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Introdução Os ensaios e demais trabalhos que compõem este livro foram escritos em uma época quando as artes de leitura e o status de um texto passaram a ser objeto da pressão que ora sofrem. De modos diversos, movimentos tais como os de “teoria crítica”, “pós-estruturalismo” e “pós-modernismo” têm posto em xe- que as relações entre as palavras e seus significados e a maneira clássica como eram concebidas. Decompuseram não apenas a ideia da intenção do autor em relação ao significado de sua obra, como também a própria legitimidade de tal auctoritas ou individualidade criativa. O “desconstrutivismo”, principalmente, nega a possibilidade de qualquer “sentido último” verificável em um texto, por mais difícil que seja chegar-se a ele ou por mais imbricado que ele esteja no consenso histórico. O “significado” passou a ser nada mais que a representação momentânea de possibilidades de interpretação que logo se dissolve de moto próprio, no instante mesmo em que se tem a ilusão de decifrá-lo. Os “textos” são “pré-textos” fortuitos para apropriações infinitas e arbitrárias, nenhuma das quais pode aspirar ao privilégio de ser verdadeira. De certa forma, são niilistas essas estratégias de dispersão (originárias, em grande parte, da revolta contra a imposição milenar da palavra escrita do judaísmo, relativa às leis ou à fé). Elas nos revelam um epílogo da nossa cultura em desalento. Por outro lado, tais estratégias constituem — conscientemente ou não — um exercício muitas vezes sedutor e, paradoxalmente, “reconstrutivo”, capaz de recuperar para o estudo da literatura e para a hermenêutica uma paixão e um desafio intelectual que se haviam perdido. A segunda grande fonte de pressão é agora a exercida pela técnica. A revolução que vem ocorrendo na geração, na difusão e na conservação de

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Introdução

Os ensaios e demais trabalhos que compõem este livro foram escritos em uma época quando as artes de leitura e o status de um texto passaram a ser objeto da pressão que ora sofrem. De modos diversos, movimentos tais como os de “teoria crítica”, “pós-estruturalismo” e “pós-modernismo” têm posto em xe-que as relações entre as palavras e seus significados e a maneira clássica como eram concebidas. Decompuseram não apenas a ideia da intenção do autor em relação ao significado de sua obra, como também a própria legitimidade de tal auctoritas ou individualidade criativa. O “desconstrutivismo”, principalmente, nega a possibilidade de qualquer “sentido último” verificável em um texto, por mais difícil que seja chegar-se a ele ou por mais imbricado que ele esteja no consenso histórico. O “significado” passou a ser nada mais que a representação momentânea de possibilidades de interpretação que logo se dissolve de moto próprio, no instante mesmo em que se tem a ilusão de decifrá-lo. Os “textos” são “pré-textos” fortuitos para apropriações infinitas e arbitrárias, nenhuma das quais pode aspirar ao privilégio de ser verdadeira. De certa forma, são niilistas essas estratégias de dispersão (originárias, em grande parte, da revolta contra a imposição milenar da palavra escrita do judaísmo, relativa às leis ou à fé). Elas nos revelam um epílogo da nossa cultura em desalento. Por outro lado, tais estratégias constituem — conscientemente ou não — um exercício muitas vezes sedutor e, paradoxalmente, “reconstrutivo”, capaz de recuperar para o estudo da literatura e para a herme nêutica uma paixão e um desafio intelectual que se haviam perdido.

A segunda grande fonte de pressão é agora a exercida pela técnica. A revolução que vem ocorrendo na geração, na difusão e na conservação de

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material semântico através do computador, das permutas eletrônicas em nível planetário pelo espaço cibernético e — dentro em breve — por meio da “realidade virtual”, é muito mais radical e abrangente do que a revolução iniciada por Gutenberg. Hoje já está bastante óbvio que o livro como o conhe-cemos desde os pergaminhos dos pré-socráticos sobreviverá apenas em um formato e uma função mais ou menos especializados. Cada vez mais os livros impressos e encadernados tornar-se-ão instrumentos restritos a estudiosos, com distribuição localizada e específica (a tecnologia para a produção e a “publicação” por meio da eletrônica doméstica já está disponível). Os livros serão também artigos de luxo, como o passaram a ser os manuscritos com iluminuras — dos quais, surpreendentemente, havia um grande número — depois da invenção da imprensa. A cultura de massa, a administração do espaço e do tempo do indivíduo, a erosão da privacidade, a supressão sistemática do silêncio nas culturas de consumo tecnológico, a evicção da memória (memorização) dos procedimentos escolares — todos esses fatos deixarão como legado o eclipse do ato da leitura, o desaparecimento do pró-prio livro. A esta altura, qualquer protesto nostálgico ou qualquer lamento seria tolice. A maneira como as coisas se desdobram nessa escala histórica e social traz consigo tanto perdas quanto ganhos; assim como destrói, cria novas oportunidades. Uma vasta “contraliteratura” oral e pictórica precedeu e jamais deixou de cercar o Logos, a palavra revelada e estabelecida que ocupa um lugar de prestígio ao centro da cultura essencialmente ocidental, hebraico-helenística. O mundo ocidental encontra-se, a partir de 1914, em evidente situação de crise. A desumanidade, contida apenas aqui e ali por pouco tempo, reafirma sua força perene e instintiva. Paradoxalmente, porém, as novas agências que possibilitam uma comunicação instantânea e aberta, que permitem a “interface” do texto e seu receptor, podem se revelar mais resistentes ao despotismo, ao obscurantismo e à desumanidade.

Retomando questões que levantei em “The Retreat from the Word” (1961), os ensaios iniciais deste livro buscam definir o ato da leitura em um molde clássico e extrair os pressupostos teológico-metafísicos desse ato (as “pre-

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senças verdadeiras” nele implícitas). Sem tentar fugir do lugar-comum, essa tentativa de definição é então testada em três language-acts da nossa civilização: a Bíblia Judaica, Homero e Shakespeare. Outros exemplos dessa “leitura aplicada” seguem-se a esses: referem-se a Kierkegaard, a Kafka e à maneira mais criativa de leitura, que é a tradução poética.

De toda minha obra, “Os arquivos do Éden” foi o texto que provocou reações mais violentas e maior rejeição. A intuição que o levou a ser escrito pode, sem dúvida, ser julgada como míope. Se o incluo aqui é porque ele assinala as diferenças essenciais entre o ideal “clássico” e o ideal “equalitário--moderno” de qualidade de vida do intelecto. A Europa e a América do Norte encontram-se cada vez mais afastadas uma da outra no que se refere a várias questões cruciais. É possível que esse ensaio tenha alguma utilidade como exemplo de “má tradução”.

