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Intervir na escola, com as pessoas da escola refletir com diários de bordo Pascal Paulus 2012

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Intervir na escola,

com as pessoas da escola

refletir com diários de bordo

Pascal Paulus

2012

Este livro faz parte de uma coleção,

produzidos pela equipa de educação

do programa K’CIDADE – Fundação Aga Khan Portugal,

no âmbito da sua ação no programa

de apoio às escolas.

Organicamente interligados,

cada livro forma uma unidade

possibilitando leituras independentes.

A coleção:

A numeracia na educação infantil

Desocultar a diversidade na escola e na formação

Intervir na escola com as pessoas da escola

Voluntários na alfabetização

Heterónimos do amigo crítico

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Intervir na escola com as pessoas da escola

Refletir com diários de bordo

(Pascal Paulus)

Índice

Processos de trabalho na formação em contexto ............................................................. 7

Diários de bordo e histórias anotadas ............................................................................. 10 A anatomia do diário ...................................................................................................... 10

A recolha da informação ou a descrição .............................................................. 11 Identificar ocorrências críticas: ............................................................................. 11 Documentar ........................................................................................................... 11

A anatomia do trabalho ................................................................................................. 14 Intervenção no mundo escolar ............................................................................. 14 Enriquecimento Curricular com o programa K'CIDADE ....................................... 15 Conhecer contextos de intervenção prioritária ................................................... 18 O processo transformador em curso .................................................................... 20

Da história anotada para a escrita da prática .................................................................. 22 A proto-escrita, com os diários de bordo ...................................................................... 22

Da formação reflexiva ............................................................................................ 23 Da reflexão formativa ............................................................................................ 35 Da reflexão e atitudes investigativas ..................................................................... 43

Entrar na história da profissão com os diários de bordo .............................................. 51 Pensar no que escreve, escrever o que pensa ..................................................... 51 A prática escrita e partilhada ................................................................................ 57

Gerir e escrever a prática entre aprendentes ................................................................ 69

Considerações Finais ......................................................................................................... 74

Referências bibliográficas ................................................................................................. 75

Índice de fichas

Ficha 1: anatomia do diário .............................................................................................. 13

Ficha 2: conhecer o contexto vindo de fora .................................................................... 17

Ficha 3: conhecer o contexto por dentro ........................................................................ 19

Ficha 4: o diário de bordo e a autoformação .................................................................. 34

Ficha 5: o diário de bordo e reflexão formativa .............................................................. 42

Ficha 6: o diário do bordo e o olhar investigativo ........................................................... 50

Ficha 7: a reflexão escrita e a autoformação em cooperação ........................................ 56

Ficha 8: alargar a partilha ................................................................................................. 68

Ficha 9: a partilha da monitorização do projeto curricular ............................................ 73

intervir na escola com as pessoas da escola

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Processos de trabalho na formação em contexto

O texto que aqui apresento decorre do trabalho da equipa de educação do

programa K’CIDADE, gerido pela Fundação Aga Khan Portugal (AKF-P).

Por isso, sempre que falo a partir de momentos de formação ou de interação

com professoras e professores, o discurso surge no plural.

Foco especificamente, no presente volume, o trabalho com professores com

turma, maioritariamente situados em contextos de monodocência e, para o que

se refere ao trabalho por disciplinas, no 1º ciclo. Queremos apresentar uma

faceta da utilização de diários de bordo para momentos de aprendizagem, que

são para nós também momentos de reflexão e de investigação sobre a ação.

Aprendemos com Zabalza (1994) e com os textos organizados por António

Nóvoa (1995, 2000), como o diário de bordo de um professor torne inteligível

a prática na sala de aula.

Insistimos em desenvolver a formação reflexiva e em cooperação. A este res-

peito lembro o trabalho do Movimento da Escola Moderna e recomendo o

livro de Sergio Niza (2012), não só porque nos oferece a necessária perspetiva

histórica da pedagogia socio-centrada e da aprendizagem, na realidade da esco-

la portuguesa, mas também porque muito do trabalho que propomos é realiza-

do no contexto da autoformação em cooperação como aquela que os grupos

de trabalho desta associação de professores desenvolvem.

Fazemo-lo, tanto em relação à forma da organização do trabalho na escola,

como ao teor da relação. Propomos uma ação pedagógica baseada na interação,

que insistimos, Aqui como em outros aspetos do nosso trabalho, recorremos

também às propostas de Wenger (1998).

Aqui, o objetivo não é de fazer investigação a partir dos diários dos outros.

Para se permitir um olhar sobre a realidade profissional de com quem traba-

lham, os formadores mantiveram o seu próprio diário de bordo, a partir de

conversas e de leituras das reflexões de quem estiver envolvido. Permitiu-lhes

uma discussão constante com os professores que integravam os grupos de

formação ou de reflexão.

Um aspeto essencial da nossa proposta às pessoas com quem trabalhamos,

consiste em convidar-lhes para que utilizem o seu próprio diário para desen-

volver uma postura reflexiva e investigativa acerca do seu trabalho, nomeada-

mente acerca da sua interação com as crianças e com os adultos no contexto

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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escolar.

Em todo o trabalho de aprendizagem encontramos a cada momento a lógica

normativa e prescritiva escolar, lógica que advém de uma premissa que o povo

tem que ser educado e disciplinado, confundindo socialização com domestica-

ção. Tornou-se moda entre formadores e mediadores de formação genuina-

mente preocupados com a participação dos formandos no seu processo de

formação, falar de modelos “bottom up” em vez de “top down”. A traição da

afirmação está no facto de que com este discurso não é desfeito a imagem de

uma hierarquia na qual o topo aceita sugestões da base, mas não deixa de man-

ter uma relação verticalizada de poder.

Propomos uma imagem de grupos de trabalho, de comunidades de prática ou

de aprendizagem, porque cultivamos o conceito de “aprendentes”. É-se apren-

dente independentemente da função que se desempenha num determinado

grupo (função essa que para qual foi nomeada externamente, como o adulto

nomeado professor dum grupo de crianças, ou função instituído internamente,

no grupo, quando é decidido coletivamente quem tomará nota das decisões do

grupo, por exemplo). É-se aprendente diferenciado, porque cada um dos ele-

mentos do grupo entra no grupo com o conhecimento, isto é, com o que se

apropriou do saber, de que dispõe, porque se tornou acessível, logo, comuni-

cável.

Para interagir entre todos a partir de um projeto de formação – como um

projeto curricular de turma o é – é preciso ir desenvolvendo um conhecimento

gradual do outro e do conhecimento do outro. O diário de bordo profissional

permite a aproximação do próprio a sua realidade de trabalho, na altura do

registo, e o distanciamento necessário entre aprendentes, na altura da devolu-

ção da reflexão aos outros, para que aprendizagem – ou seja, a saída da sua

zona de conforto – se torne possível, sem ser destrutiva.

Queremos também que fique claro que, no contexto de formação intelectual

no qual falamos, consideramos que um processo de aprendizagem passa sem-

pre pela escrita. Testemunhamos aqui como o diário de bordo despoletou

entre nós, e quem trabalhou connosco, a escrita.

As páginas que seguem foram redigidas para serem um modesto contributo

para quem se queira aventurar no trabalho com diários de bordo, sem preten-

sões outras, do que contar e sistematizar o que fizemos com a equipa de edu-

cação do K’CIDADE.

O texto está dividido em duas partes:

Na primeira parte “Diários de bordo e histórias anotadas”, proponho umas notas

intervir na escola com as pessoas da escola

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sobre a anatomia do diário, primeiro, e sobre a anatomia do trabalho desenvol-

vido, depois. Procuro assim explicitar de onde é que falamos, como começa-

mos a trabalhar, que regras de conduta nos pareciam importantes e como

vimos o ato de aprender em contexto. Pretendo ilustrar como chegamos à

elaboração de propostas de trabalho em comum e como, nisso, aplicamos um

instrumento de monitorização do trabalho.

Na segunda parte, “Da história anotada para a escrita da prática” abordo três evo-

luções na relação entre o diário de bordo e a produção da escrita. Num primei-

ro momento, mostro como o diário de bordo e a reflexão produzida a partir

dela ajudou comunidades de prática refletir e investigar para “consumo imedia-

to”. No trabalho em contexto baseado na reflexão partilhada, permitindo uma

investigação ação, significa aqui:

Formação significa estruturas de autoformação acompanhada eficazes;

Reflexão significa a aprendizagem que surge da reflexão partilhada entre

aprendentes, formadores e formandos;

Investigação significa tentar ver mais claro, em coletivo, a ação de cada

um.

Num segundo momento, abordo a evolução que houve em alguns grupos de

trabalho da escrita para consumo interna, para uma escrita mais alargada. Esta

escrita mais alargada permite a conetividade entre grupos, normalmente atra-

vés de partilha por via de meios eletrónicos, de que o livro eletrónico Trabalho

escolar com sentido (Correia & Paulus (org.), 2012) constitui um bom exemplo.

Num terceiro momento, abordo a polissemia do termo diário de bordo, para

ilustrar como, em contextos diversos, grupos de pessoas, crianças e adultos, ou

adultos entre aprendentes, utilizam variantes como instrumento de regulação

para o projeto curricular que elaboram ou se apropriam.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Diários de bordo e histórias anotadas

A anatomia do diário

Autores como Josso (2002) ou Zabalza (1994) lembram que escrever um diário

de bordo profissional é diferente de manter um diário pessoal. Trata-se de

anotar, de preferência diariamente, as ocorrências relacionadas com o trabalho

que se desenvolve. No domínio das ciências sociais ele poder ser comparado

com o livro de campo do investigador, o etnólogo por exemplo.

Torna-se muito útil quando há várias equipas de terreno a funcionar em simul-

tâneo, com um dispositivo de intervenção que se pretende idêntico ou trans-

versal às realidades. Procura-se fixar a ação na condução de processos que

implicam a relação entre indivíduos ou grupos de pessoas.

Simultaneamente, o diário serve de espelho para o próprio, quando regular-

mente relido, com o objetivo de fixar as ocorrências que considera críticas. A

análise contínua destas ocorrências críticas, apontadas pelo conjunto de pesso-

as intervenientes permite o acompanhamento formativo mas também a super-

visão, tanto da equipa, como do dispositivo. Fica clara que as pessoas envolvi-

das não são, de maneira nenhuma, avaliadas pelos resultados obtidos, mas que

são solicitados a participarem na desocultação de processos numa intervenção

comunitária concreta.

Fica também claro que não existe uma hierarquia investigativa, na qual a equipa

de educação se serve do que é produzido por outros, mas que existe um traba-

lho em conjunto em que o conhecimento de cada um e a interação, diferente

de pessoa para pessoa, com o saber, permite aprender para perceber melhor.

Quando iniciamos um trabalho com um grupo de professores – no contexto

de uma formação encomendada, ou ao abrigo de uma solicitação de colabora-

ção protocolada - propomos que todos os participantes, incluindo-nos a nós

próprios, manter, num caderno resistente e fácil de transportar (um formato

A5 ou tipo agenda é mais interessante do que um formato A4, em muitos

contextos, com folhas lisas ou pautadas, conforme a preferência de cada um),

o seu diário.

O diário de bordo, na forma simples, tem três “colunas”: a descrição, numa

única coluna na página esquerda, o registo das incidências críticas e a referência

à documentação correspondente na página direita oposta1, em duas colunas, na

1 Ultimamente tem havido mais pessoas a escolher manter as notas, ou, pelo menos, a anotação

e o comentário em relação às incidências críticas, sob forma eletrónica, o que facilita a junção

intervir na escola com as pessoas da escola

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página oposta.

A recolha da informação ou a descrição

Nas páginas esquerdas, ou pares, do diário, descreve-se o dia-a-dia de trabalho,

começando sempre por referir data, local e intervenientes. Basta descrever

resumidamente o trabalho do próprio, as atividades, os processos e aconteci-

mentos do dia-a-dia, bem como as emoções, as dificuldades, as recompensas,

os anseios sentidos durante a prática.

Escreve-se diariamente, entre 5 e 15 minutos. O mais importante é escrever no

próprio dia. Não há momento certo: pode ser enquanto se está a rever os

acontecimentos e a preparar o trabalho para o dia seguinte, por exemplo. Há,

também, quem tenha o caderno sempre consigo e vá anotando ao longo do

dia o que foi acontecendo.

Identificar ocorrências críticas:

Para permitir e facilitar o tratamento da informação, é necessário introduzir

uma segunda rotina: identificar as ocorrências críticas, para posterior interpre-

tação.

É necessário destacar, na descrição, os acontecimentos interessantes. Sinaliza-

se, ao lado da descrição, o que se considera uma ocorrência crítica à luz dos

parâmetros de avaliação. Neste passo, propõe-se que o autor organize os regis-

tos, categorize as observações, com vista a facilitar a interpretação.

Que ocorrências críticas? O autor evidencia qualquer facto significativo que

considera ter influenciado, positiva ou negativamente, uma ou várias das articu-

lações definidas nos parâmetros de avaliação e tendo em conta os objetivos do

projeto. Para ser crítica, a ocorrência deve dar-se numa situação tal que o fim

ou a intenção da ação tenha determinado significado para o observador e onde

as consequências da ação são bastante evidentes.

Estas anotações fazem-se, semanal- ou quinzenalmente, levando entre 15 a 30

minutos. Basta anotar. Existem situações de arranque em que são combinados

entre todos, a partir de sugestões de elementos do grupo, orientações para as

perguntas de análise.

Documentar

Uma vez fixadas as ocorrências, convém documentá-las: com fotografias,

para reflexão coletiva.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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vídeos, registos sonoros, citações e produções das crianças, atas, entre outros.

No início do ano letivo propõe-se colecionar em excesso. A medida que se vai

ganhando prática será mais fácil decidir que documentos são bons testemu-

nhos.

