introduÇÃo 4 1 consideraÇÕes sobre o olhar12 3 … · em potencial, o que nos proporciona uma...

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2 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 4 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR ........................................................................... 12 1.1 O OLHAR COMO PROCESSO DE AUTO-CONHECIMENTO NOS MITOS DE ÉDIPO REI, NARCISO E NAS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA..................................................................... 14 1.2 GRANDE SERTÃO: VEREDAS: POR QUE É QUE EU NÃO VI? ......................................................... 20 1.3 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A HISTÓRIA .......................................... 24 2 OLHAR E APRENDER .................................................................................................... 29 2.1 "AS MARGENS DA ALEGRIA" E "OS CIMOS"................................................................................. 32 2.1.1 “Ver é ter à distância” ..................................................................................................................... 36 2.1.2 Às margens do invisível .................................................................................................................. 43 2.1.3 Diálogo entre meninos: “As margens da alegria” e “Os cimos” ....................................................... 46 3 APRENDENDO A VER ................................................................................................... 50 3.1 DE OLHOS VENDADOS: “SÃO MARCOS” ....................................................................................... 50 3.1.1 Duas visões em “São Marcos”........................................................................................................ 56 3.1.2 Os sentidos da visão........................................................................................................................ 60 3.1.3 Bem-aventurados os que sabem ver ................................................................................................. 65 3.2 O NARRADOR E SEU OLHAR: “A BENFAZEJA” ............................................................................. 71 3.2.1. Olhar para rever ............................................................................................................................. 73 3.2.2 Mula-Marmela: guia de cego........................................................................................................... 78 3.2.3 Retrupé e Édipo: cegos e aleijados .................................................................................................. 80 3.3 A LUZ COMO METÁFORA: “SUBSTÂNCIA” .................................................................................. 84 3.3.1 Ver é um desafio............................................................................................................................. 89 4 VER O ESQUECIDO........................................................................................................ 95 4.1 “A MENINA DE LÁ” ......................................................................................................................... 100 4.1.1 A palavra “de lá” .......................................................................................................................... 100 4.1.2 Palavra em movimento ................................................................................................................. 103 4.2 “UM MOÇO MUITO BRANCO” ....................................................................................................... 107 4.2.1 Um olhar que toca ........................................................................................................................ 107 4.2.2 O olhar do diferente ...................................................................................................................... 110 4.3 “A TERCEIRA MARGEM DO RIO”.................................................................................................. 118 4.3.1 Olhar e esperar ............................................................................................................................ 118 4.3.2 Do outro lado do texto .................................................................................................................. 121 4.3.3 Navegar é preciso ......................................................................................................................... 125 5 O ENCONTRO DO VELHO COM O NOVO: OLHARES ENTRECRUZADOS ........... 133 5.1 UM OLHAR PARA O VELHO: “UMA ESTÓRIA DE AMOR” ......................................................... 134 5.2 EMPRESTA-ME O TEU OLHAR: “CARA- DE- BRONZE” ............................................................. 140 5.2.1 Em busca do “quem” das coisas .................................................................................................... 146 5.2.2 Olhares multifacetados.................................................................................................................. 152 5.2.3 A Casa de bronze.......................................................................................................................... 156 5.3 O VELHO ENSINA O NOVO A VER: “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA” ........................................ 164 5.3.1 Discurso amoroso: de tardinha também se voa............................................................................... 166 5.3.2 O velho empresta ao jovem o seu olhar ......................................................................................... 169 5.4 UM OLHAR PARA O MISTÉRIO: "NENHUM, NENHUMA" ........................................................... 175 5.4.1 Um olhar para a experiência.......................................................................................................... 181 5.4.2 Um olhar para o passado ............................................................................................................... 184 5.5 AS CINZAS COMO METÁFORA: "ARROIO-DAS-ANTAS............................................................................ 187 5.6 A ESTÓRIA REVISTA: "FITA-VERDE-NO-CABELO.................................................................................. 190 6 O OLHAR DO POETA ................................................................................................... 201 6.1 OLHAR E ADMIRAR: “PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE........................................................................ 204 6.1.1 Olhar para onde não se vê ............................................................................................................. 205

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INTRODUÇÃO .....................................................................................................................4

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR...........................................................................12

1.1 O OLHAR COMO PROCESSO DE AUTO-CONHECIMENTO NOS MITOS DE ÉDIPO REI,NARCISO E NAS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA.....................................................................141.2 GRANDE SERTÃO: VEREDAS: POR QUE É QUE EU NÃO VI?.........................................................201.3 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A HISTÓRIA ..........................................24

2 OLHAR E APRENDER....................................................................................................29

2.1 "AS MARGENS DA ALEGRIA" E "OS CIMOS".................................................................................322.1.1 “Ver é ter à distância”.....................................................................................................................362.1.2 Às margens do invisível ..................................................................................................................432.1.3 Diálogo entre meninos: “As margens da alegria” e “Os cimos” .......................................................46

3 APRENDENDO A VER ...................................................................................................50

3.1 DE OLHOS VENDADOS: “SÃO MARCOS” .......................................................................................503.1.1 Duas visões em “São Marcos” ........................................................................................................563.1.2 Os sentidos da visão........................................................................................................................603.1.3 Bem-aventurados os que sabem ver................................................................................................. 65

3.2 O NARRADOR E SEU OLHAR: “A BENFAZEJA” .............................................................................713.2.1. Olhar para rever.............................................................................................................................733.2.2 Mula-Marmela: guia de cego...........................................................................................................783.2.3 Retrupé e Édipo: cegos e aleijados.................................................................................................. 80

3.3 A LUZ COMO METÁFORA: “SUBSTÂNCIA” ..................................................................................843.3.1 Ver é um desafio.............................................................................................................................89

4 VER O ESQUECIDO........................................................................................................95

4.1 “A MENINA DE LÁ” .........................................................................................................................1004.1.1 A palavra “de lá” ..........................................................................................................................1004.1.2 Palavra em movimento .................................................................................................................103

4.2 “UM MOÇO MUITO BRANCO” .......................................................................................................1074.2.1 Um olhar que toca ........................................................................................................................1074.2.2 O olhar do diferente......................................................................................................................110

4.3 “A TERCEIRA MARGEM DO RIO” .................................................................................................. 1184.3.1 Olhar e esperar ............................................................................................................................1184.3.2 Do outro lado do texto..................................................................................................................1214.3.3 Navegar é preciso.........................................................................................................................125

5 O ENCONTRO DO VELHO COM O NOVO: OLHARES ENTRECRUZADOS...........133

5.1 UM OLHAR PARA O VELHO: “UMA ESTÓRIA DE AMOR” .........................................................1345.2 EMPRESTA-ME O TEU OLHAR: “CARA- DE- BRONZE” .............................................................140

5.2.1 Em busca do “quem” das coisas....................................................................................................1465.2.2 Olhares multifacetados..................................................................................................................1525.2.3 A Casa de bronze..........................................................................................................................156

5.3 O VELHO ENSINA O NOVO A VER: “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA” ........................................1645.3.1 Discurso amoroso: de tardinha também se voa...............................................................................1665.3.2 O velho empresta ao jovem o seu olhar .........................................................................................169

5.4 UM OLHAR PARA O MISTÉRIO: "NENHUM, NENHUMA"...........................................................1755.4.1 Um olhar para a experiência..........................................................................................................1815.4.2 Um olhar para o passado...............................................................................................................184

5.5 AS CINZAS COMO METÁFORA: "ARROIO-DAS-ANTAS” ............................................................................1875.6 A ESTÓRIA REVISTA: "FITA-VERDE-NO-CABELO” ..................................................................................190

6 O OLHAR DO POETA ...................................................................................................201

6.1 OLHAR E ADMIRAR: “PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE” ........................................................................2046.1.1 Olhar para onde não se vê.............................................................................................................205

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6.1.2 O discurso infantil ........................................................................................................................2096.2 O MENINO PENSADOR: “CAMPO GERAL” ...............................................................................................216

6.2.1 Olhar para as pequenas coisas.......................................................................................................2226.2.2 O menino no homem ...................................................................................................................226

CONCLUSÃO ...................................................................................................................234

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................244

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INTRODUÇÃO

Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando. ("O Espelho", p. 437)

O desejo inicial deste estudo é apresentar uma faceta da obra de Guimarães Rosa, a

nosso ver, ainda pouco explorada, que é a construção das personagens infantis em sua obra.

Encontrar a infância como a encontramos, essencialmente nos textos em relevo, só foi

possível porque na leitura de toda a obra do autor, iniciada por Grande sertão: veredas,

captamos não um sentimento de infância propriamente dito, mas um sentimento de que o

mesmo ser que perfila as personagens infantis faz parte de um núcleo que move e impulsiona

todo o elenco rosiano. Várias vezes, ao lermos Riobaldo, encontramos o menino Miguilim ali

em potencial, o que nos proporciona uma visão do homem como um só, percorrendo em sua

solidão uma longa vereda, e carregando em seu ser a confluência de todos os tempos: o

presente, o passado e o futuro. Para nós, encontrar o Menino nos homens e mulheres

espalhados pela obra do autor foi um despertar para a notável capacidade de Rosa de criar um

homem único, cujas indagações transcendem até mesmo a faixa etária, com as suas

particularidades naturalmente.

Este homem aparece difundido, diluído pelos textos afora, como se em cada um

houvesse uma parte do outro. Riobaldo, nesse sentido, é aquele personagem nuclear, que,

fazendo parte de uma narrativa nuclear, para onde todas as outras convergem, simboliza um

homem em quem coexistem aglutinados todos os tempos. Por isso, não há como deixar de nos

voltarmos sempre a Grande sertão: veredas, pois lá estão as referências humanas, que

constituem nosso principal interesse no estudo da obra de Guimarães Rosa. Acreditamos que

o espírito do Menino lá se encontra, fazendo-se notar, pela primeira vez, no encontro de

Diadorim com Riobaldo. Neste momento, conhecemos a coragem do garoto Diadorim que se

funde com a natureza circundante, ao mesmo tempo que temos a visão do menino Riobaldo

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diante das demonstrações de força de Diadorim. Os significados deste primeiro encontro e

deste olhar ambos levariam consigo para a vida adulta.

Conscientes desta presença infantil oculta na grande obra de Rosa, podemos seguir

tranqüilos no encalço dos meninos visitados pela poesia do autor e do autor revisitado pela

poesia dos meninos. Isto porque, muitas vezes, não sabemos se o menino que nos fala é a

criança de Cordisburgo, que desde tenra idade conheceu as artimanhas do seu ser poético, ou

se esse homem que cresceu simplesmente aceita o sopro da infância que os seus personagens

lhe oferecem. Não havendo a necessidade de excluir uma ou outra possibil idade, ficamos com

as duas.

Sobre a obra de Rosa muito tem sido escrito e, por sua grandeza, o futuro deixa em

aberto diversificadas possibil idades de leitura. Estudos que privilegiam a sintaxe polêmica, o

ineditismo lexical, os temas metafísicos e outros tantos foram e ainda têm sido largamente

desenvolvidos em torno do trabalho do escritor. Todos estes recursos nos chamaram a atenção

e serviram como um incentivo para que prosseguíssemos na instigante tarefa de ler uma

escritura como a de Guimarães Rosa. Mas à medida que percebíamos estes recursos geniais e

surpreendentes, a presença de um outro, subliminar a estes, muito nos chamou a atenção.

Seduziu-nos a forma como o autor apresenta certos personagens cujos procedimentos

despadronizados nos propiciam um confronto que se inicia com o trabalho com a própria

linguagem, uma vez que esta corresponde justamente ao lugar marginal em que se encontram

os personagens com comportamentos questionadores da razão, do pensamento instaurado

pela lógica iluminista e racionalista. Ao questionar a razão como única forma de apreensão do

mundo, o autor cria uma linguagem que se torna o próprio questionamento. A constatação de

que este fator estava organicamente atrelado aos procedimentos de escrita do autor motivou-

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nos a buscar novo enfoque nas narrativas de João Guimarães Rosa, mas que não se prendesse

simplesmente aos aspectos ligados à linguagem, já ampla e ricamente explorados.

Na trilha deste raciocínio chegamos à conclusão de que se há um questionamento,

significa que há um olhar que vê de modo diferente, um olhar que brota de outras profundezas

e que possui uma qualidade bastante peculiar. Esta premissa tornou-se o ponto de partida

para o que viria a se constituir na singularidade do nosso trabalho, ou seja: alguns

personagens de Guimarães Rosa demonstram ter um olhar que, longe da turvação corriqueira,

penetra nas camadas invisíveis que deixaram de ser vistas por todos os que se acostumaram

demais a ver e não consideram que as experiências podem ser inaugurais. Este olhar desperto,

plurissignificativo e vazado de claridades pareceu-nos ter a capacidade de ressignificar a

própria vida, trazida à tona a cada novo dia. A definição do tema veio junto com a definição

dos personagens, nos quais este olhar pareceu-nos mais evidente.

Ainda que tenhamos tido vislumbres deste olhar a partir da narrativa fulcral que é

Grande sertão: veredas, foi na leitura das estórias protagonizadas por crianças, velhos e cegos

que esta particularidade ficou mais destacada. Exemplos típicos são a novela ou romancinho

"Campo geral" de Corpo de baile, e as narrativas de Primeiras estórias, as quais nos levaram

a pensar que, no fundo, todo o empenho do autor foi uma tentativa bem sucedida de revelar

um modo novo de ver, e que, para revelá-lo, ele precisou criar um modo novo de dizer. Foi

ficando cada vez mais claro para nós que os personagens rosianos caracterizam-se por um

olhar especulativo, indagador e introspectivo, e que também se deliciam com o que vêem.

Trata-se de olhares que conjugam num uníssono o que há dentro e o que há fora. É um Olhar

atravessado, limpo, sem turvações, alçando vôos no dentro e fundo de suas travessias.

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No conto "O Espelho", de Primeiras estórias, o autor tem oportunidade de teorizar

um pouco sobre o olhar. Antecedendo a narração, esta narrativa faz uma descrição de como

podemos nos iludir com os nossos olhos:

E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com quecresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetosinvertidos, daí seu desajeitado tactear; só pouco a pouco é que consegue retificar, sobre apostura dos volumes externos, uma precária visão. (ROSA, 1994, p. 438)

O que sobressai nas afirmações do autor é o caráter duvidoso do olhar. Ou seja, os

olhos não captam certezas, e o que eles vêem é apenas uma porção do que opera realmente na

coisa vista: "Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de

mim. " (Ibidem, p. 438) Este caráter enganoso do olhar vai inspirar várias narrativas em que

os olhos se dispõem como os órgãos responsáveis pela percepção mais das incertezas que

propriamente das certezas. Esta precariedade com que se olha vai ser um tema marcante nas

narrativas a serem apresentadas. Olhar, neste caso, deixa de ser um gesto automatizado e

ganha estatuto de postura filosófica e metafísica. Se o homem olha, não significa que esteja

vendo. Nas narrativas do autor precisamos rever o foco, o ponto de vista de onde vemos,

porque Guimarães Rosa sempre buscou ver as pessoas e as situações com olhos novos. Esta

necessidade lhe era tão essencial, que precisou criar uma escrita que fosse a tradução deste

olhar penetrante e incomum. Incomum não porque exótico mas porque conseguiu captar as

sutilezas onde estas pareciam não existir. Assim, as crianças, e também os loucos, os velhos e

os cegos configuram um novo paradigma do olhar que se desloca do comum para o insólito,

não porque eles sejam seres extraordinários, mas porque conseguiram manter acesa a flama

que os faz ver onde muitos já deixaram de fazê-lo. Sem dúvida que algumas situações são

acentuadas e nos tiram ainda mais do lugar, como é o caso de algumas estórias que vamos

mostrar. Mas se olharmos atentamente, veremos que onde parecia estar o sobrenatural ou o

fantástico, reside sim, um discurso que soube preencher as lacunas dos nossos esquecimentos

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e turvações diárias. Exemplos eficientes disso são "A menina de lá", "Um moço muito

branco", "Partida do audaz navegante" (de Primeiras estórias) e "Campo geral" (de Corpo de

baile).

Vale ressaltar que não só os personagens infantis revelaram esta habil idade bem

apurada, mas que em muitas estórias, ao lado delas e dialogando com elas, encontramos os

velhos, os quais, ocupando um patamar de quem já viveu todas as infâncias e encontrando-se

no limiar da existência, conseguem lançar sobre o mundo circundante um olhar tão inusitado

quanto o das crianças. Como a criança, o velho concentra em si a potencialidade do tempo:

para o segundo, o tempo que passou; para o primeiro o tempo que é e o que virá. Nas

sociedades ditas civil izadas o velho e a criança ocuparam e ainda continuam ocupando

posições marginais, uma vez que não correspondem às necessidades da realidade

instrumentalizada. Ambas as categorias possuem um traço que destoa do previsto e do

utilitário, e também porque o seu modo de viver ainda parece inadequado aos padrões

exigidos pela sociedade. Poderíamos dizer que eles são, de certo modo, excluídos e muito

freqüentemente apenas "tolerados" pelas instituições, sejam familiares, religiosas e/ou outras.

Porque o diferente constitui um incômodo e um desafio num mundo padronizado. A

freqüência com que os velhos aparecem na obra de Rosa nos faz pensar em sua função

espiritual em relação aos outros personagens, principalmente com relação aos mais jovens e

às crianças. Vó Izidra e Mãitina em "Campo geral", a velha e o velho de "Nenhum,

nenhuma," Manuelzão em "Uma estória de amor", as velhinhas de "Arroio-das-antas” , Lina,

em “A estória de Lélio e Lina”, Sigisberto, em “Cara-de-Bronze” e a avó de "Fita-verde-no-

cabelo" são apenas alguns exemplos da presença destes velhos que não cessam de,

silenciosamente ou não, desempenhar importantes papéis ao lado de crianças e jovens.

Veremos que muitas vezes, até por trás de uma aparente casmurrice, como é o caso da avó

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paterna de Miguilim, em "Campo geral", a tendência do velho é a de provocar a reflexão.

Parecendo ter a função de um superego dessas crianças, são os velhos que lhes mostram,

diante de situações obscuras - quando o herói está em apuros - soluções que as façam

prosseguir. Também eles não cessam de olhar, só que o que vêem está alinhavado ao que já

viram, o que lhes dá um sentido da premonição, ou de uma memória de futuro.

Nossa pesquisa atenta para os verbos “ver” e “olhar” , muito presentes no conjunto da

obra rosiana, como se o autor tivesse uma grande necessidade de captar o mundo

especialmente pelo sentido da visão. Prosseguindo no encalço desta singularidade,

verificamos que em alguns momentos este olhar faz parte de uma dialética expressa

paradoxalmente pela incapacidade de ver. Ou seja, deparamo-nos com vários personagens que

foram, por um motivo ou outro, privados da visão e que, não obstante, não deixaram de olhar.

Parece um paradoxo falar em personagens privados da visão quando o que se busca

defender é a força luminosa de um olhar. No entanto, a presença dos cegos na obra de Rosa

é apenas a outra extremidade da questão. Porque, se por um lado, o autor cria uma

ambientação para aqueles seres que vêem tão amplamente, isto não significa dizer que na

contramão deste olhar não exista o tema da privação desta possibil idade, o que nos leva a

refletir sobre a maleabil idade com que o autor trata o tema, colocando-nos diante de

personagens que ora vêem demais, e de outros que, não obstante não enxerguem, vêem o que

só poderiam ver justamente porque são ou estão cegos. Esta dialética do olhar nos ajuda a

confirmar as nossas hipóteses acerca de uma dedicação singular do autor ao tema,

confirmando que tudo na obra de Guimarães Rosa faz parte de uma coesão interna,

responsável pela sensação de que existe uma harmonia mesmo dentro do conflito e que os

seus personagens não são fragmentos do homem, mas constituem a sua totalidade.

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No entanto, é preciso lembrar que a ênfase no olhar na obra de Rosa não se

especifica apenas pelo sentido da visão propriamente dita. Sem dúvida que este sentido é

enormemente explorado pelo autor, e é o que mostraremos na apreciação de várias passagens.

Nesse aspecto o motivo infantil merece ser visto como um tema simbólico, pois a presença

da criança nos devolve um foco, uma camada do olhar em que o sentimento de renovação é

sempre despertado. A criança, de certo modo, nos obriga a movimentar o olhar.

Henriqueta Lisboa, nesse sentido, traz uma contribuição importante aos estudos

rosianos ao perceber o que ela chamou de "presença pertinaz da infância" na obra de

Guimarães Rosa. (LISBOA, 1991, p. 134) A autora considera a semelhança entre Rosa, as

crianças e os primitivos. Refere-se também a uma intuição amorosa do autor, ao seu gosto

pela vida e pela renovação desta através da escritura. A mediação entre esse espírito

"delirante" da criança e o leitor é feita por meio de uma escritura também dinâmica (seja do

ponto de vista sintático, lexical, semântico), mas que é encarada como uma atividade lúcida,

que percebe e valoriza certo instinto ontológico manifestado desde a mais tenra idade.

Radicalizando essa crença no espírito criador de Guimarães Rosa, aliado a um sentimento de

infância do qual o autor nunca se desvinculou, Lisboa chama a atenção para o fato de que

"Rosa é um criador delirante, suponho, exatamente, porque possui o sentimento da infância."

(LISBOA, 1991, p. 135)

Assim, buscaremos enfocar nos personagens de Rosa um modo de ver e de

apreender as experiências. Nesse sentido, a criança de Guimarães Rosa representa uma radical

oposição aos efeitos devastadores da crença na razão instrumental. Se os outros personagens

chamam a nossa atenção, as crianças o fazem de maneira especial, porque suas vivências e

percepções são radicalizadas.

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Representando a totalidade do ser humano, a criança simboliza, conforme nos diz

Jung,

tudo que é abandonado, exposto e ao mesmo tempo o divinamente poderoso, o começoinsignificante e incerto e o fim triunfante. A 'eterna criança' no homem é uma experiênciaindescritível, uma incongruência, uma desvantagem e uma prerrogativa divina, umimponderável que constitui o valor ou desvalor último de uma personalidade. (JUNG, 2000,p. 179)

Encontramos na palavra rosiana uma tentativa de fundar ou de encontrar sempre o

espírito de vida novo que a constitui, pois estamos apreciando um autor que prima pela

exploração dos recursos adormecidos da palavra e que fundou, mais que uma escrita, uma

variedade de enredos que se harmonizam e respondem a esta escrita. Não só enredos, mas

uma variedade de personagens cuja singularidade compõe este ideal de fundação, que reside

na diferença, naquilo que inaugura certo sentimento novo. Crianças, velhos, prostitutas, cegos,

visionários, homens-bicho fazem parte desta família de singulares e excluídos, e que nas

narrativas de Guimarães Rosa fundam, ao lado da palavra, um universo novo, desconhecido.

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1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OLHAR

Nem sempre é possível saber o que vem primeiro: fazemos perguntas para ver

melhor, ou precisamos ver melhor para melhor perguntarmos? Não importando a ordem a a

não ser como um jogo que nos dê a dimensão desta problemática dos personagens rosianos,

seguiremos nessa trilha em que se configuram, como eixo, a tensão entre os opostos,

solucionada no próprio processo de perguntar, aprender e ver – ou, mudando a ordem dos

verbos - ver, perguntar e aprender. Dizemos tudo isso a fim de especificarmos a

singularidade ou a dimensão do olhar na obra de Guimarães Rosa, que é, no fundo, o olhar

direcionado ao aprender. Em Rosa, nunca é demais dizermos, a mutabil idade constante das

coisas é vivida integralmente, não só nas situações apresentadas nos enredos, mas no que diz

respeito à linguagem movimentadíssima e irrequieta. O Real é colocado não como uma

verdade, mas como ambigüidade, e, por isso mesmo, questionado. As certezas são corroídas

de diversas formas, ininterruptamente. E esta desconstrução das certezas está implícita,

entrelinhavada no tecido que a sua linguagem não pára de tecer. Neste tecido, é possível se

amarrarem muitas texturas diferentes, advindas de várias origens, e o resultado da costura é

sempre inesperado. Toda a situação proposta no discurso rosiano anda na contramão da

história do pensamento ocidental que, ao longo dos séculos, buscou “domesticar” a nossa

percepção da realidade, criando uma inteligibil idade anterior à nossa percpeção das coisas.

Nesse sentido, Antônio Jardim faz uma crítica à linearização deste tipo de conhecimento que

desconsidera a ambigüidade como uma instância importante e necessária para a experiência

da verdade:

Produzimos instrumentos e os generalizamos, em todos os níveis e em todas as dimensões.Instrumentalizamos e generalizamos toda a realidade por meio de um instrumento e de umgênero que é entendido e colocado como perene – a idéia, o maior de todos os instrumentosjá inventados pelo ser humano. Conformou-se assim o saber no Ocidente comoconhecimento do gênero a priori, perdeu-se o sentido de verdade como o que se manifesta e

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se oculta, se vela se desvela, se vela e revela. A partir de então, procuramos uma identidadesem diferença, uma medida pela certeza e uma representação pela semelhança. (JARDIM:2003, p. 5)

Cremos que todos os personagens destes rincões do Brasil que Rosa nos oferece

como paisagem humana - para muitos desconhecida, até mesmo dos próprios brasileiros - são

seres perseguidos por um desejo de resposta acerca dessa contínua ambigüidade do Real. Não

é possível mensurar os seus procedimentos pelos critérios das certezas, assim como não é

possível compreendê-los pelo crivo da razão. Somente numa tentativa de ver como processo

de velamento e desvelamento é que as chances de os apreendermos se tornam mais plausíveis.

Por meio de uma leitura e interpretação destes personagens compreendemos, sobretudo, que a

verdade é, de fato, inapreensível. Não será pela resposta que este homem terá chances de

chegar a uma compreensão do Real, mas por meio de perguntas. E é fazendo perguntas que

ele prossegue. Nas narrativas de Rosa os personagens olham muito, porque perguntam muito,

porque querem saber. E para saber é preciso, sobretudo, olhar. Este desejo de olhar e de

compreender revela a inserção do homem no mistério que é o Cosmo. Este mistério, é o que

acredita Guimarães Rosa, poderá ser melhor sondado e depurado numa literatura que esteja

impregnada dos conteúdos que constituem a condição humana, muitos deles insondáveis a

“olho nu” . Em entrevista ao seu tradutor Gunter Lorenz, Rosa reflete sobre o que espera de

sua literatura: “...Por isso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que

transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. A lógica,

prezado amigo, é a força com a qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas

superando a lógica é que se pode pensar com justiça.” (LORENZ, 1991, p. 93)

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1.1 O OLHAR COMO PROCESSO DE AUTO-CONHECIMENTO NOS MITOS DE

ÉDIPO REI, NARCISO E NAS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA

No capítulo 1, da abertura da Metafísica, Aristóteles assim reflete:

Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer dassensações, pois, fora até da sua util idade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todasas outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operarcoisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todosos sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre.(ARISTÓTELES, 1978, p. 12)

A reflexão de Aristóteles acerca deste sentido, a seu ver, privilegiado, pode ser uma

porta de entrada para interpretarmos alguns mitos em que o sentido da visão foi empregado

como porta para a percepção, mas de forma contraditória. Paradoxalmente, algumas vezes, é

preciso impedir os olhos de verem, a fim de que o que estava velado, seja, enfim, desvelado.

Neste sentido, a exaltação do sentido da visão, proposta por Aristóteles, tem outras

repercussões na obra de Guimarães Rosa, por ser esta justamente o lugar ideal no qual o lado

oculto do visível florescerá.

Inspirados nas reflexões que o olhar nos tem trazido, não podemos nos esquecer de

alguns mitos ou mitologemas em que a visão e a perda desta como processo de auto-

conhecimento é significativamente enfocada. O mito de Édipo Rei, por exemplo, apresenta

teias de significados que não se esgotam e que ainda hoje dizem muito ao homem e à

sociedade de nossa época. Encontramos, neste mito, um homem em busca da verdade, mas

que, diante da revelação trágica desta, vê-se totalmente tensionado pelo seu passado, pela

inevitabil idade com que o destino se cumpre, e pela sua impotência diante dele. Deste modo,

se Édipo é aquele que quer saber, e que quer realmente ver, após consegui-lo, faz o processo

oposto, ou seja, prefere fechar os olhos, cegando-se literalmente. O seu gesto de furar os olhos

tem para nós um significado muito especial. Como veremos mais à frente, na contramão da

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visão, a perda desta não se configura como falta ou lacuna, mas como um outro canal que é

acionado quando há a privação da capacidade física de ver. Mais do que simples cegueira, o

que vemos é um outro processo de enxergar, desencadeado em função da privação da visão.

Os significados da cegueira auto-provocada por Édipo, ainda que muitos, podem ser

resumidos para nós em uma faceta: ao furar os olhos é que Édipo se volta para onde ainda

não fora, ou seja, para o seu interlocutor interno, por meio de quem encontrará outros

caminhos de conhecimento da natureza humana e de si mesmo . Até perder os olhos, Édipo

buscou interlocutores fora de si, perguntando, indagando, decifrando enigmas, sempre voltado

para o outro, para as pistas oferecidas pelo outro. Na tentativa de traçar o mapa de sua história

pregressa, de reconstituir sua origem, ele se lança para fora, e todos os seus gestos são

impulsivos, dirigidos para a exterioridade. Sua inteligência e poder lhe propiciam decifrar o

enigma da terrível esfinge, e coincidente e ironicamente, a resposta que ele dá a ela diz

respeito a sua humanidade. É ele mesmo a resposta, é o homem. Mas Édipo precisava passar

por muitas provações para encontrar a verdade e o caminho do auto-conhecimento. O fato de

ter destruído a esfinge com o seu raciocínio e a resposta certa libertou o povo de Tebas do

castigo e da expiação, dando a Édipo respeito diante dos tebanos. Por outro lado, o herói

trágico precisava de muito mais para ver-se. Édipo tinha pela frente a árdua tarefa do auto-

conhecimento, e o primeiro passo fora a descoberta de sua origem. Os presságios funestos do

oráculo, dos quais ele tanto fugira, mostraram-se inevitavelmente para ele, e era esta verdade

que ele precisava ver, sem, ao mesmo tempo, a ela sucumbir.

Poderia Édipo fugir do seu destino? Tal pergunta aponta, no fundo, para uma outra

de caráter mais universal: pode o homem fugir do seu destino? Mas Édipo, novamente,

movido pela impulsividade do seu comportamento, diante da verdade da qual fugira e para a

qual se lançara todo o tempo, rasga os olhos. Está aí colocada a desmedida, a desmesura que

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gera e alimenta os acontecimentos da tragédia. Édipo é vítima da própria desmedida e, quem

sabe, da própria descompostura do destino. A partir do momento em que fura os olhos,

começa uma nova estória para Édipo.

Esta passagem é extremamente inspiradora para nós e para a perspectiva do nosso

trabalho, porque acreditamos que a partir dela uma mudança radical vai se operar no seio

deste homem perturbado por toda sorte de inquietações. Sua jornada daqui para a frente é

impulsionada por uma outra visão, que é a visão de dentro. É neste sentido que uma

apreciação deste mito e de outros, que exporemos mais adiante, se faz tão necessária.

O que o mito de Édipo tem a nos ensinar? De que maneira a tragédia de Sófocles

pode contribuir para uma expansão das nossas reflexões sobre os atos do olhar na obra de

Guimarães Rosa? O que há de comum entre estes olhares? Longe de desejarmos fazer um

estudo comparado dos mitos e da obra de Rosa, o que buscamos com estas referências aos

mitologemas clássicos é mostrar que o anseio pelo conhecimento é comum ao homem de

todas as épocas e de todas as culturas. Outro ponto é que a busca deste conhecimento é um

processo doloroso e muitas vezes dificultado por uma série de contingências que atravancam a

revelação da verdade tão almejada pelo homem, na busca da decifração do seu destino,

destino que, ao se cumprir, é atravessado por situações inóspitas, repletas de contrariedades.

Mas neste processo, o homem aprenderá a ver. E, paradoxalmente, é justamente a forma como

ele vê que interfere de forma comprometedora no seu processo do conhecer.

Dentro de uma perspectiva fenomenológica do olhar, o mito de Narciso é, ao lado do

de Édipo, uma narrativa muito inspiradora, pois neste caso há um aprendizado estreitamente

ligado aos atos do ver. Na verdade, este aprendizado, para ambos, Édipo e Narciso, se dá de

modo paradoxal, se pensarmos em como a relação de ambos com a visão ou com a

experiência da visão ocorre nas adversidades. Não pretendemos fazer um estudo comparado

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desses dois mitologemas, mas de certo modo buscaremos apontar aqueles pontos fulcrais em

que para ambos a verdade ou a busca da verdade e o encontro com esta se resolve na antítese

“abrir e fechar os olhos” .

Debruçando agora um pouco sobre o segundo mito, vemos que Narciso abre os olhos

para si mesmo, negando ou subvertendo os presságios. Édipo fecha literal e metaforicamente

os olhos ao se dar conta de seu destino, do cumprimento de um destino traçado. Abrir e fechar

os olhos são dois gestos que, nesse caso, se complementam. Um para ver melhor: fechar.

Outro: abrir para penetrar em si mesmo, beber-se, e afogar-se na própria fonte, no próprio

espelho, onde se confundem vaidade, encantamento e perplexidade diante da própria imagem

nunca vista. Narciso nunca se viu, nunca aprendeu a se ver, e não se vendo, nunca soube ver o

outro. Desfaz esta cegueira, atirando-se radicalmente na própria imagem. Sedento de si

mesmo, entrega-se, anula-se para, quem sabe, transcender a própria materialidade de sua

imagem. Terá sido necessária esta morte, provocada pela sedução do olhar, para que Narciso

renascesse? No lugar em que ele se afoga nasce uma flor, uma promessa. Como na obra de

Rosa, elementos naturais sempre surgem, aqui e ali : um tucano, um vagalume, o rio que corre

sempre se renovando.

No entanto, se Narciso ironicamente sucumbiu pelo que seria uma dádiva, sua

beleza extremada, e pela sua visão turva e inadequada, o mesmo não se pode dizer sobre

Édipo, que, mesmo quando traído pelo chamado do olhar, e em seguida pela privação deste,

pôde em um outro momento ter sua visão restaurada num plano existencial. Édipo teve a

oportunidade de aprender. Fazendo uma analogia com o conto "São Marcos", do livro

Sagarana, observamos que só a falta da visão é que trouxe nova presença deste mesmo

sentido, ampliado para o espaço interno e até mesmo para a escuta dos outros sentidos que

foram despertos. Em Édipo a falta resgata, restaura uma nova janela: é abertura. Restaurado,

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Édipo conquista nova visão, a de dentro, e pode recomeçar em paz e com dignidade a sua

jornada. O protagonista de "São Marcos" também, nos seus minutos de cegueira, penetra em

recônditos insuspeitados antes. Aprende a respeitar as diferenças, a ver que o outro é uma

realidade tanto quanto ele próprio, e que há outras formas de existência.

Miguili m, na novela “Campo geral” , até os oito anos também não precisou aprender

a desenvolver toda a força do seu olhar interior? O que terá acontecido quando ele recupera a

qualidade de sua visão ? Isto não nos responde a narrativa genial de “Campo geral” , porque, é

a partir justamente do final, que um novo capítulo poderia ser começado. Miguilim vai ver

agora com os olhos de fora. Édipo sempre viu com os olhos de fora, mas precisou perdê-los

para ver a partir de outro campo visual. Narciso é seduzido pelo chamado do seu olhar. Ele

estava condenado a não se ver, ver-se seria morrer. Mas ele o faz, confundindo-se consigo

mesmo, vendo em si o outro. Não terá sabido ver? Ou no fundo já sabia que olhava a si

mesmo? O que estes mitos nos ensinam? Como poderão dialogar com as narrativas de

Guimarães Rosa? O que podemos responder é que eles já estão em intenso diálogo, e que nos

provam mais uma vez que o grande e eterno problema do homem é conhecer-se. E para isto,

precisa olhar.

A radicalização dramática a que são levados estes mitos deixa vir à tona, escapar e

realçar o que de mais importante há neles, que é ao que nos temos dedicado nesta pesquisa:

como se dá o aprendizado através do olhar. Este olhar que vê e capta o mundo do inteligível e

da transcendência – porque, conforme dissemos, por trás do visível há o invisível à espera de

ser visto e decifrado.

Em “Campo geral” , Miguili m tem nas mãos um enigma. É o bilhete que Tio Terez

lhe entregou sigilosamente e lhe pede que entregue à mãe. A partir da posse desse bilhete, o

menino começa a se inquietar com todo tipo de indagações. Agora ele queria saber as

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diferenças entre o certo e o errado, ele queria descobrir o que é o agir correto. Ele desejava

decifrar o enigma. Deveria entregar o bilhete? Esta dúvida é mais um desafio para o caminho

do aprendizado do menino que quer, obsessivamente, entender. Por isso faz tantas perguntas.

Na palavra enigma significando "o falar por meios-termos, dizer veladamente, dar a

entender", como a define Brandão (2001, p. 259), está implícito o desejo de olhar. Porque é

justamente nesse não desvelar-se totalmente, base de todo enigma, que reside o seu aspecto

sedutor. Quanto mais enigmático mais desejamos olhar, mesmo que corramos o risco de

sermos devorados pela esfinge. O que se vela parece estar sempre à espera de um olhar

espontâneo e profundo que o possa revelar, torná-lo visível. É especialmente nesse aspecto

que o enigma nos seduz. Decifrar um enigma representa sair das trevas para a luz. E neste

sentido, podemos pensar que imbricado ao ato de educar, olhar e aprender, está o misterioso

processo de decifrar. O mito do mais belo dos homens assemelha-se ao de Édipo. Narciso se

perde no momento em que se encontra. "Sin non uiderit."

Édipo se perde no momento em que descobre a sua identidade. Mas voltará depois

com a visão interior recuperada, ao lado de sua filha Antígona. Neste aspecto o mito de Édipo

aponta para uma esperança. Em Narciso a alegoria ou metáfora desta esperança é a flor que

nasce nas águas em que ele se afogou. Miguili m já nasce privado da visão clara, mas fortalece

seus olhos de dentro. José, em "São Marcos", ganha força para ver com os outros sentidos e,

principalmente com a intuição, somente quando perde a luz dos olhos. Todos esses

personagens e muitos outros têm enigmas para decifrar. E passam por verdadeiras provas de

iniciação, cada qual a seu modo. Para sobreviver às emboscadas e sair das trevas para a luz, o

iniciado precisará passar por uma profunda educação ou reeducação do olhar. Porque ter

olhos não significa necessariamente saber ver.

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Tirando-nos do lugar, tensionando a lógica formal com um universo aparentemente

não-lógico, ou fora da ordem, seja no que diz respeito aos enredos, à sintaxe e ao léxico

singular e constantemente reinventado, as narrativas de João Guimarães Rosa são um convite

a olhar o que há de invisível em nós mesmos: no enunciado, por trás do enunciado, no

discurso do narrador que às vezes fala como um anti-narrador, justamente porque se lança ao

jogo sedutor do velar e do desvelar.

Nesse sentido, a obra de Rosa é um grande enigma, um processo constante de

decifração para o leitor. E é por isso, também, que os mitos abordados estão tão próximos da

obra deste autor, porque, como eles, a obra rosiana exige um olhar corajoso, que aceite o

desafio da esfinge voluptuosa, ou seja: a decifração mesma do texto, tecido com as linhas do

mistério, dos segredos e do desejo.

1.2 GRANDE SERTÃO: VEREDAS: POR QUE É QUE EU NÃO VI?

Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava?” (Grande sertão: veredas, p. 98)

O homem de Guimarães Rosa deseja um mundo ordenado, em que o bem esteja

separado do mal. No entanto, suas percepções do mundo dizem respeito a um mundo em que

ver, organizar, esclarecer só se organizam nas tensões.

Em Grande sertão: veredas estas intenções são reiteradas e metaforizadas na relação

do homem com o sertão, que, por sua vez, representa muito mais que o espaço geográfico tal

como o conhecemos. Para mapear este sertão seria preciso uma geografia que se propusesse a

desenhar, menos que os caminhos, os descaminhos percorridos pelo homem. Riobaldo é o

peregrino de um sertão literal e metafórico, mas dissociado, para quem os mapas utilizados

em seu desbravamento são encontrados à medida que ele o vai percorrendo, ou então, são

por ele mesmo reinventados. O mote "Viver é muito perigoso", que se repete durante os

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relatos do protagonista, ou "O sertão é o mundo" mostram que o ponto de partida para a

reflexão é a busca de localização em determinado espaço, e que, somente a partir da

demarcação deste e do reconhecimento de seus limites será possível travar os embates entre o

mundo de fora e o de dentro. Ou seja, a realidade externa é comparável à interna, e a alegoria

sertão/mundo seria suficiente para revelar que viver requer a capacidade de encontrar saídas,

trilhas, uma vez que o sertão não é um lugar de fácil acesso. O sertão é um tema de reflexão

para o protagonista: "Sertão,- se diz-, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De

repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”(ROSA, 1994, p. 244), Ou: “Sertão

é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão

é quando menos se espera; digo.” (ROSA, 1995, p. 184); e ainda esta concepção que beira ao

metafísico: “Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais

certa e de mais juízo.” (ROSA, 1994, p. 184). Nesta última proposição, fica clara a referência

espacial que parte do centro, do núcleo para as periferias, bem como fica mostrado, de forma

implícita, por meio da linguagem do sertanejo, que as verdades só são válidas se questionadas.

Revela-se, deste modo, a dificuldade de se estabelecer fronteiras rígidas entre o que é e o que

não é, entre a lucidez e a insanidade, entre a certeza e a dúvida. Estas tensões transbordam na

fala rude e ao mesmo tempo sofisticada do jagunço, porque suas diversas e constantes

especulações se estabelecem a partir de um espaço físico, geográfico, demarcado, mas como

profícua metáfora responsável por ocultar e revelar outro lugar: o da indagação, o do

perguntar que não cessa, e para o qual não há demarcações possíveis. Assim, o sertão mineiro

configura-se como uma perfeita alegoria de um sertão universal, porque extrapola as marcas

do regionalismo e eleva o homem, sem que este saia do seu lugar, à condição de um

desbravador que tem como meta maior os desafios impostos não apenas pelo seu espaço

geográfico, mas também pelas limitações representadas pelo grande SERTÃO, que é o

mundo, ou a própria vida.

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A capacidade ou o desejo de indagar, em Riobaldo, são antigos, e o acompanham até

a maturidade. Sua racionalidade brota justamente de suas percepções sensoriais, no que diz

respeito seja à sua relação com o sertão, à sensualidade experimentada no amor por

Diadorim, ou até mesmo aos sentimentos ambíguos e confusos que nutre pela imagem ou

presença do Diabo. Sobre esse ponto é bom nos lembrarmos das reações físicas do

protagonista após o possível encontro e pacto com o Diabo nas Veredas Mortas. Riobaldo

apresenta várias reações físicas, e os seus sentidos parecem mais apurados. No entanto,

mesmo que tenha conquistado a clareza de que precisava para liderar o bando de jagunços na

batalha definitiva, as interrogações não cessam de o importunar, e a maior de todas, metáfora

grandiosa do romance, refere-se à existência ou não do Diabo. Sem dúvida, esta é a grande

pergunta de Riobaldo, da qual só um olhar prodigioso poderá libertá-lo. A esta pergunta alia-

se o relacionamento ambíguo com Diadorim, que é a causa de sua alegria, mas também de

mais perguntas que o afligem. Mas, para esta interposição do destino, ele não conseguiu um

olhar apropriado, e o mistério acerca da verdadeira natureza de Diadorim só lhe foi desvelado

quando eles já não podiam mais realizar ou consumar o seu destino amoroso. Diadorim é a

"neblina" de Riobaldo, confundindo-o, seduzindo-o e afastando-o. Conforme Fernando

Correia Dias, sobre Riobaldo, é sempre bom lembrar "o seu sentido de mistério, que nos

lembra também, como outros aspectos, o cunho medieval de sua estória. O destino o intriga.

O risco o fascina."(DIAS, 1991, p. 406)

Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, embora tente demarcar os territórios e

estabilizar as tensões, deixa claro no seu discurso que isto é tarefa impossível e que só poderá

encontrar a harmonia na aceitação da própria diversidade e multiplicidade que é o mundo.

Neste aspecto é que o sentido da visão, ampliado aqui para o da percepção, é valiosíssimo,

pois é a partir da visão perceptiva que este mundo pessoal e do próprio sertão (onde vivem e

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convivem todas as alteridades do protagonista) poderá ser equacionado, flexibil izado dentro

de suas potencialidades e contrariedades. Dentro desta ótica, outro personagem pungente de

Guimarães Rosa é Miguili m, protagonista de “Campo geral” . Menino de ainda nem oito anos,

ele possui uma percepção que também resulta num sincero e obsessivo desejo de organizar e

compreender. Para Riobaldo e Miguili m, olhar e compreender são atos gêmeos, colados.

Mas é em Grande sertão: veredas que a obsessão pelo olhar encontra seu ápice.

Riobaldo é o personagem fulcral no que se refere ao aprendizado do olhar. Suas falas deixam

claras as diversas tentativas que o personagem faz para compreender o seu lugar, se não, para

encontrá-lo. Mas ele sabe que este aprendizado é perigoso e que são necessários muitos

esforços para compreender o seu, ou os seus destinos. Suas reflexões estão carregadas de

dúvidas e de desejos:

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso ascoisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares desaída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vaidar na outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.Viver nem não é muito perigoso. (ROSA, 1994, p. 28)

Esta confissão do protagonista é reveladora e traduz o sentimento de muitos outros

personagens diluídos na obra rosiana. A necessidade de ver e de rever é marcante no relato

de Riobaldo. Diante de um interlocutor silencioso, ele pode se dar ao privilégio de dizer e

desdizer-se, tirar as suas próprias conclusões. É ele que, sozinho, perfaz o seu caminho, num

diálogo simulado com o outro, mas que, na verdade, é um mergulho dentro de si mesmo. A

presença de um interlocutor silencioso ameniza o tom carregado do monólogo-diálogo,

porque partilhadas as aflições do protagonista com um interlocutor que não ouvimos, temos a

ilusão de que Riobaldo é compreendido por alguém, e que este interlocutor o ajuda a clarear

as vistas. Como o interlocutor, seguimos silenciosos nas trilhas do aprendizado de Riobaldo,

que mais uma vez confessa, por meio de indagações e constatações:

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Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seuperceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já estáempurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantosassombros... um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo:o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não tiro sombras dosburacos. (ROSA, 1994, p. 46)

1.3 AS PRIMEIRAS ESTÓRIAS: A ESTÓRIA NÃO QUER SER A HISTÓRIA

Na tentativa de nos fixarmos neste olhar de que temos falado apresentaremos, no

capítulo seguinte, um esboço das narrativas em que o foco da nossa tese se deterá. Julgamos

adequado um estudo que privilegie uma comparação ou uma associação entre duas ou mais

estórias, de modo que estas constituam uma espécie de blocos que tenham como eixo o

olhar, mas que por outras características comuns possam dialogar entre si. Chamamos de

características comuns aquelas principalmente ligadas ao perfil dos personagens, ou seja, o

que há de comum entre eles, e, nos perguntamos de que modo um não é o complemento ou o

oposto-complementar do outro. Não foi difícil conseguirmos esta articulação entre os

personagens, uma vez que, como já dissemos, as narrativas de Rosa não são um universo

estanque, mas formidavelmente se articulam umas com as outras.

Iniciaremos com os seguintes contos de Primeiras estórias: "As margens da alegria"

e "Os cimos". Trata-se de estórias que abrem e fecham o livro e são protagonizadas por dois

meninos, ou quiçá o mesmo, que vivem processos similares, metaforizados pelo tema da

viagem. Interessa-nos como abertura do presente trabalho esta possibil idade de refletirmos

sobre os processos de iniciação, de maturidade e de encontro com a dor. Nesse sentido, estas

estórias são exemplares. Publicado em 1962, “Primeiras estórias” revela um escritor a quem

não falta o domínio do gênero do conto curto.

Na seqüência faremos uma análise de "São Marcos", de Sagarana, e de "A

Benfazeja", do livro Primeiras estórias. A escolha destas duas narrativas se deve ao fato de

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que em ambas o tema do ver e do ocultar é muito bem pontuado, e nas duas somos

convidados a olhar, mas por meio de códigos e recursos narrativos distintos.

Outra narrativa muito inspiradora neste sentido e iluminada é “Substância”, também

do livro Primeiras estórias. Neste conto, impressionou-nos o genial enfoque dado pelo autor

aos jogos de luz, revelados na força inaugural do sol, que tudo revela, mas que, por outro

lado, pode turvar este delicado sentido que é a visão. Nesta estória, a luz solar pareceu-nos

evocar a própria extensão do ser da protagonista. É o que buscaremos ver.

Ainda em Primeiras estórias faremos uma leitura de "A menina de lá" e de "Um

moço muito branco", na observância das empatias entre os dois protagonistas, e no que eles

nos oferecem como personagens singulares, cujo olhar também nos parece singular. Neste

grupo de estórias buscaremos discutir a comunhão e o diálogo que existem da infância com a

velhice, uma vez que a presença de velhos e crianças soou-nos como uma oportunidade de

relacionarmos as duas faixas etárias, e de refletirmos sobre como elas podem se

complementar.

Do livro No Urubuquaquá, no Pinhém1, destacamos os delicadíssimos contos "Cara-

de-Bronze" e “A estória de Lélio e Lina” , visto que nestas narrativas temos um profícuo

encontro do velho e do jovem, e o tema da viagem, em ambas, constitui uma vez mais a busca

do auto-conhecimento e do conhecimento para o outro. Na primeira estória, a peregrinação

feita pelo jovem diz respeito à busca da Poesia, ou à essência das coisas. Na segunda, o

peregrino faz uma jornada que o iniciará na linguagem do amor, propiciada pelo seu encontro

com a velha Rosalina.

1 No Urubuquaquá, no Pinhém faz parte de Corpo de baile, livro que posteriormente se desdobrou em

três volumes, a saber: No Urubuquaquá, no Pinhém, Manuelzão e Miguilim e Noites do sertão.

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Três outras narrativas de livros distintos são-nos também muito preciosas: trata-se de

"Nenhum, nenhuma" (do livro Primeiras estórias)), "Fita-verde-no-cabelo" ( do lívro Ave,

Palavra)2 e "Arroio-das-antas", (do livro Tutaméia)

Quebrando a estrutura da análise por blocos das narrativas, faremos uma leitura de

"A terceira margem do rio", quando então teceremos uma reflexão sobre duas formas de

olhar que são a do filho (narrador da estória) e a do pai. Neste caso os dois personagens estão

muito interligados, e o olhar de um está diretamente condicionado ao do outro, principalmente

no que diz respeito ao filho em relação ao pai.

Como desfecho do estudo das breves narrativas, discutiremos também isoladamente

"Partida do audaz navegante", do livro Primeiras estórias, em que procuraremos nos

concentrar mais especificamente nas potencialidades poéticas e filosóficas da infância, que

irrompem naturalmente, sem exageros ou superficialidades na voz da menina Brejeirinha.

Nesta estória impressionou-nos a forma tênue como o autor colocou na fala da protagonista

temas metafísicos, e como ele captou o olhar da protagonista, no que ele tem de maiores

alegrias e claridades.

A última parte do nosso estudo propõe um percurso mais demorado na novela

"Campo geral", do livro Manuelzão e Miguili m. Trata-se de uma narrativa mais extensa, que

quanto ao gênero oscila entre novela ou "romancinho". Considerada pelo autor a sua

preferida, ela traz uma forte carga de emoção, porque apresenta muitos momentos da infância

de Guimarães Rosa, e porque a trama que envolve as crianças aponta para conflitos familiares

complexos e delicados, dos quais os protagonistas Miguil im e seu irmão Dito participam sem

a adequada maturidade e compreensão. É um texto que revela o lado sombrio da infância,

dificultado, na maioria das vezes, pela interferência dos adultos. Nela temos uma visão dos

2 Ave, palavra, livro póstumo do autor, publicado em 1970, é uma obra que reúne contos, crônicas e

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olhares infantis, mas de forma mais impactante, porque no universo das crianças há muitos

adultos e tramas. Deste modo, o olhar dos protagonistas não pára de se expandir e de

vasculhar os porquês das coisas, de sofrer, de se encantar, e de não compreender. No

entanto, ao mesmo tempo que nos vemos diante de conflitos perturbadores, podemos respirar

junto com os pequenos protagonistas sob um céu aberto e limpo, e aprender a olhar com eles a

natureza em torno, as pequenas e grandiosas belezas do Mutum, que é onde se passa a estória

de Miguili m e de sua família.

O pequeno Miguilim será o personagem em torno do qual desenvolveremos de

forma mais minuciosa a nossa pesquisa e sobre quem nos inspiraremos para tecer as nossas

reflexões sobre a infância e os procedimentos literários utilizados pelo autor para apresentá-la.

Com base nesta narrativa, dada a sua riqueza e extensão, dialogaremos com as crianças das

outras estórias, partindo sempre do princípio de que nas narrativas de Guimarães Rosa o olhar

da criança é uma possibil idade de examinarmos por contraste o olhar do adulto e

descobrirmos de que modo as formas de olhar se diferenciam. No primeiro, há ainda o

encantamento, o espanto, o susto, o atravessamento das coisas – conjugado a um olhar que só

vê e vive o que vê. No segundo, há o olhar posto em questão pela própria criança. Além disso,

não podemos nos esquecer de que em todas as narrativas, não obstante as adversidades

encontradas pelas crianças em seu percurso, as páginas da infância ainda podem ser lidas

como um momento único, mágico e numinoso na vida do ser humano.

Devido às características e singularidades de cada narrativa citada no decorrer do

trabalho, haverá capítulos mais extensos que os outros, o que não significa maior valorização

de uma narrativa em função de outras. No entanto, há alguns textos que exigem maiores e

minuciosos desdobramentos, dadas as suas peculiaridades e as possibil idades de diálogos com

poesia em prosa e verso.

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outras narrativas. Nesse sentido, “São Marcos” , “Cara-de-Bronze”, “A menina de lá”, “Fita-

verde-no-cabelo” “Campo geral” e algumas outras narrativas terão um enfoque mais

aprofundado, o que não comprometerá o aspecto de organicidade que pretendemos dar a este

trabalho.

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2 OLHAR E APRENDER

Os personagens do livro Primeiras estórias vivem uma realidade enigmática, que se

oferece em toda a sua complexidade, ambigüidade e imprecisão. Eles se entrecruzam no que

diz respeito à sua singularidade e à quebra dos cânones ou dos padrões de comportamento.

Então, embora cada um seja único, ao final da coletânea, podemos observar como um só

personagem incorpora todos os outros, como se fosse a coletividade mostrada pouco a pouco,

de forma separada. Para tanto, o autor precisou mostrar diversas individualidades;

prevalecendo, ao final, a unidade, e importando, sobretudo, a quebra absoluta dos padrões e

a revelação da tensão entre os contrários. Primeiras estórias apresenta, em estilo bastante

diferente de Grande sertão: veredas e dos outros livros de Guimarães Rosa, o tema da

perplexidade estreitamente vinculado ao tema da busca da identidade na singularidade e na

diferença. E a estes temas está vinculado, sobretudo, o ato de ver. Para representar e/ou

simbolizar tais procedimentos e intenções não poderia ter sido mais lúcida e adequada a

escolha dos personagens. Conforme Costa Lima " 'Primeiras estórias', no seu todo, mostra o

autor ainda explorando veios novos ou aprofundando antigos.” (LIMA, 1991, p. 500) E

continua: "Em Guimarães Rosa, o mundo se abre como problema. Ele é perplexidade e

mistério. Às vezes pode ele raiar numa "verdade extraordinária" : a alegria cósmica, de que o

amor é apenas uma das expressões. Outras vezes o mundo se fecha no seu círculo de enganos.

É assim que o mundo é aberto por Guimarães Rosa como um leque de perspectivas." (Ibidem,

p. 500)

Primeiras estórias é uma obra idiossincrática na trajetória do autor, pois apresenta

vários desdobramentos temáticos sempre relacionados à questão da relativização das certezas,

por meio de jogos constantes com uma linguagem que traz no seu bojo a inquietação dos

personagens, retratada nas singularidades dos seus procedimentos. É um livro repleto de

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elementos do plano mágico-simbólico, que se revelam na escolha dos personagens, no olhar

do narrador, na posição de onde vêem os meninos e meninas, na luminosidade sugerida no

jogo de luz e sombra, nas falas das crianças, no plano das reminiscências, e na evocação à

loucura, como forma não de desordem, mas de busca de uma outra instauração da ordem. É

uma coletânea de estórias povoada de crianças, loucos, cegos, e excluídos. Se a razão é

considerada um instrumento para uma apreensão ordenada do real, nestas estórias este

conceito é polemizado. E os comportamentos normais são colocados em choque. A presença

das crianças compõe poeticamente este questionamento do real, e o conceito de Razão, neste

caso, pode ser mostrado somente em tensão com o que é e o que parece ser. Porque a

compreensão das crianças, por exemplo, vai muito além do que elas sabem dizer. As suas

respostas extrapolam as definições. E neste sentido a expressão "Pré-consciência" – proposta

por Alfredo Bosi, é muito adequada, pois diz respeito a "modos pré-lógicos da cultura: o mito,

a psique infantil ." (BOSI, 1970, p. 484)

É importante ressaltarmos que a opção por estes personagens excepcionais está

muito relacionada com o próprio espírito criador do autor, que conseguiu construir uma obra

que fosse o espelho de sua própria inquietação. Tudo, em suas narrativas, revela este anseio

pela renovação e pela busca de uma palavra ainda por dizer, porque, subjacente a estes

procedimentos literários, está, mais que tudo, a busca de uma essência perdida, anestesiada no

homem. Fazemos das palavras de Maria Luísa Ramos nossas, pois traduzem

adequadamente o que estamos tentando dizer:

Com efeito, é essa a condição essencial do estilo de Guimarães Rosa: renovar, redescobrir,criar. E, assim como procura desvendar nas desgastadas palavras de todos os dias a sualatente expressividade, lança-se inteiro na ansiosa busca do humano, oculto na brutalmediocridade da massificação. Talvez, por essa razão, o escritor explore tanto aspersonagens infantis, a ponto de abrir e fechar o volume com estórias que envolvem oMenino, assim sem nome, sem comportamento estereotipado, reagindo com o maisespontâneo fervor às coisas do mundo e ao seu peculiar suceder. (RAMOS, 1991, p. 515,516)

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No intuito de ilustrarmos estes comportamentos não-estereotipados dos personagens

rosianos, mencionaremos, brevemente, alguns temas que aparecem na coletânea de Primeiras

estórias.

Em "A benfazeja" a cegueira física e espiritual, bem como o preconceito, são

nucleares no desenvolvimento da narrativa. A pergunta mais importante desta estória, a nosso

ver, é: sabemos olhar?

Nos contos "As margens da alegria", "Os cimos", "A menina de lá" e "Partida do

audaz navegante" há o transbordamento da infância. Inquietude, imaginação genuína, atitudes

líricas, vôos literais e metafóricos, disparates poéticos, intuições de toda espécie são os

ingredientes mais importantes para a composição destes enredos que nos fascinam por sua

singeleza carregada de uma força primitivamente humana. Por outro lado, estas estórias

revelam também, e de forma extremada, a inquietude de uma imaginação que quase beira a

angústia. Perguntas como "o que é o real", ou "o que é o imaginário" subjazem nas

entrelinhas. Exemplo máximo são os contos "Partida do audaz navegante" e "O Espelho".

Neste último o tema do olhar é princípio para a reflexão filosófica. Um verdadeiro tratado

sobre as formas do olhar se oculta e se revela por trás de uma expressão literária, que, por si

só, já se manifesta como uma nova percepção do olhar. Neste conto, a estória se torna um

pretexto para divagações e especulações que nos levam a um cenário composto por espelhos,

que são verdadeiros reflexos e ecos de imagens que o narrador vai apresentando e

questionando enquanto narra. Em "O espelho" há um profundo questionamento do Real,

sugerido pela própria imagem do espelho, do duplo. O que se vê é o que se é. Conto

filosófico, muito nos sugere acerca dos possíveis enganos do olhar.

Em “A terceira margem do rio", dúvida, melancolia e contemplação configuram

um cenário dividido entre terra e água. O passado, as lembranças e a memória são os

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impulsos poéticos que sustentam o misterioso conto "Nenhum, nenhuma", sendo possível

afirmar que o passado assume, em alguns momentos, a forma de um personagem. Conto de

indefinições, nele a verdade das coisas é tensionada pelas lembranças confusas do narrador.

