introduÇÃo · 2015-10-06 · este escritor de meia idade que ... já que quase parece um relato...
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INTRODUÇÃO
João Gilberto Noll é um escritor de Porto Alegre, que não só desponta dentro
da esfera nacional, mas como internacional. Autor de obras consideradas
contemporâneas discute temáticas ambientadas dentro de um contexto pós-
moderno, com personagens que tratam de problemáticas que circundam não só uma
sociedade local, mas global.
Com estilo singular no ato da escrita, Noll possui uma biografia de treze livros
publicados, em diversas editoras, obras inclusive já adaptadas ao teatro e cinema.
Seu primeiro livro, de contos, O cego e a dançarina, data de 1980, com contos de
valorização nacional, porém sempre cunhadas ao eixo local – Porto Alegre. Depois
deste, segue uma invejável trajetória com A fúria do corpo (1981), Bandoleiros
(1985), Rastros de verão (1986), Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da esquina
(1991), Harmada (1993), A céu aberto (1996) entre outros.
Em julho de 2004, após viagem a Londres, como primeiro escritor brasileiro
convidado pelo King’s College para ocupar o cargo de writer in residente, com esta
experiência britânica e os elementos que o definem, João Gilberto Noll lança o
romance Lorde, que em uma primeira visão parece mais uma autobiografia, do que
propriamente um romance de literatura contemporânea brasileira.
Noll neste romance se utiliza de características próprias vivenciadas no
exterior para criar tal história. Um romance que é quase todo ambientado em
espaços pertencentes aos não-lugares, basta ler a primeira página, quando o
narrador se vê em um aeroporto com a dúvida da viagem.
O narrador do romance de Noll é a caracterização do sujeito sem nome da
pós-modernidade tratada Stuart Hall, como em uma sociedade que os sujeitos se
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desconhecem, embora habitem o mesmo espaço. Este escritor de meia idade que
quer se desvencilhar de sua história em Porto Alegre e aceita o convite de um inglês
para ir a Londres, ir sem saber ao certo sua missão em tal nacionalidade.
O romance possui certa fluidez ao seu leitor, já que quase parece um relato
oral, segue uma ordem linear de fatos e acontecimentos, embora a questão temporal
seja totalmente apagada do romance, que conta com inúmeros fluxos inconscientes
do personagem dentro de sua mente ao longo da história. A dificuldade do leitor ao
se deparar com a obra é em acompanhar uma crise de identidade do sujeito que a
cada página busca uma nova versão sobre si mesmo, tentando se desvencilhar de
uma história de vida, de uma nacionalidade, de tradições, de uma língua.
Em Lorde, todos os espaços são imprecisos, não previsíveis, embora conte
com lugares localizáveis, todo seu contexto acontece em não-lugares. O narrador
personagem permanece em uma eterna busca, do início ao fim do romance. Todos
esses espaços são imprecisos, já que nem o personagem em terra estrangeira, e
guiado por um inglês desconhecido, sabe sua trajetória. Ao longo de todos estes
espaços percorridos, o escritor/personagem se depara com inúmeras pessoas que
de uma forma ou outra afetam sua história dentro da outra nacionalidade, pessoas
em sua maioria sem nome, como ele.
O interessante na obra, e o que irá constituir fator importante na dissertação
será analisar toda a problemática que acontece em torno da identidade do
personagem. Problemáticas que serão vislumbradas por meio de toda a narrativa do
romance, mas que servirão de exemplo paradigmático para realçar como a literatura
contemporânea é um espelho para a sociedade, ou seja, por meio dos Estudos
Culturais e da Teoria Literária tentaremos analisar como a obra Lorde de João
Gilberto Noll reflete toda uma questão social e cultural vigente, com acontecimentos
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que são demonstrados por meio da ficção, mas exemplificados na teoria da
sociedade atual. Uma obra que discute temas presentes, como a tradição, a
nacionalidade, a língua de um indivíduo, e como estes servem de estanque para
uma identidade local se pontuar dentro de uma global. Com tais efeitos, a crise da
identidade do personagem, ambientará os leitores do romance a uma
contextualização da sociedade atual.
O romance Lorde é de significativa importância para o estudo da percepção
da identidade do sujeito, de como esta identidade é imperante na formação contínua
de visão acerca de si mesmo, para o exame intrínseco do elemento subjetivo do
sujeito – a identidade. O estudo desta obra também quer acrescentar a crítica sobre
a obra de João Gilberto Noll, por incluir a análise de um romance pouco explorado a
nível acadêmico, mas de grande importância literária.
O objetivo primeiro desta análise será a problemática da identidade presente
do personagem. Caracterizando posteriormente seus desdobramentos, como é uma
identidade em crise, que efeitos a sociedade atual apresenta para que uma
identidade entre em crise, como fatores de nacionalidade, língua, tradição e
tradução cultural embora pareçam discursos não visíveis ao sujeito, serão eles os
responsáveis por levar um suporte, uma estabilidade local a uma identidade.
O estudo desta dissertação será embasado em teorias que advém dos
Estudos Culturais e da Teoria Literária, assim serão utilizados autores como Stuart
Hall, Antony Giddens e Kathryn Woodward que trarão a visão dos estudos de
identidade, formados nas premissas dos Estudos Culturais e hoje ambientados
dentro da Teoria Literária circundante. Outros autores terão também, grande
valência dentro deste estudo, e ajudaram a trazer o suporte teórico merecido em seu
determinado contexto de análise.
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Para se atingir o objetivo principal desta dissertação, se trilhará dois capítulos,
que se desdobrarão em subitens para que possam ser compreendidos por uma viés
de análise. O primeiro Identidade: perspectivas teóricas – apresentará uma
importante visão para o estudo no que diz respeito a compreensão dos
acontecimentos passados no século XX e que denotaram importância a tal ponto a
modificar um modo de pensar anterior e depois criar uma nova forma de pensar
sobre a realidade da sociedade. Para isso é delineado um resumo que discorrerá
sobre todos os acontecimentos marcantes do século XX, acontecimentos que
levaram a modificar toda uma esfera comportamental dos sujeitos por meio da
caracterização de suas identidades.
Este primeiro capítulo sofre sua primeira subdivisão ao apresentar um
possível resumo do século anterior, e este adentrar a apresentação dos Estudos
Culturais. O subitem 1.1 Estudos Culturais é uma pequena apresentação e
historização da temática, para que se possa compreender como esta vertente de
estudos que surgiu na sociedade no século XX, hoje possui tamanha importância
para a esfera de compreensão dos estudos acerca da identidade.
Assim, em seguida, é delineado o próximo subitem 1.2 Identidades: primeiros
conceitos, onde irá se problematizar o conceito identidade, e este já em sua
compreensão apresentará inúmeras impressões acerca de seu próprio conceito.
Como a identidade se tornará uma linha tênue de pensar sobre a formação do eu.
Assim adentramos ao subitem 1.2.1 Identidade: problematização teórica que se
refletirá os conceitos presentes sobre identidade, e como são concebidos na
contemporaneidade pelos principais autores que tratam da temática. Deste modo
estes autores trarão as suas análises sobre a identidade para que possam ser
interpolados ambos os conceitos.
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No subitem 1.3 Identidades e suas concepções, será apresentada a
concepção de sujeito e de identidade dentro do conceito pós-moderno de sociedade,
este conceito sofrendo alteração pela ótica analisada, ou seja, esta exposição de
identidade hoje, se encontra deslocada, devido a sociedade se encontrar dentro de
outros parâmetros de representação da realidade. Assim, os conceitos que
anteriormente serviam para uma sociedade e automaticamente para um sujeito ser
entendido, estes nesta pós-modernidade não servem como parâmetros mais de
análise das identidades presentes.
Já o subitem 1.4 Identidade coletiva nacional discutirá os parâmetros que são
considerados para que a nação se constitua como tal dentro das identidades, como
este fator nacional é uma comunidade imaginada vista por Hall e refletirá como a
história é criada dentro da nação como um fator condicionante de suas sociedades e
sujeitos. Estes estudos serão essenciais para a compreensão do romance, já que o
mesmo discute a formação nacional e de seus preceitos por meio do personagem.
O subitem 1.5 Pensando a diáspora trará para a dissertação, a discussão a
respeito do processo de diáspora, primeiro historicizando a temática, depois
estudando a evolução de sua conceituação até o processo de globalização como
fator de influência.
Por fim, como fechamento do capítulo, discute-se nesta pesquisa os fatores
de tradição e tradução cultural com o subitem 1.6 Tradição X Tradução cultural.
Onde se pretende analisar como a tradição influi na identidade de um indivíduo e de
uma sociedade e como a tradução para uma outra cultura, afeta a estabilidade da
tradição passada, instaurada do local. Processo que é analisado por meio do
personagem do romance Lorde e explicitado através de todo o fluxo da narrativa.
Passando para o segundo capítulo – Lorde: uma análise, teremos a
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explanação teórica da análise propriamente dita. Em um primeiro momento, havendo
uma introdução com o resumo do romance, fator importante para o desenvolvimento
da análise a ser feita posteriormente.
Assim, na problemática da identidade de Lorde de João Gilberto Noll, propõe-
se uma detalhada leitura da percepção desta identidade no romance, com uma
leitura crítica ao enredo – 2.1 O enredo de Lorde – que será voltado para as
características dentro de uma análise da Teoria Literária. Onde se procurará
identificar fatores da obra, para a finalidade de uma compreensão teórica a respeito
do romance.
Em uma segunda parte, caberá - 2.2 uma compreensão do processo
identitário dentro de Lorde, onde serão atribuídas todas as teorias utilizadas no
primeiro capítulo para análise do romance. Discutindo fatores como nacionalidade,
cultura, tradição, língua, objetos a serem identificados dentro do romance, ou
melhor, por meio da identidade do personagem em sua trajetória ao longo da
narrativa.
A última parte da análise de Lorde encerra-se com a investigação e
compreensão do por que do título ser abrasileirado, 2.2.1 Lorde: uma identidade
britanizada, entre outros pontos importantes e quais foram os objetivos que
circundaram toda esta esfera de pensar, características que foram buscadas ao
longo do romance, e que trarão as considerações finais a respeito desta vertente de
análise do romance Lorde de João Gilberto Noll, o qual problematiza a identidade
contemporânea do sujeito.
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1. IDENTIDADE: PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Por isso podemos falar de uma identidade cultural, como o legado mais representativo e mais precioso de um povo. (Juan M. Ossio. Análisis social y crítica. Texto gravado no Memorial da América Latina, Barra Funda, São Paulo, Brasil.)
O presente trabalho toma como objeto de estudo a obra Lorde (2004) do
escritor João Gilberto Noll enfocando a questão da identidade por meio de uma
análise de personagem e também através do espaço e tempo da narrativa se
compreendendo os seus desdobramentos.
Num primeiro momento, antes de adentrarmos na questão de identidade, faz-
se necessário discorrermos sobre os Estudos Culturais, o qual é visto como um
campo de estudos criado no século XX, caracterizado por transformações e avanços
em muitas esferas de estudo e pensamento da sociedade.
O século XX também foi responsável por uma transição de pensamento
humano em seu auto-entendimento, devido a uma série de acontecimentos que
impactaram a estética da época (a visão particular ou coletiva sobre as coisas). Para
que haja uma compreensão destes acontecimentos baseio-me no amplo panorama
que liga as artes, as diversas literaturas aos acontecimentos históricos de cada
época delineados por Arruda & Piletti (2003). Segundo a visão dos autores,
podemos ganhar uma perspectiva mais ampla na nossa apreensão da arte e de
suas vertentes mediante a associação com o contexto histórico-social. Dessa forma,
entender a literatura e as artes que sofreram grande mudança em sua compreensão,
resultados estes que levaram a uma transformação do século XX, e que por meio da
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estética podem vir a ser compreendidas pelas vertentes artísticas do mesmo século.
Para um entendimento do século XX por meio de suas vertentes artísticas
destacarei uma visão sobre as artes, já que nesse sentido, apreciar a arte significará
“lidar com sentimentos e dúvidas, emoções e perplexidades, enfim, todas as
particularidades características dos seres humanos” (ABAURRE; PONTARA;
FADEL, 2003, p. 02).
Um trecho do poema Epitáfio para o século XX, de Affonso Romano de
Sant’Anna (FIGUEIRA, 2002, p.34,35), permite-nos traçar um retrato deste século
via sensibilidade estética do poeta:
1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.
2. Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.
3. Aqui jaz um século
que se esvaiu
na nuvem atômica
salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
- nux-vômica.
4. Aqui jaz o século
que o muro dividiu.
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Um século de concreto
Armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu (...)
6. Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da História,
a morte do homem,
em que se pisou na lua
e se morreu de fome.
7. Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
Século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custou aproximou. (...)
9. Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e quando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno
século que de si
faz tanto alarde
e, no entanto,
- já vai tarde. (...)
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A voz poética de Affonso Romano de Sant’Anna encarna uma visão
pessimista, uma vez que delineia um século pleno de destruições, mortes e
descrenças com o homem e o mundo. Vemos como a poesia e, por conseguinte, a
arte, é como afirmam Arruda & Piletti “o espelho de uma época” (1998, p. 08), pois
mostra a face do artista e também o cenário no qual produziu sua obra, ou seja, a
sociedade em que viveu.
Sant’Anna desacredita o século XX por suas mazelas ao ser humano, as
perturbações e conflitos que o homem criou para o próprio homem, com sentimentos
que validam estas mudanças para o futuro com sentenças que acarretaram aos
homens mudanças de pensamento de seu próprio entendimento.
Em sua poesia, o autor destaca as grandes guerras mundiais vividas e tantas
outras pequenas também sofridas, reflexos de suas políticas descentralizadas,
século que realça seu insucesso, guerras e questões que marcaram por suas
grandes bombas, criação de grande armamento bélico e o entender de sua
autodestruição, quando em reflexo as duas bombas atômicas foram lançadas e as
duas cidades foram destruídas, é que o homem entendeu que o próprio homem
poderia se autodestruir.
Um século que foi marcado pelo concreto, por grandes centros urbanos
criados, onde os mesmos engoliam os espaços rurais, onde o rural deu lugar ao
urbano e com isso crescendo não só seus centros, mas suas populações e, por
conseguinte, suas mazelas, um século onde o canceroso se preponderou, onde as
drogas saíram apenas do patamar de consumo e passaram para um grande
comércio multinacional e doenças criadas pelo homem agravam ainda mais suas
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mazelas.
O poeta enfatiza o século em que “se pisou na Lua e se morreu de fome”,
tornando-se contraditório em suas percepções, como se pode vislumbrar alcançar os
céus, descobrir o novo, e ao mesmo tempo, esquecer a realidade presente, onde
pessoas morrem de fome, e se dilaceram por tão pouco.
O século XX foi o marco também para a questão racial, o homem branco e o
negro desceram de pedestais ditos não iguais e passaram para um mesmo nível.
Sabemos que está realidade não é totalmente igualitária ainda, pois não podemos
comparar, por exemplo, países europeus aos países africanos em igualdade política,
comercial ou financeira, mas se entende que foi neste século que as
descentralizações começaram tiveram grande marco.
Sant’ Anna, por fim, destaca a questão do que se chamou de moderno, hoje
no contemporâneo se encontrando desatualizado, seja em um entendimento próprio
de suas bases, terminando o poema com a premissa de “já vai tarde” com o intuito
de esperança ao novo, ao novo século que se inicia e que atrai alardes às novas
ideologias a serem buscadas em prol do entendimento de sua produção, criação ou
até mesmo de reflexo de seu passado.
Deste modo, pelo estudo das diferentes formas de arte, entramos em contato,
de modo indireto, com as características da época em que obras foram produzidas.
Essa experiência nos permite compreender melhor como, ao longo de nossa
existência, o ser humano tem visto o mundo em que vive. Afinal, se “podemos dizer
que somos fruto da sociedade em que vivemos, temos também de aceitar que
nossas crenças são reveladas ao nos expressarmos e, principalmente, pelo modo
como o fazemos” (ABAURRE; PONTARA; FADEL, 2003, p. 03).
Assim, delineio alguns dos acontecimentos marcantes para o século XX,
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segundo Arruda & Piletti1
O início do século XX é marcado ainda pelo entrave do Imperialismo restante
no mundo do século XIX. Divisões territoriais e culturais, principalmente, na Europa,
Rússia e Ásia, países fortes que desentravam a Primeira Grande Guerra Mundial, a
qual, em sua ideologia, foi uma luta viva contra os regimes imperiais instaurados
com visões de mudanças, separações e instauração de novos regimes.
, que como discorridos acima ajudaram a descentralizar o
pensamento do homem e o levaram a uma nova concepção de realidade e de
sociedade.
Porém, as mudanças com a Primeira Guerra Mundial levam os não favoráveis
aos regimes a constatadas revoluções, como a socialista de 1917, que após foi
encadeada com a crise de 1929, sentida mais na América do Norte, mas com
desdobramentos e reflexos pelo mundo.
Alguns regimes tentaram ser implantados como forma de uma nova visão ao
Nacionalismo, como é o caso do Fascismo e do Nazismo, ideologias que pretendiam
ser o norte dito “correto” do modo de pensar da época.
Esses acontecimentos primeiros do século XX foram ou serviram como
estopim para a Segunda Grande Guerra Mundial de 1939 a 1945, quando as
grandes potências do mundo resolveram unir forças contrárias e lutar por uma
liderança mundial.
Já praticamente na metade do século XX, o mundo se nota mudado, não em
transformações terrenas, mas em transformações mentais que alteram seu modo de
vida e pensar sobre si mesma.
Depois, o mundo não vê mais guerras frontais, de homem a homem com
grande mobilização, porém acontece no mundo a Guerra Fria, que ganha este nome
1 ARRUDA, José Jobson de A.; PILLETI, Nelson. Toda a História. 7. ed. São Paulo: Ática, 1998.
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justamente por não ser comparada às guerras anteriores, ou seja, não contou com
confronto direto, mas forças de poder (administrativas, sociais, políticas), que foi o
suficiente para que acontecesse a bipolarização do mundo. De um lado os Estados
Unidos da América com seu capitalismo instaurado e de outro o socialismo da antiga
União Soviética, cada qual com seus seguidores.
E é a partir da Guerra Fria que o mundo destaca suas corridas bélicas,
marcada na Segunda Guerra com as bombas atômicas, tiveram seus desmembrares
efetivos de desenvolvimento somente depois pelos países, quando denotaram a
importância dos armamentos para uma posição mundial. A corrida espacial do
homem em conquistar o universo, de um lado E.U.A. e de outro a Rússia, também
marcam este século. Como não houve mais grandes guerras, não significa que o
mundo ficou extinto delas, pelo contrário, elas se tornaram localizadas, guerras tão
sangrentas quanto, porém com focos mais locais, como é o caso da Palestina, em
guerras civis e atentados terroristas até hoje.
Em 1989, houve a queda do muro de Berlim, que datou como marco a abertura de
culturas fechadas ao processo comercial-cultural global, barreiras que limitavam os
sujeitos de suas sociedades as tendências estéticas culturais foram voltados a
outras esferas sociais e econômicas. (ARRUDA & PILETTI, 1998, p. 79)
Assim as culturas locais não poderiam mais viver de maneira isolada ao
global. Deste modo, o século XX é o momento chave da humanidade, quando os
processos imperialistas são não mais prestigiados, e após inúmeras guerras, sejam
locais ou mundiais, o globo se desmembra em uma grande multipolarização, através
de blocos econômicos e, como dentro destes blocos econômicos quem manda é o
financeiro, os países que possuem maior voz de capital serão automaticamente os
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países seguidos, ou blocos tendencionários. E é desta forma que o mundo passou
do século XX para o XXI o legado da globalização, o qual transformou o mundo em
uma grande rede, quebrando tempos e espaços e/ou eliminando fronteiras.
No entanto, com essas aproximações de culturas, as desigualdades sociais
começaram a provocar inquietações nas sociedades, as quais levam seus sujeitos a
um desejo de retratar a sociedade e os problemas nela existentes.
Assim, apesar de diferentes entre si, essas sociedades apresentam em
comum o questionamento da cultura legada pelo século XX. Havendo pensamentos
de que alguns padrões culturais estigmatizados pela sociedade estavam
envelhecendo.
E para entender os processos contemporâneos sociais e culturais que estão
dialogando com a sociedade, primeiro temos que destacar sua vertente, o ponto de
ruptura de toda esta discussão “moderna” sobre sociedade.
Se analisado todos os fatos que marcaram o século XX demonstrados até
aqui, se torna mais visível o porquê destes fatores culminarem para a mudança de
pensamento na sociedade, mudanças que levaram o homem a procura de seu
entendimento, levando-o ao questionamento de sua existência, e, ao mesmo tempo,
a uma concepção de sua fragilidade, mesmo que esta seja intrínseca.
Com retomadas de questões a partir das duas grandes guerras, a sociedade
começa a refletir uma outra visão acerca da realidade, com um olhar que causa
ruptura com o passado. Assim, as culturas nacionais e locais começam a ser
compreendidas de outras maneiras. E é desta forma que os processos culturais e
seus desdobramentos começam a ser estudados, com uma nova visão, que culmina
para a criação de uma nova vertente de estudos: os Estudos Culturais.