Sinaliza-se o documento testemunho, sempre que existir, ao lado da anotação

do incidente crítico. Convém numerar os documentos para encontrá-los facil-

mente.

intervir na escola com as pessoas da escola

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Ficha 1: anatomia do diário

O quê? Quando iniciamos um processo de trabalho em conjunto, definimos em conjunto o que iremos observar e discutir em relação à prática em sala de aula e à interação social escolarizada. Definimos o que nos interesse registar da realidade na qual nos movemos. Fazemos o plano das sessões de trabalho, em grupo, e o plano do trabalho individual, que passa pelo compromisso de manter um diário de bordo profissional simples: 1. páginas pares: descrição diária da prática 2: páginas ímpares: divide-se a página em duas colunas. Oposto à descrição diária, na 2ª coluna anota-se onde se encontra a documentação que acompanha a descri-ção: uma fotografia, um texto de uma criança, uma ata de uma reunião, etc. Na 1ª coluna anota-se, durante uma leitura com rotina quinzenal, ocorrências críticas a partir de focos de observação escolhidos em grupo.

Com quem? Cada uma das pessoas no grupo de trabalho mantém o seu diário profissional pes-soal, em base diário Quem media o processo mantém o seu próprio diário das sessões de trabalho em grupo e das visitas à escola e às salas de aula dos demais participantes, sempre que estas visitas se proporcionam.

Como? Cada participante dedica 5 à 15 minutos diárias para anotar o dia no seu diário. Quem media o processo anota os acontecimentos relacionados ao seu trabalho com o grupo em questão. De quinze em quinze dias dedica 30 minutos à leitura do pró-prio diário e à fixação de ocorrências críticas. As ocorrências críticas que cada um fixa por si, são transcritas ou fotocopiadas e entregues a quem media ou a pivôs escolhidos para o efeito. Quem media o proces-so devolve mensalmente uma leitura global das ocorrências registadas a todo o grupo. A seguir à devolução há uma sessão de trabalho em grupo.

Função da avaliação? O grupo discute em conjunto a devolução geral. Existe um espaço para discussão a partir de ocorrências que determinados membros do grupo queiram focar ou con-textualizar. Aprofunda-se a reflexão teórica a partir destas discussões. Quem medeia sugere ou recolha as sugestões de leitura, provoca ou recolha propostas de partilha e de observação mútua. Determina-se no fim da sessão se a(s) pergunta(s) orienta-dora(s) para a análise de ocorrências é mudada ou não.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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A anatomia do trabalho

O programa K’CIDADE, e nele, a equipa de educação em particular, tem

como um dos seus objetivos, participar com as pessoas das escolas, que assim

o desejam, como ouvinte e parceiro de discussão, no desenvolvimento do seu

projeto pedagógico, desde que este contempla ou passa a contemplar a partici-

pação efetiva de todos os aprendentes no seu processo de aprendizagem. Es-

colhemos, com uma pequena equipa, intervir no mundo escolar, procurando

reestabelecer as relações do mundo escola com o mundo não escola e privilegi-

ar, em todos os contextos, uma visão da educação colaborativa em vez de

concorrencial.

Intervenção no mundo escolar

Quando o programa K’CIDADE começou a desenvolver uma linha de traba-

lho territorial, procurando parcerias com todos os atores locais, um dos eixos

de trabalho tinha “educação” como tema. A vertente que incide sobre o traba-

lho com crianças e os jovens tem como finalidade garantir que as crianças (e

jovens) detêm os conhecimentos, competências, atitudes e valores que as aju-

dem a interagir eficazmente com o mundo, enquanto membros ativos da soci-

edade. Para perceber o texto que segue, lembramos dois dos objetivos:

Garantir o acesso e o sucesso das crianças mais marginalizadas das zonas

suburbanas da Grande Lisboa numa educação inclusiva de qualidade (ex:

imigrantes, minorias étnicas, raparigas, entre outros);

Fortalecer e apoiar os pais e os líderes das escolas com as competências e

saberes necessários para servirem como catalisadores de uma educação in-

clusiva de qualidade;

Os princípios que têm particular incidência na componente “educação” são:

Focalização na criança – manter o melhor interesse da criança/ aluno,

prestando particular atenção à qualidade, finalidade, relevância e pluralis-

mo;

Influenciar todos os níveis: família, comunidade, organizações locais,

parceiros, políticas nacionais;

Ênfase na investigação-ação e documentação – para fortalecer os progra-

mas, parcerias público-privadas, potenciar a advocacia e as mudanças nos

sistemas.

intervir na escola com as pessoas da escola

15

Desde 2007 e 2009 respetivamente, a equipa de educação tem recorrido a dois

programas, objetos de trabalho com os parceiros, estratégia de trabalho para a

equipa.

Enriquecimento Curricular com o programa K'CIDADE

O trabalho como promotor de atividades de enriquecimento curricular surgiu

em 2007, resultado de uma reflexão acerca da interação com as escolas. Perce-

beu-se que, para trabalhar profissionalmente, com os professores, as práticas

dos professores, em escolas em zonas de realojamento e com focos de pobre-

za, a abordagem comunitária só não resultava.

Viu-se na contratualização tripartida, entre agrupamentos de escolas, a Câmara

e a AKF-P, gestora do programa K’CIDADE, uma estratégia de trabalho pe-

dagógico, baseado na supervisão pedagógica direta de equipas de professores

para as atividades de enriquecimento curricular2, durante um período máximo

de 3 anos.

Idealmente, considerou-se que equipas de professores, supervisionadas, bem

preparadas e trabalhando a partir de propostas pedagógicas claras, poderiam,

como agentes de mudança, promover os objetivos gerais do programa. Foi

utópico pensar que era possível recrutar, com o vínculo laboral precário legal-

mente previsto, em número suficiente e professores com experiência à partida,

para esta difícil intervenção no plano da escola.

Significa que, logo no primeiro ano de supervisão, e a medida que professores

e mediadores, aqui na qualidade de supervisores pedagógicos, foram conhe-

cendo a realidade das escolas nas quais trabalhavam, a equipa de educação do

programa começou a pensar numa estratégia complementar3.

Entretanto decidiu-se investir no plano das próprias atividades peri-escolares,

e, portanto, na preparação técnica de professores, contratados para desenvol-

ver as AEC, nas escolas com as quais interagimos. Tínhamos a clara consciên-

cia que se tratava de um trabalho intensivo, necessário para este duplo papel de

investigador-ator na mudança. A proposta de trabalho devia se basear em

planos de ação elaborados por todos os interessados: em primeiro lugar as

crianças, nisso coadjuvadas pelos seus professores de AEC e de turma e, sem-

pre que possível, por pais e mães, envolvidos ativamente na organização dos

tempos e espaços não curriculares que foram ocupando, institucionalmente, os

tempos livres das crianças.

2 No resto do texto referido como AEC. 3 Ver o próximo ponto, página 13.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

16

O êxito do processo estava portanto dependente de uma perceção clara do

local de trabalho, das interações com as pessoas nesse mesmo local de trabalho

e da representação que os próprios tinham da relação pedagógica. Seria neces-

sário passar de uma situação de formando passivo para aprendente reflexivo

com atitudes investigativas.

intervir na escola com as pessoas da escola

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Ficha 2: conhecer o contexto vindo de fora

O quê? Desenvolver formação participativa para proporcionar atividades de enriquecimento curricu-lar organizadas a partir de um plano de ação colaborativo entre todos os atores envolvidos. Esta perspetiva de trabalho implica um bom conhecimento do contexto de trabalho, uma explicitação do seu próprio posicionamento pedagógico como professor e um olhar sobre as interações entre pessoas no contexto da escola. O objetivo consiste em que as pequenas equipas de professores de AEC desenvolvem as suas competências individuais e coletivas para criar espaços de aprendizagem e interação, com as crianças, na escola, nos tempos previstos para essas mesmas atividades.

Com quem? Com professores, monitores e educadores que correspondem aos requisitos legais para exercer a atividade de professor de AEC e formadores da equipa de educação.

Como? O contrato de trabalho com os professores inclui a obrigatoriedade de participar em sessões de formação contínua, organizadas pela instituição contratante. O contrato prevê horas de trabalho para esta formação, que é definida como sendo por parte presencial, por parte de trabalho individual. A parte presencial tem duas vertentes: uma assenta em curtas reuniões de equipa, nas escolas onde os professores contratados exercem funções, conforme um calendário de visitas organizadas por parte dos formadores da instituição. Outra assenta em encontros por norma trimestrais, de um até três dias, em regime de internato quando a sessão demora mais do que um dia. A parte individual envolve a manutenção de um diário de bordo profissional, como descrito na ficha 1, com entrega das anotações de ocorrência crítica à equipa de educação através dos coordenadores de equipa. Existe o compromisso por parte da equipa de formação da devolução de comentários, sugestões de trabalho e leituras, por equipa, por escrito via a plataforma moodle e presencialmente ao longo das visitas calendarizadas. Recorre-se, em grupo, à informação tornada visível pela análise dos diários de bordo, para definir a agenda dos encontros trimestrais.

Função da avaliação? A devolução e os comentários à entrega das ocorrências críticas retiradas pelos próprios dos seus diários de bordo provoca por si um processo avaliativo que explicita o contexto de trabalho e a interação com ele. Permite adaptar e corrigir formas de atuação individuais e coletivas. Os encontros trimestrais incluem um momento de avaliação baseado num diário do encontro, público, e discutido em conjunto, possibilitando traçar as linhas de ação de encontro em encontro.

Há exemplos da interação disponíveis na plataforma http://moodle.kcidade.com.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Conhecer contextos de intervenção prioritária

Em 2009, devido ao trabalho desenvolvido com escolas inseridas em agrupa-

mentos que o ministério de educação considerava possível candidato a fundos

específicos no âmbito do 2º programa para escolas em territórios de interven-

ção educativa prioritária (designado TEIP2), abriu-se uma oportunidade para

interagir mais de perto com escolas e equipas de professores. A aprendizagem

da equipa de educação em funções de amigo crítico e o melhor conhecimento

dos projetos educativos das respetivas escolas, abriu mais perspetivas de for-

mação em contexto, para o qual o trabalho entretanto desenvolvido e docu-

mentado, por uma equipa de professores coordenada pela Ana Maria Betten-

court, em Vialonga (Correia & Paulus, 2012) serviu de referência.

Procurou-se, nos 1º e 2º ciclos do ensino básico, desenvolver uma interação

com os professores interessados, centrado sobre a diferenciação pedagógica e

os instrumentos de regulação inerentes, utilizando novamente o diário de bor-

do e a reflexão escrita e sistemática como meio de trabalho para permitir um

processo de autoformação sustentada por momentos de discussão em grupo.

O trabalho continuado com professores de 1º ciclo e professores de língua,

ligados à oficina de língua portuguesa não materna e a repetição de oficinas de

formação baseadas na experiência referida, possibilitou, como já o tinha sido

antes, descrições refletidas de elementos transformadores na prática, analisado

e documentado pelo próprio.

intervir na escola com as pessoas da escola

19

Ficha 3: conhecer o contexto por dentro

O quê? Promover um cenário pedagógico no qual a participação ativa das crianças, sujeitos-ator do seu processo de aprendizagem, se torne possível. Implementar um sistema de monitorização do trabalho, no qual as crianças participam, melhorando a sua relação com o trabalho escolar e o sucesso nele. Para o efeito, o dispositivo de formação é ele próprio concebido para permitir a participação dos professores formandos no desenho da ação.

Com quem? Com professores titulares de turma do 1º ciclo, professores titulares de várias disci-plinas na mesma turma, no 2º ciclo, professores de português língua não materna e formadores da equipa de educação.

Como? O diário de bordo serve, quando se começa a trabalhar com o grupo de formação para que cada um dos participantes se possa formar uma ideia das crianças com as quais está a trabalhar. Convida-se nos primeiros dois ou três momentos presenciais a partilhar informação focando a relação pedagógica. Em função do conhecimento que cada um vai ganhando da sua turma, discute-se a introdução de instrumentos reguladoras do trabalho e a forma como são utilizados. O diário de bordo torna-se um instrumento de registo de situações de trabalho, dando origem a pequenos textos de reflexão, discutidos em conjunto durante as situações de trabalho presencial. Os encontros de formação convidam à partilha de instrumentos de trabalho e das próprias reflexões, disponibilizando espaços de interação. Este espaço de interação ganhou os contornos de uma plataforma de interação, através do moodle.

Função da avaliação? A avaliação consiste num processo desenvolvido coletivamente entre todos os parti-cipantes. Foca a pertinência da informação recolhida através dos diários de bordo em relação a introdução e monitorização desta mesma introdução dos instrumentos de regulação coletiva em sala de aula. Segue através da descrição feita, o percurso de crianças, dentro da sala de aula, ou do contexto formativo para o qual o forman-do é responsável como professor, para perceber em que medida as alterações ao cenário pedagógico e à natureza da relação pedagógica se refletem no processo de aprendizagem dos aprendentes.

Há exemplos da interação disponíveis na plataforma http://moodle.kcidade.com. Contacte [email protected].

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

20

O processo transformador em curso

O diário de bordo tornou-se muito importante para a equipa perceber como

intervir, nas sessões coletivas de formação, estrategicamente muito importan-

tes, mas também na interação com cada uma das equipas no seu contexto.

Foi claramente anunciado a todos os participantes que, com o diário de bordo,

se pretendia validar ou invalidar pressupostos formativos que favoreçam uma

maior integração escolar de crianças potencialmente em risco de exclusão pela

interação provocada.

Desenvolveu-se uma proposta de formação isomórfico e de transferência,

alterando rotinas de formação e olhando de outra forma para a diferença entre

formadores e formandos na interação com o saber.

Focou-se a ideia do formador ou do professor investigando a sua ação, razão

pela qual era necessário recolher informação face aos objetivos do projeto e as

dinâmicas de implementação que se pensava privilegiar na formação, baseada

ela também no que os diários de bordo iriam revelar.

Assim, sugeriu-se em ambos as situações que era importante, para futura análi-

se, registar:

as ações e interações com as crianças e entre e entre as crianças (em sala e

no recreio);

as ações e interações entre professores;

as ações e interações com e entre outros adultos do meio envolvente.

