ajustado à visão
mística do mundo. O vôo do tucano ao despontar do dia e a aurora se fundem com a emoção
do menino, com as saudades do lar materno e com a renovação que nele se opera ao saber que
a mãe estava curada. Nesta estória o menino plaina acima do mundo, acima do tempo, vendo-
os fluírem juntos.
O aprendizado da dor aqui se configura como um processo de introspecção, do olhar
que se volta para dentro: "E o Menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de
si. Estava muito para trás." (ROSA, 1995, p. 509), afirma o narrador. Conforme Lisboa "...o
instinto metafísico, o mais agudamente inteligente dos instintos humanos, manifesta-se desde
tenros anos."(LISBOA, 1991, p. 171) E essas estórias, por meio de passagens simples,
revelam uma fecunda capacidade de perguntar. O próprio tema da viagem é uma evocação às
dinâmicas em que o deslumbramento com a natureza e a possibilidade de contemplar
paisagens ainda não vistas se misturam e ao mesmo tempo se separam de um encontro
inevitável com o sofrimento.
Nessa estória o menino queria parar de ver. Porque assim, de olhos fechados, poderia
esquecer: "A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer
seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que
ensaiam esculturas efêmeras." (ROSA, 1994, p. 510) Trata-se de um processo oposto ao que
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vive o menino da primeira estória, quando este demonstra o desejo de olhar mais as coisas,
porque elas podem mudar, e se perder. O Menino desconfia de tudo. "Enquanto a gente
brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de acontecer, elas
esperavam a gente atrás das portas. " (ROSA, 1994, p. 510)
Nessa estória impera o sentimento da melancolia desde o início da narração. Que
aprendizado este menino deverá ter? Certamente que o da restauração da confiança. Há, para
ele, uma possibilidade de luz que incendeie os seus olhos? É o que nos promete responder a
passagem abaixo:
E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado, o Meninorecebia uma claridade de juízo – feito um assopro doce, solto. Quase como assistir àscertezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidospensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito idéias de gente muito grande.Tanto, que, por aí, desapareciam, esfiapadas. (ROSA, 1994, p. 511)
Se em "As Margens da alegria" surge o Peru como símbolo da exuberância e depois
o vagalume como exemplo de restauração, em "Os Cimos" a transcendência pode ser feita -
ou a travessia da sombra para a luz – por meio do surgimento de um tucano:
E: - 'Pst!' – apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido horizontal.Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigosvermelhos do pássaro- depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de enfeites, o bicosemelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da árvore carregada. Toda aluz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar,estapafrouxo, suspenso esplendentemente. (ROSA, 1994, p. 511)
E é esta ave, novamente uma ave, que motiva o menino a abrir os seus olhos. "E, de
olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos
silêncios de um-dois-três." (ROSA, 1994, p. 511) A visão desta ave não afeta só ao Menino,
mas também ao tio. "Até o Tio. O Tio, também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os
óculos." (Ibidem, p. 511)
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A contemplação da ave traz nova dinâmica para o Menino. Como dissemos
anteriormente, não se trata de darmos significado ao que se olha, mas de atentarmos para
como se olha e os significados que se potencializam neste ato. É nesse momento crucial, em
que o Menino está no limite de sua dor e desconfiança do mundo, que a aparição do Tucano
eleva esta estória. Nessa passagem, o Menino é reiniciado e lançado à luz que há dentro de si.
É convidado a olhar. E é esta abertura para o olhar que dá a esse trecho tanta dignidade.
Mudam-se as cores, as tonalidades. Doura-se a paisagem, antes tristonha e sombria: "De lá, o
sol queria sair, na região da estrela – d'alva. (...) Por ali , se balançou para cima, suave, aos
ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a luz por tudo. Agora, era a bola de ouro
a se equilibrar no azul de um fio. " (ROSA, 1994, p.512)
O desfecho desta passagem aponta para uma superação da fala como ato que
ressignifica e traduz a experiência, ou seja, " ...o Menino nem exclamava. Apanhava com o
olhar cada sílaba no horizonte."(ROSA, 1995, p. 512) Soa-nos perfeito e equilibrado este jogo
entre o falar e o silenciar, que pode ser substituído pelo VER. Neste caso, as palavras
assumem aquele lugar a que se refere Lisboa, ou seja, como "...palavras anteriores à lógica."
(LISBOA, 1991, p. 171)
Sem receio podemos ver que nesta estória o Menino é salvo, resgatado pela
contemplação. O olhar aqui é passagem, abertura para um outro campo de visão e de atenção.
Foi preciso desviar-se de um ponto, no qual estava fixado o sentimento da perda, para o
personagem perceber outro. Não é à toa que este conto recebe o nome de "Os cimos". Nele
ocorre uma dinâmica de elevação espiritual, que tem início em "As margens da alegria" e é
amadurecida neste derradeiro conto. Nos cimos. Das margens para os cimos. A paisagem
geográfica, mais uma vez, é elevada a uma condição metafórica, - lugar da epifania - sem, no
entanto, perder o caráter de sua marcação toponímica.
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Na segunda parte, " O Trabalho do pássaro", atentamos para o ato de olhar como
desejo de vivência da fantasia. Esta parte nos propõe uma realidade (na concepção do
Menino) como difícil de ser vivida. Também Miguili m e outras crianças revelam o mesmo
procedimento diante da realidade que se apresenta de forma tosca. Daí a necessidade de
fantasiar e de sonhar, de abrir os outros olhos. As coisas olhadas são precauções, são uma
ameaça para o Menino.
Como num ciclo que se completa, esta coletânea, aberta por "As Margens da
alegria", é harmoniosamente fechada por uma viagem de volta para a paz e a organização das
coisas. É como se, após todas as viagens e processos vividos, fosse possível voltar para casa.
Nesta última estória o Menino atinge o topo da experiência e pode, então, retornar. O ciclo se
completou. Nada deixou de ser vivido.
Cada criança, no seu processo de iniciação, está, no fundo, vinculada aos meninos da
primeira e da última estória. Metaforicamente estas duas narrativas revelam a unidade ou o
desejo de busca da unidade. Percebemos também que há uma estreita articulação entre os
personagens, principalmente entre as crianças. Além disso, a caminhada delas, iniciada nas
margens, encerra-se nos cimos. Generosamente essa marcação topográfica eleva as crianças a
um plano em que é possível viver a superação da adversidade. Lançadas ao topo, elas podem
seguir renovadas pelo conhecimento e pelo aprendizado advindos das provações e das
alegrias.
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3 APRENDENDO A VER
3.1 DE OLHOS VENDADOS: “SÃO MARCOS”
E como era bom ver! ("São Marcos", p. 2)
Nesta parte do nosso trabalho, introduziremos uma narrativa que, de certo modo,
também está relacionada ao tema do olhar como forma de aprender. Nesta estória, o
protagonista, mesmo sendo adulto e possuidor de grandes conhecimentos, também fará um
rito de passagem. Haverá, para tanto, um deslocamento, por meio do qual o caminho de volta
para casa deverá ser revisto e reaprendido.
Parece paradoxal um estudo sobre o olhar que valorize, como será mostrado a partir
de agora, personagens que foram privados da visão. Isto se explica, no entanto, pelo fato de
que para nós as duas perspectivas - a do ver e a do não ver - devem ser colocadas lado a lado,
e também porque os personagens rosianos, ainda quando não vêem, só aparentemente não o
fazem. Olhando a questão por este ângulo, vale mencionarmos a nuance que existe entre ver e
olhar. Adauto Novaes, no artigo "De olhos vendados", levanta a seguinte pergunta ao se
referir à realidade e à precisão científica: "E por que, dentre os sentidos, o olhar é o primeiro a
ser chamado à ordem?" (NOVAES, 1988, p. 9) O autor tenta responder à pergunta
questionando a premissa aristotélica segundo a qual é a vista a responsável pela maior
aquisição de conhecimentos e pela descoberta de mais diferenças. Como falaremos demasiado
sobre os verbos "ver" e "olhar", é importante que tentemos distingui-los para que possamos
também justificar a inclusão, numa pesquisa sobre o olhar, de personagens que "não vêem".
Conforme explica Cardoso:
O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição e passividade ou, ao menos, algumareserva. Nele um olhar dócil , quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as espelha e
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registra, reflete e grava. Diríamos mesmo que aí o olho se turva e se embaça, concentrandosua vida na película lustrosa da superfície, para fazer-se espelho... Como se renunciasse a suaprópria espessura e profundidade para reduzir-se a esta membrana sensível em que o mundoimprime seus relevos. Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e àsvirtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Eleperscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre danecessidade de `ver de novo (ou ver o novo), como intento de `olhar bem`. Por isso ésempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor. Como se irrompessesempre da profundidade aquosa e misteriosa do olho para interrogar e iluminar as dobras dapaisagem (mesmo quando ´vago ou `ausente deixa ainda adivinhar esta atividade, o focoque rastreia uma paisagem interior) que, freqüentemente, parece representar um mero pontode apoio de sua própria reflexão. (CARDOSO, 1988, p. 348)
"São Marcos", narrativa de Sagarana, é um exemplo importante de como o sentido
da visão é enfatizado e prestigiado pelo autor. Neste conto, em especial, o tema da visão é
enfocado de forma mais direta e não nas entrelinhas, como ocorre nos outros contos. O autor
se demora na descrição dos detalhes da paisagem percorrida e nos oferece belíssimas
passagens dedicadas aos encantamentos do olhar, mostrando-nos o que a perda da visão pode
desencadear. De acordo com o autor, em carta escrita a João Condé, esta estória foi
"Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de
paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro." (ROSA, 1984, p. 11) O
protagonista da estória, chamado João e também José, após perder provisoriamente a visão,
passa a ter uma percepção apuradíssima de si e do mundo circundante. Começa a "ver com os
ouvidos", e todos os sons, até então não percebidos, tornam-se verdadeiras possibil idades de
contatos com o mundo. Na mesma linha, em "A Benfazeja" (de Primeiras estórias) e em uma
breve passagem de "Um moço muito branco" ( do mesmo livro) encontramos outra vez o
tema da visão, mas nestes casos, da visão perdida. Esta presença do olhar, bem como de suas
polaridades, faz-nos pensar na valorização deste sentido pelo autor. Em "São Marcos", o
olhar que vê o nascer para a luz contempla também o mergulhar na treva. Primeiro transborda
a luz: “No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul; gláceo, emborcado (...) e a leste
subia o sol, crescido, oferecido – um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a
mexer.” (ROSA, 1984, p. 244) E, depois, quando fica cego, a luminosidade do mundo lá fora
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é substituída por absoluta escuridão, descrita desse modo pelo narrador: “Era a treva, pesando
e comprimindo, absoluta. Como se eu estivesse preso no compacto de uma montanha, ou se
muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior do que uma câmara-escura. Ainda pior do
que o último salão de uma gruta, com os archotes mortos.” (ROSA, 1984, p. 261) É
interessante observarmos que a escuridão foi associada a volume e que neste caso a falta de
luz pesa e comprime. É o contrário de claridade, que está ligada a amplitude e leveza, como
nos sugere o primeiro trecho da descrição.
Parece bastante curioso também o fato de que, antecedendo a cena da perda da visão,
a narração se dilui num delicado e minucioso processo descritivo que abarca paulatinamente
os caprichos do olhar e da natureza. Neste momento de minuciosa descrição e apresentação
das árvores os enunciados são pontuados de modo dinâmico, e o ritmo vertiginoso do período
sugere a urgência, por parte do protagonista, de tudo captar com o olhar, como se houvesse
um pressentimento de que em breve esta mesma visão seria bruscamente interrompida. Veja-
se a passagem:
E as superfícies cintilam, com raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrandoasterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tábuas,taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbaúbas, mui tupis. E oburitizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos,flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques ; de todas as alturas e de todas as alturas ede todas as idades, famílias inteiras, muito unidas: buritis velhuscos, de palmascontorcinadas, buriti-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos. (ROSA, 1984, p. 256)
Por meio desse olhar cristalino, sem molduras, temos contato com o lugar, que se
expande para além dos prazeres que a visão propicia, e atiça os outros sentidos como o olfato
e a audição. É impressionante a forma com que é construído o olhar do personagem nos
breves instantes que antecedem o seu mergulho na escuridão. É um olhar que cheira, que toca
e que ouve, como nos trechos a seguir:
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"Passou uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado dasborboletas..." (ROSA, 1984, p. 260)
"E as flores rubras, em cachos extremos – vermelhíssimas, ofuscantes, queimando os olhos,escaldantes de vermelhas, cor de guelras de traíra, de sangue de ave..." (ROSA, 1984, p.258)
"Estou entre o começo do mato e um braço de lagoa, onde, além do retrato invertido de todasas plantas tomando um banho verde no fundo, já há muita movimentação." (ROSA, 1984, p.258)
O protagonista descreve o canto e o simples ensaio do canto dos pássaros, a textura
de todas as formas visíveis, as cores, os sons, os murmurinhos quase imperceptíveis da mata.
Seu olhar é pura claridade e nos convida a um jogo de deliciosa sinestesia, o que nos leva a
pensar que este é um conto para se ler com os olhos e com os ouvidos, ou então, que
precisamos colocar em alerta todos os sentidos. Por isso, a apreciação dessa "vista", desse
fenomenal golpe de vista do protagonista nos é tão precioso, porque é um olhar que precisa
passar por um ritual pautado na falta, na lacuna, ou seja, o personagem passará por um
processo de ruptura com o que ele tinha de mais vigoroso: a visão. A cegueira temporária -
punição do feiticeiro de quem ele zombou - é como um daqueles castigos que os deuses se
impõem a si e aos mortais, por vingança, por inveja, ou porque percebem que eles estão
passando da medida. Tirésias, por exemplo, conhecedor do segredo do prazer sexual
feminino, foi condenado pela deusa Hera a vagar cego para sempre. Zeus, compadecido dele e
reconhecendo sua sabedoria, compensa-lhe com o dom da profecia. Tirésias perde a visão de
fora, e se torna um vidente. No caso de “São Marcos” , no entanto, o protagonista não tem
sabedoria, e sim conhecimentos. É justamente o poder advindo destes conhecimentos que o
torna um homem cego para o saber local. Deste modo, por analogia ao que acontece a
Tirésias, em “São Marcos” , quando Mangalô tira a visão de José, repete o gesto de Hera -
por outros motivos naturalmente. Cegá-lo é uma forma de mostrar-lhe que ele precisa
aprender a olhar melhor, ou a ver de outro lugar. Afinal, ele é, como Tirésias parecia ser para
a deusa Hera, uma ameaça para a comunidade. Mas, ao contrário do que acontece na tragédia,
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José é castigado não porque sabia demais sobre a comunidade, mas porque sabia de menos, e
não reconhecia outra forma de cultura que não fosse a sua, sustentada pelo seu pensamento
analítico. Com os olhos vendados haveria uma chance de José exercitar uma nova visão. A
respeito da lenda do profeta Tirésias, Campbell nos faz lembrar que: “(...) quando os olhos
estão fechados para os fenômenos que distraem a atenção, você se concentra na sua intuição e
pode entrar em contato com a morfologia, a forma básica das coisas.” (CAMPBELL, 1990, p.
212)
José é mais um personagem gerador de tensões criado por Guimarães Rosa. Muitas
passagens mostram um personagem totalmente mergulhado na natureza, e é através dos seus
conhecimentos que podemos também usufruir dos mínimos detalhes do lugar. Seu olhar, às
vezes, assemelha-se a um gesto contemplativo, e percebemos que ele está, de fato, integrado à
paisagem. Ele próprio se denomina contemplativo: "E lá está o joão-grande, contemplativo,
ao modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista de galo e coral."
(ROSA, 1984, p. 259) Entretanto, ao passo que a narração vai se desenvolvendo e que ele vai
se embrenhando na mata e tecendo os seus comentários, percebemos que se trata mais de um
observador da natureza, (à semelhança dos cronistas de viagem, que tinham uma relação de
profundo interesse e curiosidade com a paisagem tropical e seu exotismo) que propriamente
um homem dado à contemplação. De certo modo, lembra-nos o próprio João Guimarães Rosa
nas suas viagens, quando sempre tinha o cuidado de anotar tudo o que via e ouvia. Grande
conhecedor da paisagem natural brasileira, de sua flora e fauna, os aspectos geográficos,
botânicos e geomorfológicos faziam parte dos seus estudos e pesquisas. Acrescente-se a este
espírito pesquisador do autor o seu espírito místico, que lhe propiciava um aprofundamento na
cultura do seu povo, em suas superstições e crenças, não por simples curiosidade, mas porque
reconhecia nelas um modo diferenciado e singular de ser brasileiro, de lidar com as questões
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existenciais universais. Rosa acreditava e valorizava a religiosidade do homem do sertão, não
por complacência, mas porque, junto a sua erudição, cultivou outra, voltada para os mistérios
que eram traduzidos na boca de gente simples, como os vaqueiros, jagunços, feiticeiros,
homens e mulheres vinculados à terra brasileira e à natureza, pessoas a quem ele quis dar
ouvidos e voz. É uma gente que faz parte de um universo mítico, à margem das verdades
cartesianas e de uma cultura obsecada em desvendar todos os mistérios.
Voltando a “São Marcos” , é bom lembrar que nesta estória o protagonista está
protegido pela forte luz da manhã. Já Mangalô situa-se em lugar mais fechado, de menos
claridade. Para o primeiro, tudo é mostrado. No que diz respeito ao segundo, a luz da razão
não é a que o ilumina. E para chegar a sua casa, José precisou seguir não os seus
conhecimentos, mas os seus instintos, e para tanto foi preciso perder a visão . Veremos, ao
final da estória, que ele foi levado à casa do feiticeiro pelos instintos e não pela razão. É o que
nos mostra esta passagem: “Porque a ameaça vinha da casa do Mangalô. Minha fúria me
empurrava para a casa do Mangalô. Eu queria, precisava de exterminar o João Mangalô!” ...
(ROSA, 1984, p. 267) A certeza de que fora cegado pelo outro atiçava-lhe o desejo de
eliminá-lo. Podemos interpretar esta fala por uma perspectiva menos literal e mais simbólica,
ou seja, ele precisava exterminar a cultura e os poderes do outro, que o colocaram numa
posição inferior, vexatória e patética. Fora subjado no que tinha de mais potente: seus olhos,
sua capacidade de ver, de examinar, de analisar. Ironicamente, quem lhe tirou a visão foi um
feiticeiro, de quem ele vivia zombando e escarnecendo. Portanto, era necessário exterminar
tudo que este homem inculto representava. Mas a resposta que o feiticeiro lhe dá revela o que
de fato o início da narração já preconiza, ou seja, que José precisava ficar uns tempos sem ver,
e, sobretudo, sem ver Mangalô, pois este representava o outro lado das coisas vistas, a sombra
da mata, os mistérios do mito, do interdito. A outra face da luz. Por isso, a fala final do
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feiticeiro - revestida de um tom jocoso e irônico - representa para nós a maior metáfora desta
narrativa, pelo que ela oferece de resposta à visão unilateral do interlocutor: “ – Não quis
matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, p’ra
Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de ficar fechado, p’ra não
precisar de ver negro feio...” (ROSA, 1984, p. 268)
3.1.1 Duas visões em “São Marcos”
Numa mistura de contemplação e superstição, este conto nos oferece dois olhares: o
do homem analítico e cético, e o do pai-de-santo. E nos faz meditar mais cuidadosamente
sobre aquele conhecido ditado popular segundo o qual “O pior cego é aquele que não quer
ver.” Talvez a deficiência visual em si não seja o maior obstáculo, ou o maior impedimento
para a visão, mas a maior interdição para a compreensão das coisas é a cegueira, no seu
sentido mais amplo e, por que não dizer, metafísico. Em “O Espelho” , de Primeiras estórias,
o narrador, questionando as máscaras que mostra um espelho, cuja visão gera bastante
confusão no personagem, que, ao se ver, nunca sabe de fato quem está vendo, lança a
seguinte pergunta: “Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível?”
(ROSA, 1994, p. 437) O narrador chama a atenção também para a presença intangível do
mistério que o espelho só evoca, e que algum tipo de cegueira mantém obscurecido. “Tudo,
aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos ou a ausência deles. Duvida? Quando nada
acontece, há um milagre que não estamos vendo. “ (Ibidem, p. 437)
Voltando ao conto de Sagarana, observamos que a outra parte do conto, ainda que
literalmente descreva o momento em que José perde a visão e mostre as repercussões disto,
traz na contramão desta perda o ganho de um novo olhar, que, agora, não mais genuíno, mas
perdido, precisa ser construído, reconquistado e relembrado. Nesse momento dilacerante e
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crucial do protagonista, o que o conto nos ensina é a possibilidade de reaprender a ver, a partir
do olhar de dentro, pois o que era dádiva e transparência tornou-se privação, mas também
possibilidade para a aventura de um novo conhecer. Desafiado pelo "antagonista"- o
feiticeiro Mangalô - o protagonista sai de um estado de equilíbrio, promovido pelo inteiro
domínio de seus sentidos, para um estado de torpor e fúria que o faz rezar sem pensar, movido
por uma doideira, zoeira e pavor. E, de fato, ele reza. Como ele mesmo relata: “E, pronto, sem
pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos. Minha voz mudou de som, lembro-me, ao
proferir as palavras, as blasfêmias que eu sabia de cor..” (ROSA, 1984, p.267)
Sua oração, no entanto, vem misturada com raiva. Nasce, como os outros
sentimentos, de uma experiência instintiva: “Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo (...)” (ROSA,
1984, p. 265) Sobre esta atitude do personagem, Delmaschio faz uma observação muito
apropriada. Em artigo sobre “São Marcos” a autora observa que “Diante do inexplicável,
reformulam-se valores e verdades. Assim como os demais, o personagem Izé também nutria o
sentimento religioso, apenas a oportunidade o expõe.” (DELMASCHIO, 1998, p.68) No
lugar do ser que contempla, cujos olhos banhados de luz lhe dão onisciência e conhecimento,
emerge uma fera dele próprio desconhecida. É muito valioso este jogo de ver e não ver: o ver
que se liga à razão, e o não ver que atiça a falta dessa razão. Somente quando vira um
“bicho” , consegue rezar.
Mangalô representa a sombra, a turvação misteriosa do feitiço, das práticas que
escapam à claridade do dia. O protagonista é o convite à claridade, ao olhar atento ao qual
nada escapa e do qual nada é resguardado. No encontro de ambos, temos sugerido o encontro
da luz da razão e dos mistérios que esta não pode revelar ou abarcar. O protagonista se
caracteriza principalmente pelo domínio que parece ter sobre as coisas vistas e por um enorme
desejo de olhar e conhecer. Mas a força da sua visão é aquela que vem da razão e da análise,
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pois ainda que ele seja um homem, a seu modo, contemplativo, e aprecie os recursos da
natureza e se dedique a observá-los, ele se sustenta somente por este olhar que é fruto da
claridade. Negando os mistérios, ele afasta de si qualquer possibil idade de escuridão que o
mistério possa suscitar. Conforme a autora supracitada, a respeito do protagonista:
Toda segurança que mantinha a princípio apoiava-se na idéia de luz; por extensão, de clarezaracional. Na sua trajetória retilínea pela vida, bastava-lhe como segurança de continuidade asimples claridade do dia.(...) Quando a luz lhe é retirada, ele precisa descobrir uma novamaneira de ver. A partir de então irá reaprender a se guiar, valendo-se dos sentidos queestavam antes embotados, como agora está a sua visão. Guia-se então pelo tato e pelaaudição, até poder refazer o percurso, que desta vez o levará à cabana do feiticeiro, onde seencontra em efígie. Neste momento, não lhe valem mais a clareza, a idéia de racionalidade, oorgulho advindo do seu status com relação ao pai-de-santo..” ( DELMASCHIO, 1998, p. 64)
A perda da visão, neste caso, antecedida como já mencionamos, por um farto
espetáculo de luz, brilho, sons e cheiros, sucede-se por um breve intervalo narrativo em que,
seguindo-se a uma série de enunciados narrativo-descritivos, um parágrafo é construído
economica e silenciosamente por uma única palavra. "PAZ" (ROSA, 1984, p. 261)
A partir daí há uma nova seqüência de enunciados breves e coordenados, revelando e
sugerindo uma perfeita gradação até o protagonista chegar à perda total da visão: "E, pois, foi
aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de
grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E
escureceu tudo." (ROSA, 1984, p. 261)
Após esse momento, o olhar do personagem é fisgado pela memória. E todos os
registros oferecem-se a um conhecimento súbito e ao mesmo tempo arduamente conquistado.
Toda a força do seu olhar interior precisou trabalhar nele e criar-lhe a coragem e o ímpeto
necessários para re-agir. E é assim que ele se vê, revê-se nas suas camadas de homem furioso,
primitivo, ativo e crente. Enfezado, dá os primeiros passos, cai, se machuca, se torna um fero.
Os olhos ouvem. Os ouvidos vêem. Estes processos pelos quais passam o personagem ao
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perder a visão merecem ser considerados também por uma visão goetheana, pela lucidez e
lirismo com que esta situa a força dos sentidos na captação da luz que emana da natureza.
Para Goethe,
A totalidade da natureza também se mostra a outro sentido. Fechando os olhos, o ouvido seaguça: do mais leve sussurro ao mais selvagem ruído, do som mais simples à mais elevadaharmonia, do grito mais veemente e apaixonado à palavra mais suave da razão, é somente anatureza que fala e revela sua presença, poder, vida e relações. Mesmo privado davisibilidade infinita, um cego pode, pela audição, perceber uma infinita vitalidade. (...)Assim fala a natureza ao incidir sobre outros sentidos conhecidos, não-reconhecidos ou aindadesconhecidos; assim fala consigo mesma e conosco através de milhares de fenômenos. Emparte alguma emudece ou morre para o observador atento. Mesmo ao rígido corpo terrestreela dá um confidente, um metal, em cujas menores partes se pode perceber aquilo queocorre, com a massa inteira.” (GOETHE, 1993, p. 36)
De fato, quando José perde a visão, ocorre uma inversão total dos procedimentos.
Até o que é pura abstração de repente pode ser apalpado, como ele mesmo afirma: "A ameaça,
o perigo, eu os apalpava quase. " (ROSA, 1984, p. 267) De espectador contemplativo e
onisciente, o protagonista passa à posição daquele que é visto, sondado, contemplado. Agora é
a natureza, são as coisas sensíveis que o vêem. Percebemos, deste modo, uma oscilação das
linguagens. O movimento da natureza, dentro da perspectiva do protagonista, é condicionado
pela vulnerabilidade de sua posição. Por outro lado, deslocando-se do centro das coisas, o
personagem deixa de ser o senhor da natureza, e dá o primeiro passo, ainda que involuntário,
para percebê-la como parte dela, e senti-la como parte de si mesmo. Conforme Goethe, a
natureza fala conosco e consigo mesma por meio de milhares de fenômenos. Para o autor de
Doutrina das cores, mesmo um corpo rígido poderá ser agraciado por uma dessas nuanças
comunicativas. Goethe nos lembra que “Por mais variada, confusa e incompreensível que essa
linguagem nos possa parecer, seus elementos permanecem sempre os mesmos. A natureza
oscila com um leve movimento pendular, cria um aqui e um ali , um alto e um baixo, um antes
e um depois, aos quais estão condicionados todos os fenômenos, que se manifestam para nós
no tempo e no espaço.” (GOETHE, 1993, p. 36)
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Esta passagem do conto nos faz pensar que nas nossas complexas relações com a
natureza, é possível deixarmos de focá-la como um objeto - alvo a ser atingido, território a
ser desbravado – e nos reconciliarmos e nos identificarmos com ela. Deixamos em suspeno o
olhar armado, e oferecemos à experiência dos sentidos o prazer de um olhar que não quer
conquistar ou domesticar, mas reconhecer-se. Ao referir-se a Caieiro, em seu estudo sobre
Fernando Pessoa, Perrone-Moisés afirma: "para Caeiro, como para os mestres do zen, o
olhar não é instrumento de análise mas abertura receptiva ao real; muito diferente do olhar
ocidental, que é ataque armado de conceitos, carregado de intenções intelectivas ou de
projeções psicológicas, olhar que separa, que cinde, que destrói." (PERRONE, 1988, p. 335)
Este olhar de que nos fala Caeiro em muito nos lembra o olhar do personagem em questão, até
que na virada da estória alguma transformação, quiçá, possa acontecer.
3.1.2 Os sentidos da visão
Nesta estória o encontro do pajé com o homem dito “civil izado” é marcado por
situações adversas. No primeiro encontro, José critica o feiticeiro, e, ao final, quando
descobre que alguém é que o cegara, deixa-se guiar instintivamente até a sua casa, onde uma
luta é travada. Esta luta entre os dois metaforiza um verdadeiro embate entre as culturas e os
universos diferentes. Como descreve o narrador sobre o protagonista: “ Fui em cima da voz.
Ele correu. Rolamos juntos, para o fundo da choupana. Mas, quando eu já o ia esganando,
clareou tudo, de chofre. Luz! Luz tão forte, que cabeceei, e afrouxei a pegada." (ROSA, 1984,
p. 268) Neste momento, é o homem bruto, rude, pai-de-santo que vai ensinar alguma coisa ao
homem culto e letrado. São muito esclarecedoras as reflexões de Delmaschio sobre as tensões
geradas entre estes dois personagens: “Repentinamente tomado ao seu mundo como
marionete de Mangalô, ele reconhece instintivamente que agora é preciso lançar mão das
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regras de outro jogo, onde não o auxilia mais o pensamento lógico, pois invadira o terreno do
mágico, do lúdico.” ( DELMASCHIO, 1998, p. 64)
Mas ainda assim, ele não se rende, e propõe um acordo ao pai-de-santo, ao seu
modo, nos seus termos, e estende o que ele chama de “bandeira branca: uma nota de dez mil-
réis.” (ROSA, 1984, p.268) A sua última fala deixa em suspenso para o leitor se valeu ou não
o castigo a que foi submetido, e se ele compreendeu os significados do rito que vivenciou.
Não fica claro se o que teve foi mais uma experiência exótica, ou uma vivência de algo mais
profundo e significativo, pois estendida a “bandeira branca”, assim se dirige a Mangalô: “ –
Olha, Mangalô: você viu que não arranja nada contra mim, porque eu tenho anjo bom, santo
bom e reza-brava... Em todo o caso, mas serve não termos briga... Guarda a pelega. Pronto!”
(ROSA, 1984, p. 268)
Ao final da estória, o protagonista recobra a vista: "E como era bom ver!" (ROSA,
1984, p. 268) Esta exclamação, diluída na fala do narrador e do protagonista, remete-nos
imediatamente àquela passagem de "Campo geral" em que Miguili m coloca os óculos e olha.
É o que nos descreve o narrador: "Miguil im olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma
claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. (ROSA,
1994, p. 541) Embora em "São Marcos" tenhamos uma visão e um olhar reconquistado e em
"Campo geral" um olhar inaugurado, a exclamação "E como era bom ver"!" (ROSA, 1984, p.
268) sintetiza as próprias premissas do autor Guimarães Rosa e de todos os personagens
rosianos que, no fundo de todas as coisas estão buscando, simplesmente, ver. Riobaldo, em
Grande sertão: veredas - é bom que nos lembremos disso - ao falar do passado, retoma
aquele olhar que não conseguiu ver em Diadorim a mulher que ela era. Por isso, diante da
revelação final pergunta-se como é que não pôde ter visto. Na verdade não será esta - Como
foi possível que não tenhamos visto? - uma pergunta comum a todos nós?
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A beleza de “São Marcos” não está apenas na descrição detalhadíssima da natureza,
e na exploração profunda dos sentidos. O que salta aos nossos olhos, após outras leituras, é a
tensão entre as duas posições: a do homem letrado, e a do feiticeiro. “São Marcos” é um
embate entre duas visões, para, no final, realizar a fusão entre as duas. José representa o olhar
da experimentação, da ciência que analisa, que separa as partes para ver melhor. Mas
representa também o olhar que se maravilha e se deleita. O feiticeiro Mangalô situa-se do
outro lado da mata, nas suas brenhas . Ele, diferentemente de José, tem a consciência de que é
um ser da natureza; não se dirige a ela, mas movimenta-se nela e a partir dela, numa relação
orgânica e não especulativa. Seus conhecimentos são de outra ordem, cultivados no terreno do
invisível e da superstição, não no que esta tem de sentido pejorativo, mas no seu sentido mais
vigoroso. José, por sua vez, menospreza este tipo de conhecimento, porque já internalizou o
seu como sendo o único possível. Penetra sozinho na mata, num dia em que todos estão
afastados do lugar. Assim, poderá exercer o seu individualismo e não ser confrontado com
nenhum inoportuno tipo de crendice. Sua visão é plenamente exercida neste dia, é a visão do
pesquisador, à qual não escapa nenhum detalhe da paisagem. Na verdade ele vivencia
intensamente a frequência de todos os sentidos, porque está sozinho, cercado tão somente
pelas cores, pelos sons, pelos cheiros e pela textura dos seres que povoam a mata. No entanto,
é a visão o sentido mais apurado neste momento e é a ela que ele vai se entregar.
Neste conto chamou-nos especialmente a atenção o jogo simbólico travado no
embate entre a visão e a cegueira. Uma das possibil idades interpretativas que se abre ao leitor
é a que se refere ao ato de ver, neste caso, como a não-penetração nos mistérios propiciados
pela vivência do pensamento mágico e religioso. Ou seja, é a visão do cético. O protagonista,
sem dúvida, tem uma visão bem apurada e perspicaz, mas para o deleite da paisagem, seja no
que esta oferece de grandioso ou de delicado. No primeiro momento da narrativa, ele ainda
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tem sob controle o sentido da visão, que chamaremos, dadas as situações, de visão para fora.
Certamente que o que ele vê lhe dá prazer, enlevo, e o extasia. Tais sentimentos ou sensações
são nutridos por esta abertura para a visão/contemplativa da natureza. Poderíamos nos deter
apenas neste tipo de interpretação, não fosse o outro aspecto oferecido pelo texto, que é o que
concerne à experiência mágico-religiosa fortemente apresentada na estória. E é nesse sentido
que a estória começa a gerar tensões, pois neste âmbito o protagonista tão culto, observador e
cético parece desprovido de uma outra qualidade de olhar que é aquele que nos propicia
reconhecer e respeitar os valores e as verdades do universo mítico-religioso.
Ao entrar na mata renegando e confiscando interna e externamente qualquer
manifestação religiosa local, fica claro de que posição ele vê o outro. Numa relação panteísta
com o lugar, sua linguagem revela conhecimentos gerais que delimitam, desde o início, o seu
espaço e o dos restantes da comunidade. Pelo texto afora temos pistas de como ele interpreta
as exortações, os avisos e presságios, e como desconsidera o mistério das superstições e os
motivos espirituais que inspiram as vivências das outras pessoas. De certo modo e dentro do
contexto em que ele se situa há uma lacuna no seu modo de ver, o que ficará muito evidente à
medida que o seus traços forem se impondo. O contraponto com a visão tão minuciosa e
investigativa que ele possui só vem à tona em função da presença do feiticeiro Mangalô que
cultiva um outro tipo de olhar e sente-se desrespeitado, ironizado e até mesmo confiscado
por José no que diz respeito aos seus saberes.
Guimarães Rosa foi mesmo um mestre em relativizar as posições e os pontos de
vista. A estória já valeria pela viagem do protagonista na mata e pelo arrebatamento do seu
olhar diante da paisagem que se-lhe oferece. No entanto, perderíamos muito não fosse o
contraponto deste personagem com o universo de Mangalô, que desconstrói este tipo de visão
unilateral e racional do protagonista, metaforizada na construção de um vudu de José, com os
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olhos vendados. Este gesto inaugura um novo processo de experiência da visão, nos moldes
espirituais e não mais puramente cartesianos. Com esta atitude o feiticeiro instaura o rito,
condensando e utilizando os seus poderes. José é introduzido, como muitos personagens de
Rosa, a um ritual de passagem. No início da narração o protagonista enumera uma série de
crendices, a que chama de “contra-senso” . (ROSA, 1984, p. 241) O seu discurso reforça a sua
descrença em relação às manifestações religiosas da comunidade. “Mas, feiticeiros, não. E me
ria dessa gente toda do mau milagre (...)” (Ibidem, p. 241) A descrição que José faz de
Mangalô, considerado por nós o eixo da tensão criada nesta estória, revela o descaso para com
ele e suas práticas. É o que nos mostra esta passagem: “(...) e do João Mangalô velho-de-
guerra, voluntário do mato nos tempos do Paraguai, remanescente do ‘ano da fumaça’,
liturgista ilegal e orixá-pai de todos os metapsíquicos por-perto, da serra e da grota, e mestre
em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro moído, vuduísmo, amarramento e
desamarração.” (ROSA, 1984, p. 242)
Não obstante a sua intenção de manter-se afastado do pai-de-santo, parece sua sina
segui-lo. Para chegar ao mato das Três Águas, por exemplo, José tomou um atalho que dava
em frente à maloca do velho. Percebe-se que nesta estória o protagonista está completamente
só, é minoria absoluta no que diz respeito à força supersticiosa do povo de Calango-Frito. Pois
como ele mesmo diz: “Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-Frito.”
(ROSA, 1984, p. 243) Para ele tudo isso eram “Bobagens!” (Ibidem, p. 243), inclusive as
recomendações de sua cozinheira para que não debochasse de Mangalô, considerado uma
pessoa de respeito no lugar, como se pode perceber. Mas para José, o que importava, de fato,
era poder embrenhar-se na mata e VER. Bastavam-lhe o espaço aberto da manhã e a luz
radiante do céu, pois o seu enfoque nesta estória é outro, bem como o é sua relação com o
lugar. Chamam-nos a atenção os verbos que aparecem no trecho em que ele narra sua entrada
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na mata. Por exemplo encontramos as orações “...para ver” , “... para assistir” , “... para saber” ,
“... para apostar” , “...para estudar” (ROSA, 1984, p. 244), além da conjunção indicativa de
finalidade, cuja reiteração revela os fins que motivam as ações do observador. Pareceu-nos
que todos os verbos citados neste trecho são puros desdobramentos dos verbos ver e conhecer.
3.1.3 Bem-aventurados os que sabem ver
Este olhar, marcado por finalidades bem definidas e objetivas, traz à tona uma outra
questão ligada ao modo como se concebe o outro, o diferente. A partir do olhar do
protagonista conhecemos Mangalô, porque é o primeiro e não o segundo que detém o
discurso, e é a sua visão que inicialmente predomina na narrativa. Portanto, a descrição que
José faz do feiticeiro deve ser considerada também no que ela possui de subjetivo. “Preto;
pixaim alto, branco amarelado; banguela; horrendo.” (ROSA, 1984, p.245) Na verdade, o
último adjetivo da série expressa a visão bem particular que José tem do velho, o que fica
evidente não só nos detalhes físicos, mas nas expressões de deboche utilizadas com relação a
tudo que vem dele. Mais à frente, estabelece-se um diálogo entre os dois, e fica evidenciada a
visão que o protagonista tem do velho, cuja cor lhe parece estar associada a todo tipo de
mandinga. Tais observações nos ajudam a definir com mais clareza o olhar do homem culto
no que diz respeito ao velho, negro, místico e feiticeiro. O diálogo vale também pela leveza e
ironia de suas inflexões, portanto o transcreveremos na íntegra:
“ - Ó Mangalô!
- Senh’us’Cristo, Sinhô!
- Pensei que você era uma cabiúna de queimada...
- Isso é graça de Sinhô...
- ... Com um balaio de rama de mocó, por cima!...
- Ixe!
- Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? ‘Primeiro: todo negro écachaceiro...’
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- Oi, Oi!...
- ‘Segundo: todo negro é vagabundo.’
- Virgem!
- ‘Terceiro: todo negro é feiticeiro...” (ROSA, 1984, p. 246)
Percebe-se, após este diálogo, que o negro, sentindo-se ferido, encolhe-se. Quanto a José, a
sua falta de percepção impediu-o de reconhecer as repercussões que este movimento teria
sobre a sua visão. Posteriormente, Mangalô atingiria o alvo certo: os olhos do interlocutor.
Veremos, ao final da narração, que, não obstante o velho se “vingue” da ofensa feita por José,
é de forma lúdica e debochada que o faz, usando os recursos que tem. E, por meio de sua
fala, deixa claro o ensinamento que ele pretende oferecer ao seu “antagonista”. Surpresa
maior será para o leitor, pois a estória deixará em aberto se houve ou não a transformação do
protagonista. Outro ponto importante a ser observado é que a narrativa revela uma relação de
total descaso de José com as orações e as palavras sagradas. A passagem em que encontra
Aurísio Manquitola, por exemplo, evidencia que o que é valor para um pode não representar
nada para o outro. Se para Manquitola algumas palavras têm força e não devem ser ditas
desavisadamente, José usa, sem o menor senso de respeito, palavras consideradas
ritualísticas. É o que faz ao recitar a oração milagrosa de “São Marcos” . Se a sua perspectiva é
não só a do cético como também a do zombador, a do interlocutor com quem conversa nesta
passagem é a de temor e respeito diante do proibido. Vemos mais um exemplo de tensão entre
as visões ou os olhares. O que é sagrado para um, é banalizado na boca do outro. Assim, ao
recitar desavisadamente a oração de “São Marcos” , José é admoestado por Aurísio
Manquitola: “ – Pára. Creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que
é que está bulindo! É melhor esquecer as palavras... (ROSA, 1984, p. 247)5 Ao que José
5 Observe-se que “palavras” vem escrito em itáli co, recurso muito util izado por Guimarães Rosa,
quando pretende chamar a atenção sobre determinada idéia, ou valorizar determinado vocábulo. O itálico, nestecaso, além do seu significado dentro do contexto da narrativa, faz-nos pensar em como a palavra é considerada
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responde: “- Bem, Aurísio... Não sabia que era assim tão grave. Me ensinaram e eu guardei,
porque achei engraçado...” (Ibidem, p. 247) Mas Manquitola mantém o seu discurso no
mesmo nível de sua crença e responde: “ – Engraçado?! É um perigo!...Para fazer bom efeito,
tem que ser rezada à meia-noite, com um prato-fundo cheio de cachaça e uma faca nova em
folha, que a gente espeta em tábua de mesa...” (ROSA, 1984, p. 248) Neste trecho diluem-se
palavra ritualística, palavra sagrada da oração e palavra do texto, sempre sagrada. Veremos
que esta valorização da palavra como elemento catalizador de forças aparecerá em vários
outros momentos, nas narrativas que apreciaremos. A crença no poder da palavra redunda em
outras passagens de “São Marcos” , como por exemplo: “ – Não fala, seu moço!... Só por a
gente saber de cor, ela já dá muita desordem.” (ROSA, 1984, p. 248) é o que adverte Aurísio
Manquitola, ao ouvir José proferir “o nome do caboclo Gonzazabim Índico” (Ibidem, p. 248)
referente a uma passagem da oração milagrosa e proibida. Também bastante supersticioso,
este personagem acredita nos poderes de Mangalô e embora considere José alguém de muita
instrução, percebe que algo importante escapa aos seus conhecimentos, porque ele desconhece
muitas coisas em que ele e os outros acreditam. “(...) O senhor, que é homem estinctado,6 de
alta categoria e fé, não acredita em mão sem dedos, mas...” (ROSA, 1984, p. 248) E começa a
contar uma estória, que é o jeito que ele tem de se explicar e ilustrar o que diz. Mais uma vez
esta técnica dos encaixes narrativos convida o leitor aos jogos textuais, marca do estilo de
Guimarães Rosa, e, sobretudo, aponta para a forte oralidade que conduz e potencializa os
enredos com suas verdades, próprias da ficção. Para as pessoas como Aurísio Manquitola, é
no ato de contar um caso que a reflexão pode ser tecida, e não por meio do discurso analítico.
plena de poderes na obra de Guimarães Rosa e como o texto rosiano se constrói como um processo alquímico,tendo como ingrediente mais importante, vigoroso e transformador a palavra.
6 Com relação à palavra estinctado, Nil ce Sant’Anna MARTINS (2001, p. 208) apresenta os seussignificados, relacionando-a aos seguintes termos: instruído, educado, distinto, “corruptela de ‘ - distincto’(com efeito de humour)”.
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Uma estória ainda é, para os personagens rosianos - ao modo das culturas de tradição oral -,
a melhor forma de se mostrar o que parece ser inacessível ao interlocutor.
Em Ética a Nicômaco, Aristóteles exorta:
...atividade dos deuses, que supera todas as outras em bem-aventurança, deve sercontemplativa; consequentemente, entre as atividades humanas a que tiver mais afinidadescom a atividade de Deus será a que proporciona a maior felicidade. Uma confirmaçãoadicional desta ilação é que outros animais não participam da felicidade, porque sãocompletamente destituídos desta atividade. De fato, toda a existência dos deuses é bem-aventurada, e a atividade dos seres humanos também o é enquanto apresenta algumasemelhança com a atividade divina, mas nenhum dos outros animais participa da felicidade,porque eles não participam de forma alguma da atividade contemplativa. Então a felicidadechega apenas até onde há contemplação, e as pessoas mais capazes de exercerem a atividadecontemplativa fruem mais intensamente a felicidade, não como um acessório dacontemplação, mas como algo inerente a ela, pois a contemplação é preciosa por si mesma.A felicidade, portanto, deve ser alguma forma de contemplação. (ARISTÓTELES, 1992,1177A -1178B, p. 201-205)
Podemos ver como o ato de contemplar está intimamente ligado ao ato de ver. E
também que o protagonista de "São Marcos" corresponde a este ideal aristotélico que coloca
o ato de contemplar como faculdade divina, ou atributo divino. À medida que o herói-
narrador vai se embrenhando na mata densa, a força da descrição aumenta, porque a
vitalidade da visão é fortalecida também. É muito interessante essa analogia entre
aprofundamento e detalhamento das coisas vistas, ou seja, o ato de sair do bambual –
superfície - e de entrar na mata - profundidade – relacionam-se com as gradações do olhar. A
descida do protagonista a esta mata revela um espírito inebriado com o que vê. Este olhar,
transfigurado pela contemplação das pequenas e grandes estruturas do lugar, extrapola o
simples ato de ver e de admirar-se, e expressa outras dimensões que o conto apresenta,
classificadas por RONCARI em "mítica, cósmica, simbólica e alegórica." (RONCARI, 2004,
p. 132) E é ainda este autor que nos convida a apreciar o seguinte trecho:
Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas,esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo comespirais constrictas. De perto, na tectura sóbria – só três ou quatro esgalhos – as folhas sãoestrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como
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chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada,encantadas, presas, no labirinto do mato. (SAGARANA, 1971, p. 241)
"São Marcos" é uma preparação para o diálogo entre os sentidos. Antes de passar
pela provação/privação da perda, o protagonista usufruía da plenitude de uma visão pautada
exclusivamente pelos critérios da inteligibil idade. Os olhos com que ele via eram os olhos
soberanos da análise, que tinham primazia sobre os outros sentidos. A perda da visão
desencadeou uma desestruturação na apreensão das coisas somente por um sentido, e apurou
os outros. O protagonista vai do caminho da inteligibil idade para o caminho mais visceral que
é apalpar, cheirar, imaginar. Outras competências do protagonista são acionadas, e um diálogo
entre os sentidos é propiciado. Caso contrário, seria a morte física e psíquica do personagem,
pois suas chances de sobreviver ficaram, de uma hora para outra, limitadas.
Talvez este seja o único conto em que as relações sensoriais sejam exploradas de
modo misturado, como única forma possível de resgatar o personagem para o enfrentamento
com o antagonista. Para descobri-lo e confrontá-lo foi necessário reunir, muito mais que força
física, forças sensoriais conjugadas. O que era unívoco, o sentido da visão, justamente na sua
ausência, ganhou aliados como o tato, o olfato, a própria percepção, o medo, outras formas de
ver e de avaliar. Deste modo, longe de ser um conto em que o olhar ocupa lugar soberano,
esta narrativa aponta para a necessidade do diálogo e da mistura entre os outros sentidos
humanos, para que aprendamos a ver com as mãos, e tocar com os olhos, num criativo
processo de inversão das hierarquias dos sentidos. Trata-se de um verdadeiro questionamento
da hierarquia da visão aristotélica sobre a qual falamos anteriormente.
Complementando nossas afirmações, recorremos a Merleu-Ponty que nos mostra
que:
...Cada "sentido" é um "mundo", isto é, absolutamente incomunicável para com os outrossentidos, e, no entanto, constrói um algo que, pela sua estrutura, de imediato se abre para omundo dos outros sentidos e com eles constitui um único Ser. A sensorialidade: por
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exemplo, uma cor, o amarelo; ultrapassa-se a si mesma: desde que se torna uma coriluminante, cor dominante do campo, cessa de ser determinada cor, tem, por conseguinte, deper si uma função ontológica, torna-se apta a representar todas as coisas... (...) Num únicomovimento, impõe-se como particular e cessa de ser visível como particular. O "Mundo" éeste conjunto onde cada "parte", quando a tomamos por si mesma, abre de repente dimensõesilimitadas, - torna-se parte total. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 202)
“São Marcos” é uma estória que redimensiona o sentido da visão e os seus
significados, colocando em perspectiva o ato de ver como um gesto cultural. Revela também
o quanto a primazia de uma visão unilateral sobre outras formas de ver e compreender podem
nos tornar turvos e obtusos.