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1.1 OS ESTUDOS CULTURAIS
No campo social, bem como no campo cultural da sociedade, como uma das
maneiras de entender a sociedade e seus produtos culturais, destaca-se os Estudos
Culturais. Campo que procura estudar os processos sociais que os indivíduos
vivenciam ao longo de sua existência. Essas questões, nas últimas décadas,
vislumbram as relações da sociedade e seus temas transversais, que hoje são
amplamente reconhecidos, inclusive em meios acadêmicos. No entanto, a ausência
destas discussões e a rejeição de teorias que entendam questões de identidade e
diferença são também preocupações dos Estudos Culturais.
Porém, para que se entenda melhor esses estudos, destacamos aqui os
fundadores dos Estudos Culturais para a sociedade, segundo Cevasco (2008).
Fundadores que inicialmente dialogavam sua sociedade da época, de modo crítico,
tentando entendê-la através de seus processos sociais vivenciados.
Em primeiro modo, Richard Hoggart, de família operária e que passou sua
infância neste meio de indústrias e funcionários. Em 1957, publica The uses of
literacy, obra em parte autobiográfica, em parte História cultural de meados do
século XX que conta que na cultura popular não só há submissão, mas também
resistência.
Raymond Williams, filho de ferroviário, que em 1958 publica Culture and
Society obra que discute um histórico do conceito de cultura, chegando a propor que
a “cultura comum / ordinária” (CEVASCO, 2008, p.36) pode ser analisada como um
modo de vida tão legítimo quanto o que está implícito no conceito de “alta cultura”.
(CEVASCO, 2008, p. 38)
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Em terceiro, destaca-se Edward Palmer Thompson, o qual foi docente num
centro de educação para adultos, militante comunista, que rompe com o partido em
1956, sendo um dos fundadores do New Left Review. Em 1963, publica The making
of the English working – class, reconstrução de uma faceta da história da sociedade
inglesa do ponto de vista dos não privilegiados: “os de baixo”. (CEVASCO, 2008, p.
89)
Como notado através das citações de Cevasco, o que se encontra em comum
nos três teóricos é que todos são de classe operária, ligados ao partido comunista
inglês, homens que repensavam o sistema marxista do capital, com pensamentos
esquerdistas, e que previam a crise do pensamento não do capital, mas do
pensamento materialista, anteviam uma sociedade consumista. Uma sociedade que
seria destrutiva em valores sociais e culturais.
Desta forma, “Hoggart funda o Centre for Comtemporary Cultural Studies
(CCCS), na Universidade de Birmurgham, como centro de pesquisa de pós-
graduação, ganhando visibilidade a partir dos anos 70 dentro da área dos estudos
culturais”. (CEVASCO, 2008, p. 56) Com este primeiro vislumbrar dos Estudos
Culturais é que começou a se pensar nesta vertente de análise da “sociedade como
um campo entendido como uma rede que é trançada mundo afora.” (HOGGART,
1970, p.23 apud CEVASCO, 2008, p.77)
Com estes fundamentos, se entendem hoje os Estudos Culturais: como uma
área de repensar a sociedade, com uma nova abertura de visão para a cultura. Um
campo de estudos, resultado de outras esferas (sociais, políticas, econômicas), e
que possuem métodos específicos de análise (recepção, análise textual,
depoimentos orais) com grande processo de desdobramento social e cultural.
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Esta possível análise do termo dos Estudos Culturais, como resumo de
inúmeras leituras sobre esta vertente, pode ser mais bem ilustrada com as três
premissas de Marx, que, embora seja um teórico econômico social, dialogou com os
princípios dos Estudos Culturais, e estabeleceu relações entre a cultura e o meio
social.
a) os “processos culturais estando intimamente vinculados com as relações sociais,
em especial com as relações e formações de classe, com as divisões sexuais, com
a questão racial e com as opressões de idade.”
b) A cultura envolvendo poder, contribuindo para produzir assimetrias nas
capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas
necessidades.
c) A cultura não sendo um campo autônomo, mas um local de diferenças e de lutas
sociais. (MARX apud SILVA, 2003, p.59)
Com estas definições de Marx, a respeito de um entendimento acerca da
sociedade, nota-se como “a cultura é uma rede de entrelaçamentos tão complexa,
que ao modificar uma peça da sociedade, todos os outros organismos sofrem as
mudanças, seja claramente ou intrinsecamente.” (BARBERO, 2003, p. 49)
O que Barbero destaca é que, quando se trata da análise do campo cultural
ou social, não podemos vê-lo separadamente de uma gama de outros aspectos que
os unem. Cabe comentar a questão racial, étnica, etária, educacional e os demais
pontos intrínsecos a estes processos.
Falando ainda do início da vertente dos Estudos Culturais, destaca-se a voz
de Stuart Hall, que foi diretor do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS)
em Birmingham, na Inglaterra, no período de 1968 a 1979. Embora tenha sido um
dos criadores junto com Hoggart, Williams e Thompson, “Hall foi quem assumiu os
Estudos Culturais como projeto institucional na Open University, e continuou,
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periodicamente, a se pronunciar sobre os rumos de algo que se tornou um
movimento acadêmico-intelectual internacional” (SOVIK, 2002, p. 09).
Hall, como nos informa Liv Sovik2
Hall, nascido na Jamaica, de família de classe média, ainda jovem teria a
consciência da contradição da cultura colonial com suas formas de dependência
subjetiva. É um dos formadores da New Left inglesa
, é tido como filho amotinado de F. R.
Leavis, grande defensor do gênero literário como moralmente superior à cultura de
massa que dominou a crítica literária britânica nos anos de 30 a 50 do século XX.
Se filia ao método e às prioridades de Gramsci, do qual fez um trabalho teórico que
contribuiu para a formação de uma ideologia e uma cultura “populares”, em
contraposição à cultura do bloco de poder.
3
No CCCS
, com nomes de peso da área,
todos originados das margens, seja por motivos de classe ou geografia – intitulados
entre 50 e 60 como “nova esquerda”.
4
2 Liv Sovik é organizadora do livro Da Diáspora: identidades e mediações culturais de Stuart Hall. Sovik é responsável pela apresentação, intitulada “Para ler Stuart Hall”, e cuja síntese se encontra em análise neste capítulo.
, foi onde surgiu o nome de Estudos Culturais como uma forma de
pensar sobre cultura e com Hall em seu período de administrador (1968 – 79) é que
se consolidam os Estudos Culturais, a partir de uma preocupação política e do
3 New Left Inglesa – Foi um grupo fundado para discutir a Nova Esquerda Inglesa que repensou todo o marxismo e a cultura popular. O nome "New Left" provém de um texto escrito em 1960 pelo sociólogo americano Charles Wright Mills - "Open letter to the New Left" ("Carta aberta à Nova Esquerda"), no qual acusava a Old Left ("Velha Esquerda"), tanto comunista como reformista, assim como os liberais radicais, de traírem os ideais de liberdade e justiça. Mills se dizia um marxista, um homem que trabalhava dentro da tradição da Teoria da Alienação do Jovem Marx, e provocou grande impacto entre os jovens intelectuais. E a revista New Left Review, revista porta-voz deste movimento foi inicialmente dirigida por Stuart Hall, substituído em 1962 por Perry Anderson, que expandiu o foco da revista para os debates dentro do chamado Marxismo Ocidental. Atualmente a NLR dedica seus principais artigos aos Estados Unidos, China, Japão, Europa, Grã-Bretanha , Indonésia, Cuba, Iraque, México, Índia e Palestina. A revista tem concentrado suas análises nas áreas de literatura e cinema, crítica cultural e vanguarda, economia global e no ativismo pós-Seattle, 1999 - quando houve a primeira grande mobilização do movimento anti-globalização (a Batalha de Seattle), a qual resultou no cancelamento da cerimônia de abertura da reunião da OMC. (CEVASCO, 2008, p. 41)
4 Por vezes, aparece Centre for Contemporary Cultural Studies – CCCS.
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projeto de colocar em bases teóricas mais sólidas as leituras de “textos” da cultura.
(HALL, 2005, p. 56)
Deste modo, em 79, Hall transfere-se de Birmingham, para a Open University,
com o objetivo básico de internacionalizar os Estudos Culturais, e a partir de 80 e 90
houve aceitação dos meios acadêmicos e editoriais sobre as temáticas críticas dos
Estudos Culturais, mesmo com alguns contrapontos.
Sintetizando o trabalho de Hall, Write focaliza a “questão paradigmática da
teoria cultural”, ou seja, “como pensar”, de forma não reducionista, as relações entre
“o social” e “o simbólico” em se tratando de análise das Sociedades e Culturas.
(WRITE apud HALL, 2005, p.63)
Com esta análise dos estudos de Hall, nota-se que a preocupação social de
Hall é:
a necessidade de uma compreensão política dos Estudos Culturais que leve em
conta a “sujeira do jogo semiótico”, a qualidade “mundana” do que está em jogo,
seu arraigamento em fenômenos sociais que incluem empresas e classes sociais,
nações e gêneros. (HALL, 2006, p. 15)
Hall tenta, por meio de sua análise, compreender como há uma política que
circunda a esfera dos Estudos Culturais, que joga com seus entendimentos teóricos
revelados em uma prática que é de todos, dentro das classes sociais e nacionais,
práticas que são vivas, porém não entendidas por estas classes.
Dentro deste contexto ainda, há quatro linhas de definição para os Estudos
Culturais, segundo Cevasco. A Primeira deve ser entendido “cultura não como uma
categoria rigorosa, mas uma espécie de síntese de uma história” (CEVASCO, 2008,
p. 24). Com esta referência nosso pensamento deve fazer um esforço em
28
ultrapassar algumas formas de julgamento centradas, caracterizadas como “alta
cultura” e “cultura de massa”. Não havendo um padrão menos prestigiado, ou mais
prestigiado, são apenas contextos diferentes dentro da formação da história.
Uma segunda definição consiste em “mapear as relações dos estudos
culturais de forma negativa ou positiva em determinação a seus contextos e
processos culturais” (CEVASCO, 2008, p. 29). Por isso, os Estudos Culturais devem
ser anti-partidários, pois sua preocupação deve estar ligada ao movimento, a
particularidade, a complexidade, ao contexto, saindo da superficialidade de estar
ligado a determinado ponto de vista de análise.
Todo este mundo subjetivo realçado por meio dos estudos culturais se torna
uma maneira do vislumbramento da exteriorização social. Assim o meu olhar forma
uma realidade, o olhar do outro forma uma realidade diferente, mas qual será o
verdadeiro olhar? Existe este olhar, ou recaímos sempre para o predomínio do
subjetivo? Com as inter-subjetividades, a subjetividade passa a existir a partir da
subjetividade do outro – surgindo a alteridade como processo intrínseco de formação
dos indivíduos.
Uma terceira estratégia é “a análise e comparação de problemáticas teóricas
com seus desdobramentos práticos” (CEVASCO, 2008, p. 34) Assim, a maioria dos
estudos teóricos da cultura são desdobramentos de práticas culturais já efetivas,
Partidas de casos concretos que levam a uma discussão prática, fazendo conexões
entre argumentos teóricos e experiências práticas.
Já o quarto caminho de definição, surge “a palavra ‘cultura’ mais como
lembrete do que como uma categoria precisa e, para tanto, se abre para muitas
conotações, sendo ilusório tentar fechá-lo dentro de uma definição”. (CEVASCO,
2008, p. 41)
29
Com base nestas definições acerca dos Estudos Culturais por Cevasco, não
compete a esta pesquisa tentar sintetizar um conceito ou possível conceito para os
Estudos Culturais, mas sim auxiliar a análise de Lorde a partir da perspectiva destes
estudos.
O romance Lorde de João Gilberto Noll assume um papel de representação
para uma esfera e um processo social atual, realçada dentro dos estudos culturais, e
terá como objetivo a análise da identidade e de sua diferença dentro do processo
social contemporâneo. Assim as teorias circundadas acima, ajudaram ao
entendimento acerca dos objetivos de análise, demonstrando como um romance
contemporâneo obtem uma forma exemplificatória de um processo social bem maior.
A literatura contemporânea é o reflexo e a vitrine de toda uma esfera social /
global atual.
1.2 IDENTIDADES: PRIMEIROS CONCEITOS
O panorama dos conceitos de identidade que serão discutidos neste subitem
circundarão dentro de uma problemática, a qual tem o caráter de nunca estar
resolvida, ou seja, que busca sempre uma completude, uma interpretação, uma
compreensão. E será esta busca da questão da identidade que discutirei, tentando
associá-la às características que a obra Lorde de João Gilberto Noll apresenta.
As definições do termo identidade, já inicialmente trarão interpretações
diversas e nos permitirão entrar nas definições mais complexas acerca de sua
interpretação, para, em um segundo momento, ser analisada perante os Estudos
Culturais com uma abrangência temática maior, contando não apenas de sua
30
significação ou interpretação, mas também das compreensões que a Identidade
forma em uma cadeia de processos, seja nos indivíduos ou nas sociedades.
Deste modo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas
Aulete inicialmente define o vocábulo identidade como:
Identidade: qualidade de uma coisa ou pessoa tem de ser perfeitamente igual a
outra ou outras; paridade absoluta: a identidade de duas teorias; não pode haver
ligação de almas onde não exista identidade de idéias, de crenças e de costumes.
Verificar ou reconhecer a identidade de uma pessoa ou de um cadáver, certificar
que essa pessoa ou esse cadáver é o mesmo de que se trata e não é outro.
Identidade pessoal, persistência da consciência que um indivíduo tem de si
mesmo; consciência que uma pessoa tem de si. Lat. Identitas. (Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete, 1989, p. 2102)
Já o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa caracteriza assim o termo
identidade:
Identidade: (Do lat. trad. Identitate) 1. Qualidade de idêntico. 2. Conjunto de
caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão,
sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. O aspecto coletivo de um
conjunto de características pelas quais algo é definidamente reconhecível, ou
conhecido. 4. Cédula de identidade. 5. Elemento identidade. 6. Qualidade do que é
o mesmo (nesta acepção, Alteridade). 7. Relação de igualdade válida para todos
os valores das variáveis envolvidas. (FERREIRA, 2004, p. 1066)
Com base nestas referências cabe um aprofundamento da discussão do que
é a identidade.
A identidade é assemelhada à qualidade nos sujeitos ou objetos, esta
identidade é a “persistência da consciência que um indivíduo tem de si mesmo.”
(AULETE, 1989, p. 2102) Tendo me baseado em uma discussão inicial do termo,
31
adentro na análise de como a identidade pode ser assemelhada a seu antônimo,
que é a dessemelhança, esta com significado de: “semear, espalhar para diversos
lados, propagar-se, difundir-se” (MAIA, 2000, p. 281). Deste modo, será que as
características da dessemelhança, no que tange a formação de identidade nos
indivíduos, não se encaixa melhor sua própria interpretação do que o uso do termo
identidade, conforme vimos nos dicionários? A idiossincrasia entre os significados de
identidade como semelhança versus dessemelhança antecipa a problemática que
será abaixo desenvolvida.
É, então, a partir desta reflexão inicial sobre identidade que trabalharemos
com as temáticas e suas problematizações.
1.2.1 Identidade: problematização teórica
Para se entender identidade, esta deve ser unida à diferença. A construção
desta identidade é formada pela diferença. Então, “embora a maneira pela qual
essas grandezas diferem entre si de caso para caso, o principal, em todos, é o
reconhecimento de uma diferença, qualquer que seja sua ordem” (LANDOWSKI,
2006, p.03)
Assim, a formação de uma dada identidade é influenciada – pela diferença, e
condenada, aparentemente, a só poder construir-se por ela. O indivíduo tem a
necessidade desta contraposição: o “eu” só é entendido como “eu” porque não é o
“outro” – confirmando assim sua existência e a alteridade é formada por esta
construção, como afirma Landowski:
32
Com efeito, o que dá forma a minha própria identidade não é só a maneira pela
qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir em relação à imagem que
outrem me envia de mim mesmo, é também a maneira pela qual, transitivamente,
objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à diferença que
me separa dele). (LANDOWSKI, 2006, p. 04)
Como Landowski demonstra, a diferença é um elemento que participa
importantemente na construção da identidade, na visão do Outro, onde a alteridade
é instaurada, e que com argumento semelhante Woodward acrescenta que “a
identidade é relacional, marcada por meio de simbologias e também marcada pela
diferença da visão do outro.” (WOODWARD apud SILVA, 2000, p.09)
A identidade sempre é algo relacionado a símbolos e trabalhado em sua
formação para uma produção. Como exemplo, pode-se citar a religião: milhares de
pessoas acreditam em algo maior, marcado através de simbologias, como imagens,
orações, histórias, e por meio das quais são levadas a uma formação e
automaticamente a uma produção imaginada, passada a outros da mesma forma.
Todos esses indivíduos fazem parte de um mesmo grupo determinado e possuem o
mesmo traço de identidade, traços que os configuram dentro de determinado grupo,
ou seja, milhares de identidades diferentes, em busca de um mesmo traço para suas
identidades. Portanto, chega-se ao pressuposto de que a formação da identidade
nunca se dará em sua forma completa, porque esta nunca atingirá sua completude
única, clara, semelhante.
Como afirma Hall, a identidade:
é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes,
e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Sendo esta
sempre incompleta, estando sempre em processo, sempre sendo formada, não
devendo ser vista como uma coisa acabada, mas sim como um processo em
33
andamento. A identidade surgindo de uma falta de inteireza do indivíduo que busca
ser preenchida a partir de nosso exterior. (2005, p. 38)
Com o pensamento de Stuart Hall, nota-se que a identidade é um
pressuposto maior sempre a ser construído, nunca atingindo uma completude, pois
se trata de algo móvel, um processo que estará sempre em construção, e esta
construção surge sempre e a partir do já-construído e do a-ser-construído. Assim,
“uma identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”.
(HALL, 2005, p. 63)
O que cabe enfatizar é que as identidades dos sujeitos vão se transformando
com as intensas modificações que ocorrem no decorrer do tempo e no espaço. A
questão da “identidade” é formadora e não fundadora do eu. A interação entre este
“eu” e a sociedade é que reflete a complexidade exterior de mundo que cada sujeito
habita, e este mesmo exterior influenciando o interior de cada “eu”.
Como observado, há várias definições sobre identidade. Stuart Hall dialoga
sobre o conceito de identidade com outros teóricos. Para o autor:
na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, o sujeito – que interage o seu ”eu” com a sociedade – é confrontado
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais pode se identificar ao menos temporariamente. (HALL, 2005,
p. 13)
A partir do momento em que Hall estabelece a instabilidade absoluta das
identidades, o mesmo elabora uma síntese de como ocorreu à descentralização do
sujeito na sociedade atual e a conceituação de “identidade” em momentos abruptos
e de mudanças sociais. Assim, para Hall quatro pensadores e o advento do
34
feminismo foram imprescindíveis para a descentralização do sujeito. Resumo-os
abaixo:
1. Karl Marx: sobrepujou a concepção social do sujeito. “o indivíduo passou a ser
visto como mais localizado e ‘definido’ no interior dessas grandes estruturas e
formações sustentadoras da sociedade moderna. Os homens fazem a História,
mas apenas sob as condições que lhes são dadas.” (2005, p. 30)
2. Para Freud: “nossas identidades, nossa subjetividade é o produto de processos
psíquicos inconscientes.” (2005, p. 37)
3. Ferdinand de Saussure: Lacan, com base nos estudos de lingüística de Saussure,
conclui que a “identidade”, como o inconsciente, está estruturada como a língua.
(2005, p. 41)
4. Michel Focault: Seus estudos apontaram para a “genealogia do sujeito moderno”,
em que há um novo tipo de poder (poder disciplinar) que está preocupado: primeiro
com a regulação mais a vigilância da espécie humana e de populações inteiras;
segundo com o indivíduo e o corpo. (2005, p.41)
5. O impacto do feminismo politizou a subjetividade, a identidade e o processo de
identificação além de outras proposições. Expandiu-se para incluir a formação das
identidades sexuais e de gênero e promoveu o descentramento conceitual do
sujeito cartesiano e sociológico. (2005, p. 42)
Mas nota-se também que identidades podem ser fundadas, no que se refere à
cultura, à sociedade e à nação. Assim, investigando ainda um dos fatores de
identidade abre-se a discussão para o que é esta identidade cultural, tão presente
nos indivíduos, e como ela é formada.
Para estas discussões também selecionei outros autores que contribuirão
para esta análise dentro dos Estudos Culturais, como Anthony Giddens, que analisa
a sociedade com seus impactos globais, teorizando as “conexões que se
apresentam mais complexas e problemáticas do que pensávamos, mas que um
35
repensar da natureza da modernidade deverá caminhar junto com as reformulações
de premissas básicas da análise sociológica”. (GIDDENS, 2002, p. 09)
Giddens, em se tratando da visão sobre a temática da identidade, analisa
o eu não como uma entidade passiva, determinada por influências externas; ao
forjar suas auto-identidades, independente de quão locais sejam os contextos
específicos da ação, os indivíduos contribuem para (e promovem diretamente) as
influências sociais que são globais em suas conseqüências e implicações.
