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Fazendo Gênero 9 Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010 1 INTIMIDADE E DESLOCAMENTOS Rosana Tagliari Bortolin 1 Este texto aborda parte da pesquisa poética “Sagrado Profano”, onde, enquanto artista, utilizo imagens do meu corpo e imagens análogas à vagina nos trabalhos de artes plásticas desenvolvidos nos últimos anos, apresentados ao público em forma de exposições e intervenções urbanas. Este trabalho propõe também mostrar as vivências que tive enquanto artista em intervenções artísticas, realizadas em decorrência da necessidade de testemunhar materialmente as sensações vividas, a partir dos deslocamentos físicos cometidos desde 2008, da cidade de Florianópolis à cidade de Bilbao, localizada no País Vasco, ao norte da Espanha. Deslocamentos efetuados para cumprir programas de estudos de doutorado em Escultura na Universidade do País Vasco, e demais eventos em áreas afins. A espetacularização da intimidade é fato freqüente no universo das mulheres na (Pós) Modernidade. Este fato também se estende à arte e pode ser observado nas criações de inúmeras mulheres artistas que desenvolvem suas poéticas a partir das narrativas de si, de suas autobiografias, de seus diários e suas memórias, a exemplo de reconhecidos nomes como Louise Bourgeois, Ana Mendieta e Frida Kahlo. Tornar público as formas de arquivamento do eu, o dar-se a ver a partir da construção da própria imagem, o ler-se a partir do próprio trabalho de arte em outras épocas era algo impensável. Sequer o fazer artístico era permitido, estimulado ou reconhecido como atividade profissional, portanto inconcebível enquanto manifestação de inquietação do eu. Assim sendo, vale recordar que a presença de mulheres artistas na história da arte só teve visibilidade a partir dos movimentos feministas. A insatisfação e a inquietude, primeiramente individual e organizadamente coletiva das mulheres, fomentaram a ascensão desses movimentos. Deste modo, nas décadas de 70 e 80 várias pesquisadoras se interessam pela arte realizada por artistas mulheres, que até então se encontravam esquecidas ou até mesmo ignoradas. As historiadoras e críticas Nochlin, Harris e Mulvey repulsavam o conceito de uma “arte feminina”, alegando que a arte de uma mulher branca de classe alta seria completamente diversa da arte de uma mulher negra e pobre. Afirmavam que essa produção artística deveria ser analisada dentro de um contexto geográfico, social, político, histórico e cultural, no qual a artista estava inserida para que só assim fosse realizada a análise de suas obras. 1 Professora do CEART/UDESC e Doutoranda em Escultura/EBBA/ Universidad del Pais Vasco/EHU. <[email protected]>.

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Fazendo Gênero 9

Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010

1

INTIMIDADE E DESLOCAMENTOS

Rosana Tagliari Bortolin 1

Este texto aborda parte da pesquisa poética “Sagrado Profano”, onde, enquanto artista,

utilizo imagens do meu corpo e imagens análogas à vagina nos trabalhos de artes plásticas

desenvolvidos nos últimos anos, apresentados ao público em forma de exposições e intervenções

urbanas. Este trabalho propõe também mostrar as vivências que tive enquanto artista em

intervenções artísticas, realizadas em decorrência da necessidade de testemunhar materialmente as

sensações vividas, a partir dos deslocamentos físicos cometidos desde 2008, da cidade de

Florianópolis à cidade de Bilbao, localizada no País Vasco, ao norte da Espanha. Deslocamentos

efetuados para cumprir programas de estudos de doutorado em Escultura na Universidade do País

Vasco, e demais eventos em áreas afins.

A espetacularização da intimidade é fato freqüente no universo das mulheres na (Pós)

Modernidade. Este fato também se estende à arte e pode ser observado nas criações de inúmeras

mulheres artistas que desenvolvem suas poéticas a partir das narrativas de si, de suas autobiografias,

de seus diários e suas memórias, a exemplo de reconhecidos nomes como Louise Bourgeois, Ana

Mendieta e Frida Kahlo. Tornar público as formas de arquivamento do eu, o dar-se a ver a partir da

construção da própria imagem, o ler-se a partir do próprio trabalho de arte em outras épocas era

algo impensável. Sequer o fazer artístico era permitido, estimulado ou reconhecido como atividade

profissional, portanto inconcebível enquanto manifestação de inquietação do eu.