A primeira frase do conto, dita pelo protagonista-narrador: “NAQUELE TEMPO EU
MORAVA no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros.” (ROSA, 1984, p. 241) faz-nos
considerar que, se o texto começa dizendo que ele não acreditava, é possível deduzirmos daí,
a partir deste tempo verbal e da localização temporal, que algo poderá ter mudado, dada a
distância sugerida pelo dêitico aquele, e pela conotação que o pretérito imperfeito possui, isto
é, a ação não está de todo concluída. Significa que podemos pensar que algo mudou na visão
do protagonista e que há possibil idades de que o rito de passagem, provocado pela cegueira,
tenha propiciado um novo olhar. Pensando nisso é possível encerrarmos nossas discussões
sobre “São Marcos” relacionando os verbos crer e ver. José desejava, sobretudo, ver; mas,
como ele mesmo diz quando a estória principia, “não acreditava em feiticeiros.” (ROSA,
1984, p. 241) Tudo isso, porém, nos diz o texto também lá no início, foi “NAQUELE
TEMPO...” , e considerando que muita coisa acontece entre o início de uma estória e o seu
desfecho, talvez possamos crer que alguma transformação se tenha passado com o
personagem desde aquele tempo. E se numa frase podem estar contidos os ecos de todo o
enredo, seu princípio, seu meio e seu fim, o breve enunciado que introduz “São Marcos”
parece por si só anunciar o que há de vir, depois do pretérito imperfeito, aqui muito
simbolicamente escolhido e utilizado pelo autor. Trata-se de mais uma demonstração de que
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a vida é, conforme acreditava Guimarães Rosa, constante mutação e que nada está, de fato,
concluído.
3.2 O NARRADOR E SEU OLHAR: “A BENFAZEJA”
A cor do carvão é um mistério; a gente pensa que ele é preto, ou branco." ("A benfazeja", p. 478)
O olhar do narrador de "A benfazeja" é um outro olhar que nos chama muito a
atenção: capcioso, atento, minucioso, apelativo e emotivo, é ele que nos convida e até nos
incita a traçar um novo paradigma do olhar. A presença deste narrador persuasivo não nos faz
descansar, e o que ele nos propõe é, mais que tudo, uma revisão. Este conto aponta para a
busca da essência íntima da realidade, e a superação das dicotomias aparência e essência.
Podemos mesmo afirmar que a superação da própria aparência como realidade é o foco
escolhido pelo narrador deste conto.
Nesta parte do nosso trabalho, falaremos sobre uma mulher que muito nos chama a
atenção: Mula Marmela, protagonista de "A benfazeja", (Primeiras estórias). Chama-nos a
atenção, primeiramente, a forma como ela se comporta e responde aos seus instintos. Além
disso, impressiona-nos a sua inserção dentro da comunidade, o olhar desta sobre ela e a
cegueira na qual está imersa a comunidade. Finalmente, saltam às nossas vistas os
mecanismos utilizados pelo narrador a fim de tornar conhecida tanto a cegueira dos
moradores, quanto o que subjaz aos comportamentos aparentemente nocivos da protagonista.
Por meio da visão do narrador será possível contemplarmos, nesta mulher estranha e
excêntrica, algum ponto despercebido que lhe dá um toque de humanidade e quicá, até de
beatitude.
Trata-se de uma estória em que somos questionados - tanto quanto a comunidade em
que está inserida Mula Marmela - em relação à forma como vemos e julgamos a protagonista
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da estória. De certo modo, somos convidados a nos ver. Como é que nos vemos? Por que
filtros passa o nosso olhar até que possamos dizer: é isso o que eu vejo? E o que vemos, será
mesmo o que pensamos que vemos? Estes são questionamentos que este conto nos suscita.
A protagonista desta estória, descrita pelo narrador como "A mulher – malandraja, a
malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não
arrependida – e guia de um cego." (ROSA, 1994, p. 475) segue o seu destino, com padrões de
comportamento muito singulares e pessoais, movida por algum tipo de sentimento ou desejo
nem sempre revelado para nós, leitores, e por meio de códigos próprios e de leis internas,
que, de modo algum se encaixam com as da comunidade em que vive, mas que, por ironia do
destino, ou devido aos paradoxos da trama, têm uma espécie de reconhecimento especial do
narrador.7
Nesta estória, somos chamados a rever certos conceitos, começamos a ter
sentimentos ambíguos e os nossos julgamentos passam a se dissolver nas falas e nas
exortações do narrador. O narrador convida leitores e personagens a olharem. Para onde? Para
quem? Para o quê? No fundo, para si mesmos, para os valores cultivados, e para os
preconceitos silenciosamente entalhados. Convite a ver, convite a desfazer padrões e pontos
de vista endurecidos. A fala do narrador se tece numa linguagem de libertação de amarras e de
vendas. Tirem as vendas dos olhos, é o que afinal propõe este narrador aconselhador e sábio.
Mula Marmela guarda segredos que não foram vistos, ela não é o que parece ser. Veremos
como uma comunidade inteira está irremediavelmente prisioneira da sua própria cegueira,
sendo esta tão comum e cotidiana, que só mesmo um narrador, que está afastado, pode nos
fazer ver. Mas veremos, sobretudo, que a membrana que turva a nossa visão, se retirada um
7 Sobre esta estória valeria um estudo aprofundado no que diz respeito, dentre outras coisas, às
motivações para fazer o mal. Aliás, tanto nesta estória, como na estória de Maria Mutema, contada em Grandesertão: veredas, há a predominância do mal, da maldade genuína, como se esta existisse anterior ao ser humano.O Mal se apresenta inevitável, sem motivações, e às vezes até como salvação e redenção.
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pouco do lugar, pode restabelecer a mais bela das paisagens e redimensionar os nossos
conceitos.
3.2.1. Olhar para rever
A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas. ("A benfazeja" p. 480)
Com este título já é possível imaginar a presença de alguém que faz o bem, ou de um
fazer dirigido para o bem. É o que esperamos a partir desta chamada. No entanto, nessa 17ª
estória, de "Primeiras estórias", a protagonista nos causa sentimentos dúbios, que só podem
ser dissolvidos se seguirmos os conselhos do narrador e fizermos uma revisão no nosso ponto
de vista. O que vem à tona, numa leitura superficial do enredo, é a crueldade como
procedimento cotidiano, como forma de vida. Mula Marmela seria, então, dentro dessa leitura,
uma personagem destinada a ser cruel. Carrega culpas pesadas, a morte do marido, o
tratamento dado ao enteado cego e a morte deste. Neste sentido, é oportuna a breve
apresentação/comentário do enredo feita por Costa Lima: "Em 'A benfazeja', a Mula-
Marmela, 'furibunda de magra, de esticado esqueleto, e o de sumir de sanguessuga', apunhala
o Mumbugo, o seu homem, e a gente fala que ajudara a apressar a agonia da morte do filho
cego. Mas, sob a aparente maldade da Mula-Marmela, descobre Guimarães Rosa que só o
amor a movia. Perplexamente, sob os seus aleijões, se revela o amor, a difícil palavra."
(LIMA, 1991, p. 506)
O elemento trágico e a perplexidade dialogam nesta estória. A perplexidade do
narrador é fruto menos da crueldade que ele narra, que do fato de a protagonista não ter sido
notada no que ela tem de melhor. Então, ao mesmo tempo em que ele tem a autoridade para
contar os procedimentos cruéis de Mula-Marmela, penetra em outras camadas da narração
que nos levam a abstrair a crueldade como um fato, e a sondar os recônditos dessa mulher
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aparentemente má. O olhar do narrador nos faz vacilar, e nos deixa em um lugar incômodo.
Sem a voz dele jamais teríamos conhecimento de que Mula-Marmela assassinara o marido e
os motivos que a levaram a isso:
Vocês sabem, o que foi há tantos anos. Esse Mumbungo era célebre-cruel e iníquo, muitocriminoso, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de perversias. Esse nunca perdoou,emprestava ao diabo a alma dos outros. Matava, afligia, matava. Dizem que esfaqueavarasgado, só pelo ancho de ver a vítima caretear. Será a sua verdade? Nos tempos, e por causadele, todos estremeciam, sem pausa de remédio. Diziam-no maltratado do miolo. Era o punirde Deus, o avultado demo – o 'cão'. E, no entanto, com a mulher, davam-se bem, amavam-se.Como ? O amor é a vaga, indecisa palavra. Mas, eu, indaguei. Sou de fora. O Mumbungoqueria à sua mulher, a Mula-Marmela, e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. Dotemor que não se sabe. Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar,com um ato de 'não', sua existência doidamente celerada. Talvez adivinhasse que em suasmãos, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e temia-a – de um temorigual ao que agora incessante sente o cego Retrupé. Soubessem, porém, nem de nada. Agente é portador. (ROSA, 1994, p. 476)
No entanto, como se percebe na fala do narrador, diluída e subjacente aos fatos, há
uma outra verdade, que é a missão salvadora que assume esta mulher, ao libertar toda a
comunidade de um homem insano e cruel como era o seu marido. O narrador já dá mostras,
neste pequeno trecho, de que a mulher tem seus motivos escusos, e que é preciso olhá-la com
mais cautela. Era preciso alguém para enfrentar o Mumbungo, e somente Mula-Marmela
poderia assumir este confronto, eliminando definitivamente o Mal. Mas, ainda assim, ou por
isso mesmo, como mostrará o narrador o tempo todo, ela merece a consideração de todos.
Não devemos julgá-la pela simples aparência dos fatos trágicos. É para as sutilezas que
devemos dirigir os nossos olhos. Isto parece nos mostrar o narrador, ao ir apontando as coisas
imperceptíveis que faz a protagonista, como por exemplo, nesta delicada passagem em que
fica clara a enorme diferença entre a madrasta e o enteado, e a defesa que o narrador faz desta
última, tentando dissolver, com o seu olhar benevolente, qualquer culpa que ela possa ter:
Notem que o cego Retrupé mantém sempre muito levantada a cabeça, por inexplicadoorgulho: que ele provém de um reino de orgulho, sua maligna índole, o poder de mandar, queestarrece. E ele traz um chapéu chato, nem branco nem preto. Viram como esse chapéu lhecai muitas vezes da cabeça, principalmente quando ele mais se exalta, gestilongado abarbadoe maldoso, reclamando com urgência suas esmolas do povo. Mas, notaram como é que a
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Mula-Marmela lhe apanha do chão o chapéu, e procura limpá-lo com seus dedos, antes delho entregar, o chapéu que ele mesmo nunca tira, por não respeitar a ninguém? (ROSA,1994, p. 478)
É importante nos lembrarmos que a presença da crueldade, das deficiências, de um
modo geral, deve ser encarada na obra de Rosa como uma possibil idade profícua de instaurar,
sobretudo, o sentimento de perplexidade, e que denota uma abertura para o reconhecimento de
aspectos pouco valorizados e desejáveis no ser humano. Para Costa Lima "Já em Guimarães
Rosa, a revelação da crueldade circundante é contida por uma contínua perplexidade. O
aleijão é menos prova acusatória do caráter cruel da vida que indício do que nela
perplexamente desconhecemos." (LIMA, 1991, p. 506)
Temos, neste conto, um aspecto novo que salta aos nossos olhos já no início da
narração. Se o nosso estudo gira em torno do olhar dos personagens de Guimarães Rosa, em
especial daqueles que já citamos, neste conto chama-nos especial atenção a forma como o
narrador constrói e conduz a narrativa, o que a faz diferenciar-se muito das outras que por ora
temos analisado. O narrador desta estória tem um perfil singular, remetendo-nos àquele
narrador machadiano que dialogava com os leitores, provocando-os, trazendo-os para o jogo
narrativo. Certamente valeria um aprofundamento sobre este narrador em Rosa, mas para nós,
no momento o que ressalta é o que ele exige do leitor. É instigante a postura deste narrador
onisciente e intruso, cujo olhar parece já ter abarcado inúmeras situações humanas, e que, por
isso, agora vem nos ensinar a olhar. Se o texto narrativo é propício para o conhecimento das
experiências humanas, lugar do aprendizado do viver, ele é também um convite a VER.
O que nos parece singular, no entanto, é que este olhar sobressai da própria
narrativa, ou do próprio ato de narração. Não é o personagem que nos chama a ver, mas o
próprio narrador. Porque o seu olhar é mais sábio do que o dos leitores, ou pelo menos é o que
se supõe o tempo todo, diante das hipóteses que o próprio narrador vai criando, em forma de
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um jogo de velar e desvelar. Ao iniciar a narrativa ele se dirige imediatamente ao leitor,
introduzindo-o na problemática que vai contar. Ele não só conhece os personagens como
também o olhar turvo dos leitores. "SEI QUE NÃO atentaram na mulher; nem fosse possível.
Vive-se perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das
pessoas. A gente não revê os que não valem a pena." (ROSA, 1994, p. 480)
O texto vai se desenvolvendo de forma a definir as posições de quem vê mais, ou
seja, o narrador, e daquele que vai ouvir a estória – e que, conforme mostra o narrador, não
sabe ver. Para o narrador desta estória as aparências enganam e o dia-a-dia embota o olhar.
Assim, com a sua autoridade de narrador, é ele quem vai nos ensinar a ver além das
aparências e a rever a protagonista com outros olhos. Esta postura narrativa nos leva a rever
com mais atenção o papel do narrador diante das entrelinhas e dos elementos impalpáveis que
encobrem uma narração fecunda . Faz-nos ver que o papel do narrador, muito mais que
simplesmente narrar, é tocar em algumas camadas inapreensíveis pelo olhar apressado e
comum. E, sobretudo, nos mostra que este procedimento narrativo funciona como um aspecto
de valorização da autoridade do narrador, o qual, da posição onde se encontra, tem
competência e habil idade para ver melhor.
Narrador onisciente, seu olhar é profundo e consegue captar o que ninguém viu. Sua
sabedoria vem justamente deste olhar, que não conhece apenas o presente da personagem,
mas todo o processo pelo qual ela passou. Somente ele consegue ter um olhar perscrutador,
benevolente e cúmplice, porque conhece as sutilezas da alma humana. “A benfazeja” é uma
narrativa ambígua, porque os fatos em si nos levam, à primeira vista, a considerar a
protagonista uma criatura estranha e até maléfica, porque matou o marido e talvez tenha
cegado o enteado. Mas como uma esfinge que precisa ser decifrada, este mistério do bem e do
mal vai sendo esclarecido pelos olhos iluminados do narrador. E, em termos formais, o que
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temos é uma reincidência de verbos ligados ao sentido da visão, pois estão sempre presentes
formas verbais como "revê", "viam-lhe", "notar", "vêem", "viram", "notem", "notaram",
"reparam", "olha", "saibam ver", "veriam", "os observou", dirigidas ao leitor desavisado.
A presença de um narrador como o desta estória reflete um modo de ver não
estanque, e nos possibil ita uma sondagem mais profunda dos personagens periféricos, que
compõem a comunidade, e os protagonistas, especialmente Mula Marmela. Somente por meio
do enfoque da voz narrativa e da força do seu discurso subjetivo, que não tem receio de se
mostrar, é que podemos nos libertar das armadilhas do enredo e, paralelamente à fruição
deste, refletirmos sobre os modos com que cada um realiza as suas possibil idades e
impossibil idades de ser. Não fossem as chamadas do narrador, o enredo nos levaria, e
perderíamos a oportunidade de refletirmos sobre o narrado. A astúcia da narração é que nos
leva a uma fruição mais astuta do texto e de suas imbricações. Um narrador com este perfil e
com este procedimento mostra que está se lançando na estória - ainda que de fora - no sentido
de assumir uma posição e excitar o leitor, por meio dos seus jogos retórico-discursivos,
conduzindo os seus olhos para o texto e o seu olhar para o entre-texto. A estória é exortativa e
revela também certa indignação do narrador diante da falta de percepção do leitor: "Nem
fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de desencobrir-lhe as feições, de sob
o sórdido desarrumo, do sarro e crasso; e desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade, senão
de crispa expressão." (ROSA, 1994, p. 475)
O desdobramento do olhar se dá a partir do olhar sábio do narrador que tudo vê. É
ele que nos mostra que a protagonista, não obstante o grau de marginalidade em que se
encontra, consegue ver as delicadezas do dia-a-dia. Este desdobramento nos faz pensar em
como as verdades são flexíveis, em como o que parece ser nem sempre o é de fato. E coloca-
nos mais uma vez diante do questionamento incessante de Rosa acerca das verdades e das
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certezas prontas. Afinal, quem é Mula Marmela, se olhada por trás das aparências? O que
somos todos nós se olhados por trás dos olhos de quem nos olha? E quem é que nos olha? De
que lugar ele nos olha? Estará o narrador desta estória numa posição privilegiada que lhe
propicie este olhar, ou simplesmente ele sabe olhar, independentemente da posição em que se
encontra? O que o terá levado a conquistar um olhar como este? Mas, deixemos um pouco de
lado o narrador, e vamos à personagem tal como o narrador a vê e propõe que a vejamos. Para
ele, ela também tem um jeito especial de olhar. "Sei que vocês não se interessam nulo por ela,
não reparam como essa mulher anda, e sente, e vive e faz. Repararam como olha para as casas
com olhos simples, livres do amaldiçoamento de pedidor? E não põe, no olhar as crianças, o
soturno de cativeiro que destinaria aos adultos. Ela olha para tudo com singeleza de
admiração . (ROSA, 1994, p. 478)
A presente estória, bem como os seus procedimentos narrativos, só vêm confirmar e
enfatizar a nossa crença de que a escritura de Guimarães Rosa se pauta, sobretudo, no
questionamento. Por isso ela é tão perturbadora, e nos tira, a cada enunciado, do lugar seguro
onde pensamos estar.
3.2.2 Mula-Marmela: guia de cego
Cada qual com sua baixeza; cada um com sua altura. (A benfazeja, p.479)
Além de Mula-Marmela, chama a nossa atenção neste conto a cegueira do seu
enteado Retrupé. Novamente temos uma narrativa de Rosa em que alguém precisa emprestar
os seus olhos para o outro. Mula-Marmela carrega para toda a parte o seu enteado, e é
somente por meio dos seus olhos que ele pode ver. Ela é essa personagem ambígua,
assustadora, que, paradoxalmente protege Retrupé e até a própria comunidade dos possíveis
malefícios que este e o pai poderiam lhe ter causado. Mais uma vez esta é uma estória de
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Guimarães Rosa em que parece ser necessária a perda da visão, para que alguma luz possa
brilhar. Como pergunta Riobaldo, em Grande sertão: veredas, "Não é só no escuro que a
gente percebe a luzinha dividida?" (ROSA, 1994, p.199) O vagalume que surge em "As
margens da alegria" permeia todas as estórias deste livro, pois ele simboliza tudo que precisa
ser iluminado, mesmo que esta luz seja breve, e tênue. Embora Retrupé seja guiado por sua
madrasta, ele não fora sempre assim cego. Ele também perdeu a visão. Conforme nos diz o
narrador, este Retrupé tinha a vocação para a maldade, como o pai, "... e que seria tão pronto
para ser sanguinaz e cruel-perverso quanto o pai..." (ROSA, 1994, p. 479) As causas de sua
cegueira são insinuadas pelo narrador:
Seus os-olhos, do Retrupé, ainda eram sãos: para espelhar inevitável ódio, para cumprir odardejar, e para o prazer de escolher as vítimas mais fáceis, mais frescas. Só aí, se deu que,em algum comum dia, o Retrupé cegou, de ambos aqueles olhos. Souberam vocês como foi?Procuraram achar? Sabem, contudo, que há leites e pós, de plantas, venenos que ocultamenteretiram, retomam a visão, de olhos que não devem ver. (ROSA, 1994, p. 479)
Esta última fala do narrador valoriza a perda, a negação do sentido, porquanto este
pode significar a corrupção da luz em sombra: "Ele precisava de matar, para a fundo se
cumprir, desafogado e bem. Mas, não pode. Porque é cego, apenas." (ROSA, 1994, p.479)
Será que há pessoas que não devem ver? É uma das perguntas que este texto nos propõe. A
resposta seria que para o bem de todos, Retrupé não veja. No entanto, privado da visão, ele
não deixa de ter um foco de atenção para os lugares e pessoas, e desenvolve uma espécie de
sentido similar à visão, que lhe permite encarar ou desviar o seu "olhar" quando assim o
deseja. É o que nos mostra o narrador: "Sabem o que é tão estúrdio? – que, mesmo um que
não vê, sabe que precisa de apartar a cabeça: ele faz isso, para não encarar com a mulher
odiosa. O cego Retrupé volta-se de frente para o ponto onde estão as sensatas, quietas
pessoas, que ele odeia em si, pelo desprezamento de todos, a pacatez e concórdia." (ROSA,
1994, p. 479)
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Observando esta estória e "São Marcos", de Sagarana, surge um contraponto no que
diz respeito à perda da visão. Na primeira o personagem não aprende, não se eleva
espiritualmente, mas só adia, interrompe a maldade, que continua em potencial. Fosse-lhe
restituída a visão, ou se ele não a tivesse perdido, certamente daria continuidade às crueldades
iniciadas pelo pai. O personagem só é castrado em um dos seus sentidos, e anestesiada a vista,
ele fica impedido de agir. Mas não há transcendência, ele não avança em termos de sua
humanidade. Já em "São Marcos", embora seja outro o enredo, e não haja menção a este tipo
de crueldade, o protagonista consegue alcançar um conhecimento que não possuía; há a
transcendência, por meio do reconhecimento do outro e das próprias limitações. Certamente
são dois planos de enredos bastante distintos, mas a ênfase na perda da visão não deve ser
esquecida, porque em ambas as estórias há um profícuo jogo de luz e sombra.
3.2.3 Retrupé e Édipo: cegos e aleijados
Outra possibil idade de aproximação entre personagens e temas refere-se ao mito de
Édipo Rei, sobre o qual já falamos, mas que vale ser novamente lembrado como o mito
mesmo da visão perdida e resgatada. O que há de comum entre o herói trágico de Sófocles e
Retrupé foi muito bem lembrado por Maria das Graças Andrade, ao traçar um paralelo entre
os nomes Retrupé e Édipo. Assim como este último em grego significa o que tem os pés
inchados, e que, portanto, caminha tropeçando, Retrupé, também, conforme a autora, tem "os
pés atados pelo desamor, pelo que em tempo devido não lhe fora dado, fará sua caminhada
errante, trôpega, incertamente..." (ANDRADE, 2003, p. 458). Lembra-nos a autora que
também Retrupé se torna cego. E fala de uma cegueira anterior à perda da visão, da qual
padecem estes dois personagens. Sobre as mulheres que guiam estes homens cegos, é valioso
lembrar os papéis de Mula-Marmela, e de Antígona, muito bem lembrado na seguinte citação:
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"Quero salientar ainda que são duas figuras femininas que, postando-se como guias,
orientarão o percurso desses que careciam da visão: a Mula-Marmela, a conduzir Retrupé, e
Antígona, a guiar Édipo, seu pai e irmão." (ANDRADE, 2003, p.458)
Outro aspecto bastante interessante é apontado por Cleusa Passos e diz respeito aos
paradoxos entre as sombras e a luz em "A benfazeja". A autora observa que há um jogo de
claro-escuro, que permeia a narrativa, incentivado e reiterado pelo discurso do narrador. Ou
seja, o discurso do narrador lança o leitor para a luz, para a revelação, para o desvendamento
de outras verdades acerca da protagonista. Trata-se de um discurso que insiste em tirar a
comunidade da cegueira, não só os moradores do lugar, mas a possível comunidade de
leitores. Por meio de uma argumentação sistemática, que se volta para o passado, tentando
atiçar na memória do interlocutor fatos e delicadezas não contemplados, ou esquecidos, o
narrador vai construindo um discurso inquisidor, contestatório e, ao mesmo tempo, revelador.
O narrador é, sem dúvida, um indivíduo que tem um olhar absoluto, que vê
amplamente e que faz questão que os outros vejam. E neste caso, é ele o responsável por jogar
luz onde reina a ignorância. Percebemos, assim, uma formidável e radical mudança no
enfoque: não é o fato em si que importa, o fato bruto, grosseiro, as culpas que a Mula carrega.
A obviedade desta realidade ofuscou a vista de todos. O que importa é o que está por trás da
coisa, aquilo que ninguém ainda olhou. Entendemos que o narrador se propõe desviciar o
olhar das pessoas. Os jogos discursivos do narrador parecem propor a superação da dualidade
que, acreditamos, embora esteja muito marcada e pontuada neste conto, não é geradora de
dicotomias ou polaridades, mas, ao contrário, tem o intuito não de enfatizá-las, e sim de
desfazê-las. O jogo de luz e sombra, de conhecer e ignorar não pode ser encarado na obra de
um escritor como João Guimarães Rosa como marcas de dualismo, mas como o
estrangulamento deste, uma vez que, como temos defendido aqui, no mundo ficcional de
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Rosa, tudo é misturado, e as polaridades são entendidas como responsáveis pelo
sepultamento de um homem orgânico, que se deseja inteiro. Sem dúvida a polaridade é
mostrada, mas como pretexto para que seja desfeita no próprio ato de narrar. No ver, pode
estar contido o não-ver, no saber, o desconhecer, no Mal o Bem. Para Cleusa Passos,
A constatação textual sintetiza a cegueira de todos diante daquela que, por ironia, passa a sersujeito ou objeto do olhar do outro, pois, se a personagem cumpre o papel de substituir avisão do enteado, também se torna foco da perspectiva textual, cuja lucidez substitui acegueira dos demais. Uma expressiva rede especular vai criando identidades e diferenças.Literalmente cego, Retrupé espelha a simbólica cegueira do vilarejo, enquanto sua guiareflete o olhar diverso do narrador. Cada qual à sua maneira, ambos protegem e contestam acomunidade, escapando a suas regras e nela introduzindo uma intrigante exterioridade; Mula,'tão fora da vida exemplar de todos', coíbe as transgressões dos companheiros e, comoalguém de fora, o narrador alerta para a visão turva de seus interlocutores, impedidos devislumbrarem a melhor e inusitada face da protagonista. (PASSOS, 2000, p. 107)
Os pólos “ luz/sombra”, “bem/mal” , “conhecimento/ignorância”, “visão/cegueira”
estão presentes nesta estória, mas é importante não os interpretarmos simplesmente como
pares antitéticos, se não como uma tensão possível de ser diluída e transcendida na própria
dialética em que são constituídos. Se voltarmos a Grande sertão: veredas, somos tentados a
colocarmos demais em perspectiva as polaridades que o romance traz à tona. Riobaldo incita
e estimula repetidamente o interlocutor a prestar atenção a isto. Há, inclusive, passagens em
que esta preocupação é expressa de forma bem direta e obsessiva, quando Riobaldo diz que
quer separar o Mal do Bem, que quer desmisturar as coisas.
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bem seja bom e oruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartadodo bonito, e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é queposso com este mundo? (ROSA, 1994, p. 144)
Nesses momentos fica muito clara a urgência do protagonista em ser esclarecido
sobre os mistérios que o cercam, pois como ele mesmo diz: “O que eu não entendo, isso é que
é capaz de me matar.” (ROSA, 1994, p. 211) Mas, ainda que as sentenças proferidas por
Riobaldo revelem o desejo de separar as coisas, como se estas constituíssem dualidades -
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antagonismos radicais e intransponíveis - é importante não nos esquecermos de que a
motivação maior do protagonista é fazer perguntas para descobrir sim, o sentido das coisas,
mas, para, sobretudo, encontrar o seu lugar. As aparentes dicotomias levantadas pelo jagunço
fazem parte de um jogo discursivo que busca o tempo todo, dentro do próprio discurso,
dissolvê-las ou superá-las. Portanto, não podemos nos ater ao discurso que aponta as
polaridades, mas ao outro, àquele que vai além destas. Quando Riobaldo expressa o seu
desejo de separar o joio do trigo, vêm à tona perguntas ligadas à sua identidade, que não
significa necessariamente a sua origem familiar. A identidade neste sentido está muito ligada
à busca do lugar que ele ocupa e ao que é que de fato lhe pertence e lhe diz respeito. Este,
aliás, é um problema não só de Riobaldo mas de muitos outros personagens, daí o desejo de
saber, de conhecer, e de VER. No entanto, Riobaldo sabe da impossibilidade de polarizar as
coisas. É o que mostra neste relato: “A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e
desmisturar.” (ROSA, 1994, p. 98)
Neste sentido, é bom nos voltarmos a outras estórias em que a importância da
identidade se traduz na raiz de toda a obra de Guimarães Rosa. Manuelzão, em “Uma estória
de amor” , está buscando o seu lugar, e para isso, não pára de olhar para trás. O protagonista
de “Cara-de-Bronze” coloca alguém em seu lugar para ir buscar o “quem das coisas” ,
Miguili m em “Campo geral” está buscando o seu lugar no espaço da família e do Mutum, e
assim poderíamos citar tantos outros personagens que, de modo mais ou menos implícito,
estão em busca de sua identidade, mesmo que esta seja instaurada na terceira margem do rio,
como nos propõe o Pai ao abandonar a casa. Sem dúvida, ele também, ao radicalizar em
termos de mudança espacial, radicaliza em termos de mudança dos seus espaços internos.
Está buscando um outro lugar que seja só seu. E a canoa feita para caber apenas uma pessoa é
uma perfeita metáfora disso.
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Deste modo, é essencial para a apreensão do maior sentido da obra de Guimarães
Rosa desdobrarmos as teias de significados intrínsecos às simples dualidades bem/mal e
outras dicotomias, já que a existência deles só pode e deve ser compreendida como um evento
discursivo propiciador de uma aglutinação dessas polaridades, ou uma intersecção de pares
que, longe de tentarem se anular um ao outro, na obra de Rosa, ao se desmisturarem, buscam
atingir um sentido de organicidade permeador de todas as coisas.
A perda da visão, no caso deste personagem, faz-nos pensar nas resoluções
narrativas encontradas neste conto para a cessação do ciclo de maldades praticadas pelos
indivíduos desta família. A morte do pai não foi suficiente, porque este deixou um
descendente. Portanto, o cego Retrupé precisou perder a visão, para que as maldades por ele
praticadas e as que ainda estavam por vir tivessem um limite. Somente deixando de ver, ele
poderia ser controlado. Este texto nos faz considerar a força desta visão direcionada para o
Mal e que precisa ser negada para que a vida de outros não corra risco. Para nós, do mesmo
modo como é importante perceber a força e as potencialidades do olhar daqueles que
realmente vêem, também o é na mesma medida perceber as ocorrências da cessação deste
olhar, e as repercussões desta perda, no âmbito pessoal e coletivo. É um vislumbre a mais que
este texto nos oferece.
3.3 A LUZ COMO METÁFORA: “SUBSTÂNCIA”
Os olhos inflamados de ver, no deslumbrável. (“Substância” , p. 497)
Nesta parte do trabalho apreciaremos a imagem da luz ou do fenômeno luminoso que
aparece em dois contos, quais sejam, “Um moço muito branco” e “Substância”, de Primeiras
estórias. Chamou-nos a atenção o fato de que em ambas as estórias surge a luz em sua
exuberância. Certamente os enredos são distintos, mas a alegoria que os perfila é análoga.
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Entre as duas estórias há um jogo de situações bastante concretas, e ao mesmo tempo
subjetivas, tecidas no plano mágico. Em “Substância” há trabalho incessante, e o cotidiano de
uma menina dedicada a bater o polvilho, num movimento incansável, é descrito nos planos
objetivo e subjetivo. Fôssemos contemplar apenas o enredo, veríamos a descrição do
trabalho, da lida e da luta pela sobrevivência, e teríamos um valioso retrato dos costumes de
uma comunidade que tem como uma das formas de subsistência o fabrico e o depuramento do
polvilho, bem como as condições precárias e primitivas em que este trabalho é realizado. Mas,
subliminar a estes aspectos materiais, há um outro que compõe e oferece outros significados à
estória, que é a forma como este trabalho é realizado, num impressionante jogo de luz,
claridade e transparências que emolduram a sua mecanicidade e lhe dão uma outra
dimensão. Em “Um moço muito branco” , a semelhança com “Substância” se dá no plano
lexical, em que são explorados aspectos cromáticos, relacionados sobretudo à claridade, à
transparência e à luz. Mas nas duas estórias, o sentido da visão do leitor é bastante
estimulado, no que diz respeito tanto à visão subjetiva, metafórica, quanto à objetiva, ligada
às cores e aos estímulos e esforços para ver. No plano subjetivo, constituem as duas estórias
uma metáfora por trás da qual subjaz o sentido da percepção, propiciada pela forma como os
protagonistas agem e fornecem luz onde tudo é triste cegueira. Podemos evidenciar que esta
cegueira ressalta no momento em que os protagonistas, cada qual a seu modo, irrompem de
algum lugar e, uma vez instalados em comunidades de vidas estagnadas, as diferenças sutis
entre eles e os moradores começam a se revelar. Os dois se projetam como “fenômenos
luminosos” ( expressão empregada em “Um moço muito branco”), no cotidiano dos lugarejos
e, sem que o saibam, operam metamorfoses. Como dissemos, no campo lexical, são usados
adjetivos e expressões que denotam/conotam esta singularidade dos personagens, ou seja, a
sua clareza de espírito. Tanto o moço quanto a menina são brancos, muito brancos. Ele: “Tão
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branco (...) semidourado de luz” (ROSA, 1994, p. 457), ela: “Tão linda, clara, certa...”
(ROSA, 1994, p. 496)
O título da estória contém significado fecundo, e nos remete à essência última das
coisas, ao que é anterior, insubstituível e fundamental. A protagonista, menina ainda, é
deixada no pequeno povoado, e, aos poucos, vai-se transformando, num processo similar ao
que ocorre com os blocos de polvilho que ela precisa quebrar na pedra. Chamada de Maria
Exita, esta menina se parece também, em alguns aspectos, com a personagem Drizilda, do
conto “Arroio- das- Antas” . Entre as duas há uma espécie de fraternidade, como se tivessem
vindo ambas de uma mesma família. Ao contrário do que acontece com o protagonista de
“Um moço muito branco” , no caso destes contos, sabemos a origem das meninas, por meio de
uma breve descrição dos históricos familiares das duas, que, aliás, são semelhantes. Como
Drizilda, Maria Exita vem de algum outro lugar, desprovida de família exata que lhe dê
proteção. Novamente, como dissemos no início do nosso trabalho, o tema da viagem está aí
valorizado, pois as meninas se deslocam de seus lugares de origem para tentarem uma sorte
melhor em outro lugar. Faz-nos pensar nas crianças da Idade Média, que como aponta Ariès, a
partir dos sete anos, eram enviadas para outra casa, a fim de aprenderem alguma profissão.
Longe de suas famílias, elas passavam por todo tipo de aprendizado, principalmente o
convívio precoce com a solidão e com as vicissitudes da vida.
Muitas crianças das estórias de Guimarães Rosa retratam esse quadro, provavelmente
uma realidade do sertão norte-mineiro, em que as condições de vida e de sobrevivência se
davam de forma precária e adversa. Neste contexto, é bom que situemos a personagem Maria
Exita, na sua situação de abandono. Como nestes casos, a menina tem alguém que se torna
responsável por ela, que é o Sionésio, dono das terras, abundantes em plantação de mandioca.
Assim como Drizilda, a sorte de Maria Exita parecia não prometer êxitos maiores, não
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obstante a carga semântica de seu nome queira sugerir o contrário. Neste sentido o narrador
conta que
Trouxera-a por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o patrão nem os outros aaceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque, contra a menos feliz, a sorte sarapintara depreto portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia,por atos de morte; o outro, igual feroz, foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai, razoávelbom homem, delatado com a lepra, e prosseguido, decerto para sempre, para um lazareto.(...) Acolheram-na, em todo caso. Menos por direta pena; antes, da compaixão da Nhatiaga.Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, naslajes. (ROSA, 1994, p. 495)
Similarmente à “Substância”, no pequeno conto de Tutaméia, “Arroio-das-antas” ,
relata-se a vida de uma menina que possui características análogas à de Maria Exita. Drizilda
também precisará passar por experiências de solidão, e, em seu percurso, terá como
companhia a presença exclusiva de pessoas mais velhas: “Trouxe-se lá Drizilda, de nem
quinze anos, que mais não chorava: firme delindo-se, terminavelmente, sozinha viúva.
Descontado que a esquecessem. [...]” (ROSA, 1994, p. 531) “O irmão matara-lhe o marido,
irregrado, revelde, que a desdenhava.” (Ibidem, p. 531) Nas duas estórias, as meninas são
recebidas por velhas. Em “Arroio das Antas” , lê-se: “Senão que, uma, avó Edmunda, sob
mínima voz, abençoou-a...” (Ibidem) e Em “Substância”, observa-se situação análoga:
“Acolheram-na, em todo o caso. Menos por direta pena; antes, da compaixão de
Nhatiaga.” (ROSA, 1994, p. 495) Em cuidadoso estudo comparado de alguns contos de
Guimarães Rosa em que está concentrada a presença feminina, Passos articula um diálogo
entre as duas protagonistas e faz uma interessante leitura da luz em ambos os contos.
Conforme a autora:
A tarefa de Maria Exita resulta no ‘ tudo cerradamente igual’ , na esteril idade do polvilho queela quebra, porém não vê modificar-se. Quanto a Drizilda, rejeitada ‘por não ter filhos’ ,configura a própria imagem da esterilidade num lugarejo igualmente infecundo. O tempo daprovação precede o da fertilidade e resgata a donzela da mácula. A luz de ‘Substância’ se faz‘alvor’ e o abandonado ‘arroio’ se torna forte fazenda, índice de florescimento eprodutividade. (PASSOS, 2000, p. 42)
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Nesse sentido, é bom lembrar que enquanto os olhos de Maria Exita penetram em
exuberante jorro de luz, Drizilda mergulha nas cinzas do borralho: “De vê-la a borralheirar,
doíam-se...” (ROSA, 1994, p. 532) Enquanto Maria Exita vivia a experiência da luz, Drizilda
precisava tirar destas cinzas a luz que parecia apagada, mas que, de modo potencial,
sobrevivia. Em “substância” tudo se passa sob o sol a pino, desafio para os olhos, em
“Arroio” “O que a gente esperava era a noite.” (ROSA, 1994, p. 531) Neste entrelaçado jogo
de luz e sombra, ao qual os olhos precisam responder - No ‘Arroio-das-Antas’ , “Drizilda
paga seu ‘ fado’ a ‘borralheirar’ , ou seja, como Cinderela, em meio às cinzas sombrias,
‘alongando-se-lhe os cabelos’ -, a luz que a envolve é a das ‘candeias acesas’ e a portentosa
‘ lanterna’ é a da velhice. Sombras e esterili dade dominam espaço e personagens.” (PASSOS,
2000, p. 40)
Em “Substância”, de modo sutil , o narrador desvela a cegueira e a vidência,
entendida aqui como capacidade de compreender outras verdades e possibilidades de ser, não
obstante predomine a cegueira, as cinzas, ou o excesso de luz, que também pode turvar a
vista. Aí também merecem especial atenção os olhos de Sionésio como contraponto aos da
menina, porque, ao contrário da protagonista, ele só consegue ver até onde vão suas posses. O
seu campo de visão, ainda que tenha longo alcance, tem uma intenção bastante objetiva, e se
dirige aos trâmites da pura referencialidade, como cabe a um dono de terras. Ele, inicialmente,
não tinha olhos para as pequeninas criaturinhas, principalmente para Maria Exita. São olhos
que percorrem as coisas, mas não se concentram em detalhes, ou não alcançam ainda a luz. O
encontro dos dois personagens marca esta diferença dos procedimentos e dos campos de
visão. Ele, embora esteja sempre em movimento, acabará, por fim, a dirigir o seu olhar para a
criatura menor, mas cuja vista é do mais alto alcance. Neste caso, as polaridades foram
bastante movimentadas até que se encontraram. Sionésio aprende a ver o que estivera sempre
89
a seu alcance, ou seja, Maria Exita, para quem o brilho e a transparência não ofuscaram os
olhos. E, por outro lado, a menina foi pela primeira vez olhada, fisgada pelo olhar de outrem.
Aparentemente estática, mas só aparentemente, a menina provocou uma nova dinâmica nos
olhos de Sionésio que, após ver a ínfima criatura, agora “Ficava de lá, de olhos postos em,
feito o urubu tomador de conta.” (ROSA, 1994, p. 497) O patrão começou a desenvolver um
novo jeito de olhar, não mais como o posseiro, mas como alguém que está aprendendo a
desapossar-se de si mesmo, no delicado gesto de amar: “Passava por lá, sem paz de vê-la,
tinha um modo mordido de a admirar, mais ou menos de longe.” (ROSA, 1994, p. 497) A
transformação ocorre, e esta é gerada por aquela que pouco se movimenta. Ali, parada no seu
assento, mexendo as mãos incessantemente, é ela quem processa outras metamorfoses no
plano da subjetividade e da alteridade. A luz que os seus olhos recebem, material bruto solar,
vai sendo processada, transubstanciada por sua luz interna, que redimensiona a luz em
potencial que há no outro. Como afirma Passos:
Fio importante da trama, todos se sujeitam a ela. Sionésio busca sempre mudanças: dopolvilho, do aumento de produção, do trabalho rústico por máquinas. Todavia, os fortesolhos habituados a aprisionar acabam capturados pelos de Maria Exita que oferecia os seusao polvilho sinistro. Excluída socialmente, ela precisa do olhar do outro, representante domundo dos senhores, para escapar ao tirânico destino e à condição de mulher oprimida.(PASSOS, 2000, p. 36)
Apresentamos um pouco do enredo da estória, a fim de ressaltarmos a importância
do diálogo entre as narrativas de Guiimarães Rosa, seja no que concerne aos personagens e
aos enredos, seja no que elas representam no plano mágico-simbólico, o que reitera o que
temos afirmado acerca da unidade existente na obra do autor.
3.3.1 Ver é um desafio
Sobre “Substância” chamaram-nos a atenção, não apenas o delicado enredo, mas as
alegorias que o contornam e o tornam, além de uma belíssima estória de amor, um quadro
90
pincelado com as cores de mais intensa luz, que compensam e equil ibram as origens sombrias
da protagonista. É esta peculiaridade ou singularidade que salta aos nossos olhos, e
representa possíveis entradas para este conto, em que o dualismo é mais uma vez quebrado,
como o polvilho na pedra. Como em outros contos do autor, há o encontro do velho com o
novo, do preconceito com a esperança, da doença com a vida, da sombra com a radiante luz
do meio-dia, do masculino com o feminino.
Mas, embora haja todos estes componentes, o que sobressai é, especialmente, a força
da luz e a capacidade dos olhos de reter e até mesmo suportar tanto brilho. Os olhos da
protagonista são formidavelmente retratados como um receptáculo para a luz ; somente os
seus olhos conseguem se manter abertos diante da luz do meio dia que se incide sobre a pedra
e o polvilho alvo. É uma estória desenhada com as cores mais alvas desta coletânea, em que o
autor deixa transbordar e jorrar os raios de luz que iluminam o trabalho árduo que é “o de
quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes.” (ROSA, 1994, p. 495) Pareceu-nos que neste conto
Guimarães Rosa concentrou, mais uma vez, a sua força de artista genial com o seu sentimento
de infância, que o faz em todas as estórias equilibrar/compensar as adversidades infantis com
algum elemento cálido e epifânico, que, ao final das contas revela/constitui uma verdadeira
celebração das forças que protegem a infância. A presença portentosa da luz nesta estória
precisa sobreviver à sorte, à sina da menina, pois, como diz o narrador: “[...] a sorte
sarapintara de preto portais e portas [...]” (ROSA, 1994, p. 495) Observe-se aqui, aliás, que
em termos sonoros, a aliteraçao do fonema /p/ sugere a dificuldade de sobresseguir um
caminho de forma tênue ; neste sentido, a carga semântica da aliteração parece estar ligada
ao gesto repetitivo e monótono de bater e quebrar o polvilho na laje. Sugerindo os sons das
pancadas do polvilho, tal recurso sonoro metaforiza a dureza do trabalho. Entretanto, a
estória não se paralisa neste quadro, embora este seja o pano de fundo de uma metáfora ou
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alegoria muito mais importante. A força bruta desta consoante dará lugar, no desenrolar da
estória, à presença da vogal /a/, enormemente explorada, evocando luz, claridade, abertura:
“Alva” , “algodão”, “a garça”, “água azulosa” , “o amido – puro, limpo...” “alvíssimo”,
“alvura”, “o ar” , “brilhante”, “branca” , “abertos” , “ luminosidade”, “ linda”, “clara”, “certa”,
“avivada”, “airosa”, ‘dom de branco’, “ intacto branco” , “deslumbrável” , “ imensidão do olhar”
(ROSA, 1994, pp. 495, 496, 497)
Ainda com relação ao campo lexical e semântico, é valioso destacar a expressão
“moça feita em cachoeira”(ROSA, 1994, p. 496), pois esta concentra toda a força da
protagonista, e propõe a tensão entre ela e o lugar. Ali, na Samburá, para onde ela fora, tudo
se parece a um deserto, mas a presença dela e o vigor do seu trabalho, que requer a força para
olhar, para sobreviver à luz do sol, dá-lhe a fluidez de uma cachoeira. Tal expressão, diluída
no texto, concentra e radicaliza as diferenças entre a dureza do lugar e das pessoas e a fluidez
e o movimento que é a menina. Isto não é um privilégio apenas desta estória, mas também de
várias outras, em que a chegada de um personagem com um novo olhar faz ressaltar a inércia
em que vivem as pessoas. O mesmo ocorre em “Um moço muito branco” , em “Arroio das
antas” , “Darandina”, “A benfazeja”, “A terceira margem do rio” e em tantas outras estórias
que colocam em tensão a dinâmica da vida, a mutação constante em que Rosa tanto
acreditava, e o embrutecimento que ele tanto repudiava/questionava. Sem dúvida, na leitura e
tentativa de interpretação destes personagens e dos seus modos singulares de olhar,
compreendemos as premissas que pautaram a vida do autor, para quem: “A literatura tem de
ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve.” (MONEGAL, 1991, p. 48)
Fora os aspectos apresentados, a protagonista deste conto, além de possuir um olhar
especial, recebe olhares diferentes, ou seja, ela é olhada somente como alguém à margem,
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uma vez que faz parte de uma estirpe familiar complexa, carregada de problemas e é a única
que se libertou de uma sina de doenças e vícios:
A Maria Exita. Sabia, hoje: a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros. Assim, quechegara lá, com os vários sem-remédios de amargura, do oposto mundo e maldições, sozinhade se sufocar. Aí, então, por si sem conversas, sem distraídas beiras, nenhumas, aportaraàquele serviço- de toda a despreferência, o trabalho pedregoso, o quente feito boca-de-forno,em que a gente sente engrossar os dedos, os olhos inflamados de ver, no deslumbrável.(ROSA, 1994, p. 496-97)
É curioso observar também que para a menina o trabalho tem outro significado, e ela
consegue sobreviver a este, dando aos gestos rotineiros um enfoque diverso das pessoas que a
cercam. Observamos uma espécie de desinstrumentalização do trabalho, ou uma
desautomatização, propiciada pela delicadeza da menina, pela sua vitalidade e percepção. Há
um contraponto entre ela e o dono das terras, no que diz respeito à forma como este último
lida com o trabalho, ou seja, parecemos estar diante de dois enfoques distintos, e, mais uma
vez, o que determina e modifica as situações é a forma como se olha para a questão. O próprio
narrador demonstra sua parcialidade diante da situação de trabalho da menina: “Alvíssimo,
era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinho
fechados, feito os de um tatu, ante a implacável alvura, o sol em cima.” (ROSA, 1994, p. 496)
E o Sionésio, proprietário das terras, parecia contrariado: “Mas, e até hoje, num serviço
desses? Ao menos que a mudassem!”(Ibidem, p. 496) No entanto, a menina, contrariamente
ao que se esperava, gostava do serviço: “Ela é que quer, diz que gosta. E é mesmo, com
efeito...” - a Nhatiaga sussurrava.” (Ibidem, p. 496)
Mas, se todos os ingredientes desta estória nos chamam a atenção, chama-nos,
sobretudo, a força da protagonista, que se manifesta pela sua disposição para o trabalho e
principalmente, pela sua capacidade de receber a imponente luz do meio-dia, que parece ser
um grande impedimento para a visão de todas as outras pessoas. Conforme Cleusa Passos,
“Em ‘Substância’ , a proibição da luz provém da própria luz. O sol atormenta e tortura os
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trabalhadores da lida com o polvilho. Literalmente, os ‘olhos da pessoa tendo de ficar
miudinho fechados, feito tatu, ante a implacável alvura...’ , acabam entregues à mesma
cegueira provocada pela ausência de luz dos contos feéricos.” (PASSOS, 2000, p. 40)
Novamente o sentido da visão é apresentado de forma metafórica, mas também de
maneira muito concreta e objetiva. O narrador se refere àquele momento do dia em que o sol é
mais forte: “Demorara para ir vê-la. Só no pino do meio-dia- de um sol do qual o passarinho
fugiu.” (ROSA, 1994, p. 496) Ora, para a menina o ver tanta claridade não se constitui como
problema, mas como uma extensão do seu corpo e do seu espírito. Ela consegue ver, e
suportar tão forte desafio da luz: “Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela hora...”
(Ibidem, p. 496) É interessante observarmos que a força da visão nesta personagem simboliza
as forças que ela vai conquistando no desenrolar da sua estória. É possível mesmo afirmar que
a metáfora da luz do sol nessa narrativa está relacionada à força interna, a qual nem todos
conseguem perceber e utili zar. A protagonista, como bem conta o conto, foi privada de suas
bases, e seu passado duvidoso poderia ser um imenso empecilho para o seu futuro. Sobressai,
no entanto, a sua luz interna, retratada nos seus olhos receptivos, que abarcam a luz que vem
de fora, porque no fundo, esta só se projeta no que lhe é genuíno. Novamente esta estória
apresenta as tensões entre as diferenças, muito sutilmente pontuadas pelos efeitos que causa
na menina a luz do dia, e o mal estar que causa nos outros personagens e no próprio narrador:
“Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do triste, sinistro polvilho, portentoso,
mais a maldade do sol.” (Ibidem, p. 496)
Temos enfatizado no presente estudo que nestes contos de Guimarães Rosa as
diferenças ficam bastante apontadas, e a presença de um personagem singular é reiterada.
