intoxicação por chumbo e saúde infantil: ações

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ARTIGO ARTICLE 163 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(1):163-171, jan, 2006 Intoxicação por chumbo e saúde infantil: ações intersetoriais para o enfrentamento da questão Lead poisoning and child health: integrated efforts to combat this problem 1 Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Botucatu, Brasil. 2 Departamento de Saúde Coletiva, Secretaria Municipal de Saúde de Bauru, Bauru, Brasil. 3 Serviço de Geoprocessamento, Departamento de Água e Esgoto de Bauru, Bauru, Brasil. 4 Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo, Bauru, Brasil. 5 Outros membros listados no fim do artigo. Correspondência N. E. Tomita Departamento de Odontopediatria, Ortodontia e Saúde Coletiva, Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo. Al. Dr. Octávio Pinheiro Brisolla 9-75, Bauru, SP 17012-101, Brasil. [email protected] Niura Aparecida de Moura Ribeiro Padula 1 Maria Helena de Abreu 2 Luís César Yoshinori Miyazaki 3 Nilce Emy Tomita 4 Grupo de Estudo e Pesquisa da Intoxicação por Chumbo em Crianças de Bauru 5 Abstract An epidemiological survey was carried out by technicians of the State Health Secretary and the Municipal Health Secretary of Bauru, São Paulo, Brazil, due to excessive atmospheric lead emissions caused by a battery manufacturer. This survey included 853 children from 0 to 12 years old, in a 1,000-meter area from the pollut- ing source, in Bauru (2002). The blood lead lev- els of children in the exposed group were higher than those in the control group (p < 0.05). 314 children were found to have dosages equal or superior to 10μg/dl, the limit stipulated by Cen- ters for Disease Control and Prevention. Public services, universities, and volunteers developed some activities aiming at child diagnosis and treatment. The Municipal Health Secretary co- ordinated remediation initiatives such as: scrap- ing the superficial surface of streets, internal as- piration of houses with professional equipment, and washing and sealing tanks. Through this work, the Lead Poisoning Study and Research Group (GEPICCB) shares an integrated, inter- disciplinary, and interinstitutional action pro- posal. Intersectorial Actions; Child Welfare; Lead Poi- soning Introdução Rojas et al. 1 referem que, embora a exposição ao chumbo esteja em declínio nos países em desenvolvimento, a contaminação crônica por exposição a baixos níveis continua sendo um problema importante para a saúde infantil. As crianças apresentam um elevado risco à exposição ao chumbo, sendo especialmente sus- cetíveis aos seus efeitos tóxicos 2,3,4 . O Fundo da Nações Unidas para a Infância (UNICEF) 5 rea- firma a vulnerabilidade infantil ao chumbo, de- vido aos maiores níveis de absorção desse metal pesado, quando comparados aos adultos. Os sis- temas nervoso e digestivo da criança são espe- cialmente suscetíveis a alterações e, adicional- mente, a criança tende a explorar o mundo com a boca, entrando em contato com o chumbo presente no solo, na poeira doméstica e no ar. Os mecanismos pelos quais a exposição ao chumbo ocasiona esses agravos à saúde foram alvo de um estudo de Moreira & Moreira 6 , que consideram que seus efeitos nocivos podem afetar praticamente todos os órgãos e sistemas do organismo humano, com base em vários modelos cinéticos que tentam explicar a distri- buição do chumbo no organismo. Tendo em vista que a importância global suscitada pela contaminação por chumbo im- plica compreender o problema sob os aspectos da desigualdade 1 , vulnerabilidade 7 , processo de adoecimento e capacidade de resposta do

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ARTIGO ARTICLE 163

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(1):163-171, jan, 2006

Intoxicação por chumbo e saúde infantil: açõesintersetoriais para o enfrentamento da questão

Lead poisoning and child health: integrated efforts to combat this problem

1 Faculdade de Medicina de Botucatu, UniversidadeEstadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,Botucatu, Brasil.2 Departamento de SaúdeColetiva, SecretariaMunicipal de Saúde de Bauru, Bauru, Brasil.3 Serviço deGeoprocessamento,Departamento de Águae Esgoto de Bauru,

Bauru, Brasil.4 Faculdade de Odontologiade Bauru, Universidade de São Paulo, Bauru, Brasil.5 Outros membros listadosno fim do artigo.