O passado também será real, ou quando o narramos, ele entra no plano da ficção? Qual é a

certeza que temos acerca do vivido?

Em "Um moço muito branco", novamente surge a evocação ao mistério que se perde

em descrições factuais. Novamente nos deparamos com o jogo de luz e sombra. Novamente

alguém estranho precisa aparecer para lançar algum tipo de luz nova sobre a comunidade

cega. De forma muito tênue, o narrador mostra que do grotesco e assustador pode surgir um

ser delicado e claro de visão, ou seja, dos escombros de um possível terremoto, aparece um

homem muito branco, que reacenderá, sem que o saiba, alguns feixes de luz apagados.

Com relação às outras estórias, os temas serão abordados dentro de outra perspectiva

que será apresentada nos próximos capítulos.

2.1 "AS MARGENS DA ALEGRIA" E "OS CIMOS"

E, de olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante.. ("Os cimos", p. 511)

O Título Primeiras estórias soa-nos bastante sugestivo. Afinal de contas, trata-se de

estórias que vêm antes de outras, constituindo uma espécie de gênese, ou de uma tentativa de

encontrar a raiz, o momento primordial em que as coisas se dão, bem como o desejo de

encontrar aquela palavra mais primitiva e descolada de tudo. É um título que sinaliza o desejo

profundo do autor de encontrar e agarrar uma palavra pura, limpa, sem roupagens

corrompidas, brotada de um terreno fecundo e insólito.

Correspondendo a esta ordem do que vem primeiro, irrompe já a primeira narrativa

intitulada "As margens da alegria". E como fechamento, outra estória, de teor bastante

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parecido, intitulada "Os cimos". Na primeira estória, o personagem está à margem, apesar dos

seus sobrevôos. Na última, ele já chegou ao cimo. Em ambas temos um menino como

protagonista. Este menino, sem dúvida, percorre outras narrativas espalhadas pela obra de

Rosa. Entre as margens e os cimos muitas estórias se desenrolam, sem que se percam umas

das outras.

Em "As margens da alegria", de 1962, Rosa coloca-nos diante de um Menino que, na

sua lenta descoberta do mundo, transforma tudo o que lhe passa diante dos olhos em

experiência de dor e alegria, vida e morte. Essa aprendizagem se dá a partir da relação direta

com a natureza em toda a sua dinâmica, para a qual o Menino volta um olhar sem reservas,

cheio de admiração. Aqui a infância aparece como o lugar do crescimento, da descoberta, da

aprendizagem. O Menino tem como primeira fonte de conhecimento o olhar: "espiar",

"avistar", "ver" e "vislumbrar" são verbos que percorrem toda a narrativa. É, portanto, através

do olhar atento e encantado que ele conhece e re-conhece todas as coisas que encontra. "O

menino agora vivia; [diz o narrador] sua alegria despedindo todos os raios." E continua: "Ele

queria poder ver ainda mais vívido – as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se

pronunciava." (ROSA, 1994, p. 389)

A primeira grande experiência de maravilhamento, no entanto, se dá no instante em

que o Menino avista, no terreiro, o peru, que se exibia em todo o seu esplendor: "Belo, belo!

Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. (...) Satisfazia os olhos, era

de se tanger trombeta." (ROSA, 1994, p. 390) Na primeira narrativa, o Menino tem um olhar

maravilhado diante de tudo que lhe vai sendo apresentado. É do alto (do avião) que ele vai

desbravando as paisagens externas. Das alturas ao chão ele mantém o encantamento, e mesmo

na terra o que se oferece ao seu olhar não é maculado pela pequenez do chão, mas é

fantasiado e revisto pelo lance final quando surge o vagalume. O olhar deste menino é

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seduzido todo o tempo. Expectador atento, seus olhos incessantemente parecem estar

extasiados com o que se lhe oferece.

Mas nem tudo é alegria no percurso do Menino. De repente ele começa a conhecer o

mundo pelo viés da dor e da perda. Se antes o que os seus olhos captavam era um espetáculo

de cenas fundantes, o momento seguinte é captado pelo seu olhar como um cenário de

destruição. E é assim que a narração revela esse olhar que se vê impossibil itado de reter a

árvore que fora destruída. "Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o

acertamento – o inaudito choque – o pulso da pancada." (ROSA, 1995, p. 392)

Em "As margens da alegria" e "Os cimos" o protagonista chamado de o Menino

percorre os espaços aéreos. É curioso notar que em ambos os casos O Menino faz uma

viagem aérea, mas sob pretextos diferentes. O que fica de essencial nas duas narrativas é a

transformação realizada no protagonista após as experiências destas viagens. Na primeira

estória o Menino perde a alegria nascida no seu vôo de iniciação. Ao iniciar a viagem, no

espaço aéreo tudo se lhe desdobrava em felicidades. Ele era o acondicionado da alegria e

vivenciava as emoções mais singulares. No entanto, lançado ao chão, vive a experiência do

efêmero diante do encontro-desencontro com a ave morta. Expansão e contração aqui se

alternam bruscamente.

Narrada na terceira pessoa, esta estória conta a primeira viagem de avião feita pelo

Menino à cidade grande. Inicia-se com a frase, em letras maiúsculas: "ESTA É A ESTÓRIA."

(ROSA, 1994, p. 389) Acompanhado pelos tios, que são puras expressões de amor e afeto, o

protagonista vive um momento singular em sua vida. A viagem lhe é inédita e lhe causa

sentimentos de fascínio e leveza. O processo de crescimento é aí apresentado no momento em

que o narrador substitui "um menino" por "O Menino".

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A estória apresenta quatro momentos específicos: o da viagem, quando o Menino

vive uma experiência aérea, paradisíaca, e outros três acontecimentos terrestres. Um deles é a

aparição do peru no quintal da casa onde estava. O peru "completo, torneado, redondoso", o

"peru para sempre", o peru transbordando de "calor, poder e flor" (ROSA, 1994, p. 390)

representa o auge da vitalidade do Menino. No entanto, a terrível sensação da efemeridade é

experimentada no outro momento quando o protagonista, ao voltar do passeio, ávido de vê-lo,

depara-se apenas com "umas penas, restos, no chão". (Idem, Ibidem) O brusco

desaparecimento do peru representa o movimento oposto aos dois anteriores. Neste momento,

o Menino vivencia a experiência da morte: "O Menino recebia em si um miligrama de morte."

(ROSA, 1994, p. 390-91)

Em "Os cimos", estória que encerra a série de contos de Primeiras estórias, de

menino a Menino, outra era a vez, outra a estória, mas ainda assim velha é a estória. Nesta o

Menino vive a experiência da perda imanente da mãe, desde o início de sua viagem.

Acompanhado por esse sentimento, ele dialoga com os seus pensamentos, enquanto viaja, e o

mundo que o enreda é descrito pela ótica de sua tristeza. Também ele é um ascensionado, mas

na dor. Também ele precisa chegar à terra, como o outro menino, para, então, cumprir com o

seu processo de iniciação, edificar sua integridade enquanto ser dialeticamente construído. Na

viagem de volta, surge novamente o sentimento da perda: do seu querido companheiro, o

boneco macaquinho.

A viagem que ambos os protagonistas fazem no avião é muito simbólica para nós

que estamos observando a mirada e o foco com que estes personagens olham. Porque olhar de

cima é muito diferente de olhar de baixo. É a partir do alto que os meninos começam as suas

respectivas viagens, a primeira viagem. No entanto, inevitavelmente eles voltam para o chão,

onde terão que ver e viver outras experiências. O que nos importa nestas estórias é uma

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verificação do olhar admirativo, aquele que não cessa de se encantar e de se espantar, seja

quando eles iniciam a viagem do alto, seja quando eles pisam o chão e podem ver tudo de

perto. E o seu olhar é outro.

2.1.1 “Ver é ter à distância”

O título deste sub-capítulo inspira-se numa das premissas de um filósofo

contemporâneo que muito se tem dedicado ao tema do olhar. Trata-se de Merleau-Ponty.

Nestes dois contos que abrem e fecham respectivamente o conjunto das vinte e uma estórias

do livro, temos, de fato, o que consideramos um verdadeiro aprendizado do olhar. O que estas

estórias apresentam de especial para nós é a imagem do avião que leva e conduz o Menino.

Conforme Manuel Antônio de Castro, o verbo educar significa "conduzir para fora, fazer

desabrochar, fazer eclodir o ser humano que cada um é (...) Para fora não indica um

deslocamento espacial, mas a irrupção estruturante do vigor do ser do homem". (CASTRO,

1994, p.135) Deste modo a imagem das crianças sendo levadas para um outro lugar nos faz

pensar nesse espírito que as conduz para um aprendizado. Não só estas crianças, mas, como

temos observado em outras estórias, as crianças deixam provisoriamente o espaço conhecido

de suas casas e são conduzidas ou se conduzem para outros lugares. Em alguns casos elas

regressam, e em outros não. E a mudança espacial sugere, também, os movimentos internos

que são feitos para o crescimento e a evolução.

Quando acompanhamos o percurso dos meninos nas narrativas supracitadas, muitos

aspectos nos chamam a atenção. O primeiro deles é a generosidade dos mediadores naturais

que os acompanham nessa travessia, e que nos fazem pensar em eixos de harmonização das

disparidades impostas pelas contingências da vida diária, ou pelo mundo das contingências.

Não seriam esses mediadores os pontos de resolução ou de intersecção entre as dicotomias?

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Apesar da pergunta, a nossa ênfase está na forma e nos caminhos como essa viagem é feita e

nos significados que ela produz. 3

Parece-nos muito adequada a escolha do avião como veículo que faz a primeira

passagem dessas crianças. Será que vemos melhor do alto? Não parece bastante sugestivo e

alegórico que esta primeira viagem seja feita por via aérea? De que forma o nosso olhar ganha

em qualidade e em possibil idades, quando temos oportunidade de avistarmos o mundo do

alto? São duas as posições de onde se encontram ou para onde vão os meninos. Na primeira

estória o menino está às margens da alegria, beirando-a, tão próximo, tão estreitamente ligado

a ela, que é quase como se a tocasse com os olhos, com os quais vai ser afetado por todos os

privilégios que esta viagem lhe proporciona desde o início. Ele está, sim, reinando nos

espaços aéreos da alegria almejada, sem imaginar que lá embaixo terá que aprender a ver uma

outra porção da realidade, porque a vida congrega muitas possibil idades e nuances, porque

viver é sempre muito perigoso. E é sempre muito perigoso ver, pois neste ato está concentrada

também a exigência ou a necessidade de aprender. O ditado popular muito conhecido "O que

os olhos não vêem o coração não sente" possui valiosa carga semântica, porque se baseia

justamente na experiência popular, e naquilo que se crê a partir do que não se vê e do que

deve ser evitado. Neste ditado resvala a crença de que o sentimento e as emoções mais

profundas estão aliadas, antes de mais nada, ao que se vê. Quem pouco vê, menos risco tem

de sofrer, é o que também insinua o ditado.

No entanto, se não vemos, como saberemos? Como aprenderemos? Como partícipes

de um dilema ou de um impasse precisamos a todo momento nos lançarmos ao exercício do

3 (O tema da viagem foi amplamente explorado por Guimarães Rosa. Estórias como as supracitadas

fazem parte de um conjunto de outras narrativas em que é explorado o aprendizado por meio das viagens.Exemplo valiosíssimo é "Cara–de-Bronze", que será cuidadosamente apreciada.

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olhar, que, por sua vez, nos propicia a experiência de vôos maiores, pois, quanto mais vemos,

de mais ânsia de compreensão e de luz padecemos.

Os Meninos desta estória possuem um sentido da coragem e, na estória final, o

protagonista, não obstante esteja sofrendo, percebe-se que é vendo que ele aprende. Sem

dúvida não era isto que ele desejava ver. Mas como prever? Como pouparmos sempre os

nossos olhos do que o coração não deseja ver e saber? Como evitar este aprendizado da dor?

Neste ponto, Guimarães Rosa é um grande mestre para nós, porque ele não desfigura a dor,

nem a banaliza, mas dissolve-a neste constante processo que é o perguntar. O Menino de "As

margens da alegria" ainda está às margens, porque o seu processo de conhecimento da dor e

da alegria está apenas iniciando-se. Neste momento da estória, precisamos recordar que o

elemento de luz tão necessário ao processo de aprendizado aparece no desfecho do conto,

ainda que não traga de volta o peru e a árvore para o protagonista, primeiros objetos da sua

alegria de olhar. No entanto, há uma concil iação de dois elementos, que são interiorizados

pelo Menino.

Na segunda estória, muitas coisas já aconteceram. Já se passaram, não muitos anos,

mas muitas estórias, e o Menino, se é que é o mesmo, volta. No entanto, a sua posição é

outra, e a dimensão de sua dor é bastante profunda, se considerarmos que agora ele viaja para

se afastar da mãe que está muito doente e precisa de cuidados. Ele vai mais alto, mais

profundamente no seu aprendizado da dor . Sua viagem tem outro objetivo, mas o significado

é o mesmo da primeira. Aprender, reconhecer, e superar. Novamente aí o aprendizado está

ligado ao ver, ou vice-versa, porque ele está diante de uma situação de conflito, da qual não

pode fugir . A viagem de avião propicia-lhe muitas descobertas, e como o Menino da primeira

estória, seus olhos captam a paisagem em toda a sua amplitude.

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Na primeira estória, as tensões a que temos nos referido são apresentadas

inicialmente pelos espaços aéreo e terrestre, pelo deslumbramento causado diante da

contemplação do peru, pelo desencantamento ao vê-lo morto e bicado por outro, e novamente

pela restauração da alegria no surgimento de um vagalume que aparece inesperadamente. As

perguntas são mais intuídas e sugeridas que reveladas. Elas não são totalmente verbalizadas

pelo Menino, mas o narrador que o conhece, que está atento ao que ele vê, sugere as

artimanhas das quais o seu espírito foi presa nas poucas horas em que se passa o enredo,

poucas e suficientes para que tivéssemos um vislumbre de como a vida é mutação constante, e

independentemente do nosso querer. Ao Menino só foi restaurada a paz porque ele soube ver

o vagalume. O que é um vagalume perto da grandiosidade e dos encantos de uma ave como

um peru? No entanto, ele soube ver a luz, a centelha de luz que vinha daquele pequeno inseto.

E foi com esta centelha que ele conseguiu restabelecer a luminosidade que permeara a sua

viagem até o incidente no quintal. A dicotomia foi resolvida, não porque o final tenha sido

feliz, mas porque ele pôde ver, no vagalume, uma possibil idade.

Não é o que se vê que importa, mas o como se olha. Talvez este seja o grande

aprendizado que estes personagens rosianos, aos quais incluímos os narradores, tenham para

nos ensinar. Até quando o seu olhar vacila, titubeia e se engana, como é o caso de Riobaldo

em Grande sertão: veredas, ainda assim e talvez por isso mesmo, estamos aprendendo com

ele.

Esta pequena e primeira estória mostra também que as resoluções que o narrador

encontra para revelar as dicotomias irrompem do fundo de um campo de visão sempre

possível, e que nos traz mais uma pergunta, para a qual, já há lampejos de respostas. É

possível lançar às dicotomias um olhar que lhes devolva a unidade, que as misture? Esta é

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uma pergunta que talvez encontrará respostas no decorrer desta escritura, e na expressão de

Riobaldo, quando se refere ao mundo como "mundo misturado".

Voltando-nos um pouco para "As margens da alegria", é possível dizer que o

primeiro aprendizado do Menino é, sem dúvida, o da alegria.

Na obra de Rosa, o sentido unilateral das coisas é desmitificado o tempo todo. Sem

colunas que os sustentem, os conceitos cristalizados podem "respirar", e é em outros lugares

que poderão ser polemizados. A metáfora dos meninos sobrevoando a terra é, nesse sentido,

muito significativa, porque antes de mais nada, a ampliação do campo de visão é favorecida, e

também porque às crianças é oferecida a oportunidade de se libertarem da fixidez do chão e se

lançarem ao vôo primeiro que é o abraço do céu e de tudo o que os seus olhos poderão

contemplar do alto.

Tem um significado especial para nós o lugar de onde esse Menino vê. A situação do

Menino é de um observador do universo, que se vai descortinando aos seus olhos como um

presente. Sua relação com as coisas vistas e contempladas é a de quem vê de cima. E isto

muda tudo. Além desta posição, digamos, privilegiada destes meninos, pela visão panorâmica

que lhes é proporcionada, a altura evoca um outro significado, ou outros, que nos remetem a

uma idéia de hierarquia do olhar. Isto se considerarmos que quem abre a galeria de

personagens desta coletânea é um menino e que quem vai fechar é também um menino, na

mesma posição, das alturas para a terra. Depois de contada a primeira estória, todas as outras

são narradas já com as crianças na terra, para retornar novamente o Menino a mais uma

viagem de avião.

É inspirador para as nossas reflexões lembrar Ricardo Reis, numa de suas imagens

poéticas que diz o seguinte: “Mais alto estão os deuses (...) visíveis à nossa alta vista.”

(PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 337). A criança vê por inteiro, vê amplamente primeiro,

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para só depois separar o que vê. Mas de qualquer modo, este seu primeiro olhar pode ser

comparado com o olhar dos deuses, dos poetas, dos artistas.

É assim que, de acordo com Reis, os deuses olham, de cima, à distância. "Vê de

longe a vida (...) Imita o Olimpo no teu coração." (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 337).

Em cuidadoso estudo sobre os olhares de Fernando Pessoa e dos seus heterônimos, Perrone

explica que " A altura é o desafio enfrentado por Ricardo Reis. Não podendo olhar dos céus,

como os deuses, Ricardo Reis busca ao menos o alto das colinas, "longe de homens e de

cidades", onde ninguém, nem coisa alguma, lhe vede a vista. (Ibidem, p. 337)

Olhar como os deuses, continua a autora, é, para Ricardo Reis, ter um conhecimento

imediato, total, sintético, oposto ao conhecimento analítico da ciência humana, "contemplação

estéril " que olha "até não ver nada com seus cansados olhos" (Ibidem, p. 338) Já os deuses, ao

contrário, conforme comenta a autora, possuem um olhar clarividente, ou o olhar ideal.

Nestas duas estórias que emolduram o livro Primeiras estórias, o sertão é visto do

avião e há a presença dominante da ave (peru e tucano) e do avião.

Em "As margens da alegria" o olhar do menino é um olhar que abarca as coisas

vistas, porque o mundo é, pela primeira vez, descortinado a ele como um espetáculo, e porque

a paisagem sobrevoada é nova, vista pela primeira vez. Tudo estava se inaugurando. Mesmo

ao chegar à terra, são novas as significações que ele terá que criar com o seu olhar. Os

elementos naturais vistos e abarcados agradam-lhe docemente aos olhos, mas também, ele o

descobre mais tarde, podem feri-lo. Não se exclui nada nessa narrativa, nem mesmo a dor;

tudo é abarcado, e experienciado pelo olhar. Pelo contrário, a cena do peru morto sendo

comido por outro é bem real, e o menino está parado diante dela, vendo-a com os mesmos

olhos que anteriormente contemplaram e se deliciaram com a imagem majestosa do peru no

quintal. O que podemos abstrair dessas imagens é, inicialmente, e já como ponto de partida

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para as considerações sobre as outras estórias, que o ato de olhar é um aprendizado ao qual

estamos sempre expostos, e para o qual podemos ou não dar os significados que estiverem ao

nosso alcance. O que muda com a chegada do vagalume, ao final da estória, não é a

substituição de um objeto de contemplação por outro, como simploriamente julgamos muitas

vezes podermos enganar as crianças diante da perda de algo querido. Pelo contrário, a

experiência da perda foi vivida, e a presença de uma criatura tão minúscula como o vagalume

só teve importância graças à perda do majestoso peru. Mas isto porque olhamos ambos como

um conjunto, ou dentro de um conjunto, em que nada é excluído. O Menino desta estória olha

com admiração. Mas, além disso, ao ver, percebe as diferenças e adquire mais conhecimento.

Das margens ele poderá chegar aos Cimos, que é de onde os deuses vêem melhor.

As tensões existenciais são mostradas por meio da apresentação dos espaços

geográficos: céu e terra; espaço rural, espaço urbano. Podemos dizer que todo o sofrimento ou

conflito dos personagens está tensionado entre o que podemos chamar de duas partes de um

mesmo eixo, mas desunidos de seu centro. Essa luta é muito marcada pelo ato de perguntar,

que, por sua vez, remete ao ato de aprender, o qual está em estreito ato dialógico com o ato

de ver.

O que mais nos angustia não será a nossa incompreensão acerca dos mistérios? E por

isso mesmo, diante desta impossibil idade de apreensão do obscuro, os personagens de Rosa,

ao invés de tentarem apreendê-lo, vivem-no intensamente. E é o que de mais fascinante há

em sua obra. É o que lembra Riobaldo, em Grande sertão: veredas: “Ah, o que eu não

entendo, isso é que é capaz de me matar...” (ROSA, 1994, p. 211) Para o Menino,

recentemente iniciado no aprendizado do "deslumbramento", o impacto da morte do Peru e a

visão de outro da sua mesma espécie bicando-lhe a cabeça é algo incompreensível, e que o

seu olhar interno ainda não consegue captar. A separação entre o deslumbrar-se e o indignar-

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se é um aprendizado difícil e doloroso: "O menino não entendia." (ROSA, 1994, p. 44) Olhar

também é uma tentativa de entender. De ver para crer, ou se não, para descrer. Não só este

menino tem dificuldades com o que vê. Riobaldo, jagunço corajoso, respeitado por todos,

sofria por não ver, e depois por ter constatado que não viu o que sempre estivera tão próximo.

“Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?” (ROSA, 1994,

p. 220), pergunta-se mais uma vez Riobaldo. Para este, seu campo de visão só se alargou

depois que o tempo passou e ele pôde parar, tomada a distância, e ver o que se passara.

Muitas vezes somos traídos pelo que vemos, porque somos o próprio processo que

vivemos, somos a própria dor e a alegria que vivemos, somos o sujeito e o objeto, não nos

distanciamos. Não é de se espantar a posição privilegiada que tem o narrador. Por isso, ele vê

tão bem, e tem aprendido tanto com os personagens. A sua posição é outra, e, portanto, é

outro o seu foco. O desafio maior desses personagens, velhos, jagunços experientes,

fazendeiros, crianças, mulheres... refere-se ao aprendizado da harmonia, da organização das

coisas, da busca da completude.4

2.1.2 Às margens do invisível

Ao tratarmos do olhar na obra de Guimarães Rosa, tornamo-nos mais propensos a

buscar o invisível que o visível. Porque é justamente lá, no lugar do invisível, que moram as

quase-certezas, configuradas no mistério das coisas, que não se desvelam a não ser para um

olhar que sabe captar, e às vezes - sem consciência disso - o que não é precisamente captável

pela vista, o que habita o espaço do possível e que, para ser abraçado, precisa estar,

simultaneamente, despojado da crença excessiva no poder do olhar. Portanto, como num

paradoxo, para encontrar o lugar onde habita o invisível é preciso desvendar o olhar.

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Esse olhar desvendado quem melhor o possuiria do que as crianças? É um olhar

desvendado, desarmado, desavisado, desenviesado, que pode ver o invisível e, como o do

Menino de "As margens da alegria", perceber que "A vida podia às vezes raiar numa verdade

extraordinária." (ROSA, 1994, p. 389) É ainda, como o olhar de Nhinhinha, a menina de lá,

que pode ver o que ninguém vê. Por que só ela vê? E por que todos acham extraordinário o

que ela vê? Será mesmo extraordinário o que ela vê, ou será que ela apenas capta o invisível,

aquilo que deixou de ser entrevisto? As crianças de Rosa têm uma relação sensorial com o

mundo que as cerca, especialmente no que diz respeito à visão. No mundo delas há um vasto

espaço para a vivência das paixões e dos desejos, e as suas indagações se dão num corpo-a-

corpo com a realidade, enormemete explorada pelo sentido da visão. Por isso, muitas crianças

parecem não ser deste mundo, mas de um outro, de um lugar desconhecido. No entanto, elas

apenas conseguem ver à distância, sem saírem do seu microcosmo, que já é um grande

universo para suas especulações.

O olhar atravessado do menino de “As margens da alegria” também sabe prolongar o

que consegue ver, o que deve ficar de afetos para a sua alma. Por isso, ele sabia, em algum

canto do seu ser, que se tivesse olhado mais, e se demorado nesse olhar, ele manteria na

memória a primeira experiência, a da alegria. Na iminência da perda, por que ele não se

demorou mais no olhar?: "Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o

peru – aquele. O peru – seu desaparecer no espaço." (ROSA, 1994, p. 391) Também

Riobaldo, naturalmente que em uma dimensão diferente, questiona-se sobre o fato de não ter

olhado apropriadamente. Se ele soubesse, se ele tivesse olhado mais, teria visto que Diadorim

não era o que parecia ser? Mas, por outro lado, nosso olhar às vezes segue a contramão das

revelações. “Não é no escuro que a gente percebe a luzinha dividida?”(ROSA, 1994, p. 199) É

4 Com relação às crianças cremos que Miguilim é o maior representante desta busca, e dos adultos

Riobaldo.

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o que pergunta/afirma/questiona Riobaldo, que tanto e com tanta força olhou para o que talvez

ele já tivesse des-coberto. Na força em que se concentrava o seu olhar residia uma aflição por

descobrir, por acertar o alvo do problema de sua existência. Por isso, olhava intensamente

para tudo, e para Diadorim, principalmente, motivo maior de suas dúvidas: “Olhei bem para

ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu

tinha inventado.” (ROSA, 1994, p. 188)

O ato de olhar não é um dado pronto, completo e absoluto. É um processo que

permanece mesmo depois de lançado o olhar. Este momento primeiro em que julgamos ver

não é senão o início de um longo aprendizado que permanece, não obstante nos tenhamos

distanciado do objeto contemplado. Olhamos para guardar e para compreender, e muitas

vezes, para, só mais tarde, muito mais tarde, rever e aprender. Lançado o olhar, aberto o

campo de visão, estamos aprendendo.

Nosso olhar é também sinônimo de desejo. Olhamos porque desejamos, porque a

experiência do olhar pode erotizar a vida: "O Menino via, vislumbrava. (...) Ele queria poder

ver ainda mais vívido - as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se pronunciava.

(ROSA, 1994, p. 390) Novaes nos lembra que "O olhar deseja sempre mais do que lhe é dado

a ver. " (NOVAES, 1988, p. 9) E é isto que o Menino de "As margens da Alegria" e de "Os

cimos" almeja: ver o que está além, compreender, apreender.

Esta perspectiva de um olhar que busca alcançar o inalcançável, o que está além das

aparências, convida-nos a dialogar com o sentido invisível que há nas coisas visíveis,

conforme nos diz Merleau-Ponty em suas reflexões sobre o olhar: “...O sentido é invisível,

mas o invisível não é o contrário do visível: o visível possui, ele próprio, uma membrura do

visível, e o in-visível é a contrapartida secreta do visível, não aparece senão nele, (...) não se

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pode vê-lo aí, e todo o esforço para vê-lo o faz desaparecer, mas ele está na linha do visível,

é a sua pátria virtual, inscreve-se nele (em fil igrana). (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 198-200)

2.1.3 Diálogo entre meninos: “As margens da alegria” e “Os cimos”

Em "Os cimos" a figura do tucano representa a unidade de tudo, a bondade natural

das coisas, no sentido que lhes deu Plotino. Para a figura do pássaro confluem os outros

elementos da natureza: o sol, o dia, a luz. O poder poético da linguagem é ajustado à visão

mística do mundo. O vôo do tucano ao despontar do dia e a aurora se fundem com a emoção

do menino, com as saudades do lar materno e com a renovação que nele se opera ao saber que

a mãe estava curada. Nesta estória o menino plaina acima do mundo, acima do tempo, vendo-

os fluírem juntos.

O aprendizado da dor aqui se configura como um processo de introspecção, do olhar

que se volta para dentro: "E o Menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de

si. Estava muito para trás." (ROSA, 1995, p. 509), afirma o narrador. Conforme Lisboa "...o

instinto metafísico, o mais agudamente inteligente dos instintos humanos, manifesta-se desde

tenros anos."(LISBOA, 1991, p. 171) E essas estórias, por meio de passagens simples,

revelam uma fecunda capacidade de perguntar. O próprio tema da viagem é uma evocação às

dinâmicas em que o deslumbramento com a natureza e a possibilidade de contemplar

paisagens ainda não vistas se misturam e ao mesmo tempo se separam de um encontro

inevitável com o sofrimento.

Nessa estória o menino queria parar de ver. Porque assim, de olhos fechados, poderia

esquecer: "A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer

seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que

ensaiam esculturas efêmeras." (ROSA, 1994, p. 510) Trata-se de um processo oposto ao que

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vive o menino da primeira estória, quando este demonstra o desejo de olhar mais as coisas,

porque elas podem mudar, e se perder. O Menino desconfia de tudo. "Enquanto a gente

brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de acontecer, elas

esperavam a gente atrás das portas. " (ROSA, 1994, p. 510)

Nessa estória impera o sentimento da melancolia desde o início da narração. Que

aprendizado este menino deverá ter? Certamente que o da restauração da confiança. Há, para

ele, uma possibilidade de luz que incendeie os seus olhos? É o que nos promete responder a

passagem abaixo:

E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado, o Meninorecebia uma claridade de juízo – feito um assopro doce, solto. Quase como assistir àscertezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidospensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito idéias de gente muito grande.Tanto, que, por aí, desapareciam, esfiapadas. (ROSA, 1994, p. 511)

Se em "As Margens da alegria" surge o Peru como símbolo da exuberância e depois

o vagalume como exemplo de restauração, em "Os Cimos" a transcendência pode ser feita -

ou a travessia da sombra para a luz – por meio do surgimento de um tucano:

E: - 'Pst!' – apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido horizontal.Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigosvermelhos do pássaro- depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de enfeites, o bicosemelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da árvore carregada. Toda aluz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar,estapafrouxo, suspenso esplendentemente. (ROSA, 1994, p. 511)

E é esta ave, novamente uma ave, que motiva o menino a abrir os seus olhos. "E, de

olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos

silêncios de um-dois-três." (ROSA, 1994, p. 511) A visão desta ave não afeta só ao Menino,

mas também ao tio. "Até o Tio. O Tio, também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os

óculos." (Ibidem, p. 511)

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A contemplação da ave traz nova dinâmica para o Menino. Como dissemos

anteriormente, não se trata de darmos significado ao que se olha, mas de atentarmos para

como se olha e os significados que se potencializam neste ato. É nesse momento crucial, em

que o Menino está no limite de sua dor e desconfiança do mundo, que a aparição do Tucano

eleva esta estória. Nessa passagem, o Menino é reiniciado e lançado à luz que há dentro de si.

É convidado a olhar. E é esta abertura para o olhar que dá a esse trecho tanta dignidade.

Mudam-se as cores, as tonalidades. Doura-se a paisagem, antes tristonha e sombria: "De lá, o

sol queria sair, na região da estrela – d'alva. (...) Por ali , se balançou para cima, suave, aos

ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a luz por tudo. Agora, era a bola de ouro

a se equilibrar no azul de um fio. " (ROSA, 1994, p.512)

O desfecho desta passagem aponta para uma superação da fala como ato que

ressignifica e traduz a experiência, ou seja, " ...o Menino nem exclamava. Apanhava com o

olhar cada sílaba no horizonte."(ROSA, 1995, p. 512) Soa-nos perfeito e equilibrado este jogo

entre o falar e o silenciar, que pode ser substituído pelo VER. Neste caso, as palavras

assumem aquele lugar a que se refere Lisboa, ou seja, como "...palavras anteriores à lógica."

(LISBOA, 1991, p. 171)

Sem receio podemos ver que nesta estória o Menino é salvo, resgatado pela

contemplação. O olhar aqui é passagem, abertura para um outro campo de visão e de atenção.

Foi preciso desviar-se de um ponto, no qual estava fixado o sentimento da perda, para o

personagem perceber outro. Não é à toa que este conto recebe o nome de "Os cimos". Nele

ocorre uma dinâmica de elevação espiritual, que tem início em "As margens da alegria" e é

amadurecida neste derradeiro conto. Nos cimos. Das margens para os cimos. A paisagem

geográfica, mais uma vez, é elevada a uma condição metafórica, - lugar da epifania - sem, no

entanto, perder o caráter de sua marcação toponímica.

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Na segunda parte, " O Trabalho do pássaro", atentamos para o ato de olhar como

desejo de vivência da fantasia. Esta parte nos propõe uma realidade (na concepção do

Menino) como difícil de ser vivida. Também Miguili m e outras crianças revelam o mesmo

procedimento diante da realidade que se apresenta de forma tosca. Daí a necessidade de

fantasiar e de sonhar, de abrir os outros olhos. As coisas olhadas são precauções, são uma

ameaça para o Menino.

Como num ciclo que se completa, esta coletânea, aberta por "As Margens da

alegria", é harmoniosamente fechada por uma viagem de volta para a paz e a organização das

coisas. É como se, após todas as viagens e processos vividos, fosse possível voltar para casa.

Nesta última estória o Menino atinge o topo da experiência e pode, então, retornar. O ciclo se

completou. Nada deixou de ser vivido.

Cada criança, no seu processo de iniciação, está, no fundo, vinculada aos meninos da

primeira e da última estória. Metaforicamente estas duas narrativas revelam a unidade ou o

desejo de busca da unidade. Percebemos também que há uma estreita articulação entre os

personagens, principalmente entre as crianças. Além disso, a caminhada delas, iniciada nas

margens, encerra-se nos cimos. Generosamente essa marcação topográfica eleva as crianças a

um plano em que é possível viver a superação da adversidade. Lançadas ao topo, elas podem

seguir renovadas pelo conhecimento e pelo aprendizado advindos das provações e das

alegrias.

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3 APRENDENDO A VER

3.1 DE OLHOS VENDADOS: “SÃO MARCOS”

E como era bom ver! ("São Marcos", p. 2)

Nesta parte do nosso trabalho, introduziremos uma narrativa que, de certo modo,

também está relacionada ao tema do olhar como forma de aprender. Nesta estória, o

protagonista, mesmo sendo adulto e possuidor de grandes conhecimentos, também fará um

rito de passagem. Haverá, para tanto, um deslocamento, por meio do qual o caminho de volta

para casa deverá ser revisto e reaprendido.

Parece paradoxal um estudo sobre o olhar que valorize, como será mostrado a partir

de agora, personagens que foram privados da visão. Isto se explica, no entanto, pelo fato de

que para nós as duas perspectivas - a do ver e a do não ver - devem ser colocadas lado a lado,

e também porque os personagens rosianos, ainda quando não vêem, só aparentemente não o

fazem. Olhando a questão por este ângulo, vale mencionarmos a nuance que existe entre ver e

olhar. Adauto Novaes, no artigo "De olhos vendados", levanta a seguinte pergunta ao se

referir à realidade e à precisão científica: "E por que, dentre os sentidos, o olhar é o primeiro a

ser chamado à ordem?" (NOVAES, 1988, p. 9) O autor tenta responder à pergunta

questionando a premissa aristotélica segundo a qual é a vista a responsável pela maior

aquisição de conhecimentos e pela descoberta de mais diferenças. Como falaremos demasiado

sobre os verbos "ver" e "olhar", é importante que tentemos distingui-los para que possamos

também justificar a inclusão, numa pesquisa sobre o olhar, de personagens que "não vêem".

Conforme explica Cardoso:

O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição e passividade ou, ao menos, algumareserva. Nele um olhar dócil , quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as espelha e

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registra, reflete e grava. Diríamos mesmo que aí o olho se turva e se embaça, concentrandosua vida na película lustrosa da superfície, para fazer-se espelho... Como se renunciasse a suaprópria espessura e profundidade para reduzir-se a esta membrana sensível em que o mundoimprime seus relevos. Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e àsvirtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Eleperscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre danecessidade de `ver de novo (ou ver o novo), como intento de `olhar bem`. Por isso ésempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor. Como se irrompessesempre da profundidade aquosa e misteriosa do olho para interrogar e iluminar as dobras dapaisagem (mesmo quando ´vago ou `ausente deixa ainda adivinhar esta atividade, o focoque rastreia uma paisagem interior) que, freqüentemente, parece representar um mero pontode apoio de sua própria reflexão. (CARDOSO, 1988, p. 348)

"São Marcos", narrativa de Sagarana, é um exemplo importante de como o sentido

da visão é enfatizado e prestigiado pelo autor. Neste conto, em especial, o tema da visão é

enfocado de forma mais direta e não nas entrelinhas, como ocorre nos outros contos. O autor

se demora na descrição dos detalhes da paisagem percorrida e nos oferece belíssimas

passagens dedicadas aos encantamentos do olhar, mostrando-nos o que a perda da visão pode

desencadear. De acordo com o autor, em carta escrita a João Condé, esta estória foi

"Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de

paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro." (ROSA, 1984, p. 11) O

protagonista da estória, chamado João e também José, após perder provisoriamente a visão,

passa a ter uma percepção apuradíssima de si e do mundo circundante. Começa a "ver com os

ouvidos", e todos os sons, até então não percebidos, tornam-se verdadeiras possibil idades de

contatos com o mundo. Na mesma linha, em "A Benfazeja" (de Primeiras estórias) e em uma

breve passagem de "Um moço muito branco" ( do mesmo livro) encontramos outra vez o

tema da visão, mas nestes casos, da visão perdida. Esta presença do olhar, bem como de suas

polaridades, faz-nos pensar na valorização deste sentido pelo autor. Em "São Marcos", o

olhar que vê o nascer para a luz contempla também o mergulhar na treva. Primeiro transborda

a luz: “No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul; gláceo, emborcado (...) e a leste

subia o sol, crescido, oferecido – um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a

mexer.” (ROSA, 1984, p. 244) E, depois, quando fica cego, a luminosidade do mundo lá fora

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é substituída por absoluta escuridão, descrita desse modo pelo narrador: “Era a treva, pesando

e comprimindo, absoluta. Como se eu estivesse preso no compacto de uma montanha, ou se

muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior do que uma câmara-escura. Ainda pior do

que o último salão de uma gruta, com os archotes mortos.” (ROSA, 1984, p. 261) É

interessante observarmos que a escuridão foi associada a volume e que neste caso a falta de

luz pesa e comprime. É o contrário de claridade, que está ligada a amplitude e leveza, como

nos sugere o primeiro trecho da descrição.

Parece bastante curioso também o fato de que, antecedendo a cena da perda da visão,

a narração se dilui num delicado e minucioso processo descritivo que abarca paulatinamente

os caprichos do olhar e da natureza. Neste momento de minuciosa descrição e apresentação

das árvores os enunciados são pontuados de modo dinâmico, e o ritmo vertiginoso do período

sugere a urgência, por parte do protagonista, de tudo captar com o olhar, como se houvesse

um pressentimento de que em breve esta mesma visão seria bruscamente interrompida. Veja-

se a passagem:

E as superfícies cintilam, com raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrandoasterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tábuas,taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbaúbas, mui tupis. E oburitizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos,flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques ; de todas as alturas e de todas as alturas ede todas as idades, famílias inteiras, muito unidas: buritis velhuscos, de palmascontorcinadas, buriti-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos. (ROSA, 1984, p. 256)

Por meio desse olhar cristalino, sem molduras, temos contato com o lugar, que se

expande para além dos prazeres que a visão propicia, e atiça os outros sentidos como o olfato

e a audição. É impressionante a forma com que é construído o olhar do personagem nos

breves instantes que antecedem o seu mergulho na escuridão. É um olhar que cheira, que toca

e que ouve, como nos trechos a seguir:

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"Passou uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado dasborboletas..." (ROSA, 1984, p. 260)

"E as flores rubras, em cachos extremos – vermelhíssimas, ofuscantes, queimando os olhos,escaldantes de vermelhas, cor de guelras de traíra, de sangue de ave..." (ROSA, 1984, p.258)

"Estou entre o começo do mato e um braço de lagoa, onde, além do retrato invertido de todasas plantas tomando um banho verde no fundo, já há muita movimentação." (ROSA, 1984, p.258)

O protagonista descreve o canto e o simples ensaio do canto dos pássaros, a textura

de todas as formas visíveis, as cores, os sons, os murmurinhos quase imperceptíveis da mata.

Seu olhar é pura claridade e nos convida a um jogo de deliciosa sinestesia, o que nos leva a

pensar que este é um conto para se ler com os olhos e com os ouvidos, ou então, que

precisamos colocar em alerta todos os sentidos. Por isso, a apreciação dessa "vista", desse

fenomenal golpe de vista do protagonista nos é tão precioso, porque é um olhar que precisa

passar por um ritual pautado na falta, na lacuna, ou seja, o personagem passará por um

processo de ruptura com o que ele tinha de mais vigoroso: a visão. A cegueira temporária -

punição do feiticeiro de quem ele zombou - é como um daqueles castigos que os deuses se

impõem a si e aos mortais, por vingança, por inveja, ou porque percebem que eles estão

passando da medida. Tirésias, por exemplo, conhecedor do segredo do prazer sexual

feminino, foi condenado pela deusa Hera a vagar cego para sempre. Zeus, compadecido dele e

reconhecendo sua sabedoria, compensa-lhe com o dom da profecia. Tirésias perde a visão de

fora, e se torna um vidente. No caso de “São Marcos” , no entanto, o protagonista não tem

sabedoria, e sim conhecimentos. É justamente o poder advindo destes conhecimentos que o

torna um homem cego para o saber local. Deste modo, por analogia ao que acontece a

Tirésias, em “São Marcos” , quando Mangalô tira a visão de José, repete o gesto de Hera -

por outros motivos naturalmente. Cegá-lo é uma forma de mostrar-lhe que ele precisa

aprender a olhar melhor, ou a ver de outro lugar. Afinal, ele é, como Tirésias parecia ser para

a deusa Hera, uma ameaça para a comunidade. Mas, ao contrário do que acontece na tragédia,

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José é castigado não porque sabia demais sobre a comunidade, mas porque sabia de menos, e

não reconhecia outra forma de cultura que não fosse a sua, sustentada pelo seu pensamento

analítico. Com os olhos vendados haveria uma chance de José exercitar uma nova visão. A

respeito da lenda do profeta Tirésias, Campbell nos faz lembrar que: “(...) quando os olhos

estão fechados para os fenômenos que distraem a atenção, você se concentra na sua intuição e

pode entrar em contato com a morfologia, a forma básica das coisas.” (CAMPBELL, 1990, p.

212)

José é mais um personagem gerador de tensões criado por Guimarães Rosa. Muitas

passagens mostram um personagem totalmente mergulhado na natureza, e é através dos seus

conhecimentos que podemos também usufruir dos mínimos detalhes do lugar. Seu olhar, às

vezes, assemelha-se a um gesto contemplativo, e percebemos que ele está, de fato, integrado à

paisagem. Ele próprio se denomina contemplativo: "E lá está o joão-grande, contemplativo,

ao modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista de galo e coral."

(ROSA, 1984, p. 259) Entretanto, ao passo que a narração vai se desenvolvendo e que ele vai

se embrenhando na mata e tecendo os seus comentários, percebemos que se trata mais de um

observador da natureza, (à semelhança dos cronistas de viagem, que tinham uma relação de

profundo interesse e curiosidade com a paisagem tropical e seu exotismo) que propriamente

um homem dado à contemplação. De certo modo, lembra-nos o próprio João Guimarães Rosa

nas suas viagens, quando sempre tinha o cuidado de anotar tudo o que via e ouvia. Grande

conhecedor da paisagem natural brasileira, de sua flora e fauna, os aspectos geográficos,

botânicos e geomorfológicos faziam parte dos seus estudos e pesquisas. Acrescente-se a este

espírito pesquisador do autor o seu espírito místico, que lhe propiciava um aprofundamento na

cultura do seu povo, em suas superstições e crenças, não por simples curiosidade, mas porque

reconhecia nelas um modo diferenciado e singular de ser brasileiro, de lidar com as questões

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existenciais universais. Rosa acreditava e valorizava a religiosidade do homem do sertão, não

por complacência, mas porque, junto a sua erudição, cultivou outra, voltada para os mistérios

que eram traduzidos na boca de gente simples, como os vaqueiros, jagunços, feiticeiros,

homens e mulheres vinculados à terra brasileira e à natureza, pessoas a quem ele quis dar

ouvidos e voz. É uma gente que faz parte de um universo mítico, à margem das verdades

cartesianas e de uma cultura obsecada em desvendar todos os mistérios.

Voltando a “São Marcos” , é bom lembrar que nesta estória o protagonista está

protegido pela forte luz da manhã. Já Mangalô situa-se em lugar mais fechado, de menos

claridade. Para o primeiro, tudo é mostrado. No que diz respeito ao segundo, a luz da razão

não é a que o ilumina. E para chegar a sua casa, José precisou seguir não os seus

conhecimentos, mas os seus instintos, e para tanto foi preciso perder a visão . Veremos, ao

final da estória, que ele foi levado à casa do feiticeiro pelos instintos e não pela razão. É o que

nos mostra esta passagem: “Porque a ameaça vinha da casa do Mangalô. Minha fúria me

empurrava para a casa do Mangalô. Eu queria, precisava de exterminar o João Mangalô!” ...

(ROSA, 1984, p. 267) A certeza de que fora cegado pelo outro atiçava-lhe o desejo de

eliminá-lo. Podemos interpretar esta fala por uma perspectiva menos literal e mais simbólica,

ou seja, ele precisava exterminar a cultura e os poderes do outro, que o colocaram numa

posição inferior, vexatória e patética. Fora subjado no que tinha de mais potente: seus olhos,

sua capacidade de ver, de examinar, de analisar. Ironicamente, quem lhe tirou a visão foi um

feiticeiro, de quem ele vivia zombando e escarnecendo. Portanto, era necessário exterminar

tudo que este homem inculto representava. Mas a resposta que o feiticeiro lhe dá revela o que

de fato o início da narração já preconiza, ou seja, que José precisava ficar uns tempos sem ver,

e, sobretudo, sem ver Mangalô, pois este representava o outro lado das coisas vistas, a sombra

da mata, os mistérios do mito, do interdito. A outra face da luz. Por isso, a fala final do

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feiticeiro - revestida de um tom jocoso e irônico - representa para nós a maior metáfora desta

narrativa, pelo que ela oferece de resposta à visão unilateral do interlocutor: “ – Não quis

matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, p’ra

Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de ficar fechado, p’ra não

precisar de ver negro feio...” (ROSA, 1984, p. 268)

3.1.1 Duas visões em “São Marcos”

Numa mistura de contemplação e superstição, este conto nos oferece dois olhares: o

do homem analítico e cético, e o do pai-de-santo. E nos faz meditar mais cuidadosamente

sobre aquele conhecido ditado popular segundo o qual “O pior cego é aquele que não quer

ver.” Talvez a deficiência visual em si não seja o maior obstáculo, ou o maior impedimento

para a visão, mas a maior interdição para a compreensão das coisas é a cegueira, no seu

sentido mais amplo e, por que não dizer, metafísico. Em “O Espelho” , de Primeiras estórias,

o narrador, questionando as máscaras que mostra um espelho, cuja visão gera bastante

confusão no personagem, que, ao se ver, nunca sabe de fato quem está vendo, lança a

seguinte pergunta: “Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível?”

(ROSA, 1994, p. 437) O narrador chama a atenção também para a presença intangível do

mistério que o espelho só evoca, e que algum tipo de cegueira mantém obscurecido. “Tudo,

aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos ou a ausência deles. Duvida? Quando nada

acontece, há um milagre que não estamos vendo. “ (Ibidem, p. 437)

Voltando ao conto de Sagarana, observamos que a outra parte do conto, ainda que

literalmente descreva o momento em que José perde a visão e mostre as repercussões disto,

traz na contramão desta perda o ganho de um novo olhar, que, agora, não mais genuíno, mas

perdido, precisa ser construído, reconquistado e relembrado. Nesse momento dilacerante e

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crucial do protagonista, o que o conto nos ensina é a possibilidade de reaprender a ver, a partir

do olhar de dentro, pois o que era dádiva e transparência tornou-se privação, mas também

possibilidade para a aventura de um novo conhecer. Desafiado pelo "antagonista"- o

feiticeiro Mangalô - o protagonista sai de um estado de equilíbrio, promovido pelo inteiro

domínio de seus sentidos, para um estado de torpor e fúria que o faz rezar sem pensar, movido

por uma doideira, zoeira e pavor. E, de fato, ele reza. Como ele mesmo relata: “E, pronto, sem

pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos. Minha voz mudou de som, lembro-me, ao

proferir as palavras, as blasfêmias que eu sabia de cor..” (ROSA, 1984, p.267)

Sua oração, no entanto, vem misturada com raiva. Nasce, como os outros

sentimentos, de uma experiência instintiva: “Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo (...)” (ROSA,

1984, p. 265) Sobre esta atitude do personagem, Delmaschio faz uma observação muito

apropriada. Em artigo sobre “São Marcos” a autora observa que “Diante do inexplicável,

reformulam-se valores e verdades. Assim como os demais, o personagem Izé também nutria o

sentimento religioso, apenas a oportunidade o expõe.” (DELMASCHIO, 1998, p.68) No

lugar do ser que contempla, cujos olhos banhados de luz lhe dão onisciência e conhecimento,

emerge uma fera dele próprio desconhecida. É muito valioso este jogo de ver e não ver: o ver

que se liga à razão, e o não ver que atiça a falta dessa razão. Somente quando vira um

“bicho” , consegue rezar.

Mangalô representa a sombra, a turvação misteriosa do feitiço, das práticas que

escapam à claridade do dia. O protagonista é o convite à claridade, ao olhar atento ao qual

nada escapa e do qual nada é resguardado. No encontro de ambos, temos sugerido o encontro

da luz da razão e dos mistérios que esta não pode revelar ou abarcar. O protagonista se

caracteriza principalmente pelo domínio que parece ter sobre as coisas vistas e por um enorme

desejo de olhar e conhecer. Mas a força da sua visão é aquela que vem da razão e da análise,

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pois ainda que ele seja um homem, a seu modo, contemplativo, e aprecie os recursos da

natureza e se dedique a observá-los, ele se sustenta somente por este olhar que é fruto da

claridade. Negando os mistérios, ele afasta de si qualquer possibil idade de escuridão que o

mistério possa suscitar. Conforme a autora supracitada, a respeito do protagonista:

Toda segurança que mantinha a princípio apoiava-se na idéia de luz; por extensão, de clarezaracional. Na sua trajetória retilínea pela vida, bastava-lhe como segurança de continuidade asimples claridade do dia.(...) Quando a luz lhe é retirada, ele precisa descobrir uma novamaneira de ver. A partir de então irá reaprender a se guiar, valendo-se dos sentidos queestavam antes embotados, como agora está a sua visão. Guia-se então pelo tato e pelaaudição, até poder refazer o percurso, que desta vez o levará à cabana do feiticeiro, onde seencontra em efígie. Neste momento, não lhe valem mais a clareza, a idéia de racionalidade, oorgulho advindo do seu status com relação ao pai-de-santo..” ( DELMASCHIO, 1998, p. 64)

A perda da visão, neste caso, antecedida como já mencionamos, por um farto

espetáculo de luz, brilho, sons e cheiros, sucede-se por um breve intervalo narrativo em que,

seguindo-se a uma série de enunciados narrativo-descritivos, um parágrafo é construído

economica e silenciosamente por uma única palavra. "PAZ" (ROSA, 1984, p. 261)

A partir daí há uma nova seqüência de enunciados breves e coordenados, revelando e

sugerindo uma perfeita gradação até o protagonista chegar à perda total da visão: "E, pois, foi

aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de

grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E

escureceu tudo." (ROSA, 1984, p. 261)

Após esse momento, o olhar do personagem é fisgado pela memória. E todos os

registros oferecem-se a um conhecimento súbito e ao mesmo tempo arduamente conquistado.

Toda a força do seu olhar interior precisou trabalhar nele e criar-lhe a coragem e o ímpeto

necessários para re-agir. E é assim que ele se vê, revê-se nas suas camadas de homem furioso,

primitivo, ativo e crente. Enfezado, dá os primeiros passos, cai, se machuca, se torna um fero.

Os olhos ouvem. Os ouvidos vêem. Estes processos pelos quais passam o personagem ao

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perder a visão merecem ser considerados também por uma visão goetheana, pela lucidez e

lirismo com que esta situa a força dos sentidos na captação da luz que emana da natureza.

Para Goethe,

A totalidade da natureza também se mostra a outro sentido. Fechando os olhos, o ouvido seaguça: do mais leve sussurro ao mais selvagem ruído, do som mais simples à mais elevadaharmonia, do grito mais veemente e apaixonado à palavra mais suave da razão, é somente anatureza que fala e revela sua presença, poder, vida e relações. Mesmo privado davisibilidade infinita, um cego pode, pela audição, perceber uma infinita vitalidade. (...)Assim fala a natureza ao incidir sobre outros sentidos conhecidos, não-reconhecidos ou aindadesconhecidos; assim fala consigo mesma e conosco através de milhares de fenômenos. Emparte alguma emudece ou morre para o observador atento. Mesmo ao rígido corpo terrestreela dá um confidente, um metal, em cujas menores partes se pode perceber aquilo queocorre, com a massa inteira.” (GOETHE, 1993, p. 36)

De fato, quando José perde a visão, ocorre uma inversão total dos procedimentos.

Até o que é pura abstração de repente pode ser apalpado, como ele mesmo afirma: "A ameaça,

o perigo, eu os apalpava quase. " (ROSA, 1984, p. 267) De espectador contemplativo e

onisciente, o protagonista passa à posição daquele que é visto, sondado, contemplado. Agora é

a natureza, são as coisas sensíveis que o vêem. Percebemos, deste modo, uma oscilação das

linguagens. O movimento da natureza, dentro da perspectiva do protagonista, é condicionado

pela vulnerabilidade de sua posição. Por outro lado, deslocando-se do centro das coisas, o

personagem deixa de ser o senhor da natureza, e dá o primeiro passo, ainda que involuntário,

para percebê-la como parte dela, e senti-la como parte de si mesmo. Conforme Goethe, a

natureza fala conosco e consigo mesma por meio de milhares de fenômenos. Para o autor de

Doutrina das cores, mesmo um corpo rígido poderá ser agraciado por uma dessas nuanças

comunicativas. Goethe nos lembra que “Por mais variada, confusa e incompreensível que essa

linguagem nos possa parecer, seus elementos permanecem sempre os mesmos. A natureza

oscila com um leve movimento pendular, cria um aqui e um ali , um alto e um baixo, um antes

e um depois, aos quais estão condicionados todos os fenômenos, que se manifestam para nós

no tempo e no espaço.” (GOETHE, 1993, p. 36)

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Esta passagem do conto nos faz pensar que nas nossas complexas relações com a

natureza, é possível deixarmos de focá-la como um objeto - alvo a ser atingido, território a

ser desbravado – e nos reconciliarmos e nos identificarmos com ela. Deixamos em suspeno o

olhar armado, e oferecemos à experiência dos sentidos o prazer de um olhar que não quer

conquistar ou domesticar, mas reconhecer-se. Ao referir-se a Caieiro, em seu estudo sobre

Fernando Pessoa, Perrone-Moisés afirma: "para Caeiro, como para os mestres do zen, o

olhar não é instrumento de análise mas abertura receptiva ao real; muito diferente do olhar

ocidental, que é ataque armado de conceitos, carregado de intenções intelectivas ou de

projeções psicológicas, olhar que separa, que cinde, que destrói." (PERRONE, 1988, p. 335)

Este olhar de que nos fala Caeiro em muito nos lembra o olhar do personagem em questão, até

que na virada da estória alguma transformação, quiçá, possa acontecer.

3.1.2 Os sentidos da visão

Nesta estória o encontro do pajé com o homem dito “civil izado” é marcado por

situações adversas. No primeiro encontro, José critica o feiticeiro, e, ao final, quando

descobre que alguém é que o cegara, deixa-se guiar instintivamente até a sua casa, onde uma

luta é travada. Esta luta entre os dois metaforiza um verdadeiro embate entre as culturas e os

universos diferentes. Como descreve o narrador sobre o protagonista: “ Fui em cima da voz.

Ele correu. Rolamos juntos, para o fundo da choupana. Mas, quando eu já o ia esganando,

clareou tudo, de chofre. Luz! Luz tão forte, que cabeceei, e afrouxei a pegada." (ROSA, 1984,

p. 268) Neste momento, é o homem bruto, rude, pai-de-santo que vai ensinar alguma coisa ao

homem culto e letrado. São muito esclarecedoras as reflexões de Delmaschio sobre as tensões

geradas entre estes dois personagens: “Repentinamente tomado ao seu mundo como

marionete de Mangalô, ele reconhece instintivamente que agora é preciso lançar mão das

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regras de outro jogo, onde não o auxilia mais o pensamento lógico, pois invadira o terreno do

mágico, do lúdico.” ( DELMASCHIO, 1998, p. 64)

Mas ainda assim, ele não se rende, e propõe um acordo ao pai-de-santo, ao seu

modo, nos seus termos, e estende o que ele chama de “bandeira branca: uma nota de dez mil-

réis.” (ROSA, 1984, p.268) A sua última fala deixa em suspenso para o leitor se valeu ou não

o castigo a que foi submetido, e se ele compreendeu os significados do rito que vivenciou.

Não fica claro se o que teve foi mais uma experiência exótica, ou uma vivência de algo mais

profundo e significativo, pois estendida a “bandeira branca”, assim se dirige a Mangalô: “ –

Olha, Mangalô: você viu que não arranja nada contra mim, porque eu tenho anjo bom, santo

bom e reza-brava... Em todo o caso, mas serve não termos briga... Guarda a pelega. Pronto!”

(ROSA, 1984, p. 268)

Ao final da estória, o protagonista recobra a vista: "E como era bom ver!" (ROSA,

1984, p. 268) Esta exclamação, diluída na fala do narrador e do protagonista, remete-nos

imediatamente àquela passagem de "Campo geral" em que Miguili m coloca os óculos e olha.

É o que nos descreve o narrador: "Miguil im olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma

claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. (ROSA,

1994, p. 541) Embora em "São Marcos" tenhamos uma visão e um olhar reconquistado e em

"Campo geral" um olhar inaugurado, a exclamação "E como era bom ver"!" (ROSA, 1984, p.

268) sintetiza as próprias premissas do autor Guimarães Rosa e de todos os personagens

rosianos que, no fundo de todas as coisas estão buscando, simplesmente, ver. Riobaldo, em

Grande sertão: veredas - é bom que nos lembremos disso - ao falar do passado, retoma

aquele olhar que não conseguiu ver em Diadorim a mulher que ela era. Por isso, diante da

revelação final pergunta-se como é que não pôde ter visto. Na verdade não será esta - Como

foi possível que não tenhamos visto? - uma pergunta comum a todos nós?

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A beleza de “São Marcos” não está apenas na descrição detalhadíssima da natureza,

e na exploração profunda dos sentidos. O que salta aos nossos olhos, após outras leituras, é a

tensão entre as duas posições: a do homem letrado, e a do feiticeiro. “São Marcos” é um

embate entre duas visões, para, no final, realizar a fusão entre as duas. José representa o olhar

da experimentação, da ciência que analisa, que separa as partes para ver melhor. Mas

representa também o olhar que se maravilha e se deleita. O feiticeiro Mangalô situa-se do

outro lado da mata, nas suas brenhas . Ele, diferentemente de José, tem a consciência de que é

um ser da natureza; não se dirige a ela, mas movimenta-se nela e a partir dela, numa relação

orgânica e não especulativa. Seus conhecimentos são de outra ordem, cultivados no terreno do

invisível e da superstição, não no que esta tem de sentido pejorativo, mas no seu sentido mais

vigoroso. José, por sua vez, menospreza este tipo de conhecimento, porque já internalizou o

seu como sendo o único possível. Penetra sozinho na mata, num dia em que todos estão

afastados do lugar. Assim, poderá exercer o seu individualismo e não ser confrontado com

nenhum inoportuno tipo de crendice. Sua visão é plenamente exercida neste dia, é a visão do

pesquisador, à qual não escapa nenhum detalhe da paisagem. Na verdade ele vivencia

intensamente a frequência de todos os sentidos, porque está sozinho, cercado tão somente

pelas cores, pelos sons, pelos cheiros e pela textura dos seres que povoam a mata. No entanto,

é a visão o sentido mais apurado neste momento e é a ela que ele vai se entregar.