Inquirir sobre o status do “livro” e sobre o enigma da revelação através da palavra é voltar insistentemente ao judaísmo e a seu trágico destino. Este tema já está presente nos ensaios sobre Péguy, Simone Weil e Husserl. Nos trabalhos que concluem o livro o tema torna-se manifesto. Cada vez mais, a questão passa a ser a do legado de Jerusalém e de Atenas, da “textualidade” hebraica e helênica. As interações entre esses dois mundos do espírito deram-nos nossa identidade ocidental e as riquezas de nossa condição moral-intelectual. Mas essas interações também continham as sementes do desastre. Nos últimos ensaios há superposições e reiterações. Pelas vias da analogia e do contraste entre Sócrates e Cristo, entre o nascente cristianismo e suas origens judaicas, tento formular algumas perguntas que também se dirigem ao futuro. A meu ver, não será possível que a cultura europeia recupere as energias que a alimentam e o autorrespeito enquanto o mundo cristão não as-sumir sua responsabilidade pelo papel seminal que teve na preparação do Shoah (Holocausto), enquanto não reconhecer sua hipocrisia e sua impotência quando a história da Europa encontrava-se em um ponto crucial. Em determinada perspectiva, tais questões têm natureza diversa

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daquelas concernentes à palavra escrita. Vistas de outro ângulo, porém, são indissociáveis. Espero que esta coleção de ensaios frequentemente entretecidos lancem alguma luz nessa direção.

Vários desses textos foram publicados pela primeira vez em Salmagundi, que me parece ser a mais escrupulosa e confiável dentre as “revistinhas”. Uma boa parte deste livro pertence a seus editores, Robert e Peggy Boyers. Novamente a verve e a perspicácia de Elda Southern foram inestimáveis. E se percebo algo da ameaça instigadora desta iminente era de CD-ROMs e “internets”, isso se deve às alegres repreensões feitas a um pai antediluviano (não nego que uso uma caneta-tinteiro) por meu filho David.

As pessoas a quem dedico este livro não desejariam que eu me estendesse aqui. Sua generosidade de coração e de intelecto, a alegria genuína e erudita com que se referem a tantas obras da literatura, das artes e da música abri-ram novos mundos para mim. São uma reiteração constante da esperança.

G.S. Cambridge/Oxford, 1995

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O leitor incomum

Chardin completou Le Philosophe lisant no dia 4 de dezembro de 1734. Acredita-se que se trate de um retrato do pintor Aved, amigo seu. O tema de um homem ou uma mulher lendo um livro aberto sobre uma mesa é comum de se encontrar e constitui quase que um subgênero dos quadros de interiores domésticos. A composição de Chardin tem antecedentes nas iluminuras medievais onde a figura de São Jerônimo ou de algum outro leitor já é, ela mesma, sugestiva do texto que ilumina. O tema permanece muito apreciado ao longo do século dezenove (como comprovam o famoso estudo de Baudelaire lendo, da autoria de Courbet, ou os vários leitores retratados por Daumier). Porém o tema do lecteur ou da lectrice parece ter gozado de maior prestígio nos séculos dezessete e dezoito e constitui um elo — do qual toda a obra de Chardin foi representativo — entre a grande era dos interiores holandeses e o tratamento de temas domésticos à moda clássica francesa. Tomado isoladamente, portanto, ou em seu contexto histórico, Le Philosophe lisant representa um tema comum, convencional-mente tratado (ainda que por um mestre). Entretanto, se o analisarmos com relação à nossa época e nossos códigos afetivos, a maneira como o pintor se expressou revela, em quase todos os pormenores e na sua concepção mesma, uma revolução de valores.

Observe, primeiramente, os trajes do leitor. São formais, sem sombra de dúvida; cerimoniosos, até. O casaco e o chapéu com acabamento de pele sugerem brocado, impressão essa que nos é dada pelo lustre fosco porém

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áureo de sua coloração. Embora seja evidente que ele se encontra em casa, o leitor está “coiffed” — palavra antiga que expressa o tom adequado a uma cerimônia quase heráldica. (O formato e o tratamento dados ao chapéu debruado de pele provavelmente foram inspirados em Rembrandt, questão essa de interesse da história da arte.) O que realmente importa é a elegância enfática, a determinação de estar vestido assim naquele momento. O leitor não vai ao encontro do livro em trajes informais ou em desalinho. Veste-se para o grande evento, comportamento esse que remete nossa atenção a uma síntese de valores e sensibilidade que abarca tanto a ideia de “vestimenta” como de “investimento”. A qualidade fundamental desse ato — de o leitor primeiramente investir-se, assumir-se de maneira solene, antes de se pôr a ler — tem a ver com a qualidade da cortesia. A leitura ali não é uma ação casual, impre meditada. Trata-se de um encontro cortês, quase que nobre, entre uma pessoa e uma daquelas “visitas importantes” cuja entrada na casa de simples mortais é evocada por Hölderlin em seu hino “Como num dia festivo” e por Coleridge em uma das glosas mais enigmáticas de The Rime of the Ancient Mariner. O leitor vai ao encontro do livro levando a cortesia em seu coração (origem mesma da palavra cortesia). Porta-se com uma pompa gentil e cerimoniosa ao expressar as boas-vindas e a expectativa de entretenimento. As roupas de veludo ou belbutina castanho-avermelhadas, a capa e o chapéu debruados de pele são símbolos externos dessa atitude.

O fato de o leitor estar usando chapéu tem um significado especial. Os et-nógrafos ainda estão por nos revelar o significado mais amplo das distinções entre as práticas e rituais religiosos que demandam estar o participante com a cabeça coberta e as que não o demandam. Tanto nas tradições hebraicas quanto nas greco-romanas, aquele que participa de cultos religiosos, o que consulta o oráculo, o iniciado ao se aproximar do texto ou fonte de augúrios sagrados têm sempre a cabeça coberta. Tem-na também o leitor de Chardin, como que para deixar evidente o caráter numinoso do seu acesso ao livro, daquele encontro que ali se dá. De maneira discreta — e é nesse ponto que o eco de Rembrandt pode ser pertinente — o chapéu de pele sugere o de um estudioso da Cabala ou do Talmude que, ao fixar momentaneamente seu

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olhar na palavra escrita, nela procura a chama que lhe incendiará o espírito. Juntamente com a capa de pele, o chapéu do leitor sugere precisamente essas conotações de cerimônia do intelecto, da tensa apreensão do significado pela mente, a mesma que induz Próspero a usar trajes palacianos para abrir seus livros mágicos.

Observe, a seguir, a ampulheta junto ao cotovelo direito do leitor. Aí vemos novamente um motivo convencional, tão carregado, porém, de sig-nificados que um comentário exaustivo abrangeria uma história das ideias do mundo ocidental sobre a criação e a morte. No quadro de Chardin, a ampulheta evidencia a relação entre o tempo e o livro. A areia escoa rapida-mente pela estreita passagem da ampulheta (movimento esse cujo término tranquilo Hopkins evoca em um ponto crucial na turbulência mortal de “The Wreck of the Deutschland”). O tempo passa, mas o livro permanece. A vida do leitor mede-se em horas; a do livro, em milênios. Essa é a espantosa revelação proclamada por Píndaro em primeiro lugar: “Quando a cidade que eu canto já não mais existir, quando os homens para quem canto já houverem desaparecido no esquecimento, minhas palavras ainda perdura-rão.” Foi a esse mesmo conceito que a exegi monumentum de Horácio deu expressão canônica e que culminou na suposição hiperbólica de Mallarmé de que o objeto do universo é le Livre, o livro último, o texto que transcende o tempo. O mármore se desfaz, o bronze perece, mas as palavras escritas — aparentemente o meio de expressão mais frágil — sobrevivem. Vão-se seus criadores e elas permanecem — Flaubert lançou seu grito de protesto diante do paradoxo de estar ele morrendo como um cão abandonado en-quanto a “prostituta” Emma Bovary, criatura sua, surgida de palavras sem vida rabiscadas em folhas de papel, continuaria a viver. Até aqui somente os livros conseguiram exceder a morte em astúcia e têm realizado o que Paul Éluard definiu como a compulsão maior do artista: le dure désir de durer (de fato, os livros podem sobreviver a si mesmos, saltando das sombras de sua existência inicial: permanecem, plenas de vitalidade, as traduções de línguas há muito extintas). No quadro de Chardin, a ampulheta — em si uma figura dupla, icônica, que sugere o toro ou a forma oito do infinito —

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harmoniza com exatidão e ironia a vita brevis do leitor e a ars longa do seu livro. Enquanto ele lê, sua própria existência se esvai. Sua leitura é um elo na cadeia que realiza essa continuidade e subscreve — vale a pena retornar a esta palavra — a permanência do texto lido.