CorrespondênciaN. E. TomitaDepartamento deOdontopediatria, Ortodontiae Saúde Coletiva, Faculdadede Odontologia de Bauru,Universidade de São Paulo.Al. Dr. Octávio PinheiroBrisolla 9-75, Bauru, SP 17012-101, [email protected]

Niura Aparecida de Moura Ribeiro Padula 1

Maria Helena de Abreu 2

Luís César Yoshinori Miyazaki 3

Nilce Emy Tomita 4

Grupo de Estudo e Pesquisa da Intoxicação por Chumbo em Crianças de Bauru 5

Abstract

An epidemiological survey was carried out bytechnicians of the State Health Secretary andthe Municipal Health Secretary of Bauru, SãoPaulo, Brazil, due to excessive atmospheric leademissions caused by a battery manufacturer.This survey included 853 children from 0 to 12years old, in a 1,000-meter area from the pollut-ing source, in Bauru (2002). The blood lead lev-els of children in the exposed group were higherthan those in the control group (p < 0.05). 314children were found to have dosages equal orsuperior to 10µg/dl, the limit stipulated by Cen-ters for Disease Control and Prevention. Publicservices, universities, and volunteers developedsome activities aiming at child diagnosis andtreatment. The Municipal Health Secretary co-ordinated remediation initiatives such as: scrap-ing the superficial surface of streets, internal as-piration of houses with professional equipment,and washing and sealing tanks. Through thiswork, the Lead Poisoning Study and ResearchGroup (GEPICCB) shares an integrated, inter-disciplinary, and interinstitutional action pro-posal.

Intersectorial Actions; Child Welfare; Lead Poi-soning

Introdução

Rojas et al. 1 referem que, embora a exposiçãoao chumbo esteja em declínio nos países emdesenvolvimento, a contaminação crônica porexposição a baixos níveis continua sendo umproblema importante para a saúde infantil.

As crianças apresentam um elevado risco àexposição ao chumbo, sendo especialmente sus-cetíveis aos seus efeitos tóxicos 2,3,4. O Fundo daNações Unidas para a Infância (UNICEF) 5 rea-firma a vulnerabilidade infantil ao chumbo, de-vido aos maiores níveis de absorção desse metalpesado, quando comparados aos adultos. Os sis-temas nervoso e digestivo da criança são espe-cialmente suscetíveis a alterações e, adicional-mente, a criança tende a explorar o mundo coma boca, entrando em contato com o chumbopresente no solo, na poeira doméstica e no ar.

Os mecanismos pelos quais a exposição aochumbo ocasiona esses agravos à saúde foramalvo de um estudo de Moreira & Moreira 6, queconsideram que seus efeitos nocivos podemafetar praticamente todos os órgãos e sistemasdo organismo humano, com base em váriosmodelos cinéticos que tentam explicar a distri-buição do chumbo no organismo.

Tendo em vista que a importância globalsuscitada pela contaminação por chumbo im-plica compreender o problema sob os aspectosda desigualdade 1, vulnerabilidade 7, processode adoecimento e capacidade de resposta do

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Padula NAMR et al.164

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sistema social, este estudo visa a contribuir pa-ra a discussão da complexa questão que envol-ve a saúde e o ambiente.