(GIDDENS, 2002, p. 09)
Outra autora que tratará de mesma temática, que nos será útil para as
discussões acerca da identidade presente na obra Lorde de João Gilberto Noll e que
neste capítulo apresentará sua visão da temática é Kathryn Woodward que realça a
identidade criada por meio da diferença. “Essas identidades adquirindo sentido por
meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”
(WOODWARD, 2000, p.8), representação que Hall associa à “atuação simbólica
para classificação do mundo e de nossas relações no seu interior”. (2005, p.23)
Woodward declara que “a identidade é relacional” (2000, p. 09), ou seja, para
ser caracterizada necessita ser relacionada a algo para ser compreendida e
“marcada pela diferença.” (2000, p. 09) A identidade, com suas simbologias,
segundo a autora, é (trans)formada por uma visão do outro, o “eu” se torna reflexo
de todos esses processos em movimento e está em contínua formação. Existindo
“uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa”
(WOODWARD, 2000, p. 10), assim, “a construção da identidade é tanto simbólica
quanto social” (WOODWARD, 2000, p. 10).
Neste capítulo que aborda a identidade, tento deixar claro que para tratar de
suas questões precisamos de explicações que possam problematizar os conceitos
36
centrais envolvidos nessa discussão, bem como de um quadro teórico que possa
nos dar uma compreensão mais ampla dos processos que estão envolvidos na
construção da identidade. Embora esteja centrado na questão da identidade, caberá
aqui citar Michael Ignatieff5
Destaco, em forma de tópicos, nove pontos principais que Ignatieff ilustra in
Silva (2000, p. 13,14,15) para uma visão acerca da identidade, com pontos que em
alguns momentos se intercalam com os autores já citados:
(IGNATIEFF in SILVA, 2000), que mostra diversos dos
principais aspectos da identidade e da diferença em geral e sugere como podemos
tratar algumas das questões analisadas neste capítulo.
1. Precisamos de conceitualizações para compreendermos como a identidade
funciona, precisamos conceitualizá-la e dividi-la em suas diferentes dimensões.
2. Com freqüência, a identidade envolve reivindicações sobre a quem pertence e a
quem não pertence os grupos identitários.
3. Algumas reivindicações estarão baseadas na natureza; por exemplo, em
algumas versões da identidade étnica, na raça e nas relações de parentesco.
4. A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por
uma marcação simbólica relativamente a outras identidades. 5. A identidade está vinculada também a condições sociais e materiais. 6. O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada
um deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades.
7. A conceitualização da identidade envolve o exame dos sistemas classificatórios
que mostram como as relações sociais são organizadas e divididas.
8. Algumas diferenças são marcadas, mas nesse processo algumas podem ser
obscurecidas.
9. As identidades não são unificadas, podendo haver contradições no seu interior
que têm que ser negociadas.
5SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e Diferença: A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
37
O que Ignatieff (2000) tenta ilustrar é que a identidade não pode ser
compreendida como um fator único, seja para a formação de um indivíduo ou em um
processo social / cultural. Ela necessita ser dividida em suas diferentes concepções
para que possa ser compreendida. Ou seja, para que a identidade seja entendida,
ela necessita ser relacionada a um grupo, a uma esfera, a uma camada. E com base
nesse relacionamento da identidade, a mesma é compreendida por meio de
simbologias marcadas pela diferença.
Outro fator que Ignatieff tenta estabelecer é as condições sociais e materiais
para a formação de uma identidade. Elas são necessárias para uma construção, ou
até mesmo manutenção de uma identidade, esses dois fatores sendo exemplos de
como as identidades podem vir a ser compreendidas e organizadas de certo modo
em “camadas”, que em algum momento podem estar em ascensão ou serem
deixadas de lado.
As negociações dentro das identidades acontecem a todo momento, já que
tratamos de processos vivos, em constantes transformações e/ou evoluções.
Assim, embora Ignatieff enumere nove fatores acerca do processo de
formação ou conhecimento da identidade, precisamos ainda tentar explicar como os
indivíduos reconhecem suas hierarquizações de identidade e de algum modo se
identificam com esses processos ou papéis. Como os indivíduos acreditam nestas
posições que estes discursos identitários lhes oferecem?
Deste modo, com base em teóricos como Ignatieff, Hall, Giddens, Woodward,
tento demonstrar que para um possível entendimento do processo formador da
identidade, seja individual, coletivo, social ou cultural, ao nível psicológico a
identidade deve ser vista como um processo que está em constante formação e que
é atribuído a caracteres simbólicos, sociais ou culturais e que em certos momentos
38
desencadeia estruturas para a formação de outras, ou que devido ao espaço–tempo
pode aparecer como também desaparecer, dependendo de sua importância.
O que pretendo, para fins dessa dissertação, antes de começar a subdividir a
temática identidade, é priorizar os conceitos de identidade seguidos abaixo, para
que a partir deles possamos construir uma linha de pensamento com a visão acerca
da identidade, seus âmbitos de (trans)formação, construção e mudança das
sociedades e dos indivíduos. Para isso, cito a definição de Lacan, o qual vê a
identidade como realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre unidade. Ela [a
identidade] permanece sempre incompleta, está sempre incompleta, está sempre
em processo, sempre sendo formada. (LACAN apud HALL, 2004, p.38)
Lacan, em Stuart Hall, neste momento, ilustra nosso pensamento, com as
descrições acima citadas, definindo que “o sujeito não pode ser visto como tendo
uma identidade fixa e estável, posto que este, na sociedade pós-moderna, foi
descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas e
fragmentadas.” (HALL, 2004, p.46)
Como esta sociedade contemporânea é acusada de subverter certas
estruturas em alguns processos sociais, descentrando fatores identitários tidos como
pilares que não são fixos, porém estáveis, o tempo mostra claramente como o
espaço é transformado e fragmentado por meio destes processos. Para isso, o
subitem a seguir exemplificará como as identidades sofrem alterações em suas
compreensões e estão dia após dia evoluindo a passos que não conseguem ser
alcançados, e a partir deste breve entendimento das identidades e suas possíveis
classificações é que tentaremos analisar os processos identitários de hoje.
39
1.3 IDENTIDADES E SUAS CONCEPÇÕES
Para que se possa entender o que é uma identidade e como ela pode ser
classificada, devemos focar a questão da diferença. De acordo com Stuart Hall, a
identidade do chamado sujeito pós-moderno pode ser entendida como:
conceptualizada por não ter uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade torna-se uma celebração móvel formada e transformada continuamente
através dos sistemas culturais que nos rodeiam, é definida historicamente e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. (2005, p. 37)
Com base neste “modelo” de identidade proposto por Hall para este sujeito
pós-moderno, direciono agora a análise da identidade para a narrativa de João
Gilberto Noll. Este “modelo” de identidade torna-se paradigmático dentro do romance
Lorde. Como dito por Hall anteriormente, notar-se-á que “uma identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (2005, p. 63).
Assim o personagem refletirá um espelho da sociedade com uma identidade
sempre em trânsito se transformando com o caráter da mudança, da modernidade,
em particular. Como o movimento da globalização6
6 O termo globalização atribuído a modernidade é retirado das concepções de: GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Onde Giddens considera os fenômenos de globalização como conexões complexas e problemáticas, que está levando a modernidade a um repensar de sua natureza, devendo caminhar junto com a reformulação de premissas básicas da análise sociológica, devido tais impactos globais. (p. 09)
está ligado à modernidade,
houve um grande impacto sobre as identidades culturais dos sujeitos e assim em
suas próprias identidades, como refletido intrinsecamente dentro do romance.
40
A sociedade moderna exige mudanças constantes, rápidas e imperceptíveis,
que se distanciam cada vez mais dos “moldes” da sociedade tradicional, gerando
acontecimentos sem precedentes. Sobre isso Harvey argumenta que “a
modernidade está implicando não apenas um rompimento impiedoso com toda e
qualquer condição precedente, caracterizada por um processo sem-fim de rupturas e
fragmentações internas de seu próprio interior”. (HARVEY apud HALL, 2005, p.45)
A sociedade assim está constantemente sendo descentrada ou deslocada por
forças fora de si mesma e caracteriza-se por sua diferença e não pela
homogeneidade, sendo o paradoxo do global produzir diferentes posições de
sujeitos, o que corresponde a diferentes posições de identidades. Esse tipo de
produção pode levar a características positivas para estas novas identidades porque
desarticulam as identidades dadas como estáveis do passado, possibilitando uma
série nova de articulações, criando, portanto, novas identidades e a produção de
novos sujeitos, ou seja, uma possibilidade de recomposição de toda uma estrutura
identitária, seja de classe, cultura, política, gênero, entre outras esferas.
Porém, esta série de fatos sustenta que as identidades modernas estão
sendo fragmentadas, como percebido por Harvey, notando que o que aconteceu “à
concepção do sujeito moderno, na modernidade tardia, não foi simplesmente sua
desagregação, mas seu deslocamento” (HARVEY apud HALL, 2005, p.48).
Descreve-se este deslocamento como uma série de rupturas, as quais podem ser
vistas nos discursos do conhecimento moderno. Deste modo,
o que os diferencia e, à primeira vista, os opõe, os torna ao mesmo tempo
complementares e lhes abre novas possibilidades de ação, chegará quase
inevitavelmente um momento em que eles, primeiro distintos e separados, mas que
entram desse modo em relação e logo em contato, aspirarão fundir-se e tenderão a
confundir-se numa nova totalidade.
41
Daí a maneira pela qual ‘resistência’ e ‘reminiscência’ chegam aqui a conjugar-se,
a primeira pressupondo a segunda como sua condição de possibilidade e sua mais
segura mola: “manter-se” em relação ao outro, como “manter-se” perante si
mesmo, será lembrar-se que de uma parte e de outra se foi, que ainda se é, e que
não se pode deixar de ser sujeitos, irredutivelmente distintos e autônomos, por
mais potente que seja o movimento que impele no sentido da suspensão de todas
as reservas, da abolição de todas as fronteiras que ainda separam as identidades.
(LANDOWSKI, 2006, p. 23,24)
Assim, fatores proeminentes, dentro de uma identidade, são aos poucos
formados, seja em sua estrutura, em seu processo, em sua exposição diária ao
outro e como esta é delineada através de sua diferença. A diferença é como um
espelho, como um jogo de forças, que exerce influência no campo dos Estudos
Culturais.
Neste desenvolvimento, utilizo Antony Giddens, autor de perspectivas dos
Estudos Culturais modernos, para a reflexão de uma narrativa que circula entre a
construção e a desconstrução do conhecimento, a qual parte de uma auto-
identidade, sendo o ‘eu’ entendido reflexivamente pelo indivíduo em termos de sua
história, de sua biografia e auto-identidade que luta dia após dia por sua
perpetuação. Segundo Giddens, cada identidade particular ou local é entendida
“como uma proteção defensiva que filtra os perigos potenciais representados pelo
‘exterior’ e que se funda psicologicamente em uma confiança básica, que procura
uma continuidade no outro, um apêndice, derivado em experiências tidas como
base”. (1999, p.45)
Essas auto-identidades, ou os indivíduos portadores destas identidades,
formam o que Giddens chama de “colonização do futuro: uma criação de territórios
de possibilidades futuras, reivindicada por inferência contrafactual” (1999, p.189).
Este mundo de possibilidades abertas é que se encontra em mudança: territórios
42
não se fazem mais distantes, com isso também não sua história, nem sua cultura,
aculturações acontecendo sem o perceber humano, algo colocado pelos meios, ou
mídias, diga-se, e o homem não mais sendo processo, mas resultado de todas estas
inferências.
E para a localização histórica ou cronológica deste “novo”, Giddens intitula
este período como “alta modernidade ou modernidade tardia”, a qual é “a presente
fase de desenvolvimento das instituições modernas, marcada pela radicalização e
globalização dos traços básicos da modernidade.” (GIDDENS, 1999, p. 192)
Será neste período conceitual que se depara com fatores modalizadores
presentes na sociedade, é que acontecem “culturas de risco: aspecto cultural
fundamental da modernidade, em que a consciência do risco constitui um meio de
colonizar o futuro” (GIDDENS, 1999, p. 191). Dessa forma, ocorrem deslocamentos
das relações sociais dentro dos contextos locais com inúmeras recombinações,
através de distâncias indeterminadas de tempo e espaço, nascendo, segundo o
autor, “dialéticas do local e do global, com um jogo de oposições entre
envolvimentos locais e tendências globalizantes”. (GIDDENS, 1999, p. 193)
Neste meio, outro fator para o qual Giddens alerta é o “predomínio do perfil do
risco” (1999, p.193), o qual pode ser tratado
por meio de uma simbologia emancipatória para que sistemas mais abstratos
venham a se formar, com o intuito de mexer as estruturas da segurança ontológica
conduzindo os indivíduos intrinsecamente a um outro nível, não de humanidade,
mas de sociedade”. (1999, p. 196)
Não é fácil encontrar um modo apropriado de definir o que é identidade,
principalmente quando se pensa em conceitos. Assim, primeiramente, nota-se que
43
as ciências humanas possuem uma maneira distinta de defini-la. Para isso,
pressupondo que fossemos gerar uma interpretação para caracterizar a temática de
identidade dentro da área de ciências humanas, seria uma dimensão da consciência
e diria respeito ao sistema de valores que compõem a personalidade individual ou
coletiva. Isto é bem diferente da definição psicanalítica, que coloca a identidade na
esfera do inconsciente.
No próximo subitem, demonstro como estes efeitos psicológicos da identidade
são vislumbrados a nível coletivo, com as premissas da identidade nacional.
1.4 IDENTIDADE COLETIVA NACIONAL
Gostaria de me deter brevemente neste capítulo nas relações entre a História
nacional e o sentimento de identidade coletiva, assim considerado pelo ângulo das
ciências humanas. Este assunto hoje está muito em voga, porque mais do que
nunca ouvimos falar da necessidade de cada grupo encontrar sua própria identidade
e marcar as diferenças com relação a outros.
Já que a obra Lorde de João Gilberto Noll trata da identidade nacional
implícita no indivíduo, seria importante para uma discussão sobre esta, avaliar como
se produziu este discurso fundador dessa mesma identidade. Tomarei como
referência uma citação do escritor mexicano Octávio Paz, a propósito da questão da
identidade nacional e do seu discurso fundador. Segundo Paz:
Na Europa a realidade precedeu o nome. A América, pelo contrário, começou por
ser uma idéia. Vitória do nominalismo: o nome engendrou a realidade. [...] O nome
que nos deram nos condenou a ser um mundo novo. Terra de eleição do futuro:
44
antes de ser, a América já sabia como iria ser. Mal se transplantou para nossas
terras o emigrante europeu já perdia sua realidade histórica: deixava de ter
passado e convertia-se num projétil do futuro. [...] Um ser que não tem mais do que
futuro, é um ser de pouca realidade. Americanos: homens de pouca realidade,
homens de pouco peso. Nosso nome nos condenava a ser o projeto histórico de
uma consciência alheia: a européia. (1990, p.127)
Sem dúvida, é procedente o argumento de que somos uma projeção de uma
utopia européia. E se observada à construção da História brasileira, compreende-se
que ora a identidade nacional passou e passa pela busca desta utopia projetada
pelos europeus, ora por sua negação.
Agora, já iniciado o século XXI, se analisado este processo por uma ótica
sociológica, países emergentes como o Brasil ainda resgatam traços desta utopia, já
que para se elevar de um patamar para outro a nível mundial, os países emergentes
devem obter certos padrões e médias dos países ditos desenvolvidos.
Intrinsecamente, assim, uma identidade nacional, apesar de possuir traços locais e
nacionais próprios, deve, por mandado do global e de seus discursos de mercado,
possuir demais valores que sigam uma rede de interligamentos dentro do processo
conhecido como globalização, seja em fatores culturais, políticos, econômicos, entre
outros.
Segundo Decca,
a busca da identidade nacional é um produto do século 19 e está marcada por este
profundo romantismo que acabou por transformar a história brasileira numa lenda
de cunho familiar, onde um mandato utópico é transmitido de pai para filho
alcançando finalmente o neto. (2000, p. 20)
Construindo um pensamento acerca da identidade nacional, é interessante
45
pensar na miscigenação de valores criados no Brasil, se analisado três pontos
principais em se tratando de identidade nacional: a língua, o território e a nação,
notamos como nossa identidade nacional é estigmatizada, porque nossos principais
valores são valores que foram transplantados para estas terras e poucos deles são
realmente valores efetivos destas. Como percebemos primeiramente através da
língua, todo o território nacional dialoga usando a língua portuguesa, oriunda de
Portugal. Outro fator é que o território até metade do século passado ainda não
estava determinado, como foi o caso da construção do Distrito Federal, ou ainda das
brigas territoriais dos índios que aqui habitam, que de tempos em tempos reclamam
por suas terras, pois são sugadas dia após dia, por fatores agronômicos e extrativos.
E, se tratarmos da nação, esta é formada por uma população totalmente
miscigenada, formada por enumeras etnias, não possuindo características próprias
de apenas uma compreensão de etnia. Desde sua colonização até principalmente
meados do século passado, era um país com fronteiras abertas a quem quisesse
habitar nestas terras.
Deste modo, quando se trata de identidade nacional, em casos como o do
Brasil, depara-se com uma grande problemática, pois se torna difícil encontrar
padrões para se definir uma identidade nacional. A hipótese primeira a se considerar
é que nossa identidade é múltipla e heterogênea e a concepção clara que jamais
poderá ser analisada de modo uno ou homogêneo, caso isso aconteça, não passará
de uma análise utópica de nação.
Assim, devemos desconstruir a lenda da História do Brasil, não a
descaracterizando, mas mostrando como ela faz parte de uma história utópica de
construção de pensamentos. E com esta concepção acerca da História, em se
tratando de uma identidade nacional, Kothe dialoga com a temática, comentando
46
que “o cânone é imposto pelo Estado como a arte literária, para repassar uma
versão conveniente da história.” (2000, p.51)
Uma identidade nacional então é compreendida por suas futuras gerações,
por meio da cultura que lhes é passada, é neste momento que o cânone literário
entra e é ele o fator primordial dentro da cultura, responsável por passar a história
para os povos, seja esta história verídica ou não, de seus primórdios. Este cânone
fixado será o condutor da formação das histórias e culturas futuras. Para a formação
destes conceitos culturais e sociais, é interessante o que defende Clifford Geertz em
seu livro A interpretação das culturas:
o conceito de cultura é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber,
que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
a cultura sendo essas teias e a sua análise; portanto, não é como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado. (1989, p.15)
Para que se entendam estas interpretações acerca da Identidade Nacional,
como Geertz a utiliza, deve se compreender que todos estes processos são
semióticos, ou seja, formados a partir de um jogo de símbolos que podem ser vistos
para uma compreensão maior de todo o processo nacional. Formado por inúmeras
redes que o tornam, podemos dizer, completo para sua compreensão, essas
inúmeras redes geram teias que se configuram como algo interpretativo e que cada
identidade, sujeita ao processo, dará seu entendimento, sua compreensão acerca do
processo nacional, não sendo apenas um conceito escrito, ou uma história dada que
configurará uma identidade nacional, mas sim um pensamento coletivo que
transformará a história em uma interpretação nacional, configurando assim todos
dentro de um mesmo processo nacional.
47
Então, no próximo sub-capítulo de análise, discutiremos como a diáspora
interpreta estes processos identitários e como são realçados no livro Lorde. Notar-
se-á que a identidade do personagem “sem nome” representa na verdade um
indivíduo conceptualizado dentro da identidade pós-moderna, uma identidade não
fixa, essencial ou permanente, formada e transformada continuamente pela visão de
si e do outro, uma identidade que assume diferentes identidades em sua constante
formação.
1.5 PENSANDO A DIÁSPORA
O termo diáspora vem do grego que o define como “dispersão”. (FARIA, 1967,
p. 313). Sua primeira utilização é encontrada na Bíblia, quando referencia-se a
dispersão “do povo hebreu no mundo antigo, a partir do exílio na Babilônia no século
VI a.C. e, especialmente, depois da destruição de Jerusalém em 135 d.C.” (FARIA,
1967, p. 313)
Porém, em toda a História da humanidade o processo de diáspora se fez
presente, desde a dispersão dos hebreus até o exílio forçado da população africana
nos séculos da escravatura. Os judeus também tiveram grande dispersão pelo
mundo, assim como com os asiáticos, latinos e tantos outros.
O que tento apresentar neste subitem é como o personagem principal de
Lorde, um homem de meia idade, que luta por algo que desconhece, que busca
ainda o que não sabe, com uma crise de identidade que o rodeia, é um exemplo da
questão da diáspora, por ser capaz de lançar sobre as complexidades, não
simplesmente de se construir, mas de se imaginar a nação e a identidade da qual o
48
sujeito é integrante, principalmente na contemporaneidade, numa era de
globalização crescente.
Para isso, antes de adentrar nos deslocamentos que a diáspora irá sugerir,
cabe demonstrar um conceito base para a interpretação de diáspora.
Hayek define diáspora como “o deslocamento, normalmente forçado ou
incentivado, de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada
para várias áreas de acolhimento distintas”. (1983, p. 313)
Assim, esta compreensão acerca do entendimento do conceito de diáspora irá
ajudar esta pesquisa de análise a compreender como este fenômeno se encontra
maior do que sua conceituação atual. Hoje, os teóricos que problematizam a
diáspora já a agregam há inúmeros fatores, e não apenas a dispersões por motivos
religiosos ou políticos. Estes fenômenos ainda resultam nestas dispersões, porém,
fatores sociais, econômicos e culturais tornam-se os maiores chamarizes para esta
causa do que os anteriores fatos do século passado, como, por exemplo, durante as
duas grandes guerras mundiais, que foram grandes causas de fenômenos de
diásporas pelo mundo, dentro destas conceituações.