É binário o formato da ampulheta, e seu significado, dialético. A areia que cai através do vidro fala-nos igualmente da natureza desafiadora do tempo, que é a da palavra escrita, como também da brevidade do tempo disponível para lê-la. Até mesmo os leitores mais obsessivos só conseguem ler uma fração minúscula da totalidade de textos existentes no mundo. Jamais será um leitor verdadeiro, um philosophe lisant, aquele que não experimentou o fascínio e a angústia diante de enormes prateleiras reple-tas de livros não lidos, das bibliotecas à noite que tiveram em Borges seu fabulista. Jamais será um leitor quem não ouviu, com seu ouvido interior, o apelo de centenas de milhares, de milhões de volumes que se empilham na British Library ou na Widener suplicando para serem lidos. Pois cada livro contém uma aposta, um desafio ao silêncio, que só pode ser vencido quando o livro é aberto novamente (mas, diferentemente do homem, o livro pode esperar séculos pela eventualidade da ressurreição). Cada leitor au-têntico, no sentido delineado por Chardin, carrega dentro de si a incômoda culpa da omissão, das prateleiras pelas quais passou apressadamente, dos livros cujo dorso seus dedos meramente roçaram em pressa cega. Já passei furtivamente mais de uma dúzia de vezes diante da leviatânica história do Concílio de Trento, de Sarpi (uma das obras essenciais no desenvolvimento da argumentação político-religiosa ocidental); ou diante da opera omnia de Nikolai Hartmann em sua encadernação solene; jamais darei conta das dezesseis mil páginas do diário de Amiel (profundamente interessante) que está sendo publicado agora. O tempo é muito curto “nesta biblioteca que é o universo” (segundo Borges, no estilo Mallarmé). Entretanto os livros não abertos continuam a nos chamar, num apelo tão silencioso e insistente como o movimento da areia na ampulheta. Símbolo tradicional da morte na arte e na alegoria ocidentais, a ampulheta assume um duplo significado na composição de Chardin: a vida póstuma do livro e a brevidade da vida

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do homem sem o qual o livro permanece sepulto. Repito: as interações dos significados da ampulheta e do livro são de natureza tal que abarcam grande parte da nossa história interior.

Observe, a seguir, os três discos de metal em frente ao livro. É quase certo serem medalhas ou medalhões de bronze utilizados para fazer pressão sobre as páginas, mantendo-as esticadas (em fólios as folhas tendem a se dobrar, enrolando os cantos). Não seria fantasiar demais, creio eu, imaginar que nesses medalhões estivessem gravadas imagens de pessoas, signos ou lemas heráldicos, pois essa tem sido a função natural das artes numismáticas desde a antiguidade até os dias de hoje. No século dezoito, assim como no Renascimento, o escultor ou o gravador usava esses pequenos discos para fixar, para deixar gravada, no sentido literal, a comemoração de um impor-tante evento cívico ou militar, para manifestar-se formalmente, de maneira lapidar, sobre uma alegoria moral-mitológica. Assim encontramos na tela de Chardin o pressentimento de um segundo código semântico importan-te. O medalhão é também um texto. Pode ter origem em uma antiguidade muito remota ou recompor palavras e imagens dessa antiguidade. Relevos ou gravações em bronze desafiam a cáustica inveja do tempo. Assim como o livro, têm inscrito em si o significado. Podem ter sido dados novamente à luz, a exemplo das inscrições, dos papiros, dos Pergaminhos do Mar Morto, depois de uma longa e solitária viagem pelas trevas. Essa textualidade lapi-dar é apresentada com perfeição no décimo primeiro dos Mercian Hymns de Geoffrey Hill:

Coins handsome as Nero’s; of good substance and weight. Offa Rex resonant in silver, and the names of his moneyers. They struck with accountable tact. They could alter the king’s face.

Exactness of design was to deter imitation; mutilation if that failed. Exemplary metal, ripe for commerce. Value from a sparse people, scrapers of salt-pans and byres.

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Moedas tão belas como as de Nero; de boa substância e de bom peso. Offa Rex com ressonância de prata e a assinatura dos moedeiros. Nota-se o tato com que as cunharam. Podem alterar a face do rei.

Para impedir a imitação, a exatidão do traço; para quem falhasse, a mutilação. Metal exemplar, pronto para o comércio. Riqueza vinda de um povo esparso, que vivia de raspar o sal nas salinas, gente sem valor.

Porém o “metal exemplar”, cujo peso, cuja gravidade literal, impede que se dobrem os cantos frágeis e enrugadiços das folhas é, ele mesmo, como disse Ovídio, efêmero. Sua existência é breve quando comparada à das palavras impressas nas páginas. Exegi monumentum: “Li um monumento cuja per-manência é maior que a do bronze”, diz o poeta (lembre-se do inigualável refrão de Pushkin para a famosa frase de Horácio). Ao colocar os medalhões diante do livro, Chardin invoca da antiguidade clássica, com exatidão, a perplexidade maravilhada e o paradoxo da longevidade da palavra.

Essa longevidade é afirmada pelo próprio livro, que dá à tela seu centro de composição e seu foco de luz. É um fólio encadernado cuja roupagem oferece um sutil contraponto à do leitor. Seu formato, sua aparência física como um todo, é majestosa (na época de Chardin, era mais do que pro-vável que um volume in-fólio fosse encadernado especialmente para seu proprietário e que portasse suas divisas). Não é um objeto para o bolso ou para um saguão de aeroporto. A posição dos outros fólios por trás da ampulheta sugere que o leitor esteja examinando uma obra em vários volumes (os oito tomos da grande história da diplomacia europeia e da Revolução Francesa, de Sorel, que ainda não li, continuam a me obcecar). Ainda um outro fólio assoma por trás do ombro direito do lecteur. Ali revelam-se os valores, os hábitos, a sensibilidade de quem está lendo. Estes estão patentes na imponência dos volumes daquela biblioteca pessoal, nas encadernações apuradas e no cuidado no manuseio, na palavra paramen-tada como que para um ato canônico.