Breve histórico

A Companhia de Tecnologia de SaneamentoAmbiental (CETESB) notificou a Secretaria deEstado da Saúde de São Paulo (SES-SP) e a Se-cretaria Municipal de Saúde de Bauru (SMS-Bauru), em janeiro de 2002, quanto à interdi-ção de uma indústria de acumuladores, emfunção da emissão de partículas de chumbopara o meio ambiente acima do permitido 8. Apartir da localização desta fábrica, instaladadesde 1958 em área periférica do município,dejetos contendo sal de óxido de chumbo esulfato de chumbo presentes na poeira e a de-posição de chumbo metálico no solo foram de-tectados 8,9.

O Grupo de Vigilância Epidemiológica (GVE/SES-SP) e o Grupo de Vigilância Sanitária (GVS/SES-SP) sediados na Direção Regional de Saú-de de Bauru (DIR-X/SES-SP), com suporte téc-nico da Divisão de Doenças Ocasionadas peloMeio Ambiente (DOMA/SES-SP), Centro de Vi-gilância Epidemiológica (CVE/SES-SP) e Cen-tro de Vigilância Sanitária (CVS/SES-SP), emconjunto com a SMS-Bauru, elaboraram umplano para verificar as fontes de exposição aochumbo, a exposição humana a esse metal pe-sado e as necessidades de intervenção em rela-ção à saúde humana e ao meio ambiente.

Para avaliar a exposição populacional aochumbo, optou-se por estudar as crianças, con-sideradas um grupo de maior risco 2,5.

Inicialmente, foram colhidas amostras san-güíneas para dosagem de chumbo em dois gru-pos de crianças de 2 a 7 anos de idade. O grupoexposto foi formado por 29 crianças, morado-ras na região há mais de quatro anos ou quenasceram no local, e o grupo-controle, por 31crianças residentes em distância superior a11km da empresa e com características sociaissemelhantes ao grupo exposto.

A análise laboratorial foi realizada no Insti-tuto Adolfo Lutz de São Paulo (IAL/SES-SP). Osníveis de plumbemia no grupo exposto tiveramvalor médio de 7,72µg/dl e eram mais elevadosque os do grupo-controle, cujos valores esta-vam abaixo do limite de detecção do método, de5µg/dl (p < 0,05). Estabeleceu-se como limite deintervenção o nível de plumbemia igual ou su-perior a 10µg/dl, segundo critérios do Centersfor Disease Control and Prevention (CDC) 2.

Esses resultados indicaram a necessidadede aprofundar a investigação, realizando umestudo transversal visando a avaliar as condi-

ções de todas as crianças de 0 a 12 anos resi-dentes em área próxima à empresa.

Mediante a necessidade da participação dosserviços públicos e seus gestores, com apoio deinstituições de ensino e pesquisa, foram envol-vidos profissionais da SES/SP, SMS-Bauru,CETESB, Ministério da Saúde (MS), FundaçãoJorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medi-cina do Trabalho (FUNDACENTRO), Centro deIntoxicações da Faculdade de Ciências Médi-cas da Universidade Estadual de Campinas(FCM-UNICAMP), Faculdade de Medicina deBotucatu da Universidade Estadual PaulistaJúlio Mesquita Filho (FMB-UNESP), Faculdadede Ciências (FC-UNESP/Bauru), Faculdade deOdontologia de Bauru da Universidade de SãoPaulo (FOB-USP) e Hospital de Reabilitação deAnomalias Craniofaciais (HRAC-USP). Seus re-presentantes compõem o Grupo de Estudo ePesquisa da Intoxicação por Chumbo em Crian-ças de Bauru (GEPICCB), que desencadeou me-didas de investigação clínico-epidemiológica etratamento das crianças.

Método

Pesquisa de campo

Foi definido um raio de 1.000m ao redor daempresa como área inicial de estudo, buscan-do identificar todas as crianças de 0 a 12 anos(Figura 1). Seus pais/responsáveis foram entre-vistados em visitas domiciliares, por técnicosda SMS-Bauru, investigando fatores de exposi-ção ao chumbo no local e outras possíveis fon-tes de exposição não relacionadas à área, sen-do a coleta de amostras de sangue para examede plumbemia realizada por profissionais doIAL/SES-SP.