O fator, em se tratando de diáspora, que estará ligado diretamente à causa /
efeito deste processo é a parte territorial entendida como nação, que Benedict
Anderson (1997, p.78) sugere como “não apenas uma entidade política soberana,
mas comunidades imaginadas”.
Em se tratando de nação, é interessante pensar como são imaginadas por
suas sociedades e quando se fala de nação, deve-se levar em conta não apenas a
parte territorial ou populacional, mas também fatores como cultura, artes e política.
Algumas perguntas que Anderson traz são
49
onde começam e onde terminam suas fronteiras, quando cada uma é cultural e
historicamente tão próxima de outras e tantos vivem tão longe do “local”. Como
imaginar sua relação com a terra de origem, a natureza de seu “pertencimento”? E
de que forma devemos pensar sobre a identidade nacional e o pertencimento ao
local à luz dessa experiência de diáspora? (1997, p. 79)
Essa diáspora, formada na identidade do sujeito por uma “identificação
associativa”, que, segundo Woodward (2000), deve ser trabalhada por meio da
diferença com as culturas de origem, com esta situação de diáspora, as “identidades
se tornam múltiplas, com elos que a multiplicam”. (WOODWARD apud SILVA, 2000,
p. 21)
Assim, intrinsecamente, as identidades nacionais vão sendo construídas por
fenômenos que são maiores a sua existência, porém, cada identidade formada
dentro deste processo contribui para um processo maior ainda. Falando da nação,
esta pode se dizer que é um dos principais fatores de formação da identidade nos
sujeitos, pois será através dela que toda uma gama de conhecimentos será
passada.
Porém, como as experiências da diáspora ajudaram à questão da nação, ou
do processo de formação de identidades dentro deste contexto?
Para achar tal resposta, cito Hall (2006) que dialogará a respeito da
identidade cultural dentro da nação e dos processos de formação de identidade.
Assim para Hall (2006)
a identidade cultural é fixada no nascimento, seja parte da natureza, impressa
através do parentesco e da linguagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu
mais interior. É impermeável a algo tão “mundano”, secular e superficial quanto
uma mudança temporária de nosso local de resistência. A pobreza, o
subdesenvolvimento, a falta de oportunidades, podem forçar as pessoas a migrar,
50
o que causa o espalhamento, a dispersão. Mas cada disseminação carrega
consigo a promessa do retorno redentor. (p. 28)
Como notado por Hall, à identidade particular de cada sujeito agregará em
sua identidade cultural/nacional, seja esta fixada no nascimento ou por inúmeros
outros processos, parte de seu local de resistência. E os fatores externos a esta
identidade e a este sujeito, por diversos aspectos fizeram-no buscar algo novo,
melhor. Estas forças levaram-no a migrar. A causa / efeito deste processo é a
dispersão, lembrando que dispersão é uma característica da diáspora e este ato
carregará consigo uma grande leva de características de outras identidades.
E é o que se nota no personagem de Noll: um homem que sai em busca de
algo, abandonando em parte sua origem, seu local e que depois de inúmeros
desdobramentos de sua ação, o retorno acontece, devido a sua posição cultural, um
retorno pela linguagem, a nação proporcionando-lhe um novo local, uma fuga que
não retorna ao ponto zero, mas que tenta aproximá-lo do elo de ligação que restou
de sua cultura, de sua língua, de sua nação.
Essa interpretação do conceito de diáspora torna-se familiar em muitas
histórias entre os povos. Já fazendo parte do construído senso coletivo do eu
contemporâneo, profundamente inscrito nas histórias nacionalistas globais.
Porém, como compreende Hall, em uma palestra apresentada como parte do
qüinquagésimo aniversário de fundação da University of the West of the West Indies
(UWI), intitulada “Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior”, depois
de iniciado o processo da diáspora
esse retorno sempre será um mito da origem, pois na ruptura, uma fenda já foi
condensada. Assim, no retorno não somos mais aquele ‘eu’, mas sim, um diferente
51
‘eu’, um novo ‘eu’, que se formou na diferença, na ruptura, na fenda. (1999, p. 25)
É deste modo que a diáspora age dentro das identidades sofridas por este
processo. Após iniciada a diasporização no sujeito, como afirma Hall, a ruptura
acontece, ruptura entre a identidade local, tida como anterior, e a nova. No retorno,
se houver, aquele “eu” não será mais compreendido da mesma forma, pois já foi
alterado, modificado por esta ruptura, formando aí a diferença dentro de um novo
“eu” do sujeito e de sua identidade.
Quando é agregada esta ruptura, não se pode falar apenas de uma transição
dentro cultura, da nação ou da pátria, é desvencilhada também neste processo a
tradição, que a respeito Hall (2006) comenta que:
possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em contato
com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente
uma linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo
teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si
mesma, sua “autenticidade”. É claro, um mito – com todo o potencial real dos
nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,
conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história. (p. 29)
Esses mitos fundadores, como comenta Hall, chamados de “tradição”, e são
compreendidos fundamentalmente como estruturas simbólicas que ligam as
gerações através do tempo.
Deste modo, as questões da identidade cultural/nacional que são sofridas na
diáspora devem ser “repensadas” dentro de toda uma esfera de pensamento, já que
provam ser inquietantes e desconcertantes para um povo, justamente porque se
trata de uma questão histórica. Constata-se que nossas sociedades são compostas
52
não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas, como
é o caso do Brasil, formado ao longo da História por grande multiplicidade étnica que
neste país gerou tal resultado híbrido, fenômeno pelo qual a diáspora se fez
presente dentro de sua construção e perpetuação, o moldando como uma nação
multi-étnica e de extrema diversidade cultural.
Assim, as culturas presentes na sociedade hoje são na verdade “perspectivas
diaspóricas da cultura como uma subversão dos modelos culturais tradicionais
orientados para a nação” (ANDERSON, 1997, p.58), fator este que não pode ser
deixado de lado, pois está presente dentro do processo da diáspora, o qual é
integrante da globalização cultural, pois estabelece uma relação de causa e efeito
entre ambas.
O fenômeno da globalização cultural, Hall (2006) explica como algo
desterritorializante em seus efeitos. Suas compressões espaço-temporais,
impulsionam novas tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o lugar. As
disjunturas patentes de tempo e espaço são abruptamente convocadas, sem
obliterar seus ritmos e tempos diferenciais. (p. 36)
Esta desterritorialização pertencente à diáspora é visível dentro das
identidades culturais com as interpretações de cada nacionalidade efetiva dentro de
seus campos de cultura. Por exemplo, os eixos culturais que inicialmente são
criados, em alguma parte do globo, e que posteriormente são seguidos pelo resto do
mundo, têm sua vertente própria. Esta veracidade com que cada vertente é tratada é
o efeito das disjunturas do processo. A repetição de uma cultura própria foi
realizada, porém com diferenças. O processo da diáspora acontece, mas de modo
53
enfraquecido, ao se reportar a cultura anterior, resultado este de um conjunto de
“mutações” que as tradições locais formaram.
Segundo Hall (2006) há dois processos opostos em funcionamento nas
formas contemporâneas de globalização cultural, o que é em si mesmo algo
fundamentalmente contraditório, ou seja, existem
forças dominantes de homogeneização cultural, pelas quais, por causa de sua
ascendência no mercado cultural e de seu domínio do capital, dos “fluxos” cultural
e tecnológico, a cultura ocidental, mais especificamente, a cultura americana,
ameaça subjugar todas as que aparecem, impondo uma mesmice cultural
homogeneizante – o que tem sido chamado de “McDonald-ização” ou “Nike-zação”
de tudo. (p.44)
Estes efeitos podem ser vistos em todo o mundo, inclusive na vida popular e
cotidiana do Brasil, acontecem vagarosamente e descentrando os modelos
ocidentais, levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo.
Essas “outras” tendências não têm (ainda) o poder de confrontar e repelir as
anteriores. Mas têm a capacidade, em todo lugar, de subverter e “traduzir”,
negociar e fazer com que se assimile o assalto cultural global sobre as culturas
mais fracas. E já que o novo mercado consumidor global depende precisamente de
sua assimilação para ser eficaz, há certa vantagem naquilo que pode parecer a
princípio como meramente “local”. Hoje em dia, o “meramente” local e o global
estão atados um ao outro, não porque este último seja o manejo local dos efeitos
essencialmente globais, mas porque cada um é a condição de existência do outro.
Antes, a “modernidade” era transmitida de um único centro. Hoje, ela possui um tal
centro. (HALL, 2006, p.48)
54
Estes desdobramentos da pós-modernidade podem parecer distantes de
preocupação em suas efetivas ações. Porém, inúmeras sociedades e culturas estão
sendo formadas por estas forças movidas pelo processo de globalização cultural.
Assim, para Hall (2006):
A alternativa não é apegar-se a modelos fechados, unitários e homogêneos de
“pertencimento cultural”, mas abarcar nesses processos amplos de transformação
de cultura no mundo inteiro. Esse é o caminho da diáspora, que é a trajetória de
um povo moderno e de uma cultura moderna. (p. 78)
Um termo que também tem sido utilizado para caracterizar as culturas cada
vez mais mistas e diaspóricas dessas novas esferas é o “hibridismo”. O hibridismo
“não é uma referência à composição racial mista de uma população. É, na verdade,
outro termo para “a lógica cultural da tradução.” (HALL, 2006, p.71). O hibridismo
não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados com modelos
“tradicionais” ou “modernos”. Trata-se de um processo de tradução cultural, que
nunca se completa, que permanece em grande mutação, mudança, e esta é ligada
mais às sociedades como um todo do que aos sujeitos em si.
Como sugeriu Homi Bhabha in Hall (2006), o hibridismo significa um
momento ambíguo e ansioso de(...) transição, que acompanha nervosamente
qualquer modo de transformação social, sem a promessa de um fechamento
celebrativo ou transcendência das condições complexas e até conflituosas que
acompanham o processo(...)(Ele) insiste em exibir(...) as dissonâncias a serem
atravessadas apesar das relações de proximidade, as disjunções de poder ou
posição a serem contestadas; os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”,
mas que não transcenderão incólumes o processo de transferência. (p.72)
55
Em condições diaspóricas, as pessoas geralmente adotam posições de
identificação a um local, nem que este esteja deslocado, ou seja, múltiplo. Como
reconhece Laclau,
essa universalização e seu caráter aberto certamente condenam toda identidade a
uma inevitável hibridização, mas hibridização não significa necessariamente um
declínio pela perda da identidade. Pode significar também o fortalecimento das
identidades existentes pela abertura de novas possibilidades. Somente uma
identidade conservadora, fechada em si mesma, poderia experimentar a
hibridização como uma perda. (1996, p. 83)
Com essa visão, a sociedade aos poucos abre suas portas para uma grande
mudança local. Não falamos mais em uma mudança cultural, mas sim em
multicultural, em termos que realçam a diferença, o plural, combinando novas formas
de identidade e formação, criando sociedades culturalmente heterogêneas.
Por fim, este subitem tentou refletir acerca das discussões atuais da diáspora,
para que estas realcem a análise futura do livro Lorde. Como notado, estes
processos da diáspora estão mais presentes na sociedade hoje do que
imaginávamos, ou melhor, eles sempre estiveram presentes, já que recaem de uma
questão histórica de formação das mesmas. Se, hoje, as sociedades são tidas como
híbridas culturais, é porque são interpeladas por inúmeros fatores que as
bombardeiam dia após dia pelos efeitos globais, e um fator que está intimamente
ligado a estes processos é a diaspórização.
Outro fator que foi comentado aqui, e que terá melhor discussão no subitem a
seguir, é como a questão da tradição e da tradução esta tão presente dentro da
formação de identidade e também intimamente ligada ao fenômeno da diáspora
56
discutido aqui. Assim, a seguir, trago também discussões que melhor elucidaram os
dois temas e notar-se-á como quase pertencem a uma mesma vertente.
1.6 TRADIÇÃO X TRADUÇÃO CULTURAL
João Gilberto Noll, através de seu romance Lorde, aborda, simbolicamente, o
embate entre “tradição” e “tradução” ao escrever sobre um personagem que parte
para a Inglaterra em busca de uma proposta de trabalho, que, desde o início, se
demonstra confusa e indefinida.
Para se discutir o que é e como age a tradição sobre os sujeitos e suas
identidades e como a tradução os afeta, coloco primeiro suas conceituações para a
análise e compreensão.
Para Hall, tradição cultural “é a cultura com que cada sujeito convive dentro
da mesma nação culturalmente imaginada”. (2006, p. 67). É, ainda, a transmissão
oral de um povo, de lendas, fatos, de idade em idade, geração em geração. (2006,
p.72) Mas a “tradição cultural”, sob o enfoque da cultura nacional pós-moderna
descrita por Stuart Hall, “nunca foi um simples ponto de lealdade, união e
identificação simbólica” (HALL, 2005, p. 59).
Diferentemente, a tradução cultural, que, Salman Rushdie (apud Hall, 2005, p.
89) observa é que a palavra tradução “vem, etimologicamente, do latim, significando
‘transferir’, ‘transportar entre fronteiras’”. Este conceito refere-se ao sujeito de cultura
híbrida, ou seja, que sai de seu país e vai viver em uma outra cultura, com outra
identidade nacional. Passa a ser uma pessoa traduzida.
Assim, dentro das dialéticas das identidades que tramitam sobre “tradição” e
57
“tradução” cultural, notar-se-á que ambos são movimentos contraditórios que vão
contra as identidades centradas e fechadas de uma determinada cultura nacional
formadora. Tais dialéticas, para Hall (2005, p. 87), transcrevendo o seguinte conceito
de Robins, são:
algumas identidades que gravitam ao redor da tradição e outras aceitam que as
identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da
diferença e, assim, gravitam ao redor daquilo que Robins chama de tradução.
Assim, tradição cultural está ligada a identidades estáveis, que objetivam a
“coesão” e o “fechamento”, frente aos processos de hibridismo e de diversidade,
como é o caso, por exemplo, de sujeitos que vivem com suas culturas locais e
diariamente são afetados por uma cultura maior, global.
Quanto à “tradução” da identidade cultural, Stuart Hall (2005, p.88) descreve o
seguinte conceito:
A tradução da identidade cultural nos indivíduos são aquelas formações de
identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por
pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas
retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a
ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas
culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem
perder completamente suas identidades. Elas carregam traços das culturas, das
tradições das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas.
A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque
elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas
interconectadas(...) as pessoas pertencem a culturas híbridas(...) elas são
irrevogavelmente traduzidas.
Ou seja, estas pessoas traduzidas são formadas por inúmeras culturas, e não
58
por uma determinante. Este hibridismo é ligado intrinsecamente a sua identidade.
Porém, pelo lado benéfico deste entrelugar de culturas, Landowski diz que:
Cada cultura se desenvolve graças a seus intercâmbios com outras culturas. Mas é
preciso que cada uma delas oponha alguma resistência a isso, porque, se é a
diferença das culturas que torna seu encontro fecundo, será por meio deste jogo
comum que se provocará uma progressiva uniformização. (2006, p. 21)
Assim a identidade, que se discute nesta dissertação, é baseada em uma
identidade, com um “eu” entendido reflexivamente pelo indivíduo em termos de sua
história, ou seja, uma identidade que se confronta diariamente com a sociedade e
seus movimentos, sempre em presente desenvolvimento dentro das instituições e
marcada pela radicalização da evolução dos traços básicos dos movimentos sociais
e culturais de tradição e tradução. Uma identidade que entra em contradição
existencial, dentro desta luta entre os efeitos de sua tradição local, e com os
resultados das traduções globais.
Lorde de João Gilberto Noll é um romance que expressa diretamente o
conceito de “tradução” cultural. O conflito do eu do personagem, em uma busca de
sua identidade, em um país estrangeiro (Inglaterra), envolve toda a narrativa.
Estes conceitos de tradição e tradução estão presentes no romance, que
possui um narrador brasileiro, sem nome, sem voz, transitante em sua memória,
posto que aos poucos vai perdendo quase toda a sua identidade no processo de
tradução para uma terra estrangeira. O personagem, um narrador-escritor,
primeiramente, relutou em sair do Brasil. Quando lá, queria voltar. Sente-se inseguro
para falar sobre seus próprios livros em uma universidade inglesa. Por fim,
traduzido, não perde sua identidade cultural anterior, já que foi através da Língua
59
Portuguesa que voltou a se encontrar como sujeito. O próprio texto do livro realça o
exemplo da tradução: “vem George, repeti sem saber se chamava por alguém ainda
desorientado no ato de me traduzir com seu próprio corpo.” (NOLL, 2004, p. 110)
Assim, como expressa o personagem de Noll, há formas de identidades
culturais que tramitam sua dialética em torno da “tradição”, aceitando certas
sujeições, seja pela representação ou pela diferença, gravitando, assim, em torno da
“tradução”.
Segundo Carreira:
o ato de traduzir-se implica a travessia de fronteiras, a transferência espacial de
uma dada identidade cultural que, ao entrar em contato com outra, propiciará o
surgimento de uma nova identidade, segundo a lógica do processo que Fernando
Ortiz chamou de “transculturação7
”. Pode-se dizer que a tradição opõe-se à
tradução na medida em que se configura como uma forma de fechamento frente ao
hibridismo e à adversidade. (CARREIRA, 2007, p. 73,74)
Carreira sintetiza o ato de traduzir-se, quando uma identidade está em trâmite
com outras fronteiras; é iniciado aí um processo que se desdobra em uma nova
identidade, devido à transição da tradição com os efeitos da tradução.
Esses atos de tradição e tradução são apresentados por Marc Auge (2003)
como
uma série de experiências dos fatos sociais concretizando-os na experiência de
uma sociedade precisamente localizada no tempo e no espaço, da qual qualquer
indivíduo a ela pertencente é uma expressão. A memória individual é, portanto,
expressão de uma memória social, que pode ser relacional, identitária e histórica. A
7 Transculturação: entendido como um fenômeno da zona de contato e que se refere às apropriações dos materiais nativos pelos europeus, mas também à maneira pela qual os coloniais se apropriam dos estilos imperiais, construindo eles próprios modos de representação que, absorvidos pelo olhar imperial constituem um universo cognitivo que passa a ser considerado como originalmente europeu. (HALL, 2004, p. 89)
60
esse lugar, contrapõem-se os espaços da sobremodernidade: os não-lugares, que
são locais de passagem, de trânsito intenso. (p. 34)
Outro aspecto a ser considerado dentro da análise de tradição e tradução é o
local, o qual em Lorde, diferenciando-se de A céu aberto8
Porém, não apenas em A céu aberto é notado como Noll traça algumas
características dentro de sua obra que são comuns em quase todas em se tratando
de discutir aspectos de tradição e tradução. Por exemplo, Ele era de Berkeley
, outra obra de Noll, tem
contornos bem definidos e reais, mas o narrador não se identifica com estas
estruturas, revelando-se assim um sujeito destes “não-lugares”, uma vez que a sua
não definição nestes lugares, estas eternas idas e vindas pela cidade, mostra e
realça sua crise identitária entre a tradição e a tradução passada pelo personagem.
9
O único aspecto de diferença entre as obras de Noll, é que em Lorde temos
um personagem principal homem, e em Ele era de Berkeley, encontramos uma
visão feminina na personagem principal, porém, ambos discutem aspectos
, um
pequeno conto do autor que possui características narrativas parecidas a de Lorde,
em ambos os textos encontramos sujeitos sem nome, com fluxos de consciência
que levam a narrativa a uma esfera psicológica como o seguinte trecho de Ele era
de Berkeley demonstra “ouvir vozes solitárias em pequenos delírios pela Telegraph
Avenue...” (NOLL, 1997, p. 781). As descrições dos locais denotam a história uma
característica em comum, já que a maioria destes lugares podem ser considerados,
não-lugares (universidade, cafés, sala de aula) envolvendo outras culturas dentro do
contexto narrativo, que tratam justamente de aspectos da tradição em contraposição
a tradução da cultura local.
8 A céu aberto in NOLL, João Gilberto. Romances e Contos Reunidos. São Paulo:Companhia das Letras, 1997. 9 Ele era de Berkeley in NOLL, João Gilberto. Romances e Contos Reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
61
semelhantes, de maneira mais sucinta, em Ele era de Berkeley, já que se trata de
um conto e não de um romance mais complexo como Lorde. Tais aspectos de
semelhança na obra de Noll podem ser encontrados também em Hotel Atlântico
(1989) e Harmada (1993), histórias que tratam de discussões dentro das temáticas
de nacionalidade, não-lugares, tradições contestadas por uma diferente cultura e
processos sociais sendo desmembrados dentro de efeitos da tradição.
Salman Rushdie apud Carreira (2007, p. 277-8) trata da questão nacional, de
como acontece à percepção do sujeito, frente a uma diferente cultura, afirmando que
um migrante, na acepção completa da palavra, sofre, tradicionalmente, uma tripla
ruptura: ele perde o seu “lugar”, adota uma língua estrangeira, e se vê cercado de
pessoas cujo comportamento e códigos sociais são muito diversos dos seus, e, às
vezes, até mesmo ofensivos.