Assim sendo, vale recordar que a presença de mulheres artistas na história da arte só teve

visibilidade a partir dos movimentos feministas. A insatisfação e a inquietude, primeiramente

individual e organizadamente coletiva das mulheres, fomentaram a ascensão desses movimentos.

Deste modo, nas décadas de 70 e 80 várias pesquisadoras se interessam pela arte realizada por

artistas mulheres, que até então se encontravam esquecidas ou até mesmo ignoradas. As

historiadoras e críticas Nochlin, Harris e Mulvey repulsavam o conceito de uma “arte feminina”,

alegando que a arte de uma mulher branca de classe alta seria completamente diversa da arte de

uma mulher negra e pobre. Afirmavam que essa produção artística deveria ser analisada dentro de

um contexto geográfico, social, político, histórico e cultural, no qual a artista estava inserida para

que só assim fosse realizada a análise de suas obras.

1 Professora do CEART/UDESC e Doutoranda em Escultura/EBBA/ Universidad del Pais Vasco/EHU. <[email protected]>.

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Porém, para as teóricas supracitadas, existe uma arte feita por mulheres do mesmo modo que

uma feita por homens. No entanto, a tradição linear histórica generaliza, globaliza e exclui as

minorias, bem como os grupos e os movimentos que não se enquadram e não respondem ao

pensamento da sociedade patriarcal dominante. Por outro lado, as historiadoras Eli Bartra e Lucy

Lippard argumentam que os critérios globalizantes de exclusão não serviam para valorizar as

qualidades da obra de arte de uma mulher, assim sendo defendem que existe uma “arte feminina”,

uma vez que a mulher, pela sua situação e experiência dentro da sociedade, projeta uma visão de

mundo diferente. Contudo, importantes e freqüentes discussões fomentaram estas temáticas nos

anos oitenta, e não chegaram, naquela época, a um consenso.

Assim mesmo, pesquisadoras e teóricas desenvolveram estudos e passaram a resgatar nomes

de mulheres artistas anteriormente ignorados ou registrados sob nenhuma importância, em meio a

uma história da arte escrita por homens com padrões e critérios pré-estabelecidos. Critérios estes

pertencentes a um universo masculino, europeu, patriarcal, de classe média, dominante e branca,

que ditavam uma normativa universal, atemporal e que não levava em consideração nenhuma

diferença, fosse ela sexo, raça ou qualquer outra. Portanto, a partir do resgate feito desde o início

dos anos 70 de nomes que estavam esquecidos, é publicado em 1976, por Nochlin e Harris, o livro

Women artists: 1500-1950, e ao escreverem observaram que, para valorizar estas obras,

necessitariam modificar os critérios de análise e deveriam valorizar as diferenças.

Mas de qualquer forma, a partir das questões anteriormente apontadas, se torna viável

compreender a razão pela qual durante longo período ocorreu a inaceitável e quase total ausência de

nomes de mulheres nos registros da história da arte. Hoje, várias teóricas feministas se utilizam das

teorias dos estudos culturais para fundamentarem suas pesquisas, porém aqui não serão abordadas

estas questões. No entanto, esse rápido comentário sobre como eram tratados os assuntos sobre a

arte feminina dentro da história da arte pretendem servir somente como um localizador do referido

tema. Assim sendo, vivendo numa época um pouco mais privilegiada, usufruo das conquistas

proporcionadas pelos movimentos feministas, porém ainda com certa cautela, tento abordar neste

foro a minha produção artística atual como uma maneira de catarse da inquietação do eu, como uma

forma de relatar através da arte os questionamentos que trago no decorrer da minha história de vida.

O lugar de onde estou tecendo estas palavras é o lugar da artista, mulher, estudante de pós-

graduação em um país europeu de intensa tradição católica, professora universitária que vive hoje

numa capital. Mãe de dois filhos conseqüentes de relacionamentos diferentes, e também dona de

casa que estudou em colégio das irmãs da Congregação de Notre Dame durante 12 anos, numa

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típica cidade de interior de colonização italiana, movida pela agricultura, com mentalidade

provinciana, situada ao sul do Brasil. Assim, por conseguinte, porta em si as arraigadas seqüelas

decorrentes de ter sido criada em uma família italiana, branca, numerosa, rural, gaúcha, machista,

patriarcal e de tradição católica apostólica romana.