Neste conto chamou-nos especialmente a atenção o jogo simbólico travado no

embate entre a visão e a cegueira. Uma das possibil idades interpretativas que se abre ao leitor

é a que se refere ao ato de ver, neste caso, como a não-penetração nos mistérios propiciados

pela vivência do pensamento mágico e religioso. Ou seja, é a visão do cético. O protagonista,

sem dúvida, tem uma visão bem apurada e perspicaz, mas para o deleite da paisagem, seja no

que esta oferece de grandioso ou de delicado. No primeiro momento da narrativa, ele ainda

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tem sob controle o sentido da visão, que chamaremos, dadas as situações, de visão para fora.

Certamente que o que ele vê lhe dá prazer, enlevo, e o extasia. Tais sentimentos ou sensações

são nutridos por esta abertura para a visão/contemplativa da natureza. Poderíamos nos deter

apenas neste tipo de interpretação, não fosse o outro aspecto oferecido pelo texto, que é o que

concerne à experiência mágico-religiosa fortemente apresentada na estória. E é nesse sentido

que a estória começa a gerar tensões, pois neste âmbito o protagonista tão culto, observador e

cético parece desprovido de uma outra qualidade de olhar que é aquele que nos propicia

reconhecer e respeitar os valores e as verdades do universo mítico-religioso.

Ao entrar na mata renegando e confiscando interna e externamente qualquer

manifestação religiosa local, fica claro de que posição ele vê o outro. Numa relação panteísta

com o lugar, sua linguagem revela conhecimentos gerais que delimitam, desde o início, o seu

espaço e o dos restantes da comunidade. Pelo texto afora temos pistas de como ele interpreta

as exortações, os avisos e presságios, e como desconsidera o mistério das superstições e os

motivos espirituais que inspiram as vivências das outras pessoas. De certo modo e dentro do

contexto em que ele se situa há uma lacuna no seu modo de ver, o que ficará muito evidente à

medida que o seus traços forem se impondo. O contraponto com a visão tão minuciosa e

investigativa que ele possui só vem à tona em função da presença do feiticeiro Mangalô que

cultiva um outro tipo de olhar e sente-se desrespeitado, ironizado e até mesmo confiscado

por José no que diz respeito aos seus saberes.

Guimarães Rosa foi mesmo um mestre em relativizar as posições e os pontos de

vista. A estória já valeria pela viagem do protagonista na mata e pelo arrebatamento do seu

olhar diante da paisagem que se-lhe oferece. No entanto, perderíamos muito não fosse o

contraponto deste personagem com o universo de Mangalô, que desconstrói este tipo de visão

unilateral e racional do protagonista, metaforizada na construção de um vudu de José, com os

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olhos vendados. Este gesto inaugura um novo processo de experiência da visão, nos moldes

espirituais e não mais puramente cartesianos. Com esta atitude o feiticeiro instaura o rito,

condensando e utilizando os seus poderes. José é introduzido, como muitos personagens de

Rosa, a um ritual de passagem. No início da narração o protagonista enumera uma série de

crendices, a que chama de “contra-senso” . (ROSA, 1984, p. 241) O seu discurso reforça a sua

descrença em relação às manifestações religiosas da comunidade. “Mas, feiticeiros, não. E me

ria dessa gente toda do mau milagre (...)” (Ibidem, p. 241) A descrição que José faz de

Mangalô, considerado por nós o eixo da tensão criada nesta estória, revela o descaso para com

ele e suas práticas. É o que nos mostra esta passagem: “(...) e do João Mangalô velho-de-

guerra, voluntário do mato nos tempos do Paraguai, remanescente do ‘ano da fumaça’,

liturgista ilegal e orixá-pai de todos os metapsíquicos por-perto, da serra e da grota, e mestre

em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro moído, vuduísmo, amarramento e

desamarração.” (ROSA, 1984, p. 242)

Não obstante a sua intenção de manter-se afastado do pai-de-santo, parece sua sina

segui-lo. Para chegar ao mato das Três Águas, por exemplo, José tomou um atalho que dava

em frente à maloca do velho. Percebe-se que nesta estória o protagonista está completamente

só, é minoria absoluta no que diz respeito à força supersticiosa do povo de Calango-Frito. Pois

como ele mesmo diz: “Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-Frito.”

(ROSA, 1984, p. 243) Para ele tudo isso eram “Bobagens!” (Ibidem, p. 243), inclusive as

recomendações de sua cozinheira para que não debochasse de Mangalô, considerado uma

pessoa de respeito no lugar, como se pode perceber. Mas para José, o que importava, de fato,

era poder embrenhar-se na mata e VER. Bastavam-lhe o espaço aberto da manhã e a luz

radiante do céu, pois o seu enfoque nesta estória é outro, bem como o é sua relação com o

lugar. Chamam-nos a atenção os verbos que aparecem no trecho em que ele narra sua entrada

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na mata. Por exemplo encontramos as orações “...para ver” , “... para assistir” , “... para saber” ,

“... para apostar” , “...para estudar” (ROSA, 1984, p. 244), além da conjunção indicativa de

finalidade, cuja reiteração revela os fins que motivam as ações do observador. Pareceu-nos

que todos os verbos citados neste trecho são puros desdobramentos dos verbos ver e conhecer.

3.1.3 Bem-aventurados os que sabem ver

Este olhar, marcado por finalidades bem definidas e objetivas, traz à tona uma outra

questão ligada ao modo como se concebe o outro, o diferente. A partir do olhar do

protagonista conhecemos Mangalô, porque é o primeiro e não o segundo que detém o

discurso, e é a sua visão que inicialmente predomina na narrativa. Portanto, a descrição que

José faz do feiticeiro deve ser considerada também no que ela possui de subjetivo. “Preto;

pixaim alto, branco amarelado; banguela; horrendo.” (ROSA, 1984, p.245) Na verdade, o

último adjetivo da série expressa a visão bem particular que José tem do velho, o que fica

evidente não só nos detalhes físicos, mas nas expressões de deboche utilizadas com relação a

tudo que vem dele. Mais à frente, estabelece-se um diálogo entre os dois, e fica evidenciada a

visão que o protagonista tem do velho, cuja cor lhe parece estar associada a todo tipo de

mandinga. Tais observações nos ajudam a definir com mais clareza o olhar do homem culto

no que diz respeito ao velho, negro, místico e feiticeiro. O diálogo vale também pela leveza e

ironia de suas inflexões, portanto o transcreveremos na íntegra:

“ - Ó Mangalô!

- Senh’us’Cristo, Sinhô!

- Pensei que você era uma cabiúna de queimada...

- Isso é graça de Sinhô...

- ... Com um balaio de rama de mocó, por cima!...

- Ixe!

- Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? ‘Primeiro: todo negro écachaceiro...’

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- Oi, Oi!...

- ‘Segundo: todo negro é vagabundo.’

- Virgem!

- ‘Terceiro: todo negro é feiticeiro...” (ROSA, 1984, p. 246)

Percebe-se, após este diálogo, que o negro, sentindo-se ferido, encolhe-se. Quanto a José, a

sua falta de percepção impediu-o de reconhecer as repercussões que este movimento teria

sobre a sua visão. Posteriormente, Mangalô atingiria o alvo certo: os olhos do interlocutor.

Veremos, ao final da narração, que, não obstante o velho se “vingue” da ofensa feita por José,

é de forma lúdica e debochada que o faz, usando os recursos que tem. E, por meio de sua

fala, deixa claro o ensinamento que ele pretende oferecer ao seu “antagonista”. Surpresa

maior será para o leitor, pois a estória deixará em aberto se houve ou não a transformação do

protagonista. Outro ponto importante a ser observado é que a narrativa revela uma relação de

total descaso de José com as orações e as palavras sagradas. A passagem em que encontra

Aurísio Manquitola, por exemplo, evidencia que o que é valor para um pode não representar

nada para o outro. Se para Manquitola algumas palavras têm força e não devem ser ditas

desavisadamente, José usa, sem o menor senso de respeito, palavras consideradas

ritualísticas. É o que faz ao recitar a oração milagrosa de “São Marcos” . Se a sua perspectiva é

não só a do cético como também a do zombador, a do interlocutor com quem conversa nesta

passagem é a de temor e respeito diante do proibido. Vemos mais um exemplo de tensão entre

as visões ou os olhares. O que é sagrado para um, é banalizado na boca do outro. Assim, ao

recitar desavisadamente a oração de “São Marcos” , José é admoestado por Aurísio

Manquitola: “ – Pára. Creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que

é que está bulindo! É melhor esquecer as palavras... (ROSA, 1984, p. 247)5 Ao que José

5 Observe-se que “palavras” vem escrito em itáli co, recurso muito util izado por Guimarães Rosa,

quando pretende chamar a atenção sobre determinada idéia, ou valorizar determinado vocábulo. O itálico, nestecaso, além do seu significado dentro do contexto da narrativa, faz-nos pensar em como a palavra é considerada

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responde: “- Bem, Aurísio... Não sabia que era assim tão grave. Me ensinaram e eu guardei,

porque achei engraçado...” (Ibidem, p. 247) Mas Manquitola mantém o seu discurso no

mesmo nível de sua crença e responde: “ – Engraçado?! É um perigo!...Para fazer bom efeito,

tem que ser rezada à meia-noite, com um prato-fundo cheio de cachaça e uma faca nova em

folha, que a gente espeta em tábua de mesa...” (ROSA, 1984, p. 248) Neste trecho diluem-se

palavra ritualística, palavra sagrada da oração e palavra do texto, sempre sagrada. Veremos

que esta valorização da palavra como elemento catalizador de forças aparecerá em vários

outros momentos, nas narrativas que apreciaremos. A crença no poder da palavra redunda em

outras passagens de “São Marcos” , como por exemplo: “ – Não fala, seu moço!... Só por a

gente saber de cor, ela já dá muita desordem.” (ROSA, 1984, p. 248) é o que adverte Aurísio

Manquitola, ao ouvir José proferir “o nome do caboclo Gonzazabim Índico” (Ibidem, p. 248)

referente a uma passagem da oração milagrosa e proibida. Também bastante supersticioso,

este personagem acredita nos poderes de Mangalô e embora considere José alguém de muita

instrução, percebe que algo importante escapa aos seus conhecimentos, porque ele desconhece

muitas coisas em que ele e os outros acreditam. “(...) O senhor, que é homem estinctado,6 de

alta categoria e fé, não acredita em mão sem dedos, mas...” (ROSA, 1984, p. 248) E começa a

contar uma estória, que é o jeito que ele tem de se explicar e ilustrar o que diz. Mais uma vez

esta técnica dos encaixes narrativos convida o leitor aos jogos textuais, marca do estilo de

Guimarães Rosa, e, sobretudo, aponta para a forte oralidade que conduz e potencializa os

enredos com suas verdades, próprias da ficção. Para as pessoas como Aurísio Manquitola, é

no ato de contar um caso que a reflexão pode ser tecida, e não por meio do discurso analítico.

plena de poderes na obra de Guimarães Rosa e como o texto rosiano se constrói como um processo alquímico,tendo como ingrediente mais importante, vigoroso e transformador a palavra.

6 Com relação à palavra estinctado, Nil ce Sant’Anna MARTINS (2001, p. 208) apresenta os seussignificados, relacionando-a aos seguintes termos: instruído, educado, distinto, “corruptela de ‘ - distincto’(com efeito de humour)”.

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Uma estória ainda é, para os personagens rosianos - ao modo das culturas de tradição oral -,

a melhor forma de se mostrar o que parece ser inacessível ao interlocutor.

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles exorta:

...atividade dos deuses, que supera todas as outras em bem-aventurança, deve sercontemplativa; consequentemente, entre as atividades humanas a que tiver mais afinidadescom a atividade de Deus será a que proporciona a maior felicidade. Uma confirmaçãoadicional desta ilação é que outros animais não participam da felicidade, porque sãocompletamente destituídos desta atividade. De fato, toda a existência dos deuses é bem-aventurada, e a atividade dos seres humanos também o é enquanto apresenta algumasemelhança com a atividade divina, mas nenhum dos outros animais participa da felicidade,porque eles não participam de forma alguma da atividade contemplativa. Então a felicidadechega apenas até onde há contemplação, e as pessoas mais capazes de exercerem a atividadecontemplativa fruem mais intensamente a felicidade, não como um acessório dacontemplação, mas como algo inerente a ela, pois a contemplação é preciosa por si mesma.A felicidade, portanto, deve ser alguma forma de contemplação. (ARISTÓTELES, 1992,1177A -1178B, p. 201-205)

Podemos ver como o ato de contemplar está intimamente ligado ao ato de ver. E

também que o protagonista de "São Marcos" corresponde a este ideal aristotélico que coloca

o ato de contemplar como faculdade divina, ou atributo divino. À medida que o herói-

narrador vai se embrenhando na mata densa, a força da descrição aumenta, porque a

vitalidade da visão é fortalecida também. É muito interessante essa analogia entre

aprofundamento e detalhamento das coisas vistas, ou seja, o ato de sair do bambual –

superfície - e de entrar na mata - profundidade – relacionam-se com as gradações do olhar. A

descida do protagonista a esta mata revela um espírito inebriado com o que vê. Este olhar,

transfigurado pela contemplação das pequenas e grandes estruturas do lugar, extrapola o

simples ato de ver e de admirar-se, e expressa outras dimensões que o conto apresenta,

classificadas por RONCARI em "mítica, cósmica, simbólica e alegórica." (RONCARI, 2004,

p. 132) E é ainda este autor que nos convida a apreciar o seguinte trecho:

Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas,esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo comespirais constrictas. De perto, na tectura sóbria – só três ou quatro esgalhos – as folhas sãoestrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como

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chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada,encantadas, presas, no labirinto do mato. (SAGARANA, 1971, p. 241)

"São Marcos" é uma preparação para o diálogo entre os sentidos. Antes de passar

pela provação/privação da perda, o protagonista usufruía da plenitude de uma visão pautada

exclusivamente pelos critérios da inteligibil idade. Os olhos com que ele via eram os olhos

soberanos da análise, que tinham primazia sobre os outros sentidos. A perda da visão

desencadeou uma desestruturação na apreensão das coisas somente por um sentido, e apurou

os outros. O protagonista vai do caminho da inteligibil idade para o caminho mais visceral que

é apalpar, cheirar, imaginar. Outras competências do protagonista são acionadas, e um diálogo

entre os sentidos é propiciado. Caso contrário, seria a morte física e psíquica do personagem,

pois suas chances de sobreviver ficaram, de uma hora para outra, limitadas.

Talvez este seja o único conto em que as relações sensoriais sejam exploradas de

modo misturado, como única forma possível de resgatar o personagem para o enfrentamento

com o antagonista. Para descobri-lo e confrontá-lo foi necessário reunir, muito mais que força

física, forças sensoriais conjugadas. O que era unívoco, o sentido da visão, justamente na sua

ausência, ganhou aliados como o tato, o olfato, a própria percepção, o medo, outras formas de

ver e de avaliar. Deste modo, longe de ser um conto em que o olhar ocupa lugar soberano,

esta narrativa aponta para a necessidade do diálogo e da mistura entre os outros sentidos

humanos, para que aprendamos a ver com as mãos, e tocar com os olhos, num criativo

processo de inversão das hierarquias dos sentidos. Trata-se de um verdadeiro questionamento

da hierarquia da visão aristotélica sobre a qual falamos anteriormente.

Complementando nossas afirmações, recorremos a Merleu-Ponty que nos mostra

que:

...Cada "sentido" é um "mundo", isto é, absolutamente incomunicável para com os outrossentidos, e, no entanto, constrói um algo que, pela sua estrutura, de imediato se abre para omundo dos outros sentidos e com eles constitui um único Ser. A sensorialidade: por

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exemplo, uma cor, o amarelo; ultrapassa-se a si mesma: desde que se torna uma coriluminante, cor dominante do campo, cessa de ser determinada cor, tem, por conseguinte, deper si uma função ontológica, torna-se apta a representar todas as coisas... (...) Num únicomovimento, impõe-se como particular e cessa de ser visível como particular. O "Mundo" éeste conjunto onde cada "parte", quando a tomamos por si mesma, abre de repente dimensõesilimitadas, - torna-se parte total. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 202)

“São Marcos” é uma estória que redimensiona o sentido da visão e os seus

significados, colocando em perspectiva o ato de ver como um gesto cultural. Revela também

o quanto a primazia de uma visão unilateral sobre outras formas de ver e compreender podem

nos tornar turvos e obtusos.

A primeira frase do conto, dita pelo protagonista-narrador: “NAQUELE TEMPO EU

MORAVA no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros.” (ROSA, 1984, p. 241) faz-nos

considerar que, se o texto começa dizendo que ele não acreditava, é possível deduzirmos daí,

a partir deste tempo verbal e da localização temporal, que algo poderá ter mudado, dada a

distância sugerida pelo dêitico aquele, e pela conotação que o pretérito imperfeito possui, isto

é, a ação não está de todo concluída. Significa que podemos pensar que algo mudou na visão

do protagonista e que há possibil idades de que o rito de passagem, provocado pela cegueira,

tenha propiciado um novo olhar. Pensando nisso é possível encerrarmos nossas discussões

sobre “São Marcos” relacionando os verbos crer e ver. José desejava, sobretudo, ver; mas,

como ele mesmo diz quando a estória principia, “não acreditava em feiticeiros.” (ROSA,

1984, p. 241) Tudo isso, porém, nos diz o texto também lá no início, foi “NAQUELE

TEMPO...” , e considerando que muita coisa acontece entre o início de uma estória e o seu

desfecho, talvez possamos crer que alguma transformação se tenha passado com o

personagem desde aquele tempo. E se numa frase podem estar contidos os ecos de todo o

enredo, seu princípio, seu meio e seu fim, o breve enunciado que introduz “São Marcos”

parece por si só anunciar o que há de vir, depois do pretérito imperfeito, aqui muito

simbolicamente escolhido e utilizado pelo autor. Trata-se de mais uma demonstração de que

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a vida é, conforme acreditava Guimarães Rosa, constante mutação e que nada está, de fato,

concluído.

3.2 O NARRADOR E SEU OLHAR: “A BENFAZEJA”

A cor do carvão é um mistério; a gente pensa que ele é preto, ou branco." ("A benfazeja", p. 478)

O olhar do narrador de "A benfazeja" é um outro olhar que nos chama muito a

atenção: capcioso, atento, minucioso, apelativo e emotivo, é ele que nos convida e até nos

incita a traçar um novo paradigma do olhar. A presença deste narrador persuasivo não nos faz

descansar, e o que ele nos propõe é, mais que tudo, uma revisão. Este conto aponta para a

busca da essência íntima da realidade, e a superação das dicotomias aparência e essência.

Podemos mesmo afirmar que a superação da própria aparência como realidade é o foco

escolhido pelo narrador deste conto.

Nesta parte do nosso trabalho, falaremos sobre uma mulher que muito nos chama a

atenção: Mula Marmela, protagonista de "A benfazeja", (Primeiras estórias). Chama-nos a

atenção, primeiramente, a forma como ela se comporta e responde aos seus instintos. Além

disso, impressiona-nos a sua inserção dentro da comunidade, o olhar desta sobre ela e a

cegueira na qual está imersa a comunidade. Finalmente, saltam às nossas vistas os

mecanismos utilizados pelo narrador a fim de tornar conhecida tanto a cegueira dos

moradores, quanto o que subjaz aos comportamentos aparentemente nocivos da protagonista.

Por meio da visão do narrador será possível contemplarmos, nesta mulher estranha e

excêntrica, algum ponto despercebido que lhe dá um toque de humanidade e quicá, até de

beatitude.

Trata-se de uma estória em que somos questionados - tanto quanto a comunidade em

que está inserida Mula Marmela - em relação à forma como vemos e julgamos a protagonista

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da estória. De certo modo, somos convidados a nos ver. Como é que nos vemos? Por que

filtros passa o nosso olhar até que possamos dizer: é isso o que eu vejo? E o que vemos, será

mesmo o que pensamos que vemos? Estes são questionamentos que este conto nos suscita.

A protagonista desta estória, descrita pelo narrador como "A mulher – malandraja, a

malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não

arrependida – e guia de um cego." (ROSA, 1994, p. 475) segue o seu destino, com padrões de

comportamento muito singulares e pessoais, movida por algum tipo de sentimento ou desejo

nem sempre revelado para nós, leitores, e por meio de códigos próprios e de leis internas,

que, de modo algum se encaixam com as da comunidade em que vive, mas que, por ironia do

destino, ou devido aos paradoxos da trama, têm uma espécie de reconhecimento especial do

narrador.7

Nesta estória, somos chamados a rever certos conceitos, começamos a ter

sentimentos ambíguos e os nossos julgamentos passam a se dissolver nas falas e nas

exortações do narrador. O narrador convida leitores e personagens a olharem. Para onde? Para

quem? Para o quê? No fundo, para si mesmos, para os valores cultivados, e para os

preconceitos silenciosamente entalhados. Convite a ver, convite a desfazer padrões e pontos

de vista endurecidos. A fala do narrador se tece numa linguagem de libertação de amarras e de

vendas. Tirem as vendas dos olhos, é o que afinal propõe este narrador aconselhador e sábio.

Mula Marmela guarda segredos que não foram vistos, ela não é o que parece ser. Veremos

como uma comunidade inteira está irremediavelmente prisioneira da sua própria cegueira,

sendo esta tão comum e cotidiana, que só mesmo um narrador, que está afastado, pode nos

fazer ver. Mas veremos, sobretudo, que a membrana que turva a nossa visão, se retirada um

7 Sobre esta estória valeria um estudo aprofundado no que diz respeito, dentre outras coisas, às

motivações para fazer o mal. Aliás, tanto nesta estória, como na estória de Maria Mutema, contada em Grandesertão: veredas, há a predominância do mal, da maldade genuína, como se esta existisse anterior ao ser humano.O Mal se apresenta inevitável, sem motivações, e às vezes até como salvação e redenção.

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pouco do lugar, pode restabelecer a mais bela das paisagens e redimensionar os nossos

conceitos.

3.2.1. Olhar para rever

A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas. ("A benfazeja" p. 480)

Com este título já é possível imaginar a presença de alguém que faz o bem, ou de um

fazer dirigido para o bem. É o que esperamos a partir desta chamada. No entanto, nessa 17ª

estória, de "Primeiras estórias", a protagonista nos causa sentimentos dúbios, que só podem

ser dissolvidos se seguirmos os conselhos do narrador e fizermos uma revisão no nosso ponto

de vista. O que vem à tona, numa leitura superficial do enredo, é a crueldade como

procedimento cotidiano, como forma de vida. Mula Marmela seria, então, dentro dessa leitura,

uma personagem destinada a ser cruel. Carrega culpas pesadas, a morte do marido, o

tratamento dado ao enteado cego e a morte deste. Neste sentido, é oportuna a breve

apresentação/comentário do enredo feita por Costa Lima: "Em 'A benfazeja', a Mula-

Marmela, 'furibunda de magra, de esticado esqueleto, e o de sumir de sanguessuga', apunhala

o Mumbugo, o seu homem, e a gente fala que ajudara a apressar a agonia da morte do filho

cego. Mas, sob a aparente maldade da Mula-Marmela, descobre Guimarães Rosa que só o

amor a movia. Perplexamente, sob os seus aleijões, se revela o amor, a difícil palavra."

(LIMA, 1991, p. 506)

O elemento trágico e a perplexidade dialogam nesta estória. A perplexidade do

narrador é fruto menos da crueldade que ele narra, que do fato de a protagonista não ter sido

notada no que ela tem de melhor. Então, ao mesmo tempo em que ele tem a autoridade para

contar os procedimentos cruéis de Mula-Marmela, penetra em outras camadas da narração

que nos levam a abstrair a crueldade como um fato, e a sondar os recônditos dessa mulher

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aparentemente má. O olhar do narrador nos faz vacilar, e nos deixa em um lugar incômodo.

Sem a voz dele jamais teríamos conhecimento de que Mula-Marmela assassinara o marido e

os motivos que a levaram a isso:

Vocês sabem, o que foi há tantos anos. Esse Mumbungo era célebre-cruel e iníquo, muitocriminoso, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de perversias. Esse nunca perdoou,emprestava ao diabo a alma dos outros. Matava, afligia, matava. Dizem que esfaqueavarasgado, só pelo ancho de ver a vítima caretear. Será a sua verdade? Nos tempos, e por causadele, todos estremeciam, sem pausa de remédio. Diziam-no maltratado do miolo. Era o punirde Deus, o avultado demo – o 'cão'. E, no entanto, com a mulher, davam-se bem, amavam-se.Como ? O amor é a vaga, indecisa palavra. Mas, eu, indaguei. Sou de fora. O Mumbungoqueria à sua mulher, a Mula-Marmela, e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. Dotemor que não se sabe. Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar,com um ato de 'não', sua existência doidamente celerada. Talvez adivinhasse que em suasmãos, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e temia-a – de um temorigual ao que agora incessante sente o cego Retrupé. Soubessem, porém, nem de nada. Agente é portador. (ROSA, 1994, p. 476)

No entanto, como se percebe na fala do narrador, diluída e subjacente aos fatos, há

uma outra verdade, que é a missão salvadora que assume esta mulher, ao libertar toda a

comunidade de um homem insano e cruel como era o seu marido. O narrador já dá mostras,

neste pequeno trecho, de que a mulher tem seus motivos escusos, e que é preciso olhá-la com

mais cautela. Era preciso alguém para enfrentar o Mumbungo, e somente Mula-Marmela

poderia assumir este confronto, eliminando definitivamente o Mal. Mas, ainda assim, ou por

isso mesmo, como mostrará o narrador o tempo todo, ela merece a consideração de todos.

Não devemos julgá-la pela simples aparência dos fatos trágicos. É para as sutilezas que

devemos dirigir os nossos olhos. Isto parece nos mostrar o narrador, ao ir apontando as coisas

imperceptíveis que faz a protagonista, como por exemplo, nesta delicada passagem em que

fica clara a enorme diferença entre a madrasta e o enteado, e a defesa que o narrador faz desta

última, tentando dissolver, com o seu olhar benevolente, qualquer culpa que ela possa ter:

Notem que o cego Retrupé mantém sempre muito levantada a cabeça, por inexplicadoorgulho: que ele provém de um reino de orgulho, sua maligna índole, o poder de mandar, queestarrece. E ele traz um chapéu chato, nem branco nem preto. Viram como esse chapéu lhecai muitas vezes da cabeça, principalmente quando ele mais se exalta, gestilongado abarbadoe maldoso, reclamando com urgência suas esmolas do povo. Mas, notaram como é que a

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Mula-Marmela lhe apanha do chão o chapéu, e procura limpá-lo com seus dedos, antes delho entregar, o chapéu que ele mesmo nunca tira, por não respeitar a ninguém? (ROSA,1994, p. 478)

É importante nos lembrarmos que a presença da crueldade, das deficiências, de um

modo geral, deve ser encarada na obra de Rosa como uma possibil idade profícua de instaurar,

sobretudo, o sentimento de perplexidade, e que denota uma abertura para o reconhecimento de

aspectos pouco valorizados e desejáveis no ser humano. Para Costa Lima "Já em Guimarães

Rosa, a revelação da crueldade circundante é contida por uma contínua perplexidade. O

aleijão é menos prova acusatória do caráter cruel da vida que indício do que nela

perplexamente desconhecemos." (LIMA, 1991, p. 506)

Temos, neste conto, um aspecto novo que salta aos nossos olhos já no início da

narração. Se o nosso estudo gira em torno do olhar dos personagens de Guimarães Rosa, em

especial daqueles que já citamos, neste conto chama-nos especial atenção a forma como o

narrador constrói e conduz a narrativa, o que a faz diferenciar-se muito das outras que por ora

temos analisado. O narrador desta estória tem um perfil singular, remetendo-nos àquele

narrador machadiano que dialogava com os leitores, provocando-os, trazendo-os para o jogo

narrativo. Certamente valeria um aprofundamento sobre este narrador em Rosa, mas para nós,

no momento o que ressalta é o que ele exige do leitor. É instigante a postura deste narrador

onisciente e intruso, cujo olhar parece já ter abarcado inúmeras situações humanas, e que, por

isso, agora vem nos ensinar a olhar. Se o texto narrativo é propício para o conhecimento das

experiências humanas, lugar do aprendizado do viver, ele é também um convite a VER.

O que nos parece singular, no entanto, é que este olhar sobressai da própria

narrativa, ou do próprio ato de narração. Não é o personagem que nos chama a ver, mas o

próprio narrador. Porque o seu olhar é mais sábio do que o dos leitores, ou pelo menos é o que

se supõe o tempo todo, diante das hipóteses que o próprio narrador vai criando, em forma de

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um jogo de velar e desvelar. Ao iniciar a narrativa ele se dirige imediatamente ao leitor,

introduzindo-o na problemática que vai contar. Ele não só conhece os personagens como

também o olhar turvo dos leitores. "SEI QUE NÃO atentaram na mulher; nem fosse possível.

Vive-se perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das

pessoas. A gente não revê os que não valem a pena." (ROSA, 1994, p. 480)

O texto vai se desenvolvendo de forma a definir as posições de quem vê mais, ou

seja, o narrador, e daquele que vai ouvir a estória – e que, conforme mostra o narrador, não

sabe ver. Para o narrador desta estória as aparências enganam e o dia-a-dia embota o olhar.

Assim, com a sua autoridade de narrador, é ele quem vai nos ensinar a ver além das

aparências e a rever a protagonista com outros olhos. Esta postura narrativa nos leva a rever

com mais atenção o papel do narrador diante das entrelinhas e dos elementos impalpáveis que

encobrem uma narração fecunda . Faz-nos ver que o papel do narrador, muito mais que

simplesmente narrar, é tocar em algumas camadas inapreensíveis pelo olhar apressado e

comum. E, sobretudo, nos mostra que este procedimento narrativo funciona como um aspecto

de valorização da autoridade do narrador, o qual, da posição onde se encontra, tem

competência e habil idade para ver melhor.

Narrador onisciente, seu olhar é profundo e consegue captar o que ninguém viu. Sua

sabedoria vem justamente deste olhar, que não conhece apenas o presente da personagem,

mas todo o processo pelo qual ela passou. Somente ele consegue ter um olhar perscrutador,

benevolente e cúmplice, porque conhece as sutilezas da alma humana. “A benfazeja” é uma

narrativa ambígua, porque os fatos em si nos levam, à primeira vista, a considerar a

protagonista uma criatura estranha e até maléfica, porque matou o marido e talvez tenha

cegado o enteado. Mas como uma esfinge que precisa ser decifrada, este mistério do bem e do

mal vai sendo esclarecido pelos olhos iluminados do narrador. E, em termos formais, o que

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temos é uma reincidência de verbos ligados ao sentido da visão, pois estão sempre presentes

formas verbais como "revê", "viam-lhe", "notar", "vêem", "viram", "notem", "notaram",

"reparam", "olha", "saibam ver", "veriam", "os observou", dirigidas ao leitor desavisado.

A presença de um narrador como o desta estória reflete um modo de ver não

estanque, e nos possibil ita uma sondagem mais profunda dos personagens periféricos, que

compõem a comunidade, e os protagonistas, especialmente Mula Marmela. Somente por meio

do enfoque da voz narrativa e da força do seu discurso subjetivo, que não tem receio de se

mostrar, é que podemos nos libertar das armadilhas do enredo e, paralelamente à fruição

deste, refletirmos sobre os modos com que cada um realiza as suas possibil idades e

impossibil idades de ser. Não fossem as chamadas do narrador, o enredo nos levaria, e

perderíamos a oportunidade de refletirmos sobre o narrado. A astúcia da narração é que nos

leva a uma fruição mais astuta do texto e de suas imbricações. Um narrador com este perfil e

com este procedimento mostra que está se lançando na estória - ainda que de fora - no sentido

de assumir uma posição e excitar o leitor, por meio dos seus jogos retórico-discursivos,

conduzindo os seus olhos para o texto e o seu olhar para o entre-texto. A estória é exortativa e

revela também certa indignação do narrador diante da falta de percepção do leitor: "Nem

fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de desencobrir-lhe as feições, de sob

o sórdido desarrumo, do sarro e crasso; e desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade, senão

de crispa expressão." (ROSA, 1994, p. 475)

O desdobramento do olhar se dá a partir do olhar sábio do narrador que tudo vê. É

ele que nos mostra que a protagonista, não obstante o grau de marginalidade em que se

encontra, consegue ver as delicadezas do dia-a-dia. Este desdobramento nos faz pensar em

como as verdades são flexíveis, em como o que parece ser nem sempre o é de fato. E coloca-

nos mais uma vez diante do questionamento incessante de Rosa acerca das verdades e das

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certezas prontas. Afinal, quem é Mula Marmela, se olhada por trás das aparências? O que

somos todos nós se olhados por trás dos olhos de quem nos olha? E quem é que nos olha? De

que lugar ele nos olha? Estará o narrador desta estória numa posição privilegiada que lhe

propicie este olhar, ou simplesmente ele sabe olhar, independentemente da posição em que se

encontra? O que o terá levado a conquistar um olhar como este? Mas, deixemos um pouco de

lado o narrador, e vamos à personagem tal como o narrador a vê e propõe que a vejamos. Para

ele, ela também tem um jeito especial de olhar. "Sei que vocês não se interessam nulo por ela,

não reparam como essa mulher anda, e sente, e vive e faz. Repararam como olha para as casas

com olhos simples, livres do amaldiçoamento de pedidor? E não põe, no olhar as crianças, o

soturno de cativeiro que destinaria aos adultos. Ela olha para tudo com singeleza de

admiração . (ROSA, 1994, p. 478)

A presente estória, bem como os seus procedimentos narrativos, só vêm confirmar e

enfatizar a nossa crença de que a escritura de Guimarães Rosa se pauta, sobretudo, no

questionamento. Por isso ela é tão perturbadora, e nos tira, a cada enunciado, do lugar seguro

onde pensamos estar.

3.2.2 Mula-Marmela: guia de cego

Cada qual com sua baixeza; cada um com sua altura. (A benfazeja, p.479)

Além de Mula-Marmela, chama a nossa atenção neste conto a cegueira do seu

enteado Retrupé. Novamente temos uma narrativa de Rosa em que alguém precisa emprestar

os seus olhos para o outro. Mula-Marmela carrega para toda a parte o seu enteado, e é

somente por meio dos seus olhos que ele pode ver. Ela é essa personagem ambígua,

assustadora, que, paradoxalmente protege Retrupé e até a própria comunidade dos possíveis

malefícios que este e o pai poderiam lhe ter causado. Mais uma vez esta é uma estória de

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Guimarães Rosa em que parece ser necessária a perda da visão, para que alguma luz possa

brilhar. Como pergunta Riobaldo, em Grande sertão: veredas, "Não é só no escuro que a

gente percebe a luzinha dividida?" (ROSA, 1994, p.199) O vagalume que surge em "As

margens da alegria" permeia todas as estórias deste livro, pois ele simboliza tudo que precisa

ser iluminado, mesmo que esta luz seja breve, e tênue. Embora Retrupé seja guiado por sua

madrasta, ele não fora sempre assim cego. Ele também perdeu a visão. Conforme nos diz o

narrador, este Retrupé tinha a vocação para a maldade, como o pai, "... e que seria tão pronto

para ser sanguinaz e cruel-perverso quanto o pai..." (ROSA, 1994, p. 479) As causas de sua

cegueira são insinuadas pelo narrador:

Seus os-olhos, do Retrupé, ainda eram sãos: para espelhar inevitável ódio, para cumprir odardejar, e para o prazer de escolher as vítimas mais fáceis, mais frescas. Só aí, se deu que,em algum comum dia, o Retrupé cegou, de ambos aqueles olhos. Souberam vocês como foi?Procuraram achar? Sabem, contudo, que há leites e pós, de plantas, venenos que ocultamenteretiram, retomam a visão, de olhos que não devem ver. (ROSA, 1994, p. 479)

Esta última fala do narrador valoriza a perda, a negação do sentido, porquanto este

pode significar a corrupção da luz em sombra: "Ele precisava de matar, para a fundo se

cumprir, desafogado e bem. Mas, não pode. Porque é cego, apenas." (ROSA, 1994, p.479)

Será que há pessoas que não devem ver? É uma das perguntas que este texto nos propõe. A

resposta seria que para o bem de todos, Retrupé não veja. No entanto, privado da visão, ele

não deixa de ter um foco de atenção para os lugares e pessoas, e desenvolve uma espécie de

sentido similar à visão, que lhe permite encarar ou desviar o seu "olhar" quando assim o

deseja. É o que nos mostra o narrador: "Sabem o que é tão estúrdio? – que, mesmo um que

não vê, sabe que precisa de apartar a cabeça: ele faz isso, para não encarar com a mulher

odiosa. O cego Retrupé volta-se de frente para o ponto onde estão as sensatas, quietas

pessoas, que ele odeia em si, pelo desprezamento de todos, a pacatez e concórdia." (ROSA,

1994, p. 479)

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Observando esta estória e "São Marcos", de Sagarana, surge um contraponto no que

diz respeito à perda da visão. Na primeira o personagem não aprende, não se eleva

espiritualmente, mas só adia, interrompe a maldade, que continua em potencial. Fosse-lhe

restituída a visão, ou se ele não a tivesse perdido, certamente daria continuidade às crueldades

iniciadas pelo pai. O personagem só é castrado em um dos seus sentidos, e anestesiada a vista,

ele fica impedido de agir. Mas não há transcendência, ele não avança em termos de sua

humanidade. Já em "São Marcos", embora seja outro o enredo, e não haja menção a este tipo

de crueldade, o protagonista consegue alcançar um conhecimento que não possuía; há a

transcendência, por meio do reconhecimento do outro e das próprias limitações. Certamente

são dois planos de enredos bastante distintos, mas a ênfase na perda da visão não deve ser

esquecida, porque em ambas as estórias há um profícuo jogo de luz e sombra.

3.2.3 Retrupé e Édipo: cegos e aleijados

Outra possibil idade de aproximação entre personagens e temas refere-se ao mito de

Édipo Rei, sobre o qual já falamos, mas que vale ser novamente lembrado como o mito

mesmo da visão perdida e resgatada. O que há de comum entre o herói trágico de Sófocles e

Retrupé foi muito bem lembrado por Maria das Graças Andrade, ao traçar um paralelo entre

os nomes Retrupé e Édipo. Assim como este último em grego significa o que tem os pés

inchados, e que, portanto, caminha tropeçando, Retrupé, também, conforme a autora, tem "os

pés atados pelo desamor, pelo que em tempo devido não lhe fora dado, fará sua caminhada

errante, trôpega, incertamente..." (ANDRADE, 2003, p. 458). Lembra-nos a autora que

também Retrupé se torna cego. E fala de uma cegueira anterior à perda da visão, da qual

padecem estes dois personagens. Sobre as mulheres que guiam estes homens cegos, é valioso

lembrar os papéis de Mula-Marmela, e de Antígona, muito bem lembrado na seguinte citação:

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"Quero salientar ainda que são duas figuras femininas que, postando-se como guias,

orientarão o percurso desses que careciam da visão: a Mula-Marmela, a conduzir Retrupé, e

Antígona, a guiar Édipo, seu pai e irmão." (ANDRADE, 2003, p.458)

Outro aspecto bastante interessante é apontado por Cleusa Passos e diz respeito aos

paradoxos entre as sombras e a luz em "A benfazeja". A autora observa que há um jogo de

claro-escuro, que permeia a narrativa, incentivado e reiterado pelo discurso do narrador. Ou

seja, o discurso do narrador lança o leitor para a luz, para a revelação, para o desvendamento

de outras verdades acerca da protagonista. Trata-se de um discurso que insiste em tirar a

comunidade da cegueira, não só os moradores do lugar, mas a possível comunidade de

leitores. Por meio de uma argumentação sistemática, que se volta para o passado, tentando

atiçar na memória do interlocutor fatos e delicadezas não contemplados, ou esquecidos, o

narrador vai construindo um discurso inquisidor, contestatório e, ao mesmo tempo, revelador.

O narrador é, sem dúvida, um indivíduo que tem um olhar absoluto, que vê

amplamente e que faz questão que os outros vejam. E neste caso, é ele o responsável por jogar

luz onde reina a ignorância. Percebemos, assim, uma formidável e radical mudança no

enfoque: não é o fato em si que importa, o fato bruto, grosseiro, as culpas que a Mula carrega.

A obviedade desta realidade ofuscou a vista de todos. O que importa é o que está por trás da

coisa, aquilo que ninguém ainda olhou. Entendemos que o narrador se propõe desviciar o

olhar das pessoas. Os jogos discursivos do narrador parecem propor a superação da dualidade

que, acreditamos, embora esteja muito marcada e pontuada neste conto, não é geradora de

dicotomias ou polaridades, mas, ao contrário, tem o intuito não de enfatizá-las, e sim de

desfazê-las. O jogo de luz e sombra, de conhecer e ignorar não pode ser encarado na obra de

um escritor como João Guimarães Rosa como marcas de dualismo, mas como o

estrangulamento deste, uma vez que, como temos defendido aqui, no mundo ficcional de

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Rosa, tudo é misturado, e as polaridades são entendidas como responsáveis pelo

sepultamento de um homem orgânico, que se deseja inteiro. Sem dúvida a polaridade é

mostrada, mas como pretexto para que seja desfeita no próprio ato de narrar. No ver, pode

estar contido o não-ver, no saber, o desconhecer, no Mal o Bem. Para Cleusa Passos,

A constatação textual sintetiza a cegueira de todos diante daquela que, por ironia, passa a sersujeito ou objeto do olhar do outro, pois, se a personagem cumpre o papel de substituir avisão do enteado, também se torna foco da perspectiva textual, cuja lucidez substitui acegueira dos demais. Uma expressiva rede especular vai criando identidades e diferenças.Literalmente cego, Retrupé espelha a simbólica cegueira do vilarejo, enquanto sua guiareflete o olhar diverso do narrador. Cada qual à sua maneira, ambos protegem e contestam acomunidade, escapando a suas regras e nela introduzindo uma intrigante exterioridade; Mula,'tão fora da vida exemplar de todos', coíbe as transgressões dos companheiros e, comoalguém de fora, o narrador alerta para a visão turva de seus interlocutores, impedidos devislumbrarem a melhor e inusitada face da protagonista. (PASSOS, 2000, p. 107)

Os pólos “ luz/sombra”, “bem/mal” , “conhecimento/ignorância”, “visão/cegueira”

estão presentes nesta estória, mas é importante não os interpretarmos simplesmente como

pares antitéticos, se não como uma tensão possível de ser diluída e transcendida na própria

dialética em que são constituídos. Se voltarmos a Grande sertão: veredas, somos tentados a

colocarmos demais em perspectiva as polaridades que o romance traz à tona. Riobaldo incita

e estimula repetidamente o interlocutor a prestar atenção a isto. Há, inclusive, passagens em

que esta preocupação é expressa de forma bem direta e obsessiva, quando Riobaldo diz que

quer separar o Mal do Bem, que quer desmisturar as coisas.

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bem seja bom e oruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartadodo bonito, e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é queposso com este mundo? (ROSA, 1994, p. 144)

Nesses momentos fica muito clara a urgência do protagonista em ser esclarecido

sobre os mistérios que o cercam, pois como ele mesmo diz: “O que eu não entendo, isso é que

é capaz de me matar.” (ROSA, 1994, p. 211) Mas, ainda que as sentenças proferidas por

Riobaldo revelem o desejo de separar as coisas, como se estas constituíssem dualidades -

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antagonismos radicais e intransponíveis - é importante não nos esquecermos de que a

motivação maior do protagonista é fazer perguntas para descobrir sim, o sentido das coisas,

mas, para, sobretudo, encontrar o seu lugar. As aparentes dicotomias levantadas pelo jagunço

fazem parte de um jogo discursivo que busca o tempo todo, dentro do próprio discurso,

dissolvê-las ou superá-las. Portanto, não podemos nos ater ao discurso que aponta as

polaridades, mas ao outro, àquele que vai além destas. Quando Riobaldo expressa o seu

desejo de separar o joio do trigo, vêm à tona perguntas ligadas à sua identidade, que não

significa necessariamente a sua origem familiar. A identidade neste sentido está muito ligada

à busca do lugar que ele ocupa e ao que é que de fato lhe pertence e lhe diz respeito. Este,

aliás, é um problema não só de Riobaldo mas de muitos outros personagens, daí o desejo de

saber, de conhecer, e de VER. No entanto, Riobaldo sabe da impossibilidade de polarizar as

coisas. É o que mostra neste relato: “A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e

desmisturar.” (ROSA, 1994, p. 98)

Neste sentido, é bom nos voltarmos a outras estórias em que a importância da

identidade se traduz na raiz de toda a obra de Guimarães Rosa. Manuelzão, em “Uma estória

de amor” , está buscando o seu lugar, e para isso, não pára de olhar para trás. O protagonista

de “Cara-de-Bronze” coloca alguém em seu lugar para ir buscar o “quem das coisas” ,

Miguili m em “Campo geral” está buscando o seu lugar no espaço da família e do Mutum, e

assim poderíamos citar tantos outros personagens que, de modo mais ou menos implícito,

estão em busca de sua identidade, mesmo que esta seja instaurada na terceira margem do rio,

como nos propõe o Pai ao abandonar a casa. Sem dúvida, ele também, ao radicalizar em

termos de mudança espacial, radicaliza em termos de mudança dos seus espaços internos.

Está buscando um outro lugar que seja só seu. E a canoa feita para caber apenas uma pessoa é

uma perfeita metáfora disso.

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Deste modo, é essencial para a apreensão do maior sentido da obra de Guimarães

Rosa desdobrarmos as teias de significados intrínsecos às simples dualidades bem/mal e

outras dicotomias, já que a existência deles só pode e deve ser compreendida como um evento

discursivo propiciador de uma aglutinação dessas polaridades, ou uma intersecção de pares

que, longe de tentarem se anular um ao outro, na obra de Rosa, ao se desmisturarem, buscam

atingir um sentido de organicidade permeador de todas as coisas.

A perda da visão, no caso deste personagem, faz-nos pensar nas resoluções

narrativas encontradas neste conto para a cessação do ciclo de maldades praticadas pelos

indivíduos desta família. A morte do pai não foi suficiente, porque este deixou um

descendente. Portanto, o cego Retrupé precisou perder a visão, para que as maldades por ele

praticadas e as que ainda estavam por vir tivessem um limite. Somente deixando de ver, ele

poderia ser controlado. Este texto nos faz considerar a força desta visão direcionada para o

Mal e que precisa ser negada para que a vida de outros não corra risco. Para nós, do mesmo

modo como é importante perceber a força e as potencialidades do olhar daqueles que

realmente vêem, também o é na mesma medida perceber as ocorrências da cessação deste

olhar, e as repercussões desta perda, no âmbito pessoal e coletivo. É um vislumbre a mais que

este texto nos oferece.

3.3 A LUZ COMO METÁFORA: “SUBSTÂNCIA”

Os olhos inflamados de ver, no deslumbrável. (“Substância” , p. 497)

Nesta parte do trabalho apreciaremos a imagem da luz ou do fenômeno luminoso que

aparece em dois contos, quais sejam, “Um moço muito branco” e “Substância”, de Primeiras

estórias. Chamou-nos a atenção o fato de que em ambas as estórias surge a luz em sua

exuberância. Certamente os enredos são distintos, mas a alegoria que os perfila é análoga.

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Entre as duas estórias há um jogo de situações bastante concretas, e ao mesmo tempo

subjetivas, tecidas no plano mágico. Em “Substância” há trabalho incessante, e o cotidiano de

uma menina dedicada a bater o polvilho, num movimento incansável, é descrito nos planos

objetivo e subjetivo. Fôssemos contemplar apenas o enredo, veríamos a descrição do

trabalho, da lida e da luta pela sobrevivência, e teríamos um valioso retrato dos costumes de

uma comunidade que tem como uma das formas de subsistência o fabrico e o depuramento do

polvilho, bem como as condições precárias e primitivas em que este trabalho é realizado. Mas,

subliminar a estes aspectos materiais, há um outro que compõe e oferece outros significados à

estória, que é a forma como este trabalho é realizado, num impressionante jogo de luz,

claridade e transparências que emolduram a sua mecanicidade e lhe dão uma outra

dimensão. Em “Um moço muito branco” , a semelhança com “Substância” se dá no plano

lexical, em que são explorados aspectos cromáticos, relacionados sobretudo à claridade, à

transparência e à luz. Mas nas duas estórias, o sentido da visão do leitor é bastante

estimulado, no que diz respeito tanto à visão subjetiva, metafórica, quanto à objetiva, ligada

às cores e aos estímulos e esforços para ver. No plano subjetivo, constituem as duas estórias

uma metáfora por trás da qual subjaz o sentido da percepção, propiciada pela forma como os

protagonistas agem e fornecem luz onde tudo é triste cegueira. Podemos evidenciar que esta

cegueira ressalta no momento em que os protagonistas, cada qual a seu modo, irrompem de

algum lugar e, uma vez instalados em comunidades de vidas estagnadas, as diferenças sutis

entre eles e os moradores começam a se revelar. Os dois se projetam como “fenômenos

luminosos” ( expressão empregada em “Um moço muito branco”), no cotidiano dos lugarejos

e, sem que o saibam, operam metamorfoses. Como dissemos, no campo lexical, são usados

adjetivos e expressões que denotam/conotam esta singularidade dos personagens, ou seja, a

sua clareza de espírito. Tanto o moço quanto a menina são brancos, muito brancos. Ele: “Tão

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branco (...) semidourado de luz” (ROSA, 1994, p. 457), ela: “Tão linda, clara, certa...”

(ROSA, 1994, p. 496)

O título da estória contém significado fecundo, e nos remete à essência última das

coisas, ao que é anterior, insubstituível e fundamental. A protagonista, menina ainda, é

deixada no pequeno povoado, e, aos poucos, vai-se transformando, num processo similar ao

que ocorre com os blocos de polvilho que ela precisa quebrar na pedra. Chamada de Maria

Exita, esta menina se parece também, em alguns aspectos, com a personagem Drizilda, do

conto “Arroio- das- Antas” . Entre as duas há uma espécie de fraternidade, como se tivessem

vindo ambas de uma mesma família. Ao contrário do que acontece com o protagonista de

“Um moço muito branco” , no caso destes contos, sabemos a origem das meninas, por meio de

uma breve descrição dos históricos familiares das duas, que, aliás, são semelhantes. Como

Drizilda, Maria Exita vem de algum outro lugar, desprovida de família exata que lhe dê

proteção. Novamente, como dissemos no início do nosso trabalho, o tema da viagem está aí

valorizado, pois as meninas se deslocam de seus lugares de origem para tentarem uma sorte

melhor em outro lugar. Faz-nos pensar nas crianças da Idade Média, que como aponta Ariès, a

partir dos sete anos, eram enviadas para outra casa, a fim de aprenderem alguma profissão.

Longe de suas famílias, elas passavam por todo tipo de aprendizado, principalmente o

convívio precoce com a solidão e com as vicissitudes da vida.

Muitas crianças das estórias de Guimarães Rosa retratam esse quadro, provavelmente

uma realidade do sertão norte-mineiro, em que as condições de vida e de sobrevivência se

davam de forma precária e adversa. Neste contexto, é bom que situemos a personagem Maria

Exita, na sua situação de abandono. Como nestes casos, a menina tem alguém que se torna

responsável por ela, que é o Sionésio, dono das terras, abundantes em plantação de mandioca.

Assim como Drizilda, a sorte de Maria Exita parecia não prometer êxitos maiores, não

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obstante a carga semântica de seu nome queira sugerir o contrário. Neste sentido o narrador

conta que

Trouxera-a por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o patrão nem os outros aaceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque, contra a menos feliz, a sorte sarapintara depreto portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia,por atos de morte; o outro, igual feroz, foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai, razoávelbom homem, delatado com a lepra, e prosseguido, decerto para sempre, para um lazareto.(...) Acolheram-na, em todo caso. Menos por direta pena; antes, da compaixão da Nhatiaga.Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, naslajes. (ROSA, 1994, p. 495)

Similarmente à “Substância”, no pequeno conto de Tutaméia, “Arroio-das-antas” ,

relata-se a vida de uma menina que possui características análogas à de Maria Exita. Drizilda

também precisará passar por experiências de solidão, e, em seu percurso, terá como

companhia a presença exclusiva de pessoas mais velhas: “Trouxe-se lá Drizilda, de nem

quinze anos, que mais não chorava: firme delindo-se, terminavelmente, sozinha viúva.

Descontado que a esquecessem. [...]” (ROSA, 1994, p. 531) “O irmão matara-lhe o marido,

irregrado, revelde, que a desdenhava.” (Ibidem, p. 531) Nas duas estórias, as meninas são

recebidas por velhas. Em “Arroio das Antas” , lê-se: “Senão que, uma, avó Edmunda, sob

mínima voz, abençoou-a...” (Ibidem) e Em “Substância”, observa-se situação análoga:

“Acolheram-na, em todo o caso. Menos por direta pena; antes, da compaixão de

Nhatiaga.” (ROSA, 1994, p. 495) Em cuidadoso estudo comparado de alguns contos de

Guimarães Rosa em que está concentrada a presença feminina, Passos articula um diálogo

entre as duas protagonistas e faz uma interessante leitura da luz em ambos os contos.

Conforme a autora:

A tarefa de Maria Exita resulta no ‘ tudo cerradamente igual’ , na esteril idade do polvilho queela quebra, porém não vê modificar-se. Quanto a Drizilda, rejeitada ‘por não ter filhos’ ,configura a própria imagem da esterilidade num lugarejo igualmente infecundo. O tempo daprovação precede o da fertilidade e resgata a donzela da mácula. A luz de ‘Substância’ se faz‘alvor’ e o abandonado ‘arroio’ se torna forte fazenda, índice de florescimento eprodutividade. (PASSOS, 2000, p. 42)

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Nesse sentido, é bom lembrar que enquanto os olhos de Maria Exita penetram em

exuberante jorro de luz, Drizilda mergulha nas cinzas do borralho: “De vê-la a borralheirar,

doíam-se...” (ROSA, 1994, p. 532) Enquanto Maria Exita vivia a experiência da luz, Drizilda

precisava tirar destas cinzas a luz que parecia apagada, mas que, de modo potencial,

sobrevivia. Em “substância” tudo se passa sob o sol a pino, desafio para os olhos, em

“Arroio” “O que a gente esperava era a noite.” (ROSA, 1994, p. 531) Neste entrelaçado jogo

de luz e sombra, ao qual os olhos precisam responder - No ‘Arroio-das-Antas’ , “Drizilda

paga seu ‘ fado’ a ‘borralheirar’ , ou seja, como Cinderela, em meio às cinzas sombrias,

‘alongando-se-lhe os cabelos’ -, a luz que a envolve é a das ‘candeias acesas’ e a portentosa

‘ lanterna’ é a da velhice. Sombras e esterili dade dominam espaço e personagens.” (PASSOS,

2000, p. 40)

Em “Substância”, de modo sutil , o narrador desvela a cegueira e a vidência,

entendida aqui como capacidade de compreender outras verdades e possibilidades de ser, não

obstante predomine a cegueira, as cinzas, ou o excesso de luz, que também pode turvar a

vista. Aí também merecem especial atenção os olhos de Sionésio como contraponto aos da

menina, porque, ao contrário da protagonista, ele só consegue ver até onde vão suas posses. O

seu campo de visão, ainda que tenha longo alcance, tem uma intenção bastante objetiva, e se

dirige aos trâmites da pura referencialidade, como cabe a um dono de terras. Ele, inicialmente,

não tinha olhos para as pequeninas criaturinhas, principalmente para Maria Exita. São olhos

que percorrem as coisas, mas não se concentram em detalhes, ou não alcançam ainda a luz. O

encontro dos dois personagens marca esta diferença dos procedimentos e dos campos de

visão. Ele, embora esteja sempre em movimento, acabará, por fim, a dirigir o seu olhar para a

criatura menor, mas cuja vista é do mais alto alcance. Neste caso, as polaridades foram

bastante movimentadas até que se encontraram. Sionésio aprende a ver o que estivera sempre

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a seu alcance, ou seja, Maria Exita, para quem o brilho e a transparência não ofuscaram os

olhos. E, por outro lado, a menina foi pela primeira vez olhada, fisgada pelo olhar de outrem.

Aparentemente estática, mas só aparentemente, a menina provocou uma nova dinâmica nos

olhos de Sionésio que, após ver a ínfima criatura, agora “Ficava de lá, de olhos postos em,

feito o urubu tomador de conta.” (ROSA, 1994, p. 497) O patrão começou a desenvolver um

novo jeito de olhar, não mais como o posseiro, mas como alguém que está aprendendo a

desapossar-se de si mesmo, no delicado gesto de amar: “Passava por lá, sem paz de vê-la,

tinha um modo mordido de a admirar, mais ou menos de longe.” (ROSA, 1994, p. 497) A

transformação ocorre, e esta é gerada por aquela que pouco se movimenta. Ali, parada no seu

assento, mexendo as mãos incessantemente, é ela quem processa outras metamorfoses no

plano da subjetividade e da alteridade. A luz que os seus olhos recebem, material bruto solar,

vai sendo processada, transubstanciada por sua luz interna, que redimensiona a luz em

potencial que há no outro. Como afirma Passos:

Fio importante da trama, todos se sujeitam a ela. Sionésio busca sempre mudanças: dopolvilho, do aumento de produção, do trabalho rústico por máquinas. Todavia, os fortesolhos habituados a aprisionar acabam capturados pelos de Maria Exita que oferecia os seusao polvilho sinistro. Excluída socialmente, ela precisa do olhar do outro, representante domundo dos senhores, para escapar ao tirânico destino e à condição de mulher oprimida.(PASSOS, 2000, p. 36)

Apresentamos um pouco do enredo da estória, a fim de ressaltarmos a importância

do diálogo entre as narrativas de Guiimarães Rosa, seja no que concerne aos personagens e

aos enredos, seja no que elas representam no plano mágico-simbólico, o que reitera o que

temos afirmado acerca da unidade existente na obra do autor.

3.3.1 Ver é um desafio

Sobre “Substância” chamaram-nos a atenção, não apenas o delicado enredo, mas as

alegorias que o contornam e o tornam, além de uma belíssima estória de amor, um quadro

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pincelado com as cores de mais intensa luz, que compensam e equil ibram as origens sombrias

da protagonista. É esta peculiaridade ou singularidade que salta aos nossos olhos, e

representa possíveis entradas para este conto, em que o dualismo é mais uma vez quebrado,

como o polvilho na pedra. Como em outros contos do autor, há o encontro do velho com o

novo, do preconceito com a esperança, da doença com a vida, da sombra com a radiante luz

do meio-dia, do masculino com o feminino.