Repetimos que não se trata de seres extraordinários, ou possuidores de poderes mágicos, mas
o que neles jorra é justamente a capacidade de explorar e vivenciar os aspectos muitas vezes
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desconhecidos e negligenciados pelas pessoas comuns. De fato, o que esta menina
experimenta é uma percepção e uma sensibil idade que, ao invés de a tornararem suscetível e
fragil izada, fortalecem os seus atos, de forma a possibil itá-la a realizar, no plano subjetivo -
fortalecido pela força de sua visão - o que é tarefa objetiva e árdua. Ou seja, o que a sua
relação com o trabalho nos suscita é a sua forma diferenciada de perceber o material bruto, e
transformá-lo em luz. Trata-se de uma fecunda metáfora que vem ressignificar não só o
trabalho braçal e mecânico, mas todo tipo de cegueira a que se possa submeter. Neste sentido,
o autor faz um criativo jogo de palavras que estabelecem entre si uma polaridade que,
novamente, concorre para convergir para a unidade tão marcante em sua obra: “Negrume do
horizonte”, intensidade brilhante”, “ implacável alvura”, “sinistro polvilho” , “maldade do
sol” , “beleza” (Ibidem, p. 496) são algumas expressões que evocam os contrapontos.
Somente a protagonista, com a sua incrível habil idade para olhar e fazer expandir o brilho que
absorve com a visão, mostra-se capaz de congregar estas polaridades, pois se esta luz
“atormentava, torturava...” , ela “Não se perturbava. Também, para um pasmar-nos, com ela
acontecesse diferente? Nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos. Mas
oferecidos bem abertos - olhos desses, de outra luminosidade.” (Ibidem, 1994, p. 496)
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4 VER O ESQUECIDO
A gente não vê quando o vento se acaba... ("A menina de lá", p. 402)
"A menina de lá" é um conto protagonizado por Nhinhinha, uma garota de quatro
anos. Trata-se de uma narrativa que enfatiza as verdades do ponto de vista de uma criança
sensitiva e extremamente perceptiva. Nhinhinha é mais uma personagem agraciada pela
narração de Guimarães Rosa e traduz uma lógica mal suspeitada pelo olhar prático do
cotidiano. É uma personagem que habita um mundo singular e que, de sua posição, avalia o
mundo despropositado que a cerca. Sua fala é marcada por um estribilho que se repete ao
longo da narrativa: "Deixa..."
Neste conto - ainda que seja protagonizado por uma criança - o tema da
efemeridade da vida é abordado, e de forma insólita, pois a protagonista, ao contrário das
meninas das outras estórias, tem uma vida curta, como se fôra uma breve centelha de luz que,
ao passar, acende o lugar e desaparece. Novamente nos remetemos à imagem do vagalume
de “As margens da alegria” , que conseguiu inflamar o espírito soturno do menino com sua
breve aparição. Em “A menina de lá”, temos uma menina, que, na versão dos adultos, parece
ter poderes de vidência, o que a faz se diferenciar de todos os outros. Por outro lado, podemos
pensar que Nhinhinha é uma menina que age espontaneamente, movida por suas forças vitais,
que jorram em sua tenra idade. Fosse ela uma personagem de um conto de fadas clássico,
poderíamos dizer que tem, a seu dispor, os seus próprios mediadores naturais para ajudá-la, e
que possui outros poderes que lhe propiciam realizar as metamorfoses tão preciosas aos
contos de fadas.8 Desse modo, também Nhinhinha dispõe de poderes que, na verdade, como
veremos mais profundamente na análise das narrativas, revelam os poderes que vivem
8 Alguns personagens dos contos de fadas, lembra-nos Bruno Bettelheim, também têm a sua disposição
o próprio corpo para ajudá-las. Rapunzel é, na visão do autor, um exemplo típico, pois usa os seus próprios
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potencialmente nos seres humanos, mas que a vida diária e com suas exigências acaba por
camuflar. Chama-nos a atenção a descrição inicial de Nhinhinha, que, segundo o narrador "...
nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes (grifo nosso). Não que
parecesse olhar ou enxergar de propósito." (ROSA, 1994, p. 401)
Ora, Nhinhinha, cujo nome nos lembra também menininha, parece ser uma alma
antiga, recentemente chegada e já de partida. Ao repetir "deixa", ela expressa uma espécie de
abnegação no que se refere às coisas deste mundo. Habitante de um mundo supra-realista, ela
também choca os que a cercam. Seus desejos são realizados pela força deles mesmos. Até sua
morte ela intui, escolhendo o dia, e a cor do caixão. Trata-se de uma menina cujas intuições e
pressentimentos não são guiados por poderes sobrenaturais, mas por uma especulação
pertinaz sempre baseada em suas experiências imediatas. Neste conto, fica bem clara para nós
a visão da criança a respeito do adulto, quando ela se dirige à mãe como: "Menina grande."
(ROSA, 1994, p. 401) Pela ótica da protagonista, os adultos são crianças. Nhinhinha, com sua
linguagem cifrada e estranha, possibilita-nos o contato com a transcendência, ou seja, ela é, ao
contrário de Miguili m e Dito em Campo geral, por exemplo, - esses tão mesclados ao mundo
real concreto da natureza-, uma personagem que se desfaz na natureza, pairando sobre as
coisas do mundo sensível. Etérea e diferente, ela representa uma possibil idade de
comunicação com o incomum, uma vez que o plano em que se constrói é mais anímico e
supra-sensível, que material. Sua materialidade, efêmera por sinal, só faz sentido enquanto
veículo de uma comunicação com o incomum, que, embora raro e às vezes ininteligível, é
possível. A leitura desta menina nos remete também à do protagonista de "Um moço muito
branco", de Primeiras estórias, que veio de outro reino, e que, como Nhinhinha, tem uma
passagem breve pela vida das pessoas. A força anímica de ambos abre brechas para outras
cabelos para se libertar do jugo da mulher que a aprisionou.(BETTELHEIM, 1979, p. 25)
97
formas de nos relacionarmos com o mundo que nos cerca. Na verdade, os poderes de
Nhinhinha nos fazem pensar, não no que eles revelam no plano externo, mas funcionam
principalmente como uma alegoria dos recursos internos que a criança possui.
A protagonista desta estória é bem diferente. Ela escolhe o dia de sua morte e invoca
o arco-íris para que seu desejo se realize. Nesta narrativa a perda se dá noutro plano, ou seja,
no plano do adulto impotente que nada pode fazer diante da força oculta e misteriosa da
criança. Para a protagonista a vida é interrompida por própria escolha, ato sugerido pela
escolha da cor do seu caixão. Sua transição se faz sem alardes, como se a menina estivesse
ligada à existência por um tênue fio, que, mal estendido, é rompido. Representando uma
passagem, Nhinhinha metaforiza o total desprendimento com a vida material-racional.
Impressiona-nos a integridade desta personagem e a sua naturalidade diante da morte, bem
como o seu olhar para as coisas esquecidas. De fato, ela tem mesmo os olhos muito grandes: é
um dado físico mas que, literariamente, sugere sua propensão para olhar o seu entorno de
maneira menos limitada do que costumeiramente olham as pessoas de sua convivência. Não
só os seus olhos são enfatizados mas também a cabeça. Nhinhinha é cabeçudota, como
descreve o narrador (ROSA, 1994, p. 401) Ao retomarmos um fragmento de Grande sertão:
veredas, vemos que Riobaldo chama a atenção para a necessidade de uma consciência mais
ampla, e especula sobre este ser mutante que só pode encontrar os verdadeiros significados
para a sua vida a partir de um processo de aperfeiçoamento e de abertura em sua visão. Em
seu monólogo, ele diz o seguinte: “ Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da
gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores
diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” (ROSA, 1994, p.
200)
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De um modo geral, o espaço onde corriqueiramente nos situamos e pelo qual
transitamos deixa de se oferecer para os nossos olhos como um espetáculo, ou algo digno de
ser visto com “estranhamento”. No dia-a-dia tendemos a considerar os espaços e as situações
segundo uma perspectiva limitada, olvidando os horizontes que há por trás das nossas
experiências diárias. Passamos a manter relações util itaristas e familiares demais com tudo
que nos circunda, e perdemos, deste modo, o olhar infantil e inocente, que se deslumbra. É
como se nascêssemos com os olhos grandes de Nhinhinha e, depois, fôssemos estreitando as
vistas, acostumando-nos com as cores, com o brilho das coisas, com o susto que o mundo em
torno pode, de repente, nos causar. Iluminando estes aspectos, são inspiradoras as
considerações de Merleu-Ponty, para quem:
Voltamos a ficar atentos ao espaço onde nos situamos e que só é considerado segundo umaperspectiva limitada, a nossa, mas que é também nossa residência e com o qual mantemosrelações carnais – redescobrimos em cada coisa um certo estilo de ser que a torna umespelho das condutas humanas -, enfim, entre nós e as coisas estabelecem-se, não mais purasrelações entre um pensamento dominador e um objeto ou um espaço completamenteexpostos a esse pensamento, mas a relação ambígua de um ser encarnado e limitado com ummundo enigmático que ele entrevê, que ele nem mesmo pára de frequentar, mas sempre porum meio de perspectivas que lhe escondem tanto quanto lhe revelam, por meio do aspectohumano que qualquer coisa adquire perante um olhar humano. (MERLEAU-PONTY, 2004,p.30)
Ao contrário da criança, passamos a viver à espera de grandes acontecimentos e
espetáculos que possam, pelo menos, nos distrair um pouco das amarrações diárias, o que faz
com que a vida presente só se justifique em função da vida futura, ou de uma espera.
Perdemos o espetáculo das pequenas coisas, e a visão vai ficando cada vez mais estreita,
miúda e embaçada. Nhinhinha representa este impacto diante do cotidiano. Ela vê tudo que
está próximo e capta a substância mais íntima destas coisas vistas cotidianamente, e que para
os outros simplesmente parece não fazer mais sentido. O próprio narrador, que conhece
Nhinhinha e convive com ela, reconhece que: “O que ela falava era comum, a gente é que
ouvia exagerado (...)” (ROSA, 1994, p. 402) E quando ela proferia frases aparentemente
99
desconexas, como - “O passarinho desapareceu de cantar...” (Ibidem, p. 402), o narrador
novamente reconhece sentido nas palavras da menina e comenta, no meio da narração que
“ De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não
estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera.” (Ibidem, p. 402) De um modo um pouco
diferente de Miguili m, mas ao mesmo tempo bastante similar, esta menina vê demais.
Miguili m tinha os olhos míopes, e precisava apertá-los; ela, ao contrário, tinha-os grandes.
No entanto, os dois desenvolvem percepções sutis dos seus respectivos espaços. Miguilim faz
movimentos entre o que vê fora e o que há dentro de si. Nhinhinha faz transposições de
imagens do seu microcosmos para um outro universo ao qual só ela parece ter acesso, não
porque seja privilégio de uma mente iluminada, mas porque ela sabe tocar com o olhar, muito
mais que apenas ver. Seu olhar é também contemplativo. O texto nos diz que ela conseguia
ficar muito tempo parada: “Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum,
sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia.” (ROSA, 1994, p. 401) As respostas de
Nhinhinha eram, como observa o narrador, “mais longas” (ROSA, 1994, p. 402).
“A menina de lá”, além da riqueza dos conteúdos que abarca, inspira-nos por se
tratar de uma narrativa em que nos chamam a atenção os procedimentos discursivos da
protagonista, os quais rompem com a lógica racionalista e instauram o sentimento ou a
atmosfera do imprevisível. Inspirados nos "olhos enormes" desta menina, é possível nos
fixarmos naqueles pontos em que – parece-nos – só ela consegue ver. Os seus atos de fala
são uma representação metafórica do que ela entrevê. Portanto, muitas palavras – com sons
incomuns - parecem incompreensíveis, como se ela falasse um dialeto próprio, de um outro
lugar.
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4.1 “A MENINA DE LÁ”
4.1.1 A palavra “de lá”
De todas as expressões utilizadas pela menina, a que mais nos chama a atenção é a
frase que, segundo o narrador, ela sempre repetia: “Tudo nascendo!” (ROSA, 1994, p. 402)
Tal enunciado concentra toda a força dos personagens de Guimarães Rosa e a sua
maneira única de ver o mundo, além de revelar o vigor que o autor deu à sua linguagem,
porque este acreditava numa língua tão viva quanto a própria vida. Em entrevista a seu
tradutor alemão Gunter Lorenz, Guimarães Rosa explica o seu método para escrever, o qual,
segundo o autor, “ implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de
nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido
original.” (LORENZ, 1991, p. 81 ) Sua obra contempla um universo de coisas nascentes e
moventes do qual fazem parte as crianças, com suas falas insólitas. Além das questões ligadas
ao discurso, vale ressaltarmos que nas estórias de Guimarães Rosa tudo parece estar sempre
nascendo, mesmo quando ronda a morte e/ou a velhice. Com base nisso, convém buscarmos
um diálago com outros personagens e estórias do autor, nas quais estes princípios também
estão presentes. Em Grande sertão: veredas, por exemplo, o clímax da estória não se dá
quando Diadorim morre lutando com Hermógenes, mas quando, na cena seguinte, ele renasce
com os seus aspectos femininos para a vida de Riobaldo. Neste momento, morre uma parte de
Riobaldo, mas algo essencial que ele viera perseguindo é acordado nele para sempre. Nesta
longa narrativa, o fluir constante do mundo é expresso em uma linguagem dinâmica e
visceral, como é a própria existência e travessia do homem aqui na terra. Nesse sentido, é
sempre valioso reiterarmos que a obra de Guimarães Rosa é a expressão de uma harmonia
entre projeto literário, ideal de vida, construção dos personagens e dos enredos. Tudo conflui,
101
em seus textos, para o rebrotar incessante da vida, e, conseqüentemente, da palavra. Por isso,
as crianças na sua obra são presença tão marcante, porque elas concentram em suas atitudes e
em sua linguagem este potencial criativo que a vida não cessa de jorrar. Na obra do autor
também os velhos revelam este vigor, como se neles acendesse, de repente, uma derradeira
centelha de vida, que vai modificar o rumo do destino ainda uma vez mais. É o que acontece
com Manuelzão, Cara-de-Bronze, Vó Edmunda e Lina, por exemplo. Nestes personagens
floresce o desejo de recomeçar, ou de dar início a algo ainda não vivido. A velhice não
representa o fim, nem o estancamento de um processo criativo, mas sim a morte do que é
velho e precisa, de fato, morrer, para que outras instâncias do ser, ainda inexploradas, possam
ganhar corpo. Como diz o Vaqueiro Tadeu, em “Cara-de-Bronze”, “Olhe, irmão: Deus é
menino em mil sertões, e chove em todas as cabeceiras...” (ROSA, 1994, p. 674)
Além das crianças - os loucos, os cegos, os aleijados, as meretrizes, homens
primitivos como João Urugem, (“Uma estória de amor”), e renascidos como “Augusto
Matraga”, ( “A hora e a vez de Augusto Matraga”) são alguns exemplos de como a literatura
rosiana afronta o pensamento clássico-dicotomizado e evoca novos caminhos de freqüentação
do ser e da linguagem que precisa estar sempre renascendo. Não é de espantar a presença
destes personagens tão peculiares na obra de um escritor que considera a língua como seu
“elemento metafísico” . (LORENZ, 1991, p. 81)
Voltando a “A menina de lá” é importante pontuarmos que Nhinhinha não é a
menina de lá, porque veio de outro planeta, mas porque ela ainda consegue ver as “coisas
todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p. 401) E a
pura vida é movimento. Até o narrador demonstrava admiração por Nhinhinha e pela forma
como ela falava. É o que nos mostram os fragmentos a seguir:
“Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - “Tatu não vê alua...” (idem) ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha
102
que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa dedoces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer listadas coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p.401)
Com relação às formas linguísticas utilizadas por Nhinhinha, estas proporcionam
uma reflexão sobre o empobrecimento da língua, que deveria ser considerada como uma
possibilidade de desdobramento criativo do potencial humano, e não um veículo de
comunicação, um meio para se chegar a um objetivo. Temos, na verdade, expressa nesta
estória, uma linguagem que se apresenta como fluxo e impacto, - a de Nhinhinha - e outra, a
dos adultos, metáfora de uma língua estagnada e funcional. A propósito desta consideração,
Deleuze traz uma importante contribuição no que diz respeito à sintaxe: Para o autor: “Já não
é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em
devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do
desequilíbrio.” (DELEUZE, 1997, p. 127)
Se convidamos Deleuze ao diálogo com Nhinhinha, ela mesma poderá fazer o papel
de sua interlocutora, respondendo ao filósofo com as suas palavras, na sua sintaxe singular,
de modo a ilustrar o que ele considera como “a língua em perpétuo desequilíbrio” ou “a
gagueira criadora” (Ibidem, p. 127):
Suspirava, depois: - “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “ Não sei.” Aí observou:
- “ O passarinho desapareceu de cantar...”
- “ Jabuticaba de vem-me-ver...”
- “Eu ... to-u... fa-a-zendo.” (ROSA, 1994, p. 401)
- “E eu? Tou fazendo saudade.” (ROSA, 1994, p. 402)
- “Eu queria o sapo vir aqui.” (Ibidem, p. 402)
- “Está trabalhando um feiti ço...(Ibidem, p.402)
- “Alturas de urubu não ir...” (Ibidem, p.402)
- “Estrelinhas pia-pia.” (Ibidem, p. 402)
- “Ele xurugou?” (Ibidem, p. 401) 9
9 XURUGAR Voc. Inventado de significado indeterminável.// O autor revela com ele a estranheza da
103
4.1.2 Palavra em movimento
O uso dessas e de outras expressões e palavras revela uma habil idade
“suasibil íssima” 10 da menina, que faz recuperar a originalidade que há no fundo das coisas
esquecidas. Nhinhinha vê “só a pura vida”, o que a faz parecer excêntrica, usuária de um
discurso esdrúxulo, mas livre de estereótipos. É nesse sentido que esta estória inova muito
mais no que poderia haver de estranhamento nas atitudes da menina. Quem está mais
conectado com o sentido das coisas não se assustará com o sentido das palavras que urge em
ser recuperado na fala da menina. De certo modo, esta narrativa nos faz pensar sobre o
esvaziamento das experiências linguísticas do mundo moderno, reflexos, talvez, de um
momento em que os paradigmas estão sendo desconstruídos, bem como de uma concepção
de linguagem entendida como puro instrumento ou veículo de informação e conhecimento.
Um mundo que instrumentaliza as experiências e as relações exige uma linguagem-
instrumento, o que compromete a dimensão expressiva e transcendente da linguagem. Na
contramão disto, esta estória redimensiona o papel da literatura como o lugar de desvio onde
as questões humanas são priorizadas e singularizadas. A presença de Nhinhinha nos propicia
compreender melhor o mal-estar da cultura do adulto num mundo ao qual ele se acostumou e
com o qual perdeu as conexões mais profundas. Isto não é privilégio apenas desta estória. Ao
contrário, tal impasse infância/mundo adulto está colocado em quase todos os contos. Em “A
menina de lá” a reação dos adultos mostra, sobretudo, que eles perderam contato justamente
com aquilo a que a menina está mais sintonizada: a vida e a revelação cotidiana dos mistérios.
Por isso, como diz o narrador “Ninguém entende muita coisa que ela fala...” (ROSA, 1994, p.
menina que o usou, dotada do pendor de criar palavras. (LÉXICO, G.ROSA, MARTINS, 2001, p. 531)
10 A expressão em destaque foi empregada pelo narrador ao se referir à menina como “ –suasibilí ssima, inábil como uma flor.” (ROSA, 1994, p. 401) e mostra que ele reconhece o poder persuasivo damenina. Conforme Martins, esta palavra vem de "suasível” var. de suasivo, próprio para persuadir.”(MARTINS, 2001, p. 470)
104
401) De fato, não é tarefa fácil para um adulto compreender o que uma criança diz, porque ele
está cheio de roupagens da cultura, e cada uma diz respeito a um setor de sua vida. A criança,
ao contrário, ainda não está setorizada e capta o mundo com um olhar capaz de penetrar em
lugares que uma visão dicotomizada não consegue. Em Um sopro de vida, Clarice Lispector
nos faz lembrar que “Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade
que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o
apaziguamento do medo, a negação do medo – a civil ização enfim.(...)” E no mesmo trecho,
continua a autora: “Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas
coisas. Para falar a verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver.”
(LISPECTOR, 1978, p. 74)
“A menina de lá” propicia a reflexão sobre um tema bastante valioso que é a
recuperação da singularidade da palavra. As experiências da menina parecem ser sustentadas
pela própria linguagem, pois não parece haver neste conto disparidades entre o vivido e o
dito. A palavra brota, assim como brotam as percepções. Elas são imediatas, coladas às
experiências. Por meio das falas de Nhinhinha penetramos na corrente viva da língua e da
infância. Nhinhinha é descrita como “perpétua”, e isso assustava os adultos. (ROSA, 1994, p.
401) Mas o que importa é que o tempo em que ela vive as coisas diz respeito mais ao tempo
do processo de suas experiências, e não a um porvir. Diante da pergunta – “ Nhinhinha, que é
que você está fazendo?” Ela respondia: “ – Eu... to-u... fa-a-zendo.” (Ibidem, p. 401) Ela é um
processo de vida que se faz e de linguagem que se renova. Quando há menção ao futuro é
também para se referir a um lugar desconhecido. “Suspirava, depois: ‘ Eu quero ir para lá.’ –
Aonde? – ‘ Não sei.’ ” (ROSA, 1994, p. 402 ) O título da estória metaforiza o entre-lugar da
criança, que, no caso, é a posição que a protagonista ocupa. “De lá” ficará para nós como um
lugar de muitas possibil idades: lugar do discurso, lugar da infância, lugar do sem lugar.
105
Talvez em outras palavras possamos traduzir e acrescentar às nossas reflexões o que
representa a criança neste conto de Rosa. Nesse sentido, são inspiradoras as palavras de
Solange Jobim e Sousa:
A criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuemsignificados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido único que as coisasnovas tendem a adquirir (...) A criança conhece o mundo enquanto o cria e, ao criar omundo, ela nos revela a verdade sempre provisória da realidade em que se encontra.Construindo seu universo particular no interior de um universo maior reificado, ela é capazde resgatar uma compreensão polifônica do mundo, desenvolvendo, através do jogo queestabelece na relação com os outros e com as coisas, os múltiplos sentidos que a realidadefísica e social pode adquirir. Por isso enriquece permanentemente a humanidade com novosmitos. Grifos do autor (JOBIM E SOUZA, 2001, p. 160)
A língua de Nhinhinha, de Brejeirinha, de Miguil im e de outras crianças extrapola
os limites do poder do mundo adulto. Quando o narrador em “A menina de lá” a respeito de
Nhinhinha diz que “Ninguém tem real poder sobre ela...” (ROSA, 1994, p. 402) está
legitimando o universo imprescrutável da criança e da própria literatura, que é também o
espaço fora do poder. Enfocando o “ lá” que sobressai no título, remetemo-nos ao conto “A
terceira margem do rio” no que o seu título possui de carga semântica similar ao primeiro.
Ambos são lugares simbólicos mais líquidos e flutuantes. Representam, sobretudo, as
diferenças entre os espaços e apontam para outros, que, embora existam, precisam ser
inaugurados. E é pela linguagem, a partir e de dentro do próprio discurso que este lugar passa
a existir. É o lugar da criação, e da indefinição. Não é de se estranhar esses termos marcadores
de lugar na obra de Guimarães Rosa; eles são também nomeadores de um mundo no seu
sentido mais inominável. Portanto é de se compreender que o autor recupera a palavra estória,
e que nas suas “Primeiras estórias” as crianças sejam tão prestigiadas, porque a presença e o
discurso delas resgata o que há de poético no prosaico, o que há de verossímil no acontecido,
o que há de simbólico no real, e o que há de inconsciente no consciente. Sobre esse aspecto
Saraiva chama a atenção para o fato de que o advérbio “ lá” aparece somente uma vez no corpo
106
do conto e “que todavia lhe dá a relevância titular, sem que mesmo assim seja fácil determinar
o seu real ou simbólico valor espácio-temporal. Para o autor,
O ‘ lá’ rosiano tanto pode indicar o espaço celeste, ou o ‘além’ da vida, como o espaçoterrestre ou a vida terrena, e até o espaço do corpo; não é necessariamente a diferençainterespacial que justifica a oposição cá/lá, já que esta pode dar-se no interior do mesmoespaço, o que justifica é a visão ou a consciência, por parte do narrador ou de algumpersonagem, de uma fratura ou distância... (SARAIVA, 1998, p. 95)
Nesta narrativa retornam a força da palavra e as suas repercussões. A palavra é uma
personagem importante, responsável por estreitar os laços entre os territórios do mito e do
real, levando um ao outro, fundindo um no outro. Sobressaem as palavras, na mesma
proporção em que emergem os personagens. A estória funde a imaginação da protagonista
com a imaginação do autor no que esta tem de prodigiosa, misteriosa e desafiadora. Funde
também a perspicácia de ambos em criar palavras que não traduzem o intraduzível, mas que
recriam os fatos esquecidos. Em Guimarães Rosa existe, como afirma Wendell Santos, “uma
euforia da linguagem, um retorno ao estilo metafórico que o diferencia do estilo metonímico
da tradição anterior.” (SANTOS, 1978, p. 176) As falas da menina são mágicas e prodigiosas
porque são geradas e alimentadas no que elas possuem de genuína originalidade. A magia e o
milagre só podem ser interpretados se concebidos dentro do vigor da própria palavra, inédita,
que já é, por si só, um milagre. Este é um dos milagres que a narrativa em questão nos
oferece, o qual encontra a sua melhor expressão neste comentário do narrador acerca de
Nhinhinha: “O que ela queria, que falava, súbito acontecia.” (ROSA, 1994, p. 402)
107
4.2 “UM MOÇO MUITO BRANCO”
Ele cintilava ausente, aconteceu. (...) – contam que seus olhos eram cor-de-rosa!(“Um moço muito branco” , p. 459 e 461)
4.2.1 Um olhar que toca
Esta parte do trabalho configura-se, de certo modo, como uma continuação do capítulo
anterior, porquanto a narrativa a ser apresentada permite uma leitura comparada com a estória
protagonizada por Nhinhinha. De fato, temos considerado cada vez mais possível uma leitura
especular entre as estórias de Guimarães Rosa, especialmente as que se referem à coletânea de
Primeiras estórias, onde um personagem parece estar ligado ao outro, e ser feito da mesma
substância que o outro. Nestas estórias, aliás, o elemento de revelação é sugerido todo o
tempo, e os relatos são centrados num tipo de invenção que beira à celebração e ao espiritual,
evocando sempre a possibil idade de um evento iluminador. Em importante estudo sobre
Primeiras estórias, Dácio Antônio de Castro salienta que“ A condição de primeiras pode ser
atribuída enquanto iniciáticas, fundamentadoras de todas as outras estórias possíveis. É de se
notar também a circularidade original obtida com a amarração do primeiro com o último
conto. (...) A harmonia do conjunto se apresenta de forma labiríntica, tal a variedade de
perspectiva e de temperatura emocional registradas na sucessão dos contos.” (CASTRO,
1993, p. 14)
O protagonista de “Um moço muito branco” , como veremos, pode ser enfocado por
um viés tão especial como o pode ser Nhinhinha. Não obstante eles vivam situações distintas,
ambos carregam o signo da singularidade, e são dotados de procedimentos poéticos que
geram, em torno deles, uma aura de mistério e de enlevo. A apreensão de ambos não se esgota
numa primeira leitura, mas precisa ser feita com um olhar que saiba penetrar camadas mais
subterrâneas do texto. A tendência a enfocarmos o protagonista de “Um moço muito branco”
108
é similar àquela que temos ao contemplar Nhinhinha. Inicialmente, somos tentados a
considerá-los seres sobrenaturais. No entanto, o que dissemos a respeito da menina, vale para
o segundo personagem, uma vez que este parece ser também dotado de poderes especiais.
Ainda assim, é importante revermos este conceito, fazendo um contraponto com a
comunidade que o recebe. Em relação à vida das pessoas ele até poderia ser considerado
“sobrenatural” , mas só no que esta palavra revela de reação ao anti- prosaico da vida, e à
turvação em que estão mergulhados os outros personagens. Novamente estamos diante de um
enredo que nos devolve àquele conceito de alteridade tão realçado na obra rosiana, por meio
do qual identificamos os processos de montagem dos personagens como um intrincado
mosaico de intersecções entre um personagem e outro, numa relação poeticamente especular e
labiríntica.
“Um moço muito branco” é uma revelação, porque nos traz um personagem que
revela aos outros o que eles têm em si mesmos, e que raramente é tocado. Este personagem,
caracterizado por ser muito branco "Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um
branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade"
(ROSA, 1994, p. 457), é responsável pela mudança da perspectiva de vida das pessoas do
lugar. Novamente temos a inserção, na obra de Guimarães Rosa, de uma criatura singular,
fora dos padrões sociais e até mesmo estéticos. A presença desta criatura é mostrada como
fruto de uma catástrofe, de um "fenômeno luminoso" (ROSA, 1994, p. 457) projetado no
espaço, e que gerou um terremoto "que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu
vales, matou gente sem conta..." (ROSA, 1994, p. 457)
Este moço sobrevivente, como podemos perceber, surge dos escombros, gerado por
um fenômeno luminoso. Consideramos valiosa esta imagem proposta desde o início da
narração, que é o aparecimento de uma luz intensa que, por sua vez, vai resultar numa
109
catástrofe. No entanto – e é este ponto que nos chama a atenção - o saldo final é a aparição de
uma criatura perplexa e impregnada de luz, como se fosse ela também um "fenômeno
luminoso". Os relatos são feitos, inicialmente, a partir de elementos comprobatórios,
revelando uma intenção narrativa de ser o mais verossímil possível, mas que depois se dilui
ao descompromisso com o factual, para penetrar novamente nas camadas mais sutis dos
acontecimentos. Ou seja, os fatos, com datas e locais específicos, são verdadeiros pretextos
para a revelação de outras verdades que serão narradas, as quais pertencem ao tempo próprio
da narrativa, bem como de suas necessidades e intenções.
Assim começa a estória: "NA NOITE de 11 de novembro de 1872, na comarca do
Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da
época e exarados nas Efemérides." (ROSA, 1994, p. 457) Nessa estória ocorre um jogo entre
o conhecido e o desconhecido. O narrador apresenta muitas informações sobre a comunidade,
sobre as pessoas importantes do lugar, seus nomes, suas funções, posses, e data os dias das
festas, enfim, oferece-nos um retrato minucioso da vida no pequeno lugarejo. Porém, ao falar
do protagonista, as pinceladas são mais evocativas, impressionistas, o que mostra a profunda
diferença entre este e a comunidade. Neste jogo fica evidenciado o que é do cotidiano e o que
é do inusitado, o que é ausência de luz, e o que é presença luminosa. Trata-se de um
verdadeiro contraste entre os aspectos da imanência (vida da comunidade) e da transcendência
(chegada do moço branco). Ao se referir às pessoas do lugar, a narração caminha menos solta,
e se prende a retratar com mais realismo os seus costumes . Mas, no que diz respeito ao moço
branco, a pena do narrador faz outros contornos, sugere, evoca, provocando uma
profícua/eficiente distinção entre o protagonista e os outros. Costa Lima, em importante
estudo sobre as Primeiras estórias, chama a atenção para os usos da palavra nesta coletânea:
"Já nas Primeiras estórias" a palavra caminha mais solta. Não quer seguir leal os contornosdo acontecimento. Ela antes se confunde com uma pincelada solta, irregular, que menos
110
visasse a distinguir as criaturas do seu contorno do que as apreender simultaneamente. Adescrição, por isso, se faz conscientemente imprecisa e cumulativa." (LIMA, 1991, p. 502)
4.2.2 O olhar do diferente
O que o protagonista de “Um moço muito branco” vai gerar de benéfico para a
comunidade nos faz pensar nos ciclos de vida e morte, de construção e desconstrução, outro
tema muito marcante na obra de Rosa, que não para de fazer jogadas de desconstrução com a
linguagem, numa verdadeira mostra de como esta é reflexo da vida, constante mutação. O fato
de uma criatura como o protagonista surgir dos escombros, de uma desconstrução fenomenal,
e trazer, com a sua presença, luz e revitalização para as pessoas do lugar, revela este mundo
“movente” 11 em que Guimarães Rosa acreditava. A aceitação deste homem branco pela
comunidade, decorre, inicialmente, do sentimento de estranhamento causado nas pessoas que
o vêem como o diferente. Contudo, o mais interessante é que justamente devido a esse fato é
que ele vai revelar o que há de diferente e ao mesmo tempo de singular em cada um. Aos seus
olhos, todos merecem respeito e amor, e é o que ele expressa. Parece-nos que, vindo de
esferas outras, onde as questões dos mortais são meros ecos distantes de uma realidade muito
mais evoluída e transcendental, este homem paira no lugar, e transcende os critérios morais e
éticos. Ele não faz julgamentos, não imagina, nem ao menos cogita o que estão pensando
dele, e a forma como o julgam. Castro nos lembra os traços marcantes de “Primeiras estórias”
entre os quais está a intuição, a epifania e a iluminação. Personagens intuitivos, todos
possuem um canal de comunicação com o mundo externo, que parece provocar algum tipo de
mudança nas relações entre as pessoas, bem como nos lugares. Para Manuel Antônio de
Castro,
11 A expressão mundo movente é empregada por José Carlos Garbuglio, no li vro: O mundo movente de
Guimarães Rosa, São Paulo, Ática, 1972.
111
Todas as estórias desse li vro têm como núcleo um acontecimento, intuído pelos personagens.Daí que eles se transformem em videntes, adivinhos. São guiados pela paixão ou pelodevaneio; até mesmo seus atos e palavras mais simples vêm impregnados de uma cargasimbólica. (CASTRO, 1993, p. 16)
Ainda sobre os personagens, continua o autor:
Elas vivem instintivamente, são seres antiintelectuais, portadores de uma vocação mágica.Isto lhes dá plena liberdade de criar seus mundos, transformando-os em espaços derevelações profundas, pois percebem o que está além do que é possível alcançar através doracionalismo. A infância, para Guimarães Rosa, é traço de grandeza divina. (CASTRO,1993, p. 19)
A intuição pode ser compreendida como um novo modo de ver, que propicia aos
personagens uma capacidade de captar o que é mais urgente e fundamental. Por meio desse
olhar intuitivo e apaixonado os personagens recuperam o sentido simbólico das coisas, e
desenfocam o sentido referencial. Este conto traz algo de muito valioso para nós, porque, ao
falarmos de “Primeiras estórias” , pensamos especialmente em um tipo de abordagem que
valoriza a origem das coisas, ou pelo menos, a tentativa, por meio do ato narrativo, de
remontar à origem das coisas. Neste sentido, como já dissemos, uma estória primeira é uma
estória que busca introduzir algo, reconstituir um elo perdido, acionar na nossa memória de
leitores alguma narrativa que veio antes de todas - a essência das coisas, em meio a verdades
tão provisórias. Portanto, dentro deste enfoque “Um moço muito branco” traz a possibilidade
de um olhar para as origens, no que concerne à presença de uma criatura que resvala em
transparências, e que, parece-nos, está além do bem e do mal. A figura deste homem muito
branco remete-nos à imagem arcaica, primordial. Não temos acesso aos registros de seus
dados biográficos, e o seu passado nos escapa, o que não ocorre, por exemplo, com Maria
Exita e Drizilda. Outro fator de estranhamento também é a ênfase na sua cor alva, como numa
espécie de alegoria do homem no seu estado ou estágio ainda original.12 É o homem do
12 Novamente vemos a reiteração da cor branca, que, como vimos, foi ricamente valorizada em
“substância”.
112
princípio de tudo, excepcional, não por seus supostos poderes sobrenaturais, mas pelas
condições em que aparece, pelos procedimentos diferenciados que tem em relação aos outros,
que já não são tão “brancos” . É interessante também observarmos que este homem surge das
ruínas de um terremoto. Resistindo e sobrevivendo ao terremoto, ele é fruto da desconstrução
e do caos. É ele quem vai instaurar certa ordem e harmonia dentro de cada um. Parece-nos
que este conto fala, dentre outras coisas, sobre uma possibil idade de recomeço, instaurado
por um homem que tem um olhar liberto de todas as convenções.
Ele não tem nome. Ele é aquele que é. E tudo que toca é realmente tocado. Este
conto fala de recomeço, e da possibil idade de se construir um olhar menos turvo, a partir de
um enfoque mais transparente, gerado simbolicamente pela presença de um homem branco. A
luz que vem dele é fator de construção de alteridade nos moradores do vilarejo. Deste modo,
há elementos que propiciam uma leitura deste conto sob uma ótica da origem das coisas, da
reconstrução da ordem, a partir da presença de um ser que nasce do caos. Conforme Eliade,
"Efetivamente, para o homem das sociedades arcaicas, o conhecimento da origem de cada
coisa (animal, planta, objeto cósmico, etc.) confere uma espécie de domínio mágico sobre ela:
sabe-se onde encontrá-la e como fazê-la reaparecer no futuro. (ELIADE, 2004, p. 72) Este
conto trata de um fenômeno luminoso descrito no início do texto: "Dito que um fenômeno
luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que
sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta..." (ROSA,
1994, p. 457) Associado a este fenômeno físico, surge outro, que é a chegada na região, desta
criatura branca: "Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve,
semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade." (ROSA, 1994,
p. 457) A presença deste homem no lugar, e o seu surgimento justamente após este
cataclisma, pode gerar interpretações muito valiosas. Uma apenas nos importa para o
113
momento, que é a que diz respeito, inicialmente, à presença do diferente num lugar em que
todos têm comportamentos padronizados, e cujas preocupações parecem ser as mesmas. A
chegada do diferente desponta para a possibil idade de novas experiências e sensações.
Neste sentido, precisamos reiterar a presença das criaturas incomuns na obra do autor
e salientarmos, uma vez mais, que a radicalização de procedimentos insólitos como o de
tantos personagens revela, sobretudo, a necessidade da mudança, e a crença na mutação
constante, nessa movência das coisas, que não cessa. Somente com a chegada de alguns tipos
incomuns, os quais transbordam na obra rosiana, são possíveis os impactos, a desestruturação
na ordem das coisas, propiciada por mudanças radicais, que, por sua vez, acarretam violentas
quebras de padrões. Na verdade, o que nos chama muito a atenção é a forma singular que o
autor encontra para mostrar como a vida ordinária, dentro das margens cotidianas, pode ser
questionada a partir do aparecimento de uma criatura que simplesmente não se encaixa ao
meio. Isto deve ficar bem claro para o leitor que lê a obra de Rosa. O questionamento das
margens demarcadas, estipuladas e seguidas incondicionalmente é conotado o tempo todo,
não só por meio de uma linguagem renovada e revitalizada, mas também pela passagem de
pessoas estranhas, insólitas, com dizeres, cores, e olhos incomuns. Nhinhinha, por exemplo,
era “cabeçudota e com olhos enormes,” (ROSA, 1994, p. 401); o moço branco “fazia para si
outra raça” (ROSA, 1994, p. 457), e “seus olhos eram cor-de-rosa!” (ROSA, 1994, p. 459).
Além disso, vêem demais, olham demais, entregam-se ao olhar, transformam-se no próprio
olhar. Nhinhinha nasceu miúda, mas foi compensada com olhos grandes; o Moço Branco
tinha o hábito de “olhar ele sempre para cima(...) – espiador de estrelas.” (ROSA, 1994, p.
459) Chama-nos também a atenção a belíssima passagem em que ele encontra o cego, que
retrata a enorme disponibil idade para ver o outro: “olhou-o sem medida e entregadamente...”
(ROSA, 1994, p. 459)
114
Temos observado que quando estas criaturas aparecem, olham, falam e agem, algo
na ordem das coisas se modifica, bem como na ordem do plano narrativo, e no que diz
respeito às expectativas do leitor. Aproveitamos para dizer como estas personagens são
sedutoras no sentido de propiciarem não só às outras personagens, mas também aos leitores,
uma mudança de enfoque no olhar. A questão da cor nesta estória é muito sugestiva, porque o
protagonista não é apenas branco, mas “muito branco” . Ele reluz, mas não ofusca as vistas de
ninguém. Seu brilho e transparência possuem a força necessária para realizarem as mudanças
necessárias. Não há exageros no personagem, mas talvez na forma como ele é tratado pelas
pessoas. No entanto, isto também faz parte de uma jogada do narrador-questionador, que
revela outra vez que estamos tão acostumados com a turvação da visão, que a chegada de
qualquer pessoa mais clara e transparente pode gerar interesses exagerados, bem como
curiosidades exacerbadas. De certa forma, este outro, com as suas peculiaridades, com este
jeito diferente de ser, com esta transparência incontestável, fornece os elementos necessários
para a edificação da identidade dos moradores do lugar. Na verdade, ele faz poucas coisas,
mas possui uma intensidade em seu ser, que é pungente. Ele é presença e ausência; é
imanência e transcendência. Como diz o narrador: "Sobremodo se assemelhava a esses
estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça. " (ROSA, 1994,
p. 457)
Este conto apresenta-se como uma narrativa misteriosa, e novamente parecemos
estar diante de fenômenos sobrenaturais. No entanto, se olharmos bem o seu conteúdo,
veremos que não se trata de uma estória sobrenatural, mas que estamos outra vez diante de um
convite do narrador a que olhemos para onde não costumamos mais dirigir o olhar. Assim
como "A menina de lá", o protagonista da estória em questão tem atitudes diferentes de todos,
e por isto todos o consideram como pessoa excêntrica. Mas o que nos chama a atenção é, mais
115
do que o caráter insólito do personagem, a forma como ele, bem como Nhinhinha, se
diferencia dos outros. Não porque sejam extraordinários, mas porque ainda mantêm intacto
algum sentimento, ou percepção, que os outros perderam.
A breve passagem do moço na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, nos coloca
em um outro lugar de reflexão. O próprio título nos remete a uma promessa de claridade, de
luz, onde só imperam os valores e os interesses locais, corriqueiros, revelados pelos
personagens do lugar. Em oposição a esta turvação diária, surge, não se sabe de onde, um
moço muito branco, que transforma as coisas e as pessoas que toca. Trata-se de mais um
destes personagens sedutores de Guimarães Rosa, que por trás de uma aparente pureza e
fragil idade, encerram uma força estranha e transformadora. Este personagem também tem um
olhar que o distingue da comunidade local. E é por meio do seu olhar sem turvação que se dão
os seus aparentes “milagres” . De fato, ele nos parece imaculado, e possuidor de um olhar puro
que se dirige a todos os seres. É o que nos fala o narrador: "De estranha memória, só, pois, a
de olhar ele sempre para cima, o mesmo para o dia que para a noite – espiador de estrelas."
(ROSA, 1994, p. 459)
As duas narrativas em questão, como dissemos, parecem ser estruturadas por
ingredientes sobrenaturais que geram no leitor, à primeira vista, uma curiosidade que deve
ser ultrapassada a fim de que os significados ocultos sejam decifrados. Penetrando na
estrutrura mais profunda de “A menina de lá" e de "Um moço muito branco", veremos que
estas estórias fazem parte menos de uma descrição de fenômenos sobrenaturais do que do
questionamento que permeia a obra de Guimarães Rosa. Ou seja, veremos que os
protagonistas destas estórias possuem um comportamento que questiona a lógica e o pre-
visto. Eles vêem além das aparências, e com esta visão tocam onde os outros não
conseguem mais fazê-lo. Por isso parecem estranhos, oriundos de lugares também estranhos e
116
de difícil acesso. Na verdade, esta atmosfera que os envolve radicaliza a proposta de um novo
olhar. Nhinhinha e o protagonista anônimo de "Um moço muito branco" são seres que se
auto-conduzem, e que se diferenciam dos outros porque vivenciam integralmente seus dons,
suas potencialidades de visão. O seu campo de visão é amplo, sem ser excessivo. É expansivo,
sem deixar de ser sóbrio. Por meio deles observamos como os outros vêem, ou não vêem.
Nesse sentido, os títulos das estórias são bastante sugestivos. A menina é de lá. De lá,
de onde? Onde é este “lá”? De onde ela vem? Não será este “lá” um lugar que temos perdido
em função de uma espécie de torpor ao qual nos acostumamos? "Um moço muito branco" traz
implícita a idéia desta luminosidade, do desvelamento das coisas: clareza, luz, transparência.
É o oposto de turvação e sombra. Em ambos os personagens estão presentes aspectos
similares, quais sejam: o estigma da diferença, a proveniência desconhecida (ele, veio dos
escombros; e ela, é a menina de lá) Ambos representam a forma inusitada de olhar e a
capacidade de transformar as coisas que vêem.
Chamou-nos também a atenção em “Um moço muito branco” a rápida passagem do
cego pedidor de esmolas. É justamente a este cego que o protagonista oferece uma semente
que, depois de plantada, dá flores raras, azuis. A semente que ele recebe e que confunde com
comida não deixa de ser um alimento, mas noutro plano: "Mas à porta da igreja se achava um
cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o sem medida e entregadamente. –
contam que seus olhos eram cor-de-rosa! – e foi em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula,
tirada da algibeira." (ROSA, 1994, p. 459) A cegueira deste pedinte não seria uma extensão
de toda a cegueira da comunidade? Veja-se a passagem:
Então o cego guardou, com irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foiplantada após o remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da maisrara e inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas demaneira impossível, num primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas concordou,por desconhecido no século, definhada, com pouco, e secada, sem produzir outras sementesnem mudas, e nem os insetos a sabiam procurar. (ROSA, 1994, p. 459)
117
A aparição deste personagem cego que recebe uma semente do personagem
iluminado sugere-nos um incrível contraponto com a lucidez do protagonista, cuja passagem,
tão rápida quanto a do suposto "fenômeno luminoso" que "se projetou no espaço" (ROSA,
1994, p. 457), nos convida a refletir sobre a força destes deslocamentos que as narrativas
apresentam. É muito oportuno e simbólico o breve gesto de doação feito pelo protagonista ao
cego. Parece-nos que, neste momento, o diferente que tanto vê, fala ao diferente e, ao mesmo
tempo ao seu igual, que não vê mas muito percebe.13
O protagonista dessa estória destaca-se da coletividade por sua clareza de atitudes e
pelo seu olhar intuitivo. E desse modo ele, às vezes, é confundido com um lunático: "Ele
andava muito na lua, passeava por todo lugar e alhonde, praticando aquela liberdade vaporosa
e o espírito de solidão, parecesse alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo."
(ROSA, 1994, p. 459) Trata-se, certamente, de mais um personagem de Guimarães Rosa que
está à margem, sem lugar definido. Um nômade existencial, para quem os caminhos são
sempre incertos.
13 Novamente estamos diante de uma estória em que o cego tem um papel ambíguo; e sua presença traz
significados importantes para a narrativa, porque, longe de ser um excluído, este cego, bem como o das outrasnarrativas, constitui um elo entre o protagonista e o restante da comunidade. A cegueira parece revelar algomuito mais amplo que simples deficiência física, e nos faz pensar na perda de uma outra visão, muito enfatizadana obra de Guimarães Rosa.
118
4.3 “A TERCEIRA MARGEM DO RIO”
4.3.1 Olhar e esperar
Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás.("A terceira margem do rio", p. 409)
Neste conto misterioso de Primeiras estórias, um dos personagens, sempre às
margens do rio, acompanha o pai, após este, sem nenhum motivo aparente, ter deixado a
família e se instalado numa canoa construída cuidadosamente para carregar apenas uma
pessoa e resistir às intempéries do tempo. Assim, após a partida do pai, o filho passa a viver às
margens do rio, acompanhando os movimentos do pai, que nunca volta. Nesta estória,
podemos observar as transformações dos dois protagonistas, que vivem numa relação
especular. Não se sabe sequer se o filho, quando o pai parte, é ainda criança ou não. O que se
pode depreender é que a sua formação está intimamente ligada ao envelhecer e ao processo de
“marginalização” do pai. Como os outros personagens desta estória, o filho-narrador, vive a
experiência da perda, mas mediada diariamente pela presença/ausência do pai. Trata-se de
uma narrativa polêmica, atmosférica, insinuante, que mostra, ao mesmo tempo, a passagem e
o estancamento do tempo. Temos noção de que este passou mediante os sinais oferecidos pelo
narrador quando menciona que já lhe começam a branquear os cabelos.
Enquanto filho, o personagem é um menino, e depois torna-se homem ao assumir o
destino de aguardar o pai, cuidando simbólica e materialmente dele. Mas a sugestão que o
conto oferece é a de que, na sua condição de espera, ele será sempre um menino
impossibil itado de desenvolver suas próprias possibil idades. O desafio maior do protagonista
será a tentativa frustrada de tomar o lugar do pai na canoa. Entretanto, embora tente criar
119
forças para isto, a imagem do pai que volta transfigurado o assusta, e ele recua amortecido de
pânico e de culpas.
É um belíssimo conto que nos aponta, dentre vários outros caminhos, para a
impossibil idade de, em certas situações ou questões da vida, tomar-se o lugar do outro, pois a
cada qual está reservado o seu tanto, sua parte na canoa, sua terceira margem. Também nos
inspiramos nesta margem para situarmos estes personagens criados pelo autor, que, como
temos dito, rompem com o discurso racional-unívoco, e recriam outro, fruto de diversas
percepções do mundo, nas quais estão inseridas as crianças, os loucos, os velhos e os cegos.