Neste momento, estamos em condições de afirmar que, com uma leitura e

análise acompanhada do seu próprio diário de bordo, discutindo em grupo

mediado – e nalguns casos, em grupo autossustentado – ocorrências críticas,

qualquer participante dos grupos com os quais interagimos:

percebe melhor o que acontece, no contexto escolar no qual trabalha,

quando lança o trabalho diferenciado, em contexto de sala, como propos-

tas pedagógicas;

melhora a sua competência na sua intervenção com crianças e outros

professores;

recolha informação útil para a monitorização da sua ação.

se apropria dum instrumento de autoformação, reconhecendo que facilita

o começo de um processo reflexivo sobre a profissão.

intervir na escola com as pessoas da escola

21

Em termos gerais, parece-nos que o diário de bordo, em contexto escolar,

permite a qualquer professor que queira e desde que seja acompanhado numa

fase inicial, encetar um processo de reflexão sobre a sua prática.

O que nos entusiasmou no trabalho foi de perceber que – sem diminuir o

valor dos diários de bordo para o investigador na área da formação de adultos

– o trabalho com o diário de bordo se mostrou muito eficaz para os próprios

fazerem uma introspeção, definindo o seu grau de participação no trabalho

coletivo.

Irei desenvolver, no próximo capítulo, alguns dos aspetos formativos, reflexi-

vos e investigativos que os diários de bordo permitam ao próprio, utilizando o

trabalho com os professores de AEC como pano de fundo. Ilustro a utilidade

do diário de bordo para o desenvolvimento dos processos de escrita e de parti-

lha baseada na escrita, como o vimos a partir do trabalho com os professores

titulares de turma. Num terceiro ponto aborto a prática de gestão partilhada,

recorrendo a duas vertentes do diário de bordo.

Só são referidos nomes de pessoas que aceitaram publicar textos a partir dos

seus diários de bordo, por eles próprios analisados.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

22

Da história anotada para a escrita da prática

A proto-escrita, com os diários de bordo

Para Dubar (1997) a escola pode ser considerada uma instituição de primeira

socialização, a par com a instituição. Aqui, o trabalho afigura-se complexo,

porque nele interferem múltiplas variáveis, entre elas, as crenças e convicções

dos próprios professores. Frequentemente, observámos fenómenos de aliena-

ção por parte de quem começou a trabalhar como professor de AEC, em dois

agrupamentos piloto.

Refletir com eles acerca da sua visão da educação, quando se assumem agen-

tes ou militantes desta mesma educação, no sentido por Marie Christine Josso

(2002) conferido a essas expressões, permite aprender como

“…podem ser marcantes igualmente na defesa do paradigma estabelecido, o que sig-nifica que também são valiosas como instrumentos educativos, para resistir a um mo-delo educativo, quando este, contrariando a essência transformadora da educação, sua capacidade de dar guarida à renovação representada pelos novos seres que in-gressam no mundo, se torna conservador, tradicionalista e resistente às mudanças e inovações.”

(Jonaedson Carino, 1999, p. 6)

Ou seja, refletir com as pessoas, a partir das suas próprias crenças, pode fazer

avançar, quando se ganhe consciência que resistir a um modelo educativo, que

se traiu a si próprio, não significa abdicar deste mesmo modelo educativo, mas

intervir nele para que ganha novamente a sua função transformadora inicial.

No nosso contexto, os diários ajudaram, na prática, a experimentação que

assenta na reconceptualização do ensino-aprendizagem. Aproveitamos do

contexto menos formal, para focar na avaliação como instrumento formativo

em vez de normativo, por uma razão muito simples: mesmo se os textos orien-

tadores do ensino público em Portugal apontam para estratégias de avaliação

formativa em todo o ensino básico4, facto é que continua a imperar uma práti-

ca ainda fortemente marcada pela psicometria, para Àlvarez Méndez, avaliação

artificial:

“O quociente de inteligência (QI) que os testes medem pode ser um exemplo deste ní-vel de artificialidade. O desenvolvimento da psicometria e, concretamente, dos testes,

4 Não obstante um retrocesso nos últimos tempos, contrariando as recomendações de institui-

ções internacionais, como a OCDE e a Eurydice, que realizam estudos aos quais Portugal par-

ticipa.

intervir na escola com as pessoas da escola

23

desempenhou funções importantes, amparadas por uma legitimação pseudocientífica de práticas educativas que não respondiam a uma conceção democrática da educa-ção” (2002: 35).

Introduzir uma prática em que o êxito do trabalho é medido através da discus-

são de processos e produtos coletivos, revela-se assim uma tarefa muito com-

plexa. Uma ideia era tentar perceber se e como atividades programadas em

conjunto, alargadas a participação da comunidade e da família das crianças,

interagia com as práticas dos professores e com o sucesso escolar das crianças.

O diário de bordo permitiu a descrição de processos deste género, abrindo

espaço para reflexão.

Da formação reflexiva

A formação reflexiva dependeu, no nosso caso, muito da disponibilidade dos

formadores para devolver aos autores a leitura feita a partir da sua análise do

seu diário de bordo, nos momentos de formação presencial.

A leitura global serviu sobretudo à organização partilhada de fins de semana de

formação. A leitura pormenorizada que acompanhou a leitura global serviu

sobretudo a reflexão das equipas.

Um diário de bordo profissional não é um diário íntimo. Porém não se conse-

gue evitar que as pessoas se confidenciam relatos. Por isso, optou-se, para, em

contexto formativo, nunca pedir a leitura ou a entrega do próprio diário, mas

somente da análise crítica e quinzenal das ocorrências. A análise desta recolha

periódica permitiu uma condução do processo de formação pensado do ponto

de vista dos aprendentes.

Obviamente, não se nega que o conceito de diário de bordo inclui sempre um

elemento autobiográfico: o ator torna-se autor e olha para a ação, enquanto ela

decorre, na primeira pessoa, refletindo nela no ato. Liétard fala de um triplo

interesse da abordagem biográfica:

“– como sublinhado pelo Pierre Dominice, constitui para os adultos um meio para identificar os seus processos de aquisição de saberes, […]; – constitui uma condição para melhor apreciar a sua evolução pessoal, os momentos chave e o sentido que é dado a sua vida em função do que viveu e dos próprios valo-res; – permite também considerar o equilíbrio dialítico entre o próprio poder e o poder do meio envolvente […]” (2002, p. 56)

Dirigida às equipas, a formação, ancorada no próprio estádio de desenvolvi-

mento dos seus elementos constituintes, evidenciado pela reflexão produzida e

transmitida através do diário de bordo, mostra-se extremamente eficaz, porque,

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

24

o que estava em causa foi muito mais do que uma abordagem social do traba-

lho com as crianças. Para dar sentido ao trabalho, tinha que se em primeiro

lugar abordam a forma como os professores pensavam a avaliação.

Muitos professores estavam com o pensamento armadilhado pela crença de

objetividade científica na avaliação dos alunos, para os quais se decreta a igual-

dade de oportunidade na entrada da escola. Numa tentativa de contornar a

subjetividade pessoal de cada um dos professores, portador da sua própria

história de vida, foram procurando desenvolver um sistema objetivo, a prova

de bala contra esta subjetividade dos professores, montando esquemas, até

procurando testes de que se pensa que podem medir aprendizagens e até pre-

ver desvios. Lembra Álvarez Méndez:

“Os testes, que adotam a forma de provas objetivas de aspeto muito variado, desem-penham um papel relevante neste pensamento. Os usos que deles se fizeram trans-cenderam os valores educativos e derivaram para subtis, embora poderosos, instru-mentos de exclusão e de marginalização.” (2002, p. 35)

Tornou-se claro que o trabalho significativo foi dificultado pela omnipresente

ânsia de avaliar, de maneira normativa e padronizada: avaliar os alunos para se

avaliar. Avaliar o trabalho em torno da produtividades em linha de montagem.

E fazer comparações. Ainda que a avaliação não passa necessariamente por

testes, ela é feita baseado em comparações entre alunos (para o trabalho e para

o comportamento, e entre turmas.

Pretendeu-se ao longo da formação, promover um olhar sobre a avaliação

como elemento do processo de aprendizagem que se quer inscrita na realidade

do aprendendo, em que os próprios alunos se determinam, determinados – são

eles próprios agentes da sua formação desde que agem socialmente. Neste

contexto, a avaliação não é aferida e determinada pelo professor, mas sancio-

nada pela própria obra, avaliando os efeitos reais que tem no quadro das ativi-

dades quotidianas (Lesne, 1977).

Este olhar se desenvolveu-se lentamente, através da leitura interpretativa das

notas de diário de bordo, o que ilustramos de seguida.

Olhar para as crianças: registos e comentários

Para discutir as representações como primeiro passo formativo, organizámos

uma devolução regular da recolha de ocorrências anotados por nós, através da

plataforma moodle. Exemplificamos algumas situações.

À partida existem muitos registos de descrença. A descrição do comportamen-

to dos alunos alude a impossibilidade de desenvolver projetos de trabalho, por

intervir na escola com as pessoas da escola

25

exemplo:

“Atelier de Halloween, mistura de turmas não resulta porque aumenta violência.” “Atelier Halloween, um aluno cortou o braço a outro.” “Atelier Halloween, aluno estragou trabalho a outro mais novo. O mais novo atirou a tesoura contra o outro. Falei com a responsável da instituição.”

E, como é costume nas primeiras reflexões acerca do trabalho, a tentação de

procurar o “culpado” externo é grande:

“Continuo sem conseguir cativar a atenção da turma. As crianças vêm bastante agita-das do recreio (porque se agridem bastante) julgo que este tem sido o principal motivo pelo qual não consigo captar a atenção dos miúdos.”

“Foi um dia impossível de dar aula porque cerca de 5 alunos não tinham material para fazer a aula e estavam de fora e só fizeram asneira. Um aluno bateu-me e tive que dar umas palmadas no rabo para acalmar. Foi impossível dar a aula.”

Imitam-se estratégias de trabalho que são securizantes, porque comum a o que

colegas fazem. A equipa, portadora de mudança de paradigma educacional,

parece cada vez mais afastada:

“Os alunos do 2º ano pediram-me para fazer a avaliação das cores (comportamento) e eu sugeri fazer também às aprendizagens individuais, e a turma reagiu positivamen-te.”

Há quem analisa, mas remete a planificação conjunta para mais tarde:

“Algumas atividades correram menos bem porque na minha opinião deveríamos ter tido em atenção alguns pormenores que depois fizeram com que existisse alguma “confusão” no decorrer da atividade. Temos que ter mais cuidado ao planificar ativida-des conjuntas, principalmente as turmas que podem e não podem interagir em conjun-to nas atividades.”

Procurámos que a formação inicial em gestão de projetos, trabalho significati-

vo e participado pelos alunos, se articulasse com a leitura da realidade feito

pelos professores com quem trabalhávamos, realçando o que de positivo res-

saltava dos diários. Dos comentários destacamos:

Nas referências pela positiva notam-se registos de alívio quando os alunos se portam bem. Normalmente, quem regista, se coloca na posição de formador ou professor que espera um comportamento normalizado de formando por parte das crianças. Mas aparecem também comentários que indicam que a dupla assembleia/distribuição de responsabilidades melhora o clima de trabalho na sala.

É interessante ver o que motiva os alunos. Entre as ocorrências 3 referem o Haloween, 7 um ou outro projeto, enquanto perto de quinze entradas não referem nada de espe-cífico mas falam de trabalho que motiva. Será interessante também ver os documen-tos que testemunham estas ocorrências […]

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

26

Perante o que é devolvido, percebemos a fragilidade na qual se encontravam

muitos dos professores por nós contratados, para uma missão que lhes devia

parecer mesmo impossível. Os comentários referem claramente a violência das

afirmações feitas por muitos, nestes primeiros dois meses de trabalho. Procura-

se fazer comentários sobre a situação, não sobre a pessoa em si para permitir

uma discussão não fraturante. O objeto em análise foi anunciado: a relação

entre pessoas, crianças e adultas. Em conjunto, e em formação, ia-se procurar

perceber o que se passa, como fazer evoluir uma relação formativa do paradi-

gma “ensinar” para o paradigma “aprendizagem” (Houssaye, 2004: 38). Uma

generalização permite focar o olhar coletivo sobre o que será a primeira grande

discussão em formação:

“Fica claro que alguns conceitos terão que ser trabalhados entre nós: existe ainda alguma hesitação em deixar um modelo competitivo para o substituir para um modelo de cooperação (concursos versus planificação em conjunto em torno de um projeto). Ainda há situações em que se premeia o bom comportamento e castiga o mau com-portamento através de pequenos brindes (virtuais ou verdadeiros). Também ainda não é muito claro o que se entende por autonomia das criança: a capacidade de fazer so-zinha o que corresponde ao seu estádio de desenvolvimento, estimulado na sua zona proximal ou a capacidade de executar uma tarefa preparada para um grupo que na fantasia do professor se desenvolve de maneira igual.”

O processo é lento, mas no fim do primeiro ano de trabalho, existem claros

desenvolvimentos5. Fica-se pela constatação. Para alguns formandos é cedo

perceber porque é que o “milagre” aconteceu:

“Dois grupos foram muito mais dinâmicos que os outros dois, sendo que num deles os seus elementos perderam algum tempo útil, tentando gerir os seus conflitos, o que também não deixa de ser proveitoso, logo não considero negativo. Fica claro, claríssi-mo que cada um tem o seu tempo e que o grupo em si tem que aprender a respeitar o ‘tempo’ para progredir.”

“4ºB. Muito bom. Finalmente só há coisas boas a dizer sobre estes meninos!!!”

“Em termos disciplinares não tenho tido problemas nas minhas aulas com excepção [de uma turma], que continua a demonstrar enormes dificuldades de concentração principalmente nos momentos de instrução.”