Portanto, apresento intervenções realizadas em locais públicos e privados, as quais em

outras épocas seriam proibitivas. Elas foram concebidas com o intuito de que o espectador, por

meio de suas percepções, vivenciasse os estranhamentos provocados pela inclusão de pequenas

peças cerâmicas colocadas em discretas fendas existentes nos mobiliários urbanos, na arquitetura,

nos meios de transporte, na paisagem, e em caminhos e locais pelos quais eu tenha percorrido. As

peças são seriadas e modificadas individualmente para que tenham uma melhor adaptação ao

espaço a ser habitado. As mesmas foram confeccionadas a partir de reproduções feitas em

diferentes cores de argilas - preta, vermelha e branca - com moldes em alginato e gesso (fotos 1, 2,

3 e 4) realizados em alternadas datas, de parte erógena do próprio corpo – a vagina. As matrizes

desse trabalho foram desenvolvidas em 2009, durante a disciplina Escultura - Escultura y lugar:

proyectacion de lo escultorico en el lugar - freqüentadas durante o Programa de Doutorado em

Escultura, na Faculdade de Belas Artes no Campus de Leioa no País Vasco.

Fotos 1, 2, 3 e 4: Rosana Bortolin (2009). Fonte das imagens: própria.

Através deste trabalho de intervenções, que denomino “Passagens-Vaginas (Nômades e

Anônimas)”, tento sublimar as minhas inquietações, as minhas angústias e os meus silenciosos e

imagéticos protestos da posição do ser e viver enquanto mulher neste contexto, através da busca do

olhar poético, que é esse olhar para a natureza, para o mundo, esse olhar que desvela o invisível do

visível do qual fala o teórico Merleau-Ponty (2000). Esse olhar que mostra o meu modo de habitar o

mundo, esse olhar para a terra, para a matéria, para o tato que é o barro.

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A fenda é abordada como poética, com um olhar que, para mim, vai além dos olhos, é um

olhar tateante, percebido pelo meu corpo consciente que desvela brechas na natureza e nos objetos

ao meu entorno. Esse olhar que relaciona as formas encontradas nas construções feitas por seres

humanos, como aquelas encontradas na natureza – como a vagina – fenda que possibilita a entrada e

a saída da vida. O olhar que percebe a brecha como um local de inclusão do oposto, da diferença,

local que possibilita o desvelar da intimidade, assim como possibilita vivenciar a dualidade da

relação íntima de troca entre os seres, local de passagem, como lugar de deslocamento da

intimidade, seja ele no concreto ou no imaginário. O olhar poético do qual fala o filósofo Gaston

Bachelard (1998).

Na busca desse olhar poético percebo o Espaço como Poética, e faço as reflexões e análises

de meu processo de criação, baseada em registros fotográficos realizados a partir das vivências das

descobertas gradativas das imagens de fendas e brechas no meu cotidiano inquietante de viajante,

no meu entorno enquanto espaço público. Este olhar que está em busca de um espaço que

possibilite a mesma sensação de conforto que é percebida na intimidade, e, nesta ausência, sente a

necessidade de interferi-lo com uma forma conhecida, alusiva à intimidade – a vagina. No processo

do fazer cerâmico realizo reflexões sobre o espaço que as peças ocupam, incluindo o meu corpo de

modo abjeto, como meio passível de criação, e a minha relação corporal com o mundo que me

cerca, o espaço que meu corpo habita.

O desejo de reproduzir em cerâmica uma parte erógena do meu corpo surgiu da análise das

vivências, da descoberta de formas semelhantes em elementos encontrados na natureza, na cidade e

no entorno. Assim, apresento o meu fazer cerâmico através da Poética da Repetição, onde também

relaciono o resultado deste fazer com as formas que se assemelham à vagina, encontradas nos

vegetais, nos minerais e também nos animais, sendo que me prende o olhar a paridade que há entre

o micro e o macro cosmo. Faço uma relação análoga da poética da repetição, presente no meu fazer,

com o ciclo da vida, das plantas, da reprodução dos animais e da renovação da natureza. Reflito,

durante o meu fazer, sobre a manufatura, a composição e a complexidade da massa argilosa.

Relaciono a massa argilosa como a extensão do meu corpo que é feito do mesmo estofo que o

estofo do mundo, como versa Merleau-Ponty (2000).