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Bem em frente aos medalhões e à ampulheta vê-se a pena que o leitor usa para escrever. O papel de destaque que esse objeto tem na composição é acentuado por sua posição vertical e pelo jogo de luzes sobre ele. A pena é emblemática da obrigação de resposta inerente ao ato da leitura; define a leitura como interação. A boa leitura pressupõe resposta ao texto, implica a disposição de reagir a ele, atitude essa que contém dois elementos cruciais: a reação em si e a responsabilidade que isso representa. Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total (“é estar pronto para um intercurso”, como diz Geoffrey Hill). A dupla incidência da luz na página e no rosto do leitor evidencia a percepção, por Chardin, desse fato primordial: ler bem é ser lido pelo que se lê. É assumir responsabilidade pelo texto. Há uma palavra obsoleta na língua inglesa — responsion — que ainda mantém seu significado original na Universidade de Oxford, usada no plural: é um processo de exames que testam a compreensão do essencial apreendido. Essa palavra pode ser usada para sintetizar estágios complexos da leitura representados pela pena na tela de Chardin.

É com a pena que se fazem anotações à margem do texto. Essa margi-nália é a prova imediata da resposta do leitor ao que ele lê, do diálogo que se dá entre livro e leitor. É o risco do bordado que resultará dessa interação, desse discurso interior — laudatório, irônico, negativo, argumentativo — que acompanha o processo da leitura. A marginália pode, em extensão e densidade de organização, vir a rivalizar com o próprio texto, preenchendo não apenas as margens laterais propriamente ditas, como também os es-paços livres no topo e na base da página, até mesmo nos espaços entre as linhas. Nas nossas grandes bibliotecas encontram-se “contrabibliotecas” constituídas pela marginália e por outras decorrentes daquelas que gerações sucessivas de verdadeiros leitores estenografaram, codificaram, rabiscaram ou assinalaram com floreios elaborados, sublinhando ou circundando as linhas do texto. Muitas vezes essas anotações constituem as articulações principais de uma doutrina estética, os elos da história intelectual (confiram o exemplar de Eurípedes que pertenceu a Racine). De fato, podem mesmo

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constituir um ato de criação da maior importância, como o é a marginália de Coleridge, que será publicada dentro em breve.

Há simples anotações feitas nas margens dos textos que têm natureza bem diversa da marginália. Esta é um discurso impulsivo, que frequente-mente discute com o texto, impaciente. As simples anotações costumam ser numeradas e tendem a ter caráter mais formal e colaborador. No mais das vezes aparecem na margem inferior das páginas. Propõem-se a elucidar esse ou aquele ponto do texto, citar fontes paralelas ou subsequentes. Enquanto o escritor de marginália é um rival incipiente do texto que lê, o simples anotador é alguém que se propõe a servir-lhe.

Esse serviço encontra sua expressão mais alta e escrupulosa no uso da pena do leitor para corrigir e emendar o texto. Quem é capaz de des-considerar um erro de impressão sem o corrigir não é um simples filisteu da cultura: é um perjuro do espírito e da razão. Poder-se-ia dizer que em uma cultura secular a definição mais próxima de um estado de graça é a daquele indivíduo que jamais deixa de fazer sua própria errata nos textos que lê antes de passá-los às mãos de outro leitor. Se é fato que Deus, como afirma Warburg, “encontra-se nos pormenores”, a correção de uma palavra grafada com erro é um ato de fé. Emendar, fazer a reconstrução epigráfica, prosódica, estilística de um texto espúrio tornando-o válido é uma tarefa infinitamente mais complexa do que redigi-lo originalmente. Como disse A. E. Housman em seu trabalho sobre os processos mentais implicados na crítica de um texto — “The Application of Thought to Textual Criticism” — publicado em 1922, “essa ciência e essa arte exigem mais do que uma mente receptiva; na verdade, é algo que não pode ser ensinado, em absoluto: criticus nascitur, non fit”. A conjunção do saber, da sensibilidade, da empatia com o texto original e do escrúpulo imaginativo que produz uma emenda justa pertence à categoria dos mais raros encontros de circunstâncias, se-gundo Housman. Os riscos são grandes e há muito espaço para ambigui-dades: Theobald pode ter conquistado a imortalidade quando sugeriu que Falstaff morreu “babbling of green fields” (“murmurando algo sobre verdes campos”) — porém essa emenda foi correta? O editor que, no século vinte,

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substituiu por “brightness fell from her hair” (“um esplendor caía de seus cabelos”) as palavras de Thomas Nashe “brightness falls from the air” (“um esplendor desce do ar”) pode até estar correto, porém com isso ingressou inexo ravelmente na categoria dos execráveis.

Com sua pena le philosophe lisant transcreverá trechos do livro que está lendo. Seus excertos podem variar das mais breves citações até extensas transcrições. A multiplicação e a disseminação da palavra escrita depois de Gutenberg possibilitaram uma incalculável proliferação dessas transcrições pessoais, quer em extensão, quer em variedade. O escriba ou o cavalheiro dos séculos dezesseis e dezessete anotava em sua agenda com capa de chifre, em seu bloco de citações, em seu florilegium ou breviário as máximas, as frases de efeito, os aforismos, tropos de mestres clássicos ou contemporâneos. Os ensaios de Montaigne são entretecidos com ecos e citações. Até quase o final do século dezenove — fato testemunhado por reminiscências de pessoas tão diversas como John Henry Newman, Abraham Lincoln, George Eliot ou Carlyle — era costume dos leitores jovens e dos que continuavam a levar a sério a leitura no decorrer de suas vidas transcrever páginas e mais páginas de orações políticas, sermões, poemas e prosa, artigos de enciclopédia e capítulos inteiros de narrativas históricas. Eram vários os motivos de tais transcrições: melhorar o próprio estilo do leitor, armazenar na memória bons exemplos de argumentação ou persuasão, o exercício da memória exata (uma questão da maior importância). Porém, acima de tudo, a transcrição implica o engajamento total com o texto, uma reciprocidade dinâmica entre o leitor e o livro.

É esse engajamento total que resulta nos vários modos de resposta: marginália, anotações breves, correções de texto, emendas, transcrições. Tomadas em conjunto, todas essas respostas geram uma continuação do livro que está sendo lido. A pena atuante do leitor escreve “o texto em resposta ao outro” (vale lembrar as distintas conotações da palavra “resposta”, do latim reposta). Essas respostas podem variar do fac-símile — que é a aquiescência total —, passar por reações favoráveis ou desfavoráveis a determinadas ideias e chegar à negação absoluta, ao “contratexto”. Muitos livros foram escritos

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como verdadeiros anticorpos a outros livros. Entretanto a verdade principal que se extrai de tudo isso é a seguinte: existe latente em todo ato de leitura consequente a compulsão de se escrever um livro em resposta. A definição de um intelectual é simples: é um ser humano que tem na mão um lápis quando está lendo um livro.