Leitura global e ateliês de formação

Para facilitar a devolução, categorizamos as ocorrências comunicadas a medida

5 Registámos que, quem não participou no processo todo, mas esteve envolvido (professores

titulares e pais e mães), avalia positivamente o trabalho deste primeiro ano, havendo 65% dos

professores, em geral, que afirmam que a maneira como foram conduzidas as atividades influ-

enciaram positivamente comportamentos e sucesso escolar dos alunos.

intervir na escola com as pessoas da escola

27

que íamos recolhendo os comentários dos próprios aos seus diários de bordo

para análise. Próprio das técnicas de análise qualitativa em contexto de investi-

gação-ação, a categorização emerge da leitura das ocorrências, salvaguardando

o pedido inicial aos autores referente a sinalização de ocorrências críticas.

Neste projeto concreto, e no primeiro ano de trabalho, optou-se por definir 7

blocos de categorias, introduzindo um oitavo a partir da segunda recolha,

devido a gradual separação da relação pessoal e da relação profissional entre o

adultos e as crianças. Esta categorização facilita o diálogo e a da reflexão.

Ilustramos o processo formativo através da devolução comentado em dois dos

sete blocos de categorias, durante o primeiro ano de trabalho com professores

de atividades AEC.

O trabalho com as crianças: ações e interações com os alunos

Primeira recolha

No primeiro levantamento há muitas referências pela negativa. É referida toda

uma série de situações de que se falou na formação inicial em Setembro acerca

de comportamentos destabilizadores por parte das crianças. Fala-se muito

abertamente do alívio que se sente quando uma ou outra criança não aparece.

O que motiva os alunos? Entre as ocorrências 3 referem o Haloween, 7 um ou

outro projeto, enquanto perto de quinze entradas não referem nada de especí-

fico mas falam de trabalho que motiva. Será enriquecedor ver os documentos

que testemunham estas ocorrências.

As referências didáticas incluem mais de 70 ocorrências que apontam para

trabalho de projeto, trabalho de grupo, preparação de festas. Quase outras

tantas mostram tateamentos em várias direções, com resultados variados. Des-

tas aproximadamente a metade evidenciam uma relação didática clássica.

Devolveu-se um primeiro olhar geral sobre a prática através do comentário aos diários de bordo em Novembro, completado em Dezembro, coincidente com um fim de se-mana de formação.

Devido ao número elevado de interrogações acerca da motivação e do comportamen-to das crianças, e de testemunhos de “atividades que funcionam”, decide-se incluir dois momentos de discussão em torno da relação adulto-criança. Consistem numa sessão de discussão em grupos rotativos, em torno de dez pares de afirmações opos-tas, retiradas das ocorrências positivas e negativas relatadas nos diários de bordo, e numa abordagem que se quer isomórfica, com a apresentação de um diário da forma-ção, solicitando a inscrição dos assuntos para discussão, para os tratar no fim do se-gundo dia. Este “diário de turma” ganhará sentido no fim da sessão de formação de Março. Por enquanto fica-se com uma ideia de “assembleia de turma”, introduzido por alguns professores.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Segunda recolha

Entre a primeira recolha e esta, existe uma alteração: não só há mais aprecia-

ções positivas, como elas são comentadas. Aparecem referências ao diálogo

com as crianças e às discussões em assembleia de turma, mesmo se a própria

assembleia continua a ser, em várias ocasiões, uma “caixa negra”.

Contudo, as ocorrências negativas mantêm-se em maior número do que de as

positivas no que se refere à relação com os alunos. As propostas de “regras ex-

maquina”, das quais a eficácia e questionada pelo próprio, mas que resultam na

hora, permanecem. Quando as coisas correm mal, reaparecem castigos. Tudo

funciona no imediato, mas deixa sentimentos de frustração: como lidar com as

inferências do exterior; como lidar com as frustrações dos alunos... e dos adul-

tos?

As interações multiplicam-se e aparecem reflexões acerca da motivação. O que

motiva as crianças, o que faz com que as coisas correm bem ou correm me-

lhor? Dos comentários entregues, a equipa de formação faz anotações, devol-

vendo-as, com algumas pistas:

“Quando fazem uma atividade que gostam, há menos problemas.” Uma outra forma para lembrar o que discutimos em momentos de formação (pedagogia institucional, Charlot, Oury, Meirieu, João dos Santos). A aprendizagem tem a ver com o desejo;

“Organizar o trabalho por temas, e explorar estes mesmos temas, torna mais fácil envolver as crianças.” Convém que os temas têm a ver com elas, que não sejam dema-siados, que não caem do céu, seja o céu o programa K'CIDADE, os projetos da escola, os parceiros;

Quando existem ideias, pode ser útil exemplificar com modelos, no sentido de cortar a sensação que “isto a gente não consegue fazer”;

O concurso em si pode ser um elemento de jogo, claro, e muitas vezes tem aspetos divertidos no ato de o fazer. Mas o concurso é sempre um jogo de exclusão organizada. A própria razão de ser de um concurso é de classificar, e, em muitas situações, de eli-minar até chegar ao vencedor. É a vida, nos shows, nos concursos de “cultura geral” na televisão, nos desfiles, etc. etc. Têm que o ser inevitavelmente na escola também? Com que fins? Trata-se aqui de um resíduo inconsciente que a escola dos pobres é uma escola de alienação?

Na escola representamos. Cada um tem o seu papel, ritualizado através de uma fun-ção. As crianças tornam-se alunos e os adultos que trabalham com eles tornam se pro-fessores. E se alunos se tornassem crianças e os professores se tornassem adultos, mestres, ou simples mediadores, apoiando outros a se desenvolver pessoalmente, so-cialmente, recorrendo para isso ao próprio grupo de pessoas aí constituído?

Comportamento e motivação.

No segundo momento de formação, a equipa de formação apresenta o seu programa,

intervir na escola com as pessoas da escola

29

e pede aos presentes para escolher um tema de trabalho, de definir um projeto. Atra-vés de diálogo, as propostas levam a seis projetos consensuais. Cada grupo tem o fim de semana para trabalhar em torno deste projeto. Há um momento em que os forma-dores circulam entre os projetos. Outro em que elementos de cada projeto procuram um formador específico. Outro, por fim, em que os formadores estão simplesmente disponíveis, solicitados através de uma lista de inscrição. O Diário da formação está presente e formaliza-se, com mais ênfase do que em Dezembro, com dois formadores, a análise, a discussão e a tomada de decisão.

Terceira recolha

A análise do fim do ano, devolvida no último dia de formação, no fecho do

ano letivo, certifica que “os heróis da independência” ficaram mais isolados. Deixa-

ram de impressionar, nos locais onde o trabalho em projeto, fruto do desejo de

crianças, se desenvolveu. Torna-se mais fácil estabelecer uma ligação entre a

organização do trabalho e o comportamento das crianças. Há diários de bordo

que testemunham que se aprendeu a dar mais tempo à gestão de conflitos,

embora ainda espreita muitas vezes o castigo: a “assembleia de turma” vira-se

“tribunal sem apelo” nalgumas situações.

A atitude reflexiva está prudentemente presente: pela leitura das ocorrências,

nem sempre se percebe muito bem porque “de repente, o comportamento da turma

passou a ser bom”.

O último momento de formação do ano letivo tem naturalmente características de balanço. Realça-se a importância que teve a experiência de passar pela simulação. Fo-ca-se também que estar em formação obriga a presença continuada da pessoa. De facto, quem avançou mais no trabalho em projeto foi quem esteve na formação du-rante o tempo todo. Isto é notório nas equipas de escolas. Entretanto algumas pessoas conseguiram implementar um trabalho em projeto na sua disciplina. Torna-se claro que se terá que retomar as ideias de trabalho transversal, de cooperação entre profes-sores, ancorada sobre a cooperação entre crianças.

A primeira sessão de trabalho do novo ano letivo é atribulada. A reorganização das equipas e dos horários é complicada. Retoma-se a gestão de conflitos como tema de discussão. Existe um salto conceptual de pensamento entre alguns dos participantes: evolui-se para o conceito de grupo instituinte, no qual a regulação cooperada ocupa necessariamente tempo e espaço.

Que dimensão pedagógica?

Primeira recolha

Recebemos um grito de socorro em torno do relacionamento adulto – criança

e professor – aluno. Encontraram-se alguns indícios de estratégias pedagógicas,

embora elas também centradas sobre o próprio tateamento.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

30

O primeiro momento de formação incluiu uma partilha de experiências em que se sugeriu a cada equipa, trazer para uma exposição, exemplos de trabalho bem ou mal sucedido, para análise conjunta. A amostra revelou-se uma de produtos (Halloween, Magusto, Festa de Natal), apontando para projetos de trabalho dirigidos pelos profes-sores, com poucos ou nenhumas tomadas de decisão por parte dos alunos. A mostra irá influenciar a experimentação de estratégias, que serão registadas nos diários, fa-zendo abrir na segunda recolha a dimensão pedagógica como categoria.

Segunda recolha

Agora, que aproximadamente um terço da recolha de entradas dos diários de

bordo referem estratégias didáticas ou questionamentos pedagógicos, parece-

nos emergir uma categoria consistente.

Há muitas entradas no bloco “didático” que evidenciam um contraste cada vez

mais claro entre o que se pode considerar atividades de motivação, às vezes ad

hoc:

“Há pouco tempo, enquanto preparava os alunos para o Desfile de Carnaval, alguns deles (os mais inquietos) começaram a fazer um ritmo espantoso nas mesas com as mãos e canetas. Logo ali me surgiu a ideia de colocar esses alunos a «bater» ritmos para acompanharem os colegas que estavam a cantar. Todos se mostraram felizes e muito contentes com o resultado do seu trabalho. Neste dia percebi realmente que temos de ser nós a ir de encontro aos interesses dos alunos e não o contrário.”

“Ajuda muito levar para a aula um produto (da aprendizagem dessa aula) já elaborado. Por vezes, as crianças desmotivam-se quando não se apercebem qual será o produto final de uma tarefa”

e atividades estruturantes:

“Nalgumas das minhas turmas, optei por fazer conselhos de turma quinzenais. Neles, os alunos falam dos seus comportamentos e atitudes.”

“projeto [Carros]. No início tive que explicar até como é que se usava a régua! Que era preciso medir o carro e depois as coisas a cortar. Agora já o fazem sozinhos. Estão mais criativos. Dão ideias originais. Não estão à espera que sejamos nós a dizer.”

“O contrato elaborado com os alunos nesta turma dá frutos. Os próprios meninos chamam a atenção uns aos outros quando sentem que uma atitude é inadequada e os colegas visados cumprem as consequências acordadas de sua livre vontade. Conscien-cialização e responsabilização crescentes.”

“Nesta semana a discussão girou em torno de uma atividade nova que nos conduz mais para a “área de projeto” do que propriamente para as expressões […]. Combina-mos que a partir de Fevereiro iríamos então começar, se corresse bem escolheríamos outros temas abordados no Estudo do Meio. As aulas/atividades tornam-se muito mais interessantes quando vão ao encontro dos interesses dos nossos alunos.”

Os mini-projetos são cada um por si estímulos que estabelecem uma outra

intervir na escola com as pessoas da escola

31

relação com o trabalho (tanto por parte das crianças como por parte dos adul-

tos) e que levam em determinados contextos a atividades estruturantes: “falar

sobre” transforma-se em conselhos ou assembleias de turma, mini-projetos numa

vontade, manifestada por alguns, para trabalhar em projeto.

Começa a haver indícios que poderemos, nalguns casos, caminhar do impulso

e do ser impulsivo para o refletido e o ser reflexivo (como diz Philippe Mei-

rieu, falando do trabalho pedagógico).

Da parte da equipa de formadores sugere-se:

Será talvez a altura para entre nós refletirmos um pouco mais como conduzimos as discussões com as crianças para clarificarmos a diferença entre um conselho ou uma assembleia para gerir trabalho, tempo e espaço e um tribunal de justiça. Sabemos que os conselhos ou as assembleias também têm que gerir o delicado problema da obedi-ência a Lei (desde que ela seja fruto desta mesma assembleia) mas não é fácil procu-rar o equilíbrio entre resolver conflitos em grupo e aplicar normas quando considera-mos coletivamente necessário;

Surgem novos desafios. Os projetos podem ser muitos numa determinada altura, poucos noutras alturas. Nem todos os projetos são dignos deste nome; há projetos in-trusos, que aparecem que são quase de execução obrigatória, mesmo se não surgem nem das crianças, nem da equipa de professores AEC. A interdisciplinaridade aparece como importante, interessante e motivadora. Mesmo se a planificação se torne mais complexa e se ainda estamos em cada um dos grupos a procurar de um esquema de planificação pragmático, funcional e eficaz, a preparação das atividades em conjunto é uma mais-valia. Mas algo ainda não está claro se existem colegas que têm a sensação que a planificação rouba tempo à preparação das aulas; em princípio trata-se de duas afirmações que significam exatamente a mesma coisa;

Algo que ainda transtorna e preocupa (e isto é claramente testemunhado

quando acontece) é “ter que recorrer” de vez em quando à expulsão de alunos

das atividades AEC. Perturba, porque uma expulsão é sempre uma derrota.

Mostrámos não termos sido capaz de encontrar uma forma para motivar a

criança para concretizar um desejo dele. Não dispomos ainda, nas várias esco-

las, de cenários pedagógicos que criam as condições para que quem estiver

queira ficar e participar. Não é de vez possível cativar alguém para estar lá,

proibindo este mesmo estar lá.