Analiso a efetivação da massa argilosa em material cerâmico realizando uma reflexão sobre

a questão poética desta transformação que se dá pela ação da queima, inerente ao fazer cerâmico, o

qual acompanha as reflexões sobre as minhas vivências. Meu olhar para a cidade, para a natureza,

para o mundo é esse olhar tateante, o olhar para o invisível do visível do qual fala Merleau-Ponty

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(2000), em seu livro ”O visível e o invisível”. A observação do meu entorno, seja ele cidade ou

natureza, resulta numa fonte de possibilidades de vivências e, posteriormente, na análise de formas.

Observei várias fendas, brechas, orifícios e formas semelhantes (fotos 5, 6, 7, 8 e 9) que

funcionaram como um diálogo entre meu corpo atual e a imagem poética. Minha forma de habitar o

mundo é esta vivência com o entorno, mesmo em trânsito, ora na cidade ora na natureza, ora num

avião, num trem, num carro ou num ônibus sob diversas vias.

Fotos 5, 6, 7, 8 e 9: Rosana Bortolin (2009) Fonte das imagens: própria.

Minha vivência enquanto ser viajante que transpõe para o imaginário as relações corporais

tecidas com os ambientes por onde meu corpo transita, e torna-as ainda mais evidentes quando meu

corpo presente e atual entra em contato com esses espaços e vivencia fisicamente a relação tátil

ocorrida ao tocar as fendas descobertas, e as relaciona com as fendas do próprio corpo, com a boca

ou com a vagina. A busca do meu olhar poético está direcionada para o entorno, para as formas de

fendas encontradas na cidade ou na natureza, para a matéria da qual são compostas estas fendas,

naturais ou construídas; para detalhes presentes nas imagens observadas. A minha postura de artista

exercendo um olhar tateante, com meu corpo atual e presente, me faz perceber inúmeras

possibilidades de criação diante da vivência poética desencadeada pela descoberta das distintas

formas de fendas e orifícios ao meu entorno. Meu corpo presente e operante sente a necessidade de

plasmar as formas percebidas através da arte. Percebe as possibilidades de criação encontradas na

confecção de um molde de uma fenda do próprio corpo, e de sua reprodução seriada. Percebe a

fenda mais íntima, mais camuflada, a vagina, e a elege para “habitar”, através da sua reprodução

seriada em material cerâmico, as fendas encontradas nos espaços públicos e privados por onde o

corpo percorre.

Meu interesse está voltado para o lugar, esses espaços os quais também chamo de fendas,

onde é necessário que o espectador permita penetrar seu olhar, e assim exercitar a possibilidade da

vivência estética. No universo da cerâmica o fazer é um ato necessário para que a obra se realize,

sendo ele parte integrante do jogo de criar formas. Penso que as formas que crio têm sua relação

com o espaço, através do jogo da ocupação deste espaço. A proposta por mim indicada, referente à

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forma expositiva destes trabalhos, faz parte de um jogo criado entre o espectador, o espaço que a

obra se apropria e a própria obra. Observo assim que a minha poética se dá pela forma com que me

comunico com o mundo, através daquilo que minha vida tem de articulado, pelo modo com que

meu corpo atual, que percebe e sente, se relaciona com as coisas, com a natureza, com a cidade,

com o entorno. Esse é o corpo consciente do qual fala Merleau-Ponty (1989) e é desse modo que

meu corpo consciente, em contato com a natureza, com a cidade e com o entorno, elaborou os

trabalhos aqui registrados, que partiram da observação das fendas e das possibilidades de

intervenções ali percebidas. Minha vivência estética me fez admirar as linhas, a formação das

texturas, as cores com suas variantes de tonalidades, as formas, os ângulos, as curvaturas, e os

diferentes materiais dos quais estas fendas encontradas nos espaços estão compostas.

Fotos 10, 11 e 12, 13 e 14: Rosana Bortolin (2009) Fonte das imagens: própria.

As primeiras intervenções foram realizadas durante o deslocamento físico realizado no

percurso de Bilbao à Bandol, e as paradas intermediárias deste trajeto entre Espanha e França, em

abril de 2009, para freqüentar o Festival Le Printemps des Potiers realizado em Bandol, França.