Este conto nos oferece um olhar bem especial, ou seja, é um olhar que se volta para
trás. O filho, preso ao passado e à mercê do pai, possui um olhar paralisado, fixado no medo e
na culpa. É para trás, sempre para trás que seus olhos se dirigem. E é baseado no seu ponto de
vista que veremos os acontecimentos. O olhar deste personagem é um olhar que se fixa e não
consegue se movimentar na dinâmica provocada pela atitude insólita do pai. Enquanto o pai
se movimenta no rio, o filho o aguarda e o observa. Mas, anos de observação cuidadosa não
são suficientes para o filho tomar a atitude que o pai esperava dele. Por isso surge a culpa, que
dá a este conto o seu sentido trágico. Suas ações o traem, não obstante ele tenha olhado tanto
para a situação, para o rio, para o pai. Ele viveu um longo tempo como observador, a ênfase
foi também no olhar contemplativo, como o do pai, e quando poderia agir não o fez, ou não
estava preparado. O olhar deste filho é um olhar preso, fixado na inação, e que não o leva para
a transformação. Dedicado exclusivamente à missão de esperar e olhar o pai, ele se torna,
pouco a pouco, um observador cujo olhar só sobrevive por causa dessa fusão eu/outro, em
que o eu se dilui no outro. No final, ele não consegue distinguir muito bem a figura do pai,
que lhe parece vir da parte do além. E se sua vontade se manifestou, esta teve uma breve
duração, justamente porque o que ele viu era incerto, ele não estava vendo com clareza de
120
onde vinha o pai, e quem era mais este pai. Assustou-se diante do que viu, ou do que pensou
ter visto. Paralisou-se quando ia agir.
Nessa terceira margem, quem olha é aquele que espera. O ato de olhar está ligado a
esperar. O olhar do filho não consegue discernir o que é o tempo do agir e o tempo do esperar.
Paralisado pela espera, ele pára de viver sua própria vida para se tornar um observador
passivo. No momento em que poderia agir, perde-se em dúvidas e no emaranhado que se
tornou o seu próprio ser. É então um paradoxo porque, se o bom senso nos diz que quem toma
distância para olhar consegue ver melhor, neste caso o filho, embora distanciado e na posição
de observador, não consegue ter o discernimento suficiente para perceber a hora certa de
deixar a sua posição e assumir outra, a de ator do seu próprio processo. Ao ouvir o chamado
do Pai para assumir o lugar na canoa, não tem a coragem suficiente para fazê-lo e se perde
mais uma vez como um ser da contemplação. É a ambiguidade gerada dentro deste ato
contemplativo expresso pelo gesto do pai e do filho que nos faz rever os riscos a que um
demorar-se ou exagerar-se na contemplação podem gerar e de que maneira podem
comprometer as ações necessárias para a sobrevivência da psique e da própria espécie. O
filho, em síntese, foi presa de uma contemplação sem ação - fazemos ressalvas, é claro, com
os seus gestos de suprir e de abastecer materialmente o pai - mas não é deste procedimento
que nascerá a força de sua ação, e sim de um outro que não conseguimos captar, ao longo da
narrativa.
Com relação a Riobaldo, em Grande sertão: veredas, e o filho de “A terceira
margem do rio” , é possível dizer que ambos estão fixados em suas culpas e que nos dois a
dúvida é radicalizada. No último caso, esta intensifica-se e cresce no final. Poderia ser
resolvida, mas o protagonista cede a ela e se paralisa. Riobaldo vivencia esta dúvida, seja com
relação à existência ou não do diabo, seja com relação ao amor por Diadorim, mas de forma
121
mais dinâmica e criativa. Ou seja, ele age diante da dúvida: posiciona-se, lança-se ao seu
desdobramento. E ainda assim percebemos, pelo tom de seu monólogo/diálogo, que o seu
grande erro foi não ter visto. Algo de crucial não lhe foi esclarecido e ele perdeu uma porção
da verdade. Esta meia verdade ou relativização da verdade nos devolve outra vez para o que
consideramos o cerne da obra de Guimarães Rosa: existe de fato o Diabo? Pois tal pergunta
simboliza talvez uma mais ampla: existe, de fato, a verdade como a entendemos, ou a
desejamos? Ou o que vemos será mesmo um vislumbre, uma faceta desta? Teremos, no meio
de nossa travessia, acesso à totalidade do Real? Não podemos falar de um modo de ver, sem
termos como núcleo de nossas reflexões o ato de questionar. Como dissemos no início deste
estudo, o olhar está imbricado ao ato de perguntar. E neste sentido o filho, nesta estória,
padece de uma terrível incompreensão acerca das atitudes do Pai. Ele não entende, e a sua
imobilidade decorre de sua impossibil idade de atingir o mistério que rondeia o gesto
inapreensível do Pai, e que o deixou com o olhar turvo, paralisado em um único campo de
visão.
4.3.2 Do outro lado do texto
Para discorrer sobre “A terceira margem do rio” colocamo-nos à margem do texto,
porque sabemos da impossibil idade de penetrá-lo. Desta margem buscamos o remador sobre a
sua canoa e imaginamos o seu salto: da terra para a água, pervertendo a solidez e a concretude
dos dias, rompendo com a história conhecida e iniciando outra. Passagem para o rio.
Passagem da ação para a contemplação. Passagem do fazer para o lembrar. Do estar com a ser
lembrado por. Nesse conto misterioso de Guimarães Rosa o mistério não é para ser desvelado,
senão como gerador de outros mistérios. A narrativa por si só é suficiente para instaurar em
nós a certeza do que está encoberto e a dificuldade em reconhecê-lo.
122
Variados aspectos iluminam esta estória, ao mesmo tempo que produzem sombras.
Tentar compreender esta terceira margem somente pelo veio intelectual representa um risco:
condenar a história à banalidade das respostas objetivas, colocá-la no lugar em que ela não
deve estar, justamente porque ela é uma espécie de entre-lugar. Desta forma só é possível ler
o conto se nos posicionamos à margem, sondando o ir e vir da canoa, que sobrenada o rio
margeado, nesta estória, inevitável e paradoxalmente, por três margens. Para entrar no rio será
preciso, além do remo e da canoa, certa coragem e silêncio contemplativo, porque, deixada a
terra, a escuta é dirigida para a voz e os ruídos de dentro. O que é possível fazer sentado
dentro de uma canoa, exposto a todas as intempéries do tempo, senão olhar e escutar?
Sabemos tratar-se a terceira margem de um espaço essencialmente metafórico, que
atinge neste conto a sua excelência; mas, antes da metáfora, ou subjacente a ela, há o literal: o
rio, a canoa. A passagem do tempo. As margens do rio. Descontinuadas por uma terceira, não
paralela, uma margem intrusa, não natural. E é o lugar ocupado por esta margem que se
vislumbra nos espaços silenciosos do texto, que, seguindo o ritmo do rio, silencia-se nele e
com ele. Silencioso é o protagonista, porque, como contemplador, habita a morada do
silêncio. O discurso é o do silêncio do rio.
O homem deixa a solidez e mergulha na fluidez: do cosmos ao caos. Muda de
estágio, renega a sua condição cotidiana e instaura a sua própria rotina fundada, solidificada
na água que o leva, sem afastá-lo do seu lugar de origem. Torna-se, então, autor de sua
própria solidão, transgredindo os limites, ultrapassando as margens. Como numa experiência
onírica esse ser da terra funda uma nova forma de vida, estabelece-se no contexto do seu novo
habitat: útero da mãe e da terra, silêncio do tempo primordial, em que o Universo era apenas a
sombra de si mesmo. Deixando a casa, reinaugura-se, batiza-se e renasce, não mais como um
homem de ação, mas como um homem da contemplação. Desprendido dos hábitos do
conhecimento util itário e dos condicionamentos sociais, ele imerge nos processos do
123
devaneio, como se transitasse entre a vigília e o sono. Os fios da pressão diária são vencidos
nesta narrativa. Indo em direção à água, liberta-se das exigências da socialização para viver o
aprendizado da contemplação.
Na história da humanidade são muitos aqueles que decidiram partir e buscar a sua
terceira margem. Quarenta dias e quarenta noites habitou Jesus o deserto: da ação à
contemplação, e desta para a Iluminação. Sete anos buscou Sidarta Gautama vencer os
condicionamentos da matéria, através de práticas ascéticas, até encontrar o Caminho do Meio
e se tornar o Buda, o Iluminado. Da ação à contemplação. Da imanência à transcendência. Da
margem à terceira margem.
“A terceira margem do rio” é um conto que associa contemplação e memória,
aspectos que são vivenciados por dois protagonistas: o Pai, desencadeador da trama, e o
Filho, narrador da trama. Dois movimentos predominam nele: o ato de contemplar e o de
rememorar. Da leitura deste texto, muitas perguntas incômodas vão surgindo, dada a
excentricidade e até mesmo o absurdo da situação que se apresenta. Perguntas muitas vezes
trazem respostas, e uma delas, diz respeito à liberdade. Acreditamos que este conto tão
polêmico e hermético esteja pautado, sobretudo, na necessidade de liberdade do protagonista,
que, como constatamos, tudo planejou e organizou para que o seu projeto de mudança se
realizasse. A estória mostra o protagonista em dois momentos distintos: o homem ordeiro e
positivo, do início da narrativa, e o homem de espírito livre, desamarrado das noções do
tempo e do espaço, representados pela vida na sua casa, ao lado de sua família. Ao romper
com esta estrutura, ele mergulha no espaço do devaneio, quando, não mais espoliado pela
vida ativa, alaga, alarga e distende a sua imaginação. Muda o enfoque, a paisagem, o olhar.
Sobre a canoa ele passa a exercitar radicalmente a sua subjetividade - descondicionado dos
jogos sociais ou culturais - e entra num processo de diálogo com a Natureza. Não tem mais a
proteção da casa, e, desta forma, o seu olhar alcançará outros espaços, rompendo fronteiras.
124
Nestes termos vale lembrar Bergson para quem o condicionamento da matéria é a
única fronteira que o espírito pode conhecer. No texto em questão, este despojamento material
pelo qual o protagonista opta, parece incompreensível para os que não fizeram a travessia.
Sobre isso nos chama a atenção o narrador: “O severo que era, de não se entender, de
maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,
sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na
cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conto do se-ir do viver.” (ROSA,
1994, p. 410-11) Ainda que continue a se alimentar, os provimentos são mínimos, sintomas de
que agora o Pai tem é outras necessidades, e que é nutrido por outras fontes, pois, conforme
observa o narrador: “O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente
depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia
pouco, nem o bastável. Não adoecia?” (ROSA, 1994, p. 410)
Em A poética do devaneio Bachelard emprega as expressões “sonhador do mundo” e
“Tranqüilidade”. Para o filósofo-poeta este sonhador do mundo “abre-se para o mundo e o
mundo se abre para ele” (BACHELARD, 2001, p. 165). Conforme o autor, no devaneio de
sua solidão de sonhador há a conjugação de duas profundezas: “a profundeza do ser do
mundo e uma profundeza do ser do sonhador.” (BACHELARD, 2001, p. 165-166)
O homem de “A terceira margem do rio” é o alimento da vida contemplativa, ao
mesmo tempo que se nutre dela, vencendo a realidade da ação. Vencida pelos gestos do
contemplar, a ação se recolhe, imersa nas águas, para, em seguida, emergir revestida do
silêncio próprio da contemplação. Para ver esse homem, potencializado no seu espírito
contemplativo, é preciso revestir-se também do sentimento do quase invisível ou impossível
que é a terceira margem em que ele se encontra. A leitura desta narrativa é a leitura da espera
e da paciência. Espera que leva o leitor a ler e a reler o texto, em busca de sinais, de modo
análogo ao filho, na margem, no aguardo do Pai.
125
4.3.3 Navegar é preciso
“A terceira margem do rio” restitui ao leitor, por meio da viagem do Pai, a sensação
daquela fluência do devaneio, apontada em A poética do devaneio “que nos ajuda a fluir no
mundo, no bem-estar de um mundo” (BACHELARD, 2001, p. 185). Proporciona ao leitor a
possibilidade de quebrar padrões e de criar para si um tempo e um espaço oníricos bem
especiais, em que o homem, no enfrentamento de sua solidão, pode se tornar “o verdadeiro
sujeito do verbo contemplar, a primeira testemunha do poder da contemplação.”
(BACHELARD, 2001, p. 167) Assim como acontece em Grande sertão: veredas, este conto é
também um exemplo do questionamento que se impõe nas redes narrativas rosianas. No
prodigioso romance de Rosa, o protagonista Riobaldo representa a radicalização da dúvida,
expressa, conseqüentemente, no constante perguntar que perfila a narrativa até o final, de
forma muitas vezes obsessiva. Trata-se de mais um conto em que fica evocado o exercício da
indagação, e retorna aquele perguntar observado em Grande sertão: veredas, aliado ao
sentimento de culpa dos dois protagonistas. Na primeira estória, a mudança brusca de
procedimentos do Pai vai gerar um olhar dubitativo no filho, cujo ponto de vista sobre o pai e
sobre si mesmo precisará ser revisto, questionado.
Nesta narrativa temos a imagem da água configurada, não apenas pelo ir e vir da
canoa, mas pela passagem do tempo (pontuada pelo narrador) e pela própria estrutura
narrativa fluida, aquática, que revela, além da estória, a própria lacuna em que residem os
eventos em torno de um tema central que é a vida do homem no rio, ocasionada pela mudança
no seu modo de ver. O protagonista, ao entrar na sua canoa, realiza, de certo modo, um
diálogo com o homo-ludens, o filósofo, o poeta que há nele, o que se debruça sobre as
verdades veladas. E isso é instaurado neste gesto radical de abdicar dos mecanismos
utilitaristas do seu viver e optar pela outra dinâmica: a da contemplação.
126
Com relação à imagem da água e à passagem do tempo, inspiram-nos outra vez as
reflexões de Bachelard acerca do devaneio e do sonho. Para o filósofo: “O tempo já não tem
ontem nem amanhã. O tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e do mundo. O
Mundo é tão majestoso que nele não ocorre mais nada: o Mundo repousa em sua
tranqüili dade. O sonhador está tranqüilo diante de uma Água tranqüila.” (BACHELARD,
2001, p. 166) Nesta passagem o filósofo faz um contraponto entre o homem que sonha e o
homem de razão, e relaciona este trabalho de sonho e devaneio ao trabalho do poeta, que,
embriagado vai “beber na taça do mundo”.
Ora, se esta é uma alusão aos trabalhos do poeta, (ou ao fazer poético) é possível
descobrir no homem de “A terceira margem do rio” esse espírito poético, para quem o ato de
contemplar, devanear e habitar o rio representam, como para o poeta, o ato de viver o
imprevisto, de conhecer o desconhecido, de criar outra margem.
Para o autor de A poética do devaneio, “pela cosmicidade de uma imagem
recebemos, portanto, uma experiência de mundo. O devaneio cósmico nos faz habitar um
mundo; dá ao sonhador a impressão de um em casa num universo imaginado.”
(BACHELARD, 2001, p. 170) Em “A terceira margem do rio” o movimento terra/água
corresponderia, dentro desta perspectiva, a dois outros movimentos que se complementam: a
partida e o retorno. Deixando a casa na terra, “sem alegria nem cuidado, nosso pai encalçou o
chapéu e decidiu um adeus para a gente” (ROSA, 1994, p. 409). Não estaria o Pai, desta
forma, retornando a esta primeira morada, repouso sagrado e flutuante? Se, como afirma
Baader, “a única prova possível da existência da água, a mais convincente e mais intimamente
verdadeira, é a sede” (BACHELARD, 2001, p. 171), a substância desse conto é a sede do Pai,
e, para matá-la, constrói sua canoa, que, como relata o Filho, “teve de ser toda fabricada,
escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta
anos.” (ROSA, 1994, p. 409)
127
Tratando sobre os devaneios diante da água dormente, Bachelard destaca a
importância desse elemento como um grande repouso de alma, além de sua capacidade de
tornar os devaneios em atemporais. A água proporciona, então, o encontro da profundidade
com a superfície. Na presença da água, o eu do sonhador não conhece mais a oposição, e nada
existe mais que seja contra ele. Repousando agora o universo sobre a lagoa, a alma pode se
sentir em casa, pois a “água dormente” integra todas as coisas, o universo e seu sonhador.
Situada próxima à casa do protagonista, a água, nesta estória, não seria uma
possibilidade de encontro da superfície com a profundidade, e não um simples afastamento do
Pai? A passagem revela as diferenças entre os dois espaços, mas, ao mesmo tempo, a
proximidade entre eles: “Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem
quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo de não se
poder ver a forma de outra beira” (ROSA, 1994, p. 409). Seguindo os devaneios poéticos-
filosóficos de Bachelard e margeando a narrativa de Guimarães Rosa, podemos considerar a
profunda transformação pela qual passa o Pai, que é simbolicamente sugerida quando este, ao
final da narrativa, quase retorna, e pareceu ao Filho vir “da parte de além” (ROSA, 1994, p.
412). Ora, não estaria o Pai, após o mergulho na água dormente do seu ser, pronto para pisar
a terra? Expande-se tal hipótese diante das afirmações de Bachelard, para quem: “Após uma
espécie de olvido de si que desce ao fundo do ser, sem ter necessidade das tagarelices da
dúvida, a alma do sonhador retorna à superfície, volta a viver sua vida de universo.”
(BACHELARD, 2001, p. 189)
O desejo de transcendência do Pai encontra na água a sua máxima expressão do
onirismo e do devaneio. A superação de sua imanência se dá justamente na sua opção pelo
rio, que o deixa numa situação limite entre vida-morte. Vivo sabemo-lo pela voz do narrador,
mas no final, momento de profunda tensão do conto, percebemos que a transcendência foi
definitivamente alcançada, quando, atendendo ao chamado do Filho, o pai, depois de anos,
128
volta para ser substituído por ele. O Pai já fizera a sua parte, superara-se, transcendera,
poderia retornar. No entanto, o espaço de sua transcendência, pura fluidez, parecia ao narrador
algo desconhecido. É o que ele demonstra: “ Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de
além.” (ROSA, 1994, p. 412)
Contemplada pelo Pai, a água representa tudo aquilo que poderia levá-lo a tocar
aquela outra substância do mundo que, escamoteada pelos movimentos cotidianos da vida
ativa, oculta-se, silenciosa mas operante.Trabalhando com a multiplicidade dos aspectos do
ser humano, Guimarães Rosa constrói dois personagens de igual peso: o Pai, ser que opta pela
contemplação, e o Filho, que desempenha na narrativa a função do narrador e de
reconstituidor da trama. Este se dedica a recompor os fios dos tempos, num processo também
solitário como o Pai, por vias de um olhar totalmente voltado para o passado. Num trabalho
de catarse e de auto-reflexão, alimentado pela memória, ele revê suas opções e constata: “ Sou
homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa?” (ROSA, 1994, p. 412) Na
tentativa de fundir passado e presente, abstrai-se de sua vida atual e perde a perspectiva do
futuro. O eixo temporal da narração é presente-passado. Por meio deste eixo o narrador
mantém viva a teia das recordações, como se se tratasse de um trabalho ao qual tenha optado
por se dedicar. Benjamim nos ensina a refletir que: “ ... o importante, para o autor que
rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope
da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?”
(BENJAMIM, 1993, p.37)
Ora, se ao narrador restou o trabalho de observar os movimentos do Pai e esperá-lo,
este encontra uma saída para viver sua espera, a da reflexão por meio da memória, uma vez
que ele mesmo afirma: “E esquecer não posso...” (ROSA, 1994, p. 409) Relendo Benjamim
para quem “...um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido,
ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o
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que veio antes e depois” (ROSA, 1994 p. 409), é possível dizer que este narrador enriquece
sua existência solitária e monotemática às custas do universo ilimitado que é o das suas
recordações. Ao narrar, revela o seu esforço em construir uma narrativa árida, pautada na
interpretação do passado, o qual é salvo do esquecimento. Se, por um lado, os esforços do
Filho em resguardar o passado preserva a memória e o patrimônio paterno, por outro o
esquecimento seria a chave por meio da qual o sofrimento poderia ser neutralizado, o que, em
outras palavras, significaria uma outra resposta ao presente e, conseqüentemente, ao futuro.
No entanto, está claro no conto que o Filho não esquece, mesmo se considerarmos que o
esquecimento, neste caso, poderia surtir no protagonista um efeito curador, ou seja, não se
lembrando, ele não sofreria.
Vale notar que, assim como o Pai, o Filho também abandona uma vida util itarista, ao
se dedicar à evocação do passado. Ao observarmos os membros da família desse conto,
veremos que a vida de todos tomou um rumo, após a partida do Pai: a filha se casou, teve
filho, mudou-se para bem longe; o irmão foi para a cidade; a mãe, envelhecida, também
resolveu ir morar com a filha. Só o Filho ficou à sombra do olhar do Pai. Uma vez que este
último abnega das exigências do cotidiano, não estabelecendo com estas nenhum vínculo, ao
Filho, relegado à condição de guardião e mantenedor da memória do pai, cabe formular ou
elaborar os movimentos voltados para a lembrança do que era antes e do que consegue
recolher na relação com o Pai. Por meio de suas palavras sabemos que o tempo passou e que o
Pai tinha envelhecido: “Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só o demoramento.
Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo.”
(ROSA, 1994, p. 412) A narração se constrói a partir de muitos marcadores de tempo ligados
ao passado: “...e sido assim desde mocinho” ; “...quando indaguei...” ; “... me alembro” ; “Mas
se deu que, certo dia...” ; “Nossa casa, no tempo...” ; “Foi pai que um dia...” ; “E esquecer não
posso, do dia em que...” (ROSA, 1994, p. 409). “Os tempos mudavam, no devagar depressa
130
dos tempos.” (ROSA, 1994, p. 411), pois o olhar e o discurso são frutos das lembranças.
Somente voltando ao passado, o narrador consegue reconstruir uma figura do pai e, de certo
modo, preencher as lacunas do presente. É por meio de uma linguagem de reminiscências que
ele consegue compor e recompor para si e para o leitor esta descontinuidade temporal que
abarca o passado da família, o seu momento atual. No seu discurso surgem indagações, como
sempre ocorrem aos personagens rosianos: “sou homem, depois desse falimento?” (ROSA,
1994, p. 412), e especulações sobre o seu futuro: “Mas, então, ao menos, que, no artigo da
morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que
não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio.” (ROSA, 1994, p.
413). Neste trecho final da narrativa o verbo no imperativo acena para um pedido, um desejo
ligado ao futuro, ao enfrentamento da morte. Encerrada com a imagem da água que não pára,
o conto situa, outra vez, os personagens de Rosa nesse instante que não é, senão como
eternidade ilimitada: abaixo, afora, adentro – o rio. Temos aqui a eternidade do homem
metaforizada pelo ir incessante do rio. Narrada quase que totalmente com verbos no passado,
somente nos últimos parágrafos vindo aparecer verbos no presente - “Sou homem de tristes
palavras” “Sou doido?” “Pai, o senhor está velho...” (ROSA, 1994, p. 412) -, a narrativa oscila
entre as duas eternidades: o antes e o depois. E entre estes dois há o instante efêmero em que
os tempos se chocam.
Narrativa em primeira pessoa, esta estória tem suscitado inúmeras e significativas
interpretações, sendo uma delas a que diz respeito ao próprio processo criador de Guimarães
Rosa, situado, a nosso ver, em uma margem que ocupa um entrelugar muito mais que um
lugar. “A terceira margem do rio” aponta, entre outras leituras, para a aproximação da palavra
des-situada, ou situada em um espaço além, com esta margem impossível, sem lugar definido,
descontínuo. A inserção de uma terceira margem ao rio reflete uma espécie de perversão
espacial, que metaforiza, sobretudo, a inquietude da palavra rosiana, buscando não estar em
131
um espaço, mas constituir-se como espaço. É um espaço reservado ao nascimento de uma via
nova de linguagem, tão insólita e às vezes estranha como a própria vida, margeada por outras
margens que interrompem os nossos caminhos certos. Ler “A terceira margem do rio” é ler
também o espaço do desejo de Guimarães Rosa no sentido de abandonar margens pré-
estabelecidas e estabelecer outras. Nesse sentido o autor fala “na utilização de cada palavra
como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e
reduzi-la a seu sentido original.” (LORENZ, 1991, p. 81)
Em “A terceira margem do rio” , o caos é instaurado pela atitude do Pai, na mesma
proporção em que a escrita de Rosa o instaura em suas narrativas. Este conto fala da busca
tanto quanto a linguagem de Rosa é permeada pela busca: da superação da barreira da palavra,
da criação de uma palavra livre, deslocalizada. Uma palavra que ocupa o lugar da
transcendência, como a terceira margem, por meio da qual o escritor pode romper os limites
entre os mundo da imanência e da transcendência.
Não obstante as tantas leituras feitas deste conto, vale lembrar uma vez mais o
espaço/margem da criação, que nos remete às perguntas: criar, dentro da perspectiva deste
conto, não seria estar à margem? Narrativa em primeira pessoa, esta estória tem suscitado
inúmeras e significativas interpretações, sendo uma delas a que diz respeito ao próprio
processo criador de Guimarães Rosa. Por isso, a leitura deste conto é um convite a uma
revisão da escrita de Guimarães Rosa, que parece estar situada também na terceira margem,
estranha, misteriosa, sedutora, perigosa... deslocada do solo firme, mas sempre próxima a ele;
e construída no ritmo flutuante, ininterrupto das águas do rio. Criando uma terceira margem, o
autor se liberta das duas margens impostas, que, ao mesmo tempo que o limitam servem-lhe
como ponto de partida para transpô-las. As duas margens, então, representariam a nossa
condenação a vivermos como seres de linguagem, paradoxalmente limitados na e por ela.
132
Desta forma, somente a terceira margem salvaria o escritor dos limites e da vivência
angustiante das polaridades.
133
5 O ENCONTRO DO VELHO COM O NOVO: OLHARES
ENTRECRUZADOS
Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. (Ecléa Bosi, p. 21)
Na obra de Guimarães Rosa as crianças, as mulheres, os velhos, os loucos e os
aleijados ganham um estatuto de dignidade como pouco tiveram na história da literatura
brasileira. Apontando para situações em que estes seres são expostos na sua visceralidade, o
autor celebra-os com os requintes de uma palavra que se localiza no cerne da memória. Então,
de repente, narrar significa penetrar nos recônditos das reminiscências. Deste modo, o autor
não apenas mostra ou descreve as situações protagonizadas por estes personagens, mas
coloca-as em pauta, revolucionando estas situações e pondo-as em crise, por meio do
discurso poético. Conforme Ecléa Bosi, “Em nossa sociedade de classes, dilacerada até as
raízes pelas mais cruéis contradições, a mulher, a criança e o velho são, por assim dizer,
instâncias privilegidas daquelas crueldades – traduções do dilaceramento e da culpa. Mas a
mulher, a criança e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e embutidos por
entre as classes sociais.” (BOSI, 1994, p.11) O belíssimo conto de Primeiras estórias,
“Soroco, sua mãe, sua filha” é mais um precioso exemplo de como as criaturas incabíveis
dentro do universo lógico-racional podem ser reconsideradas, postas em crise, tiradas do
patético e da banalização.
Como dissemos no início do nosso trabalho, os velhos, os loucos, os cegos e as
crianças ocupam um lugar bastante privilegiado na obra de Guimarães Rosa. Esta parte do
nosso trabalho dedica-se àquelas narrativas em que a presença dos velhos é significativa
pelas implicações que suas memórias trazem como processo narrativo, pelos modos como são
construídos os seus olhares e pelo diálogo genuíno que o autor conseguiu estabelecer entre
as crianças/jovens e os velhos. A sensação que este diálogo nos causou foi a de que é possível
134
a existência de uma articulação profunda entre esses dois momentos da vida, e que,
principalmente, a existência humana faz parte desta cadeia temporal cujas fases não deveriam
permanecer estanques, mas articularem-se dentro de processos de continuidade, de
espelhamento. O velho está no novo, e o novo está no velho. No artigo "Brinquedos e jogos",
Walter Benjamim observa que " o mundo da percepção infantil está marcado por toda parte
pelos vestígios da geração mais velha, com os quais a criança se defronta. " (BENJAMIM,
1984, p.72) Ecléa Bosi, em seu profundo estudo sobre a memória dos velhos, lembra-nos que
os velhos:
São a fonte de onde jorra a essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e opresente se prepara, pois, como escrevera Benjamim, só perde o sentido aquilo que nopresente não é percebido como visado pelo passado. O que foi não é uma coisa revista pornosso olhar, nem é uma idéia inspecionada por nosso espírito – é alargamento das fronteirasdo presente, lembrança de promessas não cumpridas. Eis por que, recuperando a figura docronista contra a do cientista da história, Benjamim afirma que o segundo é uma vozdespencando no vazio, enquanto o primeiro crê que tudo é importante, conta e merece sercontado, pois todo dia é o último dia. E o último dia é hoje. (BOSI, 1994, p. 18)
As narrativas escolhidas para a apreciação dos aspectos acima descritos são: “Uma
estória de amor” , do livro Manuelzão e Miguilim, “Cara-de-Bronze” e “A estória de Lélio e
Lina”, de No Urubuquaquá, no Pinhém “Nenhum, nenhuma”, e A terceira margem do rio” , de
Primeiras estórias, “Arroio-das-antas” , de Tutaméia, “Fita-verde-no-cabelo” , de Ave,
palavra.
5.1 UM OLHAR PARA O VELHO: “UMA ESTÓRIA DE AMOR”
...Todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão.(Grande sertão: veredas, p. 200)
Em “Uma estória de amor” , do livro Manuelzão e Miguili m, mais tarde republicada
como "Manuelzão", o protagonista, aos sessenta anos, vive o apogeu de sua vida, sempre
voltada para o trabalho, representado pela força de sua presença no comando de uma festa de
135
fundação e sagração da capela que mandou construir na fazenda onde vive, cumprindo o
desejo de sua mãe. Sinais de um sentimento oculto surgem no transcorrer do texto, num jogo
de velar e desvelar. Trata-se, certamente, de uma estória de amor, mas alinhavada a outras
estórias.
Manuelzão - aproveitando a expressão empregada por Garbuglio - é convidado a
viver a experiência do homo cogitandi. (GARBUGLIO, 1972, p.23) Não obstante esteja
conectado com as suas funções, entrega-se, a seu modo, às amenidades propiciadas pela festa.
De outro modo, o Pai, em “A terceira margem do rio” , vive esse momento de forma radical, e
vai até as últimas consequências. Em “Cara-de-Bronze”, as condições físicas são um
impedimento para o homo actuandi atuar, e, portanto, surge uma profunda especulação,
emoldurada no tema da viagem, que é a procura da Poesia. Em “Arroio-das-antas” , a chegada
da menina Drizilda modifica as dinâmicas das velhas mulheres, concentradas no último sopro
de vida de Vó Edmunda. Em “Nenhum, nenhuma”, a velhice é um mistério, guardada a sete
chaves, somente desvelada com a chegada de um menino. E, finalmente, em “A estória de
Lélio e Lina” a velhice representa tempo da sabedoria. Somente uma velha conseguirá
mostrar ao jovem o que, de fato, ele está buscando.
É em “Cara-de-Bronze”, no entanto, que a vivência de uma instância poética, tão
valorizada na obra de Guimarães Rosa, conseguiu ser articulada às premissas da vida
contemplativa, que, a nosso ver, constitui um novo modo de atuar, e que requer tempo,
aprofundamento e reflexão. Sobre isso é o próprio autor que afirma em entrevista a Gunter
Lorenz: “Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; daí seriam
escritos livros melhores. Os livros nascem, quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a
técnica e a alegria do jogo com as palavras.” (LORENZ, 1991, p.80)
136
Nesses instantes da vida, em que é permitido ao velho fazer uma brecha na sua vida
ativa, abre-se um espaço inédito em que lhe é possível apenas ser. A figura de Manuelzão
interessa-nos sobremaneira, porque para ele convergem todos os outros velhos, com suas
formas singulares de olhar para trás e para a frente.14 Propomos, nesta parte do nosso trabalho,
uma apreciação das singularidades dos olhares dos velhos, que, na maioria das vezes, estão
articulados com o dos mais jovens. Nas narrativas rosianas, é possível perceber que, para
cada velho há sempre um jovem, ou uma jovem, numa relação de espelhamento recíproco,
que desencadeia uma série de novas proposições para ambos. Julgamos apropriado também
frisar que nestas estórias protagonizadas por velhos, o olhar para trás, mas empurrando as
ações para a frente, é um traço que muito bem perfila estes contos. Manuelzão, ao passo que
organiza os preparativos para a festa, faz uma análise do seu passado, e projeta uma visão
para a frente. Sem dúvida o olhar para trás é extenso e amplo, mas não o impede de ter forças
para seguir no encalço de seus projetos. Nessas estórias, o olhar típico da memória é
acionado. O passado, mais que um tempo, torna-se um lugar para onde se pode olhar à
vontade, com liberdade. Todos estes personagens parecem ser mais livres quando olham para
trás. Porque, ainda amarrados ao presente, e sem grandes perspectivas para o futuro, têm, ao
dispor, as suas lembranças. Aliás, as lembranças são muito valorizadas em Grande sertão:
veredas . Riobaldo, por exemplo, tem como bem maior, não os fatos vividos, mas a
possibilidade de olhar para eles com total liberdade, porque tudo já passou. O que ele possui,
de fato, são suas lembranças: “... todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que
são passados vão indo em fila para o sertão.” (ROSA, 1994, p. 200) Deste modo, esperamos
que esta parte do trabalho possa trazer luz a este novo aspecto do olhar que é o que se
14 Neste sentido, vale considerar que na festa que Manuelzão oferece aparecem, vindos de todos os
lugares, muitos velhos amigos, cada qual com sua individualidade muito bem traçada. E todos formam, em tornode Manuelzão, uma estirpe de criaturas antigas, arquetípicas, mostradas em suas vestimentas, muitas fora de uso,e em suas falas repletas de um registro que lhes é peculiar.
137
debruça para o passado, mas com vistas ao futuro. Para tanto, não podemos deixar de citar os
personagens jovens que são coadjuvantes neste roteiro de viagem ao passado, de cujos mapas
os velhos possuem o domínio e a leitura exata. Quanto ao futuro, este é, muitas vezes,
vislumbrado por meio dos olhares dos jovens, para quem o porvir, mais que o passado, é uma
porta aberta.
Os velhos, na antiga filosofia de vida africana, eram considerados os guardiães da
memória, os contadores de estórias que passavam aos mais jovens os conhecimentos
ancestrais. “Uma estória de amor” nos leva também à terceira margem da vida, porque
apresenta o tempo do envelhecer, momento privilegiado em que se pode redescobrir o
sentimento poético muitas vezes anulado pela vida do trabalho. Nessa estória, bem como em
“A terceira margem do rio” , “Cara-de-Bronze” e em Grande sertão: veredas, um novo tipo de
homem é abordado e valorizado, que é, o homo cogitandi, o qual surge, após o
desaparecimento do homo actuandi. Conforme Garbuglio, no que diz respeito a Riobaldo,
“Do ponto de vista da história, o segundo antecede o primeiro. Enquanto atuava não tinha
tempo de pensar, pois ‘ fazia e mexia’ . É o gosto de especular idéia que faz surgir a narrativa,
o que já por si explica os constantes entrecruzametos.” (GARBUGLIO, 1972, p. 23) Nas
estórias protagonizadas por velhos, o narrador de Guimarães Rosa, mais que narrar as
memórias e enfocar os olhares destes personagens, dá existência a essas memórias e focaliza,
através de um olhar minucioso, os seus pontos de vista. Para Guimarães Rosa, a velhice é o
tempo propício do narrar, e o seu contato com os velhos despertou-lhe o sentimento de que as
estórias precisam de tempo para amadurecer, precisam passar pelo crivo profícuo da memória.
Memória, nesse sentido, significa olhar para trás, e apreender, com o foco mais adequado, o
narrável. Sobre os velhos mineiros que conheceu, Rosa dizia: “O mineiro é secado por seu
país e seu sol, fica resistente como carne seca. Conheci pessoas de oitenta e até noventa anos.
138
Portanto, simplesmente tenho de ficar velho, pois esse tempo talvez me baste para eu contar
tudo o que queria contar.” (COUTINHO, 1991, p. 71) Nesta fala do autor, fica claro seu
prazer de envelhecer, pois isto significava para um escritor como ele, mais tempo para viver,
e, conseqüentemente, para contar. Esse tempo para contar, tempo destinado ao cogito, à
especulação, e ao olhar contemplativo são observados por Riobaldo, que no início do seu
relato, comenta: “ De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os
prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não
fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range
rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia.” (ROSA, 1994, p. 12)
Em “Uma estória de amor” , as situações que antecedem a missa e a festa são uma
oportunidade de visualizarmos de forma global o contexto em que o protagonista foi
construído, bem como de tomar contato com todos os aspectos constituidores de sua
identidade. Dessa forma temos, aliado a um personagem central, lampejos de outros que o
revelam, porque Manuelzão é parte de um espaço e de um contingente de pessoas que lhe dão
feição e notoriedade. Os mecanismos de configuração do protagonista passam, paralelamente
à narração da estória, pela configuração de todas as nuanças que constituem os outros
personagens, o que nos leva a pensar uma vez mais que, nos procedimentos literários de
Guimarães Rosa, está sempre presente o processo de inclusão. Na celebração, que é a sua
narrativa, todos são chamados a participar.
A Festa de Manuelzão tem para nós um significado que transcende as próprias
instâncias da festa em si. Porque, trazendo para a leitura dessa narrativa a visão celebrativa do
seu autor, entendemos que este texto representa uma espécie de trégua ao homem em sua lida
diária. Chamado ao diálogo com várias vozes que participam da festa, o protagonista pode
viver o instante da epifania, pois nessa narrativa ele não é mais agregado, mas agrega para si a
139
presença de todos. Deste modo, observamos que é fundado também um novo ciclo de vida
para o protagonista e os seus convidados. Trata-se de uma narrativa que se ressignifica na
inclusão e na celebração. O binarismo, responsável pela oposição normal/anormal, excludente
e discriminatório, é relativizado em “Uma estória de amor” , como em toda a obra do autor, o
que viabil iza outras possibil idades de percepção dos seres humanos, chamados a conviver no
misterioso e insólito espaço da intersubjetividade.
A tensão gerada pela presença de personagens como Urugem e Joana Xaviel, em
“Uma estória de amor” , fecundam o texto de um sentimento de anticonvencionalismo. Na
"insolitez" de suas pessoas o binarismo cruel é posto em crise e o que é cristalizado se
descalcifica. Não obstante a integração de todos neste espaço, permanece intacta a
singularidade de cada um, realçada na multiplicidade das diversas formas de ser.
A velhice parece estar preservada. E se há tensões entre o passado e o presente, estas
são reelaboradas pela voz do narrador. Também estão preservados os ritos e os mitos no
encontro das gerações, reiterados pelos trabalhos da memória e pelas narrativas contadas. A
interação social entre as pessoas traz à tona o saber coletivo, representado na oralidade de
Joana Xaviel e na estória contada por Seu Camilo. Assim, estão salvaguardadas, sobretudo, as
identidades pessoais e do coletivo, bem como a do próprio lugar.
O sertão de Guimarães Rosa, vale reiterar, não é um lugar simplesmente geográfico,
mas um espaço de confluências universais, em que o que diz respeito à vida de um homem,
dirá também à de outros, de outras regiões. Manuelzão é grande porque é muitos, porque em
sua memória concentra-se a de outros, e porque, na fecundidade de sua velhice que se
inaugura há uma velhice ontológica, que não é só a dele, ainda que o represente.
Uma novela com a riqueza de “Uma estória de amor” evoca o desejo de muitos
outros olhares. Impressionantemente a simplicidade da vida do sertanejo traz, mais uma vez,
140
nessa narrativa, um complexo de sentimentos, conflitos e temas que poderão ser lidos por
outras óticas.
5.2 EMPRESTA-ME O TEU OLHAR: “CARA- DE- BRONZE”
“ - E ver o que no comum não se vê: essas coisas de que ninguém não faz conta...”(“Cara - de - Bronze”, p. 694 )
Um outro exemplo de narrativa em que fica evidente o diálogo entre o novo e o
velho e a valorização do trabalho do olhar é “Cara-de-Bronze”, do livro No Urubuquaquá, no
Pinhém15. Trata-se de mais uma estória de Guimarães Rosa que privilegia o ato de ver,
inteiramente associado ao ato de buscar. Nesta estória somos convidados a viajar com o
personagem Grivo, vaqueiro escolhido pelo Patrão Sigisberto, para uma importante viagem,
como veremos a seguir.
Embora a estória se edifique numa atmosfera de profundo mistério, o enredo é
simples. Impossibil itado de sair da cama em função da doença, mas ainda assim sentindo
enorme desejo de viver e de conhecer, o velho Sigisberto resolve escolher – por meio de um
processo de seleção a que nem o leitor nem os personagens têm acesso - um vaqueiro de nome
Grivo, a fim de que este empreenda longa viagem pelo sertão, com o intuito de que tudo veja
e, depois, volte para contar. Grivo é o eleito, entre outros quarenta vaqueiros, para iniciar este
processo de aprendizagem e de viagem. A estória se desenvolve dentro de alguns planos
espaciais específicos, quais sejam: o centro de tudo, ou o lugar chamado No Urubuquaquá no
Pinhém, o quarto do Patrão Sigisberto, o pátio onde conversam os vaqueiros, e, extrapolando
estes espaços do Urubuquaquá, há ainda os lugares percorridos por Grivo.
15 Esta novela é resultante da subdivisão de Corpo de Baile.
141
A viagem de Grivo se dá com a finalidade de que ele encontre algo que o velho
deseja muito conhecer, ou quem sabe, recuperar, mas não fica muito claro o que se trata, ou
seja, se se trata de alguém, ou de algo específico. A única pista que inicialmente temos é que
o velho quer descobrir “O quem das coisas” . Sobre os mistérios que envolvem a viagem do
Grivo, os vaqueiros dialogam, na tentativa de descobrirem o real objetivo desta peregrinação.
Mas percebe-se que, embora tentem chegar a uma conclusão, as falas começam a dar voltas
em torno de si mesmas, mantendo-se na indefinição e na especulação. Misturando o tema da
viagem às idiossincrasias do Velho, os vaqueiros fazem verdadeiros encaixes narrativos, por
meio dos quais temos fragmentos da estória do protagonista, que revelam partes importantes
do seu passado e reconstituem suas origens:
O vaqueiro Cicica: Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Quesaiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino e sem dizerpalavra a ninguém... Que ia ter por fito?
O vaqueiro Tadeu: Essas plenipotências...
O vaqueiro Doim: Boa mandatela! A gente aqui, no laboro, e ele passeando o mundo-será...
O vaqueiro Fidélis: Tem de ter o jus, não foi em mandriice. Por seguro que deve de ter idobuscar alguma coisa.
O vaqueiro Sãos: Trazer alguma coisa, para o Cara-de-Bronze.
O vaqueiro Mainarte: É. Eu sei que ele foi para buscar alguma coisa. Só não sei o que é.
Moimechego: Ia campear mais solidão?
O vaqueiro Sacramento: Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antesde morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim... (ROSA, 1994, p. 676 - 677)
Na verdade, a viagem do protagonista, que leva aproximadamente dois anos, consiste
em um verdadeiro aprendizado do olhar.16 Aos olhos de Grivo nada escapará, pois é por
meio dos seus olhos, num processo simbiótico, que Sigisberto receberá novo fôlego para
viver. Mas, como bem nos lembra o narrador, Grivo não segue viagem apenas para servir o
Patrão. “Ele estava bebendo sua viagem.” (ROSA, 1994, p. 705)
16 Vemos, mais uma vez, o tema da viagem presente na obra de Guimarães Rosa, simbolizando a busca
de auto-conhecimento, e neste caso específico, dois personagens serão agraciados com os privilégios desta
142
Percorrendo todos os recantos do sertão, Grivo cumpre a sua missão de olhar e,
depois, quando volta, descreve o que viu, iluminando, com os prazeres vistos, os olhos de
Sigisberto, que já pouco alcançavam. Esta estória mostra, entre outras coisas, que às vezes é
preciso pedir ao outro o seu olhar emprestado, e que é possível vermos pelos olhos de outrem,
quando a vida nos impossibil ita de fazê-lo pessoalmente. A força desta narrativa reside no
desdobramento do olhar, sugerido nesta curiosa e inusitada circunstância, na qual um
personagem vê para dois, para si e para o outro. Além disso, os relatos são duplamente
carregados de significados e subjetividades, pois haverá dois narradores: o oficial – do conto
– e o narrador-personagem, o que intensifica o potencial narrativo desta estória. Ainda vale
lembrar que uma parte da narração é revelada ao leitor, mas a outra, a que diz respeito aos
relatos da viagem de Grivo ao Velho, como também é chamado, não é explicitada. Trata-se
de uma belíssima estória que nos faz pensar uma vez mais em como o velho e o novo se
encontram harmoniosamente nas estórias de Guimarães Rosa. Além disso, faz-nos acreditar
também que, muitas vezes, precisamente quando a velhice nos visita, é aí que um duplo
movimento de olhar é realizado. O velho ensina o novo a ver o que já viu, e o novo pode
mostrar ao velho o que os seus olhos estão descobrindo. A visão expansiva do jovem Grivo é
uma oportunidade que Sigisberto tem de expandir a sua própria visão, mesmo estando
imobilizado. Ao receber novo sopro de vida ele pode caminhar com a certeza de que o seu
olhar foi redimensionado e que realizou também uma viagem, ainda que simbólica.
Poeticamente, assim poderíamos traduzir as presentes afirmações: "Deixa os pássaros
cantarem. No ir – seja até aonde se for – tem-se de voltar; mas, seja como for, que se esteja
indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no ponto final. " (ROSA, 1994, p. 705)
viagem: o que viaja, e o que espera.
143
Esta narrativa nos traz a promessa de que é possível o restabelecimento e o convívio
com as limitações da velhice, por meio da presença e do intercâmbio de olhares, propiciado
pelo encontro de gerações. O tema da viagem, ligado a uma educação do olhar, acentua, nesta
estória, a constituição da alteridade. Ou seja, ao viajar metaforica e simbioticamente com
Grivo, Sigisberto renova a esperança de que o mundo pode ser visto e de que é possível ter
acesso a ele, mesmo sem sair do lugar.
Para que possamos melhor compreender as singularidades de um personagem como
Sigisberto e o relacionarmos com outros de outras estórias do autor, é necessário que tracemos
o seu perfil, observando as modificações pelas quais ele foi passando ao longo do tempo. Está
claro, desde o início da narrativa, que se trata de um personagem bastante respeitado por
todos, com o poder de tudo saber, organizar e comandar. Está claro também que em torno de
sua pessoa há muitos mistérios e especulações. Como é possível constatar em várias
passagens, ele é descrito como alguém indecifrável, cujo caráter e personalidade não pode ser
captado objetivamente. Trata-se de um homem misterioso. Neste sentido há muitas visões a
seu respeito, e, de modo muito bem humorado, dinâmico e polêmico, Guimarães Rosa tenta
decifrar o protagonista. Para tanto, estrategicamente, utili za-se de uma estrutura narrativa
similar à utilizada pelo coro na tragédia grega, cujos personagens, por meio de um discurso
reflexivo e especulativo, tomavam certa distância da cena narrada para revelar suas reflexões.
É o que nos lembram as sucessivas/longas séries de falas que tentam traçar o perfil do
protagonista. São nada mais nada menos que oitenta e um travessões introduzindo oitenta e
uma falas reveladoras de opiniões acerca de Sigibserto, as quais merecem leitura atenciosa e
das quais citaremos apenas algumas passagens:
“ - Sei que ele está sempre em atormentados.
- Quer saber o porquê de tudo nesta vida.
- Mas não é abelhudo.
144
- É teimoso.
- Teimosão calado.
- Ele pensa sem falar, dias muitos inteiros.
- (...)
- Gosta de retornar contra da verdade que a gente diz, sempre o contrário...
- Mas ele acredita em mentiras, mesmo sabendo que mentira é.
- Ele não gosta de nada...
- Mas gosta de tudo.
- É um homem que só sabe mandar...
- Mas a gente não sabe quando foi que ele mandou...” ( ROSA, 1994, p. 681)
Após a longa série de inflexões, o leitor se dá conta de que está diante de um
personagem polissêmico, e que, portanto, e por isso mesmo, exigiu uma poli fonia discursiva,
ou seja, há muitas vozes tentando descrevê-lo, muitas abordagens que se contradizem,
mascarando e multiplicando uma sua possível faceta. Isto fica muito bem sugerido nas
variações dos nomes do personagem, muito bem interpretado por Luiz Cláudio Vieira de
Oliveira, que considera este o conto mais misterioso de No Urubuquaquá, no Pinhém.