Mas, embora haja todos estes componentes, o que sobressai é, especialmente, a força

da luz e a capacidade dos olhos de reter e até mesmo suportar tanto brilho. Os olhos da

protagonista são formidavelmente retratados como um receptáculo para a luz ; somente os

seus olhos conseguem se manter abertos diante da luz do meio dia que se incide sobre a pedra

e o polvilho alvo. É uma estória desenhada com as cores mais alvas desta coletânea, em que o

autor deixa transbordar e jorrar os raios de luz que iluminam o trabalho árduo que é “o de

quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes.” (ROSA, 1994, p. 495) Pareceu-nos que neste conto

Guimarães Rosa concentrou, mais uma vez, a sua força de artista genial com o seu sentimento

de infância, que o faz em todas as estórias equilibrar/compensar as adversidades infantis com

algum elemento cálido e epifânico, que, ao final das contas revela/constitui uma verdadeira

celebração das forças que protegem a infância. A presença portentosa da luz nesta estória

precisa sobreviver à sorte, à sina da menina, pois, como diz o narrador: “[...] a sorte

sarapintara de preto portais e portas [...]” (ROSA, 1994, p. 495) Observe-se aqui, aliás, que

em termos sonoros, a aliteraçao do fonema /p/ sugere a dificuldade de sobresseguir um

caminho de forma tênue ; neste sentido, a carga semântica da aliteração parece estar ligada

ao gesto repetitivo e monótono de bater e quebrar o polvilho na laje. Sugerindo os sons das

pancadas do polvilho, tal recurso sonoro metaforiza a dureza do trabalho. Entretanto, a

estória não se paralisa neste quadro, embora este seja o pano de fundo de uma metáfora ou

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alegoria muito mais importante. A força bruta desta consoante dará lugar, no desenrolar da

estória, à presença da vogal /a/, enormemente explorada, evocando luz, claridade, abertura:

“Alva” , “algodão”, “a garça”, “água azulosa” , “o amido – puro, limpo...” “alvíssimo”,

“alvura”, “o ar” , “brilhante”, “branca” , “abertos” , “ luminosidade”, “ linda”, “clara”, “certa”,

“avivada”, “airosa”, ‘dom de branco’, “ intacto branco” , “deslumbrável” , “ imensidão do olhar”

(ROSA, 1994, pp. 495, 496, 497)

Ainda com relação ao campo lexical e semântico, é valioso destacar a expressão

“moça feita em cachoeira”(ROSA, 1994, p. 496), pois esta concentra toda a força da

protagonista, e propõe a tensão entre ela e o lugar. Ali, na Samburá, para onde ela fora, tudo

se parece a um deserto, mas a presença dela e o vigor do seu trabalho, que requer a força para

olhar, para sobreviver à luz do sol, dá-lhe a fluidez de uma cachoeira. Tal expressão, diluída

no texto, concentra e radicaliza as diferenças entre a dureza do lugar e das pessoas e a fluidez

e o movimento que é a menina. Isto não é um privilégio apenas desta estória, mas também de

várias outras, em que a chegada de um personagem com um novo olhar faz ressaltar a inércia

em que vivem as pessoas. O mesmo ocorre em “Um moço muito branco” , em “Arroio das

antas” , “Darandina”, “A benfazeja”, “A terceira margem do rio” e em tantas outras estórias

que colocam em tensão a dinâmica da vida, a mutação constante em que Rosa tanto

acreditava, e o embrutecimento que ele tanto repudiava/questionava. Sem dúvida, na leitura e

tentativa de interpretação destes personagens e dos seus modos singulares de olhar,

compreendemos as premissas que pautaram a vida do autor, para quem: “A literatura tem de

ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve.” (MONEGAL, 1991, p. 48)

Fora os aspectos apresentados, a protagonista deste conto, além de possuir um olhar

especial, recebe olhares diferentes, ou seja, ela é olhada somente como alguém à margem,

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uma vez que faz parte de uma estirpe familiar complexa, carregada de problemas e é a única

que se libertou de uma sina de doenças e vícios:

A Maria Exita. Sabia, hoje: a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros. Assim, quechegara lá, com os vários sem-remédios de amargura, do oposto mundo e maldições, sozinhade se sufocar. Aí, então, por si sem conversas, sem distraídas beiras, nenhumas, aportaraàquele serviço- de toda a despreferência, o trabalho pedregoso, o quente feito boca-de-forno,em que a gente sente engrossar os dedos, os olhos inflamados de ver, no deslumbrável.(ROSA, 1994, p. 496-97)

É curioso observar também que para a menina o trabalho tem outro significado, e ela

consegue sobreviver a este, dando aos gestos rotineiros um enfoque diverso das pessoas que a

cercam. Observamos uma espécie de desinstrumentalização do trabalho, ou uma

desautomatização, propiciada pela delicadeza da menina, pela sua vitalidade e percepção. Há

um contraponto entre ela e o dono das terras, no que diz respeito à forma como este último

lida com o trabalho, ou seja, parecemos estar diante de dois enfoques distintos, e, mais uma

vez, o que determina e modifica as situações é a forma como se olha para a questão. O próprio

narrador demonstra sua parcialidade diante da situação de trabalho da menina: “Alvíssimo,

era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinho

fechados, feito os de um tatu, ante a implacável alvura, o sol em cima.” (ROSA, 1994, p. 496)

E o Sionésio, proprietário das terras, parecia contrariado: “Mas, e até hoje, num serviço

desses? Ao menos que a mudassem!”(Ibidem, p. 496) No entanto, a menina, contrariamente

ao que se esperava, gostava do serviço: “Ela é que quer, diz que gosta. E é mesmo, com

efeito...” - a Nhatiaga sussurrava.” (Ibidem, p. 496)

Mas, se todos os ingredientes desta estória nos chamam a atenção, chama-nos,

sobretudo, a força da protagonista, que se manifesta pela sua disposição para o trabalho e

principalmente, pela sua capacidade de receber a imponente luz do meio-dia, que parece ser

um grande impedimento para a visão de todas as outras pessoas. Conforme Cleusa Passos,

“Em ‘Substância’ , a proibição da luz provém da própria luz. O sol atormenta e tortura os

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trabalhadores da lida com o polvilho. Literalmente, os ‘olhos da pessoa tendo de ficar

miudinho fechados, feito tatu, ante a implacável alvura...’ , acabam entregues à mesma

cegueira provocada pela ausência de luz dos contos feéricos.” (PASSOS, 2000, p. 40)

Novamente o sentido da visão é apresentado de forma metafórica, mas também de

maneira muito concreta e objetiva. O narrador se refere àquele momento do dia em que o sol é

mais forte: “Demorara para ir vê-la. Só no pino do meio-dia- de um sol do qual o passarinho

fugiu.” (ROSA, 1994, p. 496) Ora, para a menina o ver tanta claridade não se constitui como

problema, mas como uma extensão do seu corpo e do seu espírito. Ela consegue ver, e

suportar tão forte desafio da luz: “Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela hora...”

(Ibidem, p. 496) É interessante observarmos que a força da visão nesta personagem simboliza

as forças que ela vai conquistando no desenrolar da sua estória. É possível mesmo afirmar que

a metáfora da luz do sol nessa narrativa está relacionada à força interna, a qual nem todos

conseguem perceber e utili zar. A protagonista, como bem conta o conto, foi privada de suas

bases, e seu passado duvidoso poderia ser um imenso empecilho para o seu futuro. Sobressai,

no entanto, a sua luz interna, retratada nos seus olhos receptivos, que abarcam a luz que vem

de fora, porque no fundo, esta só se projeta no que lhe é genuíno. Novamente esta estória

apresenta as tensões entre as diferenças, muito sutilmente pontuadas pelos efeitos que causa

na menina a luz do dia, e o mal estar que causa nos outros personagens e no próprio narrador:

“Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do triste, sinistro polvilho, portentoso,

mais a maldade do sol.” (Ibidem, p. 496)

Temos enfatizado no presente estudo que nestes contos de Guimarães Rosa as

diferenças ficam bastante apontadas, e a presença de um personagem singular é reiterada.

Repetimos que não se trata de seres extraordinários, ou possuidores de poderes mágicos, mas

o que neles jorra é justamente a capacidade de explorar e vivenciar os aspectos muitas vezes

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desconhecidos e negligenciados pelas pessoas comuns. De fato, o que esta menina

experimenta é uma percepção e uma sensibil idade que, ao invés de a tornararem suscetível e

fragil izada, fortalecem os seus atos, de forma a possibil itá-la a realizar, no plano subjetivo -

fortalecido pela força de sua visão - o que é tarefa objetiva e árdua. Ou seja, o que a sua

relação com o trabalho nos suscita é a sua forma diferenciada de perceber o material bruto, e

transformá-lo em luz. Trata-se de uma fecunda metáfora que vem ressignificar não só o

trabalho braçal e mecânico, mas todo tipo de cegueira a que se possa submeter. Neste sentido,

o autor faz um criativo jogo de palavras que estabelecem entre si uma polaridade que,

novamente, concorre para convergir para a unidade tão marcante em sua obra: “Negrume do

horizonte”, intensidade brilhante”, “ implacável alvura”, “sinistro polvilho” , “maldade do

sol” , “beleza” (Ibidem, p. 496) são algumas expressões que evocam os contrapontos.

Somente a protagonista, com a sua incrível habil idade para olhar e fazer expandir o brilho que

absorve com a visão, mostra-se capaz de congregar estas polaridades, pois se esta luz

“atormentava, torturava...” , ela “Não se perturbava. Também, para um pasmar-nos, com ela

acontecesse diferente? Nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos. Mas

oferecidos bem abertos - olhos desses, de outra luminosidade.” (Ibidem, 1994, p. 496)

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4 VER O ESQUECIDO

A gente não vê quando o vento se acaba... ("A menina de lá", p. 402)

"A menina de lá" é um conto protagonizado por Nhinhinha, uma garota de quatro

anos. Trata-se de uma narrativa que enfatiza as verdades do ponto de vista de uma criança

sensitiva e extremamente perceptiva. Nhinhinha é mais uma personagem agraciada pela

narração de Guimarães Rosa e traduz uma lógica mal suspeitada pelo olhar prático do

cotidiano. É uma personagem que habita um mundo singular e que, de sua posição, avalia o

mundo despropositado que a cerca. Sua fala é marcada por um estribilho que se repete ao

longo da narrativa: "Deixa..."

Neste conto - ainda que seja protagonizado por uma criança - o tema da

efemeridade da vida é abordado, e de forma insólita, pois a protagonista, ao contrário das

meninas das outras estórias, tem uma vida curta, como se fôra uma breve centelha de luz que,

ao passar, acende o lugar e desaparece. Novamente nos remetemos à imagem do vagalume

de “As margens da alegria” , que conseguiu inflamar o espírito soturno do menino com sua

breve aparição. Em “A menina de lá”, temos uma menina, que, na versão dos adultos, parece

ter poderes de vidência, o que a faz se diferenciar de todos os outros. Por outro lado, podemos

pensar que Nhinhinha é uma menina que age espontaneamente, movida por suas forças vitais,

que jorram em sua tenra idade. Fosse ela uma personagem de um conto de fadas clássico,

poderíamos dizer que tem, a seu dispor, os seus próprios mediadores naturais para ajudá-la, e

que possui outros poderes que lhe propiciam realizar as metamorfoses tão preciosas aos

contos de fadas.8 Desse modo, também Nhinhinha dispõe de poderes que, na verdade, como

veremos mais profundamente na análise das narrativas, revelam os poderes que vivem

8 Alguns personagens dos contos de fadas, lembra-nos Bruno Bettelheim, também têm a sua disposição

o próprio corpo para ajudá-las. Rapunzel é, na visão do autor, um exemplo típico, pois usa os seus próprios

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potencialmente nos seres humanos, mas que a vida diária e com suas exigências acaba por

camuflar. Chama-nos a atenção a descrição inicial de Nhinhinha, que, segundo o narrador "...

nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes (grifo nosso). Não que

parecesse olhar ou enxergar de propósito." (ROSA, 1994, p. 401)

Ora, Nhinhinha, cujo nome nos lembra também menininha, parece ser uma alma

antiga, recentemente chegada e já de partida. Ao repetir "deixa", ela expressa uma espécie de

abnegação no que se refere às coisas deste mundo. Habitante de um mundo supra-realista, ela

também choca os que a cercam. Seus desejos são realizados pela força deles mesmos. Até sua

morte ela intui, escolhendo o dia, e a cor do caixão. Trata-se de uma menina cujas intuições e

pressentimentos não são guiados por poderes sobrenaturais, mas por uma especulação

pertinaz sempre baseada em suas experiências imediatas. Neste conto, fica bem clara para nós

a visão da criança a respeito do adulto, quando ela se dirige à mãe como: "Menina grande."

(ROSA, 1994, p. 401) Pela ótica da protagonista, os adultos são crianças. Nhinhinha, com sua

linguagem cifrada e estranha, possibilita-nos o contato com a transcendência, ou seja, ela é, ao

contrário de Miguili m e Dito em Campo geral, por exemplo, - esses tão mesclados ao mundo

real concreto da natureza-, uma personagem que se desfaz na natureza, pairando sobre as

coisas do mundo sensível. Etérea e diferente, ela representa uma possibil idade de

comunicação com o incomum, uma vez que o plano em que se constrói é mais anímico e

supra-sensível, que material. Sua materialidade, efêmera por sinal, só faz sentido enquanto

veículo de uma comunicação com o incomum, que, embora raro e às vezes ininteligível, é

possível. A leitura desta menina nos remete também à do protagonista de "Um moço muito

branco", de Primeiras estórias, que veio de outro reino, e que, como Nhinhinha, tem uma

passagem breve pela vida das pessoas. A força anímica de ambos abre brechas para outras

cabelos para se libertar do jugo da mulher que a aprisionou.(BETTELHEIM, 1979, p. 25)

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formas de nos relacionarmos com o mundo que nos cerca. Na verdade, os poderes de

Nhinhinha nos fazem pensar, não no que eles revelam no plano externo, mas funcionam

principalmente como uma alegoria dos recursos internos que a criança possui.

A protagonista desta estória é bem diferente. Ela escolhe o dia de sua morte e invoca

o arco-íris para que seu desejo se realize. Nesta narrativa a perda se dá noutro plano, ou seja,

no plano do adulto impotente que nada pode fazer diante da força oculta e misteriosa da

criança. Para a protagonista a vida é interrompida por própria escolha, ato sugerido pela

escolha da cor do seu caixão. Sua transição se faz sem alardes, como se a menina estivesse

ligada à existência por um tênue fio, que, mal estendido, é rompido. Representando uma

passagem, Nhinhinha metaforiza o total desprendimento com a vida material-racional.

Impressiona-nos a integridade desta personagem e a sua naturalidade diante da morte, bem

como o seu olhar para as coisas esquecidas. De fato, ela tem mesmo os olhos muito grandes: é

um dado físico mas que, literariamente, sugere sua propensão para olhar o seu entorno de

maneira menos limitada do que costumeiramente olham as pessoas de sua convivência. Não

só os seus olhos são enfatizados mas também a cabeça. Nhinhinha é cabeçudota, como

descreve o narrador (ROSA, 1994, p. 401) Ao retomarmos um fragmento de Grande sertão:

veredas, vemos que Riobaldo chama a atenção para a necessidade de uma consciência mais

ampla, e especula sobre este ser mutante que só pode encontrar os verdadeiros significados

para a sua vida a partir de um processo de aperfeiçoamento e de abertura em sua visão. Em

seu monólogo, ele diz o seguinte: “ Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da

gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores

diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” (ROSA, 1994, p.

200)

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De um modo geral, o espaço onde corriqueiramente nos situamos e pelo qual

transitamos deixa de se oferecer para os nossos olhos como um espetáculo, ou algo digno de

ser visto com “estranhamento”. No dia-a-dia tendemos a considerar os espaços e as situações

segundo uma perspectiva limitada, olvidando os horizontes que há por trás das nossas

experiências diárias. Passamos a manter relações util itaristas e familiares demais com tudo

que nos circunda, e perdemos, deste modo, o olhar infantil e inocente, que se deslumbra. É

como se nascêssemos com os olhos grandes de Nhinhinha e, depois, fôssemos estreitando as

vistas, acostumando-nos com as cores, com o brilho das coisas, com o susto que o mundo em

torno pode, de repente, nos causar. Iluminando estes aspectos, são inspiradoras as

considerações de Merleu-Ponty, para quem:

Voltamos a ficar atentos ao espaço onde nos situamos e que só é considerado segundo umaperspectiva limitada, a nossa, mas que é também nossa residência e com o qual mantemosrelações carnais – redescobrimos em cada coisa um certo estilo de ser que a torna umespelho das condutas humanas -, enfim, entre nós e as coisas estabelecem-se, não mais purasrelações entre um pensamento dominador e um objeto ou um espaço completamenteexpostos a esse pensamento, mas a relação ambígua de um ser encarnado e limitado com ummundo enigmático que ele entrevê, que ele nem mesmo pára de frequentar, mas sempre porum meio de perspectivas que lhe escondem tanto quanto lhe revelam, por meio do aspectohumano que qualquer coisa adquire perante um olhar humano. (MERLEAU-PONTY, 2004,p.30)

Ao contrário da criança, passamos a viver à espera de grandes acontecimentos e

espetáculos que possam, pelo menos, nos distrair um pouco das amarrações diárias, o que faz

com que a vida presente só se justifique em função da vida futura, ou de uma espera.

Perdemos o espetáculo das pequenas coisas, e a visão vai ficando cada vez mais estreita,

miúda e embaçada. Nhinhinha representa este impacto diante do cotidiano. Ela vê tudo que

está próximo e capta a substância mais íntima destas coisas vistas cotidianamente, e que para

os outros simplesmente parece não fazer mais sentido. O próprio narrador, que conhece

Nhinhinha e convive com ela, reconhece que: “O que ela falava era comum, a gente é que

ouvia exagerado (...)” (ROSA, 1994, p. 402) E quando ela proferia frases aparentemente

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desconexas, como - “O passarinho desapareceu de cantar...” (Ibidem, p. 402), o narrador

novamente reconhece sentido nas palavras da menina e comenta, no meio da narração que

“ De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não

estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera.” (Ibidem, p. 402) De um modo um pouco

diferente de Miguili m, mas ao mesmo tempo bastante similar, esta menina vê demais.

Miguili m tinha os olhos míopes, e precisava apertá-los; ela, ao contrário, tinha-os grandes.

No entanto, os dois desenvolvem percepções sutis dos seus respectivos espaços. Miguilim faz

movimentos entre o que vê fora e o que há dentro de si. Nhinhinha faz transposições de

imagens do seu microcosmos para um outro universo ao qual só ela parece ter acesso, não

porque seja privilégio de uma mente iluminada, mas porque ela sabe tocar com o olhar, muito

mais que apenas ver. Seu olhar é também contemplativo. O texto nos diz que ela conseguia

ficar muito tempo parada: “Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum,

sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia.” (ROSA, 1994, p. 401) As respostas de

Nhinhinha eram, como observa o narrador, “mais longas” (ROSA, 1994, p. 402).

“A menina de lá”, além da riqueza dos conteúdos que abarca, inspira-nos por se

tratar de uma narrativa em que nos chamam a atenção os procedimentos discursivos da

protagonista, os quais rompem com a lógica racionalista e instauram o sentimento ou a

atmosfera do imprevisível. Inspirados nos "olhos enormes" desta menina, é possível nos

fixarmos naqueles pontos em que – parece-nos – só ela consegue ver. Os seus atos de fala

são uma representação metafórica do que ela entrevê. Portanto, muitas palavras – com sons

incomuns - parecem incompreensíveis, como se ela falasse um dialeto próprio, de um outro

lugar.

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4.1 “A MENINA DE LÁ”

4.1.1 A palavra “de lá”

De todas as expressões utilizadas pela menina, a que mais nos chama a atenção é a

frase que, segundo o narrador, ela sempre repetia: “Tudo nascendo!” (ROSA, 1994, p. 402)

Tal enunciado concentra toda a força dos personagens de Guimarães Rosa e a sua

maneira única de ver o mundo, além de revelar o vigor que o autor deu à sua linguagem,

porque este acreditava numa língua tão viva quanto a própria vida. Em entrevista a seu

tradutor alemão Gunter Lorenz, Guimarães Rosa explica o seu método para escrever, o qual,

segundo o autor, “ implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de

nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido

original.” (LORENZ, 1991, p. 81 ) Sua obra contempla um universo de coisas nascentes e

moventes do qual fazem parte as crianças, com suas falas insólitas. Além das questões ligadas

ao discurso, vale ressaltarmos que nas estórias de Guimarães Rosa tudo parece estar sempre

nascendo, mesmo quando ronda a morte e/ou a velhice. Com base nisso, convém buscarmos

um diálago com outros personagens e estórias do autor, nas quais estes princípios também

estão presentes. Em Grande sertão: veredas, por exemplo, o clímax da estória não se dá

quando Diadorim morre lutando com Hermógenes, mas quando, na cena seguinte, ele renasce

com os seus aspectos femininos para a vida de Riobaldo. Neste momento, morre uma parte de

Riobaldo, mas algo essencial que ele viera perseguindo é acordado nele para sempre. Nesta

longa narrativa, o fluir constante do mundo é expresso em uma linguagem dinâmica e

visceral, como é a própria existência e travessia do homem aqui na terra. Nesse sentido, é

sempre valioso reiterarmos que a obra de Guimarães Rosa é a expressão de uma harmonia

entre projeto literário, ideal de vida, construção dos personagens e dos enredos. Tudo conflui,

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em seus textos, para o rebrotar incessante da vida, e, conseqüentemente, da palavra. Por isso,

as crianças na sua obra são presença tão marcante, porque elas concentram em suas atitudes e

em sua linguagem este potencial criativo que a vida não cessa de jorrar. Na obra do autor

também os velhos revelam este vigor, como se neles acendesse, de repente, uma derradeira

centelha de vida, que vai modificar o rumo do destino ainda uma vez mais. É o que acontece

com Manuelzão, Cara-de-Bronze, Vó Edmunda e Lina, por exemplo. Nestes personagens

floresce o desejo de recomeçar, ou de dar início a algo ainda não vivido. A velhice não

representa o fim, nem o estancamento de um processo criativo, mas sim a morte do que é

velho e precisa, de fato, morrer, para que outras instâncias do ser, ainda inexploradas, possam

ganhar corpo. Como diz o Vaqueiro Tadeu, em “Cara-de-Bronze”, “Olhe, irmão: Deus é

menino em mil sertões, e chove em todas as cabeceiras...” (ROSA, 1994, p. 674)

Além das crianças - os loucos, os cegos, os aleijados, as meretrizes, homens

primitivos como João Urugem, (“Uma estória de amor”), e renascidos como “Augusto

Matraga”, ( “A hora e a vez de Augusto Matraga”) são alguns exemplos de como a literatura

rosiana afronta o pensamento clássico-dicotomizado e evoca novos caminhos de freqüentação

do ser e da linguagem que precisa estar sempre renascendo. Não é de espantar a presença

destes personagens tão peculiares na obra de um escritor que considera a língua como seu

“elemento metafísico” . (LORENZ, 1991, p. 81)

Voltando a “A menina de lá” é importante pontuarmos que Nhinhinha não é a

menina de lá, porque veio de outro planeta, mas porque ela ainda consegue ver as “coisas

todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p. 401) E a

pura vida é movimento. Até o narrador demonstrava admiração por Nhinhinha e pela forma

como ela falava. É o que nos mostram os fragmentos a seguir:

“Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - “Tatu não vê alua...” (idem) ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha

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que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa dedoces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer listadas coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.” (ROSA, 1994, p.401)

Com relação às formas linguísticas utilizadas por Nhinhinha, estas proporcionam

uma reflexão sobre o empobrecimento da língua, que deveria ser considerada como uma

possibilidade de desdobramento criativo do potencial humano, e não um veículo de

comunicação, um meio para se chegar a um objetivo. Temos, na verdade, expressa nesta

estória, uma linguagem que se apresenta como fluxo e impacto, - a de Nhinhinha - e outra, a

dos adultos, metáfora de uma língua estagnada e funcional. A propósito desta consideração,

Deleuze traz uma importante contribuição no que diz respeito à sintaxe: Para o autor: “Já não

é a sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em

devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do

desequilíbrio.” (DELEUZE, 1997, p. 127)

Se convidamos Deleuze ao diálogo com Nhinhinha, ela mesma poderá fazer o papel

de sua interlocutora, respondendo ao filósofo com as suas palavras, na sua sintaxe singular,

de modo a ilustrar o que ele considera como “a língua em perpétuo desequilíbrio” ou “a

gagueira criadora” (Ibidem, p. 127):

Suspirava, depois: - “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “ Não sei.” Aí observou:

- “ O passarinho desapareceu de cantar...”

- “ Jabuticaba de vem-me-ver...”

- “Eu ... to-u... fa-a-zendo.” (ROSA, 1994, p. 401)

- “E eu? Tou fazendo saudade.” (ROSA, 1994, p. 402)

- “Eu queria o sapo vir aqui.” (Ibidem, p. 402)

- “Está trabalhando um feiti ço...(Ibidem, p.402)

- “Alturas de urubu não ir...” (Ibidem, p.402)

- “Estrelinhas pia-pia.” (Ibidem, p. 402)

- “Ele xurugou?” (Ibidem, p. 401) 9

9 XURUGAR Voc. Inventado de significado indeterminável.// O autor revela com ele a estranheza da

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4.1.2 Palavra em movimento

O uso dessas e de outras expressões e palavras revela uma habil idade

“suasibil íssima” 10 da menina, que faz recuperar a originalidade que há no fundo das coisas

esquecidas. Nhinhinha vê “só a pura vida”, o que a faz parecer excêntrica, usuária de um

discurso esdrúxulo, mas livre de estereótipos. É nesse sentido que esta estória inova muito

mais no que poderia haver de estranhamento nas atitudes da menina. Quem está mais

conectado com o sentido das coisas não se assustará com o sentido das palavras que urge em

ser recuperado na fala da menina. De certo modo, esta narrativa nos faz pensar sobre o

esvaziamento das experiências linguísticas do mundo moderno, reflexos, talvez, de um

momento em que os paradigmas estão sendo desconstruídos, bem como de uma concepção

de linguagem entendida como puro instrumento ou veículo de informação e conhecimento.

Um mundo que instrumentaliza as experiências e as relações exige uma linguagem-

instrumento, o que compromete a dimensão expressiva e transcendente da linguagem. Na

contramão disto, esta estória redimensiona o papel da literatura como o lugar de desvio onde

as questões humanas são priorizadas e singularizadas. A presença de Nhinhinha nos propicia

compreender melhor o mal-estar da cultura do adulto num mundo ao qual ele se acostumou e

com o qual perdeu as conexões mais profundas. Isto não é privilégio apenas desta estória. Ao

contrário, tal impasse infância/mundo adulto está colocado em quase todos os contos. Em “A

menina de lá” a reação dos adultos mostra, sobretudo, que eles perderam contato justamente

com aquilo a que a menina está mais sintonizada: a vida e a revelação cotidiana dos mistérios.

Por isso, como diz o narrador “Ninguém entende muita coisa que ela fala...” (ROSA, 1994, p.

menina que o usou, dotada do pendor de criar palavras. (LÉXICO, G.ROSA, MARTINS, 2001, p. 531)

10 A expressão em destaque foi empregada pelo narrador ao se referir à menina como “ –suasibilí ssima, inábil como uma flor.” (ROSA, 1994, p. 401) e mostra que ele reconhece o poder persuasivo damenina. Conforme Martins, esta palavra vem de "suasível” var. de suasivo, próprio para persuadir.”(MARTINS, 2001, p. 470)

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401) De fato, não é tarefa fácil para um adulto compreender o que uma criança diz, porque ele

está cheio de roupagens da cultura, e cada uma diz respeito a um setor de sua vida. A criança,

ao contrário, ainda não está setorizada e capta o mundo com um olhar capaz de penetrar em

lugares que uma visão dicotomizada não consegue. Em Um sopro de vida, Clarice Lispector

nos faz lembrar que “Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade

que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o

apaziguamento do medo, a negação do medo – a civil ização enfim.(...)” E no mesmo trecho,

continua a autora: “Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas

coisas. Para falar a verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver.”

(LISPECTOR, 1978, p. 74)

“A menina de lá” propicia a reflexão sobre um tema bastante valioso que é a

recuperação da singularidade da palavra. As experiências da menina parecem ser sustentadas

pela própria linguagem, pois não parece haver neste conto disparidades entre o vivido e o

dito. A palavra brota, assim como brotam as percepções. Elas são imediatas, coladas às

experiências. Por meio das falas de Nhinhinha penetramos na corrente viva da língua e da

infância. Nhinhinha é descrita como “perpétua”, e isso assustava os adultos. (ROSA, 1994, p.

401) Mas o que importa é que o tempo em que ela vive as coisas diz respeito mais ao tempo

do processo de suas experiências, e não a um porvir. Diante da pergunta – “ Nhinhinha, que é

que você está fazendo?” Ela respondia: “ – Eu... to-u... fa-a-zendo.” (Ibidem, p. 401) Ela é um

processo de vida que se faz e de linguagem que se renova. Quando há menção ao futuro é

também para se referir a um lugar desconhecido. “Suspirava, depois: ‘ Eu quero ir para lá.’ –

Aonde? – ‘ Não sei.’ ” (ROSA, 1994, p. 402 ) O título da estória metaforiza o entre-lugar da

criança, que, no caso, é a posição que a protagonista ocupa. “De lá” ficará para nós como um

lugar de muitas possibil idades: lugar do discurso, lugar da infância, lugar do sem lugar.

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Talvez em outras palavras possamos traduzir e acrescentar às nossas reflexões o que

representa a criança neste conto de Rosa. Nesse sentido, são inspiradoras as palavras de

Solange Jobim e Sousa:

A criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuemsignificados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido único que as coisasnovas tendem a adquirir (...) A criança conhece o mundo enquanto o cria e, ao criar omundo, ela nos revela a verdade sempre provisória da realidade em que se encontra.Construindo seu universo particular no interior de um universo maior reificado, ela é capazde resgatar uma compreensão polifônica do mundo, desenvolvendo, através do jogo queestabelece na relação com os outros e com as coisas, os múltiplos sentidos que a realidadefísica e social pode adquirir. Por isso enriquece permanentemente a humanidade com novosmitos. Grifos do autor (JOBIM E SOUZA, 2001, p. 160)

A língua de Nhinhinha, de Brejeirinha, de Miguil im e de outras crianças extrapola

os limites do poder do mundo adulto. Quando o narrador em “A menina de lá” a respeito de

Nhinhinha diz que “Ninguém tem real poder sobre ela...” (ROSA, 1994, p. 402) está

legitimando o universo imprescrutável da criança e da própria literatura, que é também o

espaço fora do poder. Enfocando o “ lá” que sobressai no título, remetemo-nos ao conto “A

terceira margem do rio” no que o seu título possui de carga semântica similar ao primeiro.

Ambos são lugares simbólicos mais líquidos e flutuantes. Representam, sobretudo, as

diferenças entre os espaços e apontam para outros, que, embora existam, precisam ser

inaugurados. E é pela linguagem, a partir e de dentro do próprio discurso que este lugar passa

a existir. É o lugar da criação, e da indefinição. Não é de se estranhar esses termos marcadores

de lugar na obra de Guimarães Rosa; eles são também nomeadores de um mundo no seu

sentido mais inominável. Portanto é de se compreender que o autor recupera a palavra estória,

e que nas suas “Primeiras estórias” as crianças sejam tão prestigiadas, porque a presença e o

discurso delas resgata o que há de poético no prosaico, o que há de verossímil no acontecido,

o que há de simbólico no real, e o que há de inconsciente no consciente. Sobre esse aspecto

Saraiva chama a atenção para o fato de que o advérbio “ lá” aparece somente uma vez no corpo

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do conto e “que todavia lhe dá a relevância titular, sem que mesmo assim seja fácil determinar

o seu real ou simbólico valor espácio-temporal. Para o autor,

O ‘ lá’ rosiano tanto pode indicar o espaço celeste, ou o ‘além’ da vida, como o espaçoterrestre ou a vida terrena, e até o espaço do corpo; não é necessariamente a diferençainterespacial que justifica a oposição cá/lá, já que esta pode dar-se no interior do mesmoespaço, o que justifica é a visão ou a consciência, por parte do narrador ou de algumpersonagem, de uma fratura ou distância... (SARAIVA, 1998, p. 95)

Nesta narrativa retornam a força da palavra e as suas repercussões. A palavra é uma

personagem importante, responsável por estreitar os laços entre os territórios do mito e do

real, levando um ao outro, fundindo um no outro. Sobressaem as palavras, na mesma

proporção em que emergem os personagens. A estória funde a imaginação da protagonista

com a imaginação do autor no que esta tem de prodigiosa, misteriosa e desafiadora. Funde

também a perspicácia de ambos em criar palavras que não traduzem o intraduzível, mas que

recriam os fatos esquecidos. Em Guimarães Rosa existe, como afirma Wendell Santos, “uma

euforia da linguagem, um retorno ao estilo metafórico que o diferencia do estilo metonímico

da tradição anterior.” (SANTOS, 1978, p. 176) As falas da menina são mágicas e prodigiosas

porque são geradas e alimentadas no que elas possuem de genuína originalidade. A magia e o

milagre só podem ser interpretados se concebidos dentro do vigor da própria palavra, inédita,

que já é, por si só, um milagre. Este é um dos milagres que a narrativa em questão nos

oferece, o qual encontra a sua melhor expressão neste comentário do narrador acerca de

Nhinhinha: “O que ela queria, que falava, súbito acontecia.” (ROSA, 1994, p. 402)

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4.2 “UM MOÇO MUITO BRANCO”

Ele cintilava ausente, aconteceu. (...) – contam que seus olhos eram cor-de-rosa!(“Um moço muito branco” , p. 459 e 461)

4.2.1 Um olhar que toca

Esta parte do trabalho configura-se, de certo modo, como uma continuação do capítulo

anterior, porquanto a narrativa a ser apresentada permite uma leitura comparada com a estória

protagonizada por Nhinhinha. De fato, temos considerado cada vez mais possível uma leitura

especular entre as estórias de Guimarães Rosa, especialmente as que se referem à coletânea de

Primeiras estórias, onde um personagem parece estar ligado ao outro, e ser feito da mesma

substância que o outro. Nestas estórias, aliás, o elemento de revelação é sugerido todo o

tempo, e os relatos são centrados num tipo de invenção que beira à celebração e ao espiritual,

evocando sempre a possibil idade de um evento iluminador. Em importante estudo sobre

Primeiras estórias, Dácio Antônio de Castro salienta que“ A condição de primeiras pode ser

atribuída enquanto iniciáticas, fundamentadoras de todas as outras estórias possíveis. É de se

notar também a circularidade original obtida com a amarração do primeiro com o último

conto. (...) A harmonia do conjunto se apresenta de forma labiríntica, tal a variedade de

perspectiva e de temperatura emocional registradas na sucessão dos contos.” (CASTRO,

1993, p. 14)

O protagonista de “Um moço muito branco” , como veremos, pode ser enfocado por

um viés tão especial como o pode ser Nhinhinha. Não obstante eles vivam situações distintas,

ambos carregam o signo da singularidade, e são dotados de procedimentos poéticos que

geram, em torno deles, uma aura de mistério e de enlevo. A apreensão de ambos não se esgota

numa primeira leitura, mas precisa ser feita com um olhar que saiba penetrar camadas mais

subterrâneas do texto. A tendência a enfocarmos o protagonista de “Um moço muito branco”

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é similar àquela que temos ao contemplar Nhinhinha. Inicialmente, somos tentados a

considerá-los seres sobrenaturais. No entanto, o que dissemos a respeito da menina, vale para

o segundo personagem, uma vez que este parece ser também dotado de poderes especiais.

Ainda assim, é importante revermos este conceito, fazendo um contraponto com a

comunidade que o recebe. Em relação à vida das pessoas ele até poderia ser considerado

“sobrenatural” , mas só no que esta palavra revela de reação ao anti- prosaico da vida, e à

turvação em que estão mergulhados os outros personagens. Novamente estamos diante de um

enredo que nos devolve àquele conceito de alteridade tão realçado na obra rosiana, por meio

do qual identificamos os processos de montagem dos personagens como um intrincado

mosaico de intersecções entre um personagem e outro, numa relação poeticamente especular e

labiríntica.

“Um moço muito branco” é uma revelação, porque nos traz um personagem que

revela aos outros o que eles têm em si mesmos, e que raramente é tocado. Este personagem,

caracterizado por ser muito branco "Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um

branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade"

(ROSA, 1994, p. 457), é responsável pela mudança da perspectiva de vida das pessoas do

lugar. Novamente temos a inserção, na obra de Guimarães Rosa, de uma criatura singular,

fora dos padrões sociais e até mesmo estéticos. A presença desta criatura é mostrada como

fruto de uma catástrofe, de um "fenômeno luminoso" (ROSA, 1994, p. 457) projetado no

espaço, e que gerou um terremoto "que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu

vales, matou gente sem conta..." (ROSA, 1994, p. 457)

Este moço sobrevivente, como podemos perceber, surge dos escombros, gerado por

um fenômeno luminoso. Consideramos valiosa esta imagem proposta desde o início da

narração, que é o aparecimento de uma luz intensa que, por sua vez, vai resultar numa

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catástrofe. No entanto – e é este ponto que nos chama a atenção - o saldo final é a aparição de

uma criatura perplexa e impregnada de luz, como se fosse ela também um "fenômeno

luminoso". Os relatos são feitos, inicialmente, a partir de elementos comprobatórios,

revelando uma intenção narrativa de ser o mais verossímil possível, mas que depois se dilui

ao descompromisso com o factual, para penetrar novamente nas camadas mais sutis dos

acontecimentos. Ou seja, os fatos, com datas e locais específicos, são verdadeiros pretextos

para a revelação de outras verdades que serão narradas, as quais pertencem ao tempo próprio

da narrativa, bem como de suas necessidades e intenções.

Assim começa a estória: "NA NOITE de 11 de novembro de 1872, na comarca do

Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da

época e exarados nas Efemérides." (ROSA, 1994, p. 457) Nessa estória ocorre um jogo entre

o conhecido e o desconhecido. O narrador apresenta muitas informações sobre a comunidade,

sobre as pessoas importantes do lugar, seus nomes, suas funções, posses, e data os dias das

festas, enfim, oferece-nos um retrato minucioso da vida no pequeno lugarejo. Porém, ao falar

do protagonista, as pinceladas são mais evocativas, impressionistas, o que mostra a profunda

diferença entre este e a comunidade. Neste jogo fica evidenciado o que é do cotidiano e o que

é do inusitado, o que é ausência de luz, e o que é presença luminosa. Trata-se de um

verdadeiro contraste entre os aspectos da imanência (vida da comunidade) e da transcendência

(chegada do moço branco). Ao se referir às pessoas do lugar, a narração caminha menos solta,

e se prende a retratar com mais realismo os seus costumes . Mas, no que diz respeito ao moço

branco, a pena do narrador faz outros contornos, sugere, evoca, provocando uma

profícua/eficiente distinção entre o protagonista e os outros. Costa Lima, em importante

estudo sobre as Primeiras estórias, chama a atenção para os usos da palavra nesta coletânea:

"Já nas Primeiras estórias" a palavra caminha mais solta. Não quer seguir leal os contornosdo acontecimento. Ela antes se confunde com uma pincelada solta, irregular, que menos

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visasse a distinguir as criaturas do seu contorno do que as apreender simultaneamente. Adescrição, por isso, se faz conscientemente imprecisa e cumulativa." (LIMA, 1991, p. 502)

4.2.2 O olhar do diferente

O que o protagonista de “Um moço muito branco” vai gerar de benéfico para a

comunidade nos faz pensar nos ciclos de vida e morte, de construção e desconstrução, outro

tema muito marcante na obra de Rosa, que não para de fazer jogadas de desconstrução com a

linguagem, numa verdadeira mostra de como esta é reflexo da vida, constante mutação. O fato

de uma criatura como o protagonista surgir dos escombros, de uma desconstrução fenomenal,

e trazer, com a sua presença, luz e revitalização para as pessoas do lugar, revela este mundo

“movente” 11 em que Guimarães Rosa acreditava. A aceitação deste homem branco pela

comunidade, decorre, inicialmente, do sentimento de estranhamento causado nas pessoas que

o vêem como o diferente. Contudo, o mais interessante é que justamente devido a esse fato é

que ele vai revelar o que há de diferente e ao mesmo tempo de singular em cada um. Aos seus

olhos, todos merecem respeito e amor, e é o que ele expressa. Parece-nos que, vindo de

esferas outras, onde as questões dos mortais são meros ecos distantes de uma realidade muito

mais evoluída e transcendental, este homem paira no lugar, e transcende os critérios morais e

éticos. Ele não faz julgamentos, não imagina, nem ao menos cogita o que estão pensando

dele, e a forma como o julgam. Castro nos lembra os traços marcantes de “Primeiras estórias”

entre os quais está a intuição, a epifania e a iluminação. Personagens intuitivos, todos

possuem um canal de comunicação com o mundo externo, que parece provocar algum tipo de

mudança nas relações entre as pessoas, bem como nos lugares. Para Manuel Antônio de

Castro,

11 A expressão mundo movente é empregada por José Carlos Garbuglio, no li vro: O mundo movente de

Guimarães Rosa, São Paulo, Ática, 1972.

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Todas as estórias desse li vro têm como núcleo um acontecimento, intuído pelos personagens.Daí que eles se transformem em videntes, adivinhos. São guiados pela paixão ou pelodevaneio; até mesmo seus atos e palavras mais simples vêm impregnados de uma cargasimbólica. (CASTRO, 1993, p. 16)

Ainda sobre os personagens, continua o autor:

Elas vivem instintivamente, são seres antiintelectuais, portadores de uma vocação mágica.Isto lhes dá plena liberdade de criar seus mundos, transformando-os em espaços derevelações profundas, pois percebem o que está além do que é possível alcançar através doracionalismo. A infância, para Guimarães Rosa, é traço de grandeza divina. (CASTRO,1993, p. 19)

A intuição pode ser compreendida como um novo modo de ver, que propicia aos

personagens uma capacidade de captar o que é mais urgente e fundamental. Por meio desse

olhar intuitivo e apaixonado os personagens recuperam o sentido simbólico das coisas, e

desenfocam o sentido referencial. Este conto traz algo de muito valioso para nós, porque, ao

falarmos de “Primeiras estórias” , pensamos especialmente em um tipo de abordagem que

valoriza a origem das coisas, ou pelo menos, a tentativa, por meio do ato narrativo, de

remontar à origem das coisas. Neste sentido, como já dissemos, uma estória primeira é uma

estória que busca introduzir algo, reconstituir um elo perdido, acionar na nossa memória de

leitores alguma narrativa que veio antes de todas - a essência das coisas, em meio a verdades

tão provisórias. Portanto, dentro deste enfoque “Um moço muito branco” traz a possibilidade

de um olhar para as origens, no que concerne à presença de uma criatura que resvala em

transparências, e que, parece-nos, está além do bem e do mal. A figura deste homem muito

branco remete-nos à imagem arcaica, primordial. Não temos acesso aos registros de seus

dados biográficos, e o seu passado nos escapa, o que não ocorre, por exemplo, com Maria

Exita e Drizilda. Outro fator de estranhamento também é a ênfase na sua cor alva, como numa

espécie de alegoria do homem no seu estado ou estágio ainda original.12 É o homem do

12 Novamente vemos a reiteração da cor branca, que, como vimos, foi ricamente valorizada em

“substância”.

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princípio de tudo, excepcional, não por seus supostos poderes sobrenaturais, mas pelas

condições em que aparece, pelos procedimentos diferenciados que tem em relação aos outros,

que já não são tão “brancos” . É interessante também observarmos que este homem surge das

ruínas de um terremoto. Resistindo e sobrevivendo ao terremoto, ele é fruto da desconstrução

e do caos. É ele quem vai instaurar certa ordem e harmonia dentro de cada um. Parece-nos

que este conto fala, dentre outras coisas, sobre uma possibil idade de recomeço, instaurado

por um homem que tem um olhar liberto de todas as convenções.

Ele não tem nome. Ele é aquele que é. E tudo que toca é realmente tocado. Este

conto fala de recomeço, e da possibil idade de se construir um olhar menos turvo, a partir de

um enfoque mais transparente, gerado simbolicamente pela presença de um homem branco. A

luz que vem dele é fator de construção de alteridade nos moradores do vilarejo. Deste modo,

há elementos que propiciam uma leitura deste conto sob uma ótica da origem das coisas, da

reconstrução da ordem, a partir da presença de um ser que nasce do caos. Conforme Eliade,

"Efetivamente, para o homem das sociedades arcaicas, o conhecimento da origem de cada

coisa (animal, planta, objeto cósmico, etc.) confere uma espécie de domínio mágico sobre ela:

sabe-se onde encontrá-la e como fazê-la reaparecer no futuro. (ELIADE, 2004, p. 72) Este

conto trata de um fenômeno luminoso descrito no início do texto: "Dito que um fenômeno

luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que

sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta..." (ROSA,

1994, p. 457) Associado a este fenômeno físico, surge outro, que é a chegada na região, desta

criatura branca: "Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve,

semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade." (ROSA, 1994,

p. 457) A presença deste homem no lugar, e o seu surgimento justamente após este

cataclisma, pode gerar interpretações muito valiosas. Uma apenas nos importa para o

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momento, que é a que diz respeito, inicialmente, à presença do diferente num lugar em que

todos têm comportamentos padronizados, e cujas preocupações parecem ser as mesmas. A

chegada do diferente desponta para a possibil idade de novas experiências e sensações.

Neste sentido, precisamos reiterar a presença das criaturas incomuns na obra do autor

e salientarmos, uma vez mais, que a radicalização de procedimentos insólitos como o de

tantos personagens revela, sobretudo, a necessidade da mudança, e a crença na mutação

constante, nessa movência das coisas, que não cessa. Somente com a chegada de alguns tipos

incomuns, os quais transbordam na obra rosiana, são possíveis os impactos, a desestruturação

na ordem das coisas, propiciada por mudanças radicais, que, por sua vez, acarretam violentas

quebras de padrões. Na verdade, o que nos chama muito a atenção é a forma singular que o

autor encontra para mostrar como a vida ordinária, dentro das margens cotidianas, pode ser

questionada a partir do aparecimento de uma criatura que simplesmente não se encaixa ao

meio. Isto deve ficar bem claro para o leitor que lê a obra de Rosa. O questionamento das

margens demarcadas, estipuladas e seguidas incondicionalmente é conotado o tempo todo,

não só por meio de uma linguagem renovada e revitalizada, mas também pela passagem de

pessoas estranhas, insólitas, com dizeres, cores, e olhos incomuns. Nhinhinha, por exemplo,

era “cabeçudota e com olhos enormes,” (ROSA, 1994, p. 401); o moço branco “fazia para si

outra raça” (ROSA, 1994, p. 457), e “seus olhos eram cor-de-rosa!” (ROSA, 1994, p. 459).

Além disso, vêem demais, olham demais, entregam-se ao olhar, transformam-se no próprio

olhar. Nhinhinha nasceu miúda, mas foi compensada com olhos grandes; o Moço Branco

tinha o hábito de “olhar ele sempre para cima(...) – espiador de estrelas.” (ROSA, 1994, p.

459) Chama-nos também a atenção a belíssima passagem em que ele encontra o cego, que

retrata a enorme disponibil idade para ver o outro: “olhou-o sem medida e entregadamente...”

(ROSA, 1994, p. 459)

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Temos observado que quando estas criaturas aparecem, olham, falam e agem, algo

na ordem das coisas se modifica, bem como na ordem do plano narrativo, e no que diz

respeito às expectativas do leitor. Aproveitamos para dizer como estas personagens são

sedutoras no sentido de propiciarem não só às outras personagens, mas também aos leitores,

uma mudança de enfoque no olhar. A questão da cor nesta estória é muito sugestiva, porque o

protagonista não é apenas branco, mas “muito branco” . Ele reluz, mas não ofusca as vistas de

ninguém. Seu brilho e transparência possuem a força necessária para realizarem as mudanças

necessárias. Não há exageros no personagem, mas talvez na forma como ele é tratado pelas

pessoas. No entanto, isto também faz parte de uma jogada do narrador-questionador, que

revela outra vez que estamos tão acostumados com a turvação da visão, que a chegada de

qualquer pessoa mais clara e transparente pode gerar interesses exagerados, bem como

curiosidades exacerbadas. De certa forma, este outro, com as suas peculiaridades, com este

jeito diferente de ser, com esta transparência incontestável, fornece os elementos necessários

para a edificação da identidade dos moradores do lugar. Na verdade, ele faz poucas coisas,

mas possui uma intensidade em seu ser, que é pungente. Ele é presença e ausência; é

imanência e transcendência. Como diz o narrador: "Sobremodo se assemelhava a esses

estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça. " (ROSA, 1994,

p. 457)

Este conto apresenta-se como uma narrativa misteriosa, e novamente parecemos

estar diante de fenômenos sobrenaturais. No entanto, se olharmos bem o seu conteúdo,

veremos que não se trata de uma estória sobrenatural, mas que estamos outra vez diante de um

convite do narrador a que olhemos para onde não costumamos mais dirigir o olhar. Assim

como "A menina de lá", o protagonista da estória em questão tem atitudes diferentes de todos,

e por isto todos o consideram como pessoa excêntrica. Mas o que nos chama a atenção é, mais

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do que o caráter insólito do personagem, a forma como ele, bem como Nhinhinha, se

diferencia dos outros. Não porque sejam extraordinários, mas porque ainda mantêm intacto

algum sentimento, ou percepção, que os outros perderam.

A breve passagem do moço na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, nos coloca

em um outro lugar de reflexão. O próprio título nos remete a uma promessa de claridade, de

luz, onde só imperam os valores e os interesses locais, corriqueiros, revelados pelos

personagens do lugar. Em oposição a esta turvação diária, surge, não se sabe de onde, um

moço muito branco, que transforma as coisas e as pessoas que toca. Trata-se de mais um

destes personagens sedutores de Guimarães Rosa, que por trás de uma aparente pureza e

fragil idade, encerram uma força estranha e transformadora. Este personagem também tem um

olhar que o distingue da comunidade local. E é por meio do seu olhar sem turvação que se dão

os seus aparentes “milagres” . De fato, ele nos parece imaculado, e possuidor de um olhar puro

que se dirige a todos os seres. É o que nos fala o narrador: "De estranha memória, só, pois, a

de olhar ele sempre para cima, o mesmo para o dia que para a noite – espiador de estrelas."

(ROSA, 1994, p. 459)

As duas narrativas em questão, como dissemos, parecem ser estruturadas por

ingredientes sobrenaturais que geram no leitor, à primeira vista, uma curiosidade que deve

ser ultrapassada a fim de que os significados ocultos sejam decifrados. Penetrando na

estrutrura mais profunda de “A menina de lá" e de "Um moço muito branco", veremos que

estas estórias fazem parte menos de uma descrição de fenômenos sobrenaturais do que do

questionamento que permeia a obra de Guimarães Rosa. Ou seja, veremos que os

protagonistas destas estórias possuem um comportamento que questiona a lógica e o pre-

visto. Eles vêem além das aparências, e com esta visão tocam onde os outros não

conseguem mais fazê-lo. Por isso parecem estranhos, oriundos de lugares também estranhos e

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de difícil acesso. Na verdade, esta atmosfera que os envolve radicaliza a proposta de um novo

olhar. Nhinhinha e o protagonista anônimo de "Um moço muito branco" são seres que se

auto-conduzem, e que se diferenciam dos outros porque vivenciam integralmente seus dons,

suas potencialidades de visão. O seu campo de visão é amplo, sem ser excessivo. É expansivo,

sem deixar de ser sóbrio. Por meio deles observamos como os outros vêem, ou não vêem.

Nesse sentido, os títulos das estórias são bastante sugestivos. A menina é de lá. De lá,

de onde? Onde é este “lá”? De onde ela vem? Não será este “lá” um lugar que temos perdido

em função de uma espécie de torpor ao qual nos acostumamos? "Um moço muito branco" traz

implícita a idéia desta luminosidade, do desvelamento das coisas: clareza, luz, transparência.

É o oposto de turvação e sombra. Em ambos os personagens estão presentes aspectos

similares, quais sejam: o estigma da diferença, a proveniência desconhecida (ele, veio dos

escombros; e ela, é a menina de lá) Ambos representam a forma inusitada de olhar e a

capacidade de transformar as coisas que vêem.

Chamou-nos também a atenção em “Um moço muito branco” a rápida passagem do

cego pedidor de esmolas. É justamente a este cego que o protagonista oferece uma semente

que, depois de plantada, dá flores raras, azuis. A semente que ele recebe e que confunde com

comida não deixa de ser um alimento, mas noutro plano: "Mas à porta da igreja se achava um

cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o sem medida e entregadamente. –

contam que seus olhos eram cor-de-rosa! – e foi em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula,

tirada da algibeira." (ROSA, 1994, p. 459) A cegueira deste pedinte não seria uma extensão

de toda a cegueira da comunidade? Veja-se a passagem:

Então o cego guardou, com irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foiplantada após o remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da maisrara e inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas demaneira impossível, num primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas concordou,por desconhecido no século, definhada, com pouco, e secada, sem produzir outras sementesnem mudas, e nem os insetos a sabiam procurar. (ROSA, 1994, p. 459)

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A aparição deste personagem cego que recebe uma semente do personagem

iluminado sugere-nos um incrível contraponto com a lucidez do protagonista, cuja passagem,

tão rápida quanto a do suposto "fenômeno luminoso" que "se projetou no espaço" (ROSA,

1994, p. 457), nos convida a refletir sobre a força destes deslocamentos que as narrativas

apresentam. É muito oportuno e simbólico o breve gesto de doação feito pelo protagonista ao

cego. Parece-nos que, neste momento, o diferente que tanto vê, fala ao diferente e, ao mesmo

tempo ao seu igual, que não vê mas muito percebe.13

O protagonista dessa estória destaca-se da coletividade por sua clareza de atitudes e

pelo seu olhar intuitivo. E desse modo ele, às vezes, é confundido com um lunático: "Ele

andava muito na lua, passeava por todo lugar e alhonde, praticando aquela liberdade vaporosa

e o espírito de solidão, parecesse alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo."

(ROSA, 1994, p. 459) Trata-se, certamente, de mais um personagem de Guimarães Rosa que

está à margem, sem lugar definido. Um nômade existencial, para quem os caminhos são

sempre incertos.

13 Novamente estamos diante de uma estória em que o cego tem um papel ambíguo; e sua presença traz

significados importantes para a narrativa, porque, longe de ser um excluído, este cego, bem como o das outrasnarrativas, constitui um elo entre o protagonista e o restante da comunidade. A cegueira parece revelar algomuito mais amplo que simples deficiência física, e nos faz pensar na perda de uma outra visão, muito enfatizadana obra de Guimarães Rosa.

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4.3 “A TERCEIRA MARGEM DO RIO”

4.3.1 Olhar e esperar

Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás.("A terceira margem do rio", p. 409)

Neste conto misterioso de Primeiras estórias, um dos personagens, sempre às

margens do rio, acompanha o pai, após este, sem nenhum motivo aparente, ter deixado a

família e se instalado numa canoa construída cuidadosamente para carregar apenas uma

pessoa e resistir às intempéries do tempo. Assim, após a partida do pai, o filho passa a viver às

margens do rio, acompanhando os movimentos do pai, que nunca volta. Nesta estória,

podemos observar as transformações dos dois protagonistas, que vivem numa relação

especular. Não se sabe sequer se o filho, quando o pai parte, é ainda criança ou não. O que se

pode depreender é que a sua formação está intimamente ligada ao envelhecer e ao processo de

“marginalização” do pai. Como os outros personagens desta estória, o filho-narrador, vive a

experiência da perda, mas mediada diariamente pela presença/ausência do pai. Trata-se de

uma narrativa polêmica, atmosférica, insinuante, que mostra, ao mesmo tempo, a passagem e

o estancamento do tempo. Temos noção de que este passou mediante os sinais oferecidos pelo

narrador quando menciona que já lhe começam a branquear os cabelos.

Enquanto filho, o personagem é um menino, e depois torna-se homem ao assumir o

destino de aguardar o pai, cuidando simbólica e materialmente dele. Mas a sugestão que o

conto oferece é a de que, na sua condição de espera, ele será sempre um menino

impossibil itado de desenvolver suas próprias possibil idades. O desafio maior do protagonista

será a tentativa frustrada de tomar o lugar do pai na canoa. Entretanto, embora tente criar

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forças para isto, a imagem do pai que volta transfigurado o assusta, e ele recua amortecido de

pânico e de culpas.

É um belíssimo conto que nos aponta, dentre vários outros caminhos, para a

impossibil idade de, em certas situações ou questões da vida, tomar-se o lugar do outro, pois a

cada qual está reservado o seu tanto, sua parte na canoa, sua terceira margem. Também nos

inspiramos nesta margem para situarmos estes personagens criados pelo autor, que, como

temos dito, rompem com o discurso racional-unívoco, e recriam outro, fruto de diversas

percepções do mundo, nas quais estão inseridas as crianças, os loucos, os velhos e os cegos.

Este conto nos oferece um olhar bem especial, ou seja, é um olhar que se volta para

trás. O filho, preso ao passado e à mercê do pai, possui um olhar paralisado, fixado no medo e

na culpa. É para trás, sempre para trás que seus olhos se dirigem. E é baseado no seu ponto de

vista que veremos os acontecimentos. O olhar deste personagem é um olhar que se fixa e não

consegue se movimentar na dinâmica provocada pela atitude insólita do pai. Enquanto o pai

se movimenta no rio, o filho o aguarda e o observa. Mas, anos de observação cuidadosa não

são suficientes para o filho tomar a atitude que o pai esperava dele. Por isso surge a culpa, que

dá a este conto o seu sentido trágico. Suas ações o traem, não obstante ele tenha olhado tanto

para a situação, para o rio, para o pai. Ele viveu um longo tempo como observador, a ênfase

foi também no olhar contemplativo, como o do pai, e quando poderia agir não o fez, ou não

estava preparado. O olhar deste filho é um olhar preso, fixado na inação, e que não o leva para

a transformação. Dedicado exclusivamente à missão de esperar e olhar o pai, ele se torna,

pouco a pouco, um observador cujo olhar só sobrevive por causa dessa fusão eu/outro, em

que o eu se dilui no outro. No final, ele não consegue distinguir muito bem a figura do pai,

que lhe parece vir da parte do além. E se sua vontade se manifestou, esta teve uma breve

duração, justamente porque o que ele viu era incerto, ele não estava vendo com clareza de

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onde vinha o pai, e quem era mais este pai. Assustou-se diante do que viu, ou do que pensou

ter visto. Paralisou-se quando ia agir.

Nessa terceira margem, quem olha é aquele que espera. O ato de olhar está ligado a

esperar. O olhar do filho não consegue discernir o que é o tempo do agir e o tempo do esperar.

Paralisado pela espera, ele pára de viver sua própria vida para se tornar um observador

passivo. No momento em que poderia agir, perde-se em dúvidas e no emaranhado que se

tornou o seu próprio ser. É então um paradoxo porque, se o bom senso nos diz que quem toma

distância para olhar consegue ver melhor, neste caso o filho, embora distanciado e na posição

de observador, não consegue ter o discernimento suficiente para perceber a hora certa de

deixar a sua posição e assumir outra, a de ator do seu próprio processo. Ao ouvir o chamado

do Pai para assumir o lugar na canoa, não tem a coragem suficiente para fazê-lo e se perde

mais uma vez como um ser da contemplação. É a ambiguidade gerada dentro deste ato

contemplativo expresso pelo gesto do pai e do filho que nos faz rever os riscos a que um

demorar-se ou exagerar-se na contemplação podem gerar e de que maneira podem

comprometer as ações necessárias para a sobrevivência da psique e da própria espécie. O

filho, em síntese, foi presa de uma contemplação sem ação - fazemos ressalvas, é claro, com

os seus gestos de suprir e de abastecer materialmente o pai - mas não é deste procedimento

que nascerá a força de sua ação, e sim de um outro que não conseguimos captar, ao longo da

narrativa.

Com relação a Riobaldo, em Grande sertão: veredas, e o filho de “A terceira

margem do rio” , é possível dizer que ambos estão fixados em suas culpas e que nos dois a

dúvida é radicalizada. No último caso, esta intensifica-se e cresce no final. Poderia ser

resolvida, mas o protagonista cede a ela e se paralisa. Riobaldo vivencia esta dúvida, seja com

relação à existência ou não do diabo, seja com relação ao amor por Diadorim, mas de forma

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mais dinâmica e criativa. Ou seja, ele age diante da dúvida: posiciona-se, lança-se ao seu

desdobramento. E ainda assim percebemos, pelo tom de seu monólogo/diálogo, que o seu

grande erro foi não ter visto. Algo de crucial não lhe foi esclarecido e ele perdeu uma porção

da verdade. Esta meia verdade ou relativização da verdade nos devolve outra vez para o que

consideramos o cerne da obra de Guimarães Rosa: existe de fato o Diabo? Pois tal pergunta

simboliza talvez uma mais ampla: existe, de fato, a verdade como a entendemos, ou a

desejamos? Ou o que vemos será mesmo um vislumbre, uma faceta desta? Teremos, no meio

de nossa travessia, acesso à totalidade do Real? Não podemos falar de um modo de ver, sem

termos como núcleo de nossas reflexões o ato de questionar. Como dissemos no início deste

estudo, o olhar está imbricado ao ato de perguntar. E neste sentido o filho, nesta estória,

padece de uma terrível incompreensão acerca das atitudes do Pai. Ele não entende, e a sua

imobilidade decorre de sua impossibil idade de atingir o mistério que rondeia o gesto

inapreensível do Pai, e que o deixou com o olhar turvo, paralisado em um único campo de

visão.

4.3.2 Do outro lado do texto

Para discorrer sobre “A terceira margem do rio” colocamo-nos à margem do texto,

porque sabemos da impossibil idade de penetrá-lo. Desta margem buscamos o remador sobre a

sua canoa e imaginamos o seu salto: da terra para a água, pervertendo a solidez e a concretude

dos dias, rompendo com a história conhecida e iniciando outra. Passagem para o rio.

Passagem da ação para a contemplação. Passagem do fazer para o lembrar. Do estar com a ser

lembrado por. Nesse conto misterioso de Guimarães Rosa o mistério não é para ser desvelado,

senão como gerador de outros mistérios. A narrativa por si só é suficiente para instaurar em

nós a certeza do que está encoberto e a dificuldade em reconhecê-lo.