Assim, as raízes que fixam a identidade ao local, como a língua, a política, a
cultura, são aspectos importantes da definição da identidade cultural de um indivíduo
dentro de sua tradição local. Ao negar aspectos como este, o indivíduo vê-se
“perdido” diante de uma nação.
O personagem de Noll ilustra esta visão do imigrante, quando se encontra
desorientado diante da nova nacionalidade. Ao abandonar sua nacionalidade, sem
pertencer à outra, este sentimento de recusa que o forma pode ser notado em seu
discurso de rejeição da pátria, em trechos do narrador, como:
mas tudo poderia acontecer, ele talvez não passasse de um blefe, há de tudo no
mundo, indivíduos de todas as espécies, alguns se vingam de toda uma
nacionalidade, no caso a brasileira, porque nunca lhes faltam razões, estão sempre
cobertos delas, não duvido, eu faria até o mesmo se fosse ele, me deixaria só em
Londres, sem a grana do que ele chamava de bolsa, sem ter como pagar o aluguel
62
daquela casa que eu não conhecia em Hackney, me deixaria justamente assim,
com os pulsos em oferenda para o primeiro policial me algemar, deportar, pior, não
me soltar mais. (NOLL, 2004, p.14)
A rejeição a sua própria identidade equivale à rejeição de seu próprio lugar –
sua origem – sua nacionalidade: “Algo bem determinado eu podia sentir: eu não
tinha saudade do que deixara no Brasil nem de nada em qualquer espera que
sobrevoasse qualquer país”. (p.26) O personagem tem para si de modo claro a
circunstância de se tornar mais um dentre tantos outros escritores já imigrados, que
deixaram sua pátria, pelos mais diversos fatos, ocasiões, ou seja: “sem
nacionalidade precisa, sem bandeira para desfraldar a cada palestra, conferência”
(p. 33). Sendo visível a inquietude do personagem, há uma tendência de valorizar o
que está em outro lugar, menosprezando seu local de origem.
Salman Rushdie elucida o pensamento deste subitem, afirmando que
“migrantes, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, posto que foram
transportados através do mundo, são homens traduzidos”. (Rushdie, 1991, p.16 in
Carreira, 2007, p. 86) e Hall (2006) complementa este pensamento, explicando que
nessa experiência vivida significa ver a obrigação de negociar com novas culturas
formas de tramitação que assimiladas constroem uma identidade sem perder a
existente, simplesmente modelando-a de forma diferente, desmontando assim a
idéia de uma absolutismo cultural. (p. 47)
“O homem híbrido está na confluência das misturas, das transformações, nas
combinações de novas culturas, idéias e políticas”. (RUSHDIE, 1991, p.394 apud
CARRERA, 2007, p. 86). Formando um indivíduo que não pode pensar em sua
identidade como que condicionada a um lugar, a uma tradição, mas, sim, sua
63
identidade deve possuir uma independência de tradução, que, conforme Rushdie
(1991, p. 15), leva a identidade “a uma maior fidelidade a seu passado, uma vez que
o novo entendimento também necessariamente terá de passar pelo processo
tradutório e teria conquistado assim, o direito de ser vários, ainda que sob a forma
de um.”
Para a literatura contemporânea, Lorde revela, desta forma, o desejo
intrínseco de uma identidade ir contra a uma tradição passada, antiga, para um
processo de tradução que o leva a um novo paradigma, a uma nova identidade.
Com este subitem de tradição e tradução, nosso objetivo era refletir sobre a
temática, para realçá-la dentro do romance, pelas ações do personagem, e pelo
espaço e tempo em sua viagem, que o levam a uma crise identitária.
No capítulo a seguir, discorreremos sobre os conceitos empregados, para que
possamos discutir como o presente romance é uma obra referencial para os estudos
acerca dos processos de identidade na sociedade contemporânea.
64
2 LORDE: UMA ANÁLISE
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra E te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Carlos Drummond de Andrade “A procura da poesia”
O presente trabalho toma como objeto de estudo a obra Lorde (2004) do
escritor João Gilberto Noll, enfocando a questão da identidade, que não se
restringirá apenas ao personagem central da história, mas sim aos desdobramentos
do romance, que tangem aspectos como língua, nacionalidade, diáspora, tradição e
tradução.
Num primeiro momento, pela ótica da Teoria Literária, são analisados alguns
aspectos do enredo do romance, como: o sentido e a realidade da narração dentro
do enredo, bem como o discurso narrado. Com base nestes aspectos do romance é
que adentraremos para uma análise mais aprofundada de Lorde de João Gilberto
Noll, para, assim, em um segundo momento, serem relevados aspectos presentes
dentro da obra de como a identidade do personagem, que passa por uma crise, e
esta o leva à formação de uma nova identidade dentro dos inúmeros processos
vigentes, sejam eles sociais ou culturais. Deste modo notar-se-á como a
nacionalidade e a diáspora são fenômenos que o romance irá circundar, bem como
aspectos da tradição e de tradução que o personagem conota.
Como considerações finais da análise serão traçados aspectos de
compreensão de como o romance Lorde, do autor João Gilberto Noll, se torna
65
modelo paradigmático de análise de aspectos que dizem respeito tanto aos Estudos
Culturais bem como à Teoria Literária.
Para iniciar esta análise, cabe apresentar um resumo do romance Lorde de
João Gilberto Noll, publicado em 2004, é seu 13º livro, que narra a história de um
escritor de cinquenta anos, com sete livros publicados e com uma grande vontade:
de livrar-se da imagem de escritor e possuir uma nova identidade. Para começar a
viver seu sonho, recebe um convite de um inglês, sobre o qual de nada sabe, para
fazer algo, também não claro, na Inglaterra. Sabia apenas que dizia respeito a sua
vida como escritor, mas não sabia se sua ida era para fins práticos, ou para palestrar
sobre temáticas, ou ainda realizar leituras acadêmicas de seus livros em uma sala
de aula inglesa. Após aceitar, ele desembarca na capital inglesa a convite do inglês,
que o instala em um apartamento em Hackney, bairro habitado por imigrantes. Já
instalado, começa a notar como agora é o outro dentro de um país totalmente
desconhecido, anda por ruas e pontos históricos de onde nada sabe. Seus trajetos
são passeios sem norte ou finalidade. Este processo de mudança por qual passa o
personagem o leva a um processo de mutação, que transcende seu entendimento,
pois o escritor que aqui é nosso personagem começa a passar por mudanças que
realçam sua crise de identidade e começam a levá-lo a outras visões de sua própria
identidade.
Esta crise de identidade do personagem é notada através de desdobramentos
de sua história, através de aspectos de nacionalidade, quando sua tradição começa
a entrar em crise com este novo eu, já traduzido pela nova cultura e pelo processo
de diáspora. Quando o personagem busca uma nova identidade, seu retorno se dá
pela língua, um dos pontos culturais que levam o sujeito a seu pertencimento a uma
nação. Assim, em todo o romance, é apresentada a transfiguração de um escritor
66
brasileiro que sai do Brasil em busca de um mundo novo. Deste modo, como início
do entendimento desta mudança, já é notado que toda a narrativa é contada por um
narrador sem nome, sem voz (já que o que relata é fruto de sua introspecção), às
vezes com falhas de memória e sem convívio verbal com o povo inglês. Percorre
inúmeros lugares, não come, não dorme, sente-se perdido, em total solidão e sem
rumo. Olha-se como um peregrino perdido, embora tenha salário e pouso certo, não
sabendo nem por que e um apartamento em que sequer a cama é só dele.
Toda esta trajetória o leva, já no final do romance, a um novo entendimento
de sua própria identidade, quando é convidado a lecionar a disciplina de língua
portuguesa na Universidade de Liverpool, lugar em que encontra um relacionamento
homossexual e que o leva a um pertencimento local, não mais ao local anterior, pois
este já lhe foi totalmente transmutado, porém a uma nova identidade com um
sentimento de recomeço de sua própria história.
Para começarmos a entender o romance, a seguir adentraremos em alguns
aspectos do enredo da história, o qual nos trará uma estruturação dentro da obra,
para que os processos que o realçam sejam assim notados e seu discurso seja
compreendido.
2.1 O ENREDO DE LORDE
O enredo de uma história é sua própria estrutura, pois, se analisado o aspecto
que a palavra enredo pode assumir, estando ligado a seu arranjo, esta pressupõe
uma
67
apresentação / representação de situações, de personagens nelas envolvidos e as
sucessivas transformações que vão ocorrendo entre elas, cria-se novas situações,
até se chegar ao final – o desfecho do enredo. Podemos dizer que,
essencialmente, o enredo contém uma história. É o corpo de uma narrativa.
(MESQUITA, 1994, p. 07)
O enredo é a formação simbólica da ficção, pois, quando um autor escreve
seu texto, está passando uma série de ações que podem ter sido reais ou não para
o compreendimento geral da obra.
A composição estética da obra é fruto de uma “série de diversidade de
sentidos condicionantes, sejam eles pessoais ou sociais” (MESQUITA, 1994, p. 13)
que vão sendo formados ao longo da narrativa. E esta composição estética que é
ligada ao enredo da obra está diretamente ligada à realidade que certa obra
apresenta, por mais ficcional que ela seja, como é o caso da obra Lorde, um
romance ficcional que conta a história de um escritor brasileiro em terras
estrangeiras. Em uma entrevista de Noll a Kátia Borges, publicada no site Secrel10
Deste modo, não queremos expressar que o romance Lorde é quase uma
biografia de parte da história vivida por João Gilberto Noll, mas nosso objetivo é
,
na página No compasso da linguagem, o escritor avalia a obra Lorde por sua ótica.
O romance surgiu da experiência de João Gilberto Noll como escritor residente do
Kings College em Londres, e faz-se importante lembrar que a “ficção, por mais
‘inventada’ que seja a estória, terá sempre, e necessariamente, uma vinculação com
o real empírico, vivido, o real da história.” (MESQUITA, 1994, p. 14). Assim, nota-se
como a história ficcional do escritor brasileiro de Lorde se confronta diretamente com
a história real de João Gilberto Noll.
10 http://www.secrel.com.br/jpoesia/katb3.html. Acessado em: 16 de junho de 2008.
68
buscar fatos para o entendimento da obra, principalmente quando estudamos seu
enredo e, assim, é verossímil o fato de estas duas histórias, uma real e uma
ficcional, se entrecruzarem em alguns aspectos.
O enredo do romance é ordenado dentro da ficção, pois se trata de uma obra
literária, porém todos os locais por quais passa o personagem, na Inglaterra, são
reais, existentes. Os fatos da história acontecem em situações narrativas dentro de
uma ordem linear, o que se aproxima muito de uma ordem oral, inclusive em muitos
aspectos são demonstradas estas características, ao longo de toda a trajetória da
narrativa. Esta ordem linear do autor propõe uma visão diacrônica, realçando não as
relações entre os termos existentes dentro do estado da comunicação, mas entre
termos sucessivos que vão se substituindo ao longo do tempo do romance.
Embora seja uma obra classificada devido a sua forma, como um romance,
esta estória não traz sentimentos de amor ou fraternidade a seus leitores. Ela
transita como uma literatura de viagem, na qual o personagem narra os fatos
acontecidos ao longo da mesma, também trás angústias existenciais vividas pelo
personagem, em sua crise identitária e apresenta fatores que nos levam a pensar
sobre os problemas sociais.
O romance ainda expõe características psicológicas, pois o personagem,
através de inúmeros diálogos internos, conversa também com seus leitores, como se
eles fossem o ajudar. Esses fluxos de consciência do personagem são comuns ao
longo de todo o romance, já que, como ele não interage (dialoga) com ninguém da
outra nacionalidade (inglesa), conversa muito com seu eu interior.
O romance Lorde respeita a ordem cronológica em sua trajetória, pois lhe
oferece aspectos que circundam o leitor, dentro de uma ordem de início, meio e fim.
É claro que estes não são tão simples ou claros assim, mas é respeitada a ordem
69
linear, diacrônica da obra, pois, em nenhum momento aparecem subsídios para que
se possa provar o contrário, embora o texto não lhe ofereça demarcações de data
ou tempo claro. Mas essa cronologia é seguida através de todos os fatos
apresentados pelo personagem, dentro de uma sucessão de acontecimentos que
formam o enredo do romance.
Todo o enredo de Lorde acontece em meios urbanos nos quais o personagem
vive, meios urbanos reais, com referências, lugares, espaços verdadeiros, o que ao
leitor dá a impressão de estar em Londres, no bairro de Hackney, vendo o Palácio
de Buckingham ou o St. James’s Park, ou nas ruas Old Street, Hackney Road e no
Victoria Park, Piccadilly Circus, National Gallery, Museu Britânico, Praça de
Bloomsbury, ou seja, o leitor percorre com o personagem estes lugares e isso dá
certa veracidade à história.
Porém, como notado em todo o romance, o personagem, mais do que os
lugares, habita os não-lugares, que Marc Augé (1994, p.91) denomina como “lugares
de denominação comum a todos e a ninguém, lugares de passagem, não habitados,
somente vividos em curta duração de tempo precedente”. Estes não-lugares são
notados ao longo da trajetória do personagem em todo o romance. Noll, firmando
sua narrativa nestes não-lugares, realça a característica que hoje é bem presente na
modernidade contemporânea. É o caso da vivência dos sujeitos em aeroportos,
hotéis, ônibus, trens, locais estes que são apresentados na narrativa e em todo o
enredo como exemplos de não-lugares da modernidade contemporânea, muito
utilizados devido à compressão de espaço e tempo que Hall comenta, lugares de
passagem de todos e pertencentes a ninguém.
Outro fator do enredo e que deve ser considerado nesta análise é a questão
presente da linguagem. Linguagem esta resultante, em toda obra, da grande
70
oralidade na escrita, característica marcante da obra de Noll. A linguagem do
personagem sempre busca algo novo, porém, não significa uma linguagem que leva
este romance a uma base experimental, mas que o coloca em um patamar de
ruptura em relação a literaturas anteriores, consideradas vanguardas ou clássicas,
pois a viagem do personagem que deveria ter um retorno ao ponto de saída não
obtém este desfecho através de uma transfiguração diferente. Este diferente, este
não retorno do “anti-herói” em seu ponto inicial, é que caracteriza como uma
literatura contemporânea, como obras de ruptura que vão contra um processo
literário dito padrão dentro dos aspectos da Teoria Literária.
Estes novos aspectos da literatura contemporânea, como é o caso de Lorde,
apresentam hoje grande importância dentro dos meios acadêmicos de análise, se
tornam objetos de estudos para inúmeros autores e o escritor francês Jean Ricardou
sintetiza essa concepção através do seguinte pensamento: “o romance tradicional é
a escritura de uma aventura; o romance moderno é a aventura de uma escritura”.
(RICARDOU apud MESQUITA, 1994, p.19)
Como Ricardou expressa, as obras modernas possuem como característica a
aventura dentro desta escrita, e Noll valoriza seu personagem principal dentro do
romance, pois os personagens secundários da história são pouco valorizados no
sentido de obterem voz dentro da narrativa, como é o caso do inglês que o chama à
Inglaterra, o professor que o convida para visitar sua casa, o marinheiro, o amante
homossexual que aparece no fim do romance, entre outros que simplesmente
passam pelo romance, porém não ganham um papel de primeiro plano dentro da
história, como o personagem principal.
Por citar personagens sem nome, destacamos outra característica do
romance e do autor. Noll em nenhum momento cita o nome deste personagem
71
principal no romance, como também de nenhum outro personagem. São
personagens sem nome dentro da narrativa, são tratados como referência: “o inglês”
(p. 09)11
A razão para este personagem de segundo plano ser denominado pelo nome
(George), é que neste contexto do romance, o personagem/autor (protagonista)
começa a resolver sua crise de identidade. Assim o último personagem que Noll nos
apresenta, é George, justamente por estar criando uma consciência para sua crise,
o personagem escritor de Lorde, denomina-o como um ponto já de sustentação para
sua nova identidade transformada.
, “o professor que me convidou” (p. 49), “o cara do rastafári que foi
atropelado” (p. 66), e assim por diante. O único personagem de segundo plano que
é denominado pelo nome é George, o marinheiro, sujeito com o qual o personagem
principal se relaciona no final do romance.
George é para o leitor, um ponto de referência, já que é o único personagem
em todo o romance a ganhar uma denominação comum, lembrando que o
personagem principal buscava se distanciar de esferas comuns que lhe trouxessem
a lembrança da identidade brasileira anterior. Porém, como sua crise identitária
começa a se desmembrar por aspectos lingüísticos, com George, esta resolução
acontece pela esfera pessoal, a qual leva o personagem a buscar uma denotação
comum diante de todos com um relacionamento afetivo estável. Como notado em
todo o romance, o que o personagem buscava era uma estabilidade em plena
instabilidade dentro de sua identidade. Assim, com George, o personagem alcança
um patamar com sua identidade até então, não visto ao longo do romance, quando o
mesmo ao término fala: “George, repeti sem saber se chamava por alguém
desorientado no ato de me traduzir com seu próprio corpo. Embora ele já tivesse me
11 As referências que constarem apenas o número da página, todas exclusivamente foram retiradas do livro: NOLL, João Gilberto. Lorde. São Paulo: Francis, 2004.
72
transferido uma sólida autonomia física. Eu a tinha. E nela não podia me sentir
encarnado.” (NOLL, 2004, p. 110) Com este trecho é nítido como o personagem
denota sobre George uma certa estabilidade de sua identidade a qual lhe faltava.
George é um dos fatores responsáveis pela tradução a outra cultura, o dava uma
autonomia, que, por exemplo, o inglês a controlava, a media, assim com esta
autonomia não podia mais se sentir encarcerado dentro de suas memórias antigas.
O que Noll, na escrita do romance, realça intrinsecamente, com seus
personagens sem nome, é o que Giddens (2002) considera como realidade da “alta
modernidade”, quando sociedades se apresentam de tal forma expressas ao
fenômeno da globalização que as características locais começam a ser
desconfiguradas. Assim em Lorde é demonstrado o aspecto social da obra, quando
o autor de algum modo representa a realidade por meio de suas histórias. Como
exemplo, citem-se, as sociedades de gerações passadas, dos pequenos centros
urbanos ou rurais, onde as pessoas sabiam o nome das outras, visitavam seus
vizinhos, possuíam outro espaço de pertencer a certo grupo social. Fatores como
estes, hoje, nas sociedades contemporâneas, começam a perder lugar, pois em
muitos casos uma pessoa pode morar vários anos ao lado de outra e desconhecer
seu nome, sua identidade pessoal, tudo isso pode ser resultado de uma sociedade
mais rápida, na qual o tempo isola seus sujeitos em pequenas ilhas de
pertencimento social.
Outra abordagem ao enredo pode ser por meio da sucessão de fatos dentro
do romance, “a sucessão de fatos narrados pode também ser articulada pelo
princípio da associação de idéias ou de palavras.” (MESQUITA, 1994, p. 27). Esta
sucessão de fatos, por meio de idéias ou de palavras, é que nos possibilita uma
73
desmontagem do texto em partes que podem ser analisadas separadamente dentro
de determinado contexto.
Se fossemos buscar um núcleo de suporte para referenciar o romance Lorde,
poderíamos eleger a transitoriedade do personagem/escritor em torno de sua crise
identitária, e através deste núcleo é que se desmembra toda a sua trajetória dentro
do romance, por meio de inúmeros núcleos conflitivos, geradores de inúmeras
outras ações dos personagens envolvidos, que servem de suporte para o
personagem principal completar sua transição de busca de uma nova identidade.
Segundo Mesquita,
a procura do auto-conhecimento, na busca de sua identidade, nos leva a verdade
do outro, a comunicação intersubjetiva e ao conhecimento das regras do jogo do
mundo, tece-se por meio da teia do enredo, um ou vários ciclos da vida do
protagonista. É o chamado romance de aprendizagem. (1994, p. 28,29)
Como Mesquita explica a busca da identidade por qual passa o personagem
de Lorde, com inúmeras realizações através do Outro e jogos que cada realidade
impõe, é uma teia que o enredo do romance vai criando para que possa ser
chamado de um romance de aprendizagem, pois será por meio destes processos
que se encontram intrínsecos que o personagem terá uma apreensão de sua auto-
identidade e da formação por meio de uma aprendizagem que todo o processo lhe
trouxe.
Um dos fatores que coloca a presente obra dentro de um outro contexto e o
caracteriza como uma literatura de ruptura é a questão da presença do humor e da
ironia, presença esta que se faz presente em todo o livro quando Noll utiliza este
recurso para atingir seu leitor de outra forma, diferente da padrão. Como exemplo,
74
Noll caracteriza seu personagem em transformação, devido à crise identitária, o
personagem se maquia, pinta o cabelo, se transforma, na esperança de ser outro,
gostaria de ser o rapaz da fotografia na parede do salão, ficando assim uma
metamorfose de algo pretendido, ou quando se utiliza de inúmeros nomes para o
sujeito inglês que o chamou para a Inglaterra.
São todos momentos que o autor utiliza para enfatizar os mesmos
personagens, mas de formas diversas a seus leitores. Termos estes da linguagem,
presentes na formação do enredo, que Mesquita apresenta como
a presença do humor, da paródia, da ironia, marcas da literatura moderna, que
revitalizam valores, zombam dos homens, de seus absurdos e contradições,
virando o mundo pelo avesso, dessacralizando e desmitificando tudo, inclusive a
própria literatura.