Conforme o autor:
A obra de Guimarães Rosa postulará, mesmo quando o faz explicitamente, como em Grandesertão: veredas, a duplicidade do ser humano, sua tentativa de entender-se ao voltar-se paradentro de si mesmo (...) Uma das formas de trabalhar isso em sua obra é pela exploração dapluralidade de nomes, índice da multiplicidade dos personagens. Riobaldo é Urutu-Branco,Tatarana, Cerzidor: Diadorim é Reinaldo, O Menino, é Maria Deodorina Betancourt Marins;o Cara-de-Bronze é o Velho, é Sigisbé, Sejisbel Saturnim, Xezisbéu Saturnim, Zij isbéuSaturnim, Jizisbéu, só, Jizisbéu Saturnim, Sezisbério, Segisberto Saturnino Jéia Velho, Filho.Todos os nomes cabem por detrás da máscara, da “cara-de-bronze”, sendo outras tantasmáscaras, outros eus que, na verdade, nada revelam (...) O processo de mascaramento emultiplicação se acentua neste personagem que é velho e filho ao mesmo tempo e quefunciona como um duplo de si mesmo e do autor, do Moimeichêgo, outro “zero” a serpreenchido por vários eus. Ambos, Cara-de-Bronze e Moimeichêgo são efeitos do discurso,só existindo através dele, podendo ser ocupados por quem quer que saia em busca da poesia,do “quem” das coisas. Por isto, ambos são intercambiáveis e semelhantes. (OLIVEIRA,1998, p. 104)
Percebemos que nesta estória há uma ambigüidade que desvela, ao mesmo tempo
que oculta, o perfil do protagonista, como se ele só pudesse ser visto por um olhar
145
caleidoscópico. Tal procedimento narrativo, característica muito marcante do texto rosiano,
polemiza e desestabiliza quaisquer afirmações sobre o caráter desse personagem que
pretendam ser categóricas. A partir desta polifonia, geradora de contradições, não
conseguimos enfocar unilateralmente o personagem em questão, se não na sua diversidade. O
autor exige que o protagonsita vá sendo paulatinamente construído, porque, embora esteja
velho, ele não está acabado, ainda que seja isto o esperado. Deste modo, Guimarães Rosa
nos privilegia com uma outra abordagem ou concepção da velhice, mostrando o homem, nesta
altura da vida, como um ser em pleno processo de desconstrução e de construção. Além disso,
esta estória nos lembra que o conhecimento de uma pessoa não é viável dentro de uma
perspectiva linear e fechada. Olhar o outro por um único ângulo significa fechar-se para as
inúmeras possibil idades que ele representa. No entanto, quando o olhamos como se olha um
leque de cores e tonalidades, estaremos mais próximos de contemplarmos o seu ser. Por isso
“Cara-de-Bronze” é mais uma destas estórias de Guimarães Rosa que nos propõe um repensar
naquilo que julgamos definitivo e estável. Se olharmos por detrás do fundo do espelho,
miríades de imagens do ser contemplado ser-nos-ão oferecidas. Por outro lado, é bom nos
lembrarmos que, se o protagonista é descrito com suas várias e contraditórias facetas, na obra
de Guimarães Rosa nenhuma estória está desamarrada ou desarticulada do grande tecido que é
o seu texto. Todas as estórias convergem para um núcleo, que entendemos ser a fonte
geradora e permeadora de todos os eventos narrativos construídos pelo autor.
146
5.2.1 Em busca do “quem” das coisas
De modo similar ao que ocorre no conto “Partida do audaz navegante”, de Primeiras
estórias, em “Cara-de-Bronze” a perspectiva é a do resgaste e da vivência da Poesia,
entendida como o “quem das coisas” . Na primeira estória, por exemplo, este tema é
profundamente valorizado. Mas como a protagonista é uma criança, a Poesia é um estado de
ser e não precisa ser recuperada, pois ela ainda existe em potencial em Brejeirinha. Ela é a
expressão natural e espontânea da poiesis, ao passo que em “Cara-de-Bronze”, alguém
precisa ir buscá-la para o Velho. Deste modo, é o Grivo quem se lança na jornada do
conhecimento e da busca das coisas, numa viagem que constitui um verdadeiro aprendizado.
Conforme descreve o narrador: “Nessa ida, conforme contada. Atravessou aquelas cidades –
no meio de matos, os paredões das pedreiras (...) Aí, conheceu a tristeza de acordar, de quem
dormiu solitário no alto do dia; mas logo ouviu, de si, que carecia de relembrar alegrias
inventadas, e saber que um dia tudo vai tornar a ser simples – como pedras brancas que
minam água. (ROSA, 1994, p. 706) Esta viagem não apresenta de modo objetivo o alvo da
busca. O que temos são sugestões, pinceladas, aqui e ali, do que se trata. Se para os vaqueiros,
esta viagem é um mistério, também para o leitor, o que o Grivo encontra tem significados
ambíguos, que só podem ser interpretados na decodificação da estrutura mais profunda do
texto. É o que deixa entrever, por exemplo, o próximo fragmento: “Mas a estória não é a do
Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo
viu, lá, por lá. Mas – é a estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia.
Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores,
sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da
pindaíba nova, da que é lustrada. “ (ROSA, 1994, p.688- 689)
147
Aprofundando-nos um pouco no caráter de Sigisberto, este personagem tão reticente
e perturbador, observamos que, não obstante ele chegue bem estabelecido à velhice, deseja
outras coisas. (Ou as terá desejado sempre?) A fala do narrador insinua tal possibil idade: “Ele
fez Urubuquaquá, amontoou riquezas. Mas, o que fazia, era para se esquecer, de si, por
desimaginar.” (ROSA, 1994, p. 689) E, agora, mais velho, tudo que amontoou fica pequeno
diante das pequenas/grandes coisas às quais ele aspira. É o que descreve o narrador:
Só que, agora, estava mudado. Não requeria relatos da campeação, do revirado na lida: asquerências das vacas parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e avinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos. Nem não eram outras coisasproveitosas, como saber de estórias de dinheiro enterrado em alguma parte, ou conhecer avirtude medicinal de alguma erva, ou do lugar de vereda que dá o buriti mais vinhoso.Mudara. (ROSA, 1994, p. 690)
Além disso, vale dizer que, dentre os velhos da obra de Guimarães Rosa, Sigisberto
é o mais ambíguo de todos e o que demonstra maior sensibilidade para a música e a poesia. A
estória evidencia esta preferência do personagem, ao apresentar um violeiro que embala o
trabalho dos vaqueiros. A presença do cantador em meio à rudeza do trabalho potencializa o
elemento lúdico, apresentando-o como aspecto importante e necessário à vida. No entanto, os
vaqueiros questionam o ofício do violeiro-cantador, ou melhor, eles não reconhecem o cantar
de João Fulano - como é conhecido, - como um trabalho. 17 É o que revelam os diálogos
abaixo:
Moimichego: Quem é esse, que canta? Ele é daqui? E não trabalha? É da família do dono?O vaqueiro Cicica: Esse um? É cantador, somentes. Violeiro, que se chama João Fulano,conominado “Quantidades”... Veio daí de riba, por contrato.Iinhô Ti: Contrato p’ra cantar?O vaqueiro Doim: Duvidar, ganha mais do que a gente. Essas coisas...O vaqueiro Sacramento: Derradeiros tempos, aqui sempre hospedaram uns assim, demúsicos.O vaqueiro Adino: Tantos! Um morreu: o cego Pôncios... Deixou o instrumento: sanfonade quarenta-e-oito-baixos...
17 Esta passagem nos remete à clássica fábula de Esopo, cujo final trágico da cigarra expressa uma
supervalorização do trabalho da formiga, considerado de utilidade, e menospreza o da cigarra, expli citando edifundindo, deste modo, a ideologia de que só deve ser considerado trabalho a ação que produz resultadospalpáveis e utilitaristas.
148
O vaqueiro Sacramento: Este, o Mainarte e eu tivemos de ir buscar longe, na Branca-Laje.E, foi, ficou aqui. Faz tempo...O vaqueiro Adino: Que não dirá, quase um ano. Danado! Este canta o tempo todo...O vaqueiro Cicica: A mariíce de tarefas.O vaqueiro Doim: Ele não tem mereces.O vaqueiro Cicica: Não, isso, ter, tem. O homem é pago pra não conhecer sossego nenhumde idéia: pra estar sempre cantando modas novas, que carece de tirar de–juízo. É o que oVelho quer. (ROSA, 1994, p. 672-673)
Ou, ainda, como diz noutro momento o vaqueiro Adino:
O vaqueiro Adino: Ih, exige que, como está sendo, nos prazos, o cantador tem de produziralto assim uma trova. Lá do quarto, ele ouve, se praz.(ROSA, 1994, p. 673)
Outra menção ao gosto que o velho tinha para a música é expressa nos detalhes deste relato:
“À cabeceira de sua cama estava dependurado ‘um berrante aparelhado, com bocal e
correntinha de prata’ .” (ROSA, 1994, p. 689).
Estas e outras passagens são reveladoras de como o protagonista de “Cara-de-
Bronze” é um apreciador das linguagens não instrumentalizadas, e que, longe de ser um
fazendeiro que só se preocupa com as questões materiais referentes às suas posses, e a sua
representatividade como patrão, há alguns elementos nesse personagem que o tornam mais
próximo daqueles ideais de beleza que também Riobaldo buscava em Grande sertão: veredas,
e em torno dos quais se debatia, ao observar onde estava e com quem estava misturado.
Riobaldo sabia que buscava coisa diferente da vida de jagunço. Diadorim, em quem
Riobaldo tanto se espelhou, e em cuja “neblina” tantas vezes se perdeu, representa este ideal
de beleza e de transcendência. Na novela em estudo, o texto vai pontilhando, aqui e ali, sinais
de quem é realmente o velho Sigisberto, e o que parece saltar às vistas é o fato de que se trata
de um homem que deseja algo mais da vida.
Não estará Guimarães Rosa querendo nos dizer que no coração endurecido de um
sertanejo, acostumado a lidar com bois, terras e vaqueiros, há centelhas de poesia e música
semeadas? E que a aspiração pela Arte e tudo que ela pode fazer brotar e crescer não é
149
privilégio dos homens eruditos, mas é lá, justo onde a terra é de bronze, e só os bois crescem,
que esta pode ser fertili zada?18 No entanto, as descrições tecidas acerca do protagonista só
podem ser apreendidas no ponto de equilíbrio entre o ocultar e o revelar, entre o negar e o
afirmar. Somente seguindo este movimento narrativo é que o leitor poderá construir um perfil
mais legítimo do protagonista. A sua relação com a música, por exemplo, é uma destas pistas
que o texto oferece. Mas é justamente no ponto de equilíbrio entre o ocultar e o revelar, entre
negar e afirmar que podemos tirar algumas conclusões que parecem estar sempre em
movimento, uma vez que esse personagem é difícil de ser captado. A cada nova leitura
encontramos um detalhe que não percebêramos na leitura anterior e que, de certo modo,
desestabil izam as convicções que julgávamos ter sobre ele. Este elemento da narração é
instigante e pede leituras mais cuidadosas. Se este tipo de leitura já constitui uma exigência no
que diz respeito ao próprio texto, neste caso a exigência é ainda maior porque, além das
singularidades e impactos do texto (caracterísitca amplamente abordada em vários estudos
sobre a obra do autor e já valorizadas neste ), o conhecimento do protagonista oferece-se ao
leitor como um enigma e um problema, tanto quanto o é a decodificação da linguagem. Nesta
estória, Guimarães Rosa conseguiu concil iar a linguagem e o personagem no que ambos têm
de complexidade e mistério. Surpresa, instabil idade, dificuldade de acesso são características
comuns ao texto e à personagem, que, neste caso, parece uma linguagem cifrada.
Fazendo um diálogo entre “Cara-de-Bronze” e a novela “Uma estória de amor” ,
percebemos a diferença entre Manuelzão, protagonista desta estória, e Sigisberto. Na
segunda, está claro o que o protagonista deseja e busca. O texto não se constrói de modo
ambíguo, mas pontua as angústias do protagonista, que, chegando aos sessenta anos,
constata não saber de fato a sua posição nem ser dono das terras onde mora e onde trabalhou
18 A presença da música na obra de João Guimarães Rosa merece uma apreciação bem cuidadosa. Sobre
o assunto, trata o artigo intitulado “Música e mito na obra de João Guimarães Rosa”, de Gabriela Reinaldo, no
150
a vida inteira. O problema de Manuelzão é, ao contrário do que ocorre com Sigisberto, mais
de ordem material e física, que metafísica.
Naturalmente que essa situação do homem agregado, sem terra, - sempre numa
situação de dependência em relação ao dono da terra – descrita em Uma estória de amor, é
emoldurada pelo veio poético, o que, longe de sobrecarregar o texto com o simples tom de
denúncia, revela as relações poético/simbólicas que o homem pode e consegue estabelecer
com os seus dilemas. Mas, com relação à “Cara-de-Bronze”, vemos que nesta narrativa o
velho Segisberto, contrariamente a Manuelzão, tenta recuperar outras instâncias de seu ser,
pois ele já conquistou todas as condições materiais necessárias para sua sobrevivência.
Enquanto Manuelzão chega à velhice sem saber exatamente sua identidade, Sigisberto deixa
vir à tona outros aspectos da sua, tão importantes e urgentes quanto os que ele precisou
desenvolver para chegar onde chegou. Na sua imobil idade física, ele está buscando um outro
lugar, não mais material, como é o que ocorre com Manuelzão, mas é nas camadas mais sutis
da sua existência que ele parece querer tocar. Sobre isso nos lembra o narrador: “Mudara.
Agora ele indagava engraçadas bobéias, como estivesse caducável.” (ROSA, 1994, p. 690)
Em “Cara-de-Bronze”, as mudanças no comportamento de Sigisberto perturbam e
desestabil izam o trabalho dos vaqueiros. No entanto, é curioso notar que, no fundo, eles é que
são a referência do Patrão. Sem a polifonia de suas vozes, não poderíamos saber quem é de
fato Sigisberto Saturnino Jéia Velho, Filho. Desconfiados do juízo do patrão, julgam que há
algum tipo de sandice, pois o que ele deseja agora são as “bobéias” . (ROSA, 1994, p. 690) A
variedade de vozes dos vaqueiros traduz fragmentos do que fôra o Velho e no que ele está se
transformando. É o que nos demonstram algumas passagens, que tratam de descrever as novas
ocupações e interesses do patrão.
li vro da PUC, II seminário internacional Grosa, 2001, ed. PUCMINAS... p. 279.
151
- Que era quê?
- Essas coisas... quisquilha, mamãezice... Atou e desatou... Aquilo não tinha rotinas...
Tudo.
- O vaqueiro Calixto: Tudo galã-galante...
- O vaqueiro Abel: Era um advogo. O que não se vê de propósito e fica dos lados dorumo. Tudo o que acontece miudim, momenteiro. Ou o que vive por si, estradavaga...(ROSA, 1994, p. 690)
Em “Uma estória de amor” , é justamente a festa, a preparação para a inauguração da
capela, o encontro com os amigos, o momento de contação de estórias, a missa festiva, a
procissão, que enredam Manuelzão em outras situações da vida, que o levam a uma distensão
com relação às suas preocupações diárias. A festa é o elemento desorganizador, e representa
os aspectos lúdicos necessários à sobrevivência do personagem. Nos instantes em que
vivencia os preparativos para a festa, ele abre espaços no seu espírito atribulado para a entrada
de novo sopro de vida, que o revigora. Sente-se enlevado, apartado das situações e lidas
cotidianas. A viagem, a festa e o rio constituem metáforas excelentes das transformações
pelas quais o homem passa. Não se trata de estabelecermos dicotomias entre a vida ativa e a
contemplativa, ou entre a realidade e a fantasia. Pelo contrário, os textos de Guimarães Rosa
nos mostram cada vez mais que este elo entre os dois aspectos da existência humana são
muito tênues, mas mostra, sobretudo, que somos presas fáceis dos mecanismos impostos pelas
necessidades da vida ordinária, os quais detêm a criatividade e a imaginação humanas,
funcionando como espécies de predadores que sufocam potencialidades criativas e poéticas
do ser humano. Além disso, as estórias de Rosa revelam que basta uma brecha neste esquema
para que o fluxo criativo e delicado que permeia tais aspirações, ou esta busca do “quem”
das coisas possa florir. Nesse sentido, Ecléa Bosi, ao se referir às influências que os hábitos
da vida intrumentalizada têm na memória das pessoas, observa que: “ Na medida em que a
vida psicológica entra na bitola dos hábitos, e move-se para a ação e para os conhecimentos
úteis ao trabalho social, restaria pouca margem para o devaneio para onde flui a evocação
152
espontânea das imagens, posta entre a vigília e o sonho.” (BOSI, 1994, p. 48) E continua: “ O
contrário também é verdadeiro. O sonhador resiste ao enquadramento nos hábitos, que é
peculiar ao homem de ação. Este, por sua vez, só relaxa os fios da tensão quando vencido pelo
cansaço e pelo sono.” (Ibidem, p. 48) Podemos dizer que, ao chegar à velhice, Sigisberto
distende, redimensiona o olhar e debruça-se, não mais sobre as fronteiras, mas sobre os
horizontes.
5.2.2 Olhares multi facetados
Como temos observado, a apreensão do protagonista desta estória não se dá de modo
fácil. Para compreendê-lo é preciso olhá-lo de vários ângulos, seguindo os sinais do narrador,
mas principalmente a multiplicidade de vozes e olhares dos vaqueiros. Essa polifonia
discursiva sinaliza que o conhecimento do outro se dá por meio de uma relação
intersubjetiva. Um detalhe curioso é que os vaqueiros ficam do lado de fora da casa, e o Velho
está sempre dentro, fechado no quarto. Sua ausência gera interpretações - especulações,
projeções e idealizações - cada vez mais desconexas acerca de sua pessoa. Por meio de quem
o conhecemos, se não pelos vaqueiros que, no momento em que falam, nem podem vê-lo?
Deste modo, não estarão suas descrições carregadas de subjetividades, e permeadas por suas
próprias necessidades e experiências de vida? Assim sendo, se a descrição nos dá uma visão
pormenorizada e polêmica do protagonista, por outro, há que se considerar os elementos que
entram com toda a força na descrição desta criatura inacessível, que mal podemos ver. O
Velho está protegido pela casa, e os vaqueiros estão sempre expostos ao céu e às chuvas. O
seu discurso é efusivo, tecido dentro das situações de trabalho. Eles são mão-de-obra que
pensa e emite opiniões sobre o Patrão. Gastando muitas horas do seu dia com estas
discussões, eles expressam o desejo de conhecer o Velho Sigisberto, mas a aproximação só se
153
dá por meio da fala. Não obstante as opiniões sobre ele se contradigam, o diálogo se dá de
forma harmoniosa, o que fica muito bem mostrado nos atos de fala e de escuta atenta
realizados por cada vaqueiro, que, embora nem sempre demonstrem concordar com a opinião
do outro, procuram fazer as coesões discursivas, e incorporar a fala anterior a uma nova
colocação sobre o Velho, propiciando o equilíbrio dentro da polêmica gerada nos atos de fala.
Enquanto falam, chove, e os bois berram, as adversidades do trabalho não cessam, mas
também a cantiga do cantador os embala. Polifonia dos vaqueiros, silêncio do Velho. O
discurso daqueles preenche os silêncios deste.
A possibil idade de se contemplar a integridade de Sigisberto é-nos, ao mesmo tempo,
oferecida e negada. Oferece-se apenas como um jogo textual e discursivo, e nega-se como
impossibil idade de apreensão do ser humano. A contemplação da totalidade dos personagens
só pode ser realizada numa perspectiva que considere a mutação com que estes são
concebidos, o que exige do leitor uma visão que vá além da sua realidade imediata. É bom nos
lembrarmos que nas narrativas de Guimarães Rosa o auto-conhecimento se dá a partir do
conhecimento do outro. Isto fica muito bem traduzido na fala de Lina do conto “A estória de
Lélio e Lina”: “ O que existe na gente, existe nos outros...” (ROSA, 1994, p. 790) A fala de
Lina se dissolve por vários outros textos rosianos, em que o discurso revela este sentimento de
alteridade, e é pretexto para isto. Mas é “Cara-de-Bronze”, sem dúvida, que radicaliza, no
melhor sentido da palavra, a consciência dos desdobramentos possíveis e necessários no
processo de tentativa de decifração do outro e de si mesmo. Conforme Luiz Cláudio Vieira de
Oliveira:
Guimarães Rosa, ao abordar a questão do duplo, da loucura ou do teatro, o fará também nosentido de mostrar que o homem não tem um caráter monolítico, sendo antes um simulacroque uma cópia fiel a um centro anterior e modelar. O homem nunca é idêntico a si mesmo,variando tanto quanto varia o objeto de seu desejo. O que apresenta para si próprio e para osoutros é um conjunto de máscaras com que propicia, ideologicamente, o seureconhecimento/desconhecimento, apesar de nem sempre, como leitor ou personagem,perceber sua duplicidade. Na maioria das vezes, não se dá conta de que está no meio de um
154
jogo ou num palco, representando papéis de que não tem consciência plena. (OLIVEIRA,1998, p. 102).
A relação entre o velho e a criança é bem estreita também neste conto. Geralmente
costumamos dizer que algumas pessoas voltam a ser crianças quando envelhecem. Extraindo
desta afirmação o que ela possa ter de pejorativo, é possível ver que nela há um fundo de
verdade. Neste momento da vida, muitas coisas passam a não ter mais importância; é quando
o homem descobre a grande diferença entre o essencial e o secundário; é quando ele, numa
atitude similar à que possuem as crianças, demonstra, por meio de gestos e intenções que
envia para o mundo, a urgência de viver e de realizar, porque a vida não pode esperar, seja na
velhice ou na infância. O futuro se funde a cada porção do presente e só passa a existir se este
for plenamente vivido. Certamente que não estamos discutindo, neste caso e neste momento,
os níveis de consciência do velho e da criança, mas somente o que concerne às similaridades
dos estilos e aos procedimentos dos dois. Manuelzão, Sigisberto, Lina, Vó Edmunda têm tanta
sede de viver quanto Brejeirinha, Miguili m, Fita-verde e outras crianças. Todos eles têm em
comum o mesmo tempo disponível para a contemplação e para o exercício dos jogos poéticos;
na velhice os velhos podem, de novo, sonhar. E as crianças o fazem pela primeira vez.
Entretanto, diante deste novo estilo de vida que os velhos encontram para viver e se expressar,
muitas pessoas se assustam, porque não é o esperado numa sociedade em que o velho é ainda
relegado à sombra. Como pontuamos, os vaqueiros, em “Cara-de-Bronze”, apesar de todo o
respeito que nutrem pelo Patrão, questionam suas recentes necessidades e atitudes. Passam
praticamente todo o tempo da narrativa especulando sobre as idéias esquisitas do fazendeiro.
Ainda assim, suas falas traduzem, ao mesmo tempo que mascaram, os ideais e os anseios do
Velho. É como se o cerne do silêncio do protagonista fosse traduzido pela poli fonia que é o
diálogo deles. Embora sejam rudes, suas falas estão carregadas de poesia. Um exemplo
precioso são as seguintes falas dos vaqueiros, ao se referirem ao Patrão.
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O vaqueiro Mainarte: “Ele queria uma idéia como o vento. Por espanto, como o vento... Umavirtudinha espritada, que traspassa o pensamento da gente – atravessa a idéia, como alma deassombração atravessa as paredes.” (ROSA, 1994, p. 691)
O vaqueiro Noró: “Que relembra os formatos do orvalho... E bonitas desordens, que dãoalegria sem razão e tristezas sem necessidade.” (Ibidem, p. 691)
O vaqueiro Abel: “ Não-entender, não entender, até se virar menino.” (Ibidem, p. 691)
Esta última fala encerra, de fato, a possibil idade de compreensão das coisas por um
outro tipo de inteligência, que é a que possuem as crianças. Por meio de uma inteligência
perceptiva, intuitiva e imaginativa, elas apreendem as coisas de forma mais imediata, sem a
necessidade de explicações ou conceitos. A última parte do diálogo recupera o eixo do enredo
que é, afinal, a busca do essencial. Sobre isso nos lembra o vaqueiro Tadeu a respeito do
Patrão: “(...) Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!” (ROSA, 1994, p. 691)
A expressão “o quem” das coisas rompe com as proposições tradicionais utilizadas
para se fazer uma pergunta. “Quem” está ligado à humanidade das coisas, harmoniza forma e
conteúdo, corpo e alma, ao passo que o “o quê” está ligado mais à materialidade das coisas,
aos fatos, aos eventos. Por isso, querer achar o “quem” das coisas propõe uma quebra
poética/existencial/ de ordem metafísica, no que diz respeito às perguntas do ser humano.
Estabelece-se, com o emprego deste pronome poeticamente substantivado, um novo modo de
perguntar, e amplia-se a qualidade do que se busca. Está aí nesta inversão do uso do pronome
interrogativo (anteposto por um artigo definido), a evocação a um novo modo de buscar, mais
uma comprovação/exemplo de que a vida para Rosa é constante mutação, e de que as
palavras devem revelar, ou se transformar nisso. O que buscam os personagens de Rosa não é
mais o “o quê” das coisas, referente, externo ao homem, de fora para dentro, mas o “o quem” ,
substancial, raiz que tudo permeia.
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5.2.3 A Casa de bronze
Outro aspecto que nos chama especial atenção nesta estória é a descrição da casa,
que revela também a forma como os vaqueiros vêem Sigisberto: “A Casa, batentes de pereiro
e sucupira, portas de vinhático.” (ROSA, 1994, p. 669) Sabe-se que vinhático é o nome de
uma madeira muito resistente e antiga, e tal detalhe nos ajuda a compor a personalidade do
protagonista. A casa é de madeira tão antiga e forte quanto ele, feita para durar anos. Em “A
terceira margem do rio” a madeira escolhida pelo Pai para a construção da canoa foi pau de
vinhático, também feita para resistir às intempéries da natureza. É o que nos relata o narrador:
“Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha
da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e
arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos.” (ROSA,
1994, p. 409)
Uma breve comparação entre as duas situações nos faz pensar que no primeiro caso o
Velho não possui condições físicas - está paralisado pela doença -, mas a sua Casa é grande e
forte, para ser habitada por muitas pessoas. No segundo caso, o Pai possui a vitalidade física,
mas o seu corpo deseja agora apenas o abrigo de uma canoa. No primeiro caso, a casa possui
vitalidade, mas o dono da casa está paralisado fisicamente. No segundo, a casa perdeu a
vitalidade para o Pai, que precisa restaurá-la na insegurança do rio. A segurança da casa não
mais o nutre. A canoa, no segundo caso, vira a casa. E também é feita de pau de vinhático.
Para durar muitos anos.
Outro conto de Guimarães Rosa em que a casa é tão importante quanto os
personagens e as situações é “Nenhum, nenhuma”, de Primeiras estórias. Esta estória, tão
misteriosa quanto a casa é, assim introduzida: “DENTRO da casa-de-fazenda, achada, ao
acaso de outras várias e recomeçadas distâncias passaram-se e passam-se, na retentiva da
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gente, irreversos grandes fatos - reflexos, relâmpagos, lampejos – pesados em obscuridade.”
(ROSA, 1994, p. 423) Bastaria esta passagem para vislumbrarmos a atmosfera de indefinição
em que são construídas as noções de tempo e espaço. Introduzido pelo advérbio espacial
“dentro” , em destaque, o conto anuncia o que iremos constatar no decorrer da narrativa, ou
seja, que os acontecimentos narrados são todos da ordem da subjetividade e que, embora
grande parte da estória enfatize os espaços externos, sobretudo se considerarmos o tema da
viagem – os processos desencadeados nesta estória são todos internos, bem como as
motivações do protagonista. A casa metaforiza o mistério do personagem, representa o lugar
de “dentro”, o que é insondável. E, nesse sentido, os vaqueiros de “Cara-de-Bronze” também
tecem vários comentários sobre o quarto, a disposição dos móveis no quarto, dando-nos por
via da descrição deste ambiente, um retrato do velho.
Moimeichego: E como é o jeito do quarto dele?
O vaqueiro Mainarte: Pois é escuro e muito espaço, lugaroso, com o catre, a rede, mochospra se sentar, as arcas de couro, bruaca aberta, uma mesa com forro de couro; e uma imagem daVirgem na parede, e castiçal grande, com vela de carnaúba...
O vaqueiro Cicica: Desses coros todos, de onças. O quarto é forrado inteiro com couro deonça, no chão e nas paredes...” (ROSA, 1994, p. 679)
Da segunda vez em que aparece a palavra “casa”, esta vem escrita em letra
maiúscula. Mas, na primeira é assim descrita: “A casa-avarandada, assobradada, clara de cal,
com barras de madeira dura nos janelões – se marcava.” (ROSA, 1994, p. 669) E compare-se:
“Mas, por cima, azulal, ao norte, fechava o horizonte, o albardão de uma serra. No
Urubuquaquá. A CASA...” (ROSA, 1994, p. 669) A presença do artigo definidor, e, no caso
adjetivador, na última passagem, sugere a hierarquia da casa sobre os personagens, sobre o
próprio protagonista, que é mencionado em seguida à Casa: “O fazendeiro seu dono se
chamava o “Cara-de-Bronze” (ROSA, 1994, p. 669) É redundante mencionar a importância
da descrição da paisagem geográfica para Guimarães Rosa, mesmo que esta seja uma releitura
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de paisagens reais e que se apresente como um lugar “ inventado” . O conto se abre a partir do
núcleo, do centro do lugar. “NO URUBUQUAQUÁ. Os campos do Urubuquaquá – urucuias
montes, fundões e brejos. No Urubuquaquá, fazenda-de-gado: a maior – no meio – um estado
de terra. A que fora lugar, lugares, de mato-grosso, a mata escura, que é do valor do chão. (...)
Este mundo, que desmede os recantos. Mar a redor, fim afora, iam-se os Gerais, os Gerais do
ô e do âo (...)” (Ibidem, p. 669) Por meio da apresentação destes espaços constituidores da
paisagem externa à casa - os campos, os montes, fundões e brejos, as pastagens, as serras, o
chão - somos convidados a compor e imaginar ( enquanto estes não nos são apresentados), os
moradores destes lugares. Quem habitará estes espaços que irrompem nas primeiras linhas do
texto, em letras maiúsculas, impondo-se como realidades, individualidades, tanto quanto se
espera de um personagem? Um homem, um menino, um velho, uma velha. E assim, sem
pressa, os personagens vão sendo delineados, cada qual a seu tempo e no seu espaço. Fazendo
parte da paisagem, são feitos da mesma matéria que ela. Também em “Nenhum, nenhuma”, a
descrição da paisagem oferece-nos uma perspectiva das sensações e do universo psíquico dos
personagens. À medida que estes vão sendo apresentados, a relação entre eles e a paisagem
parece ficar mais estreita. É o que ilustra a passagem: “A mansão, estranha, fugindo, atrás de
serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio, que proíbe o imaginar. Ou talvez não
tenha sido numa fazenda, nem no indescoberto rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se,
nunca mais.” (ROSA, 1994, p. 423) Nesta passagem, a impressão de que tudo é fugidio é um
dado que vai permear todos os acontecimentos. Mergulhando no território das lembranças, a
casa é descrita como um lugar sombrio, fechado e antigo, conotando o lugar onde reina a
memória. A entrada nessa casa metaforiza a entrada no terreno em que dormem as
lembranças, o que significa dizer, o terreno da subjetividade. É o que demonstra o trecho: “A
casa-rústica ou solarenga – sem história visível, só por sombras, tintas surdas: a janela
parapeitada, o patamar da escadaria, as vazias tarimbas dos escravos...” (ROSA, 1994, p. 424)
159
Por analogia podemos dizer que a casa da estória de “Nenhum, nenhuma” é tão
misteriosa quanto o enredo. E que em “Cara-de-Bronze” ela é tão forte e antiga quanto o
Velho, possuindo ambos a mesma rusticidade e antigüidade, conforme sugere a passagem: “A
Casa – (uma casa envelhece tão depressa), que cheirava a escuro, num relento de recantos, de
velhos couros. As grades ou paliçadas dos currais. Os arredores, chovidos. O tempo do
mundo. Quem lá já esteve?” (ROSA, 1994, p. 688) O comentário do narrador entre parêntesis
(“uma casa envelhece tão depressa”, (Ibidem, p. 688) equivale a dizer: Um homem envelhece
tão depressa! Afinal, neste texto todas as descrições físicas da casa dizem respeito, sobretudo,
à existência do protagonista, aos recantos inauditos e inacessíveis de sua velhice. A pergunta
“Quem lá já esteve?” (Ibidem) nos leva à outra indagação, qual seja: Quem já penetrou o
universo de Sigisberto, o Velho? Quem o conhece de fato? A casa representa os aspectos
imprescrutáveis dos personagens e, assim como fora do espaço da ficção, nos contos
supracitados a velhice é simbolizada por casarões escuros, cheios de recantos, em que os
sentidos se misturam, perdendo-se nestas sinestesias que fundem, por exemplo, olfato e visão
em: “A casa – (...) que cheirava a escuro...” (ROSA, 1994, p. 688), e audição e visão nesta
passagem de “Nenhum, nenhuma” “A Casa - ... só por sombras, tintas surdas (..) (Ibidem,
p.688) Conforme Bachelard, a casa, este canto do mundo, é o nosso espaço vital, lugar onde
nos enraizamos e vivemos as dialéticas da vida (BACHELARD, 1988, p. 24)Para o autor de
A poética do espaço, a casa é “o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um
cosmos em toda a acepção do termo.” (BACHELARD, 1988, p. 24) Em “A terceira margem
do rio” ocorre um processo similar às considerações de Bachelard. A casa deixa de ser o
centro da existência do protagonista, porque ele deixou de ser um homem “ordeiro e
positivo” , ao passo que a casa continua tendo esta conotação de ordem e estabil idade.
Modificado, este homem precisou de uma nova casa, representada pela sua canoa.
Pervertendo a ordem das coisas, é preciso abandonar primeiro o que há de mais seguro, que é
160
a casa, para depois, fazer a perversão maior que é ir morar numa canoa, símbolo valioso de
movimento e fluxo contínuo de viver.
Quanto a Sigisberto, a sua casa representa o seu enraizamento no universo do
Urubuquaquá. Ambos, ele e a casa, estão plantados no lugar, cuja metáfora é a doença de que
ele sofre e que, segundo os vaqueiros, é “ruimatismos”.
“Desde faz tempo, as pernas foram ficando afracadas. Agora, final, morreram murchas detodo.
– Ficou leso tal, de paralítico.
– Só pode andar é na cadeira, carregado...
– Ah, mas nem não anda, nunca. Não sai do quarto. Faz muitos anos que ele não sai.” (ROSA,1994, p. 681)
Enraizado na casa, Sigisberto só pode sonhar com o mundo por meio dos olhos do
Grivo. E como Miguilm, em Campo geral, algo em seu olhar se transformou. O velho ganha
visão de dentro, acrescida, ao contrário do protagonista infante, de experiências acumuladas
ao longo da vida e do olhar do jovem vaqueiro. Acreditamos que este velho homem é uma
destas figuras recuperadas, ao final da vida, pela capacidade de olhar para um outro lugar,
onde seus pertences não alcançam. Sem dúvida que ele acumulou riquezas, trabalhou,
angariou recursos para uma vida material abastada. Mas, ao final, além da paralisia simbólica,
ele conquista um novo olhar, desejoso de percorrer outras paisagens. A paralisia das pernas
representa uma pausa na vida ativa. É quando repousa o homem de ação, empreendedor, e
renasce o homem contemplativo, o que deseja o “quem das coisas” , ou a Poesia das coisas, ou
ainda, como sabiamente diz o vaqueiro Mainarte: “É imaginamentos de sentimento.” (ROSA,
1994, p. 769)
Após percorrer a obra de Guimarães Rosa atentamente, temos descoberto que o autor
acredita em espaços do homem nem sempre mostrados, e os privilegia. Geralmente, por trás
do visível que há em cada personagem, é o invisível que se deseja mostrar, é sobre ele que
161
a luz maior incide. Sigisberto é inicialmente apresentado por vários aspectos materiais que o
cercam: sua casa, suas terras, seus vaqueiros, seus bens, enfim seus empreendimentos. Mas há
pistas sutis de que estes elementos constituintes do personagem funcionam como o
desvelamento de outros, ocultos, mas presentes o tempo todo, mascarados e até mesmo
representados pela materialidade que o contorna. Existe um traço comum nos personagens de
Guimarães Rosa que é a crença num sonho, numa bem-aventurança, entendida em “Cara-de-
Bronze” como o “quem das coisas” e que parece brotar justamente dos espaços mais
recônditos do ser deste homem perguntador, problematizador e sonhador.
Indagadores, estes personagens estão sempre em processo, ou em travessia. Para suas
perguntas não há respostas prontas, mas estas, quando surgem, são pretextos para novos
questionamentos. Aliás, não importa que tipo de perguntas fazem os personagens. Muitas
vezes surge uma pergunta relacionada à dificuldade da lida de um vaqueiro com a boiada que
tem que guiar, com as intempéries do tempo que o traem, ou com a desconfiança nas relações
com o outro, com o caminho a ser trilhado. Por isso, a metáfora do rio que flui é a
representação de um homem dialético, que pensa, mas que principalmente age
dialeticamente. Neste sentido há sempre uma pergunta sendo feita nas estórias de Guimarães
Rosa, e, quando o protagonista ainda não está pronto para articulá-la, o narrador faz por ele,
porque já o conhece suficientemente para fazê-lo. Temos a impressão também de que os
personagens de Guimarães Rosa estão sempre mudando. Riobaldo, por exemplo, é um rio
dentro de Grande sertão: veredas, rio abraçado por outros, e que abraça incessantemente
outros. O homem de “A terceira margem do rio” só pode continuar a viver se for no rio, na
dialética suscitada pela casa que o margeia e pelo rio que também o margeia, mas,
sobretudo, pela existência de uma terceira e insólita margem que, extrapolando os padrões
geográficos, instaura-se como realidade neste mundo dialético em que o homem escolheu
162
mergulhar. Pensadores sertanejos, homens de tribos que construíram suas crenças com base
em precárias – quando não inexistentes – condições de letramento e erudição, estes seres
formulam seus problemas à medida que eles vão surgindo, e na maioria das vezes, como nas
tribos primitivas, a formulação para os seus conflitos surge dentro da própria comunidade,
porque é na efervescência das trocas que as questões são apresentadas, ou seja, a solidão
destes camaradas sertanejos está totalmente diluída na solidão da paisagem e na solidão de
todos os outros sertanejos. Por isso o diálogo é tão contundente neste conto, e dá tantas voltas
para não chegar a lugar nenhum.
Voltando a Riobaldo, lembremo-nos de que o seu “perguntar” diz respeito a ele e a
todos os outros, porque são os outros que vão lhe mostrando quem ele é, quem também ele
não é, e quem poderia ser. O ato de ver está ligado ao de perguntar que, por sua vez, sustenta
o eixo da alteridade tão deflagrada na obra rosiana e é amplamente evocada nas estórias em
estudo. Em “A estória de Lélio e Lina” há um momento revelador deste olhar que constrói e
sustenta este sentimento de alteridade. Trata-se de uma passagem em que o protagonista está
viajando com o vaqueiro Delmiro. De repente, a descrição da paisagem e dos caminhos por
eles percorridos dá espaço para uma situação de estreito encontro entre os dois, que, até então,
pareciam desconhecidos, unidos apenas pela circunstância do trabalho. Deixemos que a
passagem revele e ilustre as afirmações acima sobre a construção de uma alteridade possível e
sobre o reconhecimento do outro:
Delmiro esbarrou, coçava o nariz, limpou o pigarro. Depois pôs os olhos para cima, eempinou os ombros. – ‘Diacho! – disse. – O que é, é: é o regalo do corpo. Homem foi feitoassim, barro de Adão não é pedra. Mas eu não estou inteiro nisso... Às vezes, depois, me dáum nojo, outro. Principio numa vontade, um desespero de sair do mole do diário, arranjarmeu jeito, mudar de vida. Aí, queria trabalhar, ou andar, num rompante, tirar em mim umesforço grande, mesmo como nunca eu fiz... (ROSA, 1994, p. 752)
Esta revelação de Delmiro abre espaços dentro de Lélio para que ele devolva para si as
mesmas indagações do companheiro.
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Lélio não respondia. Mas, por dentro dele lavorava que nem um susto, um arrocho maior.Tudo o que o Delmiro dera de falar, era, igual por igual, o que ele mesmo vinha em remorsopensando. Enquanto ele era sozinho sentindo, aquilo importava de menos, era como uma dasmuitas coisas desta vida, desencontradas, que, mesmo perturbando um momento, a gentepodia ir deixando para mais tarde, mais tarde, p’ra repensar direito e se resolver. Mas,agorinha, quando um outro também sustentava assim, e falava, parecia então que o peso depressa era maior, subia uma tristeza, um medo, um estava pisando borralho quente. (Ibidem,p. 752)
Encerramos esta parte do nosso trabalho com uma substancial reflexão de Merleau-
Ponty, que, de modo bem estreito faz eco com as reflexões de Lélio:
A humanidade não é uma soma de indivíduos, uma comunidade de pensadores em que cadaum, em sua solidão, obtém antecipadamente a certeza de se entender com os outros, porqueeles participariam todos da mesma essência pensante. Tampouco é, evidentemente, um únicoSer ao qual a pluralidade dos indivíduos estaria fundida e estaria destinada a se incorporar.Ela está, por princípio, em situação estável: cada um só pode acreditar no que reconheceinteriormente como verdade – e, ao mesmo tempo, cada um só pensa e decide depois de jáestar preso em certas relações com o outro, que orientam preferencialmente paradeterminado tipo de opiniões. Cada ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenaspor sua util idade – que não está em questão aqui -, mas para sua felicidade. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50)
“Cara-de-Bronze”, embora construída de forma fragmentada, e por meio de uma
configuração gráfica complexa, converge para esta unidade que tanto apreciamos na obra de
Rosa. A narrativa enfatiza as relações entre o homem e seu semelhante, bem como a busca
que ele precisa fazer para recuperar o que de fato lhe pertence e que não está necessariamente
ligado aos seus pertences. Acreditamos que esta é uma estória que aponta a diferença entre o
secundário e o essencial, sendo este último representado pelo “ quem das coisas” , o qual,
longe de constituir um produto acabado e facilmente encontrável, deve ser cuidadosamente
procurado. A estória aponta, sobretudo, para esta viagem como processo de iniciação. Dado o
primeiro passo, o horizonte se oferece para o buscador como um labirinto ao qual ele deverá
sobreviver.
O que é que o Grivo vai buscar, de fato? É o que todos os vaqueiros estão se
perguntando. É o que o desejamos saber. No entanto, se não soubermos olhar no fundo do
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olho do texto, chegaremos à página final sem termos descoberto o “quem das coisas” , motivo
gerador desta belíssima estória.
5.3 O VELHO ENSINA O NOVO A VER: “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA”
“ ... coração não envelhece, só vai ficando estorvado... Como o ipê: volta a flor antes da folha...” (p. 755)
Esta parte do nosso trabalho é uma extensão ou um desdobramento do capítulo
anterior, porquanto da leitura de “A estória de Lélio e Lina” de No Urubuquaquá, no Pinhém,
configura-se mais uma vez – porém com nuanças específicas – o perfil do jovem e do velho, a
exemplo do que observamos em “Cara-de-Bronze”. Muitos ecos de uma estória podem ser
ouvidos na outra, especialmente os que dizem respeito à força criativa que gera vínculos entre
a juventude e a velhice, nos dois casos catalisada pelas pulsões do homem e da mulher velhos.
Nas duas estórias, há enredos similares, ou seja, tanto em uma como na outra, a viagem
desencadeia os eventos narrativos e opera as transformações necessárias nos personagens. Em
ambas, dois jovens vaqueiros saem em viagem, Grivo e Lélio de Higino respectivamente. O
primeiro estabelece com o velho uma relação de mestre e discípulo e sua procura é a da
Poesia, não exatamente a busca para si, mas para o Velho. Na segunda estória o jovem é o
peregrino do amor. Sua viagem é a da iniciação amorosa e da liberdade. Também como
ocorre na narrativa anterior, ele vai estabelecer com um personagem velho uma relação de
mestre e discípulo. Ao contrário do velho Sigisberto, Rosalina, ou Lina, protagonista da
estória em questão, não perdeu a Poesia. Ela é a encarnação desta, e é justamente desta pulsão
poética que vem sua alegria e sabedoria de viver. Lélio não sai em busca de algo para ela,
mas, sem o saber, sai em busca dela. Ao encontrá-la, compreende o que sempre buscara. Entre
o velho Sigisberto e a velha Rosalina só há de comum a velhice, e a urgência de viver. Os
movimentos realizados pelos dois são distintos. Sigisberto está fisicamente imobil izado, mas
165
internamente ele representa o visceral movimento para a magia da vida. Lina, embora velha,
conseguiu manter harmonizados o corpo e o espírito, eliminando quaisquer tensões ou
disparidades entre estes dois aspectos do seu ser. Seu corpo é a exalação da magia que se
manteve acesa dentro dela. Por isso, ao contrário de Sigisberto, ela converge todos para si.
Sua casa é abertura, assim como ela o é para todos que a procuram. Sigisberto é a evocação
do mistério e da ambiguidade, sendo sua casa tão fechada e sombria quanto ele. A estória que
protagoniza cumpre a função de devolver-lhe o movimento e o encanto de viver, e esta
possibilidade é intermediada por um jovem. Em movimento contrário e ao mesmo tempo
paralelo, em “A estória de Lélio e Lina”, é o jovem que receberá novo alento e harmonizará,
por intermédio da velha, as tensões e o vazio em que foi lançado.
A escritura de Rosa concili a estes opostos aparentementemente inconcil iáveis e
desconstrói o que poderíamos chamar de conflitos de gerações. Enredando histórias e buscas
de velhos com jovens, encaixando as tramas de uns com os outros de forma absolutamente
orgânica, o autor torna viáveis as mediações e as realizações consideradas impossíveis. E faz
mover jovens e velhos entre os devaneios e a realidade, extraindo do prosaico a magia, da
velhice a infância primordial. São estórias que estabelecem profundas rupturas com os
preconceitos em relação à estagnação da velhice ou à imaturidade da juventude. Conforme
Cleusa Passos, “Uma vez ainda, desfazer cenas e relações cristalizadas constitui a chave da
escritura rosiana, sempre intrigante porque vivaz e fugidia.” (PASSOS, 2000, p. 139)
Por ser este viés da obra de Rosa tão valioso e por termos encontrado várias situações
em que este encontro do velho com o jovem se oferece para o leitor, julgamos valioso um
desenvolvimento mais aprofundado desta parte, sobretudo pela oportunidade única que estes
dois textos nos oferecem de reavaliarmos os conceitos muito bem formados acerca do que é
ser jovem e ser velho. Além disso, eles nos estimulam a entrecruzarmos os olhares, de modo
166
a podermos ver com os olhos do jovem que sai em busca de sua bem-aventurança e do velho
que acredita poder recuperá-la ou que -–como é o caso de Lina – nunca a perdeu.
“A estória de Lélio e Lina” nos fala sobre a aceitação do tempo, ou melhor, da
passagem do tempo, que não subtrai no ser humano a porção maior do desejo de viver e de se
entregar à aventura de prosseguir. É o que nos mostra Lina, Rosalina, cujo passado,
configurado como fonte de experiências e conquista das marcas da maturação, aponta para o
futuro sempre despontando. Lina traz a insígnia de Eros, que a nutre e lhe dá vigor em plena
velhice. E diante da constatação da passagem do tempo, Lina se posiciona com absoluta
lucidez. Ela não protela o envelhecer, nem chora diante do passado ou o idealiza, mas
constata-o tanto quanto o faz com relação ao presente. “Já fui mesmo rosa. Não pude ser mais
tempo. Ninguém pode... Estou na desflor. Mas estas mãos já foram muito beijadas. De seda...
Depois, fui vendo que o tempo mudava, não estive querendo ser como a coruja – de tardinha
não se vôa.” (ROSA, 1994, p. 756)
5.3.1 Discurso amoroso: de tardinha também se voa
Os personagens nesta estória potencializam o que são. Têm intensidade e coragem
para amar, se entregar, sonhar, partir, chegar e morrer. Exemplo máximo é a passagem
abaixo, em que Mariinha, uma das personagens a quem Lélio se liga, declara-se ao seo
Sencler no momento em que este está partindo com a sua mulher para a cidade. Nesta cena
todos os empregados da fazenda estão presentes para se despedirem do fazendeiro. Ainda
assim, numa explosão de emoção que ficou contida durante toda a narrativa, a jovem
Mariinha, ali , exposta a todos, quebrando toda a etiqueta da despedida, deixa-se transbordar
numa extremada expressão de força e, ao mesmo tempo, de fragilidade:
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Todos estavam ali , em frente da Casa, homens e mulheres. Dona Rute mesma foi dando amão, a um por um, e seo Sencler abraçava seus vaqueiros. Mas, então, a Mariinha quis ficarentre os derradeiros; e, na hora em que seo Sencler cumprimentou, ela gemeu, levantadasobre todas suas forças, aquele exclamar: - ‘Me leva junto!...’ Afe, que rompeu num pranto.Mas não abaixava a cabeça, ficava ali , inteirinha, enclavinhados os dedos, os outros nemqueriam olhar para ela, fazia mal-estar. (...)Aquela não temera a fraga das pirambeiras, nemos pastos e frias águas da mata-virgem. E Lélio, primeiro que qualquer outro, admirava queela fosse capaz de ser assim, queria mesmo que Mariinha fosse assim, continuasse.” (ROSA,1994, p. 799-800)
Em “A estória de Lélio e Lina” , uma aparente tranquili dade do enredo esconde uma
tensão que se confronta na busca amorosa, que, por sua vez, comporta a busca da identidade.É
como se, cada a um a seu estilo, todos estivessem em busca do amor. A estória começa e se
desenvolve com muitos personagens, mas depois apenas Lélio e Lina permanecem em cena,
ocupando, ambos, juntos e individualmente, uma posição central. Embora haja duas gerações,
não parecemos estar diante de extremos e nem há enfrentamentos ou conflitos de geração,
mas um encontro. Lina decifra os pensamentos que agitam Lélio e lhe responde sem que este
precise mesmo verbalizar as suas perguntas. Ela é a expressão da revitalização da linguagem,
como o propunha Guimarães Rosa. Suas palavras são eco de sua liberdade. Nesse sentido,
Bachelard nos lembra que “O bem-dizer é um elemento do bem-viver. A imagem poética é
uma emergência da linguagem, está sempre um pouco acima da linguagem significante (...) a
poesia põe a linguagem em estado de emergência. A vida se mostra nela por sua vivacidade.