Intervenções realizadas com o olhar percebido pelo olhar do viajante, o olhar atento que percebe as

sutilezas presentes na paisagem urbana, o olhar que percebe fendas nos muros, nas plantas, nos

mobiliários, e intencionalmente provoca a inclusão de um objeto estranho àquele contexto que

representa o corpo de maneira abjeta e lá o abandona. As intervenções foram feitas nos meios de

transporte (fotos 10, 11, 12, 13 e 14) a partir da estação Abando de Bilbao, passando por Barcelona,

Marseille, Montpellier e Bandol, em seu percurso de ida e volta. Como também em zonas turísticas

(fotos 17,18, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 37) destas cidades, em Centros Culturais,

museus (fotos 15 e 16), praças, parques, monumentos (fotos 22, 23, 34, 35, 38 e 39), praias (fotos

19, 20 e 21).

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Fotos 15 a 29: Rosana Bortolin (2009) Fonte das imagens: própria.

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Fotos 30 e 39: Rosana Bortolin (2009) Fonte das imagens: própria.

Ao fazer estas intervenções, reforço a relação fenomenológica com o mundo que habito

entendendo que um trabalho de arte pode ser realizado em qualquer espaço físico, e o fator

determinante para que isso aconteça é a experiência do artista com o lugar.

As reflexões que desencadeiam o processo do fazer, e as experiências estéticas que se dão

quando o trabalho se instaura, provocam a inclusão de conteúdos inesperados. Desta forma, quando

realizei as intervenções, como, por exemplo, no Festival de Cerâmica de Bandol, estava pensando

nas questões do deslocar da intimidade, no que se refere à imagem da vagina enquanto arquétipo de

reprodução, para um espaço profano, assim esta intimidade é quebrada pela inclusão da

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coletividade. Deste modo, ao instalarem-se as obras, surgiram novas significações exploradas pelos

fruidores, e assim passei a incorporar a participação dos espectadores no trabalho, os quais

trocavam as vaginas de lugares, entrando no jogo de interação entre espectador e obra. Vale

ressaltar que nenhuma das peças possui autoria, são discretamente instaladas, fotografadas e

abandonadas.

Toda reflexão teórica aqui realizada aponta para uma unidade na minha produção artística

que busca estar inserida no contexto de nosso tempo, como parte da vida e não à parte dela. Assim,

toda a reflexão narra o esforço de um processo criativo que quer dar uma coesão e faz uma fusão da

arte com a vida. Acredito que todo esse processo reflexivo me fez compreender o quanto é vivencial

meu processo artístico e o quanto essas vivências se fazem necessárias para que meu corpo suporte

sua efemeridade neste mundo que habito.

Percebo que, ao cumprir os deslocamentos físicos já descritos anteriormente, e ao praticar as

minhas ações, não só as artísticas, mas as ações de um sujeito constituído de análises e reflexões

sobre o funcionamento dos sistemas, inclusive os da arte. Deslocamentos estes que possibilitam um

grau de distanciamento, e um olhar sensibilizado para as questões políticas, e percebe que suas

ações e suas práticas, as quais entende como transgressoras, sendo incorporadas pelo sistema como

forma de domínio e domesticação do sujeito enquanto artista. O qual muitas vezes não percebe que

pode já não estar mais no lugar do sujeito transgressor, ou também como o próprio sistema

dominante, desenvolve assim como o corpo físico em situação de conflito, seus próprios antídotos.

Contudo, enquanto sujeito que vivencia crises de identidade, que se obriga a sair da área de

conforto, e na busca exaustiva do plasmar das suas inquietações, percebe que sua identidade

encontra-se numa incessante transformação, que a torna híbrida e em permanente adaptação às

novas realidades físicas e culturais, trazendo consigo as vivências ocorridas nos espaços e lugares

por onde o corpo transita. E mesmo assim, após todas as conquistas dos movimentos feministas,

continua sofrendo em seus trânsitos, desafrontas das viciadas práticas exercidas por um sistema

patriarcal que ainda perdura e dita as regras, porém hoje comandado por mulheres com

mentalidades masculinas e patriarcais.

Bibliografia

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BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 3a Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos Escolhidos. Florianópolis: Victor Civita, 1989.

PRÍNCIPE, Larrea Iratxe. El Significado de la creación de Tejidos em la Obra de Mujeres Artistas. Série Tesis Doctorales. Editorial Universidad del País Vasco: 2009.