Dentro desse processo, a própria noção de enredo, de núcleo dramático, sofre
grande deslocamento, perdendo a unidade e o centramento que lhe dava a
narrativa do século XIX e XX. (1994, p. 31)
E esta presença do humor que em alguns contextos do romance avessam
uma estrutura narrativa, são aspectos que Umberto Eco denomina como “duas
maneiras de percorrer um bosque. A primeira é experimenta um ou vários caminhos;
a segunda é andar para ver como é o bosque e descobrir por que algumas trilhas
são acessíveis e outras não.” (ECO, 2009, p. 33) E assim Noll leva seu leitor a
percorrer os caminhos do seu romance, a primeira experimentando vários caminhos
com o personagem em meio a sua crise de identidade, e a segunda descobrindo os
caminhos que vão se abrindo ao longo do romance, por trilhas que o personagem
75
passa, delimitando espaços que ora lhe são acessíveis, ora o impõe caminhos,
mesmo que incertos.
Deste modo, com alguns pontos analisados, é notado como o enredo de
Lorde possui um fator estruturante dentro da narrativa e como essa é apresentada
por Noll com o intuito de levar seu leitor a uma identidade junto com seu
personagem. Assim, através do enredo, buscam-se respostas para entender o
romance dentro de considerações gerais e perguntas como: qual é a realidade
presente na obra? Quando citado que em certos aspectos a obra ficcional de Lorde
entra em tramite com a história real do autor, como a linguagem no presente
romance é um fator formador da identidade e como o processo de narração se
perfaz em uma estrutura bem maior do que o entender literal da obra?
O sentido do romance leva o leitor a uma esfera maior da realidade de uma
identidade em crise ou em trâmite. Tentamos procurar um núcleo para a esfera
ficcional da obra, para que tal fosse assim compreendida e como sua divisão
acontece para que seja analisada.
Assim, continuaremos a estudar o enredo do romance, só que a partir de
agora sobre outro aspecto e esfera, a identidade. Buscando analisar como o
romance Lorde é um exemplo paradigmático da literatura contemporânea para que
possamos compreender os desdobramentos de um processo de formação de
identidade, de como uma identidade precisa ser intercalada dentro de aspectos de
diferença ao outro para que possua uma representação significativa a um processo
identitário. Assim, alguns aspectos da identidade nestas exposições podem sofrer
crises, que a levam a uma transformação para chegar a uma auto-compreensão.
Deste modo, o próximo subitem irá revelar tais processos e aprofundar outros dentro
do romance Lorde.
76
2.2 UMA COMPREENSÃO DO PROCESSO IDENTITÁRIO DENTRO DE LORDE
Os Estudos Culturais, que, nesta pesquisa, obtiveram um lugar de destaque,
revelam um grande papel na sociedade contemporânea: discutir aspectos sociais,
políticos ou culturais que afetam diretamente ou não seus sujeitos e suas camadas.
E é dentro dos Estudos Culturais que os fatores de formação de identidade são
assim compreendidos como um processo que diz respeito a todos e que forma
intrinsecamente não só indivíduos, mas sociedades e culturas.
O processo identitário dentro do romance Lorde é iniciado com a viagem do
personagem, quando, na porta da alfândega, com pesadas malas, no aeroporto de
Heathrow, em Londres, se vê com uma espécie de missão, que foi mandada por um
inglês, se “retorcendo em dúvidas com relação às intenções dele” (p. 10). Assim,
como modo de fuga a este pertencimento a uma cultura local, abandona seu
passado, “sem ter nada o que deixar que carecesse da sua presença” (p. 10). E a
única referência passada no livro para o entendimento desta viagem é que ele
o conhecia pessoalmente de apenas uma vez no Rio, quando pediu que por favor
mandasse meus livros para seu endereço em Londres, porque não os encontrava
nas livrarias por onde tinha andado à tarde e no dia seguinte retornaria para a
Inglaterra. Que precisava conhecer no meu trabalho aquilo que chamavam de algo
que não entendi e que lhe vinha interessado muito nos últimos anos, ah, e sobre o
qual vinha escrevendo um livro. Se não me engano esse livro falava de
alienígenas. Era isso? (NOLL, 2004, p. 11)
77
Com a viagem é instaurada a crise do sujeito, entendida como uma “alteração
sobrevinda no curso de algo, conjuntura perigosa, momento decisivo, ataque de
nervos, situação cuja conservação enfrenta obstáculos difíceis.” (GIDDENS, 2002, p.
207). E é nesta situação, neste momento difícil por que passa o personagem, que a
crise é instaurada, servindo como um estopim para que novas percepções sejam
criadas pelo personagem para a busca de uma nova identidade própria.
E esta crise identitária do sujeito é completamente afetada, por fatores como:
saída da terra natal, o desbravar de uma nova terra, a aventura de uma viagem, a
existência ou não de fatores tidos como certos, pressupostos esperados. Os fatores
notoriamente afetados são posições tidas como estáveis do sujeito, como sua
nacionalidade, a tradição do local, sua cultura, língua e sociedade. Crise pode ser
mais bem compreendida pelo conceito de Giddens que agrega a identidade a fatores
de formação que são externos aos sujeitos. Como o eu não é uma entidade passiva,
pode ser determinado por influências externas. Independentes de seus contextos de
ação, estes diretamente contribuíram para influências sociais que se tornam, como
afirma Giddens, globais em suas conseqüências.
Assim, as implicações que decorrem de uma ação do sujeito serão
conseqüências sentidas não apenas no contexto local, mas sim global. Como o
personagem de Lorde que através de uma viagem, sua cultura local será passada a
uma nova cultura, ou, como Woodward destaca, sua identidade partirá da premissa
relacional para que haja uma compreensão do seu eu agora. O personagem de Noll
trabalha de modo inconsciente, sua identidade, com simbologias que ajudam de
modo relacional a chegar a uma nova transformação de sua identidade. Esta nova
compreensão de sua identidade pode ser associada aos contextos da literatura de
78
viagem, já que em sua conceituação, a literatura de viagem12
Estas transformações acontecem sem o perceber humano e, no caso da
pesquisa, do personagem, são explicadas por Hall, quando as identidades estão
sempre em transformação, estando sempre sendo formadas, em um processo
contínuo. Assim, o personagem escritor de meia idade se torna exemplo deste
processo de formação, pois é um indivíduo em transição, em mudança, viagem que
o leva a inúmeros caminhos dentro de uma formação de identidade.
trabalha o psicológico
do sujeito que sai em viagem, com mudanças que o fazem notar a realidade
presente com outros olhos, a partir das experiências passadas. E mesmo preceito
acontece com o personagem de Lorde que após sair do Brasil, inicia um processo
de tradução a outra cultura, onde a diáspora o afeta e com tais experiências vividas
em nova cultura, modificam e alteram sua identidade passada, e o levam a uma
produção de uma nova concepção a partir da mudança. A viagem caracterizando
mudanças em sua identidade.
No início do romance já há uma passagem do personagem, que deixa claro o
abandono de um eu em busca de uma nova identidade:
este que eu começaria a desconhecer. Deste lado eu, que tinha vivido aqueles
anos, vamos dizer, nu no Brasil, sem amigos, vivendo aqui e ali dos meus livros, no
menor intervalo a escrever mais, passando maus pedaços e todo cheio de pirueta
para disfarçar minha precariedade material não sei exatamente para quem, pois
quase não via ninguém em Porto Alegre. Sim, disfarçara nas entrevistas ao lançar
meu derradeiro livro, sim, vou passar uma temporada em Londres, representarei o
Brasil, darei o melhor de mim. (NOLL, 2004, p. 11)
12 Literatura de viagem “é a escrita de viagem de valor literário. A literatura de viagem geralmente é uma memória das experiências de um autor visitando um local pelo prazer de viagem. A literatura de viagem exibe geralmente uma gerência narrativa ou estética, para lá do simples alencar de datas e eventos de um diário de viagem ou diário de bordo. Esta literatura maioritariamente baseada em relatos de viagens reais, pode também ser uma ficção. (SEIXO, 1998, p.12)
79
E as crises de identidade acontecem a cada parágrafo, a cada página do livro,
com contradições: “como viveria no Brasil dali a três, quatro meses, se todas as
tentativas de viver fora dos meus livros fracassavam? Sim, eu vivia numa entressafra
literária perigosa.” (p. 17) Ou seja, o eu lutando contra o próprio eu por um não
acordo de sua identidade. E na mesma página encontramos outro trecho “preferi
mesmo estar em casa em Porto Alegre, não ter de continuar o caminho.” (p. 17). O
que é este sentimento de pertencimento, ou melhor, de despertencimento pelo qual
está passando o personagem, de não pertencer nem a um nem a outro lugar, não
possuir um lugar seguro, uma raiz, uma pátria.
Dentro do prédio da National Gallery, em Londres, o personagem utiliza o
banheiro para sua transformação e para o esquecimento de um passado que o
incomoda
eu era um abnegado, faria tudo para que isso que chamam de mundo continuasse
a me abrigar com algum conforto, mesmo que muito pouco, quase nenhum. O
Brasil era um afresco na abóbada da mente, mas não doía nada, eu quase não
tinha mais vista suficiente para enxergá-lo.” (NOLL, 2004, p. 27)
E sobre sua transformação o personagem diz que: “ninguém mais me
reconheceria, já que tinha feito uma reforma em cima de alguém que eu mesmo
começava seriamente a estranhar.” (p. 27)
Sobre esta transformação pode-se contextualizar Lorde a uma obra clássica
de George Orwell – A revolução dos bichos. Tal fábula, como é caracterizada, conta
a história de uma revolução traída. Dizendo respeito à conduta humana, a obra narra
à história dos animais da Granja do Solar que, revoltados com maus tratos, se
organizam e expulsam seu proprietário. De posse da terra, seus líderes começam a
80
reordenar as atividades, estabelecendo novos princípios de convivência social. No
entanto, o espírito de rebeldia, leva seus líderes, a transformar a ambição e
revolução, em um eficaz instrumento de dominação e controle.
A revolução de Lorde com A revolução dos bichos pode ser tratada no âmbito
da identidade. Em ambos os textos seus personagens estão descontentes com suas
presentes situações – identidades, e buscaram uma ideologia melhor a ser seguida.
Contestam as condições das convivências sociais e elegem outros parâmetros.
Ambas as obras, dialogam sobre as esferas de denominação e controle, por quais
passam as identidades dentro de um contexto “social”. E este espírito de rebeldia e
crise instaurada (identidade), os levam a buscar uma nova concepção ideológica de
vida. Ou seja, um outro contexto de identidade para seu eu. Se desfazem de certas
máscaras criadas pela sociedade, que se caracterizam como modos redutores de
suas identidades, e procuram novas máscaras a serem filiadas.
Assim, é certo comentar que as duas obras embora diferentes expõem idéias
de dominação, porém com níveis de diferença, Noll em seu romance ao longo da
trajetória se torna mais sutil dentro desta submissão do personagem, Orwell é mais
desmascarado, contesta claramente um sistema dentro de suas entrelinhas, assim
Noll se demonstra mais habilidoso em um contexto de sobreposições e papéis e
identidades sociais, questionando e tratando de todo um sistema social, o qual
depois de analisado não somente Lorde, mas toda sua obra, se torna característica
dentro deste discurso.
A crise de identidade passada pelo personagem, em certos momentos do
romance, é compreendida como uma transformação, pois, na história, compra tinta
de cabelo e maquiagem, na esperança de que estas transformações físicas o façam
mudar. E depois da máscara com a maquiagem, agora chega à hora da cabeleleira
81
da Malásia, neste salão não corta seu cabelo, mas pinta de uma cor igual ao do
rapaz da fotografia da parede. É a idéia de aparência e não essência que a
globalização instaura em todo o mundo, eu não preciso saber quem é, ou como é,
mas sou seguidor. Como demonstra o personagem, “tinha vindo para Londres para
ser vários – isso que eu precisava entender de vez. Um só não me bastava agora –
como aquele que eu era no Brasil...” (p. 28)
E com a mudança novamente vem a pergunta: “por que eu desconfiava
seriamente de que eu já não trazia o mesmo homem.” (p. 31). Assim, nota-se que o
próprio personagem já sentia um novo eu o acometendo. E a idéia do novo eu não
prescinde do velho eu, mas dos fenômenos vigentes que o personagem está
vivendo e que o estão levando ao conflito interior, que são realçados por processos
externos e intrínsecos como sua tradução a uma cultura, nova sociedade, novos
parâmetros de análise, quando sua tradição aos poucos é sucumbida por novas
esferas de pertencer. Esta crise, resultado de fenômenos culturais-sociais-
linguísticos, levam o personagem a uma introspecção, que na verdade é
característica de uma nova formação ou recombinação mental de sua percepção ao
mundo, como encontrado em várias circunstâncias do romance, com o espelho.
O espelho em todo o livro tem uma grande simbologia. Em nenhum momento
do romance ele se depara com um espelho, que teria a função de mostrá-lo como
está, mas esta realidade faria mal ao personagem. Há trechos do romance, que
comprovam esta não satisfação do sujeito quanto a sua imagem. Quando chega ao
apartamento de Hackney, uma das primeiras coisas que faz é virar ou cobrir todas
as formas refletivas que se encontram no apartamento. Aspectos como este realçam
o descontentamento do personagem em relação a sua identidade, ou seja, a sua
presente imagem. E esta recusa aos espelhos é uma recusa ao próprio
82
entendimento do seu eu. Uma negação a sua condição de identidade, um não
conformismo a sua espera. Em sua narrativa, vira o espelho e diz que não mais
acompanhará aquele rosto e se entrega ao local, à sua vida sem rumo.
Se observada a significação do espelho, segundo Chevalier & Gheerbrant,
este simboliza
sabedoria, auto-conhecimento e consciência resultando na verdade, clareza e
reflexão, é uma representação lunar e feminina que simboliza o conhecimento sem
mácula de si mesmo. Pode representar uma certa introspecção, uma falta de
comunicação da pessoa com eu mundo interno. Total desconhecimento de sua
personalidade mais íntima e profunda. (2008, p. 89)
Assim o espelho, no romance de Noll, protagoniza a consciência do
personagem, seu autoconhecimento, resultado de sua verdade. Ao fugir dos
espelhos, ele foge de si mesmo, de sua consciência, do seu eu, de sua identidade.
Outro ponto que pode prevalecer é o espelho como conseqüência de introspecção.
Quando, por exemplo, uma pessoa permanece diante dele, se olhando, está em
uma introspecção com si mesmo. Assim, o ato de fugir dos espelhos, como o
personagem expressa, pode ser uma falta de comunicação do indivíduo com seu
mundo interior. A crise de sua identidade transpassada revela então, um total
desconhecimento de sua personalidade mais íntima e profunda. E este não
conhecimento de si mesmo é revelado por meio do espelho, causando assim o não
olhar a sua própria identidade, com premissas de ressalva a compreensão do eu.
O espelho é sinônimo de reflexão e, ao se olhar nele, o indivíduo não só se
nota exteriormente como também internamente, e este mecanismo reflete toda uma
gama de características que serão parte do próprio eu. Quando o personagem de
Noll esconde, cobre ou foge dos espelhos, não deixando seu reflexo a seus olhos,
83
ele está fugindo de si mesmo, da compreensão de sua própria identidade. Não quer
enxergar a si próprio como motivo de recusa à identidade instaurada e a recusa
deste olhar a si próprio acalanta sua alma por instantes, por momentos que o levam
a pensar em uma nova percepção do seu eu. O ato de recusa intrinsecamente leva-
o a um novo compreender de sua própria identidade, que será notada com uma
nova esfera, de um novo pertencer, mas que na verdade, não passa da mesma
identidade, revelada sobre outros aspectos.
No romance, depois da entrega do personagem ao local, sua memória não
deixou que se esquecesse do Brasil. A memória constitui um fator de identificação
humana neste processo de formação de identidades. Sendo na memória que se
reconhece, se distingue ou se aproxima. Assim, neste processo de reconhecimento,
a lembrança é parte integrante da constituição e construção do eu - da identidade.
O interessante é que o personagem a princípio reluta sair do Brasil e diz não
desejar ficar naquela terra estranha. Depois, em território inglês, diz não se lembrar
mais da terra natal, apenas de algumas coisas. Este ato de tradução lhe transforma
também.
A referência à idade do personagem acontece juntamente com um resumo de
sua situação até ali: “nos meus cinqüenta e poucos anos de idade, e essa fonte viria
dali, daquele homem de cabelos castanhos claros, com a maquiagem recomposta,
vivendo em Londres por enquanto sem lembrar com precisão por quê?” (p. 32)
Devido a seu não encontro com um ponto certo em Londres, o personagem
pensa:
tentaria de todas as maneiras me manter em Londres, agora, sim, e escreveria
então uma outra história – publicaria em inglês essa minha transformação num
alienígena, essa transformação que acabaria mórbida se eu não lhe desse um rumo
84
franco.(NOLL, 2004, p.34)
Assim o personagem começa a dar uma trajetória a sua vida em Londres, já
que o inglês não o destina a nada. Com um pensamento de independência, diz que
“faria parte daqueles autores imigrantes, sem nacionalidade precisa, sem bandeira
para desfraldar a cada palestra, conferência. Tudo se fundia em minha cabeça, feito
a tintura e a maquiagem que escorriam pelo meu rosto patético no espelho.” (p. 33).
Nota-se como o personagem se encontra perdido diante da situação, pois não se
encontrava mais em sua nacionalidade, e fora colocado em outra, assim surgindo à
expressão “sem nacionalidade precisa, sem bandeira para desfraldar”, como
conceber um indivíduo sem uma nacionalidade, sem uma bandeira para julgar como
sua. Assim o personagem compara a sua situação local, de guerra interior entre as
tradições passadas, e o ato de estar sendo traduzido para a nova cultura com sua
parte estética, que estava se desmanchando, com tinturas e maquiagens se
derretendo por seu rosto. O autor emprega uma analogia para demonstrar a
situação por qual passa o personagem para um momento de transformação, seja
exterior ou interiormente.
Sem a inquisição da autoridade do inglês sobre ele, é como se ele “não
tivesse documentos nem língua nem memória... sem nome, destino, moradia”. (p.
33). E com esta decisão
ressurgiria outro, inteiro, e triunfaria. Não me importava que as pessoas que
caminhavam pelas calçadas não me notassem, me confundissem com todas: era
desse material difuso da multidão que eu construía o meu novo rosto, uma nova
memória. Por enquanto, sim, eu não era ninguém. (NOLL, 2004, p.34)
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Neste trecho o personagem delimita premissas de como queria sua
identidade, totalmente desmistificada dos valores e padrões sociais estabelecidos e
cita, para seu despertencimento, inúmeros fatores que são exclusivos formadores
estáveis de identidade, como: língua, memória, nome, local. E com o esquecer das
tradições passadas, se isso é possível, ressurge como outro, queria em seu mundo
novo, ser apenas mais um na multidão, sem rosto, sem memória, ou seja, ninguém.
Estas características que o autor apresenta no romance se tornam a linha de
pensamento do sujeito contemporâneo para Antony Giddens, que analisa este
sujeito, como fenômeno análogo na sociedade, pois como a globalização impera na
sociedade hoje, acabando aos poucos com os regimes de tradições locais, as
bandeiras, ou seja, a nacionalidade não se torna fator de primeira instância, pois,
como se advoga ao todo, ao global, o local se torna reminiscência passada.
Giddens aponta justamente para este sujeito sem nome, sem rosto na
sociedade, pois devido à tamanha compressão de espaço e tempo que a sociedade
está vivendo, os indivíduos passam não mais a ser considerados como unidos
perante a nação, mas são concebidos todos como massa social ou ainda divididos
nas respectivas camadas sociais que habitam, devido ao fator capitalista.
Na manhã seguinte o inglês bate a sua porta e de ônibus vão a uma
enfermaria, onde o personagem preenche uma ficha e começa a passar por uma
batelada de testes e exames para que o inglês certificasse sua saúde, porém sem
mais explicações. Ficou durante muito tempo sedado, tempo que “usaria para
nascer” (p. 35) novamente. Com estes exames sem explicação, esses
medicamentos, os momentos que o desligaram levaram-no a pensar em “pegar um
avião de volta para o Brasil”. (p. 36). E sua memória, assim, o leva às tradições
locais de seu passado, o revelando seu modo de pensar de antes, um brasileiro que
86
queria retornar a sua nacionalidade. Intrinsecamente, esse é um modo de revelar
como as tradições e o local são fatores de formação estáveis para os sujeitos.
Quando sai do hospital, sozinho, passeando pelas ruas de Londres, vendo
turistas por todo canto, vem o sentimento de pertencimento do personagem ao seu
lugar: “para mim eu fora sempre de Londres, não havia outra cidade, outro país.”
(p.37).
Com este revigoramento se compara a “Apis, o deus que é touro” (p. 37), que
“as pessoas me olhassem, vissem em mim um outro... talvez acordasse alguém para
mim.” (p. 37). Com sua comparação à divindade grega, o autor começa a trilhar
características da transformação da identidade do personagem, com premissas de
mudanças que realmente afetam a estrutura psicológica do personagem, mudanças
que o transformam não mais em um brasileiro em terra estrangeira, mas sim em um
inglês em auto-formação.