As discussões acerca da gestão de conflitos que fizeram parte da agenda da formação de Dezembro surtiram algum efeito. Há quem experimenta a discussão, a assembleia. Há quem introduz o termo conselho. E neste momento existem condições para discu-tir a gestão das atividades a partir de projetos. No fim de semana de formação centrado sobre o trabalho em projeto, são introduzi-das com mais premência a planificação em equipa e a gestão interdisciplinar das ativi-dades. Algumas equipas preparam no decorrer da formação o que se será parte do resto do ano letivo, porque já trouxeram consigo as propostas registadas entre as cri-anças.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Terceira recolha

Várias equipas experimentam o trabalho interdisciplinar, em projeto, alguns

professores ganham prática na gestão de projetos dentro do seu próprio espa-

ço, com acordos pontuais interdisciplinares. Os diários de bordo revelam afir-

mação do tipo:

“Resolvi tentar trabalhar em projeto com as minhas turmas. Passados três dias aper-cebi-me que sou louca: 11 turmas significa 11 projetos diferentes…ele há pessoas lou-cas de facto. Os temas que as turmas escolheram obrigam-me a ser bem ‘idiota’. Aqui registo alguns exemplos da minha futura loucura: ‘vampiros e múmias’; ‘antiga Roma’; ‘extraterrestres e planetas’…enfim, uma verdadeira viagem pela imaginação”

“Iniciámos a metodologia de projeto em algumas turmas. Este método de trabalho veio a revelar-se produtivo entre os alunos, desenvolvendo autonomia e melhorando o seu empenho nas atividades.”

Começa a ser possível correlacionar o trabalho em projeto com a diminuição

dos conflitos e o aumento do interesse por parte dos alunos. Os diários dão-

nos uma indicação que a combinação do feedback regular, a formação esporádi-

ca e as notas na plataforma Moodle, sempre que existe um contacto com as

equipas de escola, proporcionam um desenvolvimento conceptual e um estí-

mulo para a reflexão acerca da profissão.

Por outro lado, mostram em mais do que uma situação, a força do paradigma

“ensinar”. Ele continua presente, mesmo no contexto de atividades de enri-

quecimento curricular. Abordam se formas diferentes para continuar a testar

normativamente os alunos, numa lógica de transposição didática mais cativan-

te.

“Esta semana foi destinada a fazermos revisões da matéria dada até então e recorri a jogos onde os alunos tinham de reconhecer as cores em inglês e tinham de contar também em inglês. As aulas correram bem e os alunos conseguiram recordar a maté-ria dada de forma diferente e gostaram muito, pois estiveram distraídos com o jogo e ao mesmo tempo a estudar”. (Diário de Bordo)

Caminha-se, procurando perceber os paradigmas de trabalho na escola, centra-

do sobre o professor, centrado sobre o aluno ou centrado sobre a interação

entre pessoas, traduzindo-se em partilha de textos, ideias e alguns instrumentos

de trabalho:

Na formação do fim do ano letivo foram realçados alguns processos de trabalho em projeto transdisciplinar, discutidos em grande grupo. Os processos apresentados estão a ser transcritos e documentados, pelos próprios, esperando-se que irão constituir um caderno prático. Foram objeto de reflexão e serviram de base para lançar a formação do arranque do novo ano letivo: como combinar o trabalho em projeto com os desejos individuais, como gerir atividades diversificados, como passar a avaliação para a mão

intervir na escola com as pessoas da escola

33

dos alunos. Começaram a circular na plataforma Moodle propostas de reescrita das orientações curriculares, tornado percetível pelas crianças, listas de verificação de de-senvolvimento de competências e grelhas de organização, incluindo alguns planos in-dividuais de atividades.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

34

Ficha 4: o diário de bordo e a autoformação

O quê? Depois de utilizar o diário de bordo, na fase de arranque, como instrumento para recolha de informação que permite conhecer o contexto, ele torna-se o instrumento que vai conduzir os momentos de formação. As perguntas orientadoras permitem aos formadores aprenderem a partir da infor-mação necessária para construir uma proposta de currículo de formação e apresen-ta-lo aos professores aprendentes para discussão e aprovação. Este currículo anuncia que intente uma mudança de paradigma de relação pedagógica, privilegiando a interação entre criança e adulto, assumindo que cada um tenha o estatuto de sujei-to-ator e não de sujeito-objeto. Quem conduz o processo são os formadores. Todos os momentos de formação obedecem a uma agenda previamente discutida e acorda. De todos os momentos de formação faz-se um balanço, individual e coletivo em função da mudança na relação pedagógica que cada um analisa por si.

Com quem? Com professores sob contrato de trabalho. O contrato inclui horas de presença em formação e tempo disponível para manter o diário de bordo profissional. Com formadores da equipa de educação.

Como? A fase inicial, em que o diário de bordo serviu para o autor se fazer uma imagem do contexto em que trabalho e devolver esta imagem aos outros membros do grupo de formação, permitiu aos formadores sugerir novas perguntas orientadoras para a autoanálise do diário de bordo em função das preocupações que emergem e dos aspetos da relação pedagógica a abordar. Assim torna-se possível ancorar a forma-ção nas próprias representações de quem participa nele e recorrer a momentos de debate e discussão entre formandos.

A função da avaliação? Arrancar com um processo de autoformação não é fácil. A devolução da informação a quem está a começar a refletir sobre a sua prática é útil, quando existe uma possi-bilidade de avaliar a pertinência desta mesma devolução. Aqui, trata-se de uma avaliação contínua e formativa de uma interação entre adultos que partilham sabe-res diferentes e percorrem a partir daí um processo de aprendizagem diferente entre eles.

intervir na escola com as pessoas da escola

35

Da reflexão formativa

Promover mudança nas práticas de agentes sociais implica provocar um pro-

cesso de reflexão, baseado em técnicas de introspeção. Lietard observa que:

“Partindo da observação, chega-se, conforme o processo em espiral de Coleman, a uma modelização dos nossos saberes da ação percorrendo as quatro etapas seguintes: estar na ação, refletir sobre o resultado da ação, compreender o princípio geral e ge-neralizar a sua ação. Para tornar a experiência educativa, tem que haver uma atitude reflexiva sobre ela, isto é, analisá-la e formalizá-la.” (2002: 54).

A escrita diária combinada com a leitura quinzenal, a procura de ocorrências

críticas, institui por si só um processo de reflexão tranquilo, porque pouco

invasivo por parte do formador. Definindo bem os objetos de avaliação no

quadro da investigação-ação em curso, consegue-se, de forma transparente,

colocar os participantes a aprofundar a sua visão sobre o processo que está a

desenvolver, enquanto está a decorrer.

Depois de um ano de trabalho, em que a anotação continuada dos diários de

bordo, sempre coletivamente e sempre apenas acerca das ocorrências disponi-

bilizadas para discussão pública, apetece-nos dizer que o olhar dos professores

com que trabalhamos deslocou-se regularmente de si próprio para o aluno,

nalguns casos para a criança atrás do aluno:

"Realmente, as coisas que são feitas por vontade dos alunos (mesmo que implicita-mente) têm um significado totalmente diferente para eles e é muito gratificante para mim."

“Alunos com quem faço metodologia de projeto reagem mal quando faço uma aula que quebrou a pesquisa até então concretizada.”

“Em Janeiro surgiu a ideia de se fazer um levantamento de necessidades dos alunos relativamente à escola a partir da frase: “O que gostaríamos de mudar na nossa esco-la?”. As crianças disseram muitas coisas, em especial sobre a segurança rodoviária.”

Indiscutivelmente, muitos dos professores começaram um questionamento

reflexivo acerca da sua atuação:

“É difícil controlar o tempo que as aulas duram em metodologia de projeto.”

“Todas as áreas pegaram neste tema (seguranças rodoviária) e trabalharam-no à sua maneira. No nosso caso, música, elaborámos uma música ‘chamada’ música de passa-deira, fizemos umas atividades transversais, numa sexta-feira, e que ensinavam as re-gras básicas, como o simples facto de se olhar para os dois lados antes de atravessar a escola, e sempre na passadeira (…) Mais uma vez julgo que esta atividade foi muito bem-sucedida.”

“Professores titulares de turma participam com trabalhos e presenças. É muito bonito ver uma escola e os seus elementos unidos para o mesmo fim. Começo a sentir a força

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

36

que esta união pode ter e o que se pode fazer.”

Procuram perceber o seu papel na escola e na condução do trabalho com as

crianças:

“Começamos a trabalhar o tema da família e a fazer a prenda para o dia do Pai. É um tema muito delicado. Há meninos cujos pais já morreram assassinados ou por formas indizíveis. Outros estão presos, longe. Ainda outros simplesmente não ligam aos filhos. E há aqueles meninos que não conhecem o pai. É apenas um nome, um conceito que aprenderam, viram outros a ter mas não vivenciaram. Há também outros meninos, cu-ja imagem do que é ser pai está muito distorcida devido a uma série de vivências e ex-periências violentas, dolorosas e traumáticas. Alguns desses meninos têm o olhar per-dido, alienado, parece que não estão ali connosco, como se o estar numa relação trou-xesse o medo de mais uma experiência relacional traumática. Outros desses meninos são agressivos, parecem touros enraivecidos quando são metidos numa arena e se sentem encurralados. Há ainda outros meninos que são a Primavera quentinha cujas árvores estão carregadinhas de flores e de sonhos…Todos merecem a nossa disponibi-lidade, a nossa atenção e o nosso amor…porque é isso que é o mais importante, con-seguir estabelecer uma relação de carinho onde estes possam se sentir respeitados e adquirir uma relação adulto-criança.”

Descobre-se a vantagem da escrita:

“Resumindo foi por uma questão de autogestão e de estabelecer prioridades que fez com que o diário, não sendo menos importante, mas por não ser urgente, pontual-mente foi ficando esquecido. Entendo a sua funcionalidade para o projeto como tam-bém para mim, técnico de educação. A constante reflexão sobre o nosso trabalho, a reorganização dos nossos pensamentos através da escrita, ajudam-nos a ter conclu-sões que de outro modo não teríamos. ”

A recolha das ocorrências dos diários de bordo por escola permite uma abor-

dagem de formação em contexto. A leitura não é só global, ela também é foca-

da em cada uma das equipas de terreno tornando possível a intervenção cen-

trada sobre uma determinada equipa. Para o fazer, utilizamos duas ferramentas

ao nosso alcance: a plataforma Moodle e uma hora de formação presencial por

mês, por equipa, no local de trabalho.

As ocorrências críticas dos diários de bordo servem nestes momentos de pon-

to de partida para reflexão conjunta, pelo que estão permanentemente atuali-

zados, por equipa, na plataforma, disponível para todos.

As voltas pelas equipas mostram que os diários de bordo nos levaram, for-

mandos e formadores, a perceber os contextos, diferentes entre si, levando a

preocupações, provocações e reflexões também diferentes.

Tal como não existe a turma homogénea também não existe a intervenção

homogénea abstrata. Uma boa abordagem numa escola não resulta necessari-

amente noutra, mesmo se a ideia de fundo se mantém: dar protagonismo à

intervir na escola com as pessoas da escola

37

iniciativa e ao desejo das crianças, em cooperação. A discussão coletiva das

ocorrências discutidas, por equipa, a partir das reflexões individuais, foi, neste

contexto, muito formativo.

Nas páginas que seguem, exemplificamos a reflexão formativa de algumas das

equipas.

O percurso de uma equipa

A equipa de uma das escolas relata que o impacto inicial de uma nova grelha

de planificação veio como um choque, mas que agora a utiliza, embora com

algumas alterações. Refere-se que se tornou claro que, quando cada um tem as

suas planificações em separado, o trabalho transversal é muito mais complica-

do. Mas argumenta que mesmo sem plano conjunto, já se trabalhava em grupo

embora reconhece que neste momento este trabalho está mais fixado.

Aponta o que considera ser os seus limites. Há dificuldades de articulação de

atividades com as planificações dos professores titulares, caso existir esta arti-

culação. Existem atividades que não permitem trabalhar por tema ou retomar

nas AEC. Enquanto é possível articular o treino de determinado vocabulário

ou de explorar algumas situações matemáticas ou de estudo do meio, também

existem muitos momentos em que não nos parece viável colar as AEC ao que

se passa no período curricular. Esta discussão fará refletir também acerca de

planificações conjuntas “a todo custo”.

Parece importante reafirmar quando as crianças não participam na planificação

ficando, portanto, sujeitas ao trabalho, não refletido por elas, a ancoragem do

trabalho de enriquecimento curricular no trabalho curricular é sempre forçado.

Só existe enriquecimento curricular quando existe um currículo explícito, co-

nhecido e discutido na sua forma de apreensão.

A equipa explorou o trabalho em grupo, com alguma planificação prévia e

alguma condução comum, a partir de provocações da pessoa adulta ou de cada

uma das crianças, permitindo trabalhos de projeto, umas vezes transversal a

várias disciplinas, outras vezes não. Numa sessão mensal comparamos este

trabalho ao conceito de Espaço Cultural Intermédio (ECI).

O que a equipa considerou importante foi que se gerou de facto um sentimen-

to de pertença a um grupo provisório, que dá suficientemente conforto e segu-

ranças para que cada um se possa manifestar. A proposta de fazer um ateliê de

costura e de envolver os rapazes interessados é um exemplo que o ECI pode

ser uma estrutura de reconceptualização de aprendizagem e de reaprendiza-

gem, de tomada de posse sobre as leituras do mundo.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

38

A reinvenção do diário de bordo

A equipa de uma outra escola, mais pequena, propôs-se manter um diário de

bordo em conjunto. Aproveitando o facto que toda equipa está sempre na

escola, todos os dias, os seus membros comprometeram-se mutuamente de

escrever diariamente, em conjunto: reflexões, ocorrências e acontecimentos.

Depois, quinzenalmente vai se reler, também em conjunto, o que foi escrito. A

equipa espera assim contornar uma dificuldade que sentia: a releitura individual

muitas vezes não passava da tentativa de fazer um resumo. Pressupunha que a

leitura em conjunto despoletasse mais a reflexão. Experimentaram, focando

numa primeira fase alguma frustração coletiva em relação às reuniões de traba-

lho com as crianças. Consideraram satisfatório em termos de aprofundamento,

o que levou a equipa a combinar momentos de escrita coletiva com momentos

de escrita individual, no ano letivo seguinte.

As reuniões de trabalho

A frustração vinha do facto que as reuniões não tinham, na altura, grande

relevância. Muitas vezes as discussões eram forçadas ou ficavam fora do con-

texto. Anotou-se durante um tempo, coletivamente, tudo que se passava nos

momentos de reunião coletivo, para mas tarde discutir em conjunto o que a

leitura global sugeria, num dos momentos de formação interna, com a presen-

ça de um dos formadores da equipa.