As visitas foram realizadas com viatura cedi-da pela empresa. Todos os participantes foraminformados sobre a finalidade do levantamentoe seus responsáveis apresentaram consenti-mento por escrito. Inicialmente, observaram-serecusas, que foram decrescendo e sendo reverti-das ao longo da realização dos trabalhos.

Foram entrevistadas e tiveram material cole-tado para exame laboratorial 883 pessoas resi-dentes nessa área, totalizando 857 crianças, duasgestantes, 23 nutrizes e um adulto, sendo essesprocedimentos finalizados em janeiro de 2003.

Conduta clínica e vigilância epidemiológica

Os exames laboratoriais detectaram 314 crian-ças cujos índices de plumbemia indicavam ex-posição elevada a chumbo. Esses resultados

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INTOXICAÇÃO POR CHUMBO E SAÚDE INFANTIL 165

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Resultado da plumbemia das crianças

área de proteção ambiental

rios e córregos

quadras habitadas

quadras desabitadas

fonte de contaminação

raios de 200m

crianças: ≥ 10 e < 25µg/dl

crianças: ≥ 25µg/dl

crianças: < 10µg/dl

São Paulo

Figura 1

Localização das crianças entre 0 e 12 anos e seus níveis de pumblemia (n = 853). Bauru, São Paulo, Brasil, 2002/2003.

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nortearam ações de avaliação clínica, labora-torial e radiográfica das crianças.

Os procedimentos clínicos, em andamento,são realizados sob a coordenação da equipe deNeuropediatria da FMB-UNESP, por equipemultiprofissional composta de médicos (otor-rinolaringologistas, pediatras, hematologistas),dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, fisiote-rapeutas, assistentes sociais e auxiliares. A ava-liação inclui os seguintes exames complemen-tares: radiografias panorâmicas de face, de os-sos longos e carpal para determinação da ida-de óssea, eletrocardiograma (ECG), eletroence-falograma (EEG), audiometria, avaliação labo-ratorial das funções hepática e renal, hemogra-ma e ferro sérico para todas as crianças.

Para as crianças cujo resultado inicial deplumbemia foi igual ou superior a 25µg/dl, foirealizado o exame complementar de eletro-neuromiografia, mediante a suspeita de altera-ções neurológicas importantes. O atendimentoa estas situações, consideradas mais graves, foipriorizado, tendo estas crianças recebido o tra-tamento à base de quelação por EDTA, o querequereu internação hospitalar para observa-ção e acompanhamento em 23 casos.

Todas as crianças com taxas de plumbemiaacima do aceito pelo CDC 2 receberam avalia-ção neuropediátrica, com exceção de duas queforam a óbito por outras causas, cinco se mu-daram de Bauru e duas cujos responsáveis op-taram por assistência privada. Os achados clí-nicos resultantes destes exames são apresenta-dos em outra publicação.

A empresa colabora com o processo, provi-denciando transporte e alimentação para ascrianças e seus acompanhantes e fornecendoalguns materiais de consumo para exames.

Conduta em vigilância sanitária

O Departamento de Saúde Coletiva (SMS-Bau-ru), sob orientação técnica do GVS/SES-SP,coletou amostras de hortifrutigranjeiros, águae leite da região, com análise feita pelo IAL/SES-SP.

Em fevereiro de 2002, ovos, hortelã e leite innatura apresentaram concentrações de chum-bo acima dos valores aceitos pela OrganizaçãoMundial da Saúse (OMS), enquanto as amostrasde água estavam satisfatórias.