Algo envolve o leitor de Chardin, seu fólio, sua ampulheta, seus medalhões entalhados, sua pena pronta para ser usada: é o silêncio. Como seus pre-decessores e contemporâneos das escolas de pintores de interiores, cenas noturnas e de natureza-morta, particularmente os do norte e do leste da França, Chardin é um virtuoso do silêncio. Ele faz do silêncio uma presença quase táctil, algo que se manifesta inequivocamente pela qualidade da luz, pela textura da composição. Nessa tela, em especial, o silêncio é palpável: está no espesso tecido que recobre a mesa, nas pesadas cortinas, na solidez lapidar da parede ao fundo, na maciez amortecedora das peles que recobrem o agasalho e a boina do leitor. Uma leitura genuína requer silêncio (Agos-tinho, em uma passagem famosa, registra o fato de seu patrão, Amboise, ser o primeiro homem que ele via ler sem mover os lábios). A leitura, como Chardin a representa, é um ato silencioso e solitário. Trata-se de um silên-cio vibrante de emoção e de uma solidão abarrotada de vida. Mas a pesada cortina separa o leitor do resto do mundo — do que é mundano (palavra esta que, embora desgastada, aplica-se aqui com justeza).

Seria possível tecer comentários sobre muitos outros elementos da tela em questão: o alambique ou retorta, com suas implicações de investigação científica e sua óbvia inclusão na cena; o crânio que repousa na prateleira, a um só tempo item corriqueiro em escritórios de estudiosos e filósofos e ícone adicional da finitude humana a contrastar com a perenidade do livro. Talvez se pudesse especular ainda sobre a relação da pena com a areia da ampu-lheta, pois é a areia também que seca a tinta da palavra escrita. Entretanto o simples passar de olhos pelos principais elementos do Philosophe lisant de Chardin é suficiente para nos revelar a visão clássica do ato da leitura — visão essa que podemos documentar e pormenorizar na arte ocidental desde

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as representações medievais de São Jerônimo até o fim do século dezenove, de Erasmo diante de seus livros até a apoteose de Mallarmé sobre le Livre.

O que dizer sobre o ato da leitura hoje em dia? Como se compara com a conduta e os valores inerentes à tela de Chardin de 1734?

O tema da cortesia, do encontro cerimonioso do leitor com o livro, implícito na maneira como se veste o philosophe de Chardin, parece agora tão remoto a ponto de ser quase inimaginável. Se ainda encontramos algo parecido com isso, é apenas em cerimônias rituais, inevitavelmente arcaicas, como a leitura de um trecho da Bíblia na igreja ou o solene acesso à Torá, com a cabeça coberta, na sinagoga. Informalidade é o nosso mote — embora haja boa dose de verdade na observação mordaz de Mencken de que muitos dos que se julgam despidos de tradições têm apenas suas roupas desbotadas.

Bem mais radical e significativa a ponto de inibir sua apreensão adequa-da é a modificação dos valores relativos à temporalidade que a ampulheta, o fólio e a caveira representam na tela de Chardin. Toda essa questão da relação entre tempo e palavra, entre a finitude humana e o paradoxo da sobrevivência do livro, questão essa central na cultura erudita desde Pín-daro a Mallarmé — e tão nitidamente central na tela de Chardin —, já não tem o mesmo significado. Essa metamorfose afeta os dois liames da relação clássica entre, por um lado, o autor e o tempo e, por outro, o leitor e o texto.

É bem possível que autores contemporâneos abriguem ainda dentro de si o espantoso sonho da imortalidade, que continuem a colocar suas palavras no papel na esperança de que essas não apenas sobrevivam à morte do autor, como também permaneçam nos séculos por vir. A palavra fantasia — quer em sua conotação de atividade intelectual criativa, quer no seu sentido de presunção desmedida — ainda ecoa. Ecoa, por exemplo, na elegia de Auden a Yeats, embora eivada do amargor e da ironia típicos do autor. Porém, se tais esperanças ainda persistem, não são expressas por quem as tem e muito menos, é claro, divulgadas aos quatro ventos. O manifesto sobre a imortali-dade da obra literária, exaustivamente repetido no ocidente desde Píndaro, Horácio e Ovídio, tem agora o dom de irritar as pessoas. A própria noção de

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fama, de glória literária que desafia a morte, deixa o escritor constrangido. Nada é mais antagônico à consagração expressa exegi monumentum do que a reiterada afirmação de Kafka de que o ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia e prezam o senso comum. Entretanto é o próprio Kafka quem nos qualifica, com toda a ambivalência estratégica de sua obra, a apreender o que há de instável, a origem talvez mesmo patológica do status da obra de arte moderna. Quando Sartre insiste em dizer que até os mais vividos personagens da ficção literária não passam de um punhado de palavras organizadas, de marcas semânticas, letras arbitrárias sobre o papel, ele busca desmistificar, de uma vez por todas, a fantasia queixosa de Flaubert sobre a vida autônoma de Emma Bovary quando ele mesmo já estivesse morto. Monumentum: o conceito e suas conotações — a própria ideia de “monumen talidade” — passaram a ser tratados com ironia. Essa transformação é assinalada com magistral tristeza no poema de Ben Belitt “This Scribe, My Hand”, em que ele, ao pé da Pirâmide de Cestius em Roma, reflete sobre os túmulos de Keats e Shelley.

I write, in the posthumous way,on the flat of a headstonewith a quarrier’s ink, like yourself;

an anthologist’s date and an asterisk,a parenthetical mark in the gasof the pyramid-builders,

an obelisk whirling with Vespasin a poisonous motorcade.

Escrevo, como se escreve postumamente;na face lisa de uma pedra tumularcom a tinta usada pelo gravador de pedras, como vocês;

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a data de um antologista e um asterisco,sinal entre parêntesis no gásdos construtores de pirâmides,

um obelisco num turbilhão de Vespasem meio à fumaça venenosa dos canos de escape.

Observe a precisão de “the posthumous way”; o poeta não se refere à voie sacrée conducente ao Parnaso, que o poeta clássico demarca para sua obra e, por emocio nada inferência, para si mesmo. “The gas of the pyramid-builders” permite — na verdade, sugere — uma interpretação vulgar: “os ares de im-portância que se atribuem os que erigem pirâmides”, sua grandiloquência vazia. Aqui as abelhas de Platão, portadoras da retórica divina que servem ao poeta, são substituídas por Vespas (motociclos) barulhentas, cujas emissões poluidoras decompõem o monumento ao poeta ao mesmo tempo em que os valores da tecnologia de massa que elas representam decompõem a aura que cerca sua obra. Já não mais procuramos nos textos — a não ser em um arti-fício de mandarim — a negação da morte. “Tudo é precário”, afirma Belitt.

A maniacwaits on the streets. Nobody listens.What must I do? I am writing on water...

Um maníacoaguarda nas ruas. Ninguém lhe dá atenção.O que devo fazer? Escrevo sobre a água...

Essa expressão desoladora, é claro, pertence a Keats. Mas foi rechaçada imediatamente por Shelley, convicto que estava da imortalidade em Adonai, atitude essa que o próprio Keats esperava e, de certa forma, contava com ela. Hoje em dia tais discordâncias parecem não mais se sustentar, não têm sentido (“the gas of the pyramid-builders”).