Esses impulsos lingüísticos que saem da linha comum da linguagem pragmática são
miniaturas do impulso vital.” (BACHELARD, 2001, p. 11) E pergunta: “... Tornar
imprevisível a palavra não será uma aprendizagem de liberdade?” (Ibidem, p. 11) É esta
liberdade que Lina vai ensinar a Lélio, discípulo a ser iniciado no discurso da liberdade e do
amor.
A narrativa fala sobre a busca afetiva, iniciada com a viagem do jovem vaqueiro,
desencadeada pela urgente necessidade de fugir de um afeto proibido que tivera com uma
168
mulher casada. No início da viagem, Lélio tem o vislumbre desta busca ao se encontrar com a
Moça, cuja imagem ele levará consigo durante a sua travessia pelo sertão. Distanciado da
moça pelo nível social desta e também pela sua ainda imaturidade, Lélio viverá o efeito
catalisador desta primeira frustração e mergulhará em vários momentos de vazio na sua busca
amorosa. Veremos que, de fato, o que conta é o que estas buscas vão desencadear no
personagem no âmbito do auto-conhecimento. Neste ponto, vale notar que a narrativa se
desenvolve lentamente e num mesmo tom, só vindo a movimentar-se com o surgimento de
Lina. A chegada de Lélio no Pinhém o situa numa série de espaços comunicativos que terá
que habitar no intercâmbio diário com os vaqueiros. Neste momento, a narração ainda está
paralisada, porque o personagem está apenas sondando e reconhecendo sua nova realidade.
Ele ouve, vê, guarda e pouco fala. Muito sente, mas quase não verbaliza seus sentimentos; seu
discurso é articulado para dentro, no ritmo dos próprios acontecimentos da narrativa. Lélio
não se sente ainda identificado, mas sabe, pressente e deseja que algo novo aconteça em sua
vida. Sua viagem física simboliza a necessidade de mudança, que, por sua vez, é permeada
pela sua iniciação amorosa.
A leitura desta estória reafirma a nossa convicção de que os personagens de
Guimarães Rosa são uma gente que ama demais e cujas experiências, intenções e entregas são
intensas e não permitem meios-termos. O encontro de Lélio com Lina ilustra o sentido da
coragem que possuem os personagens em romperem com as cadeias de procedimentos-
padrões e iniciarem outros. A força e o despojamento de Lina muito nos impressionam e nos
tiram uma vez mais do lugar, porque na idade e no contexto em que ela vive, seria muito
difícil – dentro de uma perspectiva referencial - realizar o que ela se propõe viver com Lélio,
principalmente o que realiza ao final da estória, que é quando percebemos que não só o rapaz
desejava viajar, mas também ela sai do seu lugar em busca de outras experiências e de um
169
destino desconhecido. No entanto, a viagem que Lina planeja – e nas condições em que o faz
- não soa como algo insólito ou extravagante, porque desde o início ela demonstrou viver por
outros parâmetros e porque o traço bem marcado de sua personalidade nos mostrou uma
mulher de grande integridade física, espiritual, sentimental e, sobretudo, poética. Ela é a
encarnação das forças inovadoras e moventes de Eros que a tudo impregna de novo sopro e
êxtase de viver; ela é a expressão das forças catalizadoras do desejo como aquele aspecto
criativo e vivificante, capaz de transformar a visão sobre as coisas. Os caminhos que Lina
percorreu conduziram-na ao conhecimento do outro e de si mesma. Portanto, ela tem
autoridade, sobretudo, poética, para falar. Entre Lina e Lélio o amor que brota já brota forte,
porque ela era, de verdade, o que ele buscava.
5.3.2 O velho empresta ao jovem o seu olhar
Está claro que esta estória narra a busca do amor, assim como em “Cara-de-Bronze”
temos a viagem pela busca da Poesia. Em movimentos opostos e complementares essas duas
estórias, pertencentes ao mesmo livro, falam das viagens que os homens precisam empreender
para conquistarem o que só a eles pertence e o que é mérito seu, advindo de sua busca. Lélio é
jovem, busca o amor. Ele o faz com suas próprias pernas, porque tem a força de sua juventude
ao seu dispor. No entanto, isto não basta. Percebe-se que, não obstante sua capacidade de se
movimentar, faltam-lhe os arranjos necessários que lhe possibil item reconhecer e tocar o
âmago das situações com que vai se deparar. Lélio tem as vistas boas, mas ainda não sabe ver.
Precisa da experiência e da sabedoria da velha Lina, por meio de quem e através de cujos
olhos poderá decodificar os pequenos/grandes mistérios que oferecem as situações que se lhe
apresentam. É Lina quem traduzirá para ele o sentido arraigado e mais profundo das coisas.
Em movimento análogo e ao mesmo tempo oposto ao que ocorre em “Cara-de-Bronze”, é ela
170
quem vai emprestar os seus olhos a Lélio. Aqui, vale ressaltar, o velho ajuda o novo a
interpretar os mistérios. Somos levados, novamente, a refletir que não basta ver, mas que é
preciso ter discernimento. Lina certamente já percorreu o “quem” das coisas, que busca o
Velho de “Cara-de-Bronze”. Sua posição é a de quem conhece os segredos do amor, porque,
como ela mesma faz questão de reiterar, já foi muito amada e desejada. Ela percorreu estes
lugares da paixão e do enamoramento, por isso não se exalta ou em nada exagera diante dos
baques e indagações de Lélio. Ela intui, pressente o que o aborrece, decodifica seus sustos,
exaltações e medos. Desta forma, é ela quem vai sendo a mediadora dessa viagem amorosa.
Eros do Norte-de-Minas, velha sem idade, moça repleta de passado, ser imemorial como o são
tantos outros velhos de João Guimarães Rosa, tudo que toca é renovado, mas a maior
renovação que gera é quando toca as pessoas e as situações com as palavras. É o que expressa
o narrador: “O que as palavras de dona Rosalina abriam eram só uma claridade em seu
espírito – uma claridade forte, mas no vazio: coisa nenhuma para se avistar. Mas zonzava,
entanto, desconhecendo se parte desse alívio não manava da voz, do justo olhar, do feitiço de
pessoa de dona Rosalina – que ela semelhava pertencer a outra raça de gente, nela a praxe da
poeira não pegava. (ROSA, 1994, p. 779) Lina sabe falar. Possuidora de um discurso poético
e ao mesmo tempo enraizado nas fontes orais, ela detém o poder do discurso, do logos que
deixa de ser coisa, instrumento de comunicação, para se tornar a finalidade em si mesma,
discurso essencial porque é ele que prevê o que vai ser dito, e antecipa o que pode ser feito,
com outros modos de dizer. É um discurso poético porque instaura um outro nível de
comunicação, mais profícuo, ao mesmo tempo que estabiliza, na desestabil ização. Quando
Lina fala, sua fala parece vir de um lugar ainda não tocado pela fala comum e desavisada,
própria do discurso referencial. Seu discurso não brota só do pensamento, mas é como se o
que ela dissesse já estivesse a caminho, despontando sempre, a palavra em curso, dis-curso.
Conforme observa o narrador acerca da fala de Lina: “A vivo, ela só falava o que era preciso.
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Ou, então, o que era bonito e que para sempre valia, como o bom berro de um boi no sozinho
do campo, ou o xii lixe continuado na ponta branca das pedras.” (ROSA, 1994, p. 784)
Esse potencial discursivo que parece estar contido nas palavras de Lina nos leva a
pensar em uma intrínseca relação entre amor e fala. A protagonista mostra sua força quando
fala, embora, e talvez por isso mesmo, suas palavras venham de uma fonte de enorme e
genuína simplicidade, cravadas e colhidas na sua experiência de vida. Conforme afirma José
Américo Motta Pessanha em seu estudo sobre a paixão:
Logos e Eros são inseparáveis. Por isso, também, é que em todos os seus tipos e níveis oamor é falante, discursante. E justamente o que Platão faz em sua obra é apresentar ehierarquizar os diferentes discursos do amor. Procura, desse modo, traçar o perfil daqueleque é, ao mesmo tempo, o grande herói e o grande amante, o amante ideal: Sócrates, quedesenvolve através da fala o heróico tema da docência erótica e do erotismo docente elibertador. Assim, quando fala sobre o amor – no Lísis, no Banquete, no Fedro -, essediscurso tem o amor como objeto, mas subentende-o também no ato mesmo do falar: dofalar do perfeito amante. (PESSANHA, 1987, p. 86)
A presença de Lina na vida de Lélio é como a de um mestre diante de um discípulo.
Ela representa a porta por onde ele vai passar. Enquanto Lélio é portador de um discurso
silencioso e suas falas são mínimas, Lina é a que detém a vitalidade do discurso que seduz
para a transformação do interlocutor. Em Lélio, o processo comunicativo se dá mais por meio
da escuta, porque é Lina quem detém o conhecimento, ou seja, a sabedoria. Virtuose no falar,
ela conhece os caminhos da liberdade, ela é aquela que já percorreu muitas estradas e que, na
sua condição de liberdade, exerce enorme e libertador poder sobre Lélio. O discurso de Lina é
impulso e ascensão para o amor, pois o lugar da fala brota do mesmo lugar em que vive o seu
sentimento. Por isso, ela conduz a alma de Lélio do efêmero ao essencial e ao eterno. Por
meio do olhar e da fala de Lina, o jovem conquista o seu.
Lina é amada não só por Lélio, mas por todos que a cercam. E este amor que a cerca
vem justamente do fato de ela ser sábia. Sua sabedoria a torna útil e generosa e faz
172
convergirem todos para sua presença, mas sempre no sentido de libertá-los e não de mantê-
los presos a ela. Espírito livre, Rosalina refaz o seu destino ao fugir, sem que precisasse fazê-
lo. A fuga desnecessária é uma alegoria de sua total liberdade. Ela não precisa de
subterfúgios, mas pode inventá-los apenas para que sinta prazer em desfrutar um momento de
forçada dissimulação.
A “Estória de Lélio e Lina” aponta, entre outras coisas, para o binômio
liberdade/aprendizagem. Novamente somos tentados a comparar esta estória com “Cara-de-
Bronze”, porque é curioso e instigante pensar que nesta segunda narrativa, o velho, que
deveria ser o portador da sabedoria e do sentimento de liberdade, necessita de um jovem rapaz
para trazer-lhe o essencial, que nós entendemos como a Poesia, fonte de conhecimento,
prazer, e erotismo. Na segunda estória, também esses aspectos são trazidos à tona e
valorizados; também há uma viagem realizada pelo jovem, mas em direção à mulher, ao
amor, à velhice e ao conhecimento.
As situações que Lélio apresenta a ela são sempre novas e, ao mesmo tempo,
pressentidas e conhecidas pela experiência de Lina, que não se assusta diante das coisas, nem
as teme. Recebe-as em seu regaço e coloca-as em seu devido lugar. Lina é uma mulher muito
bem posicionada nesta estória. De fato, todas as jovens moças que aparecem são apenas
pretextos para a chegada de Lina, que congrega em seu ser e em seu discurso as
singularidades destas mulheres que vão aparecendo aqui e ali . Enquanto estas vão pipocando
ao longo da estória, Lina está no eixo da narrativa, e para ela convergem todas as forças
femininas, seja das prostitutas, seja das mocinhas.
Sobre o Velho de “Cara-de-Bronze” é valioso lembrar que este personagem, ao
contrário de Lina, deseja viajar. Ao passo que esta já encontrou o seu lugar, embora pobre e
simples, o Velho, instalado na sua grande e rica casa de fazenda, não se sente satisfeito ainda.
173
Ele deseja conhecer o “quem” das coisas, como já dissemos. Mas, em movimento inverso e
complementar ao que acontece na primeira estória, ele precisa do jovem para levá-lo
metaforicamente a esse território que ainda não foi percorrido ou tocado. Parece-nos bastante
orgânica esta trama tecida pelo autor, colocando o tema da viagem protagonizado por pares
que possuem a mesma estrutura VELHO/JOVEM, JOVEM/VELHA, o que nos leva a
considerar que a obra de Rosa prevê uma integridade de temas e de personagens, compondo
uma configuração de seres que fazem parte de uma mesma tribo de errantes, que estão sempre
a viajar e a buscar, guardando seus mapas do tesouro. Lina e o Velho de “Cara-de-Bronze”
são velhos, mas estão em processo de mudança, que, no caso do último, independe das
limitações físicas. Ele precisa fazer sua última viagem. Onde estará a Poesia que ele deseja
encontrar? Quanto a Lina, parte no meio da noite pervertendo as regras do bom viver. Parte
como uma fugitiva, por puro gosto de partir e de perverter. Por puro desejo de uma vez mais
celebrar a orgia da vida que só as bênçãos de Eros propiciam. Por isso, como afirma o
narrador a respeito de Lélio e Lina, no momento da partida: “E se olharam, era como se
estivessem se abraçando.” (ROSA, 1994, p. 802) Lina é uma mulher velha que já encontrou o
“quem” das coisas, e Lélio é um jovem rapaz, mas a despeito da diferença de idade, o
encontro entre eles é possível. Talvez justamente em função desta diferença é que o
encontro/diálogo se dê de forma tão fluida e harmonizada. O que Lina viu, Lélio desconhece.
A concretude do vivido marca a fala de Lina, que demonstra ver sempre onde o olhar de Lélio
ainda não alcançou. O que é fragilidade e debil idade em Lélio, o olhar de Lina transforma em
novos e imprevistos modos de ver. É o que nos lembra o narrador: “Dona Rosalina era mais
forte do que a tristeza. De lance, o olhou – ria um pecado de riso quente o esmalte de seus
velhos olhos de menina – como um lume d’água entre a folhagem, retombado e com reenvio
de claridade.” (ROSA, 1994, p.768)
174
Tudo o que dissemos sobre a obra de João Guimarães Rosa nos leva a pensar que um
fio une um texto ao outro. Nas estórias apreciadas, os velhos, as crianças e os jovens mantêm
estreito diálogo, interagindo por meio de um discurso que é sempre entrecruzamento de
olhares que se buscam e se complementam. A penetração de um olhar no outro reconstitui
quaisquer lacunas que possam ocorrer e possibilita uma articulação entre os pontos de vistas
ou distintos campos de visão. Por isso o olhar de Lina para Lélio é um olhar completo, que
une as partes soltas e reconstitui o que em Lélio é, ainda, fragmentação. “Mas ela o olhava de
um jeito que fazia bem: como se tivesse orgulho dele, acreditasse em seu valor de pessoa –
‘Tudo está certo, meu Mocinho. Tudo vale é no fim. Guarda tua coragem’ – foi o que disse.”
(Ibidem, p. 768)
A leitura desta estória nos remete às belíssimas imagens do poema de Fernando
Pessoa, “Eros e Psiquê” , alegoria da busca do amor e do auto-conhecimento. Também neste
poema-narrativo, os protagonistas, ou o protagonista, faz uma longa viagem à procura de
alguém. A revelação que tem, ao final do caminho, metaforiza a construção da alteridade, de
que temos falado ao longo deste trabalho, e sobre o que os textos de Guimarães Rosa tanto
nos fazem pensar. Por isso, o transcreveremos na íntegra, buscando encontrar neste poema os
ecos da narrativa poética de Guimarães Rosa. Veremos que a frase de Lina “O que existe na
gente, existe nos outros” (ROSA, 1994, p.790) , foi um dia evocada também por Fernando
Pessoa em “Eros e Psiquê” .
Eros e Psique
CONTA A LENDA que dormiaUma princesa encantadaA quem só despertariaUm Infante, que viriaDe além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,
175
Antes que, já libertado,Deixasse o caminho erradoPor o que à Princesa vem.
A Princesa Adormercida,Se espera, dormindo espera.Sonha em morte a sua vida,E orna-lhe a fronte esquecida,Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,Sem saber que intuito tem,Rompe o caminho fadado.Ele dela é ignorado.Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –Ela dormindo encantada,Ele buscando-a sem tinoPelo processo divinoQue faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuroTudo pela estrada fora,E falso, ele vem seguro,E, vencendo estrada e muro,Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,À cabeça, em maresia,Ergue a mão, e encontra hera,E vê que ele mesmo eraA princesa que dormia.
(PESSOA, 1986, p. 115)
5.4 UM OLHAR PARA O MISTÉRIO: "NENHUM, NENHUMA"
Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não. ("Nenhum, nenhuma", p. 423)
Este conto fala da primeira experiência da solidão e do sentimento da solidão. Nesta
narrativa aparece novamente um menino que, inicialmente assim tratado, passa a ser chamado
de o Menino, como acontece em "As margens da alegria" e em "Os cimos". Um dos
elementos que nos chama a atenção é o espaço físico em que os personagens convivem: "A
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mansão, estranha, fugindo, atrás de serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio,
que proíbe o imaginar." (ROSA, 1994, p. 423)
Os detalhes da estória são mais sugeridos do que dados, como uma suposição até
mesmo com relação ao lugar: "Ou talvez não tenha sido numa fazenda, bem no indescoberto
rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se, nunca mais." (ROSA, 1994, p. 423) É em
torno de sugestões que a estória vai sendo contada e tecida, e as certezas são pouquíssimas,
nessa ambientação física e psicológica, narrada com tantas frases interrogativas, como
revelam os trechos: "... que a data era a de 1914?" (ROSA, 1994, p. 423) "Alguém mais,
pois, ali , ali entrara?" (idem) "Infância é coisa, coisa?" (ROSA, 1994, p. 424) "A Moça e o
Moço vieram buscá-lo?" (ROSA, 1994, p. 425) Tantos questionamentos feitos pelo narrador
são, sem dúvida, o reflexo de uma abordagem que desloca para um lugar desconhecido as
certezas do próprio narrador e do leitor. Subjaz a esta abordagem aquela forma de ver o
homem e a linguagem que o constitui, ou seja, o mundo não é lugar das certezas, se não da
certeza de que deve ser questionado. Por isso estes personagens e a forma como são narrados
às vezes nos parecem perturbadores, pois de um modo geral, fomos acostumados com um
narrador que apresenta as verdades, dentro de uma estrutura narrativa mais lógica e
convencional. Mas nunca é demais lembrar que Guimarães Rosa só pode ser lido com um
novo olhar, de quem saiba mudar o foco constantemente, que aceite o incômodo das
incertezas que o seu texto propõe. Grande sertão: veredas é uma narrativa exemplar, no que
concerne à busca essencial e ao questionamento das esferas de que se nutrem as certezas. A
apreensão do passado também não parece um processo fácil, é o que Riobaldo conclui o
tempo todo. Do mesmo modo, em “Nenhum, nenhuma”, tirar a neblina que está por trás da
paisagem do passado não é tarefa simples, neste caso nem para quem recorda, nem para o
177
leitor que ouve/lê as lembranças do protagonista. Com relação a Grande sertão: veredas,
Garbuglio enfatiza que:
A manutenção do interlocutor na penumbra nutre e amplia as esferas da interrogação,fazendo o narrador voltar-se sobre o próprio texto, numa atitude crítica que insiste nadificuldade de contar (...) para enfiar a idéia, isto, para fisgar a essência e não a aparência domundo, numa palavra totalizadora. Ora, sendo o mundo em sua essência, a palavra deGuimarães Rosa alcança o que lhe dá essência, porque o mundo é a palavra, e no caso umapalavra polifacetada, como a realidade que ela conseguiu criar. (GARBUGLIO, 1972, p.46)
Nesse sentido, sempre é válido e oportuno pensarmos em como o tema do olhar está
ligado a um novo modo de engajamento, que é o questionar. Assim, quando pensamos em
modos de olhar, em pontos de vista, e quando vemos como estes pontos de vista se
apresentam tão desenraigados do modelo tradicional em se tratando dos personagens criados
por Rosa, não nos resta dúvida da grande alegoria que é toda a sua obra, considerada também
por este novo prisma que temos tentado revelar. Conforme Henriqueta Lisboa, os primitivos
são os personagens diletos de Guimarães Rosa, " os quais devem o que pensam ao que vêem,
tocam e degustam..." (LISBOA, 1966, p. 20) Deste modo, a leitura de Guimarães Rosa
constitui a oportunidade de visualizarmos um complexo narrativo em que se adecúam
perfeitamente a forma e o conteúdo, ou seja, nos caminhos sempre imprevisíveis da narração
rosiana aparecem os personagens também com procedimentos imprevisíveis, como se
houvessem existido independentemente do seu autor, e tivessem sido captados, agarrados por
ele. Esses seres insólitos compõem o cenário de uma palavra também insólita.
"Nenhum, nenhuma" é uma estória muito especial para nós, porque é, outra vez,
como aconteceu em "A Benfazeja", um convite a olhar, ou melhor ainda, a ir construindo o
olhar junto com as dúvidas do narrador. É um conto em que essa busca do primitivo aparece
especial e delicadamente ilustrada pela presença da velhinha. " ... uma velha, uma velhinha –
de história, de estória- velhíssima, a inacreditável." (ROSA, 1994, p. 424) O deslocamento
temporal que se dá entre essa velha e o menino não constitui um impedimento para que haja
178
uma aproximação entre eles. Ao contrário, ela concentra a força do passado, a Antigüidade, o
que há de mais anterior no homem, e ele, o Menino é o que ainda é pura pulsação, o porvir.
Pela descrição dela, parecemos chegar a um lugar desconhecido, onde nem mesmo o narrador
conseguiu chegar: "Não sabiam mais quem ela era, tresbisavó de quem, nem de que idade,
incomputada, incalculável, vinda através de gerações, sem ninguém, só ainda da mesma nossa
espécie e figura. Caso imemorial, apenas com a incerta noção de que fosse parenta deles. Ela
não poderia mais ser comparada."(ROSA, 1994, p. 424)
Como em "Fita-verde-no-cabelo" e em "Arroio-das-antas", contos que discutiremos
mais adiante, em “Nenhum, nenhuma” a criança se encontra com o velho. Só que no caso
desta última, a velhice foi inicialmente escondida do menino. Por que a velha estava guardada
dentro de um quarto? Mas, por fim, depois de muita indagação, como mostra o narrador,
"Deixaram-no ver." (ROSA, 1994, p. 424) Aliás, esta narrativa se constrói por meio de jogos
misteriosos, em que a suspeita, a reticência e a especulação se sobrepõem às revelações . O
casarão se impõe como uma paisagem a ser descoberta, em seus cômodos fechados,
inapreensíveis. A própria memória do protagonista é um desafio que o engana, uma neblina
que o impede de se certificar de muitas coisas. Por isso ele não pára de perguntar, como a se
certificar de suas próprias lembranças. Terá mesmo ocorrido tudo que ele vai pontuando? Para
onde ele olha, é o lugar exato onde suas reminiscências habitam? Terá sido ele enganado, em
algum momento, pela fonte pungente de sua memória? Afinal, qual é o olhar com o qual
devemos mirar o passado?
A partir do momento em que o Menino vê a velha Nhenha, dispõe-se para o leitor
uma comparação entre a velhice e a infância, principalmente se tomarmos a velhice como o
foco das atenções. Ambos estão solitários. À medida que a velhinha vai sendo descrita,
percebemos o crescimento e o amadurecimento do Menino. Percebemos também que nesta
179
velha "velhíssima, antepassada" (ROSA, 1994, p. 426), há a confluência de muitas infâncias
e juventudes e que o Menino, em um desses momentos singulares da narrativa, é apresentado
como alguém que teve a intuição ou a percepção da unidade da qual faz parte: "Atordoado, o
Menino, tornado quase incônscio, como se não fosse ninguém, ou se todos uma pessoa só,
uma só vida fossem: ele, a Moça, o Moço, o Homem velho e a Nhenha, velhinha – em quem
trouxe os olhos." (ROSA, 1995, p. 427)
É uma história que fala do crescimento, conquistado no espaço sombrio de um
casarão, onde o desvelamento e o mistério da velhice se dão ao mesmo tempo em que a
entrada do Menino em um outro universo é sugerida. É para o amor e para a velhice que ele
olha. O tempo que passa fora de casa e distante dos pais é o tempo em que ele apura o olhar.
Quando retorna e reencontra os pais, o impacto é grande. Ele volta com nova percepção das
coisas, com outro olhar. Por isso, experimenta um sentimento angustiante de indignação
diante dos pais. É a indignação de quem conquista um novo olhar e percebe que os outros
nem se deram conta disso. Já em casa e ao constatar que os pais nada perceberam, a narrativa
passa para a primeira pessoa do singular: "E eu precisei de fazer alguma coisa, de mim,
chorei e gritei, a eles dois: - "Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se
esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!" (ROSA, 1994, p. 428)
Aqui fica claro o ponto de vista da criança, quando diante do adulto. Trata-se de
uma fala que sintetiza a maior parte dos pressupostos que temos defendido. Para Henriqueta
Lisboa, "o conto-poema" 'Nenhum, nenhuma', construído de forma revolucionária, tramado de
névoa com uma ou outra lucilação, termina de modo convenientemente realista, em corte
insípido, como se fosse o término da própria infância subitamente arrancada ao seu reino."
(LISBOA, 1966, p. 24)
180
Em "Nenhum, nenhuma" temos, antes de tudo, uma atmosfera, uma insinuação ou
sugestão dos fatos, mais do que a presença destes. Na verdade, o que aí vemos é uma
possibilidade de encontro entre os dois pontos-limites da vida: a infância e a velhice.
Certamente que uma apreciação deste conto nos propiciará uma compreensão maior dos
aspectos infantis que sobrevivem na velhice e vice-versa. O protagonista é, como a maioria
das crianças de Guimarães Rosa, um introspectivo, mas que se distingue das outras por um
dado bastante material que é o espaço físico. Toda a cena se passa dentro de um casarão, o
que dá ao protagonista ainda maiores chances de mergulhar dentro de si mesmo e tentar
desvendar os mistérios do amor (que acaba de descobrir) e da morte. É importante
observarmos o olhar introspectivo deste menino, e o impacto deste olhar quando ele retorna
à casa paterna, porque só aí percebemos o quanto ele aprendeu e como o seu modo de olhar se
distinguiu do dos pais, o que, não obstante o deixe frustrado e infeliz, é sinal de consciência.
Esta narrativa é portadora de uma memória. E, como tal, constrói-se de forma
fragmentada, sincopada, com idas e vindas que, longe de abrirem a narração, tornam-na
hermética, justamente porque esta se recompõe à medida que as lembranças vão se
recompondo. A linguagem articula-se perfeitamente com as lacunas da memória, por isso sua
trajetória é feita em zigue-zagues, em tons de menor claridade, porque agora o território a ser
vasculhado e remexido é o do passado; daí a dificuldade para fazer cindir o passado e o
presente, nessas teias que se confundem tanto para o protagonista.
Em Grande sertão: veredas, há um ensinamento que pode nos ajudar a compreender
a misteriosa estória de “Nenhum, nenhuma”. Ali, o protagonista também se dedica a rever o
passado:
O que vale são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contarseguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento quereal eu tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
181
diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor ébondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do queoutras, de recente data. (ROSA, 1994, p. 68)
5.4.1 Um olhar para a experiência
No conto em relevo, o aprendizado do protagonista é o da recordação ou da tentativa
de situar-se na neblina do passado, separando as reminiscências, apalpando-as com os olhos.
Estamos diante de uma estória que permanece como um mistério tanto para o menino quanto
para o leitor. A visão que o protagonista tem é a de quem quer compreender o passado. Não é
uma narrativa de fácil compreensão e interpretação, porque há um jogo de vozes que se
emaranham. O Menino se narra ou há um narrador que o narra? A perspectiva de alguém que
vê, ama a lembrança e dialoga com ela é, neste conto, muito bem mostrada. O percurso do
Menino é refeito à medida que ele mergulha nas suas lembranças. A atmosfera de mistério,
própria de quem se propõe rever suas lembranças e entrar em contato com elas permeia as
paisagens externa e interna. Como leitores dessa estória, a tarefa exigida para a decifração do
enigma, é, uma vez mais, um depuramento também do olhar. Ao passo que o texto se
desenrola, percebemos que não é possível uma simples leitura de enredo, mas que
necessitamos de um cuidadoso trabalho de descortinar pouco a pouco os véus que encobrem o
cenário que é o casarão onde se desenrola a estória. E nesse sentido, o enredo é tão misterioso
como o casarão. Nada é dado como uma realidade concreta; o que há são insinuações. Por
isto, o nosso olhar precisa aprender a desvincular-se dos dados prontos, da referencialidade
dos fatos. Não só o protagonista exercita o olhar, em busca de suas reminiscências; também
nós, leitores, exercitaremos de um modo diferente a leitura, que se constitui, neste caso, num
ato de revelação do passado, processado num jogo entre o presente e o vivido, entre o certo e
o duvidoso, entre o dado e o evocado, entre o velado e o desvelado. Isto requer uma visão que
vá aos recônditos do texto, porque esta narrativa brota dos recônditos. O texto vai sendo
182
construído como decorrência do olhar do menino ao captar as suas lembranças, que não são
mostradas com exatidão. Portanto, também o leitor precisa ir construindo as lembranças do
protagonista, ao mesmo tempo em que elas são narradas e insinuadas.
Trata-se de uma estória das lembranças, um acontecer que se dá por meio de um
rever. Estamos diante de um personagem cuja voz, diluída à do narrador, retoma ou tenta
retomar as vivências do passado. O cenário é um casarão afastado da cidade para onde o
menino é levado, não se sabe bem porque e para quê. Nesta estória o leitor dificilmente
consegue ver com objetividade o que se passa, ou o que de fato se passou, pois o enredo é
traçado mais na penumbra do que na claridade. Ver é, neste caso, um exercício de
descortinamento dos fragmentos dispersos aqui e ali. Se há revelações, elas são dispersas e até
confusas. Daí a importância de um leitor perspicaz e sensível, que mergulhe na narração mas
no momento mesmo em que ela é construída, porque nesta estória tudo é evocação, sugestão,
atmosfera. Distante das claridades dos campos e dos espaços iluminados em que se
movimentam as crianças das outras estórias, não podemos perder de vista o que esta estória
nos conta, que é o próprio esforço de não perder os fios da memória, de criar uma trama em
que estes fios se reconcil iem para o menino como algo que ele possa recontar. O esforço do
personagem é concil iar os dois olhares: um em direção ao passado, e o outro em direção ao
próprio ato de narrar, que é feito de forma truncada, uma vez que no momento da narração
ainda não estão dissolvidas totalmente as teias das lembranças, que se confundem para o
protagonista. Como narrar se o narrado ainda é duvidoso? "Infância é coisa, coisa?" (ROSA,
1994, p. 424) Por isso tantas perguntas na construção da narrativa.
Neste conto misterioso, o Menino vai penetrar em um universo de imagens que
povoam a sua consciência. Se há um olhar que busca absorver as experiências e o significado
destas, este é, parece-nos, um olhar que faz uma passagem pela memória. A indagação deste
183
Menino é de outro teor e provém de outro canal. Ele indaga muito, porque neste caso muitas
situações foram recolhidas do próprio passado. E assim a visão tem um outro tipo de
qualidade. Ver torna-se um verdadeiro exercício de distinguir uma lembrança da outra, um
movimento do outro. Talvez possamos dizer que o olhar deste protagonista está mergulhado
na indeterminação. O Menino se movimenta numa zona de indeterminações e, com ele, os
leitores e o narrador. O discurso deste último, cuja voz – como dissemos - dilui-se à do
protagonista, é um discurso próprio de quem penetra nos meandros do tempo que passou. Há
uma dinâmica entre a ação, o que se viveu, e a percepção do personagem. Antes desta
narração, aconteceram outras experiências que, graças ao olhar contemplativo acionado pelos
trabalhos da memória, podem vir à tona, porque as percepções do Menino estão impregnadas
de lembranças. Conforme afirma Ecléa Bosi a respeito da memória:
...A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo,interfere no processo "atual" das representações. Pela memória, o passado não só vem à tonadas águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,"desloca" estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece comoforça subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.(BOSI, 1994, p.46-47)
Esta estória, mais que um relato de reminiscências, foca-se no ponto de vista de
quem teve a oportunidade de se deslocar de um espaço conhecido ( a casa paterna) para uma
casa em que o desconhecido, o sonho e o devaneio se inserem nas próprias experiências. Ao
retornar à casa dos pais, estes são apontados, de forma radical, como seres que ficaram
cristalizados, parados no tempo. Ao vê-los, tem-se então a tensão entre os dois olhares: o
olhar do menino, povoado de lembranças inquietantes, e o outro olhar que surge quando o
menino - em função mesmo de suas experiências e lembranças - tem outra percepção dos
pais. Neste momento final, a narração em primeira pessoa, dilui-se à própria fala do menino,
num desabafo que vem coroar essa estória com o impacto revelado nesta cena: “E eu precisei
de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: - ‘Vocês não sabem de nada, de
184
nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!...’ (ROSA, 1994,
p. 428)
Esta narrativa nos mostra também que, para educarmos o nosso olhar é necessário o
distanciamento das coisas, lugares e pessoas conhecidas. Envolvidos que estamos com a nossa
própria realidade, nem sempre a vemos de outros ângulos. Quando o olhar se torna um hábito,
não é possível ao observador deslocar-se de sua posição. Saindo de casa, o Menino tem a
chance também de penetrar em um outro campo de observações e pode ativar algumas lentes
ainda não usadas. No casarão, o mundo que o aguarda é o do mistério, da contemplação e do
devaneio, alimentos tão necessários para a sua psique. O seu cotidiano é redimensionado, e
ele precisa olhar para o que está escuso. Há muitos quartos, portas, pessoas antiqüíssimas. E o
Menino vai abrir novas portas, ver o velho e o novo. O seu olhar é, sobretudo, evocativo, e as
suas atitudes beiram a ação e a contemplação. A narrativa como que se indefine entre estas
duas zonas, a da ação e a da contemplação, e não localizamos com objetividade o lugar a
partir do qual se situa o presente e onde se situa o passado, nem tampouco o que é lembrança
ou vivência. Mais uma vez o texto rosiano vem-nos tirar do lugar e nos convidar a um
desdobramento dos pontos de vistas. Nesta estória precisamos de uma visão que seja, ao
mesmo tempo que concentrada e profunda, difusa. Porque simplesmente não há definições. O
lugar ocupado pelo protagonista é o da sua própria sombra, e o do leitor, é o da incerteza.
5.4.2 Um olhar para o passado
Em Grande sertão: veredas, Riobaldo diz que : "Contar é muito, muito dificultoso.
Não pelos anos que se já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de
fazer balancê, de se remexerem dos lugares." (ROSA, 1994, p. 121) Para onde olhamos: para
o passado? Para o presente? De quem é este olhar? De quem volta para lembrar, ou o de quem
185
narra para não esquecer? Esta educação do olhar inserida nas lembranças faz-nos pensar que
olhar para trás é um jeito específico de ver, e que, aliadas a este gesto, há muitas implicações.
Este constitui um aprendizado de separar, de selecionar, e, ao mesmo tempo, de manter
sempre coesas as partes de uma estória de vida. Além disso, aquele que relembra possui
autoridade para contar, pois o passado é, mais que tudo, uma obra de sua autoria, e, portanto,
ao narrá-lo, as franjas da subjetividade emolduram os discursos que podem se tornar
verdadeiros processos de reinvenção e de ficção.
Neste conto a velhice, representada pela figura ancestral da velha Nhenha, não é
olhada como algo obsoleto, mas com uma qualidade própria do que é primordial. Estamos
diante de uma estória em que o passado e a velhice não são suprimidos em função do novo,
mas o que se busca é a unidade de ambos, possibili tada com a chegada do Menino. Temos
um encontro de várias subjetividades. O olhar do narrador, que também parece ser o do
personagem, não se dirige ao passado de uma forma costumeira, habitual, ou seja, para
simplesmente recuperar as suas lembranças, conforme conclui o protagonista: “Então, o fato
se dissolve. As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um
grande sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde.” (ROSA, 1994, p. 427) O que nos
parece é que o passado permaneceu no narrador-personagem como um estado de espírito. O
olhar do Menino se volta para um tempo indefinido, e ele tateia enquanto vive esta estória:
tateia os móveis, as texturas dos objetos, as impressões sobre as coisas. O seu olhar é também
o olhar de quem se dirige ao passado, como se penetrasse numa bruma, e nela fosse vasculhar
os recônditos de alguma experiência.
Em “Nenhum, nenhuma”, como bem afirma o narrador-personagem, há menção "à
maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-
nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. " (ROSA, 1994, p.172) A
186
passagem a seguir revela de que forma a narrativa se constrói em uma espécie de bruma, na
qual se diluem a realidade e o sonho, restaurados, talvez quem sabe, pelos trabalhos de
memória do protagonista:
Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para algo remembrar, da chuva que caía, da plantaque crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais, os baús, arcas, canastras, natenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos, como se um pedaço de rendaantiga, que se desfaz ao se desdobrar, os cheiros nunca mais respirados, suspensasflorestas, o porta-retratos de cristal, floresta e olhos, ilhas que se brancas, as vozes daspessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazer a foco as altas camas de torneado, um catrecom cabeceira dourada; talvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram: ocomprido espeto de ferro, na mão da preta, o batedor de chocolate, de jacarandá, naprateleira com alguidares, pichorras, canecos de estanho. (ROSA, 1994, p. 425).19
Trata-se de uma estória em que a certeza é envolvida ou obscurecida por uma
camada de nebulosidade que atravanca o processo de conhecimento objetivo e de
desvendamento das coisas e dos mistérios. A própria linguagem se constrói de forma
misteriosa e hermética, evocando em suas teias de imagens a realidade, que é puro mistério, e
na qual borbulha a visão numinosa das coisas. Ao contrário dos outros contos em que jorra a
luz, aqui esta é ocultada, para manifestar-se no próprio processo de procura da verdade e da
unidade. A narração é cerceada pelas reminiscências, sempre fugidias. Como pegá-las? Com
que olhos é possível revê-las? Estamos também diante de um menino emotivo e introspectivo
que quer descobrir e indagar. Afinal, como traduz a narração: “As nuvens são para não serem
vistas. Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do estreito caminhozinho por onde a
gente tem de ir – beirando entre a paz e a angústia.” ( ROSA, 1994, p. 424)
O tema do olhar permeia toda a narrativa de Rosa, não se limitando a uma ou outra
apenas. Trata-se de uma espécie de princípio sustentador da obra do autor, o que nos leva a
pensar que olhar neste caso é, sobretudo, um modo de ver, de recuperar alguma coisa
19 (As passagens em itálico são originais do texto. Vale observar que neste conto são intercaladas muitas
frases em itáli co, o que revela as intenções do autor em destacar o que é próprio da narração e o que se confunde
187
perdida, processo de educação, de indagação e de busca de respostas. Se assim o
considerarmos, o olhar, na narrativa em questão, é um elemento presente nas camadas mais
obscuras da narrativa, e pode ser considerado como um modo de narrar, não apenas para
trazer à luz os fatos do passado, mas para redimensionar o que foi, o que é, e o que poderá ser,
a partir de um possível descortinamento dos véus tênues que encobrem este misterioso
terrritório da memória.
5.5 AS CINZAS COMO METÁFORA: "ARROIO-DAS-ANTAS”
Seus olhos punham palavras e frases. ("Arroio-das-antas", p. 531)
Ainda na parte que aborda a presença de velhos e jovens, faremos uma breve
apreciação de “Arroio-das-antas, breve narrativa do livro de estórias curtas, intitulado
Tutaméia. Esta estória é ponto de partida para as reflexões sobre um tema bastante notório na
obra do autor, que é a passagem e os ritos de passagem pelos quais passa toda criança até se
tornar madura.
“Arroio-das-antas” conta a estória de Drizilda, uma menina que terá que passar por
situações muito adversas, e nesse processo conviverá com personagens anciãs. Cercada por
velhas, ela cria um laço mais profundo com Vó Edmunda, que representa o seu elo com o
mundo da afetividade perdida. Menina de apenas quinze anos, ela já fora iniciada nos rituais
sagrados do infortúnio. Casada e viúva, nefandada, sem fadas. Mas sua viagem não pára, e ao
final ela deixa literalmente o universo do velho, para mergulhar no novo caminho. É
interessante observar nesta estória o diálogo da velhice com a mocidade. Assim como nesta,
em várias narrativas do autor personagens mais velhas movimentam o destino de outras mais
jovens, renovando a vida de todo o lugar. Como a protagonista de "Fita-verde-no-cabelo",
nesta como se estivesse anelado/diluído em uma das teias da memória).
188
Drizilda perde a avó adotiva, numa cidade em que a velhice e a casmurrice se impõem. E
novamente surge neste conto o marcador de lugar: de lá. "Trouxe-se lá" (ROSA, 1994, p.
531). O que sugere a ruptura de vivências em um universo e a brusca inserção em outro.
Esta estória mostra um processo de iniciação, ou seja, um processo de individuação,
se nos pautarmos no fato de que a maturação do indivíduo se dá através dos ciclos
biográficos, do desenrolar do fio da vida, cujas circunstâncias externas em confronto com as
internas vão delineando a forma como o indivíduo elabora, em si, a capacitação de tomar
"posse" de si mesmo.
Nesta estória, que se parece muitíssimo com um conto de fadas, encontramos
Drizilda, "de nem quinze anos" (ROSA, 1994, p. 531) O destino a fez, forçosamente, sofrida
em sua pureza. No entanto, a estória também nos conta que ela transforma essa condição, pois
acredita na mudança. O conto nos mostra que o eu, a individualidade, se coloca novo, perante
a vida, ou, quem sabe seria melhor dizer, na vida.
No primeiro parágrafo, o narrador apresenta-nos um lugar, AONDE, (ROSA, 1994,
p. 531) que pode ser qualquer lugar, todo lugar, ou lugar nenhum, onde nada mais poderia
acontecer, lugar árido: "O despovoado, o povoadozinho palustre em feio e mau sertão... onde
poderia haver assombros?" (ROSA, 1994, p. 531)
As velhinhas, personificações do universo psíquico de Drizilda, têm um papel
importante neste texto e deverão ser apreciadas como nas estórias "Nenhum, nenhuma" e
"Fita-verde-no-cabelo". Exemplo disso é que, somente após a bênção da vó Edmunda,
Drizilda "depôs-se, sacudidos os cabelos (...) Fez tenção: de trabalhar sobre só, ativa
inertemente; sarado o dó de lembranças, afundando-se os dias, fora já de sobressaltos"
(ROSA, 1994, p. 532). É nesse momento que ela "pega a força" em suas próprias mãos. Mais
à frente o narrador usa o termo borralheira, e nesse intertexto com o tradicional conto de
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fadas, "A gata borralheira", esta imagem nos faz pensar que "borralheirar" (ROSA, 1994, p.
532) é viver com as cinzas, estar com as cinzas, mexer nas cinzas.
A presença das velhas revela a superação dos estados limítrofes de nossas
experiências, pois unindo-se à juventude de Drizilda, elas elaboram, juntamente com a
menina, o futuro, e ambas geram metamorfoses.
Pela profundidade dos temas abordados neste conto, é possível fazer uma articulação
entre os olhares construídos nesta estória - o olhar do velho e o do novo - sem perdermos de
vista o diálogo entre esta última estória, "Fita-verde-no-cabelo" e "Nenhum, nenhuma".
Certamente que nos inspiram, sobretudo, a possibilidade de diálogo entre os velhos e as
crianças e a força e delicadeza desse diálogo. Mas, na mesma direção desta leitura, irrompe
outra, que não perde de vista também o fato de que este alinhave tão estreito entre os velhos e
as crianças constitui o reflexo de uma literatura que, sem negar a tradição, redimensiona-a,
dentro de um projeto literário lúcido e coerente.
Embora o conto mostre experiências da vida tão trágica da menina, a força do destino
possibilita transformações. No fundo deste enredo subjaz a idéia de que a menina pode contar
com as suas próprias forças, catalisadas também pela presença das velhas que a cercam. A
interação favorece o movimento nesta estória, e o que parecia estar absolutamente estagnado,
ou seja, o destino de Drizilda (traçado) e a velhice das mulheres (irreversível) não era o que
parecia ser. Mas a dinâmica que ocorre só foi possível mediante as trocas interpressoais, por
meio das quais a potência da vida ganha e reassume o seu lugar. A estória nos mostra o
elevado trabalho que se dá, em cada indivíduo, e o seu poder de transformação. Mostra
também, de modo análogo ao que ocorre em “Fita-verde-no-cabelo” , a travessia que um
jovem adolescente precisa fazer, de um lugar ao outro, seja este lugar físico ou espiritual. O
tema da passagem é outra vez abordado e valorizado, com novas pinceladas do autor que
190
mostrou saber captar os intervalos existentes entre o tempo da infância e o tempo de deixá-la
para trás. Drizilda já passou por um rito de passagem, já não é mais uma menina quando
chega a Arroio-da-Antas. No entanto, embora o sofrimento a tenha feito juntar forças para
recomeçar, este recomeço se dá paradoxalmente num lugar em que tudo parece ter chegado
ao fim: é bom nos lembrarmos que a aldeia é habitada por velhos. O que esta estória nos
ensina sobre a velhice e sobre a infância? Que lugar é este escolhido pelo autor para a menina
fazer seu rito de passagem, fechar as feridas e recomeçar? Esta indagação talvez encontre sua
resposta no fato de que a velhice na obra de Rosa é bastante valorizada. Os velhos
representam a sabedoria concentrada. E se observarmos o conjunto de sua obra veremos que
sempre há um homem ou uma mulher velha desfiando os fios dos enredos mais complicados.
No conto em questão a velhice compõe o destino e se interpõe no destino da menina, não
como fator de interdição, mas de libertação do próprio destino que parecia estar traçado para a
protagonista. Novamente estamos diante de uma estória que fala da travessia. Em “Arroio-
das - antas” as velhas atravessam o portal da vida, e Drizilda acaba de rompê-lo.
5.6 A ESTÓRIA REVISTA: "FITA-VERDE-NO-CABELO”
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso.("Fita-verde-no-cabelo", p. 981)
"Fita-verde-no-cabelo", do livro póstumo do autor, Ave, palavra, é uma estória
bastante inspiradora no que diz respeito aos vínculos entre crianças e velhos, bem como aos
ritos de passagem pelos quais ambos precisam passar. Nesta narrativa a protagonista, que leva
o mesmo nome da estória, vivencia a perda nos planos material e espiritual, representada pela
fita que amarrava o seu cabelo e pela morte da avó, acontecimento que lhe traz, pela
primeira vez, o sentimento do medo. Perdendo a avó, ela ganha juízo e se vê diante do
desconhecido e do até então ignorado. Ela é a menina que se inicia na vida adulta, perdendo
191
sua fita e escolhendo, sozinha, o caminho a ser trilhado. Apesar de sua tenra idade, ela
demonstra uma autonomia que lhe garante uma viagem de transformações, o que se pode
dizer a respeito de todas as crianças das narrativas do autor.
Consideramos esta narrativa uma releitura do tradicional conto infantil Chapeuzinho
Vermelho, cuja versão mais popular é a dos Irmãos Grimm, mas que possui elementos que
remontam a tempos bem mais antigos à época da publicação dos contos de fadas de Perrault,
em 1697. Temos notícia de que esta estória está relacionada ao mito de Cronos, em que ele
engole os filhos que, de modo miraculoso, conseguem sair de seu estômago, e no lugar deles
coloca pedras pesadas.
Na releitura de Guimarães Rosa, o eixo da estória permanece, e a menina prefere
mudar o seu caminho e seguir em direção à outra aldeia. Ao fazê-lo, contudo, o seu olhar
toma outra direção. Ela torna-se transparente e penetrante, hábil em captar as cenas da
natureza que a cerca. Mudando de caminho, o olhar da curiosidade que quer "comer" tudo que
lhe é externo, abre-se com a força da própria natureza: "Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a
linda, tudo era uma vez." (ROSA, 1994, p. 981) Aqui temos um olhar que degusta as belezas
do caminho, e, na contramão deste, um olhar que vê a morte de perto como realidade. Ao
final, sem a presença da avó e com a certeza da presença do lobo, precisará fazer a viagem de
volta. O olhar que a menina terá no caminho de volta fica em aberto para o leitor, mas o que
esperamos é que o olhar de encantamento com que ela inicialmente partiu não se aniquile em
função da revelação da morte, momento em que "toma juízo", como diz o narrador. (ROSA,
1994, p. 982)
“Fita-verde-no-cabelo” enreda uma vez mais o tema da viagem, da travessia. É uma
estória que fala sobre o rito de passagem pelo qual passa todo menino ou menina. Este rito
introduzirá a menina no mundo desconhecido e inesperado da morte, representada, neste
192
conto, pelo fenecimento da avó. O conto dilui o tema da perda e da inevitabil idade da morte
na descrição lírica da paisagem absorvida pelo olhar voraz da menina, que inaugura a sua
liberdade no gesto de escolher mudar de caminho que, como descreve o narrador, é mais
difícil que o costumeiro. A estória é curta, e, embora a sua leitura possa ser feita de um
fôlego só, oferece criativas interpretações, porque trata-se de uma narrativa perfilada de
detalhes, de pequenas grandes coisas que a engrandecem. Neste pequeno texto, há dois
momentos bem distintos que geram desdobramentos maiores, se considerarmos as pistas que
vão sendo deixadas nas trilhas da estória.