Em abril de 2002, coletas de almeirão, ovos,leite in natura e mandioca apresentaram níveisde chumbo acima do tolerado, em algumas lo-calidades, enquanto amostras de cebolinha,hortelã, alface, salsa, ovos e mandioca de ou-tras chácaras estavam satisfatórias. É impor-tante ressaltar o cuidado com esses exames,

uma vez que essas amostras satisfatórias foramencontradas em chácara que abastece o mer-cado local.

Seguindo recomendação do CVS/SES-SP, quelevou em consideração análises de todos os re-sultados de alimentos, água e solo, recomendou-se restrição ao consumo de alimentos da área.Na Figura 2, o mapa temático mostra a contami-nação do solo (até 2cm de profundidade) combase nos dados fornecidos pela CETESB.

O monitoramento dos alimentos prosse-guiu, com os resultados de setembro de 2002mostrando que os ovos e o leite in natura ca-prino, embora satisfatórios, estavam próximosao limite, e o leite in natura bovino apresenta-va-se insatisfatório.

Utilizando ferramentas de geoprocessamen-to, os dados epidemiológicos, ambientais e geo-lógicos puderam ser localizados espacialmen-te. A técnica de georreferenciamento possibili-tou a visualização de casos no território defini-do para o estudo e a partir da inserção destas in-formações foram gerados os mapas temáticos.

Resultados

Foram detectadas 314 crianças com níveis deplumbemia igual ou superior a 10µg/dl. A Fi-gura 1 utiliza ferramentas de geoprocessamen-to para localizar espacialmente estas crianças,categorizando as crianças intoxicadas em doisgrupos: um grupo com taxas até 24µg/dl e o se-gundo com taxas acima de 25µg/dl. Criançascom taxas inferiores a 10µg/dl são visualizadasem maior número em áreas que apresentamasfaltamento das ruas.

Na Figura 3, observa-se o uso de um mapatemático no planejamento de ações emergen-ciais. A partir da localização de casos, segundoa gravidade expressa pelos níveis de plumbe-mia, foi estabelecido um roteiro de trabalhocontemplando prioritariamente as ruas e do-micílios que continham crianças intoxicadaspor chumbo. O trabalho de raspagem do solosuperficial obedeceu à seqüência: (a) ruas onderesidiam crianças com índices acima de 25µg/dlde chumbo no sangue, (b) áreas com criançascom índices entre 10 e 25µg/dl e (c) áreas comcrianças cujos níveis estavam abaixo de 10µg/dl.O fator distância da fonte emissora também foiconsiderado nas ações de campo.

O trabalho de campo foi coordenado pelaSMS-Bauru, sendo executado por trabalhadoresda empresa e monitorado pela CETESB, que au-torizou a deposição de terra resultante das ras-pagens de solo superficial em um galpão cimen-tado e coberto nas dependências da empresa.

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Algumas ações de saneamento foram con-duzidas pela SMS-Bauru, Secretaria Municipalde Obras (SMO), Secretaria Municipal de MeioAmbiente (SEMMA), Secretaria Municipal dasAdministrações Regionais (SEAR) e Departa-mento de Água e Esgoto (DAE).

Em reunião com os moradores da área, aSMS-Bauru promoveu orientações para o sa-neamento das habitações, uma vez que as me-didas de saneamento do meio ambiente nasáreas contaminadas, em especial, locais peri eintradomiciliares, ficaram a cargo do poder pú-blico municipal.

Os trabalhos de campo foram realizados denovembro de 2002 a janeiro de 2003, com 28recusas para aspiração do interior dos domicí-lios e raspagem de quintais (Tabela 1).