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O leitor também reage com a ironia dessa decadência. Para ele, igual-mente, a ideia de que o livro diante de si continuará a existir depois que ele mesmo estiver morto, de que a obra prevalecerá na disputa contra a ampu-lheta e a caput mortuum da prateleira, deixou de ser uma questão importante. Essa perda de relevância tem consequências sobre o tema da auctoritas, do status normativo e prescritivo da palavra escrita. Não é uma simplificação excessiva identificar o ideal clássico de cultura com o da transmissão de um syllabus, um roteiro de estudos, de textos sibilinos ou canônicos cuja autoridade baliza a conduta de vida de sucessivas gerações (as “pedras de toque” a que se refere Matthew Arnold). A pólis grega via a si mesma como um veículo transmissor orgânico dos ensinamentos de Homero, da pressão estabelecida pelos precedentes heroico-políticos estabelecidos por ele. Os tendões que sustentam a cultura e a história inglesas estão profundamente imbricados na King James Bible, no Book of Common Prayer e na obra de Shakespeare. As experiências de vida, coletivas e individuais, veem-se refle-tidas num apanhado de textos que lhes dão algum sentido. Esse sentido da existência é, pois, de certa forma, um sentido “livresco” (na tela de Chardin a luz converge para o livro aberto e dele emana).

O fenômeno literário em nossa época é difuso e irreverente. Já não é mais uma atitude natural buscar em um livro a orientação que se buscava em um oráculo. Desconfiamos do que se propõe como auctoritas — do texto que é a própria essência da autoria clássica autoritária — precisamente porque ele aspira à imutabilidade. Não fomos nós que escrevemos aquele livro. Até mesmo o encontro mais intenso, mais penetrante, com o texto constitui uma experiência vicária. É este o ponto crucial. O legado do romantismo é o solipsismo tenaz, é o desenvolvimento do “eu” a partir do que lhe é imediato. Wordsworth afirmava que “uma única emoção sentida em um bosque na primavera” tem mais peso, para o indivíduo, que a soma de todos os livros empoeirados das bibliotecas. Nessa mesma linha da doutrina vitalista, os estudantes radicais da Universidade de Frankfurt adotaram o slogan, em 1968: “Abaixo as citações.” Em ambos os casos a oposição se dá entre “a vida vivida” e “a vida mediada pela palavra”, entre o primado da experiência e o

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da palavra escrita, por mais intensa que esta possa ser. Para nós o tal “livro da vida” não passa de um clichê, de um sofisma, de uma antinomia. Já para Lutero, que o utilizou em um ponto crucial de sua versão do Apocalipse, e, ao que parece, para o leitor de Chardin, o livro da vida é uma verdade concreta.

O objeto em si, o livro propriamente dito, modificou-se. A não ser em cir-cunstâncias acadêmicas ou em antiquários, poucos de nós tivemos a opor-tunidade de ter em mãos — muito menos ainda de consultar — o tipo de tomo sobre o qual se debruça o lecteur de Chardin. Quem, hoje em dia, tem livros encadernados especialmente para si? Implícita no formato e na aura que envolve o fólio como o que é visto nessa tela, está a biblioteca particular, estão as paredes cobertas de livros alinhados em prateleiras, a necessária escadinha, estantes, enfim todos esses componentes do espaço privado de Montaigne, de Evelyn, de Montesquieu, de Thomas Jefferson. Tal espaço, por seu turno, implica a existência de relações econômicas e sociais diferenciadas como, por exemplo, as que se dão entre os serviçais domésticos que retiram a poeira e passam óleo nas capas de couro dos livros e o senhor da casa que os lê; como, também, a distinção entre o espaço privado do venerando scholar e o terreno mais vulgar onde o resto da família e o “mundo lá fora” levam suas vidas filistinas e ruidosas. Poucos de nós conhecemos bibliotecas desse tipo e bem menor ainda é o número de quem as possui. A manutenção de uma biblioteca assim, a arquitetura de privilégio que implicava tal espaço onde se praticava a arte da leitura — tudo isso tornou-se remoto (visitamos hoje em dia a Biblioteca Morgan, em Nova York, ou algumas nas grandes man-sões do interior da Inglaterra abertas à visitação e podemos ter uma ideia, evidentemente em uma escala ampliada, de como era a organização de um ambiente de alta erudição). Os apartamentos modernos, principalmente os que são habitados por pessoas jovens, simplesmente não dispõem de espaço, de paredes livres para as fileiras de livros, para os fólios, os in-quartos, a opera omnia de múltiplos volumes da qual o leitor de Chardin selecionou o texto que lê. De fato, é interessante observar como os equipamentos de som e as prateleiras de discos ocupam agora espaços anteriormente destinados

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a livros (a substituição da leitura pela música é um dos principais e mais complexos fatores de mudança na atual tendência da cultura ocidental). De mais a mais, onde se encontram livros, estes são, com frequência, simples brochuras. Ora, não se pode negar que “a revolução das brochuras” tem sido uma conquista da tecnologia, de consequências criativas e democratizantes no acesso ao livro. Obras assim editadas atingem um número muito maior de pessoas e tornou disponíveis textos de todos os campos do conhecimento humano, inclusive do esotérico. Mas há que refletir, também, sobre o outro lado da moeda. O livro editado em brochura é fisicamente efêmero. Não se monta uma biblioteca acumulando edições em brochura. Por sua própria natureza, essas edições de baixo custo voltadas para a massa fazem uma seleção prévia do que pode interessar a esse público e, no mais das vezes, oferece uma antologia da obra literária e das correntes de pensamento, ao invés de buscar sua totalidade. Não se consegue em brochura — ou apenas raramente se consegue — a obra completa de um autor. Não se tem acesso, nessas edições populares, ao que é considerado, por juízos de valor do mo-mento, a produção “inferior” de um autor. Entretanto, a leitura autêntica da obra de determinado escritor só é possível quando a conhecemos integral-mente, quando podemos também nos debruçar com solicitude — ainda que impacientes e ranzinzas — sobre suas “deficiências” e assim construir nossa própria percepção de validade de sua obra. Somente assim se procede a uma leitura autêntica. Assinalada com “orelhas de burro”, levada no bolso como um objeto qualquer e abandonada num saguão de aeroporto, cambaleante como um cão mestiço, numa prateleira ad hoc improvisada com tijolos, a brochura é, a um só tempo, um prodígio da embalagem literária e a negação da dádiva de forma e de espírito inequivocamente expressa na cena pintada por Chardin. “E eu vi na mão direita daquele que se sentava ao trono um livro lacrado com sete selos.” Uma brochura comportaria sete selos?

Costumamos sublinhar trechos (principalmente se somos estudantes ou escrevemos críticas literárias premidos pelo tempo). Às vezes rabiscamos algumas anotações nas margens. Porém quão poucos de nós redigimos marginálias no sentido das que eram produzidas por Erasmo ou por Cole-

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ridge. Quão poucos de nós anotamos profusamente e com rigor. Hoje em dia apenas o epigrafista especializado, o bibliógrafo ou o estudioso de textos específicos corrige, revê, repara, acrescenta, isto é, somente essas categorias de leitor encontram no texto uma presença viva cuja contínua vitalidade, cujo intenso esplendor depende do envolvimento efetivo do leitor. Quantos de nós temos o preparo suficiente para corrigir até mesmo o mais crasso equívoco na citação de um clássico, identificar e emendar o mais pueril dos erros de inflexão e de métrica, embora tais tropeços e erros palmares pro-liferem mesmo nas mais concei tuadas e modernas edições? E quais de nós nos damos ao trabalho de transcrever, de anotar por puro prazer e desejo de guardar na memória, as páginas que nos falam mais diretamente, que nos incitam o espírito de maneira mais profunda?