No primeiro momento, a apresentação da aldeia nos dá um retrato dos moradores do
lugar, por meio de verbos no pretérito imperfeito, sugerindo a continuidade e duração do
tempo que faz as pessoas envelhecerem: “HAVIA UMA ALDEIA em algum lugar, nem
maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e
meninos e meninas que cresciam”. (ROSA, 1994, p. 980) O inesperado processo de derivação
a que é submetido o substantivo velho, ocorre pela anexação da desinência modo-temporal,
vam, ao substantivo velho, gerando um verbo desconhecido na língua portuguesa que é o
verbo velhar. Envelhecer, a partir deste neologismo ganha duplo sentido: é uma ação, e, ao
mesmo tempo um estado, ou seja, diferentemente do sentido corriqueiro que tem envelhecer,
nesta narrativa os velhos velhavam. Embora seja pouco extenso este conto, há que se observar
a riqueza do vocabulário empregado e a impressionante renovação que ocorre outra vez em
termos de colocação dos vocábulos e, sobretudo, da criação de novas palavras, algumas
recriadas por inusitados processos de prefixação e sufixação, dos quais são exemplos:
“ inalcançar” , “plebeinhas” , “encurtoso” . (ROSA, 1994, p. 980)
A estrutura do conto é simples e acompanha, numa relação intertextual com o
clássico conto de Perrault, a estrutura fechada e circular dos contos de fadas tradicionais. O
193
que há dentro dessa estrutura é que nos surpreende, e é onde o autor inova. Após a
apresentação do espaço físico e psicológico da aldeia, o leitor pode observar e acompanhar
uma quase imperceptível mudança de ritmo quando a menina, após ser solicitada pela mãe a ir
visitar a avó, faz uma perversão digna da criação de Guimarães Rosa, ou seja, ela muda de
caminho. Neste momento, ela está absolutamente só e seguindo o seu impulso criativo, pois
ela desorganiza a estrutura linear do conto de fadas tradicional, mostrando autonomia de
pensamento, embora seja ainda inconseqüente. Mudando de caminho, muda o ritmo e o fluir
da narrativa. Neste segundo momento, o caminho e a paisagem se sobrepõem à protagonista,
como se lhe roubassem a cena. O que importa, a partir deste momento, mais que o próprio
enredo, é o que é visto. Ver se torna, então, o foco do conto, no qual a natureza contemplada
parece estar em êxtase, como a própria natureza da criança da estória. Assim como o
protagonista de “São Marcos” , a menina é uma observadora pertinaz, e vê até mesmo o
inalcançável. É o que nos traz o narrador, em formas de imagens, na belíssima passagem:
“Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se
com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem
em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e
incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.” (ROSA, 1994, p. 981)
Desvendada a paisagem, a garota chega à casa da avó, inaugurando-se, a partir de
então, outro momento da narrativa. Do espaço aberto em construção ela penetra no espaço
fechado, em desconstrução. O frenesi da viagem cede lugar ao recolhimento do quarto, onde,
a avó, fraca e moribunda, a aguarda. E é lá dentro que a garota percebe que perdera em
caminho a sua fita verde, símbolo da infância, que foi perdido justamente quando a menina
resolveu mudar de caminho e lançar-se aos prazeres da contemplação. Perde a fita, e,
posteriormente, a avó. No entanto, não há o sentimento da fatalidade nestas duas perdas,
194
porque a garota e a avó mantêm um diálogo que as une e que prepara a neta para o desfecho,
dando-lhe, paulatinamente, consciência da morte.
Por analogia, remetemo-nos ao mito de Adão e Eva, na passagem em que os dois se
lançam na aventura do conhecimento da árvore da vida. Para que usufruíssem do prazer de
conhecer, precisariam abrir mão do paraíso e do gozo perene do Éden. Mas não podemos
viver para sempre no Éden, e a vida representa perigos, frustrações e perdas. Fita Verde, ao
“escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso” (ROSA, 1994, p.
981) desvia-se do caminho conhecido, e, rompendo a ordem que sua mãe lhe dá, opta pelo
caminho do auto-conhecimento. Sua atração e curiosidade diante do novo fazem parte desta
natureza do ser humano que diz respeito à busca do desconhecido, e que os mitos traduzem
com tanta propriedade. A escolha de outro caminho neste conto nos remete à escolha de Adão
e Eva ao colherem o fruto proibido. Lembra-nos também a desobediência criativa da esposa
de Barba Azul, que, embora tivesse acesso a todas as chaves do palácio, desejou abrir
justamente a porta proibida. E, não obstante tenha sofrido as consequências deste acinte, ela
se tornou uma mulher acordada para a presença do perigo que rondava a sua morada. Saiu do
paraíso da inconsciência, e ganhou o conhecimento do bem e do mal. Como nos lembra
Joseph Campbell, “O Jardim do Éden é uma metáfora que desconhece o tempo, desconhece
os opostos e vem a ser o centro primordial a partir do qual a consciência se dá conta das
mudanças.” (CAMPBELL, 2005, p.53)
Deste modo, percebemos que esta estória é uma metáfora do processo de iniciação e
de autoconhecimento, uma viagem de descoberta do mundo desconhecido, representado pelo
caminho “ louco e longo”, pela consciência da perda da fita - bem material e simbólico - e pela
perda da avó, bem humano e insubstituível. Aliás, este é um tema constante na obra rosiana e
muitas vezes vem diluído em uma ou outra forma de viagem que os personagens sempre
195
fazem. A viagem, na ficção de Guimarães Rosa, deve ser compreendida também como uma
imagem, um evento metafórico que sugere a passagem de um estado interior para outro,
catalisado pelos obstáculos oferecidos nos caminhos trilhados pelos personagens, seja no
Mutum, no Urubuquaquá, sobre a canoa numa terceira margem do rio, do alto do avião que
sobrevoa a cidade nova, não importam tanto os lugares, mas o que eles evocam como espaços
de travessia de um estágio para outro. Por isso, vale dizer que as estórias de Guimarães Rosa
trazem em sua estrutura mais profunda os aspectos do mito e os seus desígnios, pois atingem,
por meio de imagens, a realidade invisível das coisas. Num autor como Rosa, em que o
conceito de realidade é o tempo todo colocado em situação polêmica, o mito propicia ao leitor
estabelecer um outro canal de comunicação com o mistério do texto e o seu próprio mistério.
Conforme Joseph Campbell “Toda mitologia tem a ver com a sabedoria da vida, relacionada a
uma cultura específica, numa época específica. Integra o indivíduo na sociedade e a sociedade
no campo da natureza. Une o campo da natureza à minha natureza. É uma força
harmonizadora.” (CAMPELL, 2005, p. 58)
Embora nesta estória haja o sentimento da perda - e de fato ela ocorre -, esta não
está carregada de fatalidade, e temos a possibilidade de transcendermos os acontecimentos e
vislumbrarmos outras nuances que não se encontram na superfície da estória. O diálogo final
entre a garota e a avó, além de uni-las num momento limite para as duas - a primeira
descobrindo que perdeu sua fita, a segunda vivenciando a morte -, acorda a neta para a
realidade da morte e para uma tomada de consciência. Temos, deste modo, novo rito de
passagem, que foi sendo preparado no caminho que a menina percorreu até chegar à casa da
avó. Na verdade, há alguns momentos ritualísticos e de tensão: o primeiro é a saída da casa
materna, mas desta vez a partir da liberdade que a menina conquista, interditando os
conselhos da mãe. O segundo é a descoberta de todas as belezas que este novo caminho
196
proporciona, a exuberância da natureza, o inebriamento da menina diante desta. Em seguida,
há o mergulho na casa da avó, onde reina o silêncio e a doença. Lá fora, tudo se inaugura,
dentro tudo fenece. Mais uma vez apreciamos um conto de Guimarães Rosa em que ocorre
este paralelismo entre os espaços: dentro e fora; campo aberto, casarões sombrios. Se
voltarmos aos contos “Nenhum, nenhuma”, ou à novela “Cara-de-Bronze”, por exemplo,
veremos a tensão entre estes espaços e, ao mesmo tempo, a relação de complementariedade
existente entre eles. Em “Fita-verde-no-cabelo” , a natureza pode ser lida como a
representação do universo próprio da infância que, inevitavelmente, precisa ser acrescido de
outros conteúdos, fato que pode ser sugerido pela entrada da menina na casa da avó, onde
reina a velhice. Quando a avó, ao ouvir o chamado da neta, diz: “ – Puxa o ferrolho de pau
da porta, entra e abre. Deus te abençoe.” (ROSA, 1994, p. 981) define-se a abertura e a
entrada da menina em outro mundo, do qual ela sairá transformada. Certamente, o caminho
de volta será diferente, não em função do caminho em si, mas porque às experiências
anteriores da garota foi somada outra, que não é uma experiência qualquer, mas a da morte.
No momento do encontro da neta e da avó percebemos que a menina, antes exaltada e
inebriada, agora se espanta.
As observações que faz sobre o corpo da avó revelam as diferenças gritantes entre o
mundo das duas. Com relação ao léxico empregado, os adjetivos são bem distintos daqueles
empregados pelo narrador quando da descrição do caminho pelo qual ela vinha
sobejadamente”. (ROSA, 1994, p. 981) Palavras como “ agagado”, “rebuçado” , “rouco”
(Ibidem, p. 981) substituem as expressões luminosas como “avelãs do chão não voarem”,
“borboletas nunca em buquê nem em botão”, “plebeinhas flores, princesinhas e incomuns”
ou o supreendente enunciado “Saiu, atrás de suas asas ligeiras” (Ibidem, p. 981). Tais
expressões, reveladoras de uma natureza exuberante, ao serem substituídas num momento
197
seguinte por outras mais sombrias mostram como, mais uma vez, a narrativa de Guimarães
Rosa nos convida a reconhecer a inconstância da vida, o seu fluxo e refluxo. Num instante
havia a pulsão de vida, noutro a da morte. A perda da fita traz o susto e o medo onde há
minutos havia apenas júbilo. A consciência só é conquistada mediante a constatação da
perda, primeiro do adorno da cabeça - lugar do pensamento, da razão, da consciência - e,
depois, em face ao desfalecimento da avó, quando, pela primeira vez o sentimento do medo
leva a menina a um outro plano de suas percepções. É quando ela descobre que perdeu duas
coisas valiosas: a fita e a avó. Neste instante, confessa ter medo do lobo, personagem que
nesta nova estória não é colocado em primeiro plano, a não ser como metáfora do grande
medo arquetípico que nos ronda e se manifesta como uma realidade diante das situações
novas, principalmente quando se trata de perdas. E no caminho, na travessia entre uma aldeia
e outra há o olhar que a tudo tenta alcançar, ainda que só esteja sempre inalcançando. Desta
forma, vemos crescer nesta estória a força propulsora da vida de um lado, ao mesmo tempo
que, do outro extremo da aldeia, lá onde a avó mora, a vida vira falta e se metamorfoseia.
Vida e morte: é o que este conto nos mostra, a harmônica tensão entres elas. Infância
e velhice; Eros e Tânatos. No entanto, a presença da velha, nesta estória, como em todas as do
autor, não deve ser compreendida como falta de engendramento de mudanças. Pelo contrário,
o perfil dos velhos e das velhas na obra rosiana não pode ser visto unilateralmente, mas no
que ele possui de arcaico e de novo, e, sobretudo, no que ele representa de expectativa, de
passagem e de transformação. Nesse sentido, a respeito de “Arroio-das-antas” Cleusa Passos
nos lembra que “Maternais, as velhas deixam de representar avós contadeiras para refazer as
histórias de suas continuadoras, representantes femininas mais felizes. E nessa recriação,
Guimarães Rosa transforma, graças a sutis alterações de velhos, a configuração das
198
personagens, embora preserve os ambíguos elos entre a tradição e o novo.” Grifos da autora
(PASSOS, 2000, p. 42)
Fita Verde é a menina que está deixando para trás porções de sua infância. O rito de
passagem é sugerido pelo caminho solitário que ela faz até chegar à aldeia em que mora a
avó. Nesse caminho o perigo não é metaforizado pela presença do lobo, como este aparece na
narrativa de Perrault, mas é substituído pelos lenhadores que não representam ameaça alguma
à menina. É o que nos descreve o narrador: “Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os
lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os
lenhadores tinham exterminado o lobo.” (ROSA, 1994, p. 981) No entanto, o medo existe nela
em potencial e se manifesta no final da estória, quando ela se vê sem a fita verde e diante da
avó morta . A releitura deste conto valoriza o humano ao invés de valorizar o lobo. A menina
está em primeiro plano, bem como qualidades como a coragem e a curiosidade. A morte da
avó é resultado do processo de vida. Não há violência na morte, mas esta é apresentada como
uma experiência de vida que irrompe para a menina em sua simbólica viagem de uma aldeia à
outra, ou, como diz o conto “... a uma outra e quase igualzinha aldeia” (ROSA, 1994, p. 981)
Guimarães Rosa amava os mitos, e nas suas estórias sempre procurou dialogar com
eles. Em “Fita-verde-no-cabelo” o rito de passagem representa uma realidade profunda: do
crescimento para a menina, da morte para a avó. Ritos de passagem para ambas. Para Joseph
Campbell “Todas as crianças deveriam nascer duas vezes para aprender a funcionar
racionalmente no mundo de hoje, deixando a infância para trás.” (CAMPBELL, 2005, p. 8)
Criação, morte e ressurreição são alguns dos conteúdos universais dos mitos. Para o autor de
O poder do mito, “A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de
iniciação, quando você passa da infância para as responsabil idades do adulto (...) Todos esses
rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a
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desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo
uma função responsável.” (CAMPBELL, 2005, p.12) Ora, ao relermos a passagem final de
“Fita-verde-no-cabelo” vemos que o narrador diz: “Fita-Verde mais se assustou, como se
fosse ter juízo pela primeira vez.” (ROSA, 1994, p. 982) Noutras palavras equivale a dizer
que a menina ganhou consciência. É o que este conto nos ensina: a lição da passagem. Sobre
os rituais, lembra-nos ainda Joseph Campbell: “Eis o significado dos rituais da puberdade.
Nas sociedades primitivas, dentes são arrancados, dolorosas escarificações são feitas, há
circuncisões, toda sorte de coisas acontecem para que você abdique para sempre do seu
corpinho infantil e passe a ser algo inteiramente diferente.” (CAMPBELL, 2005, p.8) Na obra
de Guimarães Rosa, os ritos de passagem pressupõem outros procedimentos, e se dão de
forma mais sutil, diluídos na poesia da paisagem, do caminho sempre movente, e dos
personagens sempre em busca de seus caminhos. Na estória em foco é a fita verde perdida o
grande elemento do rito, cuja perda soma-se à outra, que é a morte da avó, e o nascimento da
consciência.
Temas como a liberdade de experimentar caminhos novos, o encontro com a
inevitabil idade da morte - aqui encarada não de forma trágica - apontam para as forças do
crescimento que sempre trabalham na criança. O diálogo entre a menina e avó nos faz pensar
na falta de uma demarcação rigorosa entre a infância e a velhice, não obstante estejam
evidenciadas as peculiaridades de cada fase da vida. Chama-nos a atenção a falta de rigidez na
hierarquização dessas faixas etárias, porque no encontro das crianças com os velhos há
sempre um aprendizado, mas que não se faz superficialmente ou de forma impositiva, e sim
de forma natural e até mesmo inevitável. Diante desses encontros, compreendemos que o que
vale na vida é justamente esta relação especular entre as gerações que, quando genuína,
propicia a todos um olhar sobre o que já foi e uma esperança em relação ao que poderá ser.
200
Deste modo, a criança e o velho são dois eixos nestas narrativas, o que só vem comprovar a
preferência de Rosa pelos seres que, de certo modo, estão em situações-limites da vida, ou
que, situadas à margem da sociedade escolhem os seus próprios caminhos.
A alegria e a disposição da pequena protagonista iluminam esta estória e
proporcionam ao leitor a contemplação de uma paisagem vista pelo olhar da criança. A
narrativa é tão breve quanto o é a infância, mas deixa vivas as imagens do caminho que a
menina percorre, como num quadro pintado a céu aberto. E dentro deste quadro, para sempre,
a menina dá o seu salto para a maturidade. Para Goethe “A criança considerada em si mesma,
com os seus pares e nas relações proporcionadas às suas forças, parece tão inteligente, tão
razoável, que nada é capaz de superá-la, e ao mesmo tempo tão disposta, tão alegre, tão destra
que não podemos desejar-lhe nenhuma outra cultura. Se as crianças se desenvolvessem tão
como se anunciam, só haveria gênios. (GOETHE, 1986, p.65)
De fato, a menina desta estória é mais uma personagem infantil de Guimarães Rosa
que nos surpreende e nos encanta pelo seu olhar de encantamento diante da paisagem por ela
mesma escolhida, pelo seu olhar de perplexidade diante da morte, que ela vai integrar dentro
de si como conquista da consciência, pelo seu olhar que reconhece a presença insondável do
Lobo, realidade sempre presente na vida de todas as crianças, símbolo dos difíceis obstáculos
a serem enfrentados no maravilhoso percurso da Floresta. É o olhar de Fita Verde, de
Drizilda, de Brejeirinha, de Miguili m, de Dito e do Menino que nos seduz, por sua abertura
para um mundo sempre inacabado, perigoso e urgente, onde as coisas vistas são vistas para
fomentarem ainda mais o desejo de ver e de perguntar, que é o que mais fazem estes
personagens de olhos grandes, criações de um escritor que também tinha grandes olhos para
vê-los e entendê-los.
201
6 O OLHAR DO POETA
Brejeirinha já olhou tudo de cor. ("Partida do audaz navegante” , p. 472)
Gostaríamos de encerrar a análise das breves narrativas, tecendo algumas reflexões
sobre esta em especial, pela alegria que ela contém, pelos seus aparentes paradoxos, pela
concentração de crianças que há nela, e especialmente pela presença intrigante e sedutora do
pensamento mágico e poético das crianças, retratado especialmente nas falas de Brejeirinha,
uma personagem que muito se destaca.
Trata-se de uma narrativa protagonizada por uma menina-poeta, que cria resoluções
fictícias para situações reais. Ela possui um olhar de alegria para todas as coisas e transforma,
por meio de seu olhar poético, questionamentos do plano da realidade imediata, propostas
pelos outros personagens, em incríveis mediações poéticas. Como afirma o narrador: "Mas
Brejeirinha tinha o Dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e refletia-as em si – a
coisa das coisas e a pessoa das pessoas. "(ROSA, 1994, p. 470)
"Partida do audaz navegante" apresenta o pensamento poético das crianças com todo
o seu vigor, fazendo-nos questionar os limites do que é visto e do que é apenas entrevisto,
como tudo aquilo que pode ser captado pelo olhar da criança. Nesta estória até o que é
ausência se torna uma possibil idade de existência. É uma narrativa das imagens claras, da
paisagem diluída às claridades do dia, aos movimentos das crianças, que não param, sempre
conduzidos pela inquietude dos seus pensamentos. O narrador, por exemplo, enfatiza a idéia
de que "parecia não acontecer coisa nenhuma" (ROSA, 1994, p. 469) Na verdade, o conto é
iniciado com este enunciado. Mas se prestarmos atenção, veremos que nem mesmo o narrador
tem certeza disso, uma vez que usa o verbo hipotético "parecia". Trata-se de um narrador que,
embora conheça profundamente os personagens e as situações por ele vividas, prefere usar
202
uma palavra "dubitativa". É uma situação narrativa em que novamente vemos oscilar a
onisciência do narrador tradicional com as perguntas que vão surgindo no próprio centro da
efabulação. Tal atitude é uma quebra dos princípios de estabil idade narrativa que coloca em
choque a veracidade dos acontecimentos. Isto acontece de um modo geral na obra de Rosa.
Mas é curioso notar que muitas vezes uma narrativa responde a questões que as outras
propõem. "Partida do audaz navegante", por exemplo, é introduzida pelo seguinte enunciado:
"NA MANHÃ DE UM DIA em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa
nenhuma." (ROSA, 1994, p. 469) Por outro lado, em "O espelho", na contramão desse
enunciado, desponta um outro bem mais adequado ao espírito da obra e dos personagens de
Rosa: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo." (ROSA 1994, p. 437)
A "poetisa" de “Partida do audaz navegante” leva os próprios personagens a um outro lugar,
propondo hipóteses, fazendo indagações insólitas como: "Zito, tubarão é desvairado, ou é
explícito ou demagogo?" As suas palavras são anteriores à lógica. (Ibidem, p. 437)
A primeira narrativa recebe um encaixe que é a estória que Brejeirinha vai
inventando. Contrariando os outros personagens, a protagonista excita-se nas artes de inventar
e de contar. Ao ser criticada, ela diz: "Antes falar bobagens, que calar besteiras..." (ROSA,
1994, p. 471) Esta estória faz um alinhave das situações imaginadas por Brejeirinha e pela
situação inicialmente criada pelo narrador. É o olhar da protagonista que nos leva a uma
viagem minuciosa, pois ela consegue ver o que ninguém imagina, ou seja, o que não está, ou o
que só aparentemente não está. Brejeirinha tem o poder de "olhar tudo de cor" (ROSA, 1994,
p. 472) Diante das perguntas incisivas da irmã, que quer saber o real das coisas, Brejeirinha
encontra respostas extravagantes. Ao chegarem à beira do rio Brejeirinha "Cravou varetas de
bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o
fervor daquilo impunha-lhe recordações." (Ibidem, p. 472) Veja-se a passagem:
203
Brejeirinha, não gostando de mar: "O mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...lamentava-se de não ter trazido pão para os peixes.
- Peixe, assim, a esta hora"?" – Pele duvidava. Divagava Brejeirinha:
- A cachoeirinha é uma parede de água..." Falou que aquela, ali no rio, em frente, era aIlhazinha dos Jacarés.
- "Você já viu jacaré lá?" – caçoava Pele. – "Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Ocê vê a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar..." (ROSA, 1995 p.472)
A última fala da personagem aparece-nos como um dos trechos mais fascinantes
desta narrativa, pela sensação de comunhão das dicotomias estar/não estar, ser/não ser. Na
voz e pelo olhar de Brejeirinha é-nos possível flexibil izar, mais uma vez, as certezas calcadas
em critérios que geralmente são limitadores. Ora, quando a menina aponta para algo que
pode existir, ainda que não esteja em algum lugar, somos convidados a rever as possíveis
lacunas e ausências, e imaginarmos que, até onde nada parece acontecer, alguma coisa está
acontecendo. É uma fala que relativiza as noções de tempo e espaço e de presença/ausência.
No fragmento em questão, percebemos que o raciocínio foi invertido: o que a
menina vê é o que podemos ver a partir do que o narrador propõe. Com esta perspectiva, as
possibilidades de visão, ou o campo de visão dos outros personagens e dos leitores pode se
expandir. Trata-se de um olhar que primeiro dessacraliza a nossa certeza, e que, segundo,
questiona o olhar ou o foco do olhar dos outros, propondo o preenchimento de um enunciado
silencioso que, não obstante seu silêncio e sua ausência, está lá. "O jacaré-não-estar-lá" é um
enunciado que nos ensina a rever os espaços silenciosos dos acontecimentos e da própria
narrativa.
Conforme Marilena Chauí, a história da filosofia tem sido marcada pelo interminável
debate entre o ser e o aparecer, o aparecer e o parecer, o parecer e o ser. (NOVAES, 1988, p.
44) Na obra de Rosa podemos nos deliciar com o lugar privilegiado que o olhar ocupa, ainda
204
que nos espantemos com as contradições criadas (geradas) nos movimentos desse mesmo
olhar.
Voltando ao enunciado, soou-nos muito interessante o seu emprego em forma de um
substantivo composto. Deste modo, o que seria uma oração com sujeito e predicado é
flexibil izado por um objeto único que complementa justamente o verbo "ver". Brejeirinha
consegue ver onde os outros não vêem. Conforme Novaes (1988, p. 14) para Merleau-Ponty:
O sensível não é feito somente de coisas. É feito também de tudo o que nelas se desenha,mesmo no oco dos intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que nelas figura,mesmo a título de distância e como uma certa ausência: 'o que pode ser apreendido pelaexperiência no sentido originário do termo, o ser que pode dar-se em presença originária nãoé todo o ser, e nem todo ser de que se tem experiência. Um corpo percipiente que vejo étambém uma certa ausência, escavada e preparada atrás dele por seu comportamento. E, noentanto, a própria ausência está enraizada na presença; aos meus olhos, a alma do outro éalma graças ao seu corpo. As “negatividades” também contam no mundo sensível que é,decididamente, o universal.
Vale enfatizar que os pensamentos de Merleau-Ponty têm sido inspiradores para nós,
devido às abordagens redimensionadas que este pensador trouxe para os conteúdos
filosóficos, lançando sobre eles um novo olhar, que também é um profundo e acirrado
questionamento da razão clássica tradicional. Marilena Chauí observa que "Merleau-Ponty
não buscava refúgio no irracional, mas lutava por uma racionalidade alargada que pudesse
'compreender aquilo que em nós e nos outros precede e excede a própria razão.' (CHAUÍ,
2002, p. 7)
6.1 OLHAR E ADMIRAR: “PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE”
A imaginação e a invenção aparecem em vários contos dessa série de Primeiras
estórias.
205
Sobre “Partida do audaz navegante”, afirma Wil le Bolle que "A criança, que
aparentemente não entende a significação das palavras, intui a possibilidade de utili zá-las
ironicamente, expressando assim uma postura do narrador, que se coloca ao lado de
personagens iletrados para pôr em dúvida a linguagem ‘certa’". (BOLLE, 1973, p. 88) Não é à
toa que tantas crianças aparecem nesta coletânea. Elas aparecem em seus movimentos, e suas
motivações constituem um mistério para o leitor, porque delas não se pode depreender
nenhum tipo de exatidão nem interesse consciente.
Conforme Henriqueta Lisboa, encontram-se ao longo da obra de Rosa outros muitos
momentos em que reaparece o Menino ou surgem novos meninos e meninas: "Criador de
mundos mágicos, de universos em que se travam lutas épicas, de demônios, de santos, de
loucos, de titãs, de fadas, onde foi buscar os seus grandes personagens? Entre as crianças
açoitadas pelo sofrimento – Miguili m, Dito – os pré-seres, os seres de consciência ainda
incriada – Urugem, Joana Xaviel, Gorgulho, ... os seres empurrados para as grotas do mundo,
os humilhados à espera de redenção.” (LISBOA, 1991, p. 178) O que domina o homem é o
drama da incerteza. A obra de Rosa é presidida pela reflexão acerca de tal incerteza.
6.1.1 Olhar para onde não se vê
“Partida do audaz navegante” pode ser apreciado também a partir de uma perspectiva
que valorize o olhar poético da protagonista Brejeirinha. Partiremos, para tanto, de uma
concepção de Bachelard, segundo a qual a poesia é o "ápice de toda alegria estética"
(BACHELARD 1998, p. 25), é poética do devaneio.
Brejeirinha representa a alegria de viver e as possibil idades de reinvenção do viver.
Ela penetra na esfera poética do brincar e neste brincar estão envolvidos o ato de criar
206
estórias, encaixando-as na própria vida, o ato de falar por meio de uma linguagem inexata, o
ato da construção da poesia.
O conto se abre com uma expressão que caracteriza o tempo: "NA MANHÃ DE UM
DIA EM que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma.” (ROSA, 1994,
p.469) Esta aparente falta de perspectiva com que o dia e a narrativa se iniciam realça as
oportunidades que a menina terá para reconstruir esta manhã sem sóis. E é a partir dessa
atmosfera nublada que Brejeirinha terá oportunidades de acionar e vivenciar a riqueza e a
potência do seu ser poético. A imaginação livre de Brejeirinha invade o dia e aquece a manhã
chuvosa. Vivendo genuinamente a poesia, ela restaura na manhã de tédio uma luz que vai
transformar a manhã de todas as crianças do local. Então, surgem imagens novas que animam
o lugar. Uma estória é inventada dentro da outra que, por sua vez, dispõe-se como forma
poética no que diz respeito à construção do novo enredo, bem como na linguagem utilizada.
Brejeirinha consegue, a partir dos elementos concretos do lugar onde vive, instaurar uma
atmosfera de sonho e de devaneio. Conforme Bachelard: "... a infância está na origem das
maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas."
(BACHELARD, 1998, p. 97).
A protagonista deste conto, como os poetas, é uma criadora de imagens. Ela enxerga
grande e belo, e consegue abrir um novo mundo para si e para os irmãos, ao mergulhar no
mundo do devaneio poético. Seu olhar vai além da neblina da manhã, porque dentro dela
residem outras personagens, outras estórias. O mundo atual, aparentemente descolorido, é
revivido nas cores poéticas com que ela pinta a paisagem. Ela não busca o quem das coisas;
ao contrário de Miguilim, em Campo geral, ela não quer entender. Ela deseja criar, reinventar,
colorir o lugar e a estória. A estória do “audaz navegante”, criada por ela, é tão importante
para a pulsação desta narrativa quanto a primeira, ou seja, a que o narrador se propôs
207
inicialmente contar. As duas estórias, a de Brejeirinha e seus irmãos naquela manhã de
chuva, e a do audaz navegante, encaixada à primeira pela protagonista, estão estreitamente
vinculadas e se complementam, mas ainda assim conseguimos delimitá-las, e perceber o que é
próprio de cada uma, o que é necessidade de cada enredo. O devaneio poético de Brejeirinha
deixa-a falar livremente: "Antes falar besteiras, que calar asneiras."(ROSA, 1995, p.471) Esse
falar livre, colado a um brincar livre e criativo, está desamarrado das convenções gramaticais
e sintáticas, e corresponde ao próprio falar do poeta, que no caso desta narrativa é o artífice
da palavra, ou, por que não dizer, o próprio João Guimarães Rosa. Neste aspecto a voz, a fala,
o discurso de Brejeirinha revelam as crenças e perspectivas do próprio autor no que diz
respeito a sua liberdade criadora, dentro da qual são possíveis as criações de novas palavras, a
revitalização da sintaxe, os encaixes narrativos, propostas e procedimentos literários.
Brejeirinha é inventadeira, como o próprio autor. Ela inventa uma estória de amor, que, por
sua vez, traduz a estória de amor dos primos, contada inicialmente pelo narrador.
Ao contrário do conto “Nenhum, nenhuma”, esta estória é feita de muitas claridades.
No primeiro caso, também há a evocação a uma estória de amor entre o Moço e a Moça. No
entanto, enquanto nesta narrativa a percepção do protagonista se dá dentro de uma atmosfera
introspectiva e melancólica, em “Partida do audaz navegante”, as paisagens internas são
outras. O próprio espaço geográfico é aberto, enquanto na primeira tudo se passa num casarão
antigo, sombrio, cheio de quartos.
A esfera do poético nesta estória é a que predomina. É por meio da intervenção de
um olhar poético que a estória deverá e poderá ser contada. Somente a partir dos critérios do
fingimento poético é que a sentença “NA MANHÃ DE UM DIA...” (ROSA, 1994, p. 469)
poderá ser mudada pela própria estória que ela passa a inventar. A fábula se torna a própria
vida. A infância se torna a própria poesia. A poesia se metamorfoseia na infância.
208
Outro ponto que nos chama a atenção neste conto é o tom de devaneio da
protagonista, com o qual a segunda estória é narrada. Tal devaneio será tensionado pela fala
da irmã mais velha que questiona a veracidade e a falta de lógica do discurso de Brejeirinha,
como revela a passagem abaixo:
“ ‘Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes? – Brejeirinha especulava. –“É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...” Pele lambava-lhe um tico de desdém(...)’ ”(ROSA, 10995, p. 470) Outro exemplo das especulações da menina: “ “ Brejeirinha é assim,não de siso débil: seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações: - ‘Euhoje estou com a cabeça muito quente...’ – isto, por não querer estudar. Então, ajunta: - ‘Euvou saber geografia.’ Ou: - ‘Eu queria saber o amor...’ Pele foi quem deu risada. Ciganinhae Zito erguem os olhos, só quase assustados.’ ” (ROSA, 1995, p. 470)
Enquanto a protagonista radicaliza o discurso metafórico e aparentemente nonsense,
a fala da irmã busca articular este discurso insólito e diferente dentro dos critérios da razão.
Mas Brejeirinha está tão mergulhada na verdade do seu ser poético, vivenciando tão
intensamente as revelações deste ser, que não existem motivos para criar embates com a
irmã. Brejeirinha não precisa se explicar; e se se justifica, ainda assim é por meio de uma
linguagem metafórica, e por uma fala totalmente desautomatizada. Ela fala o que é. E não
consegue distanciar ou separar a sua essência poética dos seus atos de fala.
Acreditamos que a “movência” é um princípio que move a obra de Guimarães Rosa,
e que a linguagem não pode estar separada da vida. A infância não pode se separar do
devaneio. A linguagem da infância revela tal dinâmica, esse fluxo constante que é a vida.
Bachelard é bastante inspirador nesse sentido, porque o seu pensamento revela como o
espirito fabuloso da criança se expressa na sua própria linguagem. Cremos também que a
presença de tantas crianças na obra de Guimarães Rosa é uma perfeita ilustração de como a
vida é um jorro de mudanças, e de ciclos que não param de fluir e refluir. Assim é a
linguagem, porque assim é a vida. Nesse sentido, reflete Bachelard:
209
Toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa. Não que ela se deixe impregnar, como seacredita com excessiva facilidade, pelas fábulas sempre tão factícias que lhe contamos e quesó servem para divertir o ancestral que a conta. Quantas avós não tomam o seu neto por umtolinho! Mas a criança que nasceu esperta atiça a mania de contar as sempiternas repetiçõesda velhice contadora de histórias. Não é com essas fábulas fósseis, esses fósseis de fábulas,que vive a imaginação da criança. É nas suas próprias fábulas. É no seu próprio devaneio quea criança encontra as suas fábulas, fábulas que ela não conta a ninguém. Então, a fábula é aprópria vida." (BACHELARD, 1998, p. 113)
Brejeirinha inventa sua fábula à medida que a vai vivendo. E o narrador de “Partida
do audaz navegante” permite à protagonista viver a sua própria fábula. Cedendo o espaço da
sua narração, silencia a sua voz para ouvir a do próprio personagem. É um narrador que
acredita na força de outras narrações e de outros narradores, que sabe escutar e esperar. Mas
se Brejeirinha possui essa vitalidade para a efabulação é, antes de mais nada, porque ela tem
um olhar de admiração para o mundo, o que não é uma particularidade somente dela, mas da
criança de um modo geral e dos poetas, cujo olhar atravessa as coisas. Voltamos a Bachelard,
a fim de que ele complete o que, por ventura, tenhamos deixado de dizer: "Para descobrir a
linguagem das fábulas, é necessário participar do existencialismo do fabuloso, tornar-se corpo
e alma de um ser admirativo, substituir diante do mundo a percepção pela admiração. Admirar
para receber os valores daquilo que se percebe. (BACHELARD, 1998, p. 113).
Por meio do devaneio Brejeirinha redimensiona o real, joga-lhe luz nova que possa
alcançar a todos, inclusive o próprio narrador, que interrompe a narração para ouvi-la. Ela
vive no tempo do devaneio, do devaneio criativo do poeta, pois "É o devaneio que dá o tempo
de realizar essa composição estética." (BACHELARD, 1998, p. 115).
6.1.2 O discurso infantil
No desejo de ampliar nossas reflexões acerca deste olhar póetico na obra de João
Guimarães Rosa, gostaríamos de tecer alguns comentários a respeito de um tema que, para
210
nós, é reincidente e que está num dos mais altos patamares de todas as discussões referentes à
infância. Trata-se da questão da imaginação, da força do pensamento mágico na criança, que
a ajuda a encontrar soluções para situações incompreensíveis, por meio de um brincar não só
corporal mas que, transcendendo o próprio corpo, resvala para o pensamento. Aliado a este
olhar de que temos falado, seria conveniente lembrarmos a qualidade discursiva dos
personagens enfocados.
Neste ponto, podemos confirmar a crença de que Guimarães Rosa soube dar ao
imaginário infantil o seu devido valor. Por meio dos meninos e meninas espalhados em
Primeiras estórias, encontramos as crianças de todos os tempos e lugares, e sua presença,
aliada a uma linguagem totalmente adequada ao espírito da infância, revela uma verdadeira
celebração desta.
Um profundo senso de observação e percepção do universo e da linguagem infantil
desenvolveu-se em nós, à medida que íamos penetrando no universo infantil da ficção rosiana.
Ler a infância pela palavra de Guimarães Rosa tem significado especial para nós, que é
devolver um olhar para a potencialidade do imaginário da criança, expressa nas suas atitudes e
na sua linguagem. Na verdade, temos tido a oportunidade de rever a infância que nos cerca
com um olhar muito atento e inquietante.
Ao observarmos as falas das crianças, veremos que elas estão carregadas de poesia,
seja no aspecto fônico, rítmico, ou do ponto de vista semântico. As expressões como "O moço
pintou o céu da casa dele de azul", ou, "quando o palhaço tira a maquiagem ele vira gente?",
"O peixinho morreu porque cansou de nadar.", ou ainda "Estou com dor de cabeça nos pés"
(A.C. S.)20 são alguns exemplos dos falares de crianças à nossa volta, que nos levaram a uma
imediata associação com as personagens infantis de Primeiras estórias, bem como com a
20 As frases em destaque foram extraídas de conversas com crianças de idades entre 4 a 5 anos, com quem
211
própria linguagem do autor, repleta de violentas inversões na estrutura sintática das frases.
Podemos dizer que ao dar voz às crianças, Guimarães Rosa apura o que no seu discurso já é
inquietante e imprevisível, uma vez que a fala da criança está longe de ser aquela esperada
pelos adultos, emaranhados no seu discurso racional e padrão.
Não há dúvida de que Guimarães Rosa conseguiu captar o âmago da infância com
uma palavra extremamente "infantil ", no sentido de revelar os mecanismos lingüísticos
específicos da criança, mas sem torná-la um ser alienado. O autor de Primeiras estórias
conseguiu olhar e narrar a criança, colocando-a em foco com o que ela tem de mais poderoso
e dinâmico, que é a sua linguagem. Quando a criança fala algo que o adulto imediatamente
corrige, como por exemplo "Eu tô com frio, vou cobertar", ou "A manteiga vai endurar", "Ela
é minha madrinha e ele é meu madrinho", "Eu estou com dor de cabeça nos pés." (A.C.S.),
está inconscientemente criando as suas hipóteses lingüísticas, e é nessas resoluções
espontâneas que ela vai adquirindo seu repertório e seu domínio sobre a linguagem. É um
falar primitivo e poético, ou melhor dizendo, é poético justamente porque primitivo,
construído sem as acomodações e imposições de uma gramática externa. É uma forma
distensa de falar. O que parece pertencer ao reino do nonsense é, em verdade, o uso da
fantasia para o estabelecimento de uma relação ativa com a realidade.
Trata-se de uma gramática interna ainda intocada pelo discurso dominante. Esta fala
distingue a criança do mundo dos adultos, preservando-a do discurso automatizado, atrelado
às especificidades do dia-a-dia racional e funcional ao qual o homem se submete, e que
Guimarães Rosa tanto procurou redimensionar. A tendência dos adultos é rejeitar este
discurso, introduzindo a criança no discurso em que predominam as concordâncias e a
"coerência" . Se a fala da criança nos parece incoerente é porque, entre outras questões,
convivemos diariamente no período da redação desta pesquisa.
212
podemos pensar no discurso poético como fator de incoerência no sentido de desestabilizador
do discurso que faz parte do lugar comum, com o qual todos já se acostumaram. Neste
sentido o discurso poético escapa àquela coerência que não nos tira do lugar. O discurso
poético, inclusive, já foi associado por Bachelard, na sua Poética do Devaneio, ao discurso
infantil . O discurso considerado polifônico por Bakhtin é o tipo de discurso produzido por
poetas e crianças, e que se diferencia do discurso monofônico pelo seu tom incoerente,
imprevisível, chocante.
Ao reproduzir as falas das crianças, por exemplo, o autor revela um procedimento
literário e lingüístico que se aproxima bastante do processo de aquisição e de construção da
linguagem peculiar à criança. É redundante dizer que a língua de Guimarães Rosa singulariza
as experiências, e singulariza-se a si mesma, entre outras coissa, pelo inesperado da sintaxe,
pelas insólitas e inquietas desacomodações na própria estrutura da língua. No entanto, nas
narrativas em que o enfoque é a criança, vemos saltar no texto as criações inesperadas de
Guimarães Rosa, e julgamos que é neste momento que a língua do autor se alia com total
liberdade à linguagem da criança, que é como a do autor, um processo em construção, puro
movimento. Podemos verificar que por meio desta desconstrução ou reconstrução lingüistica
(lexical, sintática, estilística, morfológica), Rosa perverte (assim como as crianças o fazem)
as normas gramaticais, usando procedimentos dinâmicos e extremamente produtivos. Esta
nova maneira de dizer revela, sem dúvida, um intenso desejo de olhar e de mudar os pontos de
vista. Olhado do ponto de vista da criança, o mundo poderia ser lido sob a perspectiva de uma
gramática da fantasia. Gianni Rodari compartilha conosco esta idéia, valorizando por
exemplo, o emprego dos prefixos, na linguagem da criança. (RODARI, 1973, p. 32) Para o
autor, um dos modos de tornar produtivas as palavras, em sentido fantástico, é deformá-las.
As crianças devem fazê-lo, como um jogo, um jogo muito sério, porque as ajuda a explorar
213
as possibil idades da palavra, a dominá-la, forçando declinações até então inéditas, e estimula
a liberdade da criança enquanto ser "falante" com direito à sua ‘prosa pessoal’ , (...) encoraja o
inconformismo." (RODARI, 1973, p. 32) Conforme o autor, "Muitos dos "erros" das crianças
não são erros: são criações autônomas das quais elas se servem para assimilar uma realidade
desconhecida." (RODARI, 1973, p. 35)
As crianças, quando brincam, levam isso muito a sério. A articulação da linguagem é
também para elas um jogo em que os sons, o ritmo, a melodia das frases, a opção por uma
palavra inexistente no dicionário, a inversão da posição dos adjetivos, o uso de prefixos onde
estes não são esperados, a improvisação de palavras únicas para traduzir um único sentimento
ou uma impressão das coisas, fazem parte da sua fantasia criadora, bem como da do escritor,
principalmente de Guimarães Rosa. Portanto, quando Nhinhinha diz: “...xurugou...” e outras
tresloucadas palavras, quer dizer que o significado extrapolou os limites do significante, e que
assim como se brinca com objetos concretos, brinca-se com as palavras, e é possível
estabelecer com elas uma relação lúdica e séria. Bachelard já nos alertou para esta delicada
ligação entre os códigos do poeta e da criança. Tal atitude lúdica em relação às palavras,
própria dos poetas e das crianças, é o que faz com que as possibil idades e impossibil idades da
palavra sejam exploradas ao máximo. Ambos, cada qual a seu modo, instauram uma forma de
libertar a língua das redomas que a limitam; a criança ainda sem consciência de que faz, o
poeta com uma consciência que às vezes só se explica pelos seus processos inconscientes, que
permeiam os seus atos de criação. Nhinhinha e Brejeirinha são excelentes exemplos de uma
liberdade absoluta de expressão: elas, assim como Guimarães Rosa, exercitam uma prosa
poética, pessoal e única, e os significados do que dizem só podem ser compreendidos se
entrarmos no jogo do qual são peças fundamentais o inconformismo, a liberdade criadora, a
confiança na mudança.
214
Guimarães Rosa cria uma linguagem extraordinariamente impactante
(principalmente do ponto de vista da sintaxe e dos padrões gramaticais de um modo geral),
justamente porque buscou aproximar a linguagem da vida, porque considerava a vida fluxo
constante, instabil idade, mudança. Como a infância. É interessante associarmos estes
"desvios" de linguagem com os próprios "desvios" cometidos pela criança, diante dos quais os
adultos se chocam, ou se surpreendem. Também formas de "desvios" são os textos poéticos,
por sua autonomia em relação aos critérios estabelecidos pelo discurso monofônico. Podemos
dizer que a linguagem da criança, da poesia e de Guimarães Rosa estão numa relação de
semelhança; na obra de Rosa, especialmente para nós que estamos ouvindo o ser das crianças,
é como se não houvesse barreiras entre criança, fala e poesia. Toda criança é poeta, todo poeta
é criança. Se ouvirmos o que elas reinventam e como ressignificam a linguagem, ouviremos
uma poesia em potencial, seja em relação à criança real ou à ficcional. Nesta última temos a
oportunidade de reler o que já intuíamos ou desconfiávamos, porque o autor narra e imortaliza
falas e pensamentos que são próprios de todas as crianças. Se a linguagem precisa ser como a
vida, só mesmo representando-a pela voz daqueles que beiram o irracional, como é o caso das
crianças, dos velhos, dos loucos.
A título de ilustração, organizamos uma listagem das palavras e expressões extraídas
de contos do autor e de frases coletadas por crianças entre três e seis anos de idade, que fazem
parte do nosso dia-a-dia.
"Tanto chove, que me gela!" ("Partida do audaz navegante", p. 469)"Eu desci até o topo da árvore." (A.C.S.)"... E o cajueiro ainda faz flores..." (“Partida do audaz navegante”, p. 469)"Eu acendi a lanterna e está luizando tudo." (A.C.S.)"Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?" (“Partida do audaz navegante”, p. 471)Ao ver o pé da mãe engessado: "Minha mãe está com o pé estragado." (A.C.S.)
215
Segue-se um exemplo bem especial da capacidade da criança em imaginar:
"Você já viu jacaré lá?" – caçoava Pele. – "Não. Mas você também nunca viu o
jacaré-não-estar lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar..." (“Partida
do audaz navegante”, p. 472)
Este último trecho revela como o pensamento da criança pode mostrar-se insólito, só
podendo ser expresso se for por meio de uma desacomodação lingüística, ou, no caso, pela
transformação de um sintagma verbal em um substantivo composto.
O exemplo a seguir mostra as resoluções que a criança é capaz de encontrar para
situações delicadas. Ao ver uma colega chorando com medo da mãe morrer, A.C.S (5 anos)
diz: “Não chora, sua mãe vai ficar um ano sem morrer.”
Já no trecho abaixo, a poesia encontra-se justamente onde o desvio gramatical se
instala, quando a palavra nos detém e nos faz voltar a ela.
Agora, eu sei. O Audaz Navegante não foi sozinho; pronto! (ROSA, 1994, p. 474) Mas eleembarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foiindo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito,mais bonito, o navio ... pronto: e virou vagalumes. (Ibidem, p. 474)
O que é desvio consciente em Guimarães Rosa pode ser associado com o que é
desvio inconsciente no falar da criança. Certamente que no texto acima as expressões em
destaque têm uma explicação gramatical sobre a qual não nos deteremos, pois não queremos
nos prender a uma análise formal, já que o que nos importa é a apreciação desta presença
coesa e harmoniosa entre o universo-discurso infantil e a linguagem do escritor, repleta de
desvios, de expressões despropositadas, inesperadas, como é a criança.
216
6.2 O MENINO PENSADOR: “CAMPO GERAL”
Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. (...) ("Campo geral", p. 541)
Outra narrativa em que há a presença marcante e lírica da criança é "Campo geral",
novela ou "romancinho", que faz parte do livro Manuelzão e Miguili m. Percebemos que
nessa estória há uma tentativa de captar o mundo circundante pelo olhar da criança. Aspectos
como o tempo, a memória e sua relação com o corpo e a fusão do olhar do adulto ao do olhar
da criança são evocados especialmente, e a infância, lugar e tempo das origens, de onde tudo
plaina e para onde tudo retorna é, uma vez mais, li ricamente reconstruída pelas mãos de um
autor que nunca perdeu o contato com o menino que foi.
Nesta estória falaremos de um olhar que possui algumas particularidades que o
fazem se destacar do dos outros personagens, ainda que, como temos falado, haja um eixo
comum entre todos estes. Mas, o que há de peculiar no olhar de Miguilim?
Temos aqui um olhar que se assemelha ao do filósofo, ou seja, um olhar indagador,
que quer colocar luz onde tudo parece numinoso, e buscar a compreensão para aquilo que só
pode ficar no plano da suspeita. É o olhar do conhecer. Olhar solar, e às vezes lunar,
aproveitando a bela expressão de Perrone-Moisés (1988, p. 333), o olhar de Miguili m abarca
todo o Mutum, pequeno vilarejo onde vive, cercado por vales que o impedem de ver o que há
do outro lado. Mas ele não deixa por menos, e consegue extrair a beleza de suas experiências
imediatas. No entanto, temos nesta estória um instigante e precioso paradoxo. O menino de
que estamos falando é, como o seu autor, míope.
Como temos afirmado, na obra de Guimarães Rosa o sentido da visão é bastante
aguçado. O ato de ver é compreendido não só como ato físico, mas como anseio de
compreender. É valioso observarmos que estes dois aspectos do verbo “ver” não constituem
atividades separadas uma da outra, mas a compreensão ou a tentativa de apreensão do sentido
217
das coisas passa sempre pelo sentido da visão. Na verdade, apreciando as narrativas como um
todo, veremos que a urgência de ver não é privilégio de um ou outro personagem, embora
para alguns isto se revele de forma bem acentuada. Mas o que vem à tona é sempre algo,
alguém ou alguma paisagem sendo vista. Neste sentido é bom lembrarmos: quantas vezes não
é o próprio narrador que viu algo que os personagens ainda não viram? A novela que por ora
apreciaremos tem um nome bastante adequado ao tema de nosso estudo. Trata-se da primeira
narrativa de toda a série que temos estudado que traz no título a qualidade implícita ao ato de
ver, ou seja, o título se insinua como um lugar amplo de onde se pode ver muito e
intensamente e também de onde se pode ser visto. Novamente vemos esta singularidade da
obra rosiana, um de seus traços, que é valorizar e chamar a atenção para a estória a partir da
apresentação da paisagem. Neste caso a palavra “campo” , quali ficada pelo adjetivo “geral” ,
evoca longos caminhos a serem percorridos e/ou frequentados, é um convite à experiência do
olhar, que pode se perder na amplitude do que há para ser visto.