Discussão

Em nível nacional, outros eventos adversos en-volvendo a contaminação ambiental por chum-bo têm sido relatados, como os ocorridos noVale do Ribeira, Luanda (Paraná), Jacareí (SãoPaulo) e Santo Amaro da Purificação (Bahia).Existe alguma dificuldade em realizar uma es-timativa de exposição ao chumbo no Brasil,considerando a existência de atividades infor-mais e de passivos ambientais. A populaçãocom exposição não ocupacional tem sido iden-tificada em raios de 500m da fonte, quando setrata de pequenas fundições, e 1.000m da fon-te, para as fundições de médio e grande porte.Os grupos de maior risco são constituídos porcrianças residentes no entorno de emissões de

Contaminação em solo de 0 a 2cm

pontos de coleta

escala

2.600mg/kg

2.400mg/kg

2.200mg/kg

2.000mg/kg

1.800mg/kg

1.600mg/kg

1.400mg/kg

1.200mg/kg

1.000mg/kg

800mg/kg

600mg/kg

400mg/kg

200mg/kg

0mg/kg

sem valor

Figura 2

Níveis de chumbo detectado no solo do Bairro Jardim Tangarás. Bauru, São Paulo, Brasil, 2002/2003.

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chumbo e gestantes, considerando a sua sus-cetibilidade intrínseca (Trivelato GC, AsmusCIRF, Freitas C, Alonzo H, Simonetti MH, Pao-liello MMB, et al. Termo de referência do Gru-po de Trabalho Chumbo. Oficina para estrutu-ração das ações de vigilância ambiental emsaúde relacionada às substâncias químicas:amianto, benzeno, mercúrio, agrotóxicos echumbo. Proposta de modelo de atuação, pro-movida pela Coordenação Geral de VigilânciaAmbiental/Ministério da Saúde; 2004).

Globalmente, registram-se ocorrências noMéxico 10,11, Suécia 12, Estados Unidos 13, Uru-guai 14, Portugal 15, Índia 16 e Venezuela 1, comparticular destaque sobre as repercussões dosteores elevados de chumbo na saúde infantil.

A mitigação de problemas ambientais temsido o foco de alguns relatos na literatura inter-nacional. Destacam-se os casos polares de Se-veso, Itália e Bhopal, Índia. De Marchi 17 (p. 41),ao comentar o acidente de Seveso, em que hou-ve liberação de uma nuvem tóxica contendodioxina proveniente de uma indústria química,refere que “ninguém na cidade sabia que estavaem situação de risco, não havendo consciênciado problema, tanto por parte da população lo-cal, como também por parte das autoridadespúblicas, incluindo a sanitária”. “Se em muitosaspectos os acidentes podem ter conseqüênciassemelhantes (...), as diferenças maiores se en-contram na resposta da sociedade a esse tipo deacidente. Essas diferenças revelam a vulnerabi-

Trabalhos realizados

área de proteção ambiental

rios e córregos

quadras habitadas

quadras desabitadas

fonte de contaminação

raios de 200m

locais sem crianças contaminadas

locais raspados e aspirados

crianças: ≥ 10 e < 25µg/dl

crianças: ≥ 25µg/dl

Figura 3

Mapa utilizado no planejamento e acompanhamento das ações emergenciais realizadas no Bairro Jardim Tangarás.

Bauru, São Paulo, Brasil, 2002/2003.

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INTOXICAÇÃO POR CHUMBO E SAÚDE INFANTIL 169

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lidade das populações em termos da capacida-de de resposta no sistema social, que ou protegeas pessoas (...), como foi o caso de Seveso, ouabandona as mesmas a sua própria sorte, comofoi o caso de Bhopal” 17 (p. 45).

Neste aspecto, a relação entre saúde e am-biente vai sendo moldada pela intervenção dealguns setores do sistema social, visando a re-verter o processo de adoecimento das criançassob risco. Em nível local, a experiência envol-vendo o conjunto de ações intersetoriais rela-tadas teve espaço em um contexto social e am-biental amplamente desfavorável.

A escassez de fontes de referência que con-tivessem a indicação de protocolos clínicos,ambientais, administrativos e epidemiológicosfoi detectada nos momentos iniciais do enfren-tamento desta questão de saúde pública.