A memória é, naturalmente, o ponto crucial. A capacidade de reagir ao texto, a compreensão e a resposta crítica à auctoritas pertinentes ao ato clássico da leitura representado desse ato por Chardin dependem estrita-mente das “artes da memória”. Le Philosophe lisant, como os homens cultos com quem ele se associa — e essa é uma tradição que prevaleceu desde a antiguidade até aproximadamente a Primeira Guerra Mundial — sabem textos de cor (essa expressão merece que se reflita sobre ela). Sabem de cor extensos trechos das Escrituras Sagradas, da liturgia, da poesia, épica e lírica. Os feitos prodigiosos de Macaulay nesse sentido — desde menino de escola ele se dispôs a memorizar um bom número de poemas em latim e em inglês — foram apenas um caso extremo de uma prática generalizada. A capacidade de citar de memória as Escrituras, de recitar de cor longos trechos de Ho-mero, Virgílio, Horácio ou Ovídio, de ter sempre uma citação apropriada de Shakespeare, Milton ou Pope gerou uma tessitura compartilhada de ecos, de identificações e reciprocidades intelectuais e emocionais sobre as quais fundamentou-se a linguagem da política, das leis e das letras britânicas. O conhecimento, de cor, das fontes latinas da cultura, de La Fontaine, de Racine, das frases de impacto de Victor Hugo deram à vida pública francesa seu caráter retórico. O leitor clássico, o lisant de Chardin, situa o texto que está lendo em um espaço cheio de ressonâncias. Um eco responde a outro,

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a analogia é precisa e imediata, as correções e as emendas são justificadas por precedentes evocados com precisão. O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações. Existe uma hipótese muito antiga e assombrosa segundo a qual as musas da memória e da invenção são uma só.

A atrofia da memória é a característica principal da educação e da cul-tura a partir da metade do século vinte. A grande maioria de nós já não sabe mais identificar — e muito menos citar — até mesmo as passagens bíblicas mais importantes, tampouco os textos clássicos que constituem não apenas a escritura subjacente à leitura ocidental (de Caxton a Robert Lowell a poesia inglesa carrega dentro de si o eco implícito da poesia que a antecede) como também constituem o próprio alfabeto com o qual são codificadas nossas leis e instituições públicas. As mais elementares alusões à mitologia grega, ao Antigo e ao Novo Testamento, aos clássicos, à história antiga e à europeia tornaram-se herméticas. Pequenos retalhos de textos sobrevivem agora precariamente à custa de pretensiosas notas de rodapé. A identificação da fauna e da flora, das principais constelações, da liturgia das horas e das estações do ano, que, como demonstrou C. S. Lewis, são conhecimentos essenciais à mais simples compreensão da poesia ocidental, do drama e do romance, de Boccaccio a Tennyson, são considerados, hoje em dia, um saber especializado. Já não mais aprendemos de cor. Os interstícios do nosso saber não comportam ecos, pois estão entulhados de trivialidades estridentes. (Não espere que um estudante, ainda que relativamente bem preparado, reaja à menção da palavra “Lycidas”, que lhe diga o que é uma écloga, que reconheça uma sequer das alusões de Horácio ou os ecos, de Virgílio e Spenser, que dão aos quatro versos iniciais daquele poema o seu significado, seu significado de significados. O ensino escolar de nossos dias, principalmente nos Estados Unidos, é a amnésia planejada.)

O encordoamento da memória só pode ser retesado onde haja silêncio — um silêncio tão explícito como o da tela de Chardin. Aprender de cor, transcrever fiel mente, ler com toda a atenção é fazer silêncio dentro do silên-cio. Esse tipo de silêncio, a esta altura da vida contemporânea na sociedade

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ocidental, tende a tornar-se um luxo. Será tarefa dos futuros historiadores da mente humana (historiens des mentalités) mensurar o fenômeno da redução de nossa capacidade de atenção e do esgarçamento da nossa concentração que resultam do simples fato de podermos ser interrompidos a qualquer instante pela campainha de um telefone, pelo fato ancilar de que a maioria de nós acabará atendendo o telefone — a não ser quando estoicamente de-cidimos em contrário — seja o que for que estejamos fazendo. Precisamos que a história estude os níveis de ruído e a redução dos intervalos entre os instantes de silêncio natural em que ainda podiam ficar imersos, durante o dia, Chardin e seu leitor. Há estudos recentes dando conta de que aproxi-madamente setenta e cinco por cento dos adolescentes nos Estados Unidos têm sempre ao fundo um som ligado enquanto leem (um rádio, um toca--discos, um aparelho de televisão, no próprio cômodo onde se encontram ou no cômodo ao lado). Um número crescente de jovens e adultos confessa-se incapaz de se concentrar em um texto sério sem um background de som organizado. Sabemos ainda muito pouco sobre as maneiras como o cérebro processa e integra estímulos sonoros simultâneos que competem entre si. Ignoramos, pois, os efeitos desses inputs eletrônicos nos centros da atenção e da formação de conceitos envolvidos no processo da leitura. Entretanto é pelo menos plausível supor que as capacidades de compreensão exata, de retenção, de resposta viva ao estímulo do texto que enleia leitor e leitura estejam drasticamente solapadas. Tendemos a ser, diferentemente do phi-losophe lisant de Chardin, “meio leitores” apenas.

Seria tolo e insensato almejar a restauração do complexo de atitudes e disci-plinas essenciais ao que me refiro como “a arte clássica da leitura”. As relações de poder (auctoritas), a administração do lazer e dos serviços domésticos, a arquitetura e a acústica dos espaços privados necessários àquele ato são incompatíveis com os valores e as condições das sociedades de consumo ocidentais, igualitárias e populistas. Neste ponto, aliás, nos defrontamos com uma anomalia perturbadora. Existe, sim, uma sociedade — ou uma ordem social — na qual muitos dos valores e hábitos de sensibilidade implícitos na

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tela de Chardin ainda permanecem operativos; na qual os clássicos são lidos com atenção apaixonada; onde a mídia escassa não compete com o primado da leitura; onde a educação secundária e os desafios impostos pela censura induzem à constante memorização e à transmissão de textos de lembrança em lembrança. Existe essa sociedade que é livresca no mais profundo sen-tido da palavra, que discute seu destino referindo-se constantemente aos textos canônicos, e cujo sentido de registro histórico é ao mesmo tempo tão compulsivo e tão vulnerável que acaba de gerar uma verdadeira indústria de exegese falsificada. Refiro-me, evidentemente, à União Soviética. E este exemplo por si só é suficiente para nos colocar novamente diante de per-plexidades tão antigas como os diálogos de Platão sobre as afinidades entre a verdadeira arte e o poder centralizado, entre um alto nível de eruditismo e o absolutismo político.

Porém no ocidente democrático e tecnológico, até onde se pode afirmar, a sorte está lançada. O fólio, a biblioteca particular, a intimidade com as línguas clássicas, as artes de exercitar a memória pertencerão, cada vez mais, a umas poucas pessoas muito especializadas. O preço do silêncio e da privacidade será cada vez mais alto. (Em parte, a ubiquidade e o prestígio da música derivam precisamente do fato de ser possível ouvi-la na presença de outras pessoas. A leitura séria exclui até mesmo a pessoa mais íntima.) Já é possível afirmar que as circunstâncias e as técnicas simbolizadas por Le Philosophe lisant são, literalmente, acadêmicas. Ocorrem em bibliotecas universitárias, em arquivos, em gabinetes particulares de intelectuais.