No entanto, não obstante sejamos chamados ao percurso de uma paisagem que se
estende diante de nossos olhos, e também aos olhos do protagonista Miguilim, o olhar pode
ser mais uma vez compreendido como um problema quando surge a mãe de Muiguilim,
descrita como uma mulher romântica e melancólica a quem a paisagem não se apresenta
como um deleite para os olhos, mas, ao contrário, é um fator de aprisionamento. Este olhar da
mãe é bastante curioso porque nos leva a estabelecer o contraponto com o olhar de Miguilim.
Nem tudo é tão amplo nestes campos gerais, é o que parece nos sugerir a mãe do menino.
Vemos, neste conto, o olhar da criança, especificamente o de Miguilim, menino míope de
seus quase oito anos, e o do adulto que, embora provido da capacidade de visão - o que falta
a Miguili m – sente-se prisioneira do lugar, do Mutum, porque seus olhos inalcançam ou
perderam de vista a beleza que os olhos do menino alcançam. Enquanto que para Miguili m
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olhar não tem limites, para a sua mãe há muitas interdições proibindo-a de libertar-se. A visão
que esta tem do lugar está subjetivamente condicionada pela insatisfação que sente com
relação a sua vida neste espaço geográfico, ou seja, no Mutum. Como veremos, há uma tensão
familiar que urge em ser resolvida e isto é elemento de turvação para os adultos,
especialmente para a mãe. Por outro lado, o menino, que tem problemas de vista e, portanto,
dificuldades para se locomover sem atropelos e tropeços no seu espaço, consegue ver com
bastante liberdade e autonomia, sem que se sinta tolhido pela paisagem. Neste âmbito é que
esta novela chama especialmente a nossa atenção, no que ela oferece de ingredientes
subjetivos e interpessoais na construção de um olhar delicado e livre como o de Miguili m, em
oposição ao olhar da mãe que só se satisfaz na falta, na lacuna, no desejo, enquanto o do
garoto se maravilha ou sofre na presença do que lhe é oferecido.
A estória de Miguili m e de seu irmão Dito nos leva a pensar que a infância na obra
de Guimarães Rosa situa-se não só em um tempo específico, transformado mais tarde em
reminiscências, mas em um lugar que sempre fez parte da ocupação literária do autor, porque
sendo a movência o princípio por excelência de sua vida e obra, a infância constitui a
principal metáfora reveladora deste constante fluir e refluir. Da infância parte o homem e na
nostalgia dela estará sempre condenado, ao mesmo tempo que será por ela redimido. Na
última curva da vida, na dobra final é ainda para ela que ele se volta. É quando seu olhar,
como o de Miguili m antes de partir, retroage, num surpreendente e vigoroso golpe de vista, ao
lugar de onde saiu o menino, quando tudo era ainda o começo de tudo.
As lembranças que guardamos e com as quais dialogamos mais tarde são formas de
olhar para dentro, de introjetar as leituras que fizemos do mundo e dos outros. Primeiro
desenvolvemos o olhar de fora que tudo capta, para, depois, às vezes muito depois,
elaborarmos tudo o que este olhar captou. Miguil im parece não enxergar direito. O que
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significa isto no conto? O protagonista vê, intui e percebe o mundo a partir da ótica de um
garoto de oito anos. Mas, além disso, se o olhar da criança possui o seu próprio foco, em
"Campo geral", o personagem terá que lidar com um outro desafio: míope e "desastrado" o
garoto não cogita (como ninguém em sua família, e até mesmo os leitores) que muitos
atropelos em que se envolve devem-se ao seu olhar torto.
Sofrendo de uma forte miopia, o personagem vai se abrindo para outras
possibilidades de ver o mundo que o cerca porque o seu olhar é outro. De fato, o desvio da
visão atiça ainda mais as peculiaridades desta e mostra nesta novela como o olhar pode ser
desenvolvido, redimensionado, contextualizado. Enviesado o olhar, o corpo todo deve tratar
de olhar, ou de reaprender a fazê-lo. Miguilim é um personagem que vê o mundo
condicionado por uma limitação visual da qual só tomamos conhecimento ao final da estória.
Devido a sua miopia, ele vê o mundo que o cerca com um outro olhar que não é o esperado,
por exemplo, por seu pai. Assim, se a visão da criança já é determinada por um pensamento
pré-lógico que não acompanha o raciocínio instrumental, em Miguili m concentram-se estas
duas forças ou focos : o da infância (com todas as especificidades que ele contém) e o da
miopia que o leva a ver de um outro modo.
Miguili m é introspectivo. Toda a sua jornada no Mutum consiste em buscar respostas
para questões que o incomodam. Sua visão é para dentro, e somente com o incidente final da
novela, quando coloca os óculos, é que sua visão se direciona totalmente para fora. Na
verdade, é como se toda a novela fosse como uma preparação para este momento de visão
plena, que é o final. Ao partir, o garoto precisa lançar um último e demorado olhar sobre tudo,
para abraçar a dimensão de tudo. Neste sentido, é pertinente refletir sobre o significado deste
olhar do garoto antes de partir. Parece-nos que se trata de um olhar que abarca a totalidade
daquilo que ele nunca pôde ver. Só agora, partindo, é que ele recupera o visto, o entrevisto e
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o não visto. É um olhar para a infância que fica para trás. A partir daquele momento, ele seria
introduzido em outro universo, aprenderia a ler e a escrever.
O olhar, neste caso, é mais que um olhar físico; trata-se de um olhar que guarda para
a memória e que nada deseja perder. Como diz Lúcia Castello Branco, a respeito das relações
entre o olhar e a memória, "O olhar e a memória caminham lado a lado: afinal, o que é o
gesto de memória senão um olhar que se volta para o passado, na tentativa de resgatá-lo? O
que resta do sujeito da memória senão imagens, trapos do passado que o olho olha e vê passar
em direção ao que há de vir?" (BRANCO, 1994, p. 15)
Muito sugestivas são as passagens abaixo, que narram a chegada do doutor à aldeia
de Mutum e os diálogos entre ele e Miguili m:
Miguili m queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.
- Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? (ROSA, 1994, p. 540)
(...) - Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguili m...
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguili m, com todo o jeito.
Olha, agora!
Miguili m olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo ediferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozilhos de areia, a pele daterra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância (...)(ROSA, 1994, p. 541)
E, ainda esta comovente passagem final da novela:
Miguili m olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cimado morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; osolhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto dobrejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. OMutum era bonito! (ROSA, 1994, p. 542)
Miguili m revela, por meio desta metamorfose, a possibilidade de uma vida nova, de um
recomeço e de esperança, levando-nos a refletir sobre aquele otimismo heróico de que nos
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fala Marina Warner, ao se referir aos contos de fadas, ou seja, "um dia talvez sejamos felizes,
mesmo que não seja para sempre." (WARNER, 1994, p. 19)
Como temos observado, os personagens de Guimarães Rosa estão sempre em busca de
alguma verdade, e este processo de auto-conhecimento e de conhecimento do mundo
circundante não se dá simplesmente pela sua construção, mas sobretudo pela reconstrução da
linguagem, que tem a força de uma personagem em toda a obra de Rosa. Ela não diz sobre
algo, ela já é algo, dizendo-se, contradizendo-se, em busca da "matéria vertente". Ora, esta
predisposição, ou esta intenção para a verdade vem revestida de muitas formas. E uma delas é
o sentido da indagação, marcante em várias narrativas, dentre as quais se situa "Campo geral".
Mundo misturado. Se, para o adulto, viver em um mundo misturado já se mostra
como um problema, para a criança, significa a necessidade de fazer perguntas, que não param
de surgir, e de confundir o próprio adulto, a não ser que este consiga reelaborar suas respostas
dentro de um plano mais simbólico e imagético, adequado ao pensar infantil . Miguilim queria
saber "era só a diferença toda das coisas da vida." (ROSA, 1994, p. 493)
Por meio de um estudo do protagonista Miguil im e de sua relação com as questões
que o envolvem, procuraremos fazer uma leitura do universo infantil e de suas
particularidades: sua inserção no meio famil iar, os aspectos poéticos de sua linguagem, o
conteúdo filosófico de suas indagações, e finalmente a relação do adulto frente às
especificidades da criança. Deste modo, ficam evidenciados os sentimentos nem sempre
idílicos que fazem parte dos primeiros anos da vida da criança, bem como o medo, os
sobressaltos e as indagações de ordem metafísica que também acompanham a infância.
Guimarães Rosa não fala de uma criança de um só lugar, mas mostra que a criança
por ele tratada, a norte-mineira, é universal, porque suas tramas são as de sempre, com
características locais. Assim como o jagunço Riobaldo não é só um personagem típico ou
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tipo, mas ao contrário, traz em si as conotações de um homem universal, também as crianças
de Rosa dizem muito das crianças de todo lugar, resguardadas, sem dúvida, as singularidades
do seu topos e de suas condições culturais.
Embora queiramos revelar em "Campo geral" e nas outras estórias protagonizadas
pelas crianças o sentimento, não de exílio mas de celebração da infância, não podemos deixar
de admitir o fato de que criar um espaço para a infância não foi tarefa fácil e que, várias vezes
exiladas, expulsas do Paraíso, as crianças rosianas são em alguns momentos resgatadas para o
seu espaço sagrado. A infância transborda nos textos de Guimarães Rosa com uma vitalidade
e dinamismo que se refletem na própria linguagem sempre nova e inusitada. Rosa tirou a
criança do exílio e pela mão da palavra restituiu a elas a terra encantada a que têm direito.
6.2.1 Olhar para as pequenas coisas
Podemos dizer que as crianças das estórias de Rosa protagonizam narrativas que são
verdadeiras epifanias. À epifania está ligado o sentido do mistério que Rosa sempre
considerou parte colada à realidade. As crianças são dotadas de uma liberdade que lhes
permite criar seus próprios mundos, e deles extrair o que elas necessitam, em alguns casos,
até mesmo para sua sobrevivência. Miguili m, por exemplo, protagonista da novela, ao ganhar
"novos olhos" passa por uma espécie de ascese espiritual iniciada quando ele se depara com a
realidade da morte, reiterada e concentrada neste final iluminado e surpreendente que o autor
nos reserva. É a epifania do olhar, para o qual o garoto se prepara até que se torne merecedor
desse presente. O gesto de o menino olhar tudo antes de partir, agora com os óculos, permite,
não só a ele, mas a nós leitores, revermos o Mutum sob uma ótica nova. Porque durante toda a
estória, fomos conduzidos pelos olhos míopes e meigos de Miguilim, e, mais do que uma
visão objetiva das coisas, o que tivemos foi uma visão subjetiva, motivada pelo olhar interior
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do menino, que não podia enxergar direito. Ao final da estória, somos conduzidos em nosso
olhar a fazermos uma re-visão do lugar e da transcendência conquistada pelo protagonista.
“Campo Geral” é um valioso exemplo dessa epifania do olhar ou propiciada pelo olhar.
Esta novela é também um convite a que olhemos as coisas pequenas e as pequenas
coisas da vida. O viver de Miguili m e de sua família se dá de forma devagar, centrado num
ambiente geográfico cercado de seres aparentemente insignificantes: o tatu, os cachorros, as
formigas, o rastro branco dos caramujos, a cachorra Cuca- Pingo- de- Ouro, o cachorro Gigão,
o papagaio Paco-o-Paco e outros que compõem o cenário de “Campo geral” .
Na leitura desta novela não nos cabe a busca de grandes acontecimentos, mas um
olhar que extraia de uma situação familiar conflituosa, outros tipos (eixos, focos) de conflito
que vão se processar na alma do menino míope à medida que ele observa, pelo ângulo de uma
visão extremamente poética, os acontecimentos exteriores.
É curioso notarmos que há uma relatividade no que diz respeito aos olhares da mãe e
de Miguili m. Este, embora não soubesse diferenciar bem o que era um lugar bonito de um
lugar feio, desejava mostrar à mãe que o Mutum era um lugar bonito, mas para a mãe o
Mutum era um lugar onde ela se sentia prisioneira, sem perspectivas de libertar o seu olhar,
pois não podia ver o que havia por trás das montanhas. É o que mostra a passagem:
Mas sua mãe, que era linda e com os cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter deviver ali . Queixava-se. Principalmente nos demorados meses chuvosos, quando carregava otempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem,qualquer dia, de tardinha, na hora do sol entrar. – ‘Oê, ah, o triste recanto...’ – elaexclamava. (ROSA, 1994, p. 465)
Deste modo o Mutum se dá a conhecer ao leitor através de duas possibilidades: pelo olhar da
mãe e pelo olhar do menino. Miguili m tinha um olhar diferente, conquistado, quase sempre, a
partir de suas indagações. A passagem a seguir diz respeito a uma viagem que o menino faz
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com o tio. No caminho de volta, tem a felicidade de se encontrar com alguém que já estivera
no Mutum e elogia o lugar, deixando o garoto maravilhado.
Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: oque o homem tinha falado – que o Mutum era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essacerteza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lodesse jeito de cor, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. (ROSA, 1994, p. 465)
Esta visão que o menino vai construindo do lugar nos leva, pouco a pouco, a uma
apreciação dos detalhes que compõem o ambiente em que ele vive. Por isso é muito
significiativo apreciarmos a forma como as pequenas coisas são apresentadas pelo narrador,
porque elas são valorizadas no que concerne ao seu espaço geográfico, mas aliadas também a
um outro espaço, enormemente abordado na obra rosiana, que é este espaço existencial,
metafísico, cujas complexidades Miguili m tão precocemente revela.
Se há uma situação dramática que configura a novela, em torno desta podemos
apreciar as minúcias de uma vida vivida em campo aberto, para a qual refluem diariamete os
elementos da natureza apresentados por um narrador que muitas vezes encarna a miopia de
Miguili m, mas que, genialmente, mantém a distância necessária para poder traduzir as
experiências do menino, com um olhar que vai além dos olhos míopes deste. Neste sentido, a
expressão "A gente..." tão reiterada, é sintoma de uma cumplicidade entre o protagonista e o
narrador. E curiosamente são estes olhos míopes que revelarão os elementos pictóricos mais
elaborados e esteticamente formulados da novela. Se a miopia constitui na vida diária uma
limitação de ordem física, - Miguilim esbarra nas coisas, e não consegue realizar tarefas com
eficiência, - nesta narrativa, por outro lado, o mundo visto pelos olhos de um menino míope é
impressionantemente redescoberto e revelado. Há um modo de ver que ultrapassa as
limitações da miopia, e curiosamente, talvez seja justamente a miopia o elemento de
transcendência necessário para que o menino possa ver o mundo da forma como o vê.
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Estamos diante de uma situação constritiva, mas que, por outro lado, ou juntamente com esta,
catalisa uma situação de libertação de outro olhar. Miguili m só vê como vê porque é míope? É
uma pergunta que sempre nos ocorre na leitura desta novela, e uma das respostas é que a
miopia do menino tem um valor metafórico, que funciona como a alegoria de uma visão
ampliada e especial.
Este jeito fisicamente desajeitado de ver o mundo e existencialmente profundo de
questioná-lo faz-nos pensar em uma expansão do olhar. O olhar é para todos, atributo de
todos, privilégio de todos. Mas é, sem dúvida, uma questão de aprendizado, deve ser
conquistado, aprendido. Merleau-Ponty nos ensina que:
O sentido é invisível, mas o invisível não é o contraditório do visível: o visível possui, elepróprio, uma membrura do invisível, e o in-visível é a contrapartida secreta do visível, nãoaparece senão nele, é o que me é apresentado como tal no mundo – não se pode vê-lo aí, etodo o esforço para aí vê-lo o faz desaparecer, mas ele está na linha do visível, é a sua pátriavirtual, inscreve-se nele (em filigrana) (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 200)
O fato de um garoto como Miguili m ver o mundo com tanta abrangência oferece ao
leitor uma visão pormenorizada dos cenários, bem como de suas experiências, e faz-nos crer
uma vez mais que os propósitos literários de Guimarães Rosa revelam extraordinariamente
seus propósitos de vida, suas crenças e esperanças. Porque no caso desta novela vimos o olhar
do menino anelado ao do seu criador. Este último emprestou ao primeiro o seu olhar e com
ele retornou à sua própria estória, abrindo para o leitor um campo de visão ao qual ele só teve
acesso graças a uma perspectiva especial, que vê justamente onde não é possível ver. Ao
falarmos deste olhar que o criador oferece ao seu personagem, é importante que nos fixemos
nas últimas passagens do conto, quando o médico Dr. Lourenço chega ao Mutum e,
percebendo a dificuldade do menino, tira os seus óculos e os coloca sobre os olhos deste
menino. Em “Cara- de- Bronze”, de outro modo, este empréstimo do olhar pode ser também
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observado: é quando o jovem sai para ver as coisas todas da vida e volta para contar para o
seu patrão que já não podia mais ver.
6.2.2 O menino no homem
Alberto Caeiro dizia que "a Eterna Criança é o Deus que faltava, o humano que é
natural, o divino que sorri e brinca. E assim vamos pelo caminho que houver, saltando e
cantando e rindo e gozando o nosso segredo comum que é o de saber, por toda a parte, que
não há mistério no mundo e que tudo vale a pena..." (PESSOA, 1986, p. 144)
As influências do menino João Guimarães Rosa estão bem presentes em toda a sua
obra, e especialmente em Miguili m, novela muito apreciada pelo autor. Como Miguilim, o
autor sofreu na infância a incompreensão paterna e a dificuldade causada pela miopia. É
verdade que a infância de Miguilim é um desdobramento de muitos aspectos da infância do
autor, entre os quais podemos ver as brincadeiras, as superstições, as crendices, a relação com
a família, a liberdade na relação com o lugar, mas ela aponta para um desdobramento ainda
muito mais amplo com a infância das crianças do interior brasileiro e, sem dúvida, para uma
outra: a da infância primordial, não localizada em nenhum espaço geográfico em particular.
Nesta narrativa há, diluída na voz do Menino, a voz de um outro menino que cresceu.
Trata-se da voz biográfica do menino João Guimarães Rosa, que, aproveitando-se deste
presente narrativo, traz de volta a sua infância. Não é à toa que esta é a sua novela preferida, e
que nela há tanto de sua meninice. O que encontramos nesta narrativa são três olhares
diluídos: o do menino que cresceu e volta para contar, olhando para trás, o do menino que
ainda vê limitado pela miopia, e o do menino que aparece no final da narrativa, e cujos olhos,
curados, serão abraçados pelo futuro. O menino e a biografia do autor se confundem às vezes,
resultando em um apanhado de lembranças, as quais, renovadas pela ficção, fazem reviver
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inclusive pessoas que foram do convívio do autor, como a avó, por exemplo, figura forte,
bizarra, cuja religiosidade fica bem caracterizada no texto, além da descrição do seu quarto,
fechado e escuro: mistério para o menino Rosa, mistério para o menino Miguili m. As palavras
do próprio autor nos revelam essa empatia com o menino Miguili m: "Aquela miopia de
Miguili m foi minha. Escrevi aquela novela, em quinze dias, em lágrimas. Chorava muito
enquanto a escrevia. Lágrimas sentidas, grossas, descidas do fundo do coração." (DANTAS,
1975, p. 27)
Também este último é uma expansão do próprio autor, de sua criatividade, de sua
poetização do mundo. Em uma carta-resposta a sua prima Lenice, moradora de Curvelo,
Guimarães Rosa confessa: "desde menino, muito pequeno, eu brincava de imaginar estórias,
verdadeiros romances; quando comecei a estudar geografia – matéria de que sempre gostei –
colocava as personagens e cenas nas mais variadas cidades e países; um faroleiro, na Grécia,
que namorava uma moça no Japão, fugiam para a Noruega, depois iam passear no México...
coisas desse jeito, quase surrealistas". (GUIMARÃES, 1972, p. 27)
Assim também Miguili m gosta de pensar, inventar estórias, principalmente como
uma forma de reinventar o lugar onde vive, e de se salvar das situações difíceis. Como o
autor, Miguili m manifesta forte tendência à interiorização e amor pela natureza, por seus
elementos grandes e pequenos. Apesar de sua dificuldade visual, o mundo é sorvido a cada
momento por ele. Mas é com o olhar de dentro que ele vai pensar e rever tudo o que o encanta
e também tudo o que o assusta. Se para Miguili m a relação com o pai é dificultosa, talvez o
próprio autor já tenha antecipado a dificuldade que pode ser para uma criança sensível e
imaginativa conviver com as imposições do mundo adulto. É o que ele afirma a respeito de
sua infância:
Recordando o tempo de criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo osmais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada.(...) Mas
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tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com asegurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginarestórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturandoas melhores coisas vistas e ouvidas. (GUIMARÃES, 1972, p. 27)
Nesta parte do trabalho chamamos a atenção do leitor para um tema que desponta
nesta novela, que é a concepção da infância e a forma como esta tem sido considerada ao
longo dos séculos. “Campo geral” , não obstante o seu aspecto lírico, está carregada de
dramaticidade, sobretudo no que diz respeito à forma como Miguilim é tratado, olhado e,
muitas vezes, desrespeitado pelo seu pai. Muitas passagens dão-nos aquela noção da criança
considerada adulta precocemente, ou, se não, de uma criança que é sobrecarregada pelas
perversidades de um universo adulto no qual ela não está de modo algum inserida, mas do
qual tem que obrigatoriamente participar, para a sua sobrevivência e de sua família. Miguili m
atrai para si, nesta estória, todo o ódio do pai. Bode expiatório, é ele o alvo para onde o pai
infeliz atira seu fel mais amargo. Embora não seja uma criança frágil nem retraída, Miguili m é
um garoto que acumula pensamentos e perguntas, após pescá-las no ar. Sua visão de mundo é
lírico-poética, e justamente devido a esta visão, não entra em acordo com o mundo dos
homens que o cercam, principalmente o de seu pai, que cria incessantes interdições no
caminho do menino, ainda não ciente de que este não enxerga bem. Os castigos e os maus-
tratos sofridos pelo menino míope revelam uma tentativa de aniquilamento da infância, de
corrosão da vitalidade poética que permeia os movimentos da criança. Em lugar da
brincadeira e da fantasia, é para o trabalho com a enxada que o pai o leva. Não apenas por
necessidade de sobrevivência, mas porque uma criança como Miguili m é um incômodo para
um homem como o seu pai, que, dadas as circunstâncias da vida, perdeu qualquer contato
com a sua criança interior. Os estudos sobre a construção do conceito de infância ao longo dos
séculos nos ajudaram a compreender algumas dinâmicas fomentadoras do exílio desta em
“Campo geral” . Este tema, embora não seja aqui amplamente abordado, merece enfoque mais
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minucioso por parte de todos que se dedicam à educação de crianças, porque fornece bases
históricas acerca do papel da criança na sociedade e na família.
De acordo com Ariès (1978), em seu estudo acerca da sociedade européia, esta
parecia ainda desconhecer a infância. Até o século XVIII, a criança era reconhecida como um
adulto em miniatura. Não se concebia a infância, muito menos uma fase chamada infância, o
que levava a criança a uma integração precoce nas atividades ( de um modo geral ) dos
adultos. Nesta época a tradição oral era muito importante e os divertimentos estavam
associados à utilização de material literário de tradição oral que incluíam contos, fábulas,
mitos, lendas, jogos e danças, e a criança era neles incluída. Deste modo usufruíam do lazer
que esta tradição proporcionava, quanto ao aspecto didático, exortativo, uma vez que as
estórias eram contadas também no intuito de tentar trazer à luz questões da realidade para as
quais não havia uma explicação mais objetiva. É nesse momento que a criança, ou o conceito
de infância é construído. A concepção da infância como uma idade servil e passível de
humilhações está impregnada na história das mentalidades. Já houve várias épocas em que a
criança era vista como alguém a ser punido. A prática aviltadora do castigo corporal vem de
longa data e se apresenta ainda hoje sob as formas mais sutis. Vem de longa data a história de
punições à criança. Analisando a história da disciplina do século XIV ao XVII, Philippe Ariès
faz duas observações importantes. Primeiramente ele se refere a uma disciplina humilhante. A
partir do século XV surgem simultaneamente duas idéias novas: “a noção da fraqueza da
infância e o sentimento da responsabil idade moral dos mestres.” (ARIÈS, 1981, p. 180) Ora,
respaldados por estes dois princípios, o castigo corporal tornou-se uma característica da nova
atitude diante da infância.
Em primeiro lugar, uma disciplina humilhante – o chicote ao critério do mestre e aespionagem mútua em benefício do mestre – substituiu um modo de associação corporativaque era o mesmo tanto para os jovens escolares como para os outros adultos. Essa evoluçãosem dúvida não foi particular à infância: nos seculos XV-XVI, o castigo corporal se
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generalizou, ao mesmo tempo em que uma concepção autoritária, hierarquizada – em suma,absolutista – da sociedade. Contudo, mesmo assim, restou uma diferença essencial entre adisciplina das crianças e a dos adultos – diferença que existia nesse grau durante a I. Média.Entre os adultos, nem todos eram submetidos ao castigo corporal: os fidalgos lhe escapavam,e o modo de aplicação da disciplina contribuía para distinguir as condições sociais. Aocontrário, todas as crianças e jovens, qualquer que fosse sua condição, eram submetidos a umregime comum e eram igualmente surrados. Isso não quer dizer que a separação dascondições sociais não existisse no mundo escolástico. Ela existia aí como nos outros lugarese era igualmente marcada. Mas o caráter degradante para os adultos nobres do castigocorporal não impedia sua aplicação às crianças. (ARIÈS, 1981, p. 181)
Assim, também ainda hoje, as crianças continuam sendo castigadas, e, como dissemos,
não são poucas as obras que tratam dos castigos à infância. Um exemplo é a protagonista de A
hora da estrela, de Clarice Lispector, que maltratada pela tia, passa a vida como que espiando
uma eterna culpa, incutida pelos afectos produzidos em seu corpo.
Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo: a tia lhe dando cascudos noalto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital.Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batiamas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que não secasara por nojo – é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um diaa ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperandohomem. (LISPECTOR, 1995, p. 43)
Além disso, queremos enfatizar que olhar a infância por meio de um veio literário
possibilitou-nos uma compreensão muito mais ampla do que realmente constitui ser e estar
criança, ou seja, a leitura desta comovente prosa poética, construída com uma linguagem
intimamente alinhavada às dinâmicas próprias da infância, trouxe-nos muitas indagações
sobre a situação da criança ao longo da história, o que nos levou a pesquisar sobre a
concepção desta no Ocidente, como e quando ela surge como alguém separado do adulto,
como ela era vista e tratada pela sociedade e pela família, e as modificações pelas quais o
conceito de infância veio sofrendo no decorrer dos séculos.
Seguindo a trilha destas reflexões, buscaremos um diálogo entre a luz e a sombra que
permeiam o universo infantil, representado aqui pela voz do protagonista Miguili m.
Certamente também o protagonista de “Campo geral” é vítima do olhar punitivo, que o faz
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sentir-se absolutamente incompreendido, fragmentado, afetado por um olhar que o repele e o
cala. O narrador, bastante envolvido com a trama, registra os esquemas punitivos do pai e o
olhar de Miguili m diante destas provações:
Diante do pai, que se irava feito um fero, Miguili m não pôde falar nada, tremia e soluçava; ecorreu para a mãe, que estava ajoelhada encostada na mesa, as mãos tapando o rosto. Comela se abraçou. Mas dali j á o arrancava o pai, batendo nele, bramando. Miguilim nem gritava,só procurava proteger a cara e as orelhas; o pai tirara o cinto e com ele golpeava-lhe aspernas, que ardiam, doíam como queimaduras quantas. Miguili m sapateando. Quando pôderespirar, estava posto sentado no tamborete, de castigo. E tremia, inteirinho o corpo (...)(ROSA, 1994, p. 470)
Também esta cena revela a força que o garoto precisa puxar para si, num momento de
constrangedora punição. Chama-nos a atenção novamente a voz do narrador, que, neste caso,
revela-se cúmplice e diluída à do protagonista:
O dia estava bruto de quente, Miguilim com sede, mas não queria pedir água para beber.Sempre que a gente estava de castigo, e carecia de pedir qualquer coisa, mesmo água, osoutros davam, mas, quem dava, ainda que fosse a mãe, achavam sempre de falar algumapalavra de ralho, que avexava a gente mais. Miguili m estava sujo de suor. Mais um pouco,reparou que na hora devia de ter começado a fazer pipi na calça; mas agora nem estava comvontade de verter. (ROSA, 1994, p. 470)
A criação de um personagem infantil com a força de Miguilim revela mais que um
processo de construção de personagens, um desvelamento do menino que mora no autor.
Deste modo, é possível dizer que esta narrativa é um profundo e afetuoso diálogo entre
Guimarães Rosa e o menino Miguili m, mas, sobretudo, um diálogo entre o homem Rosa e o
menino que nele nunca parou de brincar. O aspecto lúdico de sua linguagem é a expressão
disto, ou seja, Miguilim recria Guimarães Rosa na mesma proporção em que é criado pelo
autor.
Apesar das mazelas, a infância de Miguili m ainda se oferece como um lugar de
sonho e de devaneio. Ao contrário do mundo dos adultos, o seu mundo lhe fornecia
ingredientes para o seu eu-poeta crescer. Aliás, esta tensão entre o mundo da criança e o
232
mundo do adulto é bastante acirrada nesta estória. Na novela, temos uma poética da infância,
uma poética do devaneio da infância, representada pela voz de Miguili m e muitas vezes do
seu irmão Dito. Por isso sua fala transborda no texto, porque é a fala do poeta, ainda não
sufocada pela daquele que deixou de sê-lo. Miguil im vive no limiar da sua poesia, chocando-
se constantemente com a aspereza dos que cresceram. Como Peter Pan, ele não queria crescer,
"de ser pessoa grande, a conversa das pessoas grandes era sempre as mesmas secas, com
aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas." (ROSA, 1994, p. 480)
Na leitura de "Campo geral", a presença de Miguilim e seu irmão Dito trouxe-nos a
certeza de uma indagação profunda sobre as questões mais cruciais da existência, num nível
similar ao de Grande Sertão: veredas, mas realizada por crianças em tenra idade. Este fato
nos chamou muito a atenção, porque na leitura de Grande sertão: veredas o que mais
encontramos são questionamentos e autoquestionamentos. Quem os faz é Riobaldo, que,
impedido pela necessidade de narrar levanta problemas, toma posse do discurso durante toda
a narrativa. Conhecendo os protagonistas de "Campo geral", especialmente Miguili m,
percebemos que este desejo de indagar não era privilégio de um jagunço que chegara à
maturidade, como ocorre no Grande sertão: veredas, mas algo comum também nas crianças.
E que aliado a este indagar - antecedendo-o e sucedendo-o-, havia um olhar que buscava não
só as coisas vistas, mas as entrevistas. Assim sendo, foi possível estabelecer algumas
comparações entre este olhar de que estamos tratando e aquele outro, turvo, com o qual
alguns personagens adultos, diante das crianças, parecem ver o mundo nas narrativas em
questão.
Intocável permanece a infância, no seu lugar, na sua imortalidade. Cresce o homem,
e o menino permanece. Muitos passam a vida tentando recuperar esse lugar, redimensioná-lo,
trazê-lo para o tempo. Pela ótica da infância temos o reino desencantado do adulto. Miguilim
233
é um pensador, e, ao lado do seu irmão Dito, recria o universo; ele constrói uma metafísica
própria da infância em que perpassam dúvidas, medos, sobressaltos e alegrias. Cremos ser
esta novela uma celebração da infância, uma vitória desta sobre as sombras que a envolvem.
Guimarães Rosa, bem o sabemos, nunca deixou para trás o menino que foi. Se
olharmos todo o conjunto de sua obra, o que fica é o aspecto lúdico da linguagem, refletindo
este espírito do menino que sobrevive às situações dramáticas. Resvalando pela
dramaticidade da vida, brota o sentimento lúdico, do brincar com as próprias agruras do
destino. Maior exemplo disso, não precisamos ir longe, é a própria linguagem que se torna
uma irreverência sofisticada, um desaviso, uma poeticidade, uma estranheza, como o é o
pensamento da criança: mágico, pré-lógico, respondendo a sua própria forma de estar no
mundo.
234
CONCLUSÃO
Este trabalho é a expressão de um caminho que temos trilhado desde a primeira
leitura feita da obra de Rosa, iniciada com a palavra NONADA, que abre o romance Grande
sertão: veredas. Tal palavra introduziu-nos, não somente neste romance do autor, mas no
conjunto de sua obra. Ponto de partida, é ela que nos tem levado a reinventar um olhar sempre
novo para cada situação narrativa. Diante de NONADA, muitos conceitos podem e precisam
ser relativizados. O que parece ser uma verdade, passa a ser questionado. Por trás da
ludicidade deste vocábulo, instaura-se certa desordem no universo do leitor, que passará a
seguir um caminho em que a verdade, quando se apresenta, é em estado de tensão e de
questionamento. O Real é NONADA. Negação quase dupla. NO e NADA. A porta que se
abre para a travessia é esta palavra estranha, por meio de cujos significados possíveis
apreciamos os conteúdos e personagens das obras em questão. De fato, a sedução do olhar
iniciou-se por esta palavra, como se fosse uma sentença, uma ordem, uma palavra que
inaugura, consagra e sintetiza todo o espírito da obra de Guimarães Rosa. Atentos aos seus
campos semânticos fizemos a perigosa e encantadora travessia pelo sertão que é o texto de
João Guimarães Rosa, pois NONADA transborda em possibil idades. Além de introduzir a
narrativa, ela abre a comporta de inúmeras outras palavras "desvirtuadas" de seus caminhos,
assim como são desvirtuados os personagens que elas vão narrar. Porque se viver é muito
perigoso - e os personagens o revelam - a decifração das palavras não o poderá ser menos.
O diálogo com as personagens rosianas está intimamente ligado ao diálogo com a
linguagem, ou seja, ambos constituem os dois lados do tecido deste texto repleto de alinhaves
imprevisíveis . Quando ouvimos o personagem, ouvimo-lo por meio de uma linguagem que é
o seu retrato, ou seja, a linha que o tece. Por isso, ao falarmos de olhar, não queremos dizer
que olhamos alguém ou uma situação narrativa apenas, mas a própria linguagem, que tem a
235
força de um personagem e de um conflito narrativo e que, como tal, precisa ser olhada e
revista. Assim sendo, o leitor de Rosa precisa considerar a sua linguagem como corporifação
da própria trama, como um personagem-esfinge, que já se insinua no espaço inicial da
primeira página, mostrando e se escondendo, e, ao mesmo tempo esfacelando/compondo as
partes do Real que se estendem ao longo deste texto, que, impossível de ser mapeado pelos
signos da referencialidade, requer e propõe outros para ser atravessado.
Como os personagens, a linguagem que os narra é o ponto de partida do processo de
sedução e de educação do olhar, pois estranhamente o olhar é chamado a olhar, a partir do
mistério que se impõe, do susto, do impacto. O leitor de Rosa é aquele que se abre para os
jogos da sedução e que se dispõe não aos atalhos, mas às trilhas difíceis e inóspitas, fazendo
de uma travessia em que a primeira dificuldade é o deciframento da linguagem, mas que não
deve ser confundida com simples barroquismos do autor, se não, como um propósito literário
consciente e definido de construir um texto que revele as dinâmicas insuperáveis das relações
humanas com o seu universo, sempre se construindo e se desconstruindo. Para tal propósito,
um léxico comum não seria suficiente, como não o seria uma sintaxe ordenada pelos padrões
gramaticais. Esta não cumpriria a tarefa de revelar as intrincadas relações humanas, - o
impossível que é o homem. Se, como afirmamos no início do nosso trabalho, o olhar está
ligado ao perguntar, ao desejo de entender, o texto de Guimarães Rosa concentra a
potencialidade deste questionamento. NONADA introduz-nos na pergunta, e lança-nos nos
territórios mais improváveis das polifonias linguísticas e semânticas de Guimarães Rosa. No
entanto, no final de Grande sertão: veredas, NONADA minimiza-se, porque agora o que
importa é todo o caminho percorrido. A palavra de ordem, então, passa a ser TRAVESSIA.
“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”
(ROSA, 1994, p. 385)
236
É a partir desse caminho nem sempre fácil, que é a leitura da obra de Rosa, que
inauguramos uma nova forma de ver e de ler a obra literária, porque se trata de um texto que
espera do leitor uma decifração. E para decifrar é preciso saber olhar, sobretudo, de vários
pontos de vista. Nas reiteradas leituras da obra de Rosa que temos feito não conseguimos
decifrar os mistérios por ela propostos, mas o que temos alcançado é a certeza de que o
mistério é a maior porção da Realidade e que, mais que ser decifrado, ele quer mesmo é ser
reconhecido como mistério. A obra rosiana, embora misteriosa e enigmática, não tem o
aspecto devorador da esfinge e sim o que a esfinge exige de coragem e inteligência sensível.
Como a esfinge, ela espera que nós penetremos na cifra com a força de quem entra num
território desconhecido, mas que, ao mesmo tempo, diz respeito às questões que nos são
familiares. O texto rosiano, este sertão fechado, dificultoso e perigoso oferece-nos também
veredas e campos gerais; atravessá-lo é um exercício, uma educação do olhar.
Mas existe sempre a esperança do encontro com a vereda, mesmo que seja muito
perigosa a travessia literária. Sem dúvida precisaremos de um olhar incansável, que permeie
mais descaminhos que caminhos certos, que não seja turvo para ver as linhas ocultas,
invisíveis por trás daquelas outras, visíveis, e com elas pactuadas. O desafio é um
aprendizado, e para nós significa também aprender a olhar. Certamente fomos levados pela
textura destas palavras e pelo que elas só sobreavisam e evocam, sem o conforto das certezas.
NONADA. Deste modo, pretendemos ler a obra e os personagens de Rosa com um olhar que
tenha buscado recompor a unidade presente nos fragmentos, a fim de que o nosso olhar
apreendesse a força que conduz e recompõe, a cada nova estória, esta unidade. Portanto,
buscamos, na escritura deste trabalho, o emprego de uma linguagem mais liberta das amarras
da referencialidade, porque compreendemos a obra rosiana não como um objeto a ser
estudado, mas como um texto que não pára de agir, de se criar e de se recriar. Para falarmos
237
da obra rosiana foi preciso partir, sobretudo, das belíssimas e singulares imagens poéticas que
brotam ininterruptamente do seu texto, dos textos que elas fazem extrair de nós, e da
promessa de novos olhares que elas nos despertam. É importante ressaltar que todas as nossas
reflexões e observações sobre a obra deste autor surgiram da percepção de que há em suas
estórias um olhar profundamente atrelado a um perguntar e a um indagar, e que neste sentido,
o questionamento se coloca também como uma verdade que acompanha o processo
existencial e de aprendizado dos personagens, e, acreditamos e esperamos, também dos
leitores que sobre ela se debruçam.
Não é à toa que as palavras “margens” , “cimos” , “terceira margem”, “de lá”,
“travessia” , e outras, indicadoras de lugares geográficos, são tão presentes na obra rosiana.
No entanto, além da referência geográfica, não indicarão estas zonas de conflito aqueles
lugares que os olhos precisam muito trabalhar para ver, para buscar? Como podemos
observar, nenhum destes lugares é confortável. Onde estará o horizonte destes homens de
Rosa? Em que áreas de conforto eles habitam? Ou melhor, existem espaços de conforto para
eles? O que podemos dizer é que nos rincões do Brasil , estes horizontes se expandem, porque
a travessia deles não pára, e os seus olhares atravessam verdadeiras áreas de risco, buscando
os regaços das veredas, o que nos leva, inclusive, na observância dos aspectos gráficos e
sonoros deste vocábulo, a abstrair de vereda a palavra “verdade”, também tão preciosa no
texto rosiano. Não é à toa também que grande parte desses personagens, incluindo as crianças,
estão passando por algum lugar. Em trânsito, seguem para outras paisagens, de onde se
vislumbra a possiblidade de aprendizados variados, dependendo de cada personagem e de sua
história pessoal. O que não podemos esquecer é que esta imagem do homem ou da criança
que sai do seu espaço e se destina a outro está muito ligada ao ato de aprender, de
redimensionar os pontos de vista ou de enfoques, de reaprender a olhar. Acreditamos que toda
238
a trajetória narrativa de Guimarães Rosa é perpassada por uma lição do olhar. A radicalização
da linguagem, a singularidade dos personagens, as artimanhas dos discursos, os encaixes
narrativos, a abrupta inversão da sintaxe, o novo posicionamento do narrador são apenas
alguns pre-textos para a realização de um projeto humano/literário cuja travessia só faz
sentido se desencadear esse processo contínuo que é o da construção e desconstrução do
olhar.
Nesse sentido, as reflexões sobre as narrativas em foco não pretenderam ser um
discurso que isolasse uma estória da outra, mas que pudesse propiciar ao leitor, na medida do
possível, uma compreensão e uma visão do todo constituinte destas narrativas, uma vez que
entre elas, como tentamos mostrar, há um diálogo muito coeso e bem articulado, o que, aliás,
é um atributo da obra de Guimarães Rosa. Vale enfatizar que não tivemos o intuito de realizar
um trabalho pautado em quaisquer teorias seja no que diz respeito à Linguística, à Estilística,
ou mesmo ligadas a outras áreas do saber como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia,
entre outras, embora reconheçamos que uma obra como a deste autor está aberta para
inúmeras especulações em todas estas áreas do conhecimento humano. Certamente que estas
áreas constituíram-se como fontes inspiradoras no sentido de ampliar o nosso foco de leitura.
Porém, a nossa principal inspiração foram os procedimentos da própria linguagem literária,
especificamente a de Guimarães Rosa, e os traços com que ela trabalha. Captar o olhar dos
personagens construído pela abordagem literária foi o nosso maior propósito, o que não nos
impediu, todavia, de buscarmos em outros parâmetros elementos que nos ajudassem a
construir uma melhor configuração de todas as implicações que envolveram o tema que nos
propusemos apreciar. No entanto, o que nos interessou, de fato, foi apresentar as crianças
construídas por um autor como Guimarães Rosa, que pretendeu levar a palavra aos extremos
do dinamismo e da inquietação, muito similares à da criança real. Neste sentido, importaram-
239
nos sobremaneira os seus movimentos, suas alegrias, dúvidas, medos, inquietações, e a forma
como a literatura os incorpora, porque tais personagens, tirando-nos de um lugar conhecido,
abriram-nos caminhos singulares para que pudéssemos dialogar de modo mais genuíno e
revitalizador com outras formas de ser e de estar no mundo.
Vale também lembrar que os aspectos anímicos com que estes personagens são
tecidos fazem parte de toda esta incrível galeria de perspectivas pouco vislumbradas pelo ser
humano, atrelado aos conteúdos do seu dia-a-dia. Preferimos pensar que, longe de se
caracterizarem como personagens fantásticos ou absurdos, estes personagens apontam, de
forma radical, para uma perspectiva nova de escuta das vozes de todos aqueles que são
diferentes. Comunicarmo-nos com as crianças é, antes de tudo, comunicarmo-nos com o que
há de especial em nós, e que ainda não foi tocado pela civil ização moralizadora;
comunicando-nos efetivamente com elas, somos convidados a estabelecer contato com o
nosso ser poético e com o que restou- se assim podemos dizer – de insólito e original em nós.
Na verdade, não se trata de enfatizar um sentido do que há de exótico na criança, nos
loucos, nos cegos, enfim naqueles personagens deslocados de Rosa, mas de nos inclinarmos
ao que há de comunicativo-expressivo na sua presença e no seu discurso, o que extrapola o
lugar-comum dos discursos já desgastados e alienados em função de um sem-número de
imposições e de condicionamentos típicos da sociedade civil izada. Os seres de Rosa fazem
parte de um outro nível ou espécie de homem; por isso vivem todos à margem, destituídos
daquela malícia que vamos aprendendo à medida que as pressões sociais nos atropelam, e
que, em contrapartida, nos destituem do contato com a nossa natureza mais secreta, que é
singular.
Infelizmente, à medida que nos vamos tornando adultos, o mundo deixa de ser
misterioso, e nós mesmos parecemos destituídos de mistério. Por isso interessou-nos tanto
240
uma leitura destes personagens insólitos na obra de Guimarães Rosa, pelo sentimento de
mistério e de encantamento que neles transborda, pelo que eles nos fazem lembrar, pelo que
nos restituem, por tudo aquilo que ainda resiste em nós. Nas narrativas em foco foi possível
vizualizarmos o mundo adulto pelo olhar da criança, que nos diz em que podemos nos
transformar mas no que nunca deixamos de ser: "Menina grande..." (ROSA, 1995, p. 403).
Meninos grandes. Longe de ser um conto sobrenatural ou fantástico, “A menina de lá”, por
exemplo, mostra-nos, sobretudo, o olhar da criança sobre o mundo adulto, e as recíprocas
dificuldades de adaptação de um ao universo do outro. Sem dúvida, há um elemento bastante
insólito, com o qual o leitor de Rosa precisa se acostumar. Mas para nós tal insolitez revela as
forças anímicas de que dispõe a criança, os velhos, os cegos e outros seres localizados na
“terceira margem” da vida, seja no âmbito da ficção ou da realidade.
Os personagens de Rosa, estes loucos iluminados, são uma explosão radical da razão,
uma despretensão pelo racional como o imaginamos, um intento de dizer, não verdades
únicas, mas de revelar desconfianças acerca da verdade instituída. Para o autor, “a espécie
humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou
alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?" (ROSA, 1994, p. 438) De onde
brotam os questionamentos deles é do mesmo chão de onde brota a linguagem. E esta é o
reflexo de um novo modo de olhar. Em Guimarães Rosa, a ontologia e a linguagem são uma
coisa só e uma desencadeia a outra. Grande sertão: veredas, por exemplo, é o palco das
elucubrações filosóficas do homem, que, na roupagem de um sertanejo, extrapola as
peculiaridades locais e atinge o homem de todo lugar. É a este homem que temos tentado nos
achegar, olhando-o com mais delicadeza, com mais abertura, ou seja, tentando abrir os
campos da visão. E, na infância deste homem, tentando descobrir o que ele vê que não vemos.
De que lugar ele vê que ainda não estivemos? Que campos gerais abrange o seu olhar, e que o
241
nosso não reconhece? Se como diz o autor "Os olhos da gente não têm fim." (ROSA, 1994, p.
439), vale pensar que a compreensão das coisas é um processo que realmente só se concretiza
na sua travessia, quando podemos exercitar todas as potencialidades da nossa arte de olhar. O
resto é NONADA.
Guimarães Rosa, parece-nos, ao possibil itar a seus personagens procedimentos tão
singulares, liberta-os dos limites impostos pela razão. Porque, sem dúvida, o que encontramos
nestas estórias são criaturas insubmetíveis às artimanhas de uma razão que, longe de
iluminar, fragmenta; ao contrário, o mundo delas não pode ser facilmente demarcado,
mapeado, analisado, assim como a própria paisagem em que elas estão inseridas, assim como
a própria linguagem que as representa, ou o próprio narrador que as narra. Exemplos típicos
são as próprias expressões indicadoras de espaço - "A menina de lá", "A terceira margem do
rio", "Os cimos", "As margens da alegria" - e outros termos que conotam lugares ou situações
incomuns, indefinidos - "Nenhum, nenhuma", “Campo geral" –, bem como expressões que
desconstróem o discurso clássico e tradicional, como é exemplo "Fita-verde-no-cabelo", esta
"nova velha estória" que desconstrói o já consagrado, ou ainda expressões as mais variadas
que sugerem essa transposição do previsível, do confortavelmente instalado, para algo
dubitativo.
Desejosos de conquistarmos um olhar à altura dos olhares apreciados, o buscamos
em Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa, possuidor de um olhar limpo e
desapegado, aquele olhar que, sem dúvida, se aproxima do que estes personagens marginais
de Guimarães Rosa possuem. O olhar do poeta Caeiro é nítido, simples e descomplicado. Não
deseja, não dicotomiza, não espera mais que o momento e o que a sua visão pode abarcar. Por
isso ele nos é tão inspirador:
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O GUARDADOR DE REBANHOS (1911-1912)
8-3-1914
O MEU OLHAR é nítido como um girassol.Tenho o costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás...E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem...Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança se, ao nascer,Reparasse que nascera deveras...Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender...O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,E a única inocência não pensar...(PESSOA, 1986, p.138)
Este olhar de Alberto Caeiro - é o que esperamos - terá iluminado o nosso trabalho e
nos propiciado uma visão panorâmica de todos os personagens com os quais dialogamos. É o
olhar de Miguili m e Dito em "Campo geral", de Nhinhinha e Brejeirinha em Primeiras
estórias, de Fita-verde em Ave, palavra, de Drizilda em "Arroio-das-Antas" e também dos
cegos provisórios e permanentes, como é o caso dos personagens de "São Marcos"
(Sagarana), "A Benfazeja" e "Um moço muito branco", (Primeiras estórias) cujos olhares
243
solares e penetrantes trazem a clareza das coisas descomplicadas e que, para serem
compreendidas, bastam apenas que sejam vistas.
E como não podia deixar de ser, é o olhar de todas as crianças que nos cercam e que
nos ensinam diariamente, sem que o saibam, o aprendizado dos girassóis.
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