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Variados aspectos iluminam esta estória, ao mesmo tempo que produzem sombras.

Tentar compreender esta terceira margem somente pelo veio intelectual representa um risco:

condenar a história à banalidade das respostas objetivas, colocá-la no lugar em que ela não

deve estar, justamente porque ela é uma espécie de entre-lugar. Desta forma só é possível ler

o conto se nos posicionamos à margem, sondando o ir e vir da canoa, que sobrenada o rio

margeado, nesta estória, inevitável e paradoxalmente, por três margens. Para entrar no rio será

preciso, além do remo e da canoa, certa coragem e silêncio contemplativo, porque, deixada a

terra, a escuta é dirigida para a voz e os ruídos de dentro. O que é possível fazer sentado

dentro de uma canoa, exposto a todas as intempéries do tempo, senão olhar e escutar?

Sabemos tratar-se a terceira margem de um espaço essencialmente metafórico, que

atinge neste conto a sua excelência; mas, antes da metáfora, ou subjacente a ela, há o literal: o

rio, a canoa. A passagem do tempo. As margens do rio. Descontinuadas por uma terceira, não

paralela, uma margem intrusa, não natural. E é o lugar ocupado por esta margem que se

vislumbra nos espaços silenciosos do texto, que, seguindo o ritmo do rio, silencia-se nele e

com ele. Silencioso é o protagonista, porque, como contemplador, habita a morada do

silêncio. O discurso é o do silêncio do rio.

O homem deixa a solidez e mergulha na fluidez: do cosmos ao caos. Muda de

estágio, renega a sua condição cotidiana e instaura a sua própria rotina fundada, solidificada

na água que o leva, sem afastá-lo do seu lugar de origem. Torna-se, então, autor de sua

própria solidão, transgredindo os limites, ultrapassando as margens. Como numa experiência

onírica esse ser da terra funda uma nova forma de vida, estabelece-se no contexto do seu novo

habitat: útero da mãe e da terra, silêncio do tempo primordial, em que o Universo era apenas a

sombra de si mesmo. Deixando a casa, reinaugura-se, batiza-se e renasce, não mais como um

homem de ação, mas como um homem da contemplação. Desprendido dos hábitos do

conhecimento util itário e dos condicionamentos sociais, ele imerge nos processos do

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devaneio, como se transitasse entre a vigília e o sono. Os fios da pressão diária são vencidos

nesta narrativa. Indo em direção à água, liberta-se das exigências da socialização para viver o

aprendizado da contemplação.

Na história da humanidade são muitos aqueles que decidiram partir e buscar a sua

terceira margem. Quarenta dias e quarenta noites habitou Jesus o deserto: da ação à

contemplação, e desta para a Iluminação. Sete anos buscou Sidarta Gautama vencer os

condicionamentos da matéria, através de práticas ascéticas, até encontrar o Caminho do Meio

e se tornar o Buda, o Iluminado. Da ação à contemplação. Da imanência à transcendência. Da

margem à terceira margem.

“A terceira margem do rio” é um conto que associa contemplação e memória,

aspectos que são vivenciados por dois protagonistas: o Pai, desencadeador da trama, e o

Filho, narrador da trama. Dois movimentos predominam nele: o ato de contemplar e o de

rememorar. Da leitura deste texto, muitas perguntas incômodas vão surgindo, dada a

excentricidade e até mesmo o absurdo da situação que se apresenta. Perguntas muitas vezes

trazem respostas, e uma delas, diz respeito à liberdade. Acreditamos que este conto tão

polêmico e hermético esteja pautado, sobretudo, na necessidade de liberdade do protagonista,

que, como constatamos, tudo planejou e organizou para que o seu projeto de mudança se

realizasse. A estória mostra o protagonista em dois momentos distintos: o homem ordeiro e

positivo, do início da narrativa, e o homem de espírito livre, desamarrado das noções do

tempo e do espaço, representados pela vida na sua casa, ao lado de sua família. Ao romper

com esta estrutura, ele mergulha no espaço do devaneio, quando, não mais espoliado pela

vida ativa, alaga, alarga e distende a sua imaginação. Muda o enfoque, a paisagem, o olhar.

Sobre a canoa ele passa a exercitar radicalmente a sua subjetividade - descondicionado dos

jogos sociais ou culturais - e entra num processo de diálogo com a Natureza. Não tem mais a

proteção da casa, e, desta forma, o seu olhar alcançará outros espaços, rompendo fronteiras.

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Nestes termos vale lembrar Bergson para quem o condicionamento da matéria é a

única fronteira que o espírito pode conhecer. No texto em questão, este despojamento material

pelo qual o protagonista opta, parece incompreensível para os que não fizeram a travessia.

Sobre isso nos chama a atenção o narrador: “O severo que era, de não se entender, de

maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,

sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na

cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conto do se-ir do viver.” (ROSA,

1994, p. 410-11) Ainda que continue a se alimentar, os provimentos são mínimos, sintomas de

que agora o Pai tem é outras necessidades, e que é nutrido por outras fontes, pois, conforme

observa o narrador: “O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente

depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia

pouco, nem o bastável. Não adoecia?” (ROSA, 1994, p. 410)

Em A poética do devaneio Bachelard emprega as expressões “sonhador do mundo” e

“Tranqüilidade”. Para o filósofo-poeta este sonhador do mundo “abre-se para o mundo e o

mundo se abre para ele” (BACHELARD, 2001, p. 165). Conforme o autor, no devaneio de

sua solidão de sonhador há a conjugação de duas profundezas: “a profundeza do ser do

mundo e uma profundeza do ser do sonhador.” (BACHELARD, 2001, p. 165-166)

O homem de “A terceira margem do rio” é o alimento da vida contemplativa, ao

mesmo tempo que se nutre dela, vencendo a realidade da ação. Vencida pelos gestos do

contemplar, a ação se recolhe, imersa nas águas, para, em seguida, emergir revestida do

silêncio próprio da contemplação. Para ver esse homem, potencializado no seu espírito

contemplativo, é preciso revestir-se também do sentimento do quase invisível ou impossível

que é a terceira margem em que ele se encontra. A leitura desta narrativa é a leitura da espera

e da paciência. Espera que leva o leitor a ler e a reler o texto, em busca de sinais, de modo

análogo ao filho, na margem, no aguardo do Pai.

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4.3.3 Navegar é preciso

“A terceira margem do rio” restitui ao leitor, por meio da viagem do Pai, a sensação

daquela fluência do devaneio, apontada em A poética do devaneio “que nos ajuda a fluir no

mundo, no bem-estar de um mundo” (BACHELARD, 2001, p. 185). Proporciona ao leitor a

possibilidade de quebrar padrões e de criar para si um tempo e um espaço oníricos bem

especiais, em que o homem, no enfrentamento de sua solidão, pode se tornar “o verdadeiro

sujeito do verbo contemplar, a primeira testemunha do poder da contemplação.”

(BACHELARD, 2001, p. 167) Assim como acontece em Grande sertão: veredas, este conto é

também um exemplo do questionamento que se impõe nas redes narrativas rosianas. No

prodigioso romance de Rosa, o protagonista Riobaldo representa a radicalização da dúvida,

expressa, conseqüentemente, no constante perguntar que perfila a narrativa até o final, de

forma muitas vezes obsessiva. Trata-se de mais um conto em que fica evocado o exercício da

indagação, e retorna aquele perguntar observado em Grande sertão: veredas, aliado ao

sentimento de culpa dos dois protagonistas. Na primeira estória, a mudança brusca de

procedimentos do Pai vai gerar um olhar dubitativo no filho, cujo ponto de vista sobre o pai e

sobre si mesmo precisará ser revisto, questionado.

Nesta narrativa temos a imagem da água configurada, não apenas pelo ir e vir da

canoa, mas pela passagem do tempo (pontuada pelo narrador) e pela própria estrutura

narrativa fluida, aquática, que revela, além da estória, a própria lacuna em que residem os

eventos em torno de um tema central que é a vida do homem no rio, ocasionada pela mudança

no seu modo de ver. O protagonista, ao entrar na sua canoa, realiza, de certo modo, um

diálogo com o homo-ludens, o filósofo, o poeta que há nele, o que se debruça sobre as

verdades veladas. E isso é instaurado neste gesto radical de abdicar dos mecanismos

utilitaristas do seu viver e optar pela outra dinâmica: a da contemplação.

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Com relação à imagem da água e à passagem do tempo, inspiram-nos outra vez as

reflexões de Bachelard acerca do devaneio e do sonho. Para o filósofo: “O tempo já não tem

ontem nem amanhã. O tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e do mundo. O

Mundo é tão majestoso que nele não ocorre mais nada: o Mundo repousa em sua

tranqüili dade. O sonhador está tranqüilo diante de uma Água tranqüila.” (BACHELARD,

2001, p. 166) Nesta passagem o filósofo faz um contraponto entre o homem que sonha e o

homem de razão, e relaciona este trabalho de sonho e devaneio ao trabalho do poeta, que,

embriagado vai “beber na taça do mundo”.

Ora, se esta é uma alusão aos trabalhos do poeta, (ou ao fazer poético) é possível

descobrir no homem de “A terceira margem do rio” esse espírito poético, para quem o ato de

contemplar, devanear e habitar o rio representam, como para o poeta, o ato de viver o

imprevisto, de conhecer o desconhecido, de criar outra margem.

Para o autor de A poética do devaneio, “pela cosmicidade de uma imagem

recebemos, portanto, uma experiência de mundo. O devaneio cósmico nos faz habitar um

mundo; dá ao sonhador a impressão de um em casa num universo imaginado.”

(BACHELARD, 2001, p. 170) Em “A terceira margem do rio” o movimento terra/água

corresponderia, dentro desta perspectiva, a dois outros movimentos que se complementam: a

partida e o retorno. Deixando a casa na terra, “sem alegria nem cuidado, nosso pai encalçou o

chapéu e decidiu um adeus para a gente” (ROSA, 1994, p. 409). Não estaria o Pai, desta

forma, retornando a esta primeira morada, repouso sagrado e flutuante? Se, como afirma

Baader, “a única prova possível da existência da água, a mais convincente e mais intimamente

verdadeira, é a sede” (BACHELARD, 2001, p. 171), a substância desse conto é a sede do Pai,

e, para matá-la, constrói sua canoa, que, como relata o Filho, “teve de ser toda fabricada,

escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta

anos.” (ROSA, 1994, p. 409)

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Tratando sobre os devaneios diante da água dormente, Bachelard destaca a

importância desse elemento como um grande repouso de alma, além de sua capacidade de

tornar os devaneios em atemporais. A água proporciona, então, o encontro da profundidade

com a superfície. Na presença da água, o eu do sonhador não conhece mais a oposição, e nada

existe mais que seja contra ele. Repousando agora o universo sobre a lagoa, a alma pode se

sentir em casa, pois a “água dormente” integra todas as coisas, o universo e seu sonhador.

Situada próxima à casa do protagonista, a água, nesta estória, não seria uma

possibilidade de encontro da superfície com a profundidade, e não um simples afastamento do

Pai? A passagem revela as diferenças entre os dois espaços, mas, ao mesmo tempo, a

proximidade entre eles: “Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem

quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo de não se

poder ver a forma de outra beira” (ROSA, 1994, p. 409). Seguindo os devaneios poéticos-

filosóficos de Bachelard e margeando a narrativa de Guimarães Rosa, podemos considerar a

profunda transformação pela qual passa o Pai, que é simbolicamente sugerida quando este, ao

final da narrativa, quase retorna, e pareceu ao Filho vir “da parte de além” (ROSA, 1994, p.

412). Ora, não estaria o Pai, após o mergulho na água dormente do seu ser, pronto para pisar

a terra? Expande-se tal hipótese diante das afirmações de Bachelard, para quem: “Após uma

espécie de olvido de si que desce ao fundo do ser, sem ter necessidade das tagarelices da

dúvida, a alma do sonhador retorna à superfície, volta a viver sua vida de universo.”

(BACHELARD, 2001, p. 189)

O desejo de transcendência do Pai encontra na água a sua máxima expressão do

onirismo e do devaneio. A superação de sua imanência se dá justamente na sua opção pelo

rio, que o deixa numa situação limite entre vida-morte. Vivo sabemo-lo pela voz do narrador,

mas no final, momento de profunda tensão do conto, percebemos que a transcendência foi

definitivamente alcançada, quando, atendendo ao chamado do Filho, o pai, depois de anos,

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volta para ser substituído por ele. O Pai já fizera a sua parte, superara-se, transcendera,

poderia retornar. No entanto, o espaço de sua transcendência, pura fluidez, parecia ao narrador

algo desconhecido. É o que ele demonstra: “ Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de

além.” (ROSA, 1994, p. 412)

Contemplada pelo Pai, a água representa tudo aquilo que poderia levá-lo a tocar

aquela outra substância do mundo que, escamoteada pelos movimentos cotidianos da vida

ativa, oculta-se, silenciosa mas operante.Trabalhando com a multiplicidade dos aspectos do

ser humano, Guimarães Rosa constrói dois personagens de igual peso: o Pai, ser que opta pela

contemplação, e o Filho, que desempenha na narrativa a função do narrador e de

reconstituidor da trama. Este se dedica a recompor os fios dos tempos, num processo também

solitário como o Pai, por vias de um olhar totalmente voltado para o passado. Num trabalho

de catarse e de auto-reflexão, alimentado pela memória, ele revê suas opções e constata: “ Sou

homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa?” (ROSA, 1994, p. 412) Na

tentativa de fundir passado e presente, abstrai-se de sua vida atual e perde a perspectiva do

futuro. O eixo temporal da narração é presente-passado. Por meio deste eixo o narrador

mantém viva a teia das recordações, como se se tratasse de um trabalho ao qual tenha optado

por se dedicar. Benjamim nos ensina a refletir que: “ ... o importante, para o autor que

rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope

da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?”

(BENJAMIM, 1993, p.37)

Ora, se ao narrador restou o trabalho de observar os movimentos do Pai e esperá-lo,

este encontra uma saída para viver sua espera, a da reflexão por meio da memória, uma vez

que ele mesmo afirma: “E esquecer não posso...” (ROSA, 1994, p. 409) Relendo Benjamim

para quem “...um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido,

ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o

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que veio antes e depois” (ROSA, 1994 p. 409), é possível dizer que este narrador enriquece

sua existência solitária e monotemática às custas do universo ilimitado que é o das suas

recordações. Ao narrar, revela o seu esforço em construir uma narrativa árida, pautada na

interpretação do passado, o qual é salvo do esquecimento. Se, por um lado, os esforços do

Filho em resguardar o passado preserva a memória e o patrimônio paterno, por outro o

esquecimento seria a chave por meio da qual o sofrimento poderia ser neutralizado, o que, em

outras palavras, significaria uma outra resposta ao presente e, conseqüentemente, ao futuro.

No entanto, está claro no conto que o Filho não esquece, mesmo se considerarmos que o

esquecimento, neste caso, poderia surtir no protagonista um efeito curador, ou seja, não se

lembrando, ele não sofreria.

Vale notar que, assim como o Pai, o Filho também abandona uma vida util itarista, ao

se dedicar à evocação do passado. Ao observarmos os membros da família desse conto,

veremos que a vida de todos tomou um rumo, após a partida do Pai: a filha se casou, teve

filho, mudou-se para bem longe; o irmão foi para a cidade; a mãe, envelhecida, também

resolveu ir morar com a filha. Só o Filho ficou à sombra do olhar do Pai. Uma vez que este

último abnega das exigências do cotidiano, não estabelecendo com estas nenhum vínculo, ao

Filho, relegado à condição de guardião e mantenedor da memória do pai, cabe formular ou

elaborar os movimentos voltados para a lembrança do que era antes e do que consegue

recolher na relação com o Pai. Por meio de suas palavras sabemos que o tempo passou e que o

Pai tinha envelhecido: “Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só o demoramento.

Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo.”

(ROSA, 1994, p. 412) A narração se constrói a partir de muitos marcadores de tempo ligados

ao passado: “...e sido assim desde mocinho” ; “...quando indaguei...” ; “... me alembro” ; “Mas

se deu que, certo dia...” ; “Nossa casa, no tempo...” ; “Foi pai que um dia...” ; “E esquecer não

posso, do dia em que...” (ROSA, 1994, p. 409). “Os tempos mudavam, no devagar depressa

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dos tempos.” (ROSA, 1994, p. 411), pois o olhar e o discurso são frutos das lembranças.

Somente voltando ao passado, o narrador consegue reconstruir uma figura do pai e, de certo

modo, preencher as lacunas do presente. É por meio de uma linguagem de reminiscências que

ele consegue compor e recompor para si e para o leitor esta descontinuidade temporal que

abarca o passado da família, o seu momento atual. No seu discurso surgem indagações, como

sempre ocorrem aos personagens rosianos: “sou homem, depois desse falimento?” (ROSA,

1994, p. 412), e especulações sobre o seu futuro: “Mas, então, ao menos, que, no artigo da

morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que

não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio.” (ROSA, 1994, p.

413). Neste trecho final da narrativa o verbo no imperativo acena para um pedido, um desejo

ligado ao futuro, ao enfrentamento da morte. Encerrada com a imagem da água que não pára,

o conto situa, outra vez, os personagens de Rosa nesse instante que não é, senão como

eternidade ilimitada: abaixo, afora, adentro – o rio. Temos aqui a eternidade do homem

metaforizada pelo ir incessante do rio. Narrada quase que totalmente com verbos no passado,

somente nos últimos parágrafos vindo aparecer verbos no presente - “Sou homem de tristes

palavras” “Sou doido?” “Pai, o senhor está velho...” (ROSA, 1994, p. 412) -, a narrativa oscila

entre as duas eternidades: o antes e o depois. E entre estes dois há o instante efêmero em que

os tempos se chocam.

Narrativa em primeira pessoa, esta estória tem suscitado inúmeras e significativas

interpretações, sendo uma delas a que diz respeito ao próprio processo criador de Guimarães

Rosa, situado, a nosso ver, em uma margem que ocupa um entrelugar muito mais que um

lugar. “A terceira margem do rio” aponta, entre outras leituras, para a aproximação da palavra

des-situada, ou situada em um espaço além, com esta margem impossível, sem lugar definido,

descontínuo. A inserção de uma terceira margem ao rio reflete uma espécie de perversão

espacial, que metaforiza, sobretudo, a inquietude da palavra rosiana, buscando não estar em

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um espaço, mas constituir-se como espaço. É um espaço reservado ao nascimento de uma via

nova de linguagem, tão insólita e às vezes estranha como a própria vida, margeada por outras

margens que interrompem os nossos caminhos certos. Ler “A terceira margem do rio” é ler

também o espaço do desejo de Guimarães Rosa no sentido de abandonar margens pré-

estabelecidas e estabelecer outras. Nesse sentido o autor fala “na utilização de cada palavra

como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e

reduzi-la a seu sentido original.” (LORENZ, 1991, p. 81)

Em “A terceira margem do rio” , o caos é instaurado pela atitude do Pai, na mesma

proporção em que a escrita de Rosa o instaura em suas narrativas. Este conto fala da busca

tanto quanto a linguagem de Rosa é permeada pela busca: da superação da barreira da palavra,

da criação de uma palavra livre, deslocalizada. Uma palavra que ocupa o lugar da

transcendência, como a terceira margem, por meio da qual o escritor pode romper os limites

entre os mundo da imanência e da transcendência.

Não obstante as tantas leituras feitas deste conto, vale lembrar uma vez mais o

espaço/margem da criação, que nos remete às perguntas: criar, dentro da perspectiva deste

conto, não seria estar à margem? Narrativa em primeira pessoa, esta estória tem suscitado

inúmeras e significativas interpretações, sendo uma delas a que diz respeito ao próprio

processo criador de Guimarães Rosa. Por isso, a leitura deste conto é um convite a uma

revisão da escrita de Guimarães Rosa, que parece estar situada também na terceira margem,

estranha, misteriosa, sedutora, perigosa... deslocada do solo firme, mas sempre próxima a ele;

e construída no ritmo flutuante, ininterrupto das águas do rio. Criando uma terceira margem, o

autor se liberta das duas margens impostas, que, ao mesmo tempo que o limitam servem-lhe

como ponto de partida para transpô-las. As duas margens, então, representariam a nossa

condenação a vivermos como seres de linguagem, paradoxalmente limitados na e por ela.

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Desta forma, somente a terceira margem salvaria o escritor dos limites e da vivência

angustiante das polaridades.

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5 O ENCONTRO DO VELHO COM O NOVO: OLHARES

ENTRECRUZADOS

Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. (Ecléa Bosi, p. 21)

Na obra de Guimarães Rosa as crianças, as mulheres, os velhos, os loucos e os

aleijados ganham um estatuto de dignidade como pouco tiveram na história da literatura

brasileira. Apontando para situações em que estes seres são expostos na sua visceralidade, o

autor celebra-os com os requintes de uma palavra que se localiza no cerne da memória. Então,

de repente, narrar significa penetrar nos recônditos das reminiscências. Deste modo, o autor

não apenas mostra ou descreve as situações protagonizadas por estes personagens, mas

coloca-as em pauta, revolucionando estas situações e pondo-as em crise, por meio do

discurso poético. Conforme Ecléa Bosi, “Em nossa sociedade de classes, dilacerada até as

raízes pelas mais cruéis contradições, a mulher, a criança e o velho são, por assim dizer,

instâncias privilegidas daquelas crueldades – traduções do dilaceramento e da culpa. Mas a

mulher, a criança e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e embutidos por

entre as classes sociais.” (BOSI, 1994, p.11) O belíssimo conto de Primeiras estórias,

“Soroco, sua mãe, sua filha” é mais um precioso exemplo de como as criaturas incabíveis

dentro do universo lógico-racional podem ser reconsideradas, postas em crise, tiradas do

patético e da banalização.

Como dissemos no início do nosso trabalho, os velhos, os loucos, os cegos e as

crianças ocupam um lugar bastante privilegiado na obra de Guimarães Rosa. Esta parte do

nosso trabalho dedica-se àquelas narrativas em que a presença dos velhos é significativa

pelas implicações que suas memórias trazem como processo narrativo, pelos modos como são

construídos os seus olhares e pelo diálogo genuíno que o autor conseguiu estabelecer entre

as crianças/jovens e os velhos. A sensação que este diálogo nos causou foi a de que é possível

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a existência de uma articulação profunda entre esses dois momentos da vida, e que,

principalmente, a existência humana faz parte desta cadeia temporal cujas fases não deveriam

permanecer estanques, mas articularem-se dentro de processos de continuidade, de

espelhamento. O velho está no novo, e o novo está no velho. No artigo "Brinquedos e jogos",

Walter Benjamim observa que " o mundo da percepção infantil está marcado por toda parte

pelos vestígios da geração mais velha, com os quais a criança se defronta. " (BENJAMIM,

1984, p.72) Ecléa Bosi, em seu profundo estudo sobre a memória dos velhos, lembra-nos que

os velhos:

São a fonte de onde jorra a essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e opresente se prepara, pois, como escrevera Benjamim, só perde o sentido aquilo que nopresente não é percebido como visado pelo passado. O que foi não é uma coisa revista pornosso olhar, nem é uma idéia inspecionada por nosso espírito – é alargamento das fronteirasdo presente, lembrança de promessas não cumpridas. Eis por que, recuperando a figura docronista contra a do cientista da história, Benjamim afirma que o segundo é uma vozdespencando no vazio, enquanto o primeiro crê que tudo é importante, conta e merece sercontado, pois todo dia é o último dia. E o último dia é hoje. (BOSI, 1994, p. 18)

As narrativas escolhidas para a apreciação dos aspectos acima descritos são: “Uma

estória de amor” , do livro Manuelzão e Miguilim, “Cara-de-Bronze” e “A estória de Lélio e

Lina”, de No Urubuquaquá, no Pinhém “Nenhum, nenhuma”, e A terceira margem do rio” , de

Primeiras estórias, “Arroio-das-antas” , de Tutaméia, “Fita-verde-no-cabelo” , de Ave,

palavra.

5.1 UM OLHAR PARA O VELHO: “UMA ESTÓRIA DE AMOR”

...Todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão.(Grande sertão: veredas, p. 200)

Em “Uma estória de amor” , do livro Manuelzão e Miguili m, mais tarde republicada

como "Manuelzão", o protagonista, aos sessenta anos, vive o apogeu de sua vida, sempre

voltada para o trabalho, representado pela força de sua presença no comando de uma festa de

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fundação e sagração da capela que mandou construir na fazenda onde vive, cumprindo o

desejo de sua mãe. Sinais de um sentimento oculto surgem no transcorrer do texto, num jogo

de velar e desvelar. Trata-se, certamente, de uma estória de amor, mas alinhavada a outras

estórias.

Manuelzão - aproveitando a expressão empregada por Garbuglio - é convidado a

viver a experiência do homo cogitandi. (GARBUGLIO, 1972, p.23) Não obstante esteja

conectado com as suas funções, entrega-se, a seu modo, às amenidades propiciadas pela festa.

De outro modo, o Pai, em “A terceira margem do rio” , vive esse momento de forma radical, e

vai até as últimas consequências. Em “Cara-de-Bronze”, as condições físicas são um

impedimento para o homo actuandi atuar, e, portanto, surge uma profunda especulação,

emoldurada no tema da viagem, que é a procura da Poesia. Em “Arroio-das-antas” , a chegada

da menina Drizilda modifica as dinâmicas das velhas mulheres, concentradas no último sopro

de vida de Vó Edmunda. Em “Nenhum, nenhuma”, a velhice é um mistério, guardada a sete

chaves, somente desvelada com a chegada de um menino. E, finalmente, em “A estória de

Lélio e Lina” a velhice representa tempo da sabedoria. Somente uma velha conseguirá

mostrar ao jovem o que, de fato, ele está buscando.

É em “Cara-de-Bronze”, no entanto, que a vivência de uma instância poética, tão

valorizada na obra de Guimarães Rosa, conseguiu ser articulada às premissas da vida

contemplativa, que, a nosso ver, constitui um novo modo de atuar, e que requer tempo,

aprofundamento e reflexão. Sobre isso é o próprio autor que afirma em entrevista a Gunter

Lorenz: “Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; daí seriam

escritos livros melhores. Os livros nascem, quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a

técnica e a alegria do jogo com as palavras.” (LORENZ, 1991, p.80)

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Nesses instantes da vida, em que é permitido ao velho fazer uma brecha na sua vida

ativa, abre-se um espaço inédito em que lhe é possível apenas ser. A figura de Manuelzão

interessa-nos sobremaneira, porque para ele convergem todos os outros velhos, com suas

formas singulares de olhar para trás e para a frente.14 Propomos, nesta parte do nosso trabalho,

uma apreciação das singularidades dos olhares dos velhos, que, na maioria das vezes, estão

articulados com o dos mais jovens. Nas narrativas rosianas, é possível perceber que, para

cada velho há sempre um jovem, ou uma jovem, numa relação de espelhamento recíproco,

que desencadeia uma série de novas proposições para ambos. Julgamos apropriado também

frisar que nestas estórias protagonizadas por velhos, o olhar para trás, mas empurrando as

ações para a frente, é um traço que muito bem perfila estes contos. Manuelzão, ao passo que

organiza os preparativos para a festa, faz uma análise do seu passado, e projeta uma visão

para a frente. Sem dúvida o olhar para trás é extenso e amplo, mas não o impede de ter forças

para seguir no encalço de seus projetos. Nessas estórias, o olhar típico da memória é

acionado. O passado, mais que um tempo, torna-se um lugar para onde se pode olhar à

vontade, com liberdade. Todos estes personagens parecem ser mais livres quando olham para

trás. Porque, ainda amarrados ao presente, e sem grandes perspectivas para o futuro, têm, ao

dispor, as suas lembranças. Aliás, as lembranças são muito valorizadas em Grande sertão:

veredas . Riobaldo, por exemplo, tem como bem maior, não os fatos vividos, mas a

possibilidade de olhar para eles com total liberdade, porque tudo já passou. O que ele possui,

de fato, são suas lembranças: “... todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que

são passados vão indo em fila para o sertão.” (ROSA, 1994, p. 200) Deste modo, esperamos

que esta parte do trabalho possa trazer luz a este novo aspecto do olhar que é o que se

14 Neste sentido, vale considerar que na festa que Manuelzão oferece aparecem, vindos de todos os

lugares, muitos velhos amigos, cada qual com sua individualidade muito bem traçada. E todos formam, em tornode Manuelzão, uma estirpe de criaturas antigas, arquetípicas, mostradas em suas vestimentas, muitas fora de uso,e em suas falas repletas de um registro que lhes é peculiar.

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debruça para o passado, mas com vistas ao futuro. Para tanto, não podemos deixar de citar os

personagens jovens que são coadjuvantes neste roteiro de viagem ao passado, de cujos mapas

os velhos possuem o domínio e a leitura exata. Quanto ao futuro, este é, muitas vezes,

vislumbrado por meio dos olhares dos jovens, para quem o porvir, mais que o passado, é uma

porta aberta.

Os velhos, na antiga filosofia de vida africana, eram considerados os guardiães da

memória, os contadores de estórias que passavam aos mais jovens os conhecimentos

ancestrais. “Uma estória de amor” nos leva também à terceira margem da vida, porque

apresenta o tempo do envelhecer, momento privilegiado em que se pode redescobrir o

sentimento poético muitas vezes anulado pela vida do trabalho. Nessa estória, bem como em

“A terceira margem do rio” , “Cara-de-Bronze” e em Grande sertão: veredas, um novo tipo de

homem é abordado e valorizado, que é, o homo cogitandi, o qual surge, após o

desaparecimento do homo actuandi. Conforme Garbuglio, no que diz respeito a Riobaldo,

“Do ponto de vista da história, o segundo antecede o primeiro. Enquanto atuava não tinha

tempo de pensar, pois ‘ fazia e mexia’ . É o gosto de especular idéia que faz surgir a narrativa,

o que já por si explica os constantes entrecruzametos.” (GARBUGLIO, 1972, p. 23) Nas

estórias protagonizadas por velhos, o narrador de Guimarães Rosa, mais que narrar as

memórias e enfocar os olhares destes personagens, dá existência a essas memórias e focaliza,

através de um olhar minucioso, os seus pontos de vista. Para Guimarães Rosa, a velhice é o

tempo propício do narrar, e o seu contato com os velhos despertou-lhe o sentimento de que as

estórias precisam de tempo para amadurecer, precisam passar pelo crivo profícuo da memória.

Memória, nesse sentido, significa olhar para trás, e apreender, com o foco mais adequado, o

narrável. Sobre os velhos mineiros que conheceu, Rosa dizia: “O mineiro é secado por seu

país e seu sol, fica resistente como carne seca. Conheci pessoas de oitenta e até noventa anos.

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Portanto, simplesmente tenho de ficar velho, pois esse tempo talvez me baste para eu contar

tudo o que queria contar.” (COUTINHO, 1991, p. 71) Nesta fala do autor, fica claro seu

prazer de envelhecer, pois isto significava para um escritor como ele, mais tempo para viver,

e, conseqüentemente, para contar. Esse tempo para contar, tempo destinado ao cogito, à

especulação, e ao olhar contemplativo são observados por Riobaldo, que no início do seu

relato, comenta: “ De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os

prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não

fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range

rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia.” (ROSA, 1994, p. 12)

Em “Uma estória de amor” , as situações que antecedem a missa e a festa são uma

oportunidade de visualizarmos de forma global o contexto em que o protagonista foi

construído, bem como de tomar contato com todos os aspectos constituidores de sua

identidade. Dessa forma temos, aliado a um personagem central, lampejos de outros que o

revelam, porque Manuelzão é parte de um espaço e de um contingente de pessoas que lhe dão

feição e notoriedade. Os mecanismos de configuração do protagonista passam, paralelamente

à narração da estória, pela configuração de todas as nuanças que constituem os outros

personagens, o que nos leva a pensar uma vez mais que, nos procedimentos literários de

Guimarães Rosa, está sempre presente o processo de inclusão. Na celebração, que é a sua

narrativa, todos são chamados a participar.

A Festa de Manuelzão tem para nós um significado que transcende as próprias

instâncias da festa em si. Porque, trazendo para a leitura dessa narrativa a visão celebrativa do

seu autor, entendemos que este texto representa uma espécie de trégua ao homem em sua lida

diária. Chamado ao diálogo com várias vozes que participam da festa, o protagonista pode

viver o instante da epifania, pois nessa narrativa ele não é mais agregado, mas agrega para si a

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presença de todos. Deste modo, observamos que é fundado também um novo ciclo de vida

para o protagonista e os seus convidados. Trata-se de uma narrativa que se ressignifica na

inclusão e na celebração. O binarismo, responsável pela oposição normal/anormal, excludente

e discriminatório, é relativizado em “Uma estória de amor” , como em toda a obra do autor, o

que viabil iza outras possibil idades de percepção dos seres humanos, chamados a conviver no

misterioso e insólito espaço da intersubjetividade.

A tensão gerada pela presença de personagens como Urugem e Joana Xaviel, em

“Uma estória de amor” , fecundam o texto de um sentimento de anticonvencionalismo. Na

"insolitez" de suas pessoas o binarismo cruel é posto em crise e o que é cristalizado se

descalcifica. Não obstante a integração de todos neste espaço, permanece intacta a

singularidade de cada um, realçada na multiplicidade das diversas formas de ser.

A velhice parece estar preservada. E se há tensões entre o passado e o presente, estas

são reelaboradas pela voz do narrador. Também estão preservados os ritos e os mitos no

encontro das gerações, reiterados pelos trabalhos da memória e pelas narrativas contadas. A

interação social entre as pessoas traz à tona o saber coletivo, representado na oralidade de

Joana Xaviel e na estória contada por Seu Camilo. Assim, estão salvaguardadas, sobretudo, as

identidades pessoais e do coletivo, bem como a do próprio lugar.

O sertão de Guimarães Rosa, vale reiterar, não é um lugar simplesmente geográfico,

mas um espaço de confluências universais, em que o que diz respeito à vida de um homem,

dirá também à de outros, de outras regiões. Manuelzão é grande porque é muitos, porque em

sua memória concentra-se a de outros, e porque, na fecundidade de sua velhice que se

inaugura há uma velhice ontológica, que não é só a dele, ainda que o represente.

Uma novela com a riqueza de “Uma estória de amor” evoca o desejo de muitos

outros olhares. Impressionantemente a simplicidade da vida do sertanejo traz, mais uma vez,

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nessa narrativa, um complexo de sentimentos, conflitos e temas que poderão ser lidos por

outras óticas.

5.2 EMPRESTA-ME O TEU OLHAR: “CARA- DE- BRONZE”

“ - E ver o que no comum não se vê: essas coisas de que ninguém não faz conta...”(“Cara - de - Bronze”, p. 694 )

Um outro exemplo de narrativa em que fica evidente o diálogo entre o novo e o

velho e a valorização do trabalho do olhar é “Cara-de-Bronze”, do livro No Urubuquaquá, no

Pinhém15. Trata-se de mais uma estória de Guimarães Rosa que privilegia o ato de ver,

inteiramente associado ao ato de buscar. Nesta estória somos convidados a viajar com o

personagem Grivo, vaqueiro escolhido pelo Patrão Sigisberto, para uma importante viagem,

como veremos a seguir.

Embora a estória se edifique numa atmosfera de profundo mistério, o enredo é

simples. Impossibil itado de sair da cama em função da doença, mas ainda assim sentindo

enorme desejo de viver e de conhecer, o velho Sigisberto resolve escolher – por meio de um

processo de seleção a que nem o leitor nem os personagens têm acesso - um vaqueiro de nome

Grivo, a fim de que este empreenda longa viagem pelo sertão, com o intuito de que tudo veja

e, depois, volte para contar. Grivo é o eleito, entre outros quarenta vaqueiros, para iniciar este

processo de aprendizagem e de viagem. A estória se desenvolve dentro de alguns planos

espaciais específicos, quais sejam: o centro de tudo, ou o lugar chamado No Urubuquaquá no

Pinhém, o quarto do Patrão Sigisberto, o pátio onde conversam os vaqueiros, e, extrapolando

estes espaços do Urubuquaquá, há ainda os lugares percorridos por Grivo.

15 Esta novela é resultante da subdivisão de Corpo de Baile.

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A viagem de Grivo se dá com a finalidade de que ele encontre algo que o velho

deseja muito conhecer, ou quem sabe, recuperar, mas não fica muito claro o que se trata, ou

seja, se se trata de alguém, ou de algo específico. A única pista que inicialmente temos é que

o velho quer descobrir “O quem das coisas” . Sobre os mistérios que envolvem a viagem do

Grivo, os vaqueiros dialogam, na tentativa de descobrirem o real objetivo desta peregrinação.

Mas percebe-se que, embora tentem chegar a uma conclusão, as falas começam a dar voltas

em torno de si mesmas, mantendo-se na indefinição e na especulação. Misturando o tema da

viagem às idiossincrasias do Velho, os vaqueiros fazem verdadeiros encaixes narrativos, por

meio dos quais temos fragmentos da estória do protagonista, que revelam partes importantes

do seu passado e reconstituem suas origens:

O vaqueiro Cicica: Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Quesaiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino e sem dizerpalavra a ninguém... Que ia ter por fito?

O vaqueiro Tadeu: Essas plenipotências...

O vaqueiro Doim: Boa mandatela! A gente aqui, no laboro, e ele passeando o mundo-será...

O vaqueiro Fidélis: Tem de ter o jus, não foi em mandriice. Por seguro que deve de ter idobuscar alguma coisa.

O vaqueiro Sãos: Trazer alguma coisa, para o Cara-de-Bronze.

O vaqueiro Mainarte: É. Eu sei que ele foi para buscar alguma coisa. Só não sei o que é.

Moimechego: Ia campear mais solidão?

O vaqueiro Sacramento: Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antesde morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim... (ROSA, 1994, p. 676 - 677)

Na verdade, a viagem do protagonista, que leva aproximadamente dois anos, consiste

em um verdadeiro aprendizado do olhar.16 Aos olhos de Grivo nada escapará, pois é por

meio dos seus olhos, num processo simbiótico, que Sigisberto receberá novo fôlego para

viver. Mas, como bem nos lembra o narrador, Grivo não segue viagem apenas para servir o

Patrão. “Ele estava bebendo sua viagem.” (ROSA, 1994, p. 705)

16 Vemos, mais uma vez, o tema da viagem presente na obra de Guimarães Rosa, simbolizando a busca

de auto-conhecimento, e neste caso específico, dois personagens serão agraciados com os privilégios desta

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Percorrendo todos os recantos do sertão, Grivo cumpre a sua missão de olhar e,

depois, quando volta, descreve o que viu, iluminando, com os prazeres vistos, os olhos de

Sigisberto, que já pouco alcançavam. Esta estória mostra, entre outras coisas, que às vezes é

preciso pedir ao outro o seu olhar emprestado, e que é possível vermos pelos olhos de outrem,

quando a vida nos impossibil ita de fazê-lo pessoalmente. A força desta narrativa reside no

desdobramento do olhar, sugerido nesta curiosa e inusitada circunstância, na qual um

personagem vê para dois, para si e para o outro. Além disso, os relatos são duplamente

carregados de significados e subjetividades, pois haverá dois narradores: o oficial – do conto

– e o narrador-personagem, o que intensifica o potencial narrativo desta estória. Ainda vale

lembrar que uma parte da narração é revelada ao leitor, mas a outra, a que diz respeito aos

relatos da viagem de Grivo ao Velho, como também é chamado, não é explicitada. Trata-se

de uma belíssima estória que nos faz pensar uma vez mais em como o velho e o novo se

encontram harmoniosamente nas estórias de Guimarães Rosa. Além disso, faz-nos acreditar

também que, muitas vezes, precisamente quando a velhice nos visita, é aí que um duplo

movimento de olhar é realizado. O velho ensina o novo a ver o que já viu, e o novo pode

mostrar ao velho o que os seus olhos estão descobrindo. A visão expansiva do jovem Grivo é

uma oportunidade que Sigisberto tem de expandir a sua própria visão, mesmo estando

imobilizado. Ao receber novo sopro de vida ele pode caminhar com a certeza de que o seu

olhar foi redimensionado e que realizou também uma viagem, ainda que simbólica.

Poeticamente, assim poderíamos traduzir as presentes afirmações: "Deixa os pássaros

cantarem. No ir – seja até aonde se for – tem-se de voltar; mas, seja como for, que se esteja

indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no ponto final. " (ROSA, 1994, p. 705)

viagem: o que viaja, e o que espera.

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Esta narrativa nos traz a promessa de que é possível o restabelecimento e o convívio

com as limitações da velhice, por meio da presença e do intercâmbio de olhares, propiciado

pelo encontro de gerações. O tema da viagem, ligado a uma educação do olhar, acentua, nesta

estória, a constituição da alteridade. Ou seja, ao viajar metaforica e simbioticamente com

Grivo, Sigisberto renova a esperança de que o mundo pode ser visto e de que é possível ter

acesso a ele, mesmo sem sair do lugar.

Para que possamos melhor compreender as singularidades de um personagem como

Sigisberto e o relacionarmos com outros de outras estórias do autor, é necessário que tracemos

o seu perfil, observando as modificações pelas quais ele foi passando ao longo do tempo. Está

claro, desde o início da narrativa, que se trata de um personagem bastante respeitado por

todos, com o poder de tudo saber, organizar e comandar. Está claro também que em torno de

sua pessoa há muitos mistérios e especulações. Como é possível constatar em várias

passagens, ele é descrito como alguém indecifrável, cujo caráter e personalidade não pode ser

captado objetivamente. Trata-se de um homem misterioso. Neste sentido há muitas visões a

seu respeito, e, de modo muito bem humorado, dinâmico e polêmico, Guimarães Rosa tenta

decifrar o protagonista. Para tanto, estrategicamente, utili za-se de uma estrutura narrativa

similar à utilizada pelo coro na tragédia grega, cujos personagens, por meio de um discurso

reflexivo e especulativo, tomavam certa distância da cena narrada para revelar suas reflexões.

É o que nos lembram as sucessivas/longas séries de falas que tentam traçar o perfil do

protagonista. São nada mais nada menos que oitenta e um travessões introduzindo oitenta e

uma falas reveladoras de opiniões acerca de Sigibserto, as quais merecem leitura atenciosa e

das quais citaremos apenas algumas passagens:

“ - Sei que ele está sempre em atormentados.

- Quer saber o porquê de tudo nesta vida.

- Mas não é abelhudo.

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- É teimoso.

- Teimosão calado.

- Ele pensa sem falar, dias muitos inteiros.

- (...)

- Gosta de retornar contra da verdade que a gente diz, sempre o contrário...

- Mas ele acredita em mentiras, mesmo sabendo que mentira é.

- Ele não gosta de nada...

- Mas gosta de tudo.

- É um homem que só sabe mandar...

- Mas a gente não sabe quando foi que ele mandou...” ( ROSA, 1994, p. 681)

Após a longa série de inflexões, o leitor se dá conta de que está diante de um

personagem polissêmico, e que, portanto, e por isso mesmo, exigiu uma poli fonia discursiva,

ou seja, há muitas vozes tentando descrevê-lo, muitas abordagens que se contradizem,

mascarando e multiplicando uma sua possível faceta. Isto fica muito bem sugerido nas

variações dos nomes do personagem, muito bem interpretado por Luiz Cláudio Vieira de

Oliveira, que considera este o conto mais misterioso de No Urubuquaquá, no Pinhém.

Conforme o autor:

A obra de Guimarães Rosa postulará, mesmo quando o faz explicitamente, como em Grandesertão: veredas, a duplicidade do ser humano, sua tentativa de entender-se ao voltar-se paradentro de si mesmo (...) Uma das formas de trabalhar isso em sua obra é pela exploração dapluralidade de nomes, índice da multiplicidade dos personagens. Riobaldo é Urutu-Branco,Tatarana, Cerzidor: Diadorim é Reinaldo, O Menino, é Maria Deodorina Betancourt Marins;o Cara-de-Bronze é o Velho, é Sigisbé, Sejisbel Saturnim, Xezisbéu Saturnim, Zij isbéuSaturnim, Jizisbéu, só, Jizisbéu Saturnim, Sezisbério, Segisberto Saturnino Jéia Velho, Filho.Todos os nomes cabem por detrás da máscara, da “cara-de-bronze”, sendo outras tantasmáscaras, outros eus que, na verdade, nada revelam (...) O processo de mascaramento emultiplicação se acentua neste personagem que é velho e filho ao mesmo tempo e quefunciona como um duplo de si mesmo e do autor, do Moimeichêgo, outro “zero” a serpreenchido por vários eus. Ambos, Cara-de-Bronze e Moimeichêgo são efeitos do discurso,só existindo através dele, podendo ser ocupados por quem quer que saia em busca da poesia,do “quem” das coisas. Por isto, ambos são intercambiáveis e semelhantes. (OLIVEIRA,1998, p. 104)

Percebemos que nesta estória há uma ambigüidade que desvela, ao mesmo tempo

que oculta, o perfil do protagonista, como se ele só pudesse ser visto por um olhar

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caleidoscópico. Tal procedimento narrativo, característica muito marcante do texto rosiano,

polemiza e desestabiliza quaisquer afirmações sobre o caráter desse personagem que

pretendam ser categóricas. A partir desta polifonia, geradora de contradições, não

conseguimos enfocar unilateralmente o personagem em questão, se não na sua diversidade. O

autor exige que o protagonsita vá sendo paulatinamente construído, porque, embora esteja

velho, ele não está acabado, ainda que seja isto o esperado. Deste modo, Guimarães Rosa

nos privilegia com uma outra abordagem ou concepção da velhice, mostrando o homem, nesta

altura da vida, como um ser em pleno processo de desconstrução e de construção. Além disso,

esta estória nos lembra que o conhecimento de uma pessoa não é viável dentro de uma

perspectiva linear e fechada. Olhar o outro por um único ângulo significa fechar-se para as

inúmeras possibil idades que ele representa. No entanto, quando o olhamos como se olha um

leque de cores e tonalidades, estaremos mais próximos de contemplarmos o seu ser. Por isso

“Cara-de-Bronze” é mais uma destas estórias de Guimarães Rosa que nos propõe um repensar

naquilo que julgamos definitivo e estável. Se olharmos por detrás do fundo do espelho,

miríades de imagens do ser contemplado ser-nos-ão oferecidas. Por outro lado, é bom nos

lembrarmos que, se o protagonista é descrito com suas várias e contraditórias facetas, na obra

de Guimarães Rosa nenhuma estória está desamarrada ou desarticulada do grande tecido que é

o seu texto. Todas as estórias convergem para um núcleo, que entendemos ser a fonte

geradora e permeadora de todos os eventos narrativos construídos pelo autor.

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5.2.1 Em busca do “quem” das coisas

De modo similar ao que ocorre no conto “Partida do audaz navegante”, de Primeiras

estórias, em “Cara-de-Bronze” a perspectiva é a do resgaste e da vivência da Poesia,

entendida como o “quem das coisas” . Na primeira estória, por exemplo, este tema é

profundamente valorizado. Mas como a protagonista é uma criança, a Poesia é um estado de

ser e não precisa ser recuperada, pois ela ainda existe em potencial em Brejeirinha. Ela é a

expressão natural e espontânea da poiesis, ao passo que em “Cara-de-Bronze”, alguém

precisa ir buscá-la para o Velho. Deste modo, é o Grivo quem se lança na jornada do

conhecimento e da busca das coisas, numa viagem que constitui um verdadeiro aprendizado.

Conforme descreve o narrador: “Nessa ida, conforme contada. Atravessou aquelas cidades –

no meio de matos, os paredões das pedreiras (...) Aí, conheceu a tristeza de acordar, de quem

dormiu solitário no alto do dia; mas logo ouviu, de si, que carecia de relembrar alegrias

inventadas, e saber que um dia tudo vai tornar a ser simples – como pedras brancas que

minam água. (ROSA, 1994, p. 706) Esta viagem não apresenta de modo objetivo o alvo da

busca. O que temos são sugestões, pinceladas, aqui e ali, do que se trata. Se para os vaqueiros,

esta viagem é um mistério, também para o leitor, o que o Grivo encontra tem significados

ambíguos, que só podem ser interpretados na decodificação da estrutura mais profunda do

texto. É o que deixa entrever, por exemplo, o próximo fragmento: “Mas a estória não é a do

Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo

viu, lá, por lá. Mas – é a estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia.

Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores,

sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da

pindaíba nova, da que é lustrada. “ (ROSA, 1994, p.688- 689)

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Aprofundando-nos um pouco no caráter de Sigisberto, este personagem tão reticente

e perturbador, observamos que, não obstante ele chegue bem estabelecido à velhice, deseja

outras coisas. (Ou as terá desejado sempre?) A fala do narrador insinua tal possibil idade: “Ele

fez Urubuquaquá, amontoou riquezas. Mas, o que fazia, era para se esquecer, de si, por

desimaginar.” (ROSA, 1994, p. 689) E, agora, mais velho, tudo que amontoou fica pequeno

diante das pequenas/grandes coisas às quais ele aspira. É o que descreve o narrador:

Só que, agora, estava mudado. Não requeria relatos da campeação, do revirado na lida: asquerências das vacas parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e avinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos. Nem não eram outras coisasproveitosas, como saber de estórias de dinheiro enterrado em alguma parte, ou conhecer avirtude medicinal de alguma erva, ou do lugar de vereda que dá o buriti mais vinhoso.Mudara. (ROSA, 1994, p. 690)

Além disso, vale dizer que, dentre os velhos da obra de Guimarães Rosa, Sigisberto

é o mais ambíguo de todos e o que demonstra maior sensibilidade para a música e a poesia. A

estória evidencia esta preferência do personagem, ao apresentar um violeiro que embala o

trabalho dos vaqueiros. A presença do cantador em meio à rudeza do trabalho potencializa o

elemento lúdico, apresentando-o como aspecto importante e necessário à vida. No entanto, os

vaqueiros questionam o ofício do violeiro-cantador, ou melhor, eles não reconhecem o cantar

de João Fulano - como é conhecido, - como um trabalho. 17 É o que revelam os diálogos

abaixo:

Moimichego: Quem é esse, que canta? Ele é daqui? E não trabalha? É da família do dono?O vaqueiro Cicica: Esse um? É cantador, somentes. Violeiro, que se chama João Fulano,conominado “Quantidades”... Veio daí de riba, por contrato.Iinhô Ti: Contrato p’ra cantar?O vaqueiro Doim: Duvidar, ganha mais do que a gente. Essas coisas...O vaqueiro Sacramento: Derradeiros tempos, aqui sempre hospedaram uns assim, demúsicos.O vaqueiro Adino: Tantos! Um morreu: o cego Pôncios... Deixou o instrumento: sanfonade quarenta-e-oito-baixos...

17 Esta passagem nos remete à clássica fábula de Esopo, cujo final trágico da cigarra expressa uma

supervalorização do trabalho da formiga, considerado de utilidade, e menospreza o da cigarra, expli citando edifundindo, deste modo, a ideologia de que só deve ser considerado trabalho a ação que produz resultadospalpáveis e utilitaristas.

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O vaqueiro Sacramento: Este, o Mainarte e eu tivemos de ir buscar longe, na Branca-Laje.E, foi, ficou aqui. Faz tempo...O vaqueiro Adino: Que não dirá, quase um ano. Danado! Este canta o tempo todo...O vaqueiro Cicica: A mariíce de tarefas.O vaqueiro Doim: Ele não tem mereces.O vaqueiro Cicica: Não, isso, ter, tem. O homem é pago pra não conhecer sossego nenhumde idéia: pra estar sempre cantando modas novas, que carece de tirar de–juízo. É o que oVelho quer. (ROSA, 1994, p. 672-673)

Ou, ainda, como diz noutro momento o vaqueiro Adino:

O vaqueiro Adino: Ih, exige que, como está sendo, nos prazos, o cantador tem de produziralto assim uma trova. Lá do quarto, ele ouve, se praz.(ROSA, 1994, p. 673)

Outra menção ao gosto que o velho tinha para a música é expressa nos detalhes deste relato:

“À cabeceira de sua cama estava dependurado ‘um berrante aparelhado, com bocal e

correntinha de prata’ .” (ROSA, 1994, p. 689).

Estas e outras passagens são reveladoras de como o protagonista de “Cara-de-

Bronze” é um apreciador das linguagens não instrumentalizadas, e que, longe de ser um

fazendeiro que só se preocupa com as questões materiais referentes às suas posses, e a sua

representatividade como patrão, há alguns elementos nesse personagem que o tornam mais

próximo daqueles ideais de beleza que também Riobaldo buscava em Grande sertão: veredas,

e em torno dos quais se debatia, ao observar onde estava e com quem estava misturado.

Riobaldo sabia que buscava coisa diferente da vida de jagunço. Diadorim, em quem

Riobaldo tanto se espelhou, e em cuja “neblina” tantas vezes se perdeu, representa este ideal

de beleza e de transcendência. Na novela em estudo, o texto vai pontilhando, aqui e ali, sinais

de quem é realmente o velho Sigisberto, e o que parece saltar às vistas é o fato de que se trata

de um homem que deseja algo mais da vida.

Não estará Guimarães Rosa querendo nos dizer que no coração endurecido de um

sertanejo, acostumado a lidar com bois, terras e vaqueiros, há centelhas de poesia e música

semeadas? E que a aspiração pela Arte e tudo que ela pode fazer brotar e crescer não é

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privilégio dos homens eruditos, mas é lá, justo onde a terra é de bronze, e só os bois crescem,

que esta pode ser fertili zada?18 No entanto, as descrições tecidas acerca do protagonista só

podem ser apreendidas no ponto de equilíbrio entre o ocultar e o revelar, entre o negar e o

afirmar. Somente seguindo este movimento narrativo é que o leitor poderá construir um perfil

mais legítimo do protagonista. A sua relação com a música, por exemplo, é uma destas pistas

que o texto oferece. Mas é justamente no ponto de equilíbrio entre o ocultar e o revelar, entre

negar e afirmar que podemos tirar algumas conclusões que parecem estar sempre em

movimento, uma vez que esse personagem é difícil de ser captado. A cada nova leitura

encontramos um detalhe que não percebêramos na leitura anterior e que, de certo modo,

desestabil izam as convicções que julgávamos ter sobre ele. Este elemento da narração é

instigante e pede leituras mais cuidadosas. Se este tipo de leitura já constitui uma exigência no

que diz respeito ao próprio texto, neste caso a exigência é ainda maior porque, além das

singularidades e impactos do texto (caracterísitca amplamente abordada em vários estudos

sobre a obra do autor e já valorizadas neste ), o conhecimento do protagonista oferece-se ao

leitor como um enigma e um problema, tanto quanto o é a decodificação da linguagem. Nesta

estória, Guimarães Rosa conseguiu concil iar a linguagem e o personagem no que ambos têm

de complexidade e mistério. Surpresa, instabil idade, dificuldade de acesso são características

comuns ao texto e à personagem, que, neste caso, parece uma linguagem cifrada.

Fazendo um diálogo entre “Cara-de-Bronze” e a novela “Uma estória de amor” ,

percebemos a diferença entre Manuelzão, protagonista desta estória, e Sigisberto. Na

segunda, está claro o que o protagonista deseja e busca. O texto não se constrói de modo

ambíguo, mas pontua as angústias do protagonista, que, chegando aos sessenta anos,

constata não saber de fato a sua posição nem ser dono das terras onde mora e onde trabalhou

18 A presença da música na obra de João Guimarães Rosa merece uma apreciação bem cuidadosa. Sobre

o assunto, trata o artigo intitulado “Música e mito na obra de João Guimarães Rosa”, de Gabriela Reinaldo, no

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a vida inteira. O problema de Manuelzão é, ao contrário do que ocorre com Sigisberto, mais

de ordem material e física, que metafísica.

Naturalmente que essa situação do homem agregado, sem terra, - sempre numa

situação de dependência em relação ao dono da terra – descrita em Uma estória de amor, é

emoldurada pelo veio poético, o que, longe de sobrecarregar o texto com o simples tom de

denúncia, revela as relações poético/simbólicas que o homem pode e consegue estabelecer

com os seus dilemas. Mas, com relação à “Cara-de-Bronze”, vemos que nesta narrativa o

velho Segisberto, contrariamente a Manuelzão, tenta recuperar outras instâncias de seu ser,

pois ele já conquistou todas as condições materiais necessárias para sua sobrevivência.

Enquanto Manuelzão chega à velhice sem saber exatamente sua identidade, Sigisberto deixa

vir à tona outros aspectos da sua, tão importantes e urgentes quanto os que ele precisou

desenvolver para chegar onde chegou. Na sua imobil idade física, ele está buscando um outro

lugar, não mais material, como é o que ocorre com Manuelzão, mas é nas camadas mais sutis

da sua existência que ele parece querer tocar. Sobre isso nos lembra o narrador: “Mudara.

Agora ele indagava engraçadas bobéias, como estivesse caducável.” (ROSA, 1994, p. 690)

Em “Cara-de-Bronze”, as mudanças no comportamento de Sigisberto perturbam e

desestabil izam o trabalho dos vaqueiros. No entanto, é curioso notar que, no fundo, eles é que

são a referência do Patrão. Sem a polifonia de suas vozes, não poderíamos saber quem é de

fato Sigisberto Saturnino Jéia Velho, Filho. Desconfiados do juízo do patrão, julgam que há

algum tipo de sandice, pois o que ele deseja agora são as “bobéias” . (ROSA, 1994, p. 690) A

variedade de vozes dos vaqueiros traduz fragmentos do que fôra o Velho e no que ele está se

transformando. É o que nos demonstram algumas passagens, que tratam de descrever as novas

ocupações e interesses do patrão.

li vro da PUC, II seminário internacional Grosa, 2001, ed. PUCMINAS... p. 279.

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- Que era quê?

- Essas coisas... quisquilha, mamãezice... Atou e desatou... Aquilo não tinha rotinas...

Tudo.

- O vaqueiro Calixto: Tudo galã-galante...

- O vaqueiro Abel: Era um advogo. O que não se vê de propósito e fica dos lados dorumo. Tudo o que acontece miudim, momenteiro. Ou o que vive por si, estradavaga...(ROSA, 1994, p. 690)

Em “Uma estória de amor” , é justamente a festa, a preparação para a inauguração da

capela, o encontro com os amigos, o momento de contação de estórias, a missa festiva, a

procissão, que enredam Manuelzão em outras situações da vida, que o levam a uma distensão

com relação às suas preocupações diárias. A festa é o elemento desorganizador, e representa

os aspectos lúdicos necessários à sobrevivência do personagem. Nos instantes em que

vivencia os preparativos para a festa, ele abre espaços no seu espírito atribulado para a entrada

de novo sopro de vida, que o revigora. Sente-se enlevado, apartado das situações e lidas

cotidianas. A viagem, a festa e o rio constituem metáforas excelentes das transformações

pelas quais o homem passa. Não se trata de estabelecermos dicotomias entre a vida ativa e a

contemplativa, ou entre a realidade e a fantasia. Pelo contrário, os textos de Guimarães Rosa

nos mostram cada vez mais que este elo entre os dois aspectos da existência humana são

muito tênues, mas mostra, sobretudo, que somos presas fáceis dos mecanismos impostos pelas

necessidades da vida ordinária, os quais detêm a criatividade e a imaginação humanas,

funcionando como espécies de predadores que sufocam potencialidades criativas e poéticas

do ser humano. Além disso, as estórias de Rosa revelam que basta uma brecha neste esquema

para que o fluxo criativo e delicado que permeia tais aspirações, ou esta busca do “quem”

das coisas possa florir. Nesse sentido, Ecléa Bosi, ao se referir às influências que os hábitos

da vida intrumentalizada têm na memória das pessoas, observa que: “ Na medida em que a

vida psicológica entra na bitola dos hábitos, e move-se para a ação e para os conhecimentos

úteis ao trabalho social, restaria pouca margem para o devaneio para onde flui a evocação

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espontânea das imagens, posta entre a vigília e o sonho.” (BOSI, 1994, p. 48) E continua: “ O

contrário também é verdadeiro. O sonhador resiste ao enquadramento nos hábitos, que é

peculiar ao homem de ação. Este, por sua vez, só relaxa os fios da tensão quando vencido pelo

cansaço e pelo sono.” (Ibidem, p. 48) Podemos dizer que, ao chegar à velhice, Sigisberto

distende, redimensiona o olhar e debruça-se, não mais sobre as fronteiras, mas sobre os

horizontes.