O tom alarmista adotado inicialmente por al-guns veículos de comunicação colocou a popu-lação diante de um problema desconhecido. Naconstrução da relação entre os setores, a impren-sa mostrou um papel de mediação, divulgandofatos, expondo inquietações e dando voz aos di-versos segmentos. Por um lado, pode-se perce-ber a atuação da imprensa mostrando os confli-tos, e por outro, constituindo um veículo parauma espécie midiática de controle social 18.

Focada pelo olhar da biopolítica, modalida-de de exercício do poder que garante a sobre-posição entre vida e política, e que “possibilitaque com um mesmo gesto sejam definidas aspopulações que pertencem ao espaço da vidanua e aquelas que fazem parte da vida ativa, is-to é, da condição humana que deve ser cuidada,estimulada, multiplicada” 19 (p. 454), a opçãorealizada coletivamente foi pela atenção às de-mandas desse grupo populacional exposto aum agravo socioambiental.

O espaço de negociação para esta reflexãoenvolveu articulações que demandaram amplaparticipação do nível central, representado porgestores estaduais e do nível local, representa-do por gestores e trabalhadores do município,com importantes articulações com o nível fe-deral. Os segmentos constituídos por técnicos,formadores e pesquisadores foram sendo agre-gados, na medida em que a ausência de proto-colos demandava decisões de caráter técnico-científico, para o qual a rede de serviços públi-cos não tinha respostas imediatas.

Iniciativas individuais ou de interesse es-sencialmente acadêmico foram desestimula-das desde o primeiro momento, a partir do fo-co na necessidade de decisões políticas visan-do à condução de ações que priorizassem odiagnóstico da situação e o atendimento dascrianças expostas/intoxicadas.

Algumas limitações para o enfrentamentoda vulnerabilidade da população exposta 7 têmsido observadas. A escassez de informações so-bre o que fazer no município induziu um pro-cesso de tentativas baseadas em critérios clíni-cos no que se refere à assistência às crianças, eno senso comum e árduo trabalho de campo,no que tange às ações ambientais, destacandoo importante papel do poder público e a cola-boração da empresa.

Ao realizar previsões e tomar decisões numcontexto de incertezas, de riscos tecnológicos,ambientais e estruturais, “Hottois propõe umaética de solidariedade (...), baseada (...) no diá-logo aberto, que implica o confronto pluralista einterdisciplinar; na ética reguladora; no prag-matismo; na não-exclusão do sentimento (...) doconjunto de elementos que cooperam na toma-da de decisão ética; na ética da ambivalência, nosentido de ser esta uma escolha, e não uma con-

Tabela 1

Atividades emergenciais efetuadas no Bairro Jardim Tangarás. Bauru, São Paulo, Brasil, 2002/2003.

Atividades Alvo Desfecho Realizado/supervisionado por

Cimentação de piso no Moradias com piso de terra 3 residências Secretaria Municipal de Obras de Bauruinterior das residências

Raspagem de 5cm de solo 80 ruas Empresa/Secretaria Municipal de Obras de Bauru/superficial em ruas de terra Secretaria Municipal de Saúde de Bauru/

Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Bauru

Raspagem de 5cm de solo 270 residências Empresa/Secretaria Municipal de Saúde de Bauru/superficial dos quintais Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Bauru

Aspirações de interiores Residências sem forros/ 164 residências Empresa/Secretaria Municipal de Meio de residências muito próximas à empresa Ambiente de Bauru

Limpeza e vedação Moradias sem vedação 177 visitas Departamento de Água e Esgoto/Empresade caixas d’água de caixas d’água e 82 limpezas

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clusão lógica, ou um resultado mecânico; na éti-ca evolutiva e da reversibilidade dos princípios;na ética da co-responsabilidade” 20 (p. 363).

Moreira & Moreira 6 (p. 178) sugerem que “apercepção da série de eventos entre a exposiçãoao chumbo e as alterações biológicas que levama efeitos adversos é fundamental para o desen-volvimento de métodos relevantes de monitora-mento biológico”, o que pode vir a constituiruma contribuição do follow-up proposto peloGEPICCB.