Pelo desenrolar da reflexão, percebeu-se que, demasiadas vezes, para as crian-

ças, não se tratava de reuniões de trabalho que organizam ou discutam o pro-

jeto de trabalho, regulando ao mesmo tempo as atividades, as relações e os

eventuais conflitos. Tratava-se antes de uma espécie de antro de tribunal, fil-

trando queixas e distribuindo castigos fora de prazo.

A partir desta primeira reflexão, surgiram perguntas de apoio para perceber o

envolvimento efetivo das crianças, e que apoiaram a reflexão permanente acer-

ca da planificação com as crianças no último período daquele ano letivo:

Que organização de trabalho, em que espaços?

Que atividades, com que tempo previsto?

Como cruzar com as encomendas (às vezes dos professores titulares)?

Como devolver às crianças a leitura de saberes a adquirir e competências a

desenvolver (listas de verificação, listas de “tradução”)?

Discutiu-se aqui também as vantagens e desvantagens de desenvolver projetos

de trabalho com as crianças, sem articulação com os professores titulares de

turma, quando estes não desenvolvem nenhum tipo de trabalho de projeto:

parecia ser menos conflituoso e mais proveitoso, apresentar trabalho em sepa-

intervir na escola com as pessoas da escola

39

rado do que desvirtuar o trabalho em projeto, planificado em conjunto, através

da sua sujeição a uma lógica de aulas pré-programadas e transmissivas.

Quando o mundo entra planificação dentro

1. Fantasias burocráticas

Quando o programa K’CIDADE se propôs como promotor de atividades de

enriquecimento curricular, fê-lo com a intenção de desenvolver atividades

conjuntas com os professores titulares de turma, que, pela sua natureza, influ-

enciassem positivamente o sucesso escolar das crianças. Discutiu-se a integra-

ção da planificação existente na escola sem abdicar de um registo normalizado

de planificação, transversal às várias equipas.

Uma delas encontrava-se numa escola que, pela sua expansão, exigia que cada

professor AEC trabalhe com 11 turmas, em regime duplo. Como todos os

professores titulares também funcionavam em regime duplo, as dificuldades

logísticas para reuniões e planificações conjuntos eram muitos e rotinas fixas e

quinzenais, como sugerido em outros contextos, eram aqui impossíveis, mes-

mo só entre coordenadores de grupos de turmas ou de professores.

A reflexão da equipa de professores de AEC ia no sentido de manter alguma

interatividade entre o trabalho curricular e o trabalho não curricular, sem tor-

nar esta vontade um inferno burocrático. Sabendo da planificação anual, des-

dobrada em planos trimestrais ou mensais por parte dos professores titulares,

consideraram mais oportuno ancorar as suas atividades nesta planificação em

vez de sugerir uma planificação conjunta.

Não tendo espaços próprios de trabalho, juntando frequentemente quatro

grupos-turma no mesmo espaço físico prefabricado, com a área de uma sala

pequena, as atividades eram frequentemente reformulados. O pragmatismo

para conciliar o que surge de atividades, recorrendo aos meios disponíveis e os

instrumentos de planificação, obrigara o uso de alguns instrumentos de registo

e avaliação permitindo a monitorização do desvio constante.

Assim, optou-se por completar a normal planificação anual da escola, trimestre

a trimestre, mais numa perspetiva de monitorização do que de planificação. A

reflexão permitiu tornar mais evidente e discutível, os limites que a escola

impunha O desmembramento das instalações pôs termo ao trabalho desta

equipa, que também ela se reorganizou em duas equipas mais pequenas.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

40

2. Atividades e atividades

Numa outra escola, o processo para “cantar as Janeiras” foi interessante e bem

conseguido. Cantou-se em vários grupos e fez-se diferentes circuitos de visitas.

As letras, feitas pelas crianças, sortiram efeito e ficaram gravadas no ouvido, já

que se ouve ainda regularmente as canções, ao longo do dia na escola.

A festa do São Valentim incluiu uma amostra (montagem de fotografias) dos

momentos com os pais e as mães no primeiro período do mesmo ano letivo.

Alguns professores titulares de turma tornaram-se bons aliados no trabalho

extracurricular.

Contrastando com os processos de envolvimento da comunidade e de desen-

volvimento de um projeto de trabalho, refletido, existe uma preocupação que a

equipa sente, como outras equipas já o manifestaram. A normalização desejada

pela coordenação do programa levou a muitos equívocos. Alerta-se para o

risco de se afastar do primeiro objetivo de envolvimento das pessoas, nomea-

damente das crianças, na planificação e uma proposta que tem contornos de

instrumento de recolha de dados, mais do que de instrumento dinâmico de

planificação e monitorização.

Estas e outras preocupações, registadas entre as equipas, fizeram objeto de

reflexão para a própria equipa de educação. Posteriormente as preocupações

foram partilhadas entre todos, num encontro de formação/trabalho. O resul-

tado foi um compromisso de voltar a reunir, numa partilha de experiências, os

vários documentos de planificação das várias equipas, e explicitá-los em relação

ao contexto em que são utilizados, cruzando com as exigências centrais de

recolha de informação.

No início dum novo ano de trabalho

O caminho percorrido pelas várias equipas, devolvido através dos seus diários

de bordo, evidenciou com clareza os desvios e as especificidades que a imple-

mentação de uma estratégia de trabalho transversal baseada numa matriz peda-

gógica assente no paradigma “aprendizagem” provoca. Recusando programas

“a prova de professor”, as lógicas, escola a escola, equipa a equipa, que possibi-

litam um trabalho com as pessoas, são trabalhadas pelos próprios envolvidos,

refletindo sobre o seu local de interação com os outros. Por muito tentador

que seja, não é possível introduzir um modelo de pensamento único para subs-

tituir outro modelo de pensamento único.

A diversidade de registos, associado ao ganho de experiência na manutenção

de um diário de bordo do primeiro ano, mas também a vontade expressa em

muitos registos de fim de ano para continuar a reflexão iniciada, fez-nos alterar

intervir na escola com as pessoas da escola

41

ligeiramente o enfoque sobre as coisas.

Nos diários de bordo, no segundo ano de trabalho com os professores de

AEC, as sugestões de reflexão passaram a ser a relação com os alunos, a rela-

ção com o trabalho / saber e a relação com adultos. A relação com o trabalho

/ saber inclui atualmente categorias como “trabalho em equipa”, “planifica-

ção”, “autonomia”, “trabalho com sentido” e “trabalho dirigido com sentido”.

Enquanto os mais experientes, no uso do diário de bordo, colocam o trabalho

com as crianças no centro das atenções, na entrada “relação com o trabalho /

saber”, o reaparecimento do aluno em despeito da criança tinha sobretudo a

ver com a renovação de grande parte do corpo docente de AEC.

No segundo ano, reforçou-se a importância do papel do coordenador da equi-

pa de escola, com a responsabilidade expressa de fazer circular a informação

na plataforma Moodle. Optou-se por reuniões semanais com os coordenado-

res, colocando os também no centro da recolha e da leitura das reflexões indi-

viduais quinzenais de todos que participaram. Por isso, a devolução por equipa,

com comentário formativo, passou a ser mensal em vez de trimestral.

Como tivemos oportunidade de demostrar (Paulus, 2011), a intensificação da

interação escrita teve ganhos evidentes, permitindo passar da formação reflexi-

va para a reflexão formativa própria de uma equipa constituída em comunida-

de de prática.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

42

Ficha 5: o diário de bordo e reflexão formativa

O quê? A autoformação é alimentada pela reflexão de quem se coloca em situação de aprendizagem. Num primeiro momento procurámos que, como os diários de bordo, as pessoas se confrontassem com a sua realidade e ganhassem consciência de como interagir com os outros nesta realidade e que saberes mobilizem ao fazê-lo. Foram apoiados nisso pelos formadores. Chamámos a esta fase a formação reflexiva. À medida que as pessoas ganham esta consciência, tomam o seu processo de auto-formação nas próprias mãos. O formador passou a ser um facilitador, os colegas de equipa são interlocutores com quem se explicita a reflexão, tornando-a formativa.

Com quem? Professores com alguma prática de escrita de diário de bordo e que participaram em momentos de formação com uma agenda elaborada a partir das discussões basea-das nas reflexões produzidas acerca do diário de bordo. Formadores, experientes para acompanhar processos de autoformação facilitando a cooperação entre os participantes.

Como? O figurino de formação é mais explicitamente baseado em discussões de equipa, coadjuvadas por um formador, preferencialmente in loco, às vezes à distância. Estas discussões ocorrem em momentos regulares e baseiam-se na devolução da leitura das reflexões, juntas por equipa, por parte do formador, sugerindo leituras e provo-cando partilhas entre equipas. São na maioria das vezes completadas com exemplifi-cações concretas: produtos realizados, instrumentos experimentados e as interroga-ções que elas suscitam. Nos encontros de formação (por norma de dois dias) a partilha tem um peso mais importante. Parte da sessão não tem agenda predefinida mas decorre da partilha organizada pelos participantes. As questões focadas na sessão com agenda são de prévio conhecimento dos participantes. O formador assume uma atitude de provo-cador, através de sínteses que vai produzindo, ao longo das sessões de trabalho. Existe um diário da sessão, discutido no fim do encontro.

Função da avaliação? A avaliação no fim das reuniões de trabalho e no fim dos encontros servem como momento de devolução a todos os participantes, permitindo reajustamentos na forma como a informação é escolhida ou tratada, por quem mantem o diário de bordo ou por quem facilita a leitura global através da categorização da informação contida nas reflexões partilhadas. A discussão do diário no fim de um encontro de formação serve de base para o planeamento do próximo.

intervir na escola com as pessoas da escola

43

Da reflexão e atitudes investigativas

Como já afirmamos e tentamos ilustrar, as realidades são muito diferentes, de

escola à escola, mesmo dentro do mesmo agrupamento. As coisas situam-se ao

nível da relação entre pessoas, muitas vezes mais decisivos do que as organiza-

ções sistémicas.

Como é do conhecimento de quem se envolve em projetos institucionais, é

relativamente fácil recolher indicadores quantitativos para parâmetros de avali-

ação, em momentos precisos no decorrer de um projeto.

Tarefa bem mais complicada é fixar, para análise qualitativa, os processos de

intervenção que surgem todos os dias, em todas as equipas, contextualizados

ao terreno de intervenção.

Implica registar acontecimentos, identificar incidentes críticos, constituindo

rotinas que nos fazem lembrar os estudos etnográficos.

É, nestas situações imprescindível procurar uma forma para fixar a informa-

ção, na maior parte das vezes somente possível de ser captado pelas pessoas

que estão no terreno, antes que ela desapareça e que elas se esqueçam.

Como nenhuma das pessoas é especialista na condução de projetos de investi-

gação – ação, o diário de bordo supervisionado pela coordenação surge como

instrumento precioso.

Os cuidados a ter são conhecidos, diz Dias de Carvalho:

“Alguns projetos lançados sob a bandeira da investigação – ação, por exemplo, tirando partido da crítica a um esoterismo exacerbado da investigação tradicional, encontram terreno propício para, em nome de um certo corporativismo praticista, apelarem aos valores da adesão espontânea, emotiva e militante da maioria. [...] Como é óbvio, não se trata aqui de pôr em causa, por si mesma, a investigação – ação, mas tão-somente de denunciar os riscos de um proselitismo investigativo que não raras vezes lhe apare-ce oportunisticamente associado, desnaturando-a.” (1998: 51).

Com este aviso em mente, procuramos que o diário de bordo seja instrumento

de recolha, permitindo, a quem colabora, iniciar um processo reflexivo e de-

senvolver algumas capacidades investigativas, úteis para o seu posicionamento

no trabalho que desenvolve.

Permite, para quem se deixa envolver, uma gradual elaboração da relação entre

a prática e a teoria, e torna mais evidente como inverter para práticas de cariz

conscientizantes, porque ele próprio conscientiza o agente/ator.

Inscreve-se numa abordagem construtivista, situada por Dauberville e Solei-

lhac entre um conjunto de quatro abordagens científicas possíveis: a racional

ou positivista, a sistémica, das situações e das organizações, a pela comunica-

ção e o tratamento da informação e a própria construtivista. As autoras consi-

deram esta abordagem como a

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

44

“evolução do pensamento [que] considera a complexidade, integrando por um lado as outras abordagens e permitindo por outro lado, a improvisação, a flexibilidade dos objetivos de ação, a aceitação de 'estruturas emergentes'”.

(Dauberville e Soleilhac, 2002, p. 63)

A leitura cuidada dos registos de ocorrências significativos faz, para o próprio

emergir situações que, partilhadas com outros, são passíveis de análise mais

aprofundada dos perfis correspondentes, construindo assim o conhecimento

necessário para se propor linhas de ação, no que se aproxima de situações tipo,

que poderão ajudar quem queira desenvolver processos formativos em outros

contextos.