5.2.2 Olhares multi facetados

Como temos observado, a apreensão do protagonista desta estória não se dá de modo

fácil. Para compreendê-lo é preciso olhá-lo de vários ângulos, seguindo os sinais do narrador,

mas principalmente a multiplicidade de vozes e olhares dos vaqueiros. Essa polifonia

discursiva sinaliza que o conhecimento do outro se dá por meio de uma relação

intersubjetiva. Um detalhe curioso é que os vaqueiros ficam do lado de fora da casa, e o Velho

está sempre dentro, fechado no quarto. Sua ausência gera interpretações - especulações,

projeções e idealizações - cada vez mais desconexas acerca de sua pessoa. Por meio de quem

o conhecemos, se não pelos vaqueiros que, no momento em que falam, nem podem vê-lo?

Deste modo, não estarão suas descrições carregadas de subjetividades, e permeadas por suas

próprias necessidades e experiências de vida? Assim sendo, se a descrição nos dá uma visão

pormenorizada e polêmica do protagonista, por outro, há que se considerar os elementos que

entram com toda a força na descrição desta criatura inacessível, que mal podemos ver. O

Velho está protegido pela casa, e os vaqueiros estão sempre expostos ao céu e às chuvas. O

seu discurso é efusivo, tecido dentro das situações de trabalho. Eles são mão-de-obra que

pensa e emite opiniões sobre o Patrão. Gastando muitas horas do seu dia com estas

discussões, eles expressam o desejo de conhecer o Velho Sigisberto, mas a aproximação só se

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dá por meio da fala. Não obstante as opiniões sobre ele se contradigam, o diálogo se dá de

forma harmoniosa, o que fica muito bem mostrado nos atos de fala e de escuta atenta

realizados por cada vaqueiro, que, embora nem sempre demonstrem concordar com a opinião

do outro, procuram fazer as coesões discursivas, e incorporar a fala anterior a uma nova

colocação sobre o Velho, propiciando o equilíbrio dentro da polêmica gerada nos atos de fala.

Enquanto falam, chove, e os bois berram, as adversidades do trabalho não cessam, mas

também a cantiga do cantador os embala. Polifonia dos vaqueiros, silêncio do Velho. O

discurso daqueles preenche os silêncios deste.

A possibil idade de se contemplar a integridade de Sigisberto é-nos, ao mesmo tempo,

oferecida e negada. Oferece-se apenas como um jogo textual e discursivo, e nega-se como

impossibil idade de apreensão do ser humano. A contemplação da totalidade dos personagens

só pode ser realizada numa perspectiva que considere a mutação com que estes são

concebidos, o que exige do leitor uma visão que vá além da sua realidade imediata. É bom nos

lembrarmos que nas narrativas de Guimarães Rosa o auto-conhecimento se dá a partir do

conhecimento do outro. Isto fica muito bem traduzido na fala de Lina do conto “A estória de

Lélio e Lina”: “ O que existe na gente, existe nos outros...” (ROSA, 1994, p. 790) A fala de

Lina se dissolve por vários outros textos rosianos, em que o discurso revela este sentimento de

alteridade, e é pretexto para isto. Mas é “Cara-de-Bronze”, sem dúvida, que radicaliza, no

melhor sentido da palavra, a consciência dos desdobramentos possíveis e necessários no

processo de tentativa de decifração do outro e de si mesmo. Conforme Luiz Cláudio Vieira de

Oliveira:

Guimarães Rosa, ao abordar a questão do duplo, da loucura ou do teatro, o fará também nosentido de mostrar que o homem não tem um caráter monolítico, sendo antes um simulacroque uma cópia fiel a um centro anterior e modelar. O homem nunca é idêntico a si mesmo,variando tanto quanto varia o objeto de seu desejo. O que apresenta para si próprio e para osoutros é um conjunto de máscaras com que propicia, ideologicamente, o seureconhecimento/desconhecimento, apesar de nem sempre, como leitor ou personagem,perceber sua duplicidade. Na maioria das vezes, não se dá conta de que está no meio de um

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jogo ou num palco, representando papéis de que não tem consciência plena. (OLIVEIRA,1998, p. 102).

A relação entre o velho e a criança é bem estreita também neste conto. Geralmente

costumamos dizer que algumas pessoas voltam a ser crianças quando envelhecem. Extraindo

desta afirmação o que ela possa ter de pejorativo, é possível ver que nela há um fundo de

verdade. Neste momento da vida, muitas coisas passam a não ter mais importância; é quando

o homem descobre a grande diferença entre o essencial e o secundário; é quando ele, numa

atitude similar à que possuem as crianças, demonstra, por meio de gestos e intenções que

envia para o mundo, a urgência de viver e de realizar, porque a vida não pode esperar, seja na

velhice ou na infância. O futuro se funde a cada porção do presente e só passa a existir se este

for plenamente vivido. Certamente que não estamos discutindo, neste caso e neste momento,

os níveis de consciência do velho e da criança, mas somente o que concerne às similaridades

dos estilos e aos procedimentos dos dois. Manuelzão, Sigisberto, Lina, Vó Edmunda têm tanta

sede de viver quanto Brejeirinha, Miguili m, Fita-verde e outras crianças. Todos eles têm em

comum o mesmo tempo disponível para a contemplação e para o exercício dos jogos poéticos;

na velhice os velhos podem, de novo, sonhar. E as crianças o fazem pela primeira vez.

Entretanto, diante deste novo estilo de vida que os velhos encontram para viver e se expressar,

muitas pessoas se assustam, porque não é o esperado numa sociedade em que o velho é ainda

relegado à sombra. Como pontuamos, os vaqueiros, em “Cara-de-Bronze”, apesar de todo o

respeito que nutrem pelo Patrão, questionam suas recentes necessidades e atitudes. Passam

praticamente todo o tempo da narrativa especulando sobre as idéias esquisitas do fazendeiro.

Ainda assim, suas falas traduzem, ao mesmo tempo que mascaram, os ideais e os anseios do

Velho. É como se o cerne do silêncio do protagonista fosse traduzido pela poli fonia que é o

diálogo deles. Embora sejam rudes, suas falas estão carregadas de poesia. Um exemplo

precioso são as seguintes falas dos vaqueiros, ao se referirem ao Patrão.

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O vaqueiro Mainarte: “Ele queria uma idéia como o vento. Por espanto, como o vento... Umavirtudinha espritada, que traspassa o pensamento da gente – atravessa a idéia, como alma deassombração atravessa as paredes.” (ROSA, 1994, p. 691)

O vaqueiro Noró: “Que relembra os formatos do orvalho... E bonitas desordens, que dãoalegria sem razão e tristezas sem necessidade.” (Ibidem, p. 691)

O vaqueiro Abel: “ Não-entender, não entender, até se virar menino.” (Ibidem, p. 691)

Esta última fala encerra, de fato, a possibil idade de compreensão das coisas por um

outro tipo de inteligência, que é a que possuem as crianças. Por meio de uma inteligência

perceptiva, intuitiva e imaginativa, elas apreendem as coisas de forma mais imediata, sem a

necessidade de explicações ou conceitos. A última parte do diálogo recupera o eixo do enredo

que é, afinal, a busca do essencial. Sobre isso nos lembra o vaqueiro Tadeu a respeito do

Patrão: “(...) Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!” (ROSA, 1994, p. 691)

A expressão “o quem” das coisas rompe com as proposições tradicionais utilizadas

para se fazer uma pergunta. “Quem” está ligado à humanidade das coisas, harmoniza forma e

conteúdo, corpo e alma, ao passo que o “o quê” está ligado mais à materialidade das coisas,

aos fatos, aos eventos. Por isso, querer achar o “quem” das coisas propõe uma quebra

poética/existencial/ de ordem metafísica, no que diz respeito às perguntas do ser humano.

Estabelece-se, com o emprego deste pronome poeticamente substantivado, um novo modo de

perguntar, e amplia-se a qualidade do que se busca. Está aí nesta inversão do uso do pronome

interrogativo (anteposto por um artigo definido), a evocação a um novo modo de buscar, mais

uma comprovação/exemplo de que a vida para Rosa é constante mutação, e de que as

palavras devem revelar, ou se transformar nisso. O que buscam os personagens de Rosa não é

mais o “o quê” das coisas, referente, externo ao homem, de fora para dentro, mas o “o quem” ,

substancial, raiz que tudo permeia.

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5.2.3 A Casa de bronze

Outro aspecto que nos chama especial atenção nesta estória é a descrição da casa,

que revela também a forma como os vaqueiros vêem Sigisberto: “A Casa, batentes de pereiro

e sucupira, portas de vinhático.” (ROSA, 1994, p. 669) Sabe-se que vinhático é o nome de

uma madeira muito resistente e antiga, e tal detalhe nos ajuda a compor a personalidade do

protagonista. A casa é de madeira tão antiga e forte quanto ele, feita para durar anos. Em “A

terceira margem do rio” a madeira escolhida pelo Pai para a construção da canoa foi pau de

vinhático, também feita para resistir às intempéries da natureza. É o que nos relata o narrador:

“Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha

da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e

arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos.” (ROSA,

1994, p. 409)

Uma breve comparação entre as duas situações nos faz pensar que no primeiro caso o

Velho não possui condições físicas - está paralisado pela doença -, mas a sua Casa é grande e

forte, para ser habitada por muitas pessoas. No segundo caso, o Pai possui a vitalidade física,

mas o seu corpo deseja agora apenas o abrigo de uma canoa. No primeiro caso, a casa possui

vitalidade, mas o dono da casa está paralisado fisicamente. No segundo, a casa perdeu a

vitalidade para o Pai, que precisa restaurá-la na insegurança do rio. A segurança da casa não

mais o nutre. A canoa, no segundo caso, vira a casa. E também é feita de pau de vinhático.

Para durar muitos anos.

Outro conto de Guimarães Rosa em que a casa é tão importante quanto os

personagens e as situações é “Nenhum, nenhuma”, de Primeiras estórias. Esta estória, tão

misteriosa quanto a casa é, assim introduzida: “DENTRO da casa-de-fazenda, achada, ao

acaso de outras várias e recomeçadas distâncias passaram-se e passam-se, na retentiva da

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gente, irreversos grandes fatos - reflexos, relâmpagos, lampejos – pesados em obscuridade.”

(ROSA, 1994, p. 423) Bastaria esta passagem para vislumbrarmos a atmosfera de indefinição

em que são construídas as noções de tempo e espaço. Introduzido pelo advérbio espacial

“dentro” , em destaque, o conto anuncia o que iremos constatar no decorrer da narrativa, ou

seja, que os acontecimentos narrados são todos da ordem da subjetividade e que, embora

grande parte da estória enfatize os espaços externos, sobretudo se considerarmos o tema da

viagem – os processos desencadeados nesta estória são todos internos, bem como as

motivações do protagonista. A casa metaforiza o mistério do personagem, representa o lugar

de “dentro”, o que é insondável. E, nesse sentido, os vaqueiros de “Cara-de-Bronze” também

tecem vários comentários sobre o quarto, a disposição dos móveis no quarto, dando-nos por

via da descrição deste ambiente, um retrato do velho.

Moimeichego: E como é o jeito do quarto dele?

O vaqueiro Mainarte: Pois é escuro e muito espaço, lugaroso, com o catre, a rede, mochospra se sentar, as arcas de couro, bruaca aberta, uma mesa com forro de couro; e uma imagem daVirgem na parede, e castiçal grande, com vela de carnaúba...

O vaqueiro Cicica: Desses coros todos, de onças. O quarto é forrado inteiro com couro deonça, no chão e nas paredes...” (ROSA, 1994, p. 679)

Da segunda vez em que aparece a palavra “casa”, esta vem escrita em letra

maiúscula. Mas, na primeira é assim descrita: “A casa-avarandada, assobradada, clara de cal,

com barras de madeira dura nos janelões – se marcava.” (ROSA, 1994, p. 669) E compare-se:

“Mas, por cima, azulal, ao norte, fechava o horizonte, o albardão de uma serra. No

Urubuquaquá. A CASA...” (ROSA, 1994, p. 669) A presença do artigo definidor, e, no caso

adjetivador, na última passagem, sugere a hierarquia da casa sobre os personagens, sobre o

próprio protagonista, que é mencionado em seguida à Casa: “O fazendeiro seu dono se

chamava o “Cara-de-Bronze” (ROSA, 1994, p. 669) É redundante mencionar a importância

da descrição da paisagem geográfica para Guimarães Rosa, mesmo que esta seja uma releitura

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de paisagens reais e que se apresente como um lugar “ inventado” . O conto se abre a partir do

núcleo, do centro do lugar. “NO URUBUQUAQUÁ. Os campos do Urubuquaquá – urucuias

montes, fundões e brejos. No Urubuquaquá, fazenda-de-gado: a maior – no meio – um estado

de terra. A que fora lugar, lugares, de mato-grosso, a mata escura, que é do valor do chão. (...)

Este mundo, que desmede os recantos. Mar a redor, fim afora, iam-se os Gerais, os Gerais do

ô e do âo (...)” (Ibidem, p. 669) Por meio da apresentação destes espaços constituidores da

paisagem externa à casa - os campos, os montes, fundões e brejos, as pastagens, as serras, o

chão - somos convidados a compor e imaginar ( enquanto estes não nos são apresentados), os

moradores destes lugares. Quem habitará estes espaços que irrompem nas primeiras linhas do

texto, em letras maiúsculas, impondo-se como realidades, individualidades, tanto quanto se

espera de um personagem? Um homem, um menino, um velho, uma velha. E assim, sem

pressa, os personagens vão sendo delineados, cada qual a seu tempo e no seu espaço. Fazendo

parte da paisagem, são feitos da mesma matéria que ela. Também em “Nenhum, nenhuma”, a

descrição da paisagem oferece-nos uma perspectiva das sensações e do universo psíquico dos

personagens. À medida que estes vão sendo apresentados, a relação entre eles e a paisagem

parece ficar mais estreita. É o que ilustra a passagem: “A mansão, estranha, fugindo, atrás de

serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio, que proíbe o imaginar. Ou talvez não

tenha sido numa fazenda, nem no indescoberto rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se,

nunca mais.” (ROSA, 1994, p. 423) Nesta passagem, a impressão de que tudo é fugidio é um

dado que vai permear todos os acontecimentos. Mergulhando no território das lembranças, a

casa é descrita como um lugar sombrio, fechado e antigo, conotando o lugar onde reina a

memória. A entrada nessa casa metaforiza a entrada no terreno em que dormem as

lembranças, o que significa dizer, o terreno da subjetividade. É o que demonstra o trecho: “A

casa-rústica ou solarenga – sem história visível, só por sombras, tintas surdas: a janela

parapeitada, o patamar da escadaria, as vazias tarimbas dos escravos...” (ROSA, 1994, p. 424)

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Por analogia podemos dizer que a casa da estória de “Nenhum, nenhuma” é tão

misteriosa quanto o enredo. E que em “Cara-de-Bronze” ela é tão forte e antiga quanto o

Velho, possuindo ambos a mesma rusticidade e antigüidade, conforme sugere a passagem: “A

Casa – (uma casa envelhece tão depressa), que cheirava a escuro, num relento de recantos, de

velhos couros. As grades ou paliçadas dos currais. Os arredores, chovidos. O tempo do

mundo. Quem lá já esteve?” (ROSA, 1994, p. 688) O comentário do narrador entre parêntesis

(“uma casa envelhece tão depressa”, (Ibidem, p. 688) equivale a dizer: Um homem envelhece

tão depressa! Afinal, neste texto todas as descrições físicas da casa dizem respeito, sobretudo,

à existência do protagonista, aos recantos inauditos e inacessíveis de sua velhice. A pergunta

“Quem lá já esteve?” (Ibidem) nos leva à outra indagação, qual seja: Quem já penetrou o

universo de Sigisberto, o Velho? Quem o conhece de fato? A casa representa os aspectos

imprescrutáveis dos personagens e, assim como fora do espaço da ficção, nos contos

supracitados a velhice é simbolizada por casarões escuros, cheios de recantos, em que os

sentidos se misturam, perdendo-se nestas sinestesias que fundem, por exemplo, olfato e visão

em: “A casa – (...) que cheirava a escuro...” (ROSA, 1994, p. 688), e audição e visão nesta

passagem de “Nenhum, nenhuma” “A Casa - ... só por sombras, tintas surdas (..) (Ibidem,

p.688) Conforme Bachelard, a casa, este canto do mundo, é o nosso espaço vital, lugar onde

nos enraizamos e vivemos as dialéticas da vida (BACHELARD, 1988, p. 24)Para o autor de

A poética do espaço, a casa é “o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um

cosmos em toda a acepção do termo.” (BACHELARD, 1988, p. 24) Em “A terceira margem

do rio” ocorre um processo similar às considerações de Bachelard. A casa deixa de ser o

centro da existência do protagonista, porque ele deixou de ser um homem “ordeiro e

positivo” , ao passo que a casa continua tendo esta conotação de ordem e estabil idade.

Modificado, este homem precisou de uma nova casa, representada pela sua canoa.

Pervertendo a ordem das coisas, é preciso abandonar primeiro o que há de mais seguro, que é

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a casa, para depois, fazer a perversão maior que é ir morar numa canoa, símbolo valioso de

movimento e fluxo contínuo de viver.

Quanto a Sigisberto, a sua casa representa o seu enraizamento no universo do

Urubuquaquá. Ambos, ele e a casa, estão plantados no lugar, cuja metáfora é a doença de que

ele sofre e que, segundo os vaqueiros, é “ruimatismos”.

“Desde faz tempo, as pernas foram ficando afracadas. Agora, final, morreram murchas detodo.

– Ficou leso tal, de paralítico.

– Só pode andar é na cadeira, carregado...

– Ah, mas nem não anda, nunca. Não sai do quarto. Faz muitos anos que ele não sai.” (ROSA,1994, p. 681)

Enraizado na casa, Sigisberto só pode sonhar com o mundo por meio dos olhos do

Grivo. E como Miguilm, em Campo geral, algo em seu olhar se transformou. O velho ganha

visão de dentro, acrescida, ao contrário do protagonista infante, de experiências acumuladas

ao longo da vida e do olhar do jovem vaqueiro. Acreditamos que este velho homem é uma

destas figuras recuperadas, ao final da vida, pela capacidade de olhar para um outro lugar,

onde seus pertences não alcançam. Sem dúvida que ele acumulou riquezas, trabalhou,

angariou recursos para uma vida material abastada. Mas, ao final, além da paralisia simbólica,

ele conquista um novo olhar, desejoso de percorrer outras paisagens. A paralisia das pernas

representa uma pausa na vida ativa. É quando repousa o homem de ação, empreendedor, e

renasce o homem contemplativo, o que deseja o “quem das coisas” , ou a Poesia das coisas, ou

ainda, como sabiamente diz o vaqueiro Mainarte: “É imaginamentos de sentimento.” (ROSA,

1994, p. 769)

Após percorrer a obra de Guimarães Rosa atentamente, temos descoberto que o autor

acredita em espaços do homem nem sempre mostrados, e os privilegia. Geralmente, por trás

do visível que há em cada personagem, é o invisível que se deseja mostrar, é sobre ele que

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a luz maior incide. Sigisberto é inicialmente apresentado por vários aspectos materiais que o

cercam: sua casa, suas terras, seus vaqueiros, seus bens, enfim seus empreendimentos. Mas há

pistas sutis de que estes elementos constituintes do personagem funcionam como o

desvelamento de outros, ocultos, mas presentes o tempo todo, mascarados e até mesmo

representados pela materialidade que o contorna. Existe um traço comum nos personagens de

Guimarães Rosa que é a crença num sonho, numa bem-aventurança, entendida em “Cara-de-

Bronze” como o “quem das coisas” e que parece brotar justamente dos espaços mais

recônditos do ser deste homem perguntador, problematizador e sonhador.

Indagadores, estes personagens estão sempre em processo, ou em travessia. Para suas

perguntas não há respostas prontas, mas estas, quando surgem, são pretextos para novos

questionamentos. Aliás, não importa que tipo de perguntas fazem os personagens. Muitas

vezes surge uma pergunta relacionada à dificuldade da lida de um vaqueiro com a boiada que

tem que guiar, com as intempéries do tempo que o traem, ou com a desconfiança nas relações

com o outro, com o caminho a ser trilhado. Por isso, a metáfora do rio que flui é a

representação de um homem dialético, que pensa, mas que principalmente age

dialeticamente. Neste sentido há sempre uma pergunta sendo feita nas estórias de Guimarães

Rosa, e, quando o protagonista ainda não está pronto para articulá-la, o narrador faz por ele,

porque já o conhece suficientemente para fazê-lo. Temos a impressão também de que os

personagens de Guimarães Rosa estão sempre mudando. Riobaldo, por exemplo, é um rio

dentro de Grande sertão: veredas, rio abraçado por outros, e que abraça incessantemente

outros. O homem de “A terceira margem do rio” só pode continuar a viver se for no rio, na

dialética suscitada pela casa que o margeia e pelo rio que também o margeia, mas,

sobretudo, pela existência de uma terceira e insólita margem que, extrapolando os padrões

geográficos, instaura-se como realidade neste mundo dialético em que o homem escolheu

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mergulhar. Pensadores sertanejos, homens de tribos que construíram suas crenças com base

em precárias – quando não inexistentes – condições de letramento e erudição, estes seres

formulam seus problemas à medida que eles vão surgindo, e na maioria das vezes, como nas

tribos primitivas, a formulação para os seus conflitos surge dentro da própria comunidade,

porque é na efervescência das trocas que as questões são apresentadas, ou seja, a solidão

destes camaradas sertanejos está totalmente diluída na solidão da paisagem e na solidão de

todos os outros sertanejos. Por isso o diálogo é tão contundente neste conto, e dá tantas voltas

para não chegar a lugar nenhum.

Voltando a Riobaldo, lembremo-nos de que o seu “perguntar” diz respeito a ele e a

todos os outros, porque são os outros que vão lhe mostrando quem ele é, quem também ele

não é, e quem poderia ser. O ato de ver está ligado ao de perguntar que, por sua vez, sustenta

o eixo da alteridade tão deflagrada na obra rosiana e é amplamente evocada nas estórias em

estudo. Em “A estória de Lélio e Lina” há um momento revelador deste olhar que constrói e

sustenta este sentimento de alteridade. Trata-se de uma passagem em que o protagonista está

viajando com o vaqueiro Delmiro. De repente, a descrição da paisagem e dos caminhos por

eles percorridos dá espaço para uma situação de estreito encontro entre os dois, que, até então,

pareciam desconhecidos, unidos apenas pela circunstância do trabalho. Deixemos que a

passagem revele e ilustre as afirmações acima sobre a construção de uma alteridade possível e

sobre o reconhecimento do outro:

Delmiro esbarrou, coçava o nariz, limpou o pigarro. Depois pôs os olhos para cima, eempinou os ombros. – ‘Diacho! – disse. – O que é, é: é o regalo do corpo. Homem foi feitoassim, barro de Adão não é pedra. Mas eu não estou inteiro nisso... Às vezes, depois, me dáum nojo, outro. Principio numa vontade, um desespero de sair do mole do diário, arranjarmeu jeito, mudar de vida. Aí, queria trabalhar, ou andar, num rompante, tirar em mim umesforço grande, mesmo como nunca eu fiz... (ROSA, 1994, p. 752)

Esta revelação de Delmiro abre espaços dentro de Lélio para que ele devolva para si as

mesmas indagações do companheiro.

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Lélio não respondia. Mas, por dentro dele lavorava que nem um susto, um arrocho maior.Tudo o que o Delmiro dera de falar, era, igual por igual, o que ele mesmo vinha em remorsopensando. Enquanto ele era sozinho sentindo, aquilo importava de menos, era como uma dasmuitas coisas desta vida, desencontradas, que, mesmo perturbando um momento, a gentepodia ir deixando para mais tarde, mais tarde, p’ra repensar direito e se resolver. Mas,agorinha, quando um outro também sustentava assim, e falava, parecia então que o peso depressa era maior, subia uma tristeza, um medo, um estava pisando borralho quente. (Ibidem,p. 752)

Encerramos esta parte do nosso trabalho com uma substancial reflexão de Merleau-

Ponty, que, de modo bem estreito faz eco com as reflexões de Lélio:

A humanidade não é uma soma de indivíduos, uma comunidade de pensadores em que cadaum, em sua solidão, obtém antecipadamente a certeza de se entender com os outros, porqueeles participariam todos da mesma essência pensante. Tampouco é, evidentemente, um únicoSer ao qual a pluralidade dos indivíduos estaria fundida e estaria destinada a se incorporar.Ela está, por princípio, em situação estável: cada um só pode acreditar no que reconheceinteriormente como verdade – e, ao mesmo tempo, cada um só pensa e decide depois de jáestar preso em certas relações com o outro, que orientam preferencialmente paradeterminado tipo de opiniões. Cada ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenaspor sua util idade – que não está em questão aqui -, mas para sua felicidade. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50)

“Cara-de-Bronze”, embora construída de forma fragmentada, e por meio de uma

configuração gráfica complexa, converge para esta unidade que tanto apreciamos na obra de

Rosa. A narrativa enfatiza as relações entre o homem e seu semelhante, bem como a busca

que ele precisa fazer para recuperar o que de fato lhe pertence e que não está necessariamente

ligado aos seus pertences. Acreditamos que esta é uma estória que aponta a diferença entre o

secundário e o essencial, sendo este último representado pelo “ quem das coisas” , o qual,

longe de constituir um produto acabado e facilmente encontrável, deve ser cuidadosamente

procurado. A estória aponta, sobretudo, para esta viagem como processo de iniciação. Dado o

primeiro passo, o horizonte se oferece para o buscador como um labirinto ao qual ele deverá

sobreviver.

O que é que o Grivo vai buscar, de fato? É o que todos os vaqueiros estão se

perguntando. É o que o desejamos saber. No entanto, se não soubermos olhar no fundo do

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olho do texto, chegaremos à página final sem termos descoberto o “quem das coisas” , motivo

gerador desta belíssima estória.

5.3 O VELHO ENSINA O NOVO A VER: “A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA”

“ ... coração não envelhece, só vai ficando estorvado... Como o ipê: volta a flor antes da folha...” (p. 755)

Esta parte do nosso trabalho é uma extensão ou um desdobramento do capítulo

anterior, porquanto da leitura de “A estória de Lélio e Lina” de No Urubuquaquá, no Pinhém,

configura-se mais uma vez – porém com nuanças específicas – o perfil do jovem e do velho, a

exemplo do que observamos em “Cara-de-Bronze”. Muitos ecos de uma estória podem ser

ouvidos na outra, especialmente os que dizem respeito à força criativa que gera vínculos entre

a juventude e a velhice, nos dois casos catalisada pelas pulsões do homem e da mulher velhos.

Nas duas estórias, há enredos similares, ou seja, tanto em uma como na outra, a viagem

desencadeia os eventos narrativos e opera as transformações necessárias nos personagens. Em

ambas, dois jovens vaqueiros saem em viagem, Grivo e Lélio de Higino respectivamente. O

primeiro estabelece com o velho uma relação de mestre e discípulo e sua procura é a da

Poesia, não exatamente a busca para si, mas para o Velho. Na segunda estória o jovem é o

peregrino do amor. Sua viagem é a da iniciação amorosa e da liberdade. Também como

ocorre na narrativa anterior, ele vai estabelecer com um personagem velho uma relação de

mestre e discípulo. Ao contrário do velho Sigisberto, Rosalina, ou Lina, protagonista da

estória em questão, não perdeu a Poesia. Ela é a encarnação desta, e é justamente desta pulsão

poética que vem sua alegria e sabedoria de viver. Lélio não sai em busca de algo para ela,

mas, sem o saber, sai em busca dela. Ao encontrá-la, compreende o que sempre buscara. Entre

o velho Sigisberto e a velha Rosalina só há de comum a velhice, e a urgência de viver. Os

movimentos realizados pelos dois são distintos. Sigisberto está fisicamente imobil izado, mas

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internamente ele representa o visceral movimento para a magia da vida. Lina, embora velha,

conseguiu manter harmonizados o corpo e o espírito, eliminando quaisquer tensões ou

disparidades entre estes dois aspectos do seu ser. Seu corpo é a exalação da magia que se

manteve acesa dentro dela. Por isso, ao contrário de Sigisberto, ela converge todos para si.

Sua casa é abertura, assim como ela o é para todos que a procuram. Sigisberto é a evocação

do mistério e da ambiguidade, sendo sua casa tão fechada e sombria quanto ele. A estória que

protagoniza cumpre a função de devolver-lhe o movimento e o encanto de viver, e esta

possibilidade é intermediada por um jovem. Em movimento contrário e ao mesmo tempo

paralelo, em “A estória de Lélio e Lina”, é o jovem que receberá novo alento e harmonizará,

por intermédio da velha, as tensões e o vazio em que foi lançado.

A escritura de Rosa concili a estes opostos aparentementemente inconcil iáveis e

desconstrói o que poderíamos chamar de conflitos de gerações. Enredando histórias e buscas

de velhos com jovens, encaixando as tramas de uns com os outros de forma absolutamente

orgânica, o autor torna viáveis as mediações e as realizações consideradas impossíveis. E faz

mover jovens e velhos entre os devaneios e a realidade, extraindo do prosaico a magia, da

velhice a infância primordial. São estórias que estabelecem profundas rupturas com os

preconceitos em relação à estagnação da velhice ou à imaturidade da juventude. Conforme

Cleusa Passos, “Uma vez ainda, desfazer cenas e relações cristalizadas constitui a chave da

escritura rosiana, sempre intrigante porque vivaz e fugidia.” (PASSOS, 2000, p. 139)

Por ser este viés da obra de Rosa tão valioso e por termos encontrado várias situações

em que este encontro do velho com o jovem se oferece para o leitor, julgamos valioso um

desenvolvimento mais aprofundado desta parte, sobretudo pela oportunidade única que estes

dois textos nos oferecem de reavaliarmos os conceitos muito bem formados acerca do que é

ser jovem e ser velho. Além disso, eles nos estimulam a entrecruzarmos os olhares, de modo

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a podermos ver com os olhos do jovem que sai em busca de sua bem-aventurança e do velho

que acredita poder recuperá-la ou que -–como é o caso de Lina – nunca a perdeu.

“A estória de Lélio e Lina” nos fala sobre a aceitação do tempo, ou melhor, da

passagem do tempo, que não subtrai no ser humano a porção maior do desejo de viver e de se

entregar à aventura de prosseguir. É o que nos mostra Lina, Rosalina, cujo passado,

configurado como fonte de experiências e conquista das marcas da maturação, aponta para o

futuro sempre despontando. Lina traz a insígnia de Eros, que a nutre e lhe dá vigor em plena

velhice. E diante da constatação da passagem do tempo, Lina se posiciona com absoluta

lucidez. Ela não protela o envelhecer, nem chora diante do passado ou o idealiza, mas

constata-o tanto quanto o faz com relação ao presente. “Já fui mesmo rosa. Não pude ser mais

tempo. Ninguém pode... Estou na desflor. Mas estas mãos já foram muito beijadas. De seda...

Depois, fui vendo que o tempo mudava, não estive querendo ser como a coruja – de tardinha

não se vôa.” (ROSA, 1994, p. 756)

5.3.1 Discurso amoroso: de tardinha também se voa

Os personagens nesta estória potencializam o que são. Têm intensidade e coragem

para amar, se entregar, sonhar, partir, chegar e morrer. Exemplo máximo é a passagem

abaixo, em que Mariinha, uma das personagens a quem Lélio se liga, declara-se ao seo

Sencler no momento em que este está partindo com a sua mulher para a cidade. Nesta cena

todos os empregados da fazenda estão presentes para se despedirem do fazendeiro. Ainda

assim, numa explosão de emoção que ficou contida durante toda a narrativa, a jovem

Mariinha, ali , exposta a todos, quebrando toda a etiqueta da despedida, deixa-se transbordar

numa extremada expressão de força e, ao mesmo tempo, de fragilidade:

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Todos estavam ali , em frente da Casa, homens e mulheres. Dona Rute mesma foi dando amão, a um por um, e seo Sencler abraçava seus vaqueiros. Mas, então, a Mariinha quis ficarentre os derradeiros; e, na hora em que seo Sencler cumprimentou, ela gemeu, levantadasobre todas suas forças, aquele exclamar: - ‘Me leva junto!...’ Afe, que rompeu num pranto.Mas não abaixava a cabeça, ficava ali , inteirinha, enclavinhados os dedos, os outros nemqueriam olhar para ela, fazia mal-estar. (...)Aquela não temera a fraga das pirambeiras, nemos pastos e frias águas da mata-virgem. E Lélio, primeiro que qualquer outro, admirava queela fosse capaz de ser assim, queria mesmo que Mariinha fosse assim, continuasse.” (ROSA,1994, p. 799-800)

Em “A estória de Lélio e Lina” , uma aparente tranquili dade do enredo esconde uma

tensão que se confronta na busca amorosa, que, por sua vez, comporta a busca da identidade.É

como se, cada a um a seu estilo, todos estivessem em busca do amor. A estória começa e se

desenvolve com muitos personagens, mas depois apenas Lélio e Lina permanecem em cena,

ocupando, ambos, juntos e individualmente, uma posição central. Embora haja duas gerações,

não parecemos estar diante de extremos e nem há enfrentamentos ou conflitos de geração,

mas um encontro. Lina decifra os pensamentos que agitam Lélio e lhe responde sem que este

precise mesmo verbalizar as suas perguntas. Ela é a expressão da revitalização da linguagem,

como o propunha Guimarães Rosa. Suas palavras são eco de sua liberdade. Nesse sentido,

Bachelard nos lembra que “O bem-dizer é um elemento do bem-viver. A imagem poética é

uma emergência da linguagem, está sempre um pouco acima da linguagem significante (...) a

poesia põe a linguagem em estado de emergência. A vida se mostra nela por sua vivacidade.

Esses impulsos lingüísticos que saem da linha comum da linguagem pragmática são

miniaturas do impulso vital.” (BACHELARD, 2001, p. 11) E pergunta: “... Tornar

imprevisível a palavra não será uma aprendizagem de liberdade?” (Ibidem, p. 11) É esta

liberdade que Lina vai ensinar a Lélio, discípulo a ser iniciado no discurso da liberdade e do

amor.

A narrativa fala sobre a busca afetiva, iniciada com a viagem do jovem vaqueiro,

desencadeada pela urgente necessidade de fugir de um afeto proibido que tivera com uma

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mulher casada. No início da viagem, Lélio tem o vislumbre desta busca ao se encontrar com a

Moça, cuja imagem ele levará consigo durante a sua travessia pelo sertão. Distanciado da

moça pelo nível social desta e também pela sua ainda imaturidade, Lélio viverá o efeito

catalisador desta primeira frustração e mergulhará em vários momentos de vazio na sua busca

amorosa. Veremos que, de fato, o que conta é o que estas buscas vão desencadear no

personagem no âmbito do auto-conhecimento. Neste ponto, vale notar que a narrativa se

desenvolve lentamente e num mesmo tom, só vindo a movimentar-se com o surgimento de

Lina. A chegada de Lélio no Pinhém o situa numa série de espaços comunicativos que terá

que habitar no intercâmbio diário com os vaqueiros. Neste momento, a narração ainda está

paralisada, porque o personagem está apenas sondando e reconhecendo sua nova realidade.

Ele ouve, vê, guarda e pouco fala. Muito sente, mas quase não verbaliza seus sentimentos; seu

discurso é articulado para dentro, no ritmo dos próprios acontecimentos da narrativa. Lélio

não se sente ainda identificado, mas sabe, pressente e deseja que algo novo aconteça em sua

vida. Sua viagem física simboliza a necessidade de mudança, que, por sua vez, é permeada

pela sua iniciação amorosa.

A leitura desta estória reafirma a nossa convicção de que os personagens de

Guimarães Rosa são uma gente que ama demais e cujas experiências, intenções e entregas são

intensas e não permitem meios-termos. O encontro de Lélio com Lina ilustra o sentido da

coragem que possuem os personagens em romperem com as cadeias de procedimentos-

padrões e iniciarem outros. A força e o despojamento de Lina muito nos impressionam e nos

tiram uma vez mais do lugar, porque na idade e no contexto em que ela vive, seria muito

difícil – dentro de uma perspectiva referencial - realizar o que ela se propõe viver com Lélio,

principalmente o que realiza ao final da estória, que é quando percebemos que não só o rapaz

desejava viajar, mas também ela sai do seu lugar em busca de outras experiências e de um

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destino desconhecido. No entanto, a viagem que Lina planeja – e nas condições em que o faz

- não soa como algo insólito ou extravagante, porque desde o início ela demonstrou viver por

outros parâmetros e porque o traço bem marcado de sua personalidade nos mostrou uma

mulher de grande integridade física, espiritual, sentimental e, sobretudo, poética. Ela é a

encarnação das forças inovadoras e moventes de Eros que a tudo impregna de novo sopro e

êxtase de viver; ela é a expressão das forças catalizadoras do desejo como aquele aspecto

criativo e vivificante, capaz de transformar a visão sobre as coisas. Os caminhos que Lina

percorreu conduziram-na ao conhecimento do outro e de si mesma. Portanto, ela tem

autoridade, sobretudo, poética, para falar. Entre Lina e Lélio o amor que brota já brota forte,

porque ela era, de verdade, o que ele buscava.

5.3.2 O velho empresta ao jovem o seu olhar

Está claro que esta estória narra a busca do amor, assim como em “Cara-de-Bronze”

temos a viagem pela busca da Poesia. Em movimentos opostos e complementares essas duas

estórias, pertencentes ao mesmo livro, falam das viagens que os homens precisam empreender

para conquistarem o que só a eles pertence e o que é mérito seu, advindo de sua busca. Lélio é

jovem, busca o amor. Ele o faz com suas próprias pernas, porque tem a força de sua juventude

ao seu dispor. No entanto, isto não basta. Percebe-se que, não obstante sua capacidade de se

movimentar, faltam-lhe os arranjos necessários que lhe possibil item reconhecer e tocar o

âmago das situações com que vai se deparar. Lélio tem as vistas boas, mas ainda não sabe ver.

Precisa da experiência e da sabedoria da velha Lina, por meio de quem e através de cujos

olhos poderá decodificar os pequenos/grandes mistérios que oferecem as situações que se lhe

apresentam. É Lina quem traduzirá para ele o sentido arraigado e mais profundo das coisas.

Em movimento análogo e ao mesmo tempo oposto ao que ocorre em “Cara-de-Bronze”, é ela

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quem vai emprestar os seus olhos a Lélio. Aqui, vale ressaltar, o velho ajuda o novo a

interpretar os mistérios. Somos levados, novamente, a refletir que não basta ver, mas que é

preciso ter discernimento. Lina certamente já percorreu o “quem” das coisas, que busca o

Velho de “Cara-de-Bronze”. Sua posição é a de quem conhece os segredos do amor, porque,

como ela mesma faz questão de reiterar, já foi muito amada e desejada. Ela percorreu estes

lugares da paixão e do enamoramento, por isso não se exalta ou em nada exagera diante dos

baques e indagações de Lélio. Ela intui, pressente o que o aborrece, decodifica seus sustos,

exaltações e medos. Desta forma, é ela quem vai sendo a mediadora dessa viagem amorosa.

Eros do Norte-de-Minas, velha sem idade, moça repleta de passado, ser imemorial como o são

tantos outros velhos de João Guimarães Rosa, tudo que toca é renovado, mas a maior

renovação que gera é quando toca as pessoas e as situações com as palavras. É o que expressa

o narrador: “O que as palavras de dona Rosalina abriam eram só uma claridade em seu

espírito – uma claridade forte, mas no vazio: coisa nenhuma para se avistar. Mas zonzava,

entanto, desconhecendo se parte desse alívio não manava da voz, do justo olhar, do feitiço de

pessoa de dona Rosalina – que ela semelhava pertencer a outra raça de gente, nela a praxe da

poeira não pegava. (ROSA, 1994, p. 779) Lina sabe falar. Possuidora de um discurso poético

e ao mesmo tempo enraizado nas fontes orais, ela detém o poder do discurso, do logos que

deixa de ser coisa, instrumento de comunicação, para se tornar a finalidade em si mesma,

discurso essencial porque é ele que prevê o que vai ser dito, e antecipa o que pode ser feito,

com outros modos de dizer. É um discurso poético porque instaura um outro nível de

comunicação, mais profícuo, ao mesmo tempo que estabiliza, na desestabil ização. Quando

Lina fala, sua fala parece vir de um lugar ainda não tocado pela fala comum e desavisada,

própria do discurso referencial. Seu discurso não brota só do pensamento, mas é como se o

que ela dissesse já estivesse a caminho, despontando sempre, a palavra em curso, dis-curso.

Conforme observa o narrador acerca da fala de Lina: “A vivo, ela só falava o que era preciso.

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Ou, então, o que era bonito e que para sempre valia, como o bom berro de um boi no sozinho

do campo, ou o xii lixe continuado na ponta branca das pedras.” (ROSA, 1994, p. 784)

Esse potencial discursivo que parece estar contido nas palavras de Lina nos leva a

pensar em uma intrínseca relação entre amor e fala. A protagonista mostra sua força quando

fala, embora, e talvez por isso mesmo, suas palavras venham de uma fonte de enorme e

genuína simplicidade, cravadas e colhidas na sua experiência de vida. Conforme afirma José

Américo Motta Pessanha em seu estudo sobre a paixão:

Logos e Eros são inseparáveis. Por isso, também, é que em todos os seus tipos e níveis oamor é falante, discursante. E justamente o que Platão faz em sua obra é apresentar ehierarquizar os diferentes discursos do amor. Procura, desse modo, traçar o perfil daqueleque é, ao mesmo tempo, o grande herói e o grande amante, o amante ideal: Sócrates, quedesenvolve através da fala o heróico tema da docência erótica e do erotismo docente elibertador. Assim, quando fala sobre o amor – no Lísis, no Banquete, no Fedro -, essediscurso tem o amor como objeto, mas subentende-o também no ato mesmo do falar: dofalar do perfeito amante. (PESSANHA, 1987, p. 86)

A presença de Lina na vida de Lélio é como a de um mestre diante de um discípulo.

Ela representa a porta por onde ele vai passar. Enquanto Lélio é portador de um discurso

silencioso e suas falas são mínimas, Lina é a que detém a vitalidade do discurso que seduz

para a transformação do interlocutor. Em Lélio, o processo comunicativo se dá mais por meio

da escuta, porque é Lina quem detém o conhecimento, ou seja, a sabedoria. Virtuose no falar,

ela conhece os caminhos da liberdade, ela é aquela que já percorreu muitas estradas e que, na

sua condição de liberdade, exerce enorme e libertador poder sobre Lélio. O discurso de Lina é

impulso e ascensão para o amor, pois o lugar da fala brota do mesmo lugar em que vive o seu

sentimento. Por isso, ela conduz a alma de Lélio do efêmero ao essencial e ao eterno. Por

meio do olhar e da fala de Lina, o jovem conquista o seu.

Lina é amada não só por Lélio, mas por todos que a cercam. E este amor que a cerca

vem justamente do fato de ela ser sábia. Sua sabedoria a torna útil e generosa e faz

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convergirem todos para sua presença, mas sempre no sentido de libertá-los e não de mantê-

los presos a ela. Espírito livre, Rosalina refaz o seu destino ao fugir, sem que precisasse fazê-

lo. A fuga desnecessária é uma alegoria de sua total liberdade. Ela não precisa de

subterfúgios, mas pode inventá-los apenas para que sinta prazer em desfrutar um momento de

forçada dissimulação.

A “Estória de Lélio e Lina” aponta, entre outras coisas, para o binômio

liberdade/aprendizagem. Novamente somos tentados a comparar esta estória com “Cara-de-

Bronze”, porque é curioso e instigante pensar que nesta segunda narrativa, o velho, que

deveria ser o portador da sabedoria e do sentimento de liberdade, necessita de um jovem rapaz

para trazer-lhe o essencial, que nós entendemos como a Poesia, fonte de conhecimento,

prazer, e erotismo. Na segunda estória, também esses aspectos são trazidos à tona e

valorizados; também há uma viagem realizada pelo jovem, mas em direção à mulher, ao

amor, à velhice e ao conhecimento.

As situações que Lélio apresenta a ela são sempre novas e, ao mesmo tempo,

pressentidas e conhecidas pela experiência de Lina, que não se assusta diante das coisas, nem

as teme. Recebe-as em seu regaço e coloca-as em seu devido lugar. Lina é uma mulher muito

bem posicionada nesta estória. De fato, todas as jovens moças que aparecem são apenas

pretextos para a chegada de Lina, que congrega em seu ser e em seu discurso as

singularidades destas mulheres que vão aparecendo aqui e ali . Enquanto estas vão pipocando

ao longo da estória, Lina está no eixo da narrativa, e para ela convergem todas as forças

femininas, seja das prostitutas, seja das mocinhas.

Sobre o Velho de “Cara-de-Bronze” é valioso lembrar que este personagem, ao

contrário de Lina, deseja viajar. Ao passo que esta já encontrou o seu lugar, embora pobre e

simples, o Velho, instalado na sua grande e rica casa de fazenda, não se sente satisfeito ainda.

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Ele deseja conhecer o “quem” das coisas, como já dissemos. Mas, em movimento inverso e

complementar ao que acontece na primeira estória, ele precisa do jovem para levá-lo

metaforicamente a esse território que ainda não foi percorrido ou tocado. Parece-nos bastante

orgânica esta trama tecida pelo autor, colocando o tema da viagem protagonizado por pares

que possuem a mesma estrutura VELHO/JOVEM, JOVEM/VELHA, o que nos leva a

considerar que a obra de Rosa prevê uma integridade de temas e de personagens, compondo

uma configuração de seres que fazem parte de uma mesma tribo de errantes, que estão sempre

a viajar e a buscar, guardando seus mapas do tesouro. Lina e o Velho de “Cara-de-Bronze”

são velhos, mas estão em processo de mudança, que, no caso do último, independe das

limitações físicas. Ele precisa fazer sua última viagem. Onde estará a Poesia que ele deseja

encontrar? Quanto a Lina, parte no meio da noite pervertendo as regras do bom viver. Parte

como uma fugitiva, por puro gosto de partir e de perverter. Por puro desejo de uma vez mais

celebrar a orgia da vida que só as bênçãos de Eros propiciam. Por isso, como afirma o

narrador a respeito de Lélio e Lina, no momento da partida: “E se olharam, era como se

estivessem se abraçando.” (ROSA, 1994, p. 802) Lina é uma mulher velha que já encontrou o

“quem” das coisas, e Lélio é um jovem rapaz, mas a despeito da diferença de idade, o

encontro entre eles é possível. Talvez justamente em função desta diferença é que o

encontro/diálogo se dê de forma tão fluida e harmonizada. O que Lina viu, Lélio desconhece.

A concretude do vivido marca a fala de Lina, que demonstra ver sempre onde o olhar de Lélio

ainda não alcançou. O que é fragilidade e debil idade em Lélio, o olhar de Lina transforma em

novos e imprevistos modos de ver. É o que nos lembra o narrador: “Dona Rosalina era mais

forte do que a tristeza. De lance, o olhou – ria um pecado de riso quente o esmalte de seus

velhos olhos de menina – como um lume d’água entre a folhagem, retombado e com reenvio

de claridade.” (ROSA, 1994, p.768)

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Tudo o que dissemos sobre a obra de João Guimarães Rosa nos leva a pensar que um

fio une um texto ao outro. Nas estórias apreciadas, os velhos, as crianças e os jovens mantêm

estreito diálogo, interagindo por meio de um discurso que é sempre entrecruzamento de

olhares que se buscam e se complementam. A penetração de um olhar no outro reconstitui

quaisquer lacunas que possam ocorrer e possibilita uma articulação entre os pontos de vistas

ou distintos campos de visão. Por isso o olhar de Lina para Lélio é um olhar completo, que

une as partes soltas e reconstitui o que em Lélio é, ainda, fragmentação. “Mas ela o olhava de

um jeito que fazia bem: como se tivesse orgulho dele, acreditasse em seu valor de pessoa –

‘Tudo está certo, meu Mocinho. Tudo vale é no fim. Guarda tua coragem’ – foi o que disse.”

(Ibidem, p. 768)

A leitura desta estória nos remete às belíssimas imagens do poema de Fernando

Pessoa, “Eros e Psiquê” , alegoria da busca do amor e do auto-conhecimento. Também neste

poema-narrativo, os protagonistas, ou o protagonista, faz uma longa viagem à procura de

alguém. A revelação que tem, ao final do caminho, metaforiza a construção da alteridade, de

que temos falado ao longo deste trabalho, e sobre o que os textos de Guimarães Rosa tanto

nos fazem pensar. Por isso, o transcreveremos na íntegra, buscando encontrar neste poema os

ecos da narrativa poética de Guimarães Rosa. Veremos que a frase de Lina “O que existe na

gente, existe nos outros” (ROSA, 1994, p.790) , foi um dia evocada também por Fernando

Pessoa em “Eros e Psiquê” .

Eros e Psique

CONTA A LENDA que dormiaUma princesa encantadaA quem só despertariaUm Infante, que viriaDe além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,

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Antes que, já libertado,Deixasse o caminho erradoPor o que à Princesa vem.

A Princesa Adormercida,Se espera, dormindo espera.Sonha em morte a sua vida,E orna-lhe a fronte esquecida,Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,Sem saber que intuito tem,Rompe o caminho fadado.Ele dela é ignorado.Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –Ela dormindo encantada,Ele buscando-a sem tinoPelo processo divinoQue faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuroTudo pela estrada fora,E falso, ele vem seguro,E, vencendo estrada e muro,Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,À cabeça, em maresia,Ergue a mão, e encontra hera,E vê que ele mesmo eraA princesa que dormia.

(PESSOA, 1986, p. 115)

5.4 UM OLHAR PARA O MISTÉRIO: "NENHUM, NENHUMA"

Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não. ("Nenhum, nenhuma", p. 423)

Este conto fala da primeira experiência da solidão e do sentimento da solidão. Nesta

narrativa aparece novamente um menino que, inicialmente assim tratado, passa a ser chamado

de o Menino, como acontece em "As margens da alegria" e em "Os cimos". Um dos

elementos que nos chama a atenção é o espaço físico em que os personagens convivem: "A

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mansão, estranha, fugindo, atrás de serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio,

que proíbe o imaginar." (ROSA, 1994, p. 423)

Os detalhes da estória são mais sugeridos do que dados, como uma suposição até

mesmo com relação ao lugar: "Ou talvez não tenha sido numa fazenda, bem no indescoberto

rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se, nunca mais." (ROSA, 1994, p. 423) É em

torno de sugestões que a estória vai sendo contada e tecida, e as certezas são pouquíssimas,

nessa ambientação física e psicológica, narrada com tantas frases interrogativas, como

revelam os trechos: "... que a data era a de 1914?" (ROSA, 1994, p. 423) "Alguém mais,

pois, ali , ali entrara?" (idem) "Infância é coisa, coisa?" (ROSA, 1994, p. 424) "A Moça e o

Moço vieram buscá-lo?" (ROSA, 1994, p. 425) Tantos questionamentos feitos pelo narrador

são, sem dúvida, o reflexo de uma abordagem que desloca para um lugar desconhecido as

certezas do próprio narrador e do leitor. Subjaz a esta abordagem aquela forma de ver o

homem e a linguagem que o constitui, ou seja, o mundo não é lugar das certezas, se não da

certeza de que deve ser questionado. Por isso estes personagens e a forma como são narrados

às vezes nos parecem perturbadores, pois de um modo geral, fomos acostumados com um

narrador que apresenta as verdades, dentro de uma estrutura narrativa mais lógica e

convencional. Mas nunca é demais lembrar que Guimarães Rosa só pode ser lido com um

novo olhar, de quem saiba mudar o foco constantemente, que aceite o incômodo das

incertezas que o seu texto propõe. Grande sertão: veredas é uma narrativa exemplar, no que

concerne à busca essencial e ao questionamento das esferas de que se nutrem as certezas. A

apreensão do passado também não parece um processo fácil, é o que Riobaldo conclui o

tempo todo. Do mesmo modo, em “Nenhum, nenhuma”, tirar a neblina que está por trás da

paisagem do passado não é tarefa simples, neste caso nem para quem recorda, nem para o

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leitor que ouve/lê as lembranças do protagonista. Com relação a Grande sertão: veredas,

Garbuglio enfatiza que:

A manutenção do interlocutor na penumbra nutre e amplia as esferas da interrogação,fazendo o narrador voltar-se sobre o próprio texto, numa atitude crítica que insiste nadificuldade de contar (...) para enfiar a idéia, isto, para fisgar a essência e não a aparência domundo, numa palavra totalizadora. Ora, sendo o mundo em sua essência, a palavra deGuimarães Rosa alcança o que lhe dá essência, porque o mundo é a palavra, e no caso umapalavra polifacetada, como a realidade que ela conseguiu criar. (GARBUGLIO, 1972, p.46)

Nesse sentido, sempre é válido e oportuno pensarmos em como o tema do olhar está

ligado a um novo modo de engajamento, que é o questionar. Assim, quando pensamos em

modos de olhar, em pontos de vista, e quando vemos como estes pontos de vista se

apresentam tão desenraigados do modelo tradicional em se tratando dos personagens criados

por Rosa, não nos resta dúvida da grande alegoria que é toda a sua obra, considerada também

por este novo prisma que temos tentado revelar. Conforme Henriqueta Lisboa, os primitivos

são os personagens diletos de Guimarães Rosa, " os quais devem o que pensam ao que vêem,

tocam e degustam..." (LISBOA, 1966, p. 20) Deste modo, a leitura de Guimarães Rosa

constitui a oportunidade de visualizarmos um complexo narrativo em que se adecúam

perfeitamente a forma e o conteúdo, ou seja, nos caminhos sempre imprevisíveis da narração

rosiana aparecem os personagens também com procedimentos imprevisíveis, como se

houvessem existido independentemente do seu autor, e tivessem sido captados, agarrados por

ele. Esses seres insólitos compõem o cenário de uma palavra também insólita.

"Nenhum, nenhuma" é uma estória muito especial para nós, porque é, outra vez,

como aconteceu em "A Benfazeja", um convite a olhar, ou melhor ainda, a ir construindo o

olhar junto com as dúvidas do narrador. É um conto em que essa busca do primitivo aparece

especial e delicadamente ilustrada pela presença da velhinha. " ... uma velha, uma velhinha –

de história, de estória- velhíssima, a inacreditável." (ROSA, 1994, p. 424) O deslocamento

temporal que se dá entre essa velha e o menino não constitui um impedimento para que haja

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uma aproximação entre eles. Ao contrário, ela concentra a força do passado, a Antigüidade, o

que há de mais anterior no homem, e ele, o Menino é o que ainda é pura pulsação, o porvir.

Pela descrição dela, parecemos chegar a um lugar desconhecido, onde nem mesmo o narrador

conseguiu chegar: "Não sabiam mais quem ela era, tresbisavó de quem, nem de que idade,

incomputada, incalculável, vinda através de gerações, sem ninguém, só ainda da mesma nossa

espécie e figura. Caso imemorial, apenas com a incerta noção de que fosse parenta deles. Ela

não poderia mais ser comparada."(ROSA, 1994, p. 424)

Como em "Fita-verde-no-cabelo" e em "Arroio-das-antas", contos que discutiremos

mais adiante, em “Nenhum, nenhuma” a criança se encontra com o velho. Só que no caso

desta última, a velhice foi inicialmente escondida do menino. Por que a velha estava guardada

dentro de um quarto? Mas, por fim, depois de muita indagação, como mostra o narrador,

"Deixaram-no ver." (ROSA, 1994, p. 424) Aliás, esta narrativa se constrói por meio de jogos

misteriosos, em que a suspeita, a reticência e a especulação se sobrepõem às revelações . O

casarão se impõe como uma paisagem a ser descoberta, em seus cômodos fechados,

inapreensíveis. A própria memória do protagonista é um desafio que o engana, uma neblina

que o impede de se certificar de muitas coisas. Por isso ele não pára de perguntar, como a se

certificar de suas próprias lembranças. Terá mesmo ocorrido tudo que ele vai pontuando? Para

onde ele olha, é o lugar exato onde suas reminiscências habitam? Terá sido ele enganado, em

algum momento, pela fonte pungente de sua memória? Afinal, qual é o olhar com o qual

devemos mirar o passado?

A partir do momento em que o Menino vê a velha Nhenha, dispõe-se para o leitor

uma comparação entre a velhice e a infância, principalmente se tomarmos a velhice como o

foco das atenções. Ambos estão solitários. À medida que a velhinha vai sendo descrita,

percebemos o crescimento e o amadurecimento do Menino. Percebemos também que nesta

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velha "velhíssima, antepassada" (ROSA, 1994, p. 426), há a confluência de muitas infâncias

e juventudes e que o Menino, em um desses momentos singulares da narrativa, é apresentado

como alguém que teve a intuição ou a percepção da unidade da qual faz parte: "Atordoado, o

Menino, tornado quase incônscio, como se não fosse ninguém, ou se todos uma pessoa só,

uma só vida fossem: ele, a Moça, o Moço, o Homem velho e a Nhenha, velhinha – em quem

trouxe os olhos." (ROSA, 1995, p. 427)

É uma história que fala do crescimento, conquistado no espaço sombrio de um

casarão, onde o desvelamento e o mistério da velhice se dão ao mesmo tempo em que a

entrada do Menino em um outro universo é sugerida. É para o amor e para a velhice que ele

olha. O tempo que passa fora de casa e distante dos pais é o tempo em que ele apura o olhar.

Quando retorna e reencontra os pais, o impacto é grande. Ele volta com nova percepção das

coisas, com outro olhar. Por isso, experimenta um sentimento angustiante de indignação

diante dos pais. É a indignação de quem conquista um novo olhar e percebe que os outros

nem se deram conta disso. Já em casa e ao constatar que os pais nada perceberam, a narrativa

passa para a primeira pessoa do singular: "E eu precisei de fazer alguma coisa, de mim,

chorei e gritei, a eles dois: - "Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se

esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!" (ROSA, 1994, p. 428)

Aqui fica claro o ponto de vista da criança, quando diante do adulto. Trata-se de

uma fala que sintetiza a maior parte dos pressupostos que temos defendido. Para Henriqueta

Lisboa, "o conto-poema" 'Nenhum, nenhuma', construído de forma revolucionária, tramado de

névoa com uma ou outra lucilação, termina de modo convenientemente realista, em corte

insípido, como se fosse o término da própria infância subitamente arrancada ao seu reino."

(LISBOA, 1966, p. 24)

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Em "Nenhum, nenhuma" temos, antes de tudo, uma atmosfera, uma insinuação ou

sugestão dos fatos, mais do que a presença destes. Na verdade, o que aí vemos é uma

possibilidade de encontro entre os dois pontos-limites da vida: a infância e a velhice.

Certamente que uma apreciação deste conto nos propiciará uma compreensão maior dos

aspectos infantis que sobrevivem na velhice e vice-versa. O protagonista é, como a maioria

das crianças de Guimarães Rosa, um introspectivo, mas que se distingue das outras por um

dado bastante material que é o espaço físico. Toda a cena se passa dentro de um casarão, o

que dá ao protagonista ainda maiores chances de mergulhar dentro de si mesmo e tentar

desvendar os mistérios do amor (que acaba de descobrir) e da morte. É importante

observarmos o olhar introspectivo deste menino, e o impacto deste olhar quando ele retorna

à casa paterna, porque só aí percebemos o quanto ele aprendeu e como o seu modo de olhar se

distinguiu do dos pais, o que, não obstante o deixe frustrado e infeliz, é sinal de consciência.

Esta narrativa é portadora de uma memória. E, como tal, constrói-se de forma

fragmentada, sincopada, com idas e vindas que, longe de abrirem a narração, tornam-na

hermética, justamente porque esta se recompõe à medida que as lembranças vão se

recompondo. A linguagem articula-se perfeitamente com as lacunas da memória, por isso sua

trajetória é feita em zigue-zagues, em tons de menor claridade, porque agora o território a ser

vasculhado e remexido é o do passado; daí a dificuldade para fazer cindir o passado e o

presente, nessas teias que se confundem tanto para o protagonista.

Em Grande sertão: veredas, há um ensinamento que pode nos ajudar a compreender

a misteriosa estória de “Nenhum, nenhuma”. Ali, o protagonista também se dedica a rever o

passado:

O que vale são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contarseguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento quereal eu tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse

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diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor ébondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do queoutras, de recente data. (ROSA, 1994, p. 68)

5.4.1 Um olhar para a experiência

No conto em relevo, o aprendizado do protagonista é o da recordação ou da tentativa

de situar-se na neblina do passado, separando as reminiscências, apalpando-as com os olhos.