Considerações finais

Quanto à descontaminação definitiva da área,a CETESB está encaminhando à empresa umplano de ações resolutivas, para que a regiãopossa ser habitada sem intercorrências futuras,ressaltando que a empresa continua interdita-da por tempo indeterminado. O DAE realiza omapeamento da região, para monitoramento

de eventuais contaminações no lençol freáticoda área atingida.

Algumas dificuldades decorrem das condi-ções de existência da população focada nesterelato, amplificando sua vulnerabilidade. As-pectos importantes relativos ao acesso a bensessenciais, como alimentação adequada, mo-radia condizente, serviços de atenção básica àsaúde, alfabetização de pais/responsáveis, edu-cação infantil, saneamento básico, bem comoalguma modalidade de organização popular,extrapolam as possibilidades de intervençãoimediata sobre essa população de risco.

Nos espaços de negociação criados, novosdiálogos entre os diversos setores são necessá-rios, para além das ações emergenciais de su-porte e assistência à saúde. O compartilhamen-to de experiências constitui uma parte da cons-trução deste processo de trabalho, em que tec-nologias consideradas “leves” têm tanto pesoquanto aquelas consideradas “duras” (Merhy,1997, apud Capozollo et al. 21).

Colaboradores

N. A. M. R. Padula participou da discussão dos acha-dos. M. H. Abreu participou da coleta de dados e dis-cussão dos achados. L. C. Y. Miyazaki contribuiu nogeoprocessamento de dados e discussão dos acha-dos. N. E. Tomita contribuiu no planejamento do es-tudo, discussão e redação.

Resumo

Inquérito epidemiológico realizado pela Secretaria deEstado da Saúde de São Paulo e Secretaria Municipalde Saúde de Bauru visou à realização de exames deplumbemia em 853 crianças de 0 a 12 anos, em Bauru,São Paulo, Brasil (2002), a partir de indícios de chum-bo oriundo de resíduos industriais nas proximidadesde uma fábrica de baterias. Os níveis sangüíneos dechumbo no grupo controle foram inferiores aos apre-sentados pelo grupo exposto (p < 0,05). Mediante aexistência de 314 crianças com taxas de plumbemiasuperiores àquelas aceitáveis pelo Centers for DiseaseControl and Prevention (10µgPb/dl sangue), foi desen-cadeado um conjunto de ações com participação dosserviços públicos, universidades e voluntariado, parapromover o diagnóstico e a assistência à saúde da po-pulação atingida. Ações emergenciais, visando a redu-zir riscos de recontaminação, incluíram a raspagemde camada superficial das vias públicas, resultandoem 1.392m3 de terra contendo material tóxico, quepermanece depositada nas dependências da fábrica.Foi promovida a aspiração de poeira do interior dasresidências e a lavagem e vedamento das caixasd’água. O Grupo de Estudo e Pesquisa da Intoxicaçãopor Chumbo em Crianças de Bauru, por meio destetrabalho, faz o compartilhamento de uma experiênciaintersetorial, multidisciplinar e interinstitucional.

Ação Intersetorial; Bem-estar da Criança; Intoxicaçãopor Chumbo

Outros membros do Grupo de Estudo e Pesquisa da Intoxicação por Chumbo em Crianças de Bauru

K. F. Alvarenga, J. G. T. M. Angerami, P. A. P. Crenitte,P. Ferraz, C. U. Freitas, J. A. S. Freitas, J. R. P. Lauris, M.M. F. Lima, C. H. F. Martins, E. Miranda, T. M. Ribeiro,O. M. P. R. Rodrigues, M. H. Simonetti.

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Recebido em 09/Ago/2004Versão final reapresentada em 17/Fev/2005Aprovado em 24/Jun/2005