Provocar a análise para cruzar com informação do terreno

À procura de significados, pesquisamos tendências através da recorrência de

determinadas palavras que foram consideradas palavras-chave nos discursos

produzidos. Na formação de fim de ano confrontamos os autores com o fluxo

de determinadas palavras ao longo dos diários de bordo entregues e ao longo

do ano, agrupados por equipas, de que reproduzo aqui 4 exemplos.

palavra: projeto palavra: planificar / planificação

Escola 1ª

recolha 2ª

recolha 3ª

recolha total

1ª recolha

2ª recolha

3ª recolha

total

A 1 2 0 3 1 1 0 2

B 0 6 31 37 0 2 1 3

C 1 3 20 24 2 14 17 33

D 4 8 11 23 2 2 4 8

E 6 3 4 13 2 7 2 11

F 0 29 9 38 0 12 4 16

G 3 1 3 7 3 1 2 6

H 1 2 3 6 1 2 2 5

I 2 5 23 30 1 4 3 8

J 3 4 2 9 3 1 1 5

Total 21 63 106 190 15 46 36 97

intervir na escola com as pessoas da escola

45

palavra: projeto palavra: dificuldade

Escola 1ª

recolha 2ª

recolha 3ª

recolha total

1ª recolha

2ª recolha

3ª recolha

total

A 1 2 0 3 4 8 0 12

B 0 6 31 37 0 12 9 21

C 1 3 20 24 4 9 8 21

D 4 8 11 23 5 9 8 22

E 6 3 4 13 2 7 11 20

F 0 29 9 38 0 15 14 29

G 3 1 3 7 6 8 7 21

H 1 2 3 6 5 8 9 22

I 2 5 23 30 23 12 16 51

J 3 4 2 9 2 10 7 19

Total 21 63 106 190 51 98 89 238

palavra: criança palavra: aluno(a)(s)

Escola 1ª

recolha 2ª

recolha 3ª

recolha total

1ª recolha

2ª recolha

3ª recolha

total

A 1 0 0 1 29 14 0 43

B 0 3 7 10 0 93 92 185

C 0 9 6 15 27 53 116 196

D 5 9 12 26 74 117 67 158

E 6 12 21 39 52 31 37 120

F 0 14 3 17 0 110 35 145

G 19 4 28 51 38 8 16 62

H 0 6 10 16 20 44 37 101

I 11 2 9 22 100 39 82 221

J 1 1 0 2 18 44 35 97

Total 43 60 96 199 358 553 517 1328

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

46

palavra: professor palavra: aluno(a)(s)

Escola 1ª

recolha 2ª

recolha 3ª

recolha total

1ª recolha

2ª recolha

3ª recolha

total

A 21 20 0 41 29 14 0 43

B 0 23 33 56 0 93 92 185

C 17 41 97 155 27 53 116 196

D 60 57 36 153 74 117 67 158

E 55 28 32 115 52 31 37 120

F 0 130 24 154 0 110 35 145

G 31 13 34 78 38 8 16 62

H 19 36 43 98 20 44 37 101

I 39 22 33 94 100 39 82 221

J 20 39 23 82 18 44 35 97

Total 262 409 355 1026 358 553 517 1328

Tratava-se de um indicador muito parcelar, que dava pistas para uma primeira

imagem de o que se podia esperar ao ler os diários. Surgiram de imediato uma

série de perguntas, do tipo “Onde é que se fala mais de crianças, onde mais de

alunos, e o que se isto significa?” “Qual é o discurso que suscita estas pala-

vras?” “Onde é que aparece mais a palavra projeto, porquê e em que contex-

to?” “Onde aparece mais a palavra professor(a), que contextos são focados?”

“Onde aparece menos, os contextos focados são os mesmos ou são outros?”

As equipas foram encorajadas em levar as perguntas que considerassem perti-

nentes consigo e utilizá-las nas suas reflexões, deixando ao critério de cada um

as que queria usar como perguntas orientadoras para a análise do seu próprio

diário de bordo profissional.

Escola a escola, todas iguais, todas diferentes

Como já o afirmamos, não é por querer implementar um dispositivo de for-

mação em contexto que a pedagogia mude, como por varinha mágica. O esta-

tuto laboral extremamente precário dos professores de AEC fez com que mais

de metade dos professores com quem se trabalhou no decorrer do primeiro

ano, escolheu sair do projeto, logo que encontrasse um vínculo de trabalho que

parecesse mais seguro.

Existiam em cada equipa e em cada escola uma série de variáveis, que tornava a

situação única. A manutenção de um diário de bordo profissional, associado a

intervir na escola com as pessoas da escola

47

uma atitude reflexiva e investigativa torna a situação inteligível para os profes-

sores que nela intervêm. Ao longo do segundo ano de trabalho, e durante o

terceiro ano de trabalho, cada equipa consegui criar-se a sua imagem da sua

realidade, decidindo como intervir nela, ouvindo e partilhando com as outras

equipas, como se tratasse de uma pequena rede de comunidades de prática. A

título de exemplo inclui algumas das realidades como são vistas pelos próprios.

Renegociação constante

Existem nesta escola algumas personalidades fortes. Facilitou uma reflexão

sobre o programa. Destaca-se o perigo de promover o treino de provas e exa-

mes e não de trabalhar em função de vontades e propostas de trabalho, como

resposta a exigências de melhorias nos resultados escolares. O recrutamento

forçado de professores de AEC para o Apoio ao Estudo implicou delicadas

negociações. Nessa escola, alguns professores titulares reconheceram na práti-

ca descrita e refletida dos professores de AEC elementos da sua própria práti-

ca. Alguns contribuíram na recolha de informação necessária ao entendimento

do contexto de trabalho. Tinham elementos para demonstrar como a conjuga-

ção do trabalho em tempo curricular e em tempo extracurricular em torno de

projetos desejados pelas crianças promovia resultados interessantes. A infor-

mação disponível ajuda a renegociação necessária em cada mudança, frequen-

te, no corpo docente.

Ganhar com a mudança de equipa

A equipa de professores de AEC disponibilizou-se na escola. Inteirou-se nas

formações, registou em diário de bordo. Testemunhou como a reflexão ajudou

para ensaiar o trabalho transdisciplinar e o trabalho autónomo. Ganhou corpo.

Nesta escola houve um feito estranho. De um ano para outro, a equipa de

professores de AEC se manteve, enquanto todos os professores titulares de

turma mudaram. Uma equipa de professores de trabalho extracurricular recebe

uma equipa de professores para o trabalho curricular. Com as notas de diário

de bordo, a reflexão feita e os ensaios de participação na gestão do trabalho,

foi possível organizar pequenos projetos de trabalho em torno das turmas e

convidar os novos professores titulares para participar. Num contexto de des-

crédito generalizado, as equipas se reorganizam e se documentam. Dois anos

mais tarde, parte dos professores titulares, ensaiam um grupo de formação

centrado sobre a escola e experimentam o diário de bordo profissional.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

48

A caminhada exportada

A equipa da escola produziu informação. Refletiu acerca dos limites da inter-

venção, acerca dos perigos da colaboração e introduz esta reflexão nos mo-

mentos de formação de fim de período. Levou à prática o trabalho diversifica-

da e a interdisciplinaridade e mostrou que as atividades de enriquecimento

curricular podem ser programadas entre professores e alunos, em conjunto. A

equipa deixou instrumentos de planificação e de monitorização que concebeu

na plataforma Moodle, disponível para todos. E… desapareceu da escola:

todos os professores encontraram situações mais estáveis ou mais bem pagas.

Dois anos mais tarde alguns dos membros da equipa cruzam-se ocasionalmen-

te com a equipa de educação ou com outros professores, na mesma platafor-

ma.

Equipa estável, trabalho em projeto, trabalho autónomo

Numa realidade de escola diferente, uma equipa mantém-se estável pelo tercei-

ro ano consecutivo. Um dos membros constata: “Tenho medo mas não quero desis-

tir do trabalho de projeto. É bom pedir trabalho a pares e ver como o fazem.” Podemos

dizer que se trata de uma observação paradigmática numa equipa que se man-

tém estável. A reflexão que começou através da manutenção dos diários de

bordo e que continua, através das notas e dos diários de planificação e de avali-

ação mantidos pelos alunos e os professores em conjunto, possibilitam a parti-

lha constante. Esta partilha, por sua vez, tem possibilitado uma planificação e

gestão de trabalho interdisciplinar.

No início do terceiro ano…

O trabalho dos professores AEC é de difícil reconhecimento. Na maioria das

escolas do universo onde se trabalhou, existem indícios que estes docentes não

são considerados parceiros em pé de igualdade pelos professores titulares de

turma. O número de registos que abordam o reconhecimento é diminuto.

Não impede que as atividades são consideradas de boa qualidade para o que se

refere ao trabalho com os alunos nos momentos pós-curriculares, ainda que,

na maioria das situações, se separe com nitidez o que é trabalho curricular do

que é trabalho de enriquecimento curricular.

Seria abusivo deduzir do trabalho feito no período de AEC efeitos sobre a

capacidade de trabalho escolar das crianças em risco de abandono ou de reten-

ção.

O que se notou é que a ação dos professores de AEC, envolvidos neste pro-

intervir na escola com as pessoas da escola

49

cesso reflexivo, por si só, melhorou a relação das crianças em risco de exclusão

da instituição escolar, com professores e auxiliares.

Entretanto, continuamos a reflexão partilhada permite continuar um olhar

investigativo, também sobre a própria prática pedagógica.

“Acho que eu e C. iniciámos mal o nosso projeto nos 3ºs e 4ºs anos. Contámos a histó-ria da qual vai nascer um livro de cada turma e com a qual seria possível trabalhar com as várias atividades porque podemos trabalhar diferentes temas e adaptá-los. No en-tanto, trouxemos a história logo nas primeiras aulas, quando ainda não tínhamos ado-tado rotinas, nem eles estavam habituados a ter um trabalho tão livre. E apesar dos grupos de trabalho serem escolhidos por eles e o trabalho de cada grupo ser orienta-do por eles, fomos nós que demos as orientações do que se iria fazer, o que significa que a ideia do trabalho não se iniciou com uma ideia deles. […] Em conjunto com as turmas acabámos por decidir que trabalharíamos uma vez por semana no projeto.”

A devolução mensal das reflexões facilitou o olhar investigativo dos professo-

res sobre o seu próprio trabalho e o contexto no qual o realizam. Têm um

confronto direto, animador, que, em três meses, a relação com as crianças e

com o trabalho muda. Para o efeito contribui o facto de a equipa de formado-

res adotar formas de trabalho, que mostraram ser eficazes nos grupos de traba-

lho de autoformação em cooperação do Movimento da Escola Moderna e nos

grupos de partilha da pedagogia institucional.

O conjunto de diários de bordo revela as mudanças do mês de novembro:

(Nov) Tarefas variadas ao encontro das motivações dos alunos, dentro do programa de planeamento mensal condicionadas por regras de comportamento e atitudes, pa-ra com os colegas e para com o próprio material, aula com menor conflito maior em-penho e participação geral da turma.

(Nov) Turma mais participativa, mais dinâmica e interessada. Revelam ainda alguns focos de conflito verbal pontuais.

(Nov) Comportamentos mais tolerantes dos alunos entre eles, mais participativos e demonstrando maior interesse pelas propostas em aula.

(Nov) Turma com maior capacidade funcional, e com autonomia. Competência para trabalhar por áreas, com diferentes objetivos por aula.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Ficha 6: o diário do bordo e o olhar investigativo

O quê? A partilha das reflexões individuais, entre membros da equipa ou num grupo que junta pessoas de várias equipas, permite cruzar olhares internos com olhares externos. Fica claro para todos que se partilha reflexões, produzidas a partir de questões orientadoras, previamente combinadas. Sempre baseado no registo das ocorrências críticas feitas pelos próprios, os nossos mo-mentos de formação transformaram-se em momentos de partilha. Passamos de encontros de formação para a formação de encontros em que pudemos assumir verdadeiramente o papel de mediador. Com uma rotina baseada em reflexão escrita, partilha de prática e leitura de diário do encontro, estavam disponíveis as ferramentas para quem se quiser constituir com outros em comunidade de prática ou de aprendizagem.

Com quem? Com professores de atividades de enriquecimento curricular com alguma prática de regis-to em diário de bordo profissional e com dois formadores experientes na categorização emergente.

Como? A informação mensal, entregue pelos participantes e baseada na reflexão sobre o próprio diário de bordo, é categorizada pelos formadores e organizada por equipa de trabalho. É disponibilizada para todos, eventualmente com comentários ou perguntas, via plataforma Moodle, numa página fechada aos participantes, na qual todos têm privilégio de autor, nas mesmas circunstâncias como os formadores. Solicita-se às equipas de discutir em conjunto, nos momentos de trabalho, previstos no horário para o efeito, a informação assim tratada e selecionar o enfoque, que à equipa lhe parece mais oportuno. Estas discussões podem ser acompanhadas ou não por um dos formadores, a pedido de um membro da equipa ou de um dos formadores, obrigando ao anúncio prévio da sua presença. Os momentos de encontro trans-equipa deixam de ser momentos de formação conduzi-dos pelos formadores e passam a ser momentos de partilha, onde os formadores têm um papel de mediador e facilitador.

Função da avaliação? A avaliação no fim das reuniões de trabalho e no fim dos encontros servem como momen-to de devolução a todos os participantes, permitindo reajustamentos na forma como a informação é escolhida ou tratada, por quem mantem o diário de bordo ou por quem facilita a leitura global através da categorização da informação contida nas reflexões parti-lhadas.

Importante: trata-se de investigação em ação por parte dos professores no decorrer da sua atividade como professor. Aqui não se trata do olhar investigativo do investigador exterior que se documenta a partir do diário de bordo de outros.

intervir na escola com as pessoas da escola

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Entrar na história da profissão com os diários de bordo

O nosso trabalho com professores titulares de turma decorreu principalmente

da nossa atividade como “amigo crítico” em agrupamentos de escolas que se

tinham candidatado ao programa TEIPII, promovido pelo ministério de edu-

cação português.

No âmbito das ações centradas sobre a prática, nomeadamente sobre a dife-

renciação pedagógica, e sempre que um grupo de professores manifestava

interesse, organizamos oficinas de formação baseadas no modelo dos grupos

de autoformação em cooperação que conhecíamos do Movimento da Escola

Moderna.

Da nossa experiência com os professores de atividades de enriquecimento

curricular, mas também da experiência pessoal de formação de adultos em

outros contextos, sabemos como é difícil convencer para a escrita. Como Sér-

gio Niza (2012) o refere, parece paradoxal que professores, cuja missão é de

cultivar a arte da escrita entre os seus alunos, têm eles próprios uma relação tão

difícil com a escrita.

Mais uma vez, sugerimos a manutenção de um diário de bordo profissional,

em torno da condução do projeto curricular de turma, no qual se iria gradual-

mente introduzir elementos relacionados com a diferenciação pedagógica:

trabalho em projeto, trabalho autónomo e a regulação partilhada do trabalho.