Porém, a guerra da tradição com a tradução impera ao longo de todo o texto,
como a seguir, quando, para sua distração entra em uma taverna, para beber, onde
falou que:
tinha esquecido de verificar em algum espelho a minha aparência, se eu continuava
aquele mesmo que já mudara tanto, se já era outro, ou se enfim o hospital me
reconstituíra as antigas feições que eu deixara no Brasil. (NOLL, 2004, p. 38)
Já de volta para seu apartamento, ao acordar, um vietnamita bate em sua
porta para tirar medidas da janela para colocação de cortinas e assim se passa todo
um episódio fílmico no quarto de seu apartamento.
Sua identidade já está em tramite pelos fatos acontecidos. Como relata
através de ações fisiológicas: “Peidei, precisava cagar, dar uma boa mijada... num
87
quarteirão me veio uma golfada de vômito...” E conclui: “...vi que era um pouco de
Londres que eu botava para fora, Londres com seus fantasmas e missões
inatingíveis, já redondamente fracassadas.” (p.96)
Essas ações fisiológicas do personagem começam a possuir um papel além
de físico, agora psicológico, pois, como o próprio personagem narra, ao vomitar era
como se colocasse um pouco para fora de tudo que já agüentou em terra
estrangeira. A esta impregnação da cultura local, com visita a museus, catedrais,
pontos turísticos, praças e bairros, Marc Augé realça como uma possibilidade de
entendimento do protagonista de João Gilberto Noll: “... o passageiro dos não-
lugares faz a experiência simultânea do presente perpétuo e do encontro de si.
Encontro, identificação, imagem...”. (1994, p.96). Noll mascara seu narrador, que
busca o encontro de sua identidade ou procura pela identidade de outro. Finge ser o
outro para aceitar sua nova condição – transição esta por qual o personagem luta a
narrativa inteira, como o seguinte parágrafo realça:
Se conseguisse ser esse homem que me pulsava ainda mais, tentaria de todas as
maneiras me manter em Londres, agora, sim, escreveria uma outra história –
publicaria em inglês essa minha transformação num alienígena... faria parte
daqueles autores imigrados, sem nacionalidade precisa, sem bandeira para
desfraldar a cada palestra, conferência. Tudo se fundia em minha cabeça feito a
tintura e a maquiagem que corriam pelo meu rosto patético no espelho. (NOLL,
2004, p.68)
Nesta parte da narrativa, o personagem demonstra como sua identidade se
encontra em crise e como tudo se fundia em sua cabeça com a idéia de abandonar
sua nacionalidade e recomeçar em outra nação, como escritor, escrever em outra
língua, já que se encontra neste momento sem nacionalidade, sem bandeira.
88
O personagem espera no apartamento os próximos passos que o inglês daria,
para caso houvesse um equívoco “a embaixada brasileira saberá medir o drama e
me dar a passagem de volta para o Brasil” (p.24), mas ele “não tinha saudade do
que deixara no Brasil.” (p. 25). O conflito interno do personagem é revelado em todo
o romance, como atos de transição de um indivíduo sofrendo o processo da
diáspora e em perene alteração de valores em relação à estabilidade de sua
tradição e à instabilidade da sua tradução para a cultura local.
Isto faz com que o personagem, em seu apartamento, durante alguns trechos,
repense como queria que fosse tudo, sua estadia em Londres. E quando pensava
que seu único lugar seguro era seu apartamento, que não poderia ser violado, é
enganado novamente. Em uma noite o inglês bate na porta acompanhado de uma
linda mulher. Jantam juntos e depois tem que ceder seu quarto para os dois e ficar
na sala. Assim aos poucos começava a entender o inglês, seu meio, o que fazia, por
que o trouxe.
Percebi que a coisa começava a desandar entre os membros da tal entidade. Uma
verdadeira disfunção: um cara testa-de-ferro de uma organização britânica me
convida como autor de sete livros a uma estada em Londres; disponibiliza para isso
casa e algum dinheiro; de repente chego nessa casa que agora é minha e ele
almoça ou janta com uma mulher com quem deve manter relações pelo menos não
muito claras perante a instituição. É outro capítulo. (NOLL, 2004, p. 61)
Quando o casal saiu do apartamento, depois de terem passado a noite,
na esquina de um beco os dois subiam num caminhão que parecia do exército
britânico. Não se viam os corpos inteiros dos que já estavam acomodados. Havia
uma lona cobrindo a parte traseira do veículo. E os dois subiam com o universo
camuflado entre o verde-escuro e o claro, o marrom, como se fossem para
89
manobras ou à própria guerra. Levavam, cada um, uma sacola – com certeza com
suas roupas civis. Foi a primeira vez que me passou pela cabeça a idéia de voltar
para o Brasil. (NOLL, 2004, p. 63)
O único lugar que o personagem achava como ponto seguro na nova terra,
era seu apartamento, no bairro de imigrantes, porém até este o violaram, sentindo o
despertencimento à cultura local, pois, na nova terra, nada poderia dizer que era
seu, já que não passava de mais um indivíduo em terra estrangeira, sem
referências. Com sua crise de pensamento já instaurada, foi à idéia de retorno que o
acometeu, quando o processo da diáspora começa a exigir sua estrutura básica,
quando o herói, após viajar, seu retorno é esperado por mais tardar que aconteça, e
com o personagem de Lorde, esta idéia de retorno primeiro se dá interiormente,
psicologicamente para depois exteriormente.
Com esta visão o personagem diz que não poderia voltar para o Brasil sem
missão nenhuma comprida e após perambular por toda Londres, com seus
pensamentos, Noll novamente fornece uma citação dentro da narrativa do próprio
fim surpreendente do personagem: “Como se uma recompensa estivesse a ponto de
se dar, recompensa não sabia bem pelo quê, mas era como se a ordem natural das
coisas, na qual nunca acreditara me sussurrasse que agora o disco ia mudar de
lado, compreende?” (p. 71)
Depois de perceber que o inglês pertencia às forças armadas britânicas, e
isso não lhe fazer sentido nenhum, quando tudo o que lhe restava era pedir socorro,
pensa em exigir a nacionalidade britânica, direitos especiais, que não o
“perguntassem pelo passado, por outras nacionalidades, por nada mais – eu era
apenas o auxiliar daquele homem inglês.” (p. 74). Nota-se como agora o
personagem não exige mais uma identidade, mas sim uma nacionalidade, britânica,
90
para sentir seu pertencimento a uma pátria, e deixar de ser um ser isolado,
renegado, e será esta busca por uma nacionalidade que acarreta o final do livro,
quando o desdobramento da morte do inglês se torna um fato surpreendente para o
personagem, pois o suicídio do inglês no Rio Tamisa, quando simplesmente ele
passa no apartamento, em Hackney, e vão a um passeio, “ele sobe nos ferros
brancos e se atira” (p. 86), com todos próximos vendo o suicídio inesperado do
inglês, sem respostas. Na condição em que se encontrava o personagem, pensa
que agora será um “súdito responsável” (p. 87) ao Tamisa.
Mas mesmo com estes acontecimentos não era a hora ainda de se olhar no
espelho, para ver quem poderia encontrar lá.
Em um parágrafo diz que não possui mais a vontade de nada, devido ao fato
de estar “com morte hiper-recente em família.” (p. 89). Isto faz com que pensemos
sua situação com o inglês, no início alguém idolatrado, depois um desconhecido,
alguém odiado, “inglesinho de bosta”, e, agora, alguém da família? Preso em sua
mente, pensa: “onde me acolherão feito a um príncipe como mereço? Entrei numa
daquelas livrarias londrinas grandes, que se encontram em todo canto, e fui à
procura dos meus livros traduzidos.” (p. 93). Com esta cena, a tentativa de resgate
de sua identidade é conduzida, através de seus livros. Seu pensamento agora é
encontrar um trabalho, indiferente de qual for, sendo mais um ato do desdobramento
final do romance.
A leitura que se faz da presença do inglês é que: antes dele, o narrador se
sentia prisioneiro e não sabia de quem. Depois de sua morte, diz ser prisioneiro do
tempo, agora, e precisa matá-lo a qualquer custo. Sua identidade, nesta parte do
romance, começa a exercer um papel de liberdade, porque ele não deve explicações
mais a ninguém, sentindo-se livre em terra estrangeira.
91
O fato é que, após a morte do militar inglês, ele retoma a consciência, e diz
ter obtido a alforria daquela situação secreta em Londres. Após uma passagem, em
que o personagem rouba uma carteira de um homem inglês qualquer, hospeda-se
em um luxuoso hotel e a sua memória recorda que o hotel tinha o feitio do Hotel
Glória, no Rio. Sai e vai ao Cavern – onde tocavam Beatles – e as moças de
minissaias que dançavam lembravam-lhe que... “dançavam qual em canaviais
brasileiros, com ares tão lascivos que não deixavam nada a dever aos foliões
cariocas” (NOLL, 2004, p.100).
Como discutido no subitem anterior, dentro do enredo do romance, quase
toda a história é passada em entrelugares, tidos como espaços de passagem,
lugares de trânsito, momentâneos, pertencentes não a um, mas a todos, espaços
em que podem estar todos ou ninguém, multidões podendo coexistir e ao mesmo
tempo ninguém existir, ser notado, ou percebido. Assim, transcrevo alguns dos
trechos que apresentam estes não lugares no romance: “quando saí pela
alfândega...”(p.09). A alfândega é lugar de intenso tráfego de pessoas em busca de
uma chegada ou saída de países diferentes; “eu estava chegando ao aeroporto de
Heathrow, em Londres...” (p. 09). No aeroporto, há grande movimentação de
indivíduos atrás de destinos e nacionalidades, além das fronteiras; “me levaria com
certeza à porta do aeroporto e aos táxis...” (p. 10). Como no aeroporto, temos
também os táxis, carros de contingente elevado de pessoas em busca de endereços
estáveis ou não, porém de grande movimentação diária; “ah, vi um telefone público,
vi uma moça atrás de um guichê e que vendia cartões telefônicos...” (p. 11); espaços
públicos = lugares de transição individual, lugares de passagem; “disse que
estávamos a caminho da estação de trem...” (p. 12). Trem: transporte terrestre de
grande movimentação humana, que acarreta transições de espaço e tempo; “é aqui,
92
ele falou, fazendo-nos voltar a puxar as malas por uma estação gigantesca, muito
movimentada, até darmos de cara com uma fila para táxis...” (p. 13); “queria me
mostrar o Victoria Park...” (p. 19); “as manhãs à beira do Guaíba, entre a Usina do
Gasômetro e o Teatro Pôr-do-Sol.” (p. 19). Parques, usinas e teatros tornam-se
lugares, sejam públicos ou particulares, mas lugares de grande circulação de
pessoas; “os vários restaurantes asiáticos, os cybercafés...” (p. 19); “uma biblioteca
respeitável do mundo...” (p. 20); “ainda passamos pela vasta cantina onde
estudantes ou assemelhados soltavam fogosas risadas...” (p. 20); “divisei de cara o
prédio da National Gallery e pensei que era ali que eu ia entrar...” (p. 26).
Sendo estes, pequenos trechos do romance que demonstram os inúmeros
entrelugares por onde se passa todo o contexto de Lorde e demarcam a presente
identidade em trânsito do personagem. Toda a narrativa é circundada por lugares de
passagem. O sujeito coabita em todos estes lugares, espaços que, na verdade, são
de todos e de ninguém. Noll escreve toda a sua história, baseado nestes entre
lugares, pois estes espaços se tornam parte deste enredo contemporâneo, deste
sujeito pós-moderno como defende Hall, sujeito que se encontra mais
conceptualizado na presente sociedade, utilizando bens públicos a seu favor, e a
sociedade tendo uma atribuição maior para a vida de todos do que em décadas
anteriores.
Com o despertencimento do sujeito a uma nação, a crise normalmente aflora,
e um fator preponderante, dentro desta crise, é a língua, pois tem o papel de
aproximar ou afastar as pessoas, como o personagem cita:
parecia só existir aquilo, uma casa desconhecida que teria de ocupar, uma língua
nova, a língua velha que tão cedo assim já me parecia faltar em sua intimidade, a
93
não ser, é claro, as nações gerais – ou quem sabe, o socorro que ela ainda
proporcionaria pelo menos para mim em casos extremos, como o de estar à morte
e pronunciar uma palavra cara da infância, dessas que talvez você nem desconfie
que ainda tenha dentro de si, que irrompa apenas quando todo esse palavrório
inútil de agora se afasta até o ponto de reemergir o brilho daquela bisonha saudade
em uma, duas sílabas. (NOLL, 2004, p. 19)
Nestes pensamentos, a alteridade se encontrava sempre com
questionamentos ao outro, pela dúvida: “sei lá que coisa ele representasse.” (p. 22).
E a nação em resquícios da memória, sempre voltando, seja por visões positivas ou
negativas: “eu não tinha saudades para cultivar.” (p. 22). Em passeio, o pensamento
já se formava: “por mim poderia voltar, voltar para casa que a partir de agora queria
chamar de minha” (p. 22). Assim, seu pertencimento já começa a coexistir dentro da
nacionalidade e de sua identidade transformada.
E a diferença realça o personagem através da experiência: “não era por nada,
queria me ver depois da viagem, ver se eu ainda era o mesmo.” (p. 23); “pois preciso
constatar que ainda sou o mesmo, que outro não tomou o meu lugar.” (p. 24). Estas
falas realçam este processo de formação da identidade, de uma nova identidade. O
próprio personagem possui a consciência de que está em busca, à procura de uma
identidade não fixa, “à procura de uma outra identidade.” (p. 29). Com novas
oportunidades de formação de uma identidade, a anterior é deixada de lado, não
esquecida: “não lembrava direito de onde tinha vindo, o Brasil naquelas alturas se
insinuava em pura abstração.” (p. 29)
De outro modo, as marcas de oralidade, presentes na narrativa do texto, dão
vida às falas do sujeito, este sujeito que fala como pensa, não somente em um
94
padrão, ordenado, culto, mas sim em um coloquial linguajar, um não-padrão: “eu,
hein?” (p. 23); “sei lá.” (p. 11); “Ahhh!” (p. 68); “eu repeti ah, ah, ah!” (p. 68); “não é
de estalo, cara.” (p. 81).
Em mais uma crise de identidade, em seu quarto em Hackney, o personagem
diz: “se eu procurasse o passaporte brasileiro por toda a casa tinha certeza de que
nessas alturas já não o encontraria jamais. Eu o enfiara em mais um buraco da
memória.” (p. 43) Ou seja, há o esquecimento desta identidade que se revela no
passaporte. “Começava a compreender que eu tinha fugido de uma situação no
Brasil. Não sabia ao certo qual – ‘cadê minha memória? ’ eu fora autor de livros, eu
os trouxera? (p.43). Assim, o passaporte sublima no romance todo um contexto
passado pelo personagem, que não o supera, devido a tradições e culturas estarem
enraizadas em sua identidade. Porém, o processo de tradução rompe com sua
memória, levando-o a novos aspectos de identidade, uma nova posição, enquanto
outros não são esquecidos, mas deixados de lado como algo passado.
Antes da metade do romance, Noll já lança uma referência ao final do livro,
quando o autor está em seu apartamento e “tocou o telefone. Um certo Professor
Mark, de estudos latino–americanos, da Empire’s University, pedia uma entrevista.”
(p. 44). Com uma oportunidade de realmente mostrar quem é, de resgatar sua
identidade com o professor, faz um pacto com o espelho, corre ao banheiro, o pega,
e o pendura ao contrário. Como o seguinte trecho prova:
Eu não teria mais face, evitaria qualquer reflexo dos meus traços. Cego de mim eu
me aliviaria com que não se importasse com a minha cara. Por via das dúvidas, o
espelho continuava ali, voltado para o lado errado, mas ali; e se precisasse fugir
amanhã ou depois eu teria ainda como me olhar mais uma vez para lembrar quem
levava comigo. (NOLL, 2004, p. 44)
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Em seguida, o personagem vai ao encontro com o professor, vendo nele a
oportunidade de encontrar um amigo na Inglaterra. No encontro, o humor de Noll se
faz presente novamente: “como pessoas como nós dois, maduros in extremis, quase
a ponto de cairmos do galho.” (p. 45). Depois do decorrer do jantar na casa do
professor, o mesmo vai tomar banho e acontece mais uma cena do escritor com
seus pensamentos sobre o outro. Estas cenas, criadas pelo autor, bem como
algumas premissas que antecedem o final do romance, Noll estabelece certas pistas
para que o leitor possa ir antecedendo um final possível para o romance. Estas
marcas se tornam características do autor, trechos que em algum momento possam
aparecer sem contextualização, ou referência. Na verdade, se trata de dicas textuais
que Noll cria para encadear os diversos núcleos por quais passa o personagem. O
encontro do personagem do romance com o professor que o convidou a ir a sua
casa, um encontro que em uma primeira visão pode parecer, simplesmente, mais um
trecho de todo o contexto do romance, na verdade se trata de um dos episódios
mais marcantes do romance, pois é neste trecho que se desenvolve toda uma
problemática, seja existencial, social ou de gênero. É neste momento que é
instaurada já uma posição mais clara do personagem para uma possível existência
em Londres: não ser mais simplesmente um imigrante em terra estrangeira, ser
alguém compatriota, com uma bandeira a propagar.
No banheiro acontece à primeira cena homossexual do romance, quando o
professor “por fim parou, fixou o olhar em mim e me convidou a entrar na banheira
com ele.” (p. 48). No decorrer dos parágrafos, seguem-se mais cenas homossexuais
entre os dois, até que o personagem se pergunta: “porque eu era o homem que vivia
a fugir?” (p. 49), como se sentisse realizado de não fugir de algo que queria, e de
não ser bem visto por alguns, repensando assim seus próprios conceitos.
96
Exatamente na metade do romance (NOLL, 2004, p.55) o narrador de Lorde
diz qual a representação que faz de uma tradução cultural:
Esta é a sina dos covardes: ir se desfazendo das marcas de qualquer experiência
que não traga em si a sua justificativa ampliada. Ele não tem parte em nada,
deixam pelo caminho até os indícios de alguma aptidão humana mais vertical, com
medo de um mal-entendido.
Como já visto, com o conceito de Stuart Hall, explica-se a obra de Noll: as
pessoas traduzidas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a
negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades.
A noção de tempo se faz presente para o personagem, de maneira que o
cobra, o exige, como modo de repensar sua existência.
Eu tinha perdido um tempo enorme olhando os ambientes, mas só para meu
refrigério. O testemunho, se por acaso houvesse, não tinha operacionalidade –
estava inscrito em figuras abertas ao vento, irrequietas, antes que a areia
esvoaçante as interasse no coração avarento da terra. (NOLL, 2004, p.50)
Em uma de suas saídas pelas ruas de Londres, um episódio marcante é a
morte do rapaz com rastafári que presencia na rua. E assim passa dia após dia em
entre lugares, em museus, em zonas de prostituição, passeios em igrejas, tavernas
e com isso se expõe a muitas pessoas, e a muitas línguas e culturas distintas,
movimentos sociais que a globalização proporciona a um indivíduo em diferentes
lugares, já que não temos mais aquela cultura centrada, fixa, fechada, mas sim uma
97
cultura aberta, modificadora, que influencia seus indivíduos nestas sociedades
contemporâneas dentro de uma grande rede. Como o livro, em muitos trechos são
apresentadas essas novas esferas de contato, às quais o personagem é exposto:
“falava numa língua com certeza africana, do Quênia” (p. 54); “era chileno” (p.57);
“mas um casal de franceses pediu-lhe um passeio.” (p. 57); “lá dentro falavam
português, iraniano, chinês, vietnamita, inglês, espanhol, italiano, turco.” (p. 60);
“sentado no cantinho, vendo holandeses, caribenhos, japoneses passarem.” (p. 88)
Esses impactos por que passa o personagem o vão transformando em outro.
Marcas de identidade fixa, concreta, aos poucos se desfazem para a criação de
novos traços identitários. “Ir se desfazendo das marcas de qualquer experiência que
não traga em si a sua justificativa amplificada.” (p. 55)
Exatamente na metade do livro temos o ápice de sua crise de identidade,
lembrando que tal crise na verdade é o revelar de inúmeras experiências
existenciais por quais passam o personagem. Como mudança de bases estáveis,
local, tradições, nacionalidade, língua, o processo diaspórico por qual passa e o leva
a novas conceituações de si próprio, em auto-formação contínua da identidade.
Assim, o ápice de sua crise é quando
tinha chegado o dia. Ou se renunciava a mim para ser outro ou, sei lá...
Compreende? Perguntei no ar. Não, ninguém poderia compreender, menos ainda
eu que estava a fugir de uma situação a que fora chamado em Londres e à qual eu
não sabia mais que conveniência dar. (NOLL, 2004, p. 55)
A crise se dá no momento em que ele não sabe seu próximo passo, seu
presente e futuro, e aos poucos seu passado começa a ser apagado: “falta-me a
lembrança de uma cama no Brasil...” (p. 57).