Os perigos que isso implica são evidentes. Não apenas as literaturas grega e latina tornaram-se inacessíveis: porções substanciais de toda a literatura europeia, desde a Divina comédia até Sweeney Agonistes (poema que, como tantos outros de T. S. Eliot, é um palimpsesto de ressonâncias), já não mais se encontram ao alcance das pessoas razoavelmente cultas. Cultuadas apenas por estudiosos e visitadas ocasionalmente e de maneira fragmentada por estudantes universitários, obras que já foram marcos culturais comparti-lham agora a triste sina daqueles valiosos Stradivarius da coleção Coolidge, em Washington, silenciosos em suas vitrinas. Grandes extensões de terra

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outrora férteis já se encontram irremediavelmente desertificadas. Quem, além do especialista, lê Boiardo, Tasso e Ariosto, quem se deixa enredar nessa linhagem entretecida do épico italiano sem o qual nem o Renasci-mento nem o Romantismo fazem sentido? Será Spenser ainda uma presença fundamental em nosso repertório de emoções como o foi para Milton, para Keats, para Tennyson? As tragédias de Voltaire são, literalmente, livros fechados; somente os estudiosos podem se lembrar de que essas peças do-minaram amplamente o gosto e o estilo europeus por quase um século, que foi Voltaire — não Shakespeare ou Racine — quem ocupou os palcos mais importantes de Madri a S. Petersburgo, de Nápoles a Weimar.

Entretanto a perda não é apenas nossa. Como vimos, o ato da verdadeira leitura é, essencialmente, um ato de reciprocidade dinâmica, de resposta à vida do texto. Este, por mais inspirado que seja, não tem razão de ser se não for lido (como pode acelerar os corações um Stradivarius que não é tocado?). A relação entre o leitor verdadeiro e o livro é criativa. Tanto precisa ele do livro, quanto o livro, dele — uma reciprocidade apresentada com exatidão na tela de Chardin. É nesse sentido perfeitamente concreto que todo o ato genuíno de leitura, que toda lecture bien faite, é um coadjuvante do texto. Lecture bien faite é expressão definida por Charles Péguy em sua incompa-rável análise da verdadeira erudição (no Dialogue de l’histoire et de l’âme païenne de 1912–1913).

Une lecture bien faite [...] n’est pas moins que le vrai, que le véritable et même et surtout que le réel achèvement du texte, que le réel achèvement de l’œuvre; comme un couronnement, comme une grâce particulière et coronale [...] Elle est ainsi littéralement une coopération, une colabora-tion intime, intérieure [...] aussi, une haute, une suprême et singulière, une déconcertante responsabilité. C’est une destinée merveilleuse, et presqu’effrayante, que tant de grandes œuvres, tant d’œuvres de grands hommes et de si grands hommes puissent recevoir encore un accom-plissement, un achèvement, un couronnement de nous [...] de notre lecture. Quelle effrayante responsabilité, pour nous.

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Uma leitura bem-feita [...] nada mais é que a verdadeira, que a autêntica e, acima de tudo, a real culminação do texto, que a real culminação da obra; é como um coroamento, como uma graça particular e final [...] Trata-se, literalmente, de uma cooperação, uma colaboração ín-tima, interior [...] e também uma elevada, uma suprema, singular e desconcertante responsabilidade. É um desígnio maravilhoso e quase assustador que tantas grandes obras, que tantas obras de grandes homens e de homens tão grandiosos possam ainda receber algo em acréscimo, uma finalização, um coroamento feito por nós [...] por nossa leitura. Que responsabilidade assustadora, a nossa.

Como diz Péguy, “que assustadora responsabilidade”, porém, ao mesmo tempo, que privilégio incomensurável saber que a sobrevivência de uma obra literária, por maior que esta seja, depende de une lecture bien faite, une lecture honnête. E saber, também, que esse ato de leitura não pode ser deixado sob a custódia exclusiva de uns poucos “mandarins” especialistas.

Mas onde vamos encontrar leitores de verdade, des lecteurs qui sachent lire? Será necessário, a meu ver, prepará-los.

Carrego comigo um sonho de “escolas de leitura criativa” (“escolas” pode ser uma pretensão demasiadamente grande; uma sala tranquila e uma mesa já bastariam). Precisaríamos partir do nível mais simples e, portanto, o mais rigoroso quanto à integridade do material. Precisaríamos aprender a decompor as frases em seus elementos constituintes e analisar gramati-calmente nosso texto, pois, como Roman Jakobson já nos ensinou, não terá acesso à gramática da poesia, aos nervos e aos tendões do poema, aquele que não enxergar a poesia da gramática. Teríamos que aprender novamente sobre métrica, sobre escansão do verso, saberes tão corriqueiros para qual-quer menino de escola da era vitoriana. Precisaríamos fazer isso não por pedantismo, mas pelo fato irrefutável de que em toda poesia — e em uma boa parte da prosa — a métrica é a música que controla o pensamento e a emoção. Teríamos que despertar cada músculo da memória, descobrir em

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nós mesmos, seres tão comuns que somos, os enormes recursos de evocação precisa de que dispomos e o deleite que nos dão os textos que conseguiram alojar-se dentro de nós. Buscaríamos adquirir os rudimentos do saber que nos permitissem reconhecer as referências mitológicas e bíblicas, a lem-brança compartilhada da história, saberes sem os quais seria praticamente impossível — exceto por meio de constantes recursos a um número cada vez maior de detalhadas notas de pé de página — ler adequadamente um verso de Chaucer, de Milton, de Goethe e mesmo (para citar, de propósito, um exemplo moderno) de Mandelstam, um dos mestres das ressonâncias.

Uma turma de “leitura criativa” mover-se-ia passo a passo. Começaria pela quase dislexia dos hábitos atuais de leitura. Teria a ambição de atingir o nível de competência bem-informada que as pessoas eruditas da Europa e dos Estados Unidos possuíam, digamos, no final do século dezenove. Teria como aspiração, em termos ideais, aquele achèvement, aquele envolvimento pleno de satisfação com o texto do qual nos fala Péguy e que nos permitisse fazer leituras como, por exemplo, a que Mandelstam fez da obra de Dante, ou Heidegger da de Sófocles.

As alternativas não são animadoras: de um lado, temos a vacância do intelecto, ruidosa e vulgar; do outro, o recuo da literatura para dentro das vitrinas dos museus. Temos as abomináveis simplificações esquemáticas dos clássicos, com versões pré-digeridas e banalizadas, por um lado ou, por outro, as ilegíveis edições eivadas de notas de vários comentadores. A arte da leitura precisa reencontrar seu caminho, ainda que a duras penas. Se falhar, se une lecture bien faite passar a ser apenas um artifício do passado, um enorme vazio passará a ocupar nossas vidas e teremos perdido para sempre a serenidade e a luz que emanam da tela de Chardin.

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