Estamos diante de uma estória que permanece como um mistério tanto para o menino quanto

para o leitor. A visão que o protagonista tem é a de quem quer compreender o passado. Não é

uma narrativa de fácil compreensão e interpretação, porque há um jogo de vozes que se

emaranham. O Menino se narra ou há um narrador que o narra? A perspectiva de alguém que

vê, ama a lembrança e dialoga com ela é, neste conto, muito bem mostrada. O percurso do

Menino é refeito à medida que ele mergulha nas suas lembranças. A atmosfera de mistério,

própria de quem se propõe rever suas lembranças e entrar em contato com elas permeia as

paisagens externa e interna. Como leitores dessa estória, a tarefa exigida para a decifração do

enigma, é, uma vez mais, um depuramento também do olhar. Ao passo que o texto se

desenrola, percebemos que não é possível uma simples leitura de enredo, mas que

necessitamos de um cuidadoso trabalho de descortinar pouco a pouco os véus que encobrem o

cenário que é o casarão onde se desenrola a estória. E nesse sentido, o enredo é tão misterioso

como o casarão. Nada é dado como uma realidade concreta; o que há são insinuações. Por

isto, o nosso olhar precisa aprender a desvincular-se dos dados prontos, da referencialidade

dos fatos. Não só o protagonista exercita o olhar, em busca de suas reminiscências; também

nós, leitores, exercitaremos de um modo diferente a leitura, que se constitui, neste caso, num

ato de revelação do passado, processado num jogo entre o presente e o vivido, entre o certo e

o duvidoso, entre o dado e o evocado, entre o velado e o desvelado. Isto requer uma visão que

vá aos recônditos do texto, porque esta narrativa brota dos recônditos. O texto vai sendo

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construído como decorrência do olhar do menino ao captar as suas lembranças, que não são

mostradas com exatidão. Portanto, também o leitor precisa ir construindo as lembranças do

protagonista, ao mesmo tempo em que elas são narradas e insinuadas.

Trata-se de uma estória das lembranças, um acontecer que se dá por meio de um

rever. Estamos diante de um personagem cuja voz, diluída à do narrador, retoma ou tenta

retomar as vivências do passado. O cenário é um casarão afastado da cidade para onde o

menino é levado, não se sabe bem porque e para quê. Nesta estória o leitor dificilmente

consegue ver com objetividade o que se passa, ou o que de fato se passou, pois o enredo é

traçado mais na penumbra do que na claridade. Ver é, neste caso, um exercício de

descortinamento dos fragmentos dispersos aqui e ali. Se há revelações, elas são dispersas e até

confusas. Daí a importância de um leitor perspicaz e sensível, que mergulhe na narração mas

no momento mesmo em que ela é construída, porque nesta estória tudo é evocação, sugestão,

atmosfera. Distante das claridades dos campos e dos espaços iluminados em que se

movimentam as crianças das outras estórias, não podemos perder de vista o que esta estória

nos conta, que é o próprio esforço de não perder os fios da memória, de criar uma trama em

que estes fios se reconcil iem para o menino como algo que ele possa recontar. O esforço do

personagem é concil iar os dois olhares: um em direção ao passado, e o outro em direção ao

próprio ato de narrar, que é feito de forma truncada, uma vez que no momento da narração

ainda não estão dissolvidas totalmente as teias das lembranças, que se confundem para o

protagonista. Como narrar se o narrado ainda é duvidoso? "Infância é coisa, coisa?" (ROSA,

1994, p. 424) Por isso tantas perguntas na construção da narrativa.

Neste conto misterioso, o Menino vai penetrar em um universo de imagens que

povoam a sua consciência. Se há um olhar que busca absorver as experiências e o significado

destas, este é, parece-nos, um olhar que faz uma passagem pela memória. A indagação deste

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Menino é de outro teor e provém de outro canal. Ele indaga muito, porque neste caso muitas

situações foram recolhidas do próprio passado. E assim a visão tem um outro tipo de

qualidade. Ver torna-se um verdadeiro exercício de distinguir uma lembrança da outra, um

movimento do outro. Talvez possamos dizer que o olhar deste protagonista está mergulhado

na indeterminação. O Menino se movimenta numa zona de indeterminações e, com ele, os

leitores e o narrador. O discurso deste último, cuja voz – como dissemos - dilui-se à do

protagonista, é um discurso próprio de quem penetra nos meandros do tempo que passou. Há

uma dinâmica entre a ação, o que se viveu, e a percepção do personagem. Antes desta

narração, aconteceram outras experiências que, graças ao olhar contemplativo acionado pelos

trabalhos da memória, podem vir à tona, porque as percepções do Menino estão impregnadas

de lembranças. Conforme afirma Ecléa Bosi a respeito da memória:

...A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo,interfere no processo "atual" das representações. Pela memória, o passado não só vem à tonadas águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,"desloca" estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece comoforça subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.(BOSI, 1994, p.46-47)

Esta estória, mais que um relato de reminiscências, foca-se no ponto de vista de

quem teve a oportunidade de se deslocar de um espaço conhecido ( a casa paterna) para uma

casa em que o desconhecido, o sonho e o devaneio se inserem nas próprias experiências. Ao

retornar à casa dos pais, estes são apontados, de forma radical, como seres que ficaram

cristalizados, parados no tempo. Ao vê-los, tem-se então a tensão entre os dois olhares: o

olhar do menino, povoado de lembranças inquietantes, e o outro olhar que surge quando o

menino - em função mesmo de suas experiências e lembranças - tem outra percepção dos

pais. Neste momento final, a narração em primeira pessoa, dilui-se à própria fala do menino,

num desabafo que vem coroar essa estória com o impacto revelado nesta cena: “E eu precisei

de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: - ‘Vocês não sabem de nada, de

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nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!...’ (ROSA, 1994,

p. 428)

Esta narrativa nos mostra também que, para educarmos o nosso olhar é necessário o

distanciamento das coisas, lugares e pessoas conhecidas. Envolvidos que estamos com a nossa

própria realidade, nem sempre a vemos de outros ângulos. Quando o olhar se torna um hábito,

não é possível ao observador deslocar-se de sua posição. Saindo de casa, o Menino tem a

chance também de penetrar em um outro campo de observações e pode ativar algumas lentes

ainda não usadas. No casarão, o mundo que o aguarda é o do mistério, da contemplação e do

devaneio, alimentos tão necessários para a sua psique. O seu cotidiano é redimensionado, e

ele precisa olhar para o que está escuso. Há muitos quartos, portas, pessoas antiqüíssimas. E o

Menino vai abrir novas portas, ver o velho e o novo. O seu olhar é, sobretudo, evocativo, e as

suas atitudes beiram a ação e a contemplação. A narrativa como que se indefine entre estas

duas zonas, a da ação e a da contemplação, e não localizamos com objetividade o lugar a

partir do qual se situa o presente e onde se situa o passado, nem tampouco o que é lembrança

ou vivência. Mais uma vez o texto rosiano vem-nos tirar do lugar e nos convidar a um

desdobramento dos pontos de vistas. Nesta estória precisamos de uma visão que seja, ao

mesmo tempo que concentrada e profunda, difusa. Porque simplesmente não há definições. O

lugar ocupado pelo protagonista é o da sua própria sombra, e o do leitor, é o da incerteza.

5.4.2 Um olhar para o passado

Em Grande sertão: veredas, Riobaldo diz que : "Contar é muito, muito dificultoso.

Não pelos anos que se já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de

fazer balancê, de se remexerem dos lugares." (ROSA, 1994, p. 121) Para onde olhamos: para

o passado? Para o presente? De quem é este olhar? De quem volta para lembrar, ou o de quem

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narra para não esquecer? Esta educação do olhar inserida nas lembranças faz-nos pensar que

olhar para trás é um jeito específico de ver, e que, aliadas a este gesto, há muitas implicações.

Este constitui um aprendizado de separar, de selecionar, e, ao mesmo tempo, de manter

sempre coesas as partes de uma estória de vida. Além disso, aquele que relembra possui

autoridade para contar, pois o passado é, mais que tudo, uma obra de sua autoria, e, portanto,

ao narrá-lo, as franjas da subjetividade emolduram os discursos que podem se tornar

verdadeiros processos de reinvenção e de ficção.

Neste conto a velhice, representada pela figura ancestral da velha Nhenha, não é

olhada como algo obsoleto, mas com uma qualidade própria do que é primordial. Estamos

diante de uma estória em que o passado e a velhice não são suprimidos em função do novo,

mas o que se busca é a unidade de ambos, possibili tada com a chegada do Menino. Temos

um encontro de várias subjetividades. O olhar do narrador, que também parece ser o do

personagem, não se dirige ao passado de uma forma costumeira, habitual, ou seja, para

simplesmente recuperar as suas lembranças, conforme conclui o protagonista: “Então, o fato

se dissolve. As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um

grande sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde.” (ROSA, 1994, p. 427) O que nos

parece é que o passado permaneceu no narrador-personagem como um estado de espírito. O

olhar do Menino se volta para um tempo indefinido, e ele tateia enquanto vive esta estória:

tateia os móveis, as texturas dos objetos, as impressões sobre as coisas. O seu olhar é também

o olhar de quem se dirige ao passado, como se penetrasse numa bruma, e nela fosse vasculhar

os recônditos de alguma experiência.

Em “Nenhum, nenhuma”, como bem afirma o narrador-personagem, há menção "à

maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-

nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. " (ROSA, 1994, p.172) A

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passagem a seguir revela de que forma a narrativa se constrói em uma espécie de bruma, na

qual se diluem a realidade e o sonho, restaurados, talvez quem sabe, pelos trabalhos de

memória do protagonista:

Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para algo remembrar, da chuva que caía, da plantaque crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais, os baús, arcas, canastras, natenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos, como se um pedaço de rendaantiga, que se desfaz ao se desdobrar, os cheiros nunca mais respirados, suspensasflorestas, o porta-retratos de cristal, floresta e olhos, ilhas que se brancas, as vozes daspessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazer a foco as altas camas de torneado, um catrecom cabeceira dourada; talvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram: ocomprido espeto de ferro, na mão da preta, o batedor de chocolate, de jacarandá, naprateleira com alguidares, pichorras, canecos de estanho. (ROSA, 1994, p. 425).19

Trata-se de uma estória em que a certeza é envolvida ou obscurecida por uma

camada de nebulosidade que atravanca o processo de conhecimento objetivo e de

desvendamento das coisas e dos mistérios. A própria linguagem se constrói de forma

misteriosa e hermética, evocando em suas teias de imagens a realidade, que é puro mistério, e

na qual borbulha a visão numinosa das coisas. Ao contrário dos outros contos em que jorra a

luz, aqui esta é ocultada, para manifestar-se no próprio processo de procura da verdade e da

unidade. A narração é cerceada pelas reminiscências, sempre fugidias. Como pegá-las? Com

que olhos é possível revê-las? Estamos também diante de um menino emotivo e introspectivo

que quer descobrir e indagar. Afinal, como traduz a narração: “As nuvens são para não serem

vistas. Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do estreito caminhozinho por onde a

gente tem de ir – beirando entre a paz e a angústia.” ( ROSA, 1994, p. 424)

O tema do olhar permeia toda a narrativa de Rosa, não se limitando a uma ou outra

apenas. Trata-se de uma espécie de princípio sustentador da obra do autor, o que nos leva a

pensar que olhar neste caso é, sobretudo, um modo de ver, de recuperar alguma coisa

19 (As passagens em itálico são originais do texto. Vale observar que neste conto são intercaladas muitas

frases em itáli co, o que revela as intenções do autor em destacar o que é próprio da narração e o que se confunde

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perdida, processo de educação, de indagação e de busca de respostas. Se assim o

considerarmos, o olhar, na narrativa em questão, é um elemento presente nas camadas mais

obscuras da narrativa, e pode ser considerado como um modo de narrar, não apenas para

trazer à luz os fatos do passado, mas para redimensionar o que foi, o que é, e o que poderá ser,

a partir de um possível descortinamento dos véus tênues que encobrem este misterioso

terrritório da memória.

5.5 AS CINZAS COMO METÁFORA: "ARROIO-DAS-ANTAS”

Seus olhos punham palavras e frases. ("Arroio-das-antas", p. 531)

Ainda na parte que aborda a presença de velhos e jovens, faremos uma breve

apreciação de “Arroio-das-antas, breve narrativa do livro de estórias curtas, intitulado

Tutaméia. Esta estória é ponto de partida para as reflexões sobre um tema bastante notório na

obra do autor, que é a passagem e os ritos de passagem pelos quais passa toda criança até se

tornar madura.

“Arroio-das-antas” conta a estória de Drizilda, uma menina que terá que passar por

situações muito adversas, e nesse processo conviverá com personagens anciãs. Cercada por

velhas, ela cria um laço mais profundo com Vó Edmunda, que representa o seu elo com o

mundo da afetividade perdida. Menina de apenas quinze anos, ela já fora iniciada nos rituais

sagrados do infortúnio. Casada e viúva, nefandada, sem fadas. Mas sua viagem não pára, e ao

final ela deixa literalmente o universo do velho, para mergulhar no novo caminho. É

interessante observar nesta estória o diálogo da velhice com a mocidade. Assim como nesta,

em várias narrativas do autor personagens mais velhas movimentam o destino de outras mais

jovens, renovando a vida de todo o lugar. Como a protagonista de "Fita-verde-no-cabelo",

nesta como se estivesse anelado/diluído em uma das teias da memória).

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Drizilda perde a avó adotiva, numa cidade em que a velhice e a casmurrice se impõem. E

novamente surge neste conto o marcador de lugar: de lá. "Trouxe-se lá" (ROSA, 1994, p.

531). O que sugere a ruptura de vivências em um universo e a brusca inserção em outro.

Esta estória mostra um processo de iniciação, ou seja, um processo de individuação,

se nos pautarmos no fato de que a maturação do indivíduo se dá através dos ciclos

biográficos, do desenrolar do fio da vida, cujas circunstâncias externas em confronto com as

internas vão delineando a forma como o indivíduo elabora, em si, a capacitação de tomar

"posse" de si mesmo.

Nesta estória, que se parece muitíssimo com um conto de fadas, encontramos

Drizilda, "de nem quinze anos" (ROSA, 1994, p. 531) O destino a fez, forçosamente, sofrida

em sua pureza. No entanto, a estória também nos conta que ela transforma essa condição, pois

acredita na mudança. O conto nos mostra que o eu, a individualidade, se coloca novo, perante

a vida, ou, quem sabe seria melhor dizer, na vida.

No primeiro parágrafo, o narrador apresenta-nos um lugar, AONDE, (ROSA, 1994,

p. 531) que pode ser qualquer lugar, todo lugar, ou lugar nenhum, onde nada mais poderia

acontecer, lugar árido: "O despovoado, o povoadozinho palustre em feio e mau sertão... onde

poderia haver assombros?" (ROSA, 1994, p. 531)

As velhinhas, personificações do universo psíquico de Drizilda, têm um papel

importante neste texto e deverão ser apreciadas como nas estórias "Nenhum, nenhuma" e

"Fita-verde-no-cabelo". Exemplo disso é que, somente após a bênção da vó Edmunda,

Drizilda "depôs-se, sacudidos os cabelos (...) Fez tenção: de trabalhar sobre só, ativa

inertemente; sarado o dó de lembranças, afundando-se os dias, fora já de sobressaltos"

(ROSA, 1994, p. 532). É nesse momento que ela "pega a força" em suas próprias mãos. Mais

à frente o narrador usa o termo borralheira, e nesse intertexto com o tradicional conto de

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fadas, "A gata borralheira", esta imagem nos faz pensar que "borralheirar" (ROSA, 1994, p.

532) é viver com as cinzas, estar com as cinzas, mexer nas cinzas.

A presença das velhas revela a superação dos estados limítrofes de nossas

experiências, pois unindo-se à juventude de Drizilda, elas elaboram, juntamente com a

menina, o futuro, e ambas geram metamorfoses.

Pela profundidade dos temas abordados neste conto, é possível fazer uma articulação

entre os olhares construídos nesta estória - o olhar do velho e o do novo - sem perdermos de

vista o diálogo entre esta última estória, "Fita-verde-no-cabelo" e "Nenhum, nenhuma".

Certamente que nos inspiram, sobretudo, a possibilidade de diálogo entre os velhos e as

crianças e a força e delicadeza desse diálogo. Mas, na mesma direção desta leitura, irrompe

outra, que não perde de vista também o fato de que este alinhave tão estreito entre os velhos e

as crianças constitui o reflexo de uma literatura que, sem negar a tradição, redimensiona-a,

dentro de um projeto literário lúcido e coerente.

Embora o conto mostre experiências da vida tão trágica da menina, a força do destino

possibilita transformações. No fundo deste enredo subjaz a idéia de que a menina pode contar

com as suas próprias forças, catalisadas também pela presença das velhas que a cercam. A

interação favorece o movimento nesta estória, e o que parecia estar absolutamente estagnado,

ou seja, o destino de Drizilda (traçado) e a velhice das mulheres (irreversível) não era o que

parecia ser. Mas a dinâmica que ocorre só foi possível mediante as trocas interpressoais, por

meio das quais a potência da vida ganha e reassume o seu lugar. A estória nos mostra o

elevado trabalho que se dá, em cada indivíduo, e o seu poder de transformação. Mostra

também, de modo análogo ao que ocorre em “Fita-verde-no-cabelo” , a travessia que um

jovem adolescente precisa fazer, de um lugar ao outro, seja este lugar físico ou espiritual. O

tema da passagem é outra vez abordado e valorizado, com novas pinceladas do autor que

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mostrou saber captar os intervalos existentes entre o tempo da infância e o tempo de deixá-la

para trás. Drizilda já passou por um rito de passagem, já não é mais uma menina quando

chega a Arroio-da-Antas. No entanto, embora o sofrimento a tenha feito juntar forças para

recomeçar, este recomeço se dá paradoxalmente num lugar em que tudo parece ter chegado

ao fim: é bom nos lembrarmos que a aldeia é habitada por velhos. O que esta estória nos

ensina sobre a velhice e sobre a infância? Que lugar é este escolhido pelo autor para a menina

fazer seu rito de passagem, fechar as feridas e recomeçar? Esta indagação talvez encontre sua

resposta no fato de que a velhice na obra de Rosa é bastante valorizada. Os velhos

representam a sabedoria concentrada. E se observarmos o conjunto de sua obra veremos que

sempre há um homem ou uma mulher velha desfiando os fios dos enredos mais complicados.

No conto em questão a velhice compõe o destino e se interpõe no destino da menina, não

como fator de interdição, mas de libertação do próprio destino que parecia estar traçado para a

protagonista. Novamente estamos diante de uma estória que fala da travessia. Em “Arroio-

das - antas” as velhas atravessam o portal da vida, e Drizilda acaba de rompê-lo.

5.6 A ESTÓRIA REVISTA: "FITA-VERDE-NO-CABELO”

E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso.("Fita-verde-no-cabelo", p. 981)

"Fita-verde-no-cabelo", do livro póstumo do autor, Ave, palavra, é uma estória

bastante inspiradora no que diz respeito aos vínculos entre crianças e velhos, bem como aos

ritos de passagem pelos quais ambos precisam passar. Nesta narrativa a protagonista, que leva

o mesmo nome da estória, vivencia a perda nos planos material e espiritual, representada pela

fita que amarrava o seu cabelo e pela morte da avó, acontecimento que lhe traz, pela

primeira vez, o sentimento do medo. Perdendo a avó, ela ganha juízo e se vê diante do

desconhecido e do até então ignorado. Ela é a menina que se inicia na vida adulta, perdendo

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sua fita e escolhendo, sozinha, o caminho a ser trilhado. Apesar de sua tenra idade, ela

demonstra uma autonomia que lhe garante uma viagem de transformações, o que se pode

dizer a respeito de todas as crianças das narrativas do autor.

Consideramos esta narrativa uma releitura do tradicional conto infantil Chapeuzinho

Vermelho, cuja versão mais popular é a dos Irmãos Grimm, mas que possui elementos que

remontam a tempos bem mais antigos à época da publicação dos contos de fadas de Perrault,

em 1697. Temos notícia de que esta estória está relacionada ao mito de Cronos, em que ele

engole os filhos que, de modo miraculoso, conseguem sair de seu estômago, e no lugar deles

coloca pedras pesadas.

Na releitura de Guimarães Rosa, o eixo da estória permanece, e a menina prefere

mudar o seu caminho e seguir em direção à outra aldeia. Ao fazê-lo, contudo, o seu olhar

toma outra direção. Ela torna-se transparente e penetrante, hábil em captar as cenas da

natureza que a cerca. Mudando de caminho, o olhar da curiosidade que quer "comer" tudo que

lhe é externo, abre-se com a força da própria natureza: "Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a

linda, tudo era uma vez." (ROSA, 1994, p. 981) Aqui temos um olhar que degusta as belezas

do caminho, e, na contramão deste, um olhar que vê a morte de perto como realidade. Ao

final, sem a presença da avó e com a certeza da presença do lobo, precisará fazer a viagem de

volta. O olhar que a menina terá no caminho de volta fica em aberto para o leitor, mas o que

esperamos é que o olhar de encantamento com que ela inicialmente partiu não se aniquile em

função da revelação da morte, momento em que "toma juízo", como diz o narrador. (ROSA,

1994, p. 982)

“Fita-verde-no-cabelo” enreda uma vez mais o tema da viagem, da travessia. É uma

estória que fala sobre o rito de passagem pelo qual passa todo menino ou menina. Este rito

introduzirá a menina no mundo desconhecido e inesperado da morte, representada, neste

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conto, pelo fenecimento da avó. O conto dilui o tema da perda e da inevitabil idade da morte

na descrição lírica da paisagem absorvida pelo olhar voraz da menina, que inaugura a sua

liberdade no gesto de escolher mudar de caminho que, como descreve o narrador, é mais

difícil que o costumeiro. A estória é curta, e, embora a sua leitura possa ser feita de um

fôlego só, oferece criativas interpretações, porque trata-se de uma narrativa perfilada de

detalhes, de pequenas grandes coisas que a engrandecem. Neste pequeno texto, há dois

momentos bem distintos que geram desdobramentos maiores, se considerarmos as pistas que

vão sendo deixadas nas trilhas da estória.

No primeiro momento, a apresentação da aldeia nos dá um retrato dos moradores do

lugar, por meio de verbos no pretérito imperfeito, sugerindo a continuidade e duração do

tempo que faz as pessoas envelhecerem: “HAVIA UMA ALDEIA em algum lugar, nem

maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e

meninos e meninas que cresciam”. (ROSA, 1994, p. 980) O inesperado processo de derivação

a que é submetido o substantivo velho, ocorre pela anexação da desinência modo-temporal,

vam, ao substantivo velho, gerando um verbo desconhecido na língua portuguesa que é o

verbo velhar. Envelhecer, a partir deste neologismo ganha duplo sentido: é uma ação, e, ao

mesmo tempo um estado, ou seja, diferentemente do sentido corriqueiro que tem envelhecer,

nesta narrativa os velhos velhavam. Embora seja pouco extenso este conto, há que se observar

a riqueza do vocabulário empregado e a impressionante renovação que ocorre outra vez em

termos de colocação dos vocábulos e, sobretudo, da criação de novas palavras, algumas

recriadas por inusitados processos de prefixação e sufixação, dos quais são exemplos:

“ inalcançar” , “plebeinhas” , “encurtoso” . (ROSA, 1994, p. 980)

A estrutura do conto é simples e acompanha, numa relação intertextual com o

clássico conto de Perrault, a estrutura fechada e circular dos contos de fadas tradicionais. O

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que há dentro dessa estrutura é que nos surpreende, e é onde o autor inova. Após a

apresentação do espaço físico e psicológico da aldeia, o leitor pode observar e acompanhar

uma quase imperceptível mudança de ritmo quando a menina, após ser solicitada pela mãe a ir

visitar a avó, faz uma perversão digna da criação de Guimarães Rosa, ou seja, ela muda de

caminho. Neste momento, ela está absolutamente só e seguindo o seu impulso criativo, pois

ela desorganiza a estrutura linear do conto de fadas tradicional, mostrando autonomia de

pensamento, embora seja ainda inconseqüente. Mudando de caminho, muda o ritmo e o fluir

da narrativa. Neste segundo momento, o caminho e a paisagem se sobrepõem à protagonista,

como se lhe roubassem a cena. O que importa, a partir deste momento, mais que o próprio

enredo, é o que é visto. Ver se torna, então, o foco do conto, no qual a natureza contemplada

parece estar em êxtase, como a própria natureza da criança da estória. Assim como o

protagonista de “São Marcos” , a menina é uma observadora pertinaz, e vê até mesmo o

inalcançável. É o que nos traz o narrador, em formas de imagens, na belíssima passagem:

“Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se

com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem

em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e

incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.” (ROSA, 1994, p. 981)

Desvendada a paisagem, a garota chega à casa da avó, inaugurando-se, a partir de

então, outro momento da narrativa. Do espaço aberto em construção ela penetra no espaço

fechado, em desconstrução. O frenesi da viagem cede lugar ao recolhimento do quarto, onde,

a avó, fraca e moribunda, a aguarda. E é lá dentro que a garota percebe que perdera em

caminho a sua fita verde, símbolo da infância, que foi perdido justamente quando a menina

resolveu mudar de caminho e lançar-se aos prazeres da contemplação. Perde a fita, e,

posteriormente, a avó. No entanto, não há o sentimento da fatalidade nestas duas perdas,

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porque a garota e a avó mantêm um diálogo que as une e que prepara a neta para o desfecho,

dando-lhe, paulatinamente, consciência da morte.

Por analogia, remetemo-nos ao mito de Adão e Eva, na passagem em que os dois se

lançam na aventura do conhecimento da árvore da vida. Para que usufruíssem do prazer de

conhecer, precisariam abrir mão do paraíso e do gozo perene do Éden. Mas não podemos

viver para sempre no Éden, e a vida representa perigos, frustrações e perdas. Fita Verde, ao

“escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso” (ROSA, 1994, p.

981) desvia-se do caminho conhecido, e, rompendo a ordem que sua mãe lhe dá, opta pelo

caminho do auto-conhecimento. Sua atração e curiosidade diante do novo fazem parte desta

natureza do ser humano que diz respeito à busca do desconhecido, e que os mitos traduzem

com tanta propriedade. A escolha de outro caminho neste conto nos remete à escolha de Adão

e Eva ao colherem o fruto proibido. Lembra-nos também a desobediência criativa da esposa

de Barba Azul, que, embora tivesse acesso a todas as chaves do palácio, desejou abrir

justamente a porta proibida. E, não obstante tenha sofrido as consequências deste acinte, ela

se tornou uma mulher acordada para a presença do perigo que rondava a sua morada. Saiu do

paraíso da inconsciência, e ganhou o conhecimento do bem e do mal. Como nos lembra

Joseph Campbell, “O Jardim do Éden é uma metáfora que desconhece o tempo, desconhece

os opostos e vem a ser o centro primordial a partir do qual a consciência se dá conta das

mudanças.” (CAMPBELL, 2005, p.53)

Deste modo, percebemos que esta estória é uma metáfora do processo de iniciação e

de autoconhecimento, uma viagem de descoberta do mundo desconhecido, representado pelo

caminho “ louco e longo”, pela consciência da perda da fita - bem material e simbólico - e pela

perda da avó, bem humano e insubstituível. Aliás, este é um tema constante na obra rosiana e

muitas vezes vem diluído em uma ou outra forma de viagem que os personagens sempre

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fazem. A viagem, na ficção de Guimarães Rosa, deve ser compreendida também como uma

imagem, um evento metafórico que sugere a passagem de um estado interior para outro,

catalisado pelos obstáculos oferecidos nos caminhos trilhados pelos personagens, seja no

Mutum, no Urubuquaquá, sobre a canoa numa terceira margem do rio, do alto do avião que

sobrevoa a cidade nova, não importam tanto os lugares, mas o que eles evocam como espaços

de travessia de um estágio para outro. Por isso, vale dizer que as estórias de Guimarães Rosa

trazem em sua estrutura mais profunda os aspectos do mito e os seus desígnios, pois atingem,

por meio de imagens, a realidade invisível das coisas. Num autor como Rosa, em que o

conceito de realidade é o tempo todo colocado em situação polêmica, o mito propicia ao leitor

estabelecer um outro canal de comunicação com o mistério do texto e o seu próprio mistério.

Conforme Joseph Campbell “Toda mitologia tem a ver com a sabedoria da vida, relacionada a

uma cultura específica, numa época específica. Integra o indivíduo na sociedade e a sociedade

no campo da natureza. Une o campo da natureza à minha natureza. É uma força

harmonizadora.” (CAMPELL, 2005, p. 58)

Embora nesta estória haja o sentimento da perda - e de fato ela ocorre -, esta não

está carregada de fatalidade, e temos a possibilidade de transcendermos os acontecimentos e

vislumbrarmos outras nuances que não se encontram na superfície da estória. O diálogo final

entre a garota e a avó, além de uni-las num momento limite para as duas - a primeira

descobrindo que perdeu sua fita, a segunda vivenciando a morte -, acorda a neta para a

realidade da morte e para uma tomada de consciência. Temos, deste modo, novo rito de

passagem, que foi sendo preparado no caminho que a menina percorreu até chegar à casa da

avó. Na verdade, há alguns momentos ritualísticos e de tensão: o primeiro é a saída da casa

materna, mas desta vez a partir da liberdade que a menina conquista, interditando os

conselhos da mãe. O segundo é a descoberta de todas as belezas que este novo caminho

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proporciona, a exuberância da natureza, o inebriamento da menina diante desta. Em seguida,

há o mergulho na casa da avó, onde reina o silêncio e a doença. Lá fora, tudo se inaugura,

dentro tudo fenece. Mais uma vez apreciamos um conto de Guimarães Rosa em que ocorre

este paralelismo entre os espaços: dentro e fora; campo aberto, casarões sombrios. Se

voltarmos aos contos “Nenhum, nenhuma”, ou à novela “Cara-de-Bronze”, por exemplo,

veremos a tensão entre estes espaços e, ao mesmo tempo, a relação de complementariedade

existente entre eles. Em “Fita-verde-no-cabelo” , a natureza pode ser lida como a

representação do universo próprio da infância que, inevitavelmente, precisa ser acrescido de

outros conteúdos, fato que pode ser sugerido pela entrada da menina na casa da avó, onde

reina a velhice. Quando a avó, ao ouvir o chamado da neta, diz: “ – Puxa o ferrolho de pau

da porta, entra e abre. Deus te abençoe.” (ROSA, 1994, p. 981) define-se a abertura e a

entrada da menina em outro mundo, do qual ela sairá transformada. Certamente, o caminho

de volta será diferente, não em função do caminho em si, mas porque às experiências

anteriores da garota foi somada outra, que não é uma experiência qualquer, mas a da morte.

No momento do encontro da neta e da avó percebemos que a menina, antes exaltada e

inebriada, agora se espanta.

As observações que faz sobre o corpo da avó revelam as diferenças gritantes entre o

mundo das duas. Com relação ao léxico empregado, os adjetivos são bem distintos daqueles

empregados pelo narrador quando da descrição do caminho pelo qual ela vinha

sobejadamente”. (ROSA, 1994, p. 981) Palavras como “ agagado”, “rebuçado” , “rouco”

(Ibidem, p. 981) substituem as expressões luminosas como “avelãs do chão não voarem”,

“borboletas nunca em buquê nem em botão”, “plebeinhas flores, princesinhas e incomuns”

ou o supreendente enunciado “Saiu, atrás de suas asas ligeiras” (Ibidem, p. 981). Tais

expressões, reveladoras de uma natureza exuberante, ao serem substituídas num momento

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seguinte por outras mais sombrias mostram como, mais uma vez, a narrativa de Guimarães

Rosa nos convida a reconhecer a inconstância da vida, o seu fluxo e refluxo. Num instante

havia a pulsão de vida, noutro a da morte. A perda da fita traz o susto e o medo onde há

minutos havia apenas júbilo. A consciência só é conquistada mediante a constatação da

perda, primeiro do adorno da cabeça - lugar do pensamento, da razão, da consciência - e,

depois, em face ao desfalecimento da avó, quando, pela primeira vez o sentimento do medo

leva a menina a um outro plano de suas percepções. É quando ela descobre que perdeu duas

coisas valiosas: a fita e a avó. Neste instante, confessa ter medo do lobo, personagem que

nesta nova estória não é colocado em primeiro plano, a não ser como metáfora do grande

medo arquetípico que nos ronda e se manifesta como uma realidade diante das situações

novas, principalmente quando se trata de perdas. E no caminho, na travessia entre uma aldeia

e outra há o olhar que a tudo tenta alcançar, ainda que só esteja sempre inalcançando. Desta

forma, vemos crescer nesta estória a força propulsora da vida de um lado, ao mesmo tempo

que, do outro extremo da aldeia, lá onde a avó mora, a vida vira falta e se metamorfoseia.

Vida e morte: é o que este conto nos mostra, a harmônica tensão entres elas. Infância

e velhice; Eros e Tânatos. No entanto, a presença da velha, nesta estória, como em todas as do

autor, não deve ser compreendida como falta de engendramento de mudanças. Pelo contrário,

o perfil dos velhos e das velhas na obra rosiana não pode ser visto unilateralmente, mas no

que ele possui de arcaico e de novo, e, sobretudo, no que ele representa de expectativa, de

passagem e de transformação. Nesse sentido, a respeito de “Arroio-das-antas” Cleusa Passos

nos lembra que “Maternais, as velhas deixam de representar avós contadeiras para refazer as

histórias de suas continuadoras, representantes femininas mais felizes. E nessa recriação,

Guimarães Rosa transforma, graças a sutis alterações de velhos, a configuração das

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personagens, embora preserve os ambíguos elos entre a tradição e o novo.” Grifos da autora

(PASSOS, 2000, p. 42)

Fita Verde é a menina que está deixando para trás porções de sua infância. O rito de

passagem é sugerido pelo caminho solitário que ela faz até chegar à aldeia em que mora a

avó. Nesse caminho o perigo não é metaforizado pela presença do lobo, como este aparece na

narrativa de Perrault, mas é substituído pelos lenhadores que não representam ameaça alguma

à menina. É o que nos descreve o narrador: “Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os

lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os

lenhadores tinham exterminado o lobo.” (ROSA, 1994, p. 981) No entanto, o medo existe nela

em potencial e se manifesta no final da estória, quando ela se vê sem a fita verde e diante da

avó morta . A releitura deste conto valoriza o humano ao invés de valorizar o lobo. A menina

está em primeiro plano, bem como qualidades como a coragem e a curiosidade. A morte da

avó é resultado do processo de vida. Não há violência na morte, mas esta é apresentada como

uma experiência de vida que irrompe para a menina em sua simbólica viagem de uma aldeia à

outra, ou, como diz o conto “... a uma outra e quase igualzinha aldeia” (ROSA, 1994, p. 981)

Guimarães Rosa amava os mitos, e nas suas estórias sempre procurou dialogar com

eles. Em “Fita-verde-no-cabelo” o rito de passagem representa uma realidade profunda: do

crescimento para a menina, da morte para a avó. Ritos de passagem para ambas. Para Joseph

Campbell “Todas as crianças deveriam nascer duas vezes para aprender a funcionar

racionalmente no mundo de hoje, deixando a infância para trás.” (CAMPBELL, 2005, p. 8)

Criação, morte e ressurreição são alguns dos conteúdos universais dos mitos. Para o autor de

O poder do mito, “A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de

iniciação, quando você passa da infância para as responsabil idades do adulto (...) Todos esses

rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a

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desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo

uma função responsável.” (CAMPBELL, 2005, p.12) Ora, ao relermos a passagem final de

“Fita-verde-no-cabelo” vemos que o narrador diz: “Fita-Verde mais se assustou, como se

fosse ter juízo pela primeira vez.” (ROSA, 1994, p. 982) Noutras palavras equivale a dizer

que a menina ganhou consciência. É o que este conto nos ensina: a lição da passagem. Sobre

os rituais, lembra-nos ainda Joseph Campbell: “Eis o significado dos rituais da puberdade.

Nas sociedades primitivas, dentes são arrancados, dolorosas escarificações são feitas, há

circuncisões, toda sorte de coisas acontecem para que você abdique para sempre do seu

corpinho infantil e passe a ser algo inteiramente diferente.” (CAMPBELL, 2005, p.8) Na obra

de Guimarães Rosa, os ritos de passagem pressupõem outros procedimentos, e se dão de

forma mais sutil, diluídos na poesia da paisagem, do caminho sempre movente, e dos

personagens sempre em busca de seus caminhos. Na estória em foco é a fita verde perdida o

grande elemento do rito, cuja perda soma-se à outra, que é a morte da avó, e o nascimento da

consciência.

Temas como a liberdade de experimentar caminhos novos, o encontro com a

inevitabil idade da morte - aqui encarada não de forma trágica - apontam para as forças do

crescimento que sempre trabalham na criança. O diálogo entre a menina e avó nos faz pensar

na falta de uma demarcação rigorosa entre a infância e a velhice, não obstante estejam

evidenciadas as peculiaridades de cada fase da vida. Chama-nos a atenção a falta de rigidez na

hierarquização dessas faixas etárias, porque no encontro das crianças com os velhos há

sempre um aprendizado, mas que não se faz superficialmente ou de forma impositiva, e sim

de forma natural e até mesmo inevitável. Diante desses encontros, compreendemos que o que

vale na vida é justamente esta relação especular entre as gerações que, quando genuína,

propicia a todos um olhar sobre o que já foi e uma esperança em relação ao que poderá ser.

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Deste modo, a criança e o velho são dois eixos nestas narrativas, o que só vem comprovar a

preferência de Rosa pelos seres que, de certo modo, estão em situações-limites da vida, ou

que, situadas à margem da sociedade escolhem os seus próprios caminhos.

A alegria e a disposição da pequena protagonista iluminam esta estória e

proporcionam ao leitor a contemplação de uma paisagem vista pelo olhar da criança. A

narrativa é tão breve quanto o é a infância, mas deixa vivas as imagens do caminho que a

menina percorre, como num quadro pintado a céu aberto. E dentro deste quadro, para sempre,

a menina dá o seu salto para a maturidade. Para Goethe “A criança considerada em si mesma,

com os seus pares e nas relações proporcionadas às suas forças, parece tão inteligente, tão

razoável, que nada é capaz de superá-la, e ao mesmo tempo tão disposta, tão alegre, tão destra

que não podemos desejar-lhe nenhuma outra cultura. Se as crianças se desenvolvessem tão

como se anunciam, só haveria gênios. (GOETHE, 1986, p.65)

De fato, a menina desta estória é mais uma personagem infantil de Guimarães Rosa

que nos surpreende e nos encanta pelo seu olhar de encantamento diante da paisagem por ela

mesma escolhida, pelo seu olhar de perplexidade diante da morte, que ela vai integrar dentro

de si como conquista da consciência, pelo seu olhar que reconhece a presença insondável do

Lobo, realidade sempre presente na vida de todas as crianças, símbolo dos difíceis obstáculos

a serem enfrentados no maravilhoso percurso da Floresta. É o olhar de Fita Verde, de

Drizilda, de Brejeirinha, de Miguili m, de Dito e do Menino que nos seduz, por sua abertura

para um mundo sempre inacabado, perigoso e urgente, onde as coisas vistas são vistas para

fomentarem ainda mais o desejo de ver e de perguntar, que é o que mais fazem estes

personagens de olhos grandes, criações de um escritor que também tinha grandes olhos para

vê-los e entendê-los.

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6 O OLHAR DO POETA

Brejeirinha já olhou tudo de cor. ("Partida do audaz navegante” , p. 472)

Gostaríamos de encerrar a análise das breves narrativas, tecendo algumas reflexões

sobre esta em especial, pela alegria que ela contém, pelos seus aparentes paradoxos, pela

concentração de crianças que há nela, e especialmente pela presença intrigante e sedutora do

pensamento mágico e poético das crianças, retratado especialmente nas falas de Brejeirinha,

uma personagem que muito se destaca.

Trata-se de uma narrativa protagonizada por uma menina-poeta, que cria resoluções

fictícias para situações reais. Ela possui um olhar de alegria para todas as coisas e transforma,

por meio de seu olhar poético, questionamentos do plano da realidade imediata, propostas

pelos outros personagens, em incríveis mediações poéticas. Como afirma o narrador: "Mas

Brejeirinha tinha o Dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e refletia-as em si – a

coisa das coisas e a pessoa das pessoas. "(ROSA, 1994, p. 470)

"Partida do audaz navegante" apresenta o pensamento poético das crianças com todo

o seu vigor, fazendo-nos questionar os limites do que é visto e do que é apenas entrevisto,

como tudo aquilo que pode ser captado pelo olhar da criança. Nesta estória até o que é

ausência se torna uma possibil idade de existência. É uma narrativa das imagens claras, da

paisagem diluída às claridades do dia, aos movimentos das crianças, que não param, sempre

conduzidos pela inquietude dos seus pensamentos. O narrador, por exemplo, enfatiza a idéia

de que "parecia não acontecer coisa nenhuma" (ROSA, 1994, p. 469) Na verdade, o conto é

iniciado com este enunciado. Mas se prestarmos atenção, veremos que nem mesmo o narrador

tem certeza disso, uma vez que usa o verbo hipotético "parecia". Trata-se de um narrador que,

embora conheça profundamente os personagens e as situações por ele vividas, prefere usar

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uma palavra "dubitativa". É uma situação narrativa em que novamente vemos oscilar a

onisciência do narrador tradicional com as perguntas que vão surgindo no próprio centro da

efabulação. Tal atitude é uma quebra dos princípios de estabil idade narrativa que coloca em

choque a veracidade dos acontecimentos. Isto acontece de um modo geral na obra de Rosa.

Mas é curioso notar que muitas vezes uma narrativa responde a questões que as outras

propõem. "Partida do audaz navegante", por exemplo, é introduzida pelo seguinte enunciado:

"NA MANHÃ DE UM DIA em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa

nenhuma." (ROSA, 1994, p. 469) Por outro lado, em "O espelho", na contramão desse

enunciado, desponta um outro bem mais adequado ao espírito da obra e dos personagens de

Rosa: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo." (ROSA 1994, p. 437)

A "poetisa" de “Partida do audaz navegante” leva os próprios personagens a um outro lugar,

propondo hipóteses, fazendo indagações insólitas como: "Zito, tubarão é desvairado, ou é

explícito ou demagogo?" As suas palavras são anteriores à lógica. (Ibidem, p. 437)

A primeira narrativa recebe um encaixe que é a estória que Brejeirinha vai

inventando. Contrariando os outros personagens, a protagonista excita-se nas artes de inventar

e de contar. Ao ser criticada, ela diz: "Antes falar bobagens, que calar besteiras..." (ROSA,

1994, p. 471) Esta estória faz um alinhave das situações imaginadas por Brejeirinha e pela

situação inicialmente criada pelo narrador. É o olhar da protagonista que nos leva a uma

viagem minuciosa, pois ela consegue ver o que ninguém imagina, ou seja, o que não está, ou o

que só aparentemente não está. Brejeirinha tem o poder de "olhar tudo de cor" (ROSA, 1994,

p. 472) Diante das perguntas incisivas da irmã, que quer saber o real das coisas, Brejeirinha

encontra respostas extravagantes. Ao chegarem à beira do rio Brejeirinha "Cravou varetas de

bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o

fervor daquilo impunha-lhe recordações." (Ibidem, p. 472) Veja-se a passagem:

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Brejeirinha, não gostando de mar: "O mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...lamentava-se de não ter trazido pão para os peixes.

- Peixe, assim, a esta hora"?" – Pele duvidava. Divagava Brejeirinha:

- A cachoeirinha é uma parede de água..." Falou que aquela, ali no rio, em frente, era aIlhazinha dos Jacarés.

- "Você já viu jacaré lá?" – caçoava Pele. – "Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Ocê vê a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar..." (ROSA, 1995 p.472)

A última fala da personagem aparece-nos como um dos trechos mais fascinantes

desta narrativa, pela sensação de comunhão das dicotomias estar/não estar, ser/não ser. Na

voz e pelo olhar de Brejeirinha é-nos possível flexibil izar, mais uma vez, as certezas calcadas

em critérios que geralmente são limitadores. Ora, quando a menina aponta para algo que

pode existir, ainda que não esteja em algum lugar, somos convidados a rever as possíveis

lacunas e ausências, e imaginarmos que, até onde nada parece acontecer, alguma coisa está

acontecendo. É uma fala que relativiza as noções de tempo e espaço e de presença/ausência.

No fragmento em questão, percebemos que o raciocínio foi invertido: o que a

menina vê é o que podemos ver a partir do que o narrador propõe. Com esta perspectiva, as

possibilidades de visão, ou o campo de visão dos outros personagens e dos leitores pode se

expandir. Trata-se de um olhar que primeiro dessacraliza a nossa certeza, e que, segundo,

questiona o olhar ou o foco do olhar dos outros, propondo o preenchimento de um enunciado

silencioso que, não obstante seu silêncio e sua ausência, está lá. "O jacaré-não-estar-lá" é um

enunciado que nos ensina a rever os espaços silenciosos dos acontecimentos e da própria

narrativa.

Conforme Marilena Chauí, a história da filosofia tem sido marcada pelo interminável

debate entre o ser e o aparecer, o aparecer e o parecer, o parecer e o ser. (NOVAES, 1988, p.

44) Na obra de Rosa podemos nos deliciar com o lugar privilegiado que o olhar ocupa, ainda

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que nos espantemos com as contradições criadas (geradas) nos movimentos desse mesmo

olhar.

Voltando ao enunciado, soou-nos muito interessante o seu emprego em forma de um

substantivo composto. Deste modo, o que seria uma oração com sujeito e predicado é

flexibil izado por um objeto único que complementa justamente o verbo "ver". Brejeirinha

consegue ver onde os outros não vêem. Conforme Novaes (1988, p. 14) para Merleau-Ponty:

O sensível não é feito somente de coisas. É feito também de tudo o que nelas se desenha,mesmo no oco dos intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que nelas figura,mesmo a título de distância e como uma certa ausência: 'o que pode ser apreendido pelaexperiência no sentido originário do termo, o ser que pode dar-se em presença originária nãoé todo o ser, e nem todo ser de que se tem experiência. Um corpo percipiente que vejo étambém uma certa ausência, escavada e preparada atrás dele por seu comportamento. E, noentanto, a própria ausência está enraizada na presença; aos meus olhos, a alma do outro éalma graças ao seu corpo. As “negatividades” também contam no mundo sensível que é,decididamente, o universal.

Vale enfatizar que os pensamentos de Merleau-Ponty têm sido inspiradores para nós,

devido às abordagens redimensionadas que este pensador trouxe para os conteúdos

filosóficos, lançando sobre eles um novo olhar, que também é um profundo e acirrado

questionamento da razão clássica tradicional. Marilena Chauí observa que "Merleau-Ponty

não buscava refúgio no irracional, mas lutava por uma racionalidade alargada que pudesse

'compreender aquilo que em nós e nos outros precede e excede a própria razão.' (CHAUÍ,

2002, p. 7)

6.1 OLHAR E ADMIRAR: “PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE”

A imaginação e a invenção aparecem em vários contos dessa série de Primeiras

estórias.

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Sobre “Partida do audaz navegante”, afirma Wil le Bolle que "A criança, que

aparentemente não entende a significação das palavras, intui a possibilidade de utili zá-las

ironicamente, expressando assim uma postura do narrador, que se coloca ao lado de

personagens iletrados para pôr em dúvida a linguagem ‘certa’". (BOLLE, 1973, p. 88) Não é à

toa que tantas crianças aparecem nesta coletânea. Elas aparecem em seus movimentos, e suas

motivações constituem um mistério para o leitor, porque delas não se pode depreender

nenhum tipo de exatidão nem interesse consciente.

Conforme Henriqueta Lisboa, encontram-se ao longo da obra de Rosa outros muitos

momentos em que reaparece o Menino ou surgem novos meninos e meninas: "Criador de

mundos mágicos, de universos em que se travam lutas épicas, de demônios, de santos, de

loucos, de titãs, de fadas, onde foi buscar os seus grandes personagens? Entre as crianças

açoitadas pelo sofrimento – Miguili m, Dito – os pré-seres, os seres de consciência ainda

incriada – Urugem, Joana Xaviel, Gorgulho, ... os seres empurrados para as grotas do mundo,

os humilhados à espera de redenção.” (LISBOA, 1991, p. 178) O que domina o homem é o

drama da incerteza. A obra de Rosa é presidida pela reflexão acerca de tal incerteza.

6.1.1 Olhar para onde não se vê

“Partida do audaz navegante” pode ser apreciado também a partir de uma perspectiva

que valorize o olhar poético da protagonista Brejeirinha. Partiremos, para tanto, de uma

concepção de Bachelard, segundo a qual a poesia é o "ápice de toda alegria estética"

(BACHELARD 1998, p. 25), é poética do devaneio.

Brejeirinha representa a alegria de viver e as possibil idades de reinvenção do viver.

Ela penetra na esfera poética do brincar e neste brincar estão envolvidos o ato de criar

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estórias, encaixando-as na própria vida, o ato de falar por meio de uma linguagem inexata, o

ato da construção da poesia.

O conto se abre com uma expressão que caracteriza o tempo: "NA MANHÃ DE UM

DIA EM que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma.” (ROSA, 1994,

p.469) Esta aparente falta de perspectiva com que o dia e a narrativa se iniciam realça as

oportunidades que a menina terá para reconstruir esta manhã sem sóis. E é a partir dessa

atmosfera nublada que Brejeirinha terá oportunidades de acionar e vivenciar a riqueza e a

potência do seu ser poético. A imaginação livre de Brejeirinha invade o dia e aquece a manhã

chuvosa. Vivendo genuinamente a poesia, ela restaura na manhã de tédio uma luz que vai

transformar a manhã de todas as crianças do local. Então, surgem imagens novas que animam

o lugar. Uma estória é inventada dentro da outra que, por sua vez, dispõe-se como forma

poética no que diz respeito à construção do novo enredo, bem como na linguagem utilizada.

Brejeirinha consegue, a partir dos elementos concretos do lugar onde vive, instaurar uma

atmosfera de sonho e de devaneio. Conforme Bachelard: "... a infância está na origem das

maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas."

(BACHELARD, 1998, p. 97).

A protagonista deste conto, como os poetas, é uma criadora de imagens. Ela enxerga

grande e belo, e consegue abrir um novo mundo para si e para os irmãos, ao mergulhar no

mundo do devaneio poético. Seu olhar vai além da neblina da manhã, porque dentro dela

residem outras personagens, outras estórias. O mundo atual, aparentemente descolorido, é

revivido nas cores poéticas com que ela pinta a paisagem. Ela não busca o quem das coisas;

ao contrário de Miguilim, em Campo geral, ela não quer entender. Ela deseja criar, reinventar,

colorir o lugar e a estória. A estória do “audaz navegante”, criada por ela, é tão importante

para a pulsação desta narrativa quanto a primeira, ou seja, a que o narrador se propôs

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inicialmente contar. As duas estórias, a de Brejeirinha e seus irmãos naquela manhã de

chuva, e a do audaz navegante, encaixada à primeira pela protagonista, estão estreitamente

vinculadas e se complementam, mas ainda assim conseguimos delimitá-las, e perceber o que é

próprio de cada uma, o que é necessidade de cada enredo. O devaneio poético de Brejeirinha

deixa-a falar livremente: "Antes falar besteiras, que calar asneiras."(ROSA, 1995, p.471) Esse

falar livre, colado a um brincar livre e criativo, está desamarrado das convenções gramaticais

e sintáticas, e corresponde ao próprio falar do poeta, que no caso desta narrativa é o artífice

da palavra, ou, por que não dizer, o próprio João Guimarães Rosa. Neste aspecto a voz, a fala,

o discurso de Brejeirinha revelam as crenças e perspectivas do próprio autor no que diz

respeito a sua liberdade criadora, dentro da qual são possíveis as criações de novas palavras, a

revitalização da sintaxe, os encaixes narrativos, propostas e procedimentos literários.

Brejeirinha é inventadeira, como o próprio autor. Ela inventa uma estória de amor, que, por

sua vez, traduz a estória de amor dos primos, contada inicialmente pelo narrador.

Ao contrário do conto “Nenhum, nenhuma”, esta estória é feita de muitas claridades.

No primeiro caso, também há a evocação a uma estória de amor entre o Moço e a Moça. No

entanto, enquanto nesta narrativa a percepção do protagonista se dá dentro de uma atmosfera

introspectiva e melancólica, em “Partida do audaz navegante”, as paisagens internas são

outras. O próprio espaço geográfico é aberto, enquanto na primeira tudo se passa num casarão

antigo, sombrio, cheio de quartos.

A esfera do poético nesta estória é a que predomina. É por meio da intervenção de

um olhar poético que a estória deverá e poderá ser contada. Somente a partir dos critérios do

fingimento poético é que a sentença “NA MANHÃ DE UM DIA...” (ROSA, 1994, p. 469)

poderá ser mudada pela própria estória que ela passa a inventar. A fábula se torna a própria

vida. A infância se torna a própria poesia. A poesia se metamorfoseia na infância.

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Outro ponto que nos chama a atenção neste conto é o tom de devaneio da

protagonista, com o qual a segunda estória é narrada. Tal devaneio será tensionado pela fala

da irmã mais velha que questiona a veracidade e a falta de lógica do discurso de Brejeirinha,

como revela a passagem abaixo:

“ ‘Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes? – Brejeirinha especulava. –“É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...” Pele lambava-lhe um tico de desdém(...)’ ”(ROSA, 10995, p. 470) Outro exemplo das especulações da menina: “ “ Brejeirinha é assim,não de siso débil: seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações: - ‘Euhoje estou com a cabeça muito quente...’ – isto, por não querer estudar. Então, ajunta: - ‘Euvou saber geografia.’ Ou: - ‘Eu queria saber o amor...’ Pele foi quem deu risada. Ciganinhae Zito erguem os olhos, só quase assustados.’ ” (ROSA, 1995, p. 470)

Enquanto a protagonista radicaliza o discurso metafórico e aparentemente nonsense,

a fala da irmã busca articular este discurso insólito e diferente dentro dos critérios da razão.

Mas Brejeirinha está tão mergulhada na verdade do seu ser poético, vivenciando tão

intensamente as revelações deste ser, que não existem motivos para criar embates com a

irmã. Brejeirinha não precisa se explicar; e se se justifica, ainda assim é por meio de uma

linguagem metafórica, e por uma fala totalmente desautomatizada. Ela fala o que é. E não

consegue distanciar ou separar a sua essência poética dos seus atos de fala.

Acreditamos que a “movência” é um princípio que move a obra de Guimarães Rosa,

e que a linguagem não pode estar separada da vida. A infância não pode se separar do

devaneio. A linguagem da infância revela tal dinâmica, esse fluxo constante que é a vida.

Bachelard é bastante inspirador nesse sentido, porque o seu pensamento revela como o

espirito fabuloso da criança se expressa na sua própria linguagem. Cremos também que a

presença de tantas crianças na obra de Guimarães Rosa é uma perfeita ilustração de como a

vida é um jorro de mudanças, e de ciclos que não param de fluir e refluir. Assim é a

linguagem, porque assim é a vida. Nesse sentido, reflete Bachelard:

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Toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa. Não que ela se deixe impregnar, como seacredita com excessiva facilidade, pelas fábulas sempre tão factícias que lhe contamos e quesó servem para divertir o ancestral que a conta. Quantas avós não tomam o seu neto por umtolinho! Mas a criança que nasceu esperta atiça a mania de contar as sempiternas repetiçõesda velhice contadora de histórias. Não é com essas fábulas fósseis, esses fósseis de fábulas,que vive a imaginação da criança. É nas suas próprias fábulas. É no seu próprio devaneio quea criança encontra as suas fábulas, fábulas que ela não conta a ninguém. Então, a fábula é aprópria vida." (BACHELARD, 1998, p. 113)

Brejeirinha inventa sua fábula à medida que a vai vivendo. E o narrador de “Partida

do audaz navegante” permite à protagonista viver a sua própria fábula. Cedendo o espaço da

sua narração, silencia a sua voz para ouvir a do próprio personagem. É um narrador que

acredita na força de outras narrações e de outros narradores, que sabe escutar e esperar. Mas

se Brejeirinha possui essa vitalidade para a efabulação é, antes de mais nada, porque ela tem

um olhar de admiração para o mundo, o que não é uma particularidade somente dela, mas da

criança de um modo geral e dos poetas, cujo olhar atravessa as coisas. Voltamos a Bachelard,

a fim de que ele complete o que, por ventura, tenhamos deixado de dizer: "Para descobrir a

linguagem das fábulas, é necessário participar do existencialismo do fabuloso, tornar-se corpo

e alma de um ser admirativo, substituir diante do mundo a percepção pela admiração. Admirar

para receber os valores daquilo que se percebe. (BACHELARD, 1998, p. 113).

Por meio do devaneio Brejeirinha redimensiona o real, joga-lhe luz nova que possa

alcançar a todos, inclusive o próprio narrador, que interrompe a narração para ouvi-la. Ela

vive no tempo do devaneio, do devaneio criativo do poeta, pois "É o devaneio que dá o tempo

de realizar essa composição estética." (BACHELARD, 1998, p. 115).

6.1.2 O discurso infantil

No desejo de ampliar nossas reflexões acerca deste olhar póetico na obra de João

Guimarães Rosa, gostaríamos de tecer alguns comentários a respeito de um tema que, para

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nós, é reincidente e que está num dos mais altos patamares de todas as discussões referentes à

infância. Trata-se da questão da imaginação, da força do pensamento mágico na criança, que

a ajuda a encontrar soluções para situações incompreensíveis, por meio de um brincar não só

corporal mas que, transcendendo o próprio corpo, resvala para o pensamento. Aliado a este

olhar de que temos falado, seria conveniente lembrarmos a qualidade discursiva dos

personagens enfocados.

Neste ponto, podemos confirmar a crença de que Guimarães Rosa soube dar ao

imaginário infantil o seu devido valor. Por meio dos meninos e meninas espalhados em

Primeiras estórias, encontramos as crianças de todos os tempos e lugares, e sua presença,

aliada a uma linguagem totalmente adequada ao espírito da infância, revela uma verdadeira

celebração desta.

Um profundo senso de observação e percepção do universo e da linguagem infantil

desenvolveu-se em nós, à medida que íamos penetrando no universo infantil da ficção rosiana.

Ler a infância pela palavra de Guimarães Rosa tem significado especial para nós, que é

devolver um olhar para a potencialidade do imaginário da criança, expressa nas suas atitudes e

na sua linguagem. Na verdade, temos tido a oportunidade de rever a infância que nos cerca

com um olhar muito atento e inquietante.

Ao observarmos as falas das crianças, veremos que elas estão carregadas de poesia,

seja no aspecto fônico, rítmico, ou do ponto de vista semântico. As expressões como "O moço

pintou o céu da casa dele de azul", ou, "quando o palhaço tira a maquiagem ele vira gente?",

"O peixinho morreu porque cansou de nadar.", ou ainda "Estou com dor de cabeça nos pés"

(A.C. S.)20 são alguns exemplos dos falares de crianças à nossa volta, que nos levaram a uma

imediata associação com as personagens infantis de Primeiras estórias, bem como com a

20 As frases em destaque foram extraídas de conversas com crianças de idades entre 4 a 5 anos, com quem

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própria linguagem do autor, repleta de violentas inversões na estrutura sintática das frases.

Podemos dizer que ao dar voz às crianças, Guimarães Rosa apura o que no seu discurso já é

inquietante e imprevisível, uma vez que a fala da criança está longe de ser aquela esperada

pelos adultos, emaranhados no seu discurso racional e padrão.

Não há dúvida de que Guimarães Rosa conseguiu captar o âmago da infância com

uma palavra extremamente "infantil ", no sentido de revelar os mecanismos lingüísticos

específicos da criança, mas sem torná-la um ser alienado. O autor de Primeiras estórias

conseguiu olhar e narrar a criança, colocando-a em foco com o que ela tem de mais poderoso

e dinâmico, que é a sua linguagem. Quando a criança fala algo que o adulto imediatamente

corrige, como por exemplo "Eu tô com frio, vou cobertar", ou "A manteiga vai endurar", "Ela

é minha madrinha e ele é meu madrinho", "Eu estou com dor de cabeça nos pés." (A.C.S.),

está inconscientemente criando as suas hipóteses lingüísticas, e é nessas resoluções

espontâneas que ela vai adquirindo seu repertório e seu domínio sobre a linguagem. É um

falar primitivo e poético, ou melhor dizendo, é poético justamente porque primitivo,

construído sem as acomodações e imposições de uma gramática externa. É uma forma

distensa de falar. O que parece pertencer ao reino do nonsense é, em verdade, o uso da

fantasia para o estabelecimento de uma relação ativa com a realidade.