98
Assim decide mudar de rumo, já que “era tão sozinho quanto um homem que
vaga por entre uma floresta imprecisa, com misto de árvores e sons de animais
noturnos.” (p. 95). Nota-se como esta referência é ligada a uma linhagem de lorde,
um homem que anda por florestas que não conhece, com sons mistos. É nesta
solidão que encontra, em seus calabouços mentais, uma referência para sua
identidade. Então, o personagem larga tudo (ou nada) o que tinha em Hackney e vai
para Liverpool de trem. Decide “deixar o medo, se é que o medo de estar sendo
perseguido por um poder paralelo na cidade tivesse algum sentido para outra
cabeça que não a minha.” (p. 98, 99). Em alguns momentos do texto, o personagem
apresenta essas alucinações, com formas objetivas de levá-lo a uma posição diante
da situação. Estes momentos são fluxos de consciência que fogem ao contexto
específico da presente ação, porém o encadeiam dentro do processo maior de
formação da sua identidade, como se estes momentos ou estas fugas fossem
conversas com seu eu interior. Porém, com a promessa de não se olhar no espelho:
“olhar-me no espelho, ali, seria como quebrar o encanto depois de tê-lo conseguido
enfim” (p. 98) e com o fato de o espelho sempre estar associado a sua auto-imagem,
o medo de se notar no espelho era o medo de enxergar o seu eu interior, do qual
fugia tanto. Assim, não poderia quebrar tal encanto criado, já que criava um novo eu,
sem ao menos ter a consciência de tal fenômeno pelo qual passava. A viagem, na
verdade, é desencadeadora de uma série de fatores já pré-existentes em sua vida. A
viagem, agora, para outro local, dá uma esperança de resolver seus problemas, que
foram criados na viagem de descobrimento do seu eu.
Em Liverpool, pára no Hotel Britannia Adelphi, já que havia dinheiro suficiente,
pois na estação de trem havia roubado uma carteira de um sir. Mas, no quarto, um
problema: espelhos demais. Com inúmeras informações reais de endereço, o autor
99
hospeda-se num palácio – Lorde, onde até os Beatles estiveram hospedados, com
um salão onde “todos dançavam qual em carnavais brasileiros, com ares tão
lascivos que não deixavam nada a dever aos foliões cariocas.” (p. 100) –
comparação com o Brasil. Assim todo o contexto do romance é um regime de
conflito dentro do próprio personagem, pois a narrativa é conflituosa e leva seu
personagem insistentemente à crise, entre o antigo e o novo, a novas experiências e
suas tradições passadas, uma história como escritor, ou uma nova identidade sem
nome, sem pertencer.
Depois de conhecer razoavelmente Liverpool, entra no Adelphi
e o telefone do quarto tocou. Quem poderia ser numa cidade onde ainda não
conhecia ninguém? Uma professora da Universidade da Cidade de Liverpool, com
pronúncia lusitana, gostaria de me ver. Achei engraçado ela pronunciar o título da
universidade estrangeira em português. (NOLL, 2004, p. 102)
Com este trecho do texto, a oportunidade de algo novo surge dentro do
romance e o personagem faz menção de ir até um espelho, retirar o pano que o
cobria e antes de tudo se olhar. Este ato pode ser analisado como uma primeira
premissa de notar agora a identidade que se faz presente, depois das inúmeras
transições. O querer se olhar já é uma aceitação de sua identidade transformada.
A professora era uma mulher jovem, e que dizia ler os livros do autor
brasileiro, inclusive para seus alunos. Mas o que a fez achá-lo foi que o viu e o
reconheceu entrando no hotel, então pediu o telefone. No encontro deixou claro o
motivo, era que a Universidade precisava de um professor de língua portuguesa,
não de literatura, para o semestre seguinte e disse que não poderia haver professor
100
melhor do que um autor com o seu currículo. No mesmo encontro, ele aceita, e
lembra que havia começado a vida como professor de português.
Neste exato momento da narrativa é que acontece o retorno intrínseco do
anti-herói a sua terra natal. Chamamos este personagem de anti-herói, porque, se
definido herói, este é classificado como: “homem extraordinário pelas suas proezas
guerreiras, pelo seu valor ou magnanimidade, protagonista de uma obra literária, ou
de um filme.” (BUENO, 2007, p. 405). Assim, o personagem principal de Lorde pode
ser entendido como o herói do presente romance, porém obtém características
contra, ou anti-heróicas, devido ao fato de suas proezas ao longo da narrativa não
se enquadrarem dentro de uma magnanimidade, como é esperado de um herói.
Nosso anti-herói possui características que fogem deste estereótipo, pois o foco
principal de um herói seria realizar inúmeras proezas que fossem benéficas ao outro,
que o levassem a um patamar de visão perante a sociedade, e nosso protagonista
toma caminho contrário o de não ser notado.
Como em todas as literaturas de viagem, não que este romance se enquadre
dentro deste modelo, mas possui características, a partir da saída do herói, após
inúmeras ações e desdobramentos, o retorno acontece para sua terra natal. Porém,
este retorno do personagem ao seu local de saída não acontece terreneamente, ou
seja, voltando a habitar seu local de saída, porque seu retorno da viagem diaspórica
ocorrida se dá por um fator de marcação da identidade dentro das tradições de uma
nação: a língua. Como o retorno acontece pela língua, o curioso é que o
personagem fugiu de sua identidade anterior, brasileira, justamente por ser um
escritor da mesma língua, fator de que queria se desvencilhar. Mas seu retorno às
tradições locais acontecem justamente pelo principal fator que o fez transformar toda
a sua identidade, a língua, fator de disjuntura de sua identidade e que, no retorno,
101
agora é um fator de união, para sua própria identidade. É como se a língua fosse, ao
mesmo tempo, desentrave e conjuntura para resolver sua crise identitária, pois,
neste espaço, poderia coabitar, como não sendo apenas um, mas agora dois, um
sujeito que está neste entremeio, dentro de inúmeros fatores associativos da
formação da identidade.
Nos dias seguintes, foi visitar o campus, onde conheceu o “chefe do
departamento, um professor de português, careca, nos seus sessenta e poucos,
especialista em estudos medievais ibéricos.” (p. 103)
E assim aconteceu, foi escolhido
para ocupar uma das cadeiras de língua portuguesa na Universidade da Cidade de
Liverpool. Certo, pouco me interessavam então as teorias no campo literário. Mais
me valia o conhecimento da língua portuguesa, como ela se formara, com que cara
e dinâmica se apresentava hoje. Por que ligamos uma palavra a outra e montamos
frases suntuosas ou secas, sinuosas ou diretas, brutas ou subliminares. Se o que
dissemos com tais frases tem ligação imediata com as coisas ou se servem apenas
ao descarrego para os nossos neurônios impossíveis. E se for essa última hipótese
a prevalecer, por que não nos calamos, mesmo que com isso eu venha a perder o
emprego de professor desse pelírio chamado língua portuguesa? Formaremos
assim um novo departamento nessa universidade, o dos cânones do silêncio, e
nele evocaremos o que se esqueceu de ecoar, de vir até aqui, a nova teologia.
(NOLL, 2004, p. 104)
Depois de acabar de ser contratado pela Universidade de Liverpool, como
professor de Língua Portuguesa, o personagem principal complementa (NOLL,
2005, p.105): “Mesmo que louco para me auto-exilar no Brasil, agora com o
português de Bandeira para propagar.” E em determinado trecho, ao atravessar a
rua, narrou (NOLL, 2005, p.83): “... Fui saindo... tinha manha, nessas horas é
sempre bom lembrar-se de que se é brasileiro...”.
102
Porém, o romance começa a determinar o seu final, já que não mais quer
voltar ao Brasil, e o desejo do personagem de se fixar em Londres está mais forte.
Tudo isto faz com que ele “não se reconheça mais, se transfigure, saia desse seu
corpinho idiota aqui, que vomite de asco, vire outro.” (p. 82). Com esta mudança,
leva o pensamento do personagem “a mudar de país. De cidade, de região, por que
não?” (p. 82). Tudo o faz pensar, para que possa fugir dos seus limites. Com isso,
quer se “transfigurar num latino boa-pinta... Nessas horas, sempre é bom lembrar-se
de que é brasileiro.” (p.83). Noll transfigura seu personagem, para manter uma
relação de amor e ódio com suas tradições e já traduções da sua identidade. Joga
com as premissas sociais da sociedade, já que a consciência é algo social. Este
brinca com os conceitos que dão estabilidade à identidade do indivíduo. Este escritor
de meia idade, o qual caracteriza o personagem principal de Lorde, se torna um
exemplo paradigmático de como uma identidade está em auto-formação, dentro das
compressões de espaço e tempo que a sociedade contemporânea está vivenciando.
Resumindo, no Brasil o personagem fora convocado por um inglês
indecifrável, que até o fim de seus dias não revelou a verdade de seu gesto, e a
quem representasse de fato. Porém, este auto-exilamento do Brasil o levou, por fim,
não ao despertencimento, mas agora tendo o português de bandeira para propagar
em terra estrangeira e automaticamente sua nacionalidade.
Em um caís de Liverpool o personagem conhece George, pescador com
quem, após alguns encontros, mantém relações homossexuais. O autor deixa claro
que “tinha encontrado a cidade, o meu lar, o meu homem” (p. 106) e “o espelho
confirmava, não adiantava adiar as coisas com indagações. Tudo já fora respondido.
Eu não era quem eu pensava”. E disse em seu quarto: “eu sou professor de língua
103
portuguesa, falei em português... eu sou professor de português, repeti o leve acento
gaúcho.” (p. 109)
E, no final deste ato de tradução do personagem, o mesmo pega um táxi e o
motorista o leva a um cemitério desativado desde o século XIX, onde chega ao final
o romance, com um ar de morte e renascimento para a identidade de um novo
sujeito. Noll joga em sua narrativa com o confronto entre o “eu” (identidade do
brasileiro) e o “outro” (o inglês). Assim, dentro do romance, o personagem foi ao
“fundo do poço” para poder renascer, mas, ainda assim, manteve traços de sua
identidade de origem, sua subjetividade, seu “eu”, embora dentro de um novo eu.
2.2.1 Lorde: uma identidade britanizada
Uma das características dentro da romance de João Gilberto Noll, para se
decifrar o título é mostrar a identidade abrasileirada, posto que Lorde está escrito em
Língua Portuguesa, é a forma como foi traduzida para o português a palavra Lord.
O título do livro revela o processo de transfiguração cultural que viveu o
narrador, ou seja, de escravo, prisioneiro do inglês, a sujeito alforriado pela própria
língua de sua cultura natal. Ao final, transforma-se em um verdadeiro Lorde. A capa
do romance é uma tatuagem em pele: uma marca que busca por identidade, por
uma fixação, embora diariamente seja exposta a transfigurações do tempo.
O título pode ser explicado pelo seguinte trecho:
Embora hoje eu fosse mais perto desse homem do que jamais, se bem que com
uma precária garantia de que não cairia na sarjeta enquanto o inglês me
104
financiasse aquele mínimo ao mesmo tempo vinha ressurgindo um cavalheiro em
mim, certamente o que eu nunca conseguiria cultivar a contento no Brasil. Em que
pese de fato estar sofrendo de amnésia profunda, principalmente em certas
ocasiões, eu não esquecia de que o novo cavalheiro. Eu também não me afogaria,
eu ressurgiria outro, inteiro, e triunfaria. Não me importava que as pessoas que
caminhavam pelas calçadas não me notassem, me confundissem com todas: era
desse material difuso da multidão que eu construía meu novo rosto, uma nova
memória. Por enquanto, sim, eu não era ninguém, mas cedo eu chegaria a todo
mundo e estaria então com a minha cara pronta, uma história que eu poderia
relatar desde o primeiro verso, sim, seria escrita em versos, e eu os recitaria para
novas audiências. (NOLL, 2004, p.55)
Assim, no personagem do romance, nota-se como a língua portuguesa é
veículo de não-dominação, de resistência. É a língua o único bem que tem o
personagem naquela cultura estranha. Foi, também, a língua o elo de união das
duas culturas: aquela que viveu e passou a viver o personagem. Uma cultura que
passou a ser híbrida ao personagem, como um indivíduo traduzido. A união do “eu”
com o “outro”, a união de sua identidade brasileira, a identidade traduzida e
culturalmente assimilada, à estrangeira (britanizada).
Desse modo, e, por se tratar de uma dissertação que une os Estudos
Culturais, com suas noções de identidade, dentro da obra literária Lorde, cabe
colocar aqui um pensamento de Marc Augé sobre a importância da palavra como
produtora de imagens na modernidade, relevante para este subitem:
O peso das palavras não é somente aquele dos nomes próprios, muitos
substantivos possuem, quando se oferece a ocasião, em certos contextos, a
mesma força de evocação. Imagina-se a atração que puderam e podem exercer
em lugares distantes certas palavras... A palavra aqui não cava um fosso entre a
funcionalidade cotidiana e o mito perdido: ela cria a imagem, ela produz o mito e,
ao mesmo tempo, o faz funcionar. (AUGÉ, 1994, p.88)
105
Eis o poder da palavra. Mesmo no mundo globalizado atual, nos não-lugares
da modernidade, ainda é a língua que representa em grande parte a identidade de
uma sociedade, língua que em certos aspectos se torna uma bandeira nacional.
Com questionamentos sempre frequentes na obra, as línguas e culturas se
faziam em contato. Como exemplo: “ele falou alguma coisa que não entendi, na
certa sotaque caribenho” (p. 13) ou “indivíduos de todas as espécies, alguns que se
vingam de toda uma nacionalidade, no caso da brasileira”. (p. 13)
O que acontece em toda esta narrativa é o questionamento da nacionalidade,
é o indivíduo entendendo a nação em sua prática, a representação de uma
nacionalidade embutida nos sujeitos através de atos e ações resultantes de uma
vida em sociedade – processos intrínsecos psicológicos e sociais.
Outra referência ao título é notada quando o personagem “sem nome” estava
saindo de seu apartamento, já com o inglês, quando
quase no fim da escada, caí. Agarrei-me a seus sapatos sujos da umidade de
Londres, como um soldado ferido se agarraria ao tronco de uma árvore para poder
se levantar e continuar ardendo na batalha. Aquele inglês mudara definitivamente a
minha vida e eu deixaria isso claro o suficiente para ele a cada minuto do que me
sobrasse de existência. Estávamos na mesma armada, e tanto fazia que essa
armada me obrigasse a renegar tudo o que até ali eu tentara ser. Nome,
nacionalidade, cor, religião. Indiferente compor com os novos elementos de
cidadania um sentido ou não. Com uma migalha seria um rei. (NOLL, 2004, p. 41)
As referências ao título aparecem de modo obscuro na narrativa do
personagem, como no trecho em que o professor Mark quer lhe proporcionar “uma
lareira, anáguas acetinadas, festas em círculos da realeza” (p. 52), como se o
106
mesmo tivesse dentro de si um Lorde que precisasse sair, como uma nova
identidade que quer nascer. Assim, o protagonista renasce com uma nova
identidade, dentro de outra nacionalidade, após o processo de diáspora que o levou
a lutar contra suas tradições, que, enfim, foram traduzidas pela nova cultura, nova
sociedade e pela “nova” visão de sua “velha” identidade.
O que esta identidade britanizada de Lorde, deixa claro a seus leitores é que
quando se trata de fatores de identidade, nada é excludente e tudo é complementar,
ou seja, a uma desvalorização de espaços anteriores para que haja uma permissão
de novos espaços. Se notado a nível cultural e social é justamente isto que
acontece, o personagem deixa um pouco de lado características de sua tradição
local (brasileira), para ser sujeito inglês, traduzido, se deixa permear por uma nova
cultura e nova sociedade.
Estas mudanças o fazem deixar de lado, o brasileiro com bandeiras a
propagar e se torna um inglês, um europeu, ou enfim, um lorde. Nestas mudanças
de espaços não só físicos como mentais, é que acontece a valorização do sujeito
híbrido, comentado tanto por Giddens como por Hall. O sujeito híbrido transita além
fronteiras, não se prende a barreiras estipuladas pelas tradições, pelo contrário é
guiado pela tradução a nova cultura.
Hall argumenta que o hibridismo “é a fusão entre diferentes culturas – é uma
poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à
modernidade tardia que as velhas e contestadas identidades do passado.” (2005, p.
91).
Assim definimos esta identidade britanizada de Lorde, um sujeito que sofre o
processo de hibridização, já que em seu contexto se encontra na fusão entre
diferentes culturas, produz uma nova dimensão de identidade com este processo
107
que o leva a contestar a identidade passada em função de apropriá-la a um outro
contexto social e cultural. Processo que somente aconteceu em virtude da crise
identitária sofrida ao longo da história e que permeou e formou toda a trajetória do
romance, com a busca perene do personagem sem nome.
Porém como Hall discute, com a criação da identidade híbrida no sujeito é
instaurado também a “dupla consciência” (HALL, 2005, p. 91) que implica a
identidade o relativismo entre culturas, com seus custos e perigos. O romance
denota certa consciência sobre este aspecto, já que o personagem vive esta
implicação em sua identidade em trânsito, pois em vários contextos da história relata
esta dupla consciência quando se depara com os riscos da nova cultura com os
aspectos que em muitas vezes tem que suprimir, ou advogar e os custos que são
exigidos a cada página do romance ao personagem.
Lorde, desta forma abrasileirada, é a possibilidade de relato que Noll nos
apresenta para entender a identidade do sujeito deste novo século. Uma identidade
que não é mais fixa e bem definida como tempos atrás, a qual possuía uma
definição clara perante o mundo social e cultural. Este romance realça a mudança
estrutural que está acontecendo com as identidades, fragmentando e deslocando as
estruturas culturais de classe (sexualidade, língua, nacionalidade). As identidades
que eram antes sólidas aos indivíduos, onde possibilitavam a esses uma localização
social, hoje essas fronteiras estão deslocadas e não definidas provocando aos
indivíduos uma crise em sua identidade, como bem discute o personagem sem
nome do romance contemporâneo de João Gilberto Noll explicitado aqui.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crise compreende a uma identidade, aprendizado, leva a mudança de
padrões, de atitudes, de visões, a transforma. A crise é uma alteração de um curso,
um momento de transição, perigoso e decisivo. Enfrentamento de obstáculos
difíceis. A crise compreende substituições e quando se trata de uma identidade,
estes efeitos são mais complexos do que transpassam.
O personagem de Lorde, de João Gilberto Noll, é o exemplo paradigmático
dentro do seu contexto de uma crise de identidade. Mostra intrinsecamente, as
conseqüências de uma identidade ser exposta a uma transição. Iniciada por um
processo de diáspora, o personagem é colocado em outro contexto social e cultural,
que o leva a um repensar de sua tradição local, ao mesmo tempo, que sua
nacionalidade lhe impõe barreiras e o processo de tradução cultural o abre portas
para um novo horizonte. A língua, portuguesa, dentro do romance é a esfera
psicológica da condição. É esta língua que leva o personagem ao questionamento
de todas as esferas que trazem a estabilidade ao sujeito, e, ao mesmo tempo, a
instabilidade é instaurada pelo mesmo veículo. A língua, ou melhor, o processo de
comunicação do sujeito é a chave para a compreensão do fenômeno de formação
da identidade. Porém dentro do processo comunicativo, não cabe apenas a língua,
mas o suporte que lhe trás a base de sustentação: a nacionalidade, o idioma, a
tradição. Estruturas que fixam a identidade ao local.
A problemática da identidade, abordada nesta dissertação é uma das
discussões possíveis dentro do romance Lorde, pois este é um leque abrangente
dentro de inúmeras áreas de estudo.
A problemática da identidade em Lorde é uma forma de explicitar os
109
fenômenos que todos dentro da sociedade contemporânea estão passando,
aspectos que são pertinentes ao sujeito, pois nota-se como a literatura neste
contexto se torna o espelho da sociedade, assim só refletirá seus próprios
processos. Porém, como não se trata mais de uma sociedade moderna, os efeitos
desta transição pós-moderna estão levando as tradições fixas a se transformarem
em processos evolutivos de mudança, que desenraizam e transpõe a tradução
cultural. As sociedades hoje, consideradas redes de entrelaçamento unidas em torno
do globo, onde fronteiras estão se apagando. E a diáspora é um dos processos
responsáveis para esta mudança de pensamento moderno. Pois é através dela que
sujeitos e sociedades estão se constituindo de modo híbrido.
Assim esta dissertação, revelou o processo de travessia do sujeito ao ser
exposto a crise, estas transformações sentidas não só psicologicamente, mas
também fisicamente pelo personagem. A crise o leva ao aprendizado e
inexoravelmente a uma nova produção, uma nova concepção, onde uma nova
identidade surge, com base em todas as premissas anteriores instauradas por todos
os processos de formação (língua, tradições, nacionalidade). O personagem de Noll
realça não só uma crise, mas uma busca que se torna aprendizado e se desdobra
em uma identidade transformada, pressupondo, que a identidade anterior não se
modificou por completa, porém não permaneceu como antes. E neste entremeio que
se encontra a identidade transformada, em intercâmbio com novos espaços e
tempos é que se encontra o personagem sem nome de Lorde, servindo como
exemplo, assim paradigmático, não só para nos auxiliar na compreensão da esfera
social e cultural, mas para abrir nortes sobre nossa própria dimensão enquanto
sujeito.
João Gilberto Noll, assim exemplifica por meio do seu romance – Lorde, que a
110
identidade é a nossa única e principal face, que é dia após dia questionada, a partir
do exterior em virtude do interior – denotando a eterna busca existencial do ser
humano.
111
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