Trata-se de uma gramática interna ainda intocada pelo discurso dominante. Esta fala

distingue a criança do mundo dos adultos, preservando-a do discurso automatizado, atrelado

às especificidades do dia-a-dia racional e funcional ao qual o homem se submete, e que

Guimarães Rosa tanto procurou redimensionar. A tendência dos adultos é rejeitar este

discurso, introduzindo a criança no discurso em que predominam as concordâncias e a

"coerência" . Se a fala da criança nos parece incoerente é porque, entre outras questões,

convivemos diariamente no período da redação desta pesquisa.

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podemos pensar no discurso poético como fator de incoerência no sentido de desestabilizador

do discurso que faz parte do lugar comum, com o qual todos já se acostumaram. Neste

sentido o discurso poético escapa àquela coerência que não nos tira do lugar. O discurso

poético, inclusive, já foi associado por Bachelard, na sua Poética do Devaneio, ao discurso

infantil . O discurso considerado polifônico por Bakhtin é o tipo de discurso produzido por

poetas e crianças, e que se diferencia do discurso monofônico pelo seu tom incoerente,

imprevisível, chocante.

Ao reproduzir as falas das crianças, por exemplo, o autor revela um procedimento

literário e lingüístico que se aproxima bastante do processo de aquisição e de construção da

linguagem peculiar à criança. É redundante dizer que a língua de Guimarães Rosa singulariza

as experiências, e singulariza-se a si mesma, entre outras coissa, pelo inesperado da sintaxe,

pelas insólitas e inquietas desacomodações na própria estrutura da língua. No entanto, nas

narrativas em que o enfoque é a criança, vemos saltar no texto as criações inesperadas de

Guimarães Rosa, e julgamos que é neste momento que a língua do autor se alia com total

liberdade à linguagem da criança, que é como a do autor, um processo em construção, puro

movimento. Podemos verificar que por meio desta desconstrução ou reconstrução lingüistica

(lexical, sintática, estilística, morfológica), Rosa perverte (assim como as crianças o fazem)

as normas gramaticais, usando procedimentos dinâmicos e extremamente produtivos. Esta

nova maneira de dizer revela, sem dúvida, um intenso desejo de olhar e de mudar os pontos de

vista. Olhado do ponto de vista da criança, o mundo poderia ser lido sob a perspectiva de uma

gramática da fantasia. Gianni Rodari compartilha conosco esta idéia, valorizando por

exemplo, o emprego dos prefixos, na linguagem da criança. (RODARI, 1973, p. 32) Para o

autor, um dos modos de tornar produtivas as palavras, em sentido fantástico, é deformá-las.

As crianças devem fazê-lo, como um jogo, um jogo muito sério, porque as ajuda a explorar

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as possibil idades da palavra, a dominá-la, forçando declinações até então inéditas, e estimula

a liberdade da criança enquanto ser "falante" com direito à sua ‘prosa pessoal’ , (...) encoraja o

inconformismo." (RODARI, 1973, p. 32) Conforme o autor, "Muitos dos "erros" das crianças

não são erros: são criações autônomas das quais elas se servem para assimilar uma realidade

desconhecida." (RODARI, 1973, p. 35)

As crianças, quando brincam, levam isso muito a sério. A articulação da linguagem é

também para elas um jogo em que os sons, o ritmo, a melodia das frases, a opção por uma

palavra inexistente no dicionário, a inversão da posição dos adjetivos, o uso de prefixos onde

estes não são esperados, a improvisação de palavras únicas para traduzir um único sentimento

ou uma impressão das coisas, fazem parte da sua fantasia criadora, bem como da do escritor,

principalmente de Guimarães Rosa. Portanto, quando Nhinhinha diz: “...xurugou...” e outras

tresloucadas palavras, quer dizer que o significado extrapolou os limites do significante, e que

assim como se brinca com objetos concretos, brinca-se com as palavras, e é possível

estabelecer com elas uma relação lúdica e séria. Bachelard já nos alertou para esta delicada

ligação entre os códigos do poeta e da criança. Tal atitude lúdica em relação às palavras,

própria dos poetas e das crianças, é o que faz com que as possibil idades e impossibil idades da

palavra sejam exploradas ao máximo. Ambos, cada qual a seu modo, instauram uma forma de

libertar a língua das redomas que a limitam; a criança ainda sem consciência de que faz, o

poeta com uma consciência que às vezes só se explica pelos seus processos inconscientes, que

permeiam os seus atos de criação. Nhinhinha e Brejeirinha são excelentes exemplos de uma

liberdade absoluta de expressão: elas, assim como Guimarães Rosa, exercitam uma prosa

poética, pessoal e única, e os significados do que dizem só podem ser compreendidos se

entrarmos no jogo do qual são peças fundamentais o inconformismo, a liberdade criadora, a

confiança na mudança.

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Guimarães Rosa cria uma linguagem extraordinariamente impactante

(principalmente do ponto de vista da sintaxe e dos padrões gramaticais de um modo geral),

justamente porque buscou aproximar a linguagem da vida, porque considerava a vida fluxo

constante, instabil idade, mudança. Como a infância. É interessante associarmos estes

"desvios" de linguagem com os próprios "desvios" cometidos pela criança, diante dos quais os

adultos se chocam, ou se surpreendem. Também formas de "desvios" são os textos poéticos,

por sua autonomia em relação aos critérios estabelecidos pelo discurso monofônico. Podemos

dizer que a linguagem da criança, da poesia e de Guimarães Rosa estão numa relação de

semelhança; na obra de Rosa, especialmente para nós que estamos ouvindo o ser das crianças,

é como se não houvesse barreiras entre criança, fala e poesia. Toda criança é poeta, todo poeta

é criança. Se ouvirmos o que elas reinventam e como ressignificam a linguagem, ouviremos

uma poesia em potencial, seja em relação à criança real ou à ficcional. Nesta última temos a

oportunidade de reler o que já intuíamos ou desconfiávamos, porque o autor narra e imortaliza

falas e pensamentos que são próprios de todas as crianças. Se a linguagem precisa ser como a

vida, só mesmo representando-a pela voz daqueles que beiram o irracional, como é o caso das

crianças, dos velhos, dos loucos.

A título de ilustração, organizamos uma listagem das palavras e expressões extraídas

de contos do autor e de frases coletadas por crianças entre três e seis anos de idade, que fazem

parte do nosso dia-a-dia.

"Tanto chove, que me gela!" ("Partida do audaz navegante", p. 469)"Eu desci até o topo da árvore." (A.C.S.)"... E o cajueiro ainda faz flores..." (“Partida do audaz navegante”, p. 469)"Eu acendi a lanterna e está luizando tudo." (A.C.S.)"Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?" (“Partida do audaz navegante”, p. 471)Ao ver o pé da mãe engessado: "Minha mãe está com o pé estragado." (A.C.S.)

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Segue-se um exemplo bem especial da capacidade da criança em imaginar:

"Você já viu jacaré lá?" – caçoava Pele. – "Não. Mas você também nunca viu o

jacaré-não-estar lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar..." (“Partida

do audaz navegante”, p. 472)

Este último trecho revela como o pensamento da criança pode mostrar-se insólito, só

podendo ser expresso se for por meio de uma desacomodação lingüística, ou, no caso, pela

transformação de um sintagma verbal em um substantivo composto.

O exemplo a seguir mostra as resoluções que a criança é capaz de encontrar para

situações delicadas. Ao ver uma colega chorando com medo da mãe morrer, A.C.S (5 anos)

diz: “Não chora, sua mãe vai ficar um ano sem morrer.”

Já no trecho abaixo, a poesia encontra-se justamente onde o desvio gramatical se

instala, quando a palavra nos detém e nos faz voltar a ela.

Agora, eu sei. O Audaz Navegante não foi sozinho; pronto! (ROSA, 1994, p. 474) Mas eleembarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foiindo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito,mais bonito, o navio ... pronto: e virou vagalumes. (Ibidem, p. 474)

O que é desvio consciente em Guimarães Rosa pode ser associado com o que é

desvio inconsciente no falar da criança. Certamente que no texto acima as expressões em

destaque têm uma explicação gramatical sobre a qual não nos deteremos, pois não queremos

nos prender a uma análise formal, já que o que nos importa é a apreciação desta presença

coesa e harmoniosa entre o universo-discurso infantil e a linguagem do escritor, repleta de

desvios, de expressões despropositadas, inesperadas, como é a criança.

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6.2 O MENINO PENSADOR: “CAMPO GERAL”

Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. (...) ("Campo geral", p. 541)

Outra narrativa em que há a presença marcante e lírica da criança é "Campo geral",

novela ou "romancinho", que faz parte do livro Manuelzão e Miguili m. Percebemos que

nessa estória há uma tentativa de captar o mundo circundante pelo olhar da criança. Aspectos

como o tempo, a memória e sua relação com o corpo e a fusão do olhar do adulto ao do olhar

da criança são evocados especialmente, e a infância, lugar e tempo das origens, de onde tudo

plaina e para onde tudo retorna é, uma vez mais, li ricamente reconstruída pelas mãos de um

autor que nunca perdeu o contato com o menino que foi.

Nesta estória falaremos de um olhar que possui algumas particularidades que o

fazem se destacar do dos outros personagens, ainda que, como temos falado, haja um eixo

comum entre todos estes. Mas, o que há de peculiar no olhar de Miguilim?

Temos aqui um olhar que se assemelha ao do filósofo, ou seja, um olhar indagador,

que quer colocar luz onde tudo parece numinoso, e buscar a compreensão para aquilo que só

pode ficar no plano da suspeita. É o olhar do conhecer. Olhar solar, e às vezes lunar,

aproveitando a bela expressão de Perrone-Moisés (1988, p. 333), o olhar de Miguili m abarca

todo o Mutum, pequeno vilarejo onde vive, cercado por vales que o impedem de ver o que há

do outro lado. Mas ele não deixa por menos, e consegue extrair a beleza de suas experiências

imediatas. No entanto, temos nesta estória um instigante e precioso paradoxo. O menino de

que estamos falando é, como o seu autor, míope.

Como temos afirmado, na obra de Guimarães Rosa o sentido da visão é bastante

aguçado. O ato de ver é compreendido não só como ato físico, mas como anseio de

compreender. É valioso observarmos que estes dois aspectos do verbo “ver” não constituem

atividades separadas uma da outra, mas a compreensão ou a tentativa de apreensão do sentido

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das coisas passa sempre pelo sentido da visão. Na verdade, apreciando as narrativas como um

todo, veremos que a urgência de ver não é privilégio de um ou outro personagem, embora

para alguns isto se revele de forma bem acentuada. Mas o que vem à tona é sempre algo,

alguém ou alguma paisagem sendo vista. Neste sentido é bom lembrarmos: quantas vezes não

é o próprio narrador que viu algo que os personagens ainda não viram? A novela que por ora

apreciaremos tem um nome bastante adequado ao tema de nosso estudo. Trata-se da primeira

narrativa de toda a série que temos estudado que traz no título a qualidade implícita ao ato de

ver, ou seja, o título se insinua como um lugar amplo de onde se pode ver muito e

intensamente e também de onde se pode ser visto. Novamente vemos esta singularidade da

obra rosiana, um de seus traços, que é valorizar e chamar a atenção para a estória a partir da

apresentação da paisagem. Neste caso a palavra “campo” , quali ficada pelo adjetivo “geral” ,

evoca longos caminhos a serem percorridos e/ou frequentados, é um convite à experiência do

olhar, que pode se perder na amplitude do que há para ser visto.

No entanto, não obstante sejamos chamados ao percurso de uma paisagem que se

estende diante de nossos olhos, e também aos olhos do protagonista Miguilim, o olhar pode

ser mais uma vez compreendido como um problema quando surge a mãe de Muiguilim,

descrita como uma mulher romântica e melancólica a quem a paisagem não se apresenta

como um deleite para os olhos, mas, ao contrário, é um fator de aprisionamento. Este olhar da

mãe é bastante curioso porque nos leva a estabelecer o contraponto com o olhar de Miguilim.

Nem tudo é tão amplo nestes campos gerais, é o que parece nos sugerir a mãe do menino.

Vemos, neste conto, o olhar da criança, especificamente o de Miguilim, menino míope de

seus quase oito anos, e o do adulto que, embora provido da capacidade de visão - o que falta

a Miguili m – sente-se prisioneira do lugar, do Mutum, porque seus olhos inalcançam ou

perderam de vista a beleza que os olhos do menino alcançam. Enquanto que para Miguili m

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olhar não tem limites, para a sua mãe há muitas interdições proibindo-a de libertar-se. A visão

que esta tem do lugar está subjetivamente condicionada pela insatisfação que sente com

relação a sua vida neste espaço geográfico, ou seja, no Mutum. Como veremos, há uma tensão

familiar que urge em ser resolvida e isto é elemento de turvação para os adultos,

especialmente para a mãe. Por outro lado, o menino, que tem problemas de vista e, portanto,

dificuldades para se locomover sem atropelos e tropeços no seu espaço, consegue ver com

bastante liberdade e autonomia, sem que se sinta tolhido pela paisagem. Neste âmbito é que

esta novela chama especialmente a nossa atenção, no que ela oferece de ingredientes

subjetivos e interpessoais na construção de um olhar delicado e livre como o de Miguili m, em

oposição ao olhar da mãe que só se satisfaz na falta, na lacuna, no desejo, enquanto o do

garoto se maravilha ou sofre na presença do que lhe é oferecido.

A estória de Miguili m e de seu irmão Dito nos leva a pensar que a infância na obra

de Guimarães Rosa situa-se não só em um tempo específico, transformado mais tarde em

reminiscências, mas em um lugar que sempre fez parte da ocupação literária do autor, porque

sendo a movência o princípio por excelência de sua vida e obra, a infância constitui a

principal metáfora reveladora deste constante fluir e refluir. Da infância parte o homem e na

nostalgia dela estará sempre condenado, ao mesmo tempo que será por ela redimido. Na

última curva da vida, na dobra final é ainda para ela que ele se volta. É quando seu olhar,

como o de Miguili m antes de partir, retroage, num surpreendente e vigoroso golpe de vista, ao

lugar de onde saiu o menino, quando tudo era ainda o começo de tudo.

As lembranças que guardamos e com as quais dialogamos mais tarde são formas de

olhar para dentro, de introjetar as leituras que fizemos do mundo e dos outros. Primeiro

desenvolvemos o olhar de fora que tudo capta, para, depois, às vezes muito depois,

elaborarmos tudo o que este olhar captou. Miguil im parece não enxergar direito. O que

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significa isto no conto? O protagonista vê, intui e percebe o mundo a partir da ótica de um

garoto de oito anos. Mas, além disso, se o olhar da criança possui o seu próprio foco, em

"Campo geral", o personagem terá que lidar com um outro desafio: míope e "desastrado" o

garoto não cogita (como ninguém em sua família, e até mesmo os leitores) que muitos

atropelos em que se envolve devem-se ao seu olhar torto.

Sofrendo de uma forte miopia, o personagem vai se abrindo para outras

possibilidades de ver o mundo que o cerca porque o seu olhar é outro. De fato, o desvio da

visão atiça ainda mais as peculiaridades desta e mostra nesta novela como o olhar pode ser

desenvolvido, redimensionado, contextualizado. Enviesado o olhar, o corpo todo deve tratar

de olhar, ou de reaprender a fazê-lo. Miguilim é um personagem que vê o mundo

condicionado por uma limitação visual da qual só tomamos conhecimento ao final da estória.

Devido a sua miopia, ele vê o mundo que o cerca com um outro olhar que não é o esperado,

por exemplo, por seu pai. Assim, se a visão da criança já é determinada por um pensamento

pré-lógico que não acompanha o raciocínio instrumental, em Miguili m concentram-se estas

duas forças ou focos : o da infância (com todas as especificidades que ele contém) e o da

miopia que o leva a ver de um outro modo.

Miguili m é introspectivo. Toda a sua jornada no Mutum consiste em buscar respostas

para questões que o incomodam. Sua visão é para dentro, e somente com o incidente final da

novela, quando coloca os óculos, é que sua visão se direciona totalmente para fora. Na

verdade, é como se toda a novela fosse como uma preparação para este momento de visão

plena, que é o final. Ao partir, o garoto precisa lançar um último e demorado olhar sobre tudo,

para abraçar a dimensão de tudo. Neste sentido, é pertinente refletir sobre o significado deste

olhar do garoto antes de partir. Parece-nos que se trata de um olhar que abarca a totalidade

daquilo que ele nunca pôde ver. Só agora, partindo, é que ele recupera o visto, o entrevisto e

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o não visto. É um olhar para a infância que fica para trás. A partir daquele momento, ele seria

introduzido em outro universo, aprenderia a ler e a escrever.

O olhar, neste caso, é mais que um olhar físico; trata-se de um olhar que guarda para

a memória e que nada deseja perder. Como diz Lúcia Castello Branco, a respeito das relações

entre o olhar e a memória, "O olhar e a memória caminham lado a lado: afinal, o que é o

gesto de memória senão um olhar que se volta para o passado, na tentativa de resgatá-lo? O

que resta do sujeito da memória senão imagens, trapos do passado que o olho olha e vê passar

em direção ao que há de vir?" (BRANCO, 1994, p. 15)

Muito sugestivas são as passagens abaixo, que narram a chegada do doutor à aldeia

de Mutum e os diálogos entre ele e Miguili m:

Miguili m queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.

- Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? (ROSA, 1994, p. 540)

(...) - Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguili m...

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguili m, com todo o jeito.

Olha, agora!

Miguili m olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo ediferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozilhos de areia, a pele daterra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância (...)(ROSA, 1994, p. 541)

E, ainda esta comovente passagem final da novela:

Miguili m olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cimado morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; osolhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto dobrejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. OMutum era bonito! (ROSA, 1994, p. 542)

Miguili m revela, por meio desta metamorfose, a possibilidade de uma vida nova, de um

recomeço e de esperança, levando-nos a refletir sobre aquele otimismo heróico de que nos

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fala Marina Warner, ao se referir aos contos de fadas, ou seja, "um dia talvez sejamos felizes,

mesmo que não seja para sempre." (WARNER, 1994, p. 19)

Como temos observado, os personagens de Guimarães Rosa estão sempre em busca de

alguma verdade, e este processo de auto-conhecimento e de conhecimento do mundo

circundante não se dá simplesmente pela sua construção, mas sobretudo pela reconstrução da

linguagem, que tem a força de uma personagem em toda a obra de Rosa. Ela não diz sobre

algo, ela já é algo, dizendo-se, contradizendo-se, em busca da "matéria vertente". Ora, esta

predisposição, ou esta intenção para a verdade vem revestida de muitas formas. E uma delas é

o sentido da indagação, marcante em várias narrativas, dentre as quais se situa "Campo geral".

Mundo misturado. Se, para o adulto, viver em um mundo misturado já se mostra

como um problema, para a criança, significa a necessidade de fazer perguntas, que não param

de surgir, e de confundir o próprio adulto, a não ser que este consiga reelaborar suas respostas

dentro de um plano mais simbólico e imagético, adequado ao pensar infantil . Miguilim queria

saber "era só a diferença toda das coisas da vida." (ROSA, 1994, p. 493)

Por meio de um estudo do protagonista Miguil im e de sua relação com as questões

que o envolvem, procuraremos fazer uma leitura do universo infantil e de suas

particularidades: sua inserção no meio famil iar, os aspectos poéticos de sua linguagem, o

conteúdo filosófico de suas indagações, e finalmente a relação do adulto frente às

especificidades da criança. Deste modo, ficam evidenciados os sentimentos nem sempre

idílicos que fazem parte dos primeiros anos da vida da criança, bem como o medo, os

sobressaltos e as indagações de ordem metafísica que também acompanham a infância.

Guimarães Rosa não fala de uma criança de um só lugar, mas mostra que a criança

por ele tratada, a norte-mineira, é universal, porque suas tramas são as de sempre, com

características locais. Assim como o jagunço Riobaldo não é só um personagem típico ou

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tipo, mas ao contrário, traz em si as conotações de um homem universal, também as crianças

de Rosa dizem muito das crianças de todo lugar, resguardadas, sem dúvida, as singularidades

do seu topos e de suas condições culturais.

Embora queiramos revelar em "Campo geral" e nas outras estórias protagonizadas

pelas crianças o sentimento, não de exílio mas de celebração da infância, não podemos deixar

de admitir o fato de que criar um espaço para a infância não foi tarefa fácil e que, várias vezes

exiladas, expulsas do Paraíso, as crianças rosianas são em alguns momentos resgatadas para o

seu espaço sagrado. A infância transborda nos textos de Guimarães Rosa com uma vitalidade

e dinamismo que se refletem na própria linguagem sempre nova e inusitada. Rosa tirou a

criança do exílio e pela mão da palavra restituiu a elas a terra encantada a que têm direito.

6.2.1 Olhar para as pequenas coisas

Podemos dizer que as crianças das estórias de Rosa protagonizam narrativas que são

verdadeiras epifanias. À epifania está ligado o sentido do mistério que Rosa sempre

considerou parte colada à realidade. As crianças são dotadas de uma liberdade que lhes

permite criar seus próprios mundos, e deles extrair o que elas necessitam, em alguns casos,

até mesmo para sua sobrevivência. Miguili m, por exemplo, protagonista da novela, ao ganhar

"novos olhos" passa por uma espécie de ascese espiritual iniciada quando ele se depara com a

realidade da morte, reiterada e concentrada neste final iluminado e surpreendente que o autor

nos reserva. É a epifania do olhar, para o qual o garoto se prepara até que se torne merecedor

desse presente. O gesto de o menino olhar tudo antes de partir, agora com os óculos, permite,

não só a ele, mas a nós leitores, revermos o Mutum sob uma ótica nova. Porque durante toda a

estória, fomos conduzidos pelos olhos míopes e meigos de Miguilim, e, mais do que uma

visão objetiva das coisas, o que tivemos foi uma visão subjetiva, motivada pelo olhar interior

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do menino, que não podia enxergar direito. Ao final da estória, somos conduzidos em nosso

olhar a fazermos uma re-visão do lugar e da transcendência conquistada pelo protagonista.

“Campo Geral” é um valioso exemplo dessa epifania do olhar ou propiciada pelo olhar.

Esta novela é também um convite a que olhemos as coisas pequenas e as pequenas

coisas da vida. O viver de Miguili m e de sua família se dá de forma devagar, centrado num

ambiente geográfico cercado de seres aparentemente insignificantes: o tatu, os cachorros, as

formigas, o rastro branco dos caramujos, a cachorra Cuca- Pingo- de- Ouro, o cachorro Gigão,

o papagaio Paco-o-Paco e outros que compõem o cenário de “Campo geral” .

Na leitura desta novela não nos cabe a busca de grandes acontecimentos, mas um

olhar que extraia de uma situação familiar conflituosa, outros tipos (eixos, focos) de conflito

que vão se processar na alma do menino míope à medida que ele observa, pelo ângulo de uma

visão extremamente poética, os acontecimentos exteriores.

É curioso notarmos que há uma relatividade no que diz respeito aos olhares da mãe e

de Miguili m. Este, embora não soubesse diferenciar bem o que era um lugar bonito de um

lugar feio, desejava mostrar à mãe que o Mutum era um lugar bonito, mas para a mãe o

Mutum era um lugar onde ela se sentia prisioneira, sem perspectivas de libertar o seu olhar,

pois não podia ver o que havia por trás das montanhas. É o que mostra a passagem:

Mas sua mãe, que era linda e com os cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter deviver ali . Queixava-se. Principalmente nos demorados meses chuvosos, quando carregava otempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem,qualquer dia, de tardinha, na hora do sol entrar. – ‘Oê, ah, o triste recanto...’ – elaexclamava. (ROSA, 1994, p. 465)

Deste modo o Mutum se dá a conhecer ao leitor através de duas possibilidades: pelo olhar da

mãe e pelo olhar do menino. Miguili m tinha um olhar diferente, conquistado, quase sempre, a

partir de suas indagações. A passagem a seguir diz respeito a uma viagem que o menino faz

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com o tio. No caminho de volta, tem a felicidade de se encontrar com alguém que já estivera

no Mutum e elogia o lugar, deixando o garoto maravilhado.

Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: oque o homem tinha falado – que o Mutum era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essacerteza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lodesse jeito de cor, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas. (ROSA, 1994, p. 465)

Esta visão que o menino vai construindo do lugar nos leva, pouco a pouco, a uma

apreciação dos detalhes que compõem o ambiente em que ele vive. Por isso é muito

significiativo apreciarmos a forma como as pequenas coisas são apresentadas pelo narrador,

porque elas são valorizadas no que concerne ao seu espaço geográfico, mas aliadas também a

um outro espaço, enormemente abordado na obra rosiana, que é este espaço existencial,

metafísico, cujas complexidades Miguili m tão precocemente revela.

Se há uma situação dramática que configura a novela, em torno desta podemos

apreciar as minúcias de uma vida vivida em campo aberto, para a qual refluem diariamete os

elementos da natureza apresentados por um narrador que muitas vezes encarna a miopia de

Miguili m, mas que, genialmente, mantém a distância necessária para poder traduzir as

experiências do menino, com um olhar que vai além dos olhos míopes deste. Neste sentido, a

expressão "A gente..." tão reiterada, é sintoma de uma cumplicidade entre o protagonista e o

narrador. E curiosamente são estes olhos míopes que revelarão os elementos pictóricos mais

elaborados e esteticamente formulados da novela. Se a miopia constitui na vida diária uma

limitação de ordem física, - Miguilim esbarra nas coisas, e não consegue realizar tarefas com

eficiência, - nesta narrativa, por outro lado, o mundo visto pelos olhos de um menino míope é

impressionantemente redescoberto e revelado. Há um modo de ver que ultrapassa as

limitações da miopia, e curiosamente, talvez seja justamente a miopia o elemento de

transcendência necessário para que o menino possa ver o mundo da forma como o vê.

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Estamos diante de uma situação constritiva, mas que, por outro lado, ou juntamente com esta,

catalisa uma situação de libertação de outro olhar. Miguili m só vê como vê porque é míope? É

uma pergunta que sempre nos ocorre na leitura desta novela, e uma das respostas é que a

miopia do menino tem um valor metafórico, que funciona como a alegoria de uma visão

ampliada e especial.

Este jeito fisicamente desajeitado de ver o mundo e existencialmente profundo de

questioná-lo faz-nos pensar em uma expansão do olhar. O olhar é para todos, atributo de

todos, privilégio de todos. Mas é, sem dúvida, uma questão de aprendizado, deve ser

conquistado, aprendido. Merleau-Ponty nos ensina que:

O sentido é invisível, mas o invisível não é o contraditório do visível: o visível possui, elepróprio, uma membrura do invisível, e o in-visível é a contrapartida secreta do visível, nãoaparece senão nele, é o que me é apresentado como tal no mundo – não se pode vê-lo aí, etodo o esforço para aí vê-lo o faz desaparecer, mas ele está na linha do visível, é a sua pátriavirtual, inscreve-se nele (em filigrana) (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 200)

O fato de um garoto como Miguili m ver o mundo com tanta abrangência oferece ao

leitor uma visão pormenorizada dos cenários, bem como de suas experiências, e faz-nos crer

uma vez mais que os propósitos literários de Guimarães Rosa revelam extraordinariamente

seus propósitos de vida, suas crenças e esperanças. Porque no caso desta novela vimos o olhar

do menino anelado ao do seu criador. Este último emprestou ao primeiro o seu olhar e com

ele retornou à sua própria estória, abrindo para o leitor um campo de visão ao qual ele só teve

acesso graças a uma perspectiva especial, que vê justamente onde não é possível ver. Ao

falarmos deste olhar que o criador oferece ao seu personagem, é importante que nos fixemos

nas últimas passagens do conto, quando o médico Dr. Lourenço chega ao Mutum e,

percebendo a dificuldade do menino, tira os seus óculos e os coloca sobre os olhos deste

menino. Em “Cara- de- Bronze”, de outro modo, este empréstimo do olhar pode ser também

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observado: é quando o jovem sai para ver as coisas todas da vida e volta para contar para o

seu patrão que já não podia mais ver.

6.2.2 O menino no homem

Alberto Caeiro dizia que "a Eterna Criança é o Deus que faltava, o humano que é

natural, o divino que sorri e brinca. E assim vamos pelo caminho que houver, saltando e

cantando e rindo e gozando o nosso segredo comum que é o de saber, por toda a parte, que

não há mistério no mundo e que tudo vale a pena..." (PESSOA, 1986, p. 144)

As influências do menino João Guimarães Rosa estão bem presentes em toda a sua

obra, e especialmente em Miguili m, novela muito apreciada pelo autor. Como Miguilim, o

autor sofreu na infância a incompreensão paterna e a dificuldade causada pela miopia. É

verdade que a infância de Miguilim é um desdobramento de muitos aspectos da infância do

autor, entre os quais podemos ver as brincadeiras, as superstições, as crendices, a relação com

a família, a liberdade na relação com o lugar, mas ela aponta para um desdobramento ainda

muito mais amplo com a infância das crianças do interior brasileiro e, sem dúvida, para uma

outra: a da infância primordial, não localizada em nenhum espaço geográfico em particular.

Nesta narrativa há, diluída na voz do Menino, a voz de um outro menino que cresceu.

Trata-se da voz biográfica do menino João Guimarães Rosa, que, aproveitando-se deste

presente narrativo, traz de volta a sua infância. Não é à toa que esta é a sua novela preferida, e

que nela há tanto de sua meninice. O que encontramos nesta narrativa são três olhares

diluídos: o do menino que cresceu e volta para contar, olhando para trás, o do menino que

ainda vê limitado pela miopia, e o do menino que aparece no final da narrativa, e cujos olhos,

curados, serão abraçados pelo futuro. O menino e a biografia do autor se confundem às vezes,

resultando em um apanhado de lembranças, as quais, renovadas pela ficção, fazem reviver

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inclusive pessoas que foram do convívio do autor, como a avó, por exemplo, figura forte,

bizarra, cuja religiosidade fica bem caracterizada no texto, além da descrição do seu quarto,

fechado e escuro: mistério para o menino Rosa, mistério para o menino Miguili m. As palavras

do próprio autor nos revelam essa empatia com o menino Miguili m: "Aquela miopia de

Miguili m foi minha. Escrevi aquela novela, em quinze dias, em lágrimas. Chorava muito

enquanto a escrevia. Lágrimas sentidas, grossas, descidas do fundo do coração." (DANTAS,

1975, p. 27)

Também este último é uma expansão do próprio autor, de sua criatividade, de sua

poetização do mundo. Em uma carta-resposta a sua prima Lenice, moradora de Curvelo,

Guimarães Rosa confessa: "desde menino, muito pequeno, eu brincava de imaginar estórias,

verdadeiros romances; quando comecei a estudar geografia – matéria de que sempre gostei –

colocava as personagens e cenas nas mais variadas cidades e países; um faroleiro, na Grécia,

que namorava uma moça no Japão, fugiam para a Noruega, depois iam passear no México...

coisas desse jeito, quase surrealistas". (GUIMARÃES, 1972, p. 27)

Assim também Miguili m gosta de pensar, inventar estórias, principalmente como

uma forma de reinventar o lugar onde vive, e de se salvar das situações difíceis. Como o

autor, Miguili m manifesta forte tendência à interiorização e amor pela natureza, por seus

elementos grandes e pequenos. Apesar de sua dificuldade visual, o mundo é sorvido a cada

momento por ele. Mas é com o olhar de dentro que ele vai pensar e rever tudo o que o encanta

e também tudo o que o assusta. Se para Miguili m a relação com o pai é dificultosa, talvez o

próprio autor já tenha antecipado a dificuldade que pode ser para uma criança sensível e

imaginativa conviver com as imposições do mundo adulto. É o que ele afirma a respeito de

sua infância:

Recordando o tempo de criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo osmais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada.(...) Mas

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tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com asegurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginarestórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturandoas melhores coisas vistas e ouvidas. (GUIMARÃES, 1972, p. 27)

Nesta parte do trabalho chamamos a atenção do leitor para um tema que desponta

nesta novela, que é a concepção da infância e a forma como esta tem sido considerada ao

longo dos séculos. “Campo geral” , não obstante o seu aspecto lírico, está carregada de

dramaticidade, sobretudo no que diz respeito à forma como Miguilim é tratado, olhado e,

muitas vezes, desrespeitado pelo seu pai. Muitas passagens dão-nos aquela noção da criança

considerada adulta precocemente, ou, se não, de uma criança que é sobrecarregada pelas

perversidades de um universo adulto no qual ela não está de modo algum inserida, mas do

qual tem que obrigatoriamente participar, para a sua sobrevivência e de sua família. Miguili m

atrai para si, nesta estória, todo o ódio do pai. Bode expiatório, é ele o alvo para onde o pai

infeliz atira seu fel mais amargo. Embora não seja uma criança frágil nem retraída, Miguili m é

um garoto que acumula pensamentos e perguntas, após pescá-las no ar. Sua visão de mundo é

lírico-poética, e justamente devido a esta visão, não entra em acordo com o mundo dos

homens que o cercam, principalmente o de seu pai, que cria incessantes interdições no

caminho do menino, ainda não ciente de que este não enxerga bem. Os castigos e os maus-

tratos sofridos pelo menino míope revelam uma tentativa de aniquilamento da infância, de

corrosão da vitalidade poética que permeia os movimentos da criança. Em lugar da

brincadeira e da fantasia, é para o trabalho com a enxada que o pai o leva. Não apenas por

necessidade de sobrevivência, mas porque uma criança como Miguili m é um incômodo para

um homem como o seu pai, que, dadas as circunstâncias da vida, perdeu qualquer contato

com a sua criança interior. Os estudos sobre a construção do conceito de infância ao longo dos

séculos nos ajudaram a compreender algumas dinâmicas fomentadoras do exílio desta em

“Campo geral” . Este tema, embora não seja aqui amplamente abordado, merece enfoque mais

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minucioso por parte de todos que se dedicam à educação de crianças, porque fornece bases

históricas acerca do papel da criança na sociedade e na família.

De acordo com Ariès (1978), em seu estudo acerca da sociedade européia, esta

parecia ainda desconhecer a infância. Até o século XVIII, a criança era reconhecida como um

adulto em miniatura. Não se concebia a infância, muito menos uma fase chamada infância, o

que levava a criança a uma integração precoce nas atividades ( de um modo geral ) dos

adultos. Nesta época a tradição oral era muito importante e os divertimentos estavam

associados à utilização de material literário de tradição oral que incluíam contos, fábulas,

mitos, lendas, jogos e danças, e a criança era neles incluída. Deste modo usufruíam do lazer

que esta tradição proporcionava, quanto ao aspecto didático, exortativo, uma vez que as

estórias eram contadas também no intuito de tentar trazer à luz questões da realidade para as

quais não havia uma explicação mais objetiva. É nesse momento que a criança, ou o conceito

de infância é construído. A concepção da infância como uma idade servil e passível de

humilhações está impregnada na história das mentalidades. Já houve várias épocas em que a

criança era vista como alguém a ser punido. A prática aviltadora do castigo corporal vem de

longa data e se apresenta ainda hoje sob as formas mais sutis. Vem de longa data a história de

punições à criança. Analisando a história da disciplina do século XIV ao XVII, Philippe Ariès

faz duas observações importantes. Primeiramente ele se refere a uma disciplina humilhante. A

partir do século XV surgem simultaneamente duas idéias novas: “a noção da fraqueza da

infância e o sentimento da responsabil idade moral dos mestres.” (ARIÈS, 1981, p. 180) Ora,

respaldados por estes dois princípios, o castigo corporal tornou-se uma característica da nova

atitude diante da infância.

Em primeiro lugar, uma disciplina humilhante – o chicote ao critério do mestre e aespionagem mútua em benefício do mestre – substituiu um modo de associação corporativaque era o mesmo tanto para os jovens escolares como para os outros adultos. Essa evoluçãosem dúvida não foi particular à infância: nos seculos XV-XVI, o castigo corporal se

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generalizou, ao mesmo tempo em que uma concepção autoritária, hierarquizada – em suma,absolutista – da sociedade. Contudo, mesmo assim, restou uma diferença essencial entre adisciplina das crianças e a dos adultos – diferença que existia nesse grau durante a I. Média.Entre os adultos, nem todos eram submetidos ao castigo corporal: os fidalgos lhe escapavam,e o modo de aplicação da disciplina contribuía para distinguir as condições sociais. Aocontrário, todas as crianças e jovens, qualquer que fosse sua condição, eram submetidos a umregime comum e eram igualmente surrados. Isso não quer dizer que a separação dascondições sociais não existisse no mundo escolástico. Ela existia aí como nos outros lugarese era igualmente marcada. Mas o caráter degradante para os adultos nobres do castigocorporal não impedia sua aplicação às crianças. (ARIÈS, 1981, p. 181)

Assim, também ainda hoje, as crianças continuam sendo castigadas, e, como dissemos,

não são poucas as obras que tratam dos castigos à infância. Um exemplo é a protagonista de A

hora da estrela, de Clarice Lispector, que maltratada pela tia, passa a vida como que espiando

uma eterna culpa, incutida pelos afectos produzidos em seu corpo.

Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo: a tia lhe dando cascudos noalto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital.Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batiamas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que não secasara por nojo – é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um diaa ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperandohomem. (LISPECTOR, 1995, p. 43)

Além disso, queremos enfatizar que olhar a infância por meio de um veio literário

possibilitou-nos uma compreensão muito mais ampla do que realmente constitui ser e estar

criança, ou seja, a leitura desta comovente prosa poética, construída com uma linguagem

intimamente alinhavada às dinâmicas próprias da infância, trouxe-nos muitas indagações

sobre a situação da criança ao longo da história, o que nos levou a pesquisar sobre a

concepção desta no Ocidente, como e quando ela surge como alguém separado do adulto,

como ela era vista e tratada pela sociedade e pela família, e as modificações pelas quais o

conceito de infância veio sofrendo no decorrer dos séculos.

Seguindo a trilha destas reflexões, buscaremos um diálogo entre a luz e a sombra que

permeiam o universo infantil, representado aqui pela voz do protagonista Miguili m.

Certamente também o protagonista de “Campo geral” é vítima do olhar punitivo, que o faz

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sentir-se absolutamente incompreendido, fragmentado, afetado por um olhar que o repele e o

cala. O narrador, bastante envolvido com a trama, registra os esquemas punitivos do pai e o

olhar de Miguili m diante destas provações:

Diante do pai, que se irava feito um fero, Miguili m não pôde falar nada, tremia e soluçava; ecorreu para a mãe, que estava ajoelhada encostada na mesa, as mãos tapando o rosto. Comela se abraçou. Mas dali j á o arrancava o pai, batendo nele, bramando. Miguilim nem gritava,só procurava proteger a cara e as orelhas; o pai tirara o cinto e com ele golpeava-lhe aspernas, que ardiam, doíam como queimaduras quantas. Miguili m sapateando. Quando pôderespirar, estava posto sentado no tamborete, de castigo. E tremia, inteirinho o corpo (...)(ROSA, 1994, p. 470)

Também esta cena revela a força que o garoto precisa puxar para si, num momento de

constrangedora punição. Chama-nos a atenção novamente a voz do narrador, que, neste caso,

revela-se cúmplice e diluída à do protagonista:

O dia estava bruto de quente, Miguilim com sede, mas não queria pedir água para beber.Sempre que a gente estava de castigo, e carecia de pedir qualquer coisa, mesmo água, osoutros davam, mas, quem dava, ainda que fosse a mãe, achavam sempre de falar algumapalavra de ralho, que avexava a gente mais. Miguili m estava sujo de suor. Mais um pouco,reparou que na hora devia de ter começado a fazer pipi na calça; mas agora nem estava comvontade de verter. (ROSA, 1994, p. 470)

A criação de um personagem infantil com a força de Miguilim revela mais que um

processo de construção de personagens, um desvelamento do menino que mora no autor.

Deste modo, é possível dizer que esta narrativa é um profundo e afetuoso diálogo entre

Guimarães Rosa e o menino Miguili m, mas, sobretudo, um diálogo entre o homem Rosa e o

menino que nele nunca parou de brincar. O aspecto lúdico de sua linguagem é a expressão

disto, ou seja, Miguilim recria Guimarães Rosa na mesma proporção em que é criado pelo

autor.

Apesar das mazelas, a infância de Miguili m ainda se oferece como um lugar de

sonho e de devaneio. Ao contrário do mundo dos adultos, o seu mundo lhe fornecia

ingredientes para o seu eu-poeta crescer. Aliás, esta tensão entre o mundo da criança e o

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mundo do adulto é bastante acirrada nesta estória. Na novela, temos uma poética da infância,

uma poética do devaneio da infância, representada pela voz de Miguili m e muitas vezes do

seu irmão Dito. Por isso sua fala transborda no texto, porque é a fala do poeta, ainda não

sufocada pela daquele que deixou de sê-lo. Miguil im vive no limiar da sua poesia, chocando-

se constantemente com a aspereza dos que cresceram. Como Peter Pan, ele não queria crescer,

"de ser pessoa grande, a conversa das pessoas grandes era sempre as mesmas secas, com

aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas." (ROSA, 1994, p. 480)

Na leitura de "Campo geral", a presença de Miguilim e seu irmão Dito trouxe-nos a

certeza de uma indagação profunda sobre as questões mais cruciais da existência, num nível

similar ao de Grande Sertão: veredas, mas realizada por crianças em tenra idade. Este fato

nos chamou muito a atenção, porque na leitura de Grande sertão: veredas o que mais

encontramos são questionamentos e autoquestionamentos. Quem os faz é Riobaldo, que,

impedido pela necessidade de narrar levanta problemas, toma posse do discurso durante toda

a narrativa. Conhecendo os protagonistas de "Campo geral", especialmente Miguili m,

percebemos que este desejo de indagar não era privilégio de um jagunço que chegara à

maturidade, como ocorre no Grande sertão: veredas, mas algo comum também nas crianças.

E que aliado a este indagar - antecedendo-o e sucedendo-o-, havia um olhar que buscava não

só as coisas vistas, mas as entrevistas. Assim sendo, foi possível estabelecer algumas

comparações entre este olhar de que estamos tratando e aquele outro, turvo, com o qual

alguns personagens adultos, diante das crianças, parecem ver o mundo nas narrativas em

questão.

Intocável permanece a infância, no seu lugar, na sua imortalidade. Cresce o homem,

e o menino permanece. Muitos passam a vida tentando recuperar esse lugar, redimensioná-lo,

trazê-lo para o tempo. Pela ótica da infância temos o reino desencantado do adulto. Miguilim

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é um pensador, e, ao lado do seu irmão Dito, recria o universo; ele constrói uma metafísica

própria da infância em que perpassam dúvidas, medos, sobressaltos e alegrias. Cremos ser

esta novela uma celebração da infância, uma vitória desta sobre as sombras que a envolvem.

Guimarães Rosa, bem o sabemos, nunca deixou para trás o menino que foi. Se

olharmos todo o conjunto de sua obra, o que fica é o aspecto lúdico da linguagem, refletindo

este espírito do menino que sobrevive às situações dramáticas. Resvalando pela

dramaticidade da vida, brota o sentimento lúdico, do brincar com as próprias agruras do

destino. Maior exemplo disso, não precisamos ir longe, é a própria linguagem que se torna

uma irreverência sofisticada, um desaviso, uma poeticidade, uma estranheza, como o é o

pensamento da criança: mágico, pré-lógico, respondendo a sua própria forma de estar no

mundo.

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CONCLUSÃO

Este trabalho é a expressão de um caminho que temos trilhado desde a primeira

leitura feita da obra de Rosa, iniciada com a palavra NONADA, que abre o romance Grande

sertão: veredas. Tal palavra introduziu-nos, não somente neste romance do autor, mas no

conjunto de sua obra. Ponto de partida, é ela que nos tem levado a reinventar um olhar sempre

novo para cada situação narrativa. Diante de NONADA, muitos conceitos podem e precisam

ser relativizados. O que parece ser uma verdade, passa a ser questionado. Por trás da

ludicidade deste vocábulo, instaura-se certa desordem no universo do leitor, que passará a

seguir um caminho em que a verdade, quando se apresenta, é em estado de tensão e de

questionamento. O Real é NONADA. Negação quase dupla. NO e NADA. A porta que se

abre para a travessia é esta palavra estranha, por meio de cujos significados possíveis

apreciamos os conteúdos e personagens das obras em questão. De fato, a sedução do olhar

iniciou-se por esta palavra, como se fosse uma sentença, uma ordem, uma palavra que

inaugura, consagra e sintetiza todo o espírito da obra de Guimarães Rosa. Atentos aos seus

campos semânticos fizemos a perigosa e encantadora travessia pelo sertão que é o texto de

João Guimarães Rosa, pois NONADA transborda em possibil idades. Além de introduzir a

narrativa, ela abre a comporta de inúmeras outras palavras "desvirtuadas" de seus caminhos,

assim como são desvirtuados os personagens que elas vão narrar. Porque se viver é muito

perigoso - e os personagens o revelam - a decifração das palavras não o poderá ser menos.

O diálogo com as personagens rosianas está intimamente ligado ao diálogo com a

linguagem, ou seja, ambos constituem os dois lados do tecido deste texto repleto de alinhaves

imprevisíveis . Quando ouvimos o personagem, ouvimo-lo por meio de uma linguagem que é

o seu retrato, ou seja, a linha que o tece. Por isso, ao falarmos de olhar, não queremos dizer

que olhamos alguém ou uma situação narrativa apenas, mas a própria linguagem, que tem a

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força de um personagem e de um conflito narrativo e que, como tal, precisa ser olhada e

revista. Assim sendo, o leitor de Rosa precisa considerar a sua linguagem como corporifação

da própria trama, como um personagem-esfinge, que já se insinua no espaço inicial da

primeira página, mostrando e se escondendo, e, ao mesmo tempo esfacelando/compondo as

partes do Real que se estendem ao longo deste texto, que, impossível de ser mapeado pelos

signos da referencialidade, requer e propõe outros para ser atravessado.

Como os personagens, a linguagem que os narra é o ponto de partida do processo de

sedução e de educação do olhar, pois estranhamente o olhar é chamado a olhar, a partir do

mistério que se impõe, do susto, do impacto. O leitor de Rosa é aquele que se abre para os

jogos da sedução e que se dispõe não aos atalhos, mas às trilhas difíceis e inóspitas, fazendo

de uma travessia em que a primeira dificuldade é o deciframento da linguagem, mas que não

deve ser confundida com simples barroquismos do autor, se não, como um propósito literário

consciente e definido de construir um texto que revele as dinâmicas insuperáveis das relações

humanas com o seu universo, sempre se construindo e se desconstruindo. Para tal propósito,

um léxico comum não seria suficiente, como não o seria uma sintaxe ordenada pelos padrões

gramaticais. Esta não cumpriria a tarefa de revelar as intrincadas relações humanas, - o

impossível que é o homem. Se, como afirmamos no início do nosso trabalho, o olhar está

ligado ao perguntar, ao desejo de entender, o texto de Guimarães Rosa concentra a

potencialidade deste questionamento. NONADA introduz-nos na pergunta, e lança-nos nos

territórios mais improváveis das polifonias linguísticas e semânticas de Guimarães Rosa. No

entanto, no final de Grande sertão: veredas, NONADA minimiza-se, porque agora o que

importa é todo o caminho percorrido. A palavra de ordem, então, passa a ser TRAVESSIA.

“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”

(ROSA, 1994, p. 385)

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É a partir desse caminho nem sempre fácil, que é a leitura da obra de Rosa, que

inauguramos uma nova forma de ver e de ler a obra literária, porque se trata de um texto que

espera do leitor uma decifração. E para decifrar é preciso saber olhar, sobretudo, de vários

pontos de vista. Nas reiteradas leituras da obra de Rosa que temos feito não conseguimos

decifrar os mistérios por ela propostos, mas o que temos alcançado é a certeza de que o

mistério é a maior porção da Realidade e que, mais que ser decifrado, ele quer mesmo é ser

reconhecido como mistério. A obra rosiana, embora misteriosa e enigmática, não tem o

aspecto devorador da esfinge e sim o que a esfinge exige de coragem e inteligência sensível.

Como a esfinge, ela espera que nós penetremos na cifra com a força de quem entra num

território desconhecido, mas que, ao mesmo tempo, diz respeito às questões que nos são

familiares. O texto rosiano, este sertão fechado, dificultoso e perigoso oferece-nos também

veredas e campos gerais; atravessá-lo é um exercício, uma educação do olhar.

Mas existe sempre a esperança do encontro com a vereda, mesmo que seja muito

perigosa a travessia literária. Sem dúvida precisaremos de um olhar incansável, que permeie

mais descaminhos que caminhos certos, que não seja turvo para ver as linhas ocultas,

invisíveis por trás daquelas outras, visíveis, e com elas pactuadas. O desafio é um

aprendizado, e para nós significa também aprender a olhar. Certamente fomos levados pela

textura destas palavras e pelo que elas só sobreavisam e evocam, sem o conforto das certezas.

NONADA. Deste modo, pretendemos ler a obra e os personagens de Rosa com um olhar que

tenha buscado recompor a unidade presente nos fragmentos, a fim de que o nosso olhar

apreendesse a força que conduz e recompõe, a cada nova estória, esta unidade. Portanto,

buscamos, na escritura deste trabalho, o emprego de uma linguagem mais liberta das amarras

da referencialidade, porque compreendemos a obra rosiana não como um objeto a ser

estudado, mas como um texto que não pára de agir, de se criar e de se recriar. Para falarmos

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da obra rosiana foi preciso partir, sobretudo, das belíssimas e singulares imagens poéticas que

brotam ininterruptamente do seu texto, dos textos que elas fazem extrair de nós, e da

promessa de novos olhares que elas nos despertam. É importante ressaltar que todas as nossas

reflexões e observações sobre a obra deste autor surgiram da percepção de que há em suas

estórias um olhar profundamente atrelado a um perguntar e a um indagar, e que neste sentido,

o questionamento se coloca também como uma verdade que acompanha o processo

existencial e de aprendizado dos personagens, e, acreditamos e esperamos, também dos

leitores que sobre ela se debruçam.

Não é à toa que as palavras “margens” , “cimos” , “terceira margem”, “de lá”,

“travessia” , e outras, indicadoras de lugares geográficos, são tão presentes na obra rosiana.

No entanto, além da referência geográfica, não indicarão estas zonas de conflito aqueles

lugares que os olhos precisam muito trabalhar para ver, para buscar? Como podemos

observar, nenhum destes lugares é confortável. Onde estará o horizonte destes homens de

Rosa? Em que áreas de conforto eles habitam? Ou melhor, existem espaços de conforto para

eles? O que podemos dizer é que nos rincões do Brasil , estes horizontes se expandem, porque

a travessia deles não pára, e os seus olhares atravessam verdadeiras áreas de risco, buscando

os regaços das veredas, o que nos leva, inclusive, na observância dos aspectos gráficos e

sonoros deste vocábulo, a abstrair de vereda a palavra “verdade”, também tão preciosa no

texto rosiano. Não é à toa também que grande parte desses personagens, incluindo as crianças,

estão passando por algum lugar. Em trânsito, seguem para outras paisagens, de onde se

vislumbra a possiblidade de aprendizados variados, dependendo de cada personagem e de sua

história pessoal. O que não podemos esquecer é que esta imagem do homem ou da criança

que sai do seu espaço e se destina a outro está muito ligada ao ato de aprender, de

redimensionar os pontos de vista ou de enfoques, de reaprender a olhar. Acreditamos que toda

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a trajetória narrativa de Guimarães Rosa é perpassada por uma lição do olhar. A radicalização

da linguagem, a singularidade dos personagens, as artimanhas dos discursos, os encaixes

narrativos, a abrupta inversão da sintaxe, o novo posicionamento do narrador são apenas

alguns pre-textos para a realização de um projeto humano/literário cuja travessia só faz

sentido se desencadear esse processo contínuo que é o da construção e desconstrução do

olhar.

Nesse sentido, as reflexões sobre as narrativas em foco não pretenderam ser um

discurso que isolasse uma estória da outra, mas que pudesse propiciar ao leitor, na medida do

possível, uma compreensão e uma visão do todo constituinte destas narrativas, uma vez que

entre elas, como tentamos mostrar, há um diálogo muito coeso e bem articulado, o que, aliás,

é um atributo da obra de Guimarães Rosa. Vale enfatizar que não tivemos o intuito de realizar

um trabalho pautado em quaisquer teorias seja no que diz respeito à Linguística, à Estilística,

ou mesmo ligadas a outras áreas do saber como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia,

entre outras, embora reconheçamos que uma obra como a deste autor está aberta para

inúmeras especulações em todas estas áreas do conhecimento humano. Certamente que estas

áreas constituíram-se como fontes inspiradoras no sentido de ampliar o nosso foco de leitura.

Porém, a nossa principal inspiração foram os procedimentos da própria linguagem literária,

especificamente a de Guimarães Rosa, e os traços com que ela trabalha. Captar o olhar dos

personagens construído pela abordagem literária foi o nosso maior propósito, o que não nos

impediu, todavia, de buscarmos em outros parâmetros elementos que nos ajudassem a

construir uma melhor configuração de todas as implicações que envolveram o tema que nos

propusemos apreciar. No entanto, o que nos interessou, de fato, foi apresentar as crianças

construídas por um autor como Guimarães Rosa, que pretendeu levar a palavra aos extremos

do dinamismo e da inquietação, muito similares à da criança real. Neste sentido, importaram-

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nos sobremaneira os seus movimentos, suas alegrias, dúvidas, medos, inquietações, e a forma

como a literatura os incorpora, porque tais personagens, tirando-nos de um lugar conhecido,

abriram-nos caminhos singulares para que pudéssemos dialogar de modo mais genuíno e

revitalizador com outras formas de ser e de estar no mundo.

Vale também lembrar que os aspectos anímicos com que estes personagens são

tecidos fazem parte de toda esta incrível galeria de perspectivas pouco vislumbradas pelo ser

humano, atrelado aos conteúdos do seu dia-a-dia. Preferimos pensar que, longe de se

caracterizarem como personagens fantásticos ou absurdos, estes personagens apontam, de

forma radical, para uma perspectiva nova de escuta das vozes de todos aqueles que são

diferentes. Comunicarmo-nos com as crianças é, antes de tudo, comunicarmo-nos com o que

há de especial em nós, e que ainda não foi tocado pela civil ização moralizadora;

comunicando-nos efetivamente com elas, somos convidados a estabelecer contato com o

nosso ser poético e com o que restou- se assim podemos dizer – de insólito e original em nós.

Na verdade, não se trata de enfatizar um sentido do que há de exótico na criança, nos

loucos, nos cegos, enfim naqueles personagens deslocados de Rosa, mas de nos inclinarmos

ao que há de comunicativo-expressivo na sua presença e no seu discurso, o que extrapola o

lugar-comum dos discursos já desgastados e alienados em função de um sem-número de

imposições e de condicionamentos típicos da sociedade civil izada. Os seres de Rosa fazem

parte de um outro nível ou espécie de homem; por isso vivem todos à margem, destituídos

daquela malícia que vamos aprendendo à medida que as pressões sociais nos atropelam, e

que, em contrapartida, nos destituem do contato com a nossa natureza mais secreta, que é

singular.

Infelizmente, à medida que nos vamos tornando adultos, o mundo deixa de ser

misterioso, e nós mesmos parecemos destituídos de mistério. Por isso interessou-nos tanto

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uma leitura destes personagens insólitos na obra de Guimarães Rosa, pelo sentimento de

mistério e de encantamento que neles transborda, pelo que eles nos fazem lembrar, pelo que

nos restituem, por tudo aquilo que ainda resiste em nós. Nas narrativas em foco foi possível

vizualizarmos o mundo adulto pelo olhar da criança, que nos diz em que podemos nos

transformar mas no que nunca deixamos de ser: "Menina grande..." (ROSA, 1995, p. 403).

Meninos grandes. Longe de ser um conto sobrenatural ou fantástico, “A menina de lá”, por

exemplo, mostra-nos, sobretudo, o olhar da criança sobre o mundo adulto, e as recíprocas

dificuldades de adaptação de um ao universo do outro. Sem dúvida, há um elemento bastante

insólito, com o qual o leitor de Rosa precisa se acostumar. Mas para nós tal insolitez revela as

forças anímicas de que dispõe a criança, os velhos, os cegos e outros seres localizados na

“terceira margem” da vida, seja no âmbito da ficção ou da realidade.

Os personagens de Rosa, estes loucos iluminados, são uma explosão radical da razão,

uma despretensão pelo racional como o imaginamos, um intento de dizer, não verdades

únicas, mas de revelar desconfianças acerca da verdade instituída. Para o autor, “a espécie

humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou

alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?" (ROSA, 1994, p. 438) De onde

brotam os questionamentos deles é do mesmo chão de onde brota a linguagem. E esta é o

reflexo de um novo modo de olhar. Em Guimarães Rosa, a ontologia e a linguagem são uma

coisa só e uma desencadeia a outra. Grande sertão: veredas, por exemplo, é o palco das

elucubrações filosóficas do homem, que, na roupagem de um sertanejo, extrapola as

peculiaridades locais e atinge o homem de todo lugar. É a este homem que temos tentado nos

achegar, olhando-o com mais delicadeza, com mais abertura, ou seja, tentando abrir os

campos da visão. E, na infância deste homem, tentando descobrir o que ele vê que não vemos.

De que lugar ele vê que ainda não estivemos? Que campos gerais abrange o seu olhar, e que o

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nosso não reconhece? Se como diz o autor "Os olhos da gente não têm fim." (ROSA, 1994, p.

439), vale pensar que a compreensão das coisas é um processo que realmente só se concretiza

na sua travessia, quando podemos exercitar todas as potencialidades da nossa arte de olhar. O

resto é NONADA.

Guimarães Rosa, parece-nos, ao possibil itar a seus personagens procedimentos tão

singulares, liberta-os dos limites impostos pela razão. Porque, sem dúvida, o que encontramos

nestas estórias são criaturas insubmetíveis às artimanhas de uma razão que, longe de

iluminar, fragmenta; ao contrário, o mundo delas não pode ser facilmente demarcado,

mapeado, analisado, assim como a própria paisagem em que elas estão inseridas, assim como

a própria linguagem que as representa, ou o próprio narrador que as narra. Exemplos típicos

são as próprias expressões indicadoras de espaço - "A menina de lá", "A terceira margem do

rio", "Os cimos", "As margens da alegria" - e outros termos que conotam lugares ou situações

incomuns, indefinidos - "Nenhum, nenhuma", “Campo geral" –, bem como expressões que

desconstróem o discurso clássico e tradicional, como é exemplo "Fita-verde-no-cabelo", esta

"nova velha estória" que desconstrói o já consagrado, ou ainda expressões as mais variadas

que sugerem essa transposição do previsível, do confortavelmente instalado, para algo

dubitativo.

Desejosos de conquistarmos um olhar à altura dos olhares apreciados, o buscamos

em Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa, possuidor de um olhar limpo e

desapegado, aquele olhar que, sem dúvida, se aproxima do que estes personagens marginais

de Guimarães Rosa possuem. O olhar do poeta Caeiro é nítido, simples e descomplicado. Não

deseja, não dicotomiza, não espera mais que o momento e o que a sua visão pode abarcar. Por

isso ele nos é tão inspirador:

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O GUARDADOR DE REBANHOS (1911-1912)

8-3-1914

O MEU OLHAR é nítido como um girassol.Tenho o costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás...E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem...Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança se, ao nascer,Reparasse que nascera deveras...Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender...O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,E a única inocência não pensar...(PESSOA, 1986, p.138)

Este olhar de Alberto Caeiro - é o que esperamos - terá iluminado o nosso trabalho e

nos propiciado uma visão panorâmica de todos os personagens com os quais dialogamos. É o

olhar de Miguili m e Dito em "Campo geral", de Nhinhinha e Brejeirinha em Primeiras

estórias, de Fita-verde em Ave, palavra, de Drizilda em "Arroio-das-Antas" e também dos

cegos provisórios e permanentes, como é o caso dos personagens de "São Marcos"

(Sagarana), "A Benfazeja" e "Um moço muito branco", (Primeiras estórias) cujos olhares

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solares e penetrantes trazem a clareza das coisas descomplicadas e que, para serem

compreendidas, bastam apenas que sejam vistas.

E como não podia deixar de ser, é o olhar de todas as crianças que nos cercam e que

nos ensinam diariamente, sem que o saibam, o aprendizado dos girassóis.

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