Mais uma vez, assegurando que o diário era de uso estritamente pessoal. Expli-

cámos que íamos sugerir, ao longo da oficina, momentos de reflexão por es-

crito, e que para o fazer, o diário de bordo seria a fonte de informação privile-

giada.

Pensar no que escreve, escrever o que pensa

O diário de bordo valoriza a observação da relação entre pessoas e coloca o

sujeito-ator (Tourraine, 1996) no centro dos acontecimentos, como autor. A

nossa proposta nas oficinas que promovemos é de explicitar a autoria, come-

çando pela explicitação da reflexão em torno da sua ação. e por isso a sua

Tornar a reflexão possível, permite a análise do trabalho e a reformulação da

ação. Ou dito de outra forma,

“a escolha […] é uma de questionamento, de projeto de intervenção na vida. Sem pro-jeto, não há questionamento, sem questionamento não pode haver projeto.”

(Paulus, 2006, p. 311).

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Como em todos os processos de formação, baseados no trabalho com diários

de bordo em que se pretende que o diário seja o instrumento formativo do

próprio, também nas formações com os professores titulares de turma, come-

çámos com propostas de anotação de ocorrências na sala de aula focando a

relação pedagógica, ao mesmo tempo que se ia explicando que tipo de propos-

tas de diferenciação de trabalho em sala a formação contemplava. Insistimos,

também aqui, que seja feita uma análise das ocorrências pelo autor do diário,

devolvido ao grupo, através do formador, para discussão. As observações

postas a discussão são do tipo:

Ao analisar o meu diário de bordo, concluo que:

há alunos que são mencionados mais vezes que outros (menciono mais vezes os alunos com maiores dificuldades de aprendizagem e os que apresentam maiores problemas de comportamento);

que os diferentes níveis de aprendizagem existentes dentro da sala, não obstante o esforço em implantar estratégias, dificultam o trabalho;6

que reformulo estratégias de modo a dar uma resposta mais eficaz às dificulda-des/necessidades dos alunos.

Professora 1 Chelas

A partir deste tipo de observações, e recorrendo à plataforma moodle e uma

seleção de páginas de turma que desenvolvem projetos de trabalho, acolhendo

como estratégia a diferenciação pedagógica, discutimos ocorrências referidas e

propomos aos professores introduzir elementos de mudança na rotina diária

da turma e continuar a registar ocorrências. Algumas das aprendizagens podem

ser muito significativas, dando origem a uma explicitação de um momento

crítico, como neste caso:

Por outro lado, fiz nestes dias, uma descoberta muito importante, e considero que foi mesmo uma descoberta. Na sala de aula da minha turma, temos vários cartazes ex-postos: letras, listas de palavras, conjuntos de números, entre outros. Ora, um destes dias, estávamos a fazer uma ficha de trabalho no manual de matemática e vários alu-nos andavam em pé. Outros estavam a fazer um exercício de Língua Portuguesa e também andavam em pé pela sala. Obviamente que perante este cenário na sala de aula, intervim com o objetivo de terminar com aquela situação. Mas conforme ia fa-lando e olhando para eles, ia baixando a voz e abandonando o registo de professora zangada. Percebi que eles andavam em pé porque estavam a pesquisar e consultar nos cartazes expostos. Nessa altura passou-me a seguinte frase na cabeça: “O que é que estás a fazer? A sala não está em sossego? Não. Mas eles estão empenhados na sua aprendizagem” Esta foi a maior aprendizagem que fiz esta semana. O que para mim pode ser a melhor forma de aprender, não é definitivamente para aquelas crianças.

Professora 2 chelas

6 Negrito no original.

intervir na escola com as pessoas da escola

53

Numa primeira fase, existe um certo deslumbramento com a capacidade que as

crianças têm para se organizar. Mas esta capacidade organizativa que escapa ao

professor, também provoca algum desconforto. Não é raro que aparecem nos

diários de bordo, observações que revelem alguma inquietação:

Na sequência do que escrevi na minha última reflexão, dando mais liberdade às buscas e procuras de respostas dos alunos, é certo que tenho notado mais autonomia por parte das crianças. […] No entanto, nestas últimas duas semanas, acabei por verificar que registei mais vezes, mais casos de indisciplina dentro da sala de aula e claramente, esta situação preocupa-me. Como gerir?

Professora 2 chelas

Como refere Remi Hess (1975), professores que trabalham com crianças pe-

quenas não gostam de confusões. Há várias maneiras para a evitar, e a maneira

clássica passa pela disciplinarização, às vezes de modo coercivo. Uma outra

maneira para ultrapassar o que o Fernand Oury chamava “a fase do tumulto”

passa pela regulação das atividades, criando instrumentos que colocam as cri-

anças numa situação de cogestão, relacionado a organização das rotinas da sala.

Na formação, a partir desta preocupação revelada, são discutidos meios de

trabalho e formas organizacionais, e no fim do 2º período daquele ano letivo, a

mesma professora escreve:

Nas últimas semanas sinto que a turma tem estado mais autónoma. Agora, já é possí-vel eu dar mais indicações de tarefas seguidas porque conseguem terminar uma e passar à seguinte. Também sinto que é possível, deste modo, ouvir individualmente a leitura dos alunos. Sinto, por outro lado que, as diferenças nos níveis de trabalho e aprendizagem come-çam cada vez mais a acentuar-se. Como colocar as crianças a trabalhar em três ou quatro grupos distintos, quando se trata de um primeiro ano e sou constantemente solicitada para ajuda nas tarefas?

Professora 2 chelas

De certa forma, a formação acompanha as reflexões das pessoas envolvidas.

De forma implícita primeiro, mas rapidamente explícita, as sessões de trabalho

acompanham as interrogações que são colocadas, mostrando em cada momen-

to as alternativas possíveis.

Na formação que procura apoiar pessoas para se tornarem sujeito ator, e para

desenvolverem posturas em que os seus formandos também sejam atores e

autores do seu processo de aprendizagem, a escuta é importante. Ela é mais

eficaz, para ambas as partes, se ela passa por registos escritos e partilhadas, por

obrigar a maior explicitação. Ao mesmo tempo liberta o medo pela escrita,

porque ela ganha sentido para quem escreve. A aprendizagem faz-se pela refle-

xão e a partilha ganha significado. Quem escreve, e reflete sobre o que escreve,

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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ganha capacidade para focar o problema que lhe ocupa a mente. Deixa de ver a

formação como um jogo de pergunta-resposta e passa a ter uma abordagem

mais investigativa, procurando o que poderá funcionar, no seu contexto.

“Não consigo explicitar onde começam e acabam as influências da formação, mas considero que a mesma foi bastante inspiradora. Permitiu-me o acesso a diversos ma-teriais e exemplos de práticas diversificadas através do Moodle e página pessoal, inspi-ração para futuras (e presentes) estratégias e metodologias de trabalho de projeto a desenvolver, entre outras.”

Professora, Rio de Mouro

A manutenção dum diário de bordo profissional e a produção de pequenas

reflexões a partir dele, é, ao mesmo tempo, mobilizador para a implementação

de comunidades de prática ou de aprendizagem. Como formadores, temos

insistido, nestes anos de trabalho com professores de 1º ciclo, de partilhar as

suas reflexões com os outros, e de exemplificar o seu trabalho que dá origem a

estas reflexões. A facilidade com a qual hoje em dia é possível guardar conteú-

dos e disponibilizá-los a outros, permite uma rápida reutilização das mesmas.

Os materiais de apoio à escrita (listas de palavras, prontuário de parede, dicionário ilustrado) tornaram-se uma estratégia a manter, pois surtiram resultados muito positi-vos. Penso também realizar algum tipo de trabalho de projeto com estes alunos. Antes da formação, por ser um nível de ensino de que não tenho muita experiência, não sa-bia como implementar certas metodologias, ao ver exemplos de várias fontes, ajudou a conseguir operacionalizá-las.

Professora, Rio de Mouro

A formação serve então também para convidar colegas de profissão em dispo-

nibilizar soluções encontradas em determinados contextos, a outros, para

serem adaptados a novos contextos. Provocam-se adaptações metodológicas,

possíveis, desde que são ouvidos os aprendentes e desde que o professor as-

sume o seu papel de facilitador da inteligibilidade do currículo para as crianças

com quem trabalha junto com a sua condição de aprendente, como pessoa em

interação constante com outras pessoas.

De maneira isomórfica, o formador ocupa a mesma posição num grupo de

formação de adultos, convidados a manterem um diário de bordo e a produzi-

rem reflexões escritas. Não se trata de deixar brotar a sabedoria de forma es-

pontânea. Trata-se de escutar e acompanhar atentamente quem se coloca na

situação e formando aprendente, sendo ele próprio formador aprendente.

Uma das professoras, que esteve num grupo de trabalho com uma das nossas

formadoras resume desta forma a experiência de aprendizagem:

intervir na escola com as pessoas da escola

55

As sessões presenciais que, ao longo do ano, se realizaram, tornaram-se muito úteis, porque:

foram apresentados documentos que serviram de exemplo para que, cada uma de nós pudesse aplicá-los e foram essencialmente práticos, apresentados em si-tuações concretas;

todas as sessões partiram das nossas dúvidas, da nossa prática, do nosso “ques-tionar”, o que foi ótimo. Assim, todas nos sentimos integradas numa mesma rea-lidade e ponderamos, em conjunto, as situações que, afinal, eram de todas; […]

as sessões foram um marco importante para uma melhoria da nossa prática.

as leituras que nos foram aconselhadas, foram esclarecedoras, enriquecendo, cada uma de nós, com novas ideias e conceitos.

Professora, Tapada das Mercês

Procuramos colocar as pessoas em situação de reflexão escrita, facilitando

assim a interação refletida e possibilitando a formação de grupos de trabalho

que fomentam a autoformação em cooperação.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Ficha 7: a reflexão escrita e a autoformação em cooperação

O quê? Uma oficina de formação para professores titulares de turma ou com responsabilidade para um projeto (oficina, grupo disciplinar, projeto, etc) que promove a reflexão em torno do papel do professor quando a relação pedagógica proposta tende para um trabalho com sujeitos-atores em vez de sujeitos-objeto. O diário de bordo profissional é um instrumento não invasivo que permite formandos e formador, aprendentes com pontos de partida dife-rentes, fazer evoluir o grupo de formação para um grupo de pessoas com um projeto de autoformação em cooperação, deixando cada um evoluir no próprio patamar de segurança.

Com quem? Com professores de escolas com um projeto educativo de turma e, eventualmente em si-multâneo, um projeto educativo de escola que aborda a diferenciação pedagógica, o traba-lho em projeto, a cogestão de atividades por parte dos alunos, ou outra proposta que sirva de âncora para uma reflexão com consequências práticas na organização da sala de aula. Com formadores experientes que mantêm eles próprios um diário de bordo em relação aos grupos que acompanham.

Como? Depois de se pôr de acordo sobre o currículo que será desenvolvido pelo grupo de forma-ção, explica-se a metodologia de trabalho, baseada na escrita de diários de bordo. Os professores com os quais trabalhamos têm um compromisso formal em relação à oficina que frequentam. Quando se trata de uma oficina certificada, o trabalho entre sessões pre-senciais implica a manutenção do diário e a reflexão escrita à partir dele. Quando se trata de grupos mais informações de formação, existe um compromisso de grupo, em que todos se obrigam a produzir as reflexões que servirão de base para o trabalho de grupo. As sessões de trabalho presenciais são concebidas de modo que, em cada sessão, seja discu-tido uma reflexão, ou um conjunto delas, apresentada pelo próprio no primeiro caso, apre-sentada pelo formador no segundo caso. Em ambos os casos, o formador organiza o debate e introduz textos ou referências a outras práticas, convidando desde logo à observação e partilha.

O que avaliámos? Fundamentalmente avalia-se a capacidade do grupo para se constituir comunidade de práti-ca – e eventualmente comunidade de aprendizagem – baseando-se nas reflexões, e nas amostras de prática, partilhadas entre todos. Para o fazer, o grupo apoia-se em alguns ins-trumentos de monitorização que facilitam a produção de um balanço de cada sessão e uma programação da próxima.

Importante: a autoformação ganha eficácia e evita raciocínios circulares quando ela ocorre em cooperação. Esta cooperação é de cada um dos participantes, também do formador. Não significa que o formador controla o processo, mas significa que ele faz parte do processo, como os demais participantes.

intervir na escola com as pessoas da escola

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A prática escrita e partilhada

Desde 2008 promovemos grupos de formação e autoformação que têm, como

elemento em comum, a manutenção de um diário de bordo por parte dos

membros destes grupos. Incentiva-se para que a reflexão escrita se possa trans-

formar num escrito, normalmente sob forma de artigo, para ser partilhado

com outros professores de outros grupos, através de meios de divulgação de

fácil acesso7. Da mesma forma incentiva-se a leitura de outros e a consulta da

plataforma de partilha.

Os textos aqui inseridos foram tomando forma ao longo do ano letivo ao qual

referem. O grupo de formação serve de plataforma de apoio, onde cada um

vai introduzindo as suas reflexões e as suas ideias para a produção escrita. O

processo termina com a publicação do escrito. Em várias ocasiões professores

voltaram a se constituir em grupo para produzir novo escrito com a dupla

função de estimular a autoformação, em cooperação por um lado e de divulgar

práticas promissoras, por outro.

Reforçar o trabalho autónomo

Este descritivo surge no seguimento da ação de formação frequentada no âmbito do Projeto Curricular de Turma, orientada e dinamizada pelo professor Pascal Paulus.

Ao longo deste texto, destacarei os aspetos mais significativos desta formação e sobre-tudo, a influência que a mesma teve no desenvolvimento da minha prática docente.

Desde que soube da existência desta formação e da possibilidade de frequência da mesma, mostrei interesse e disponibilidade para frequentá-la, visto o tema “Projeto Curricular de Turma” me agradar sobremaneira e ir ao encontro de “conceitos” que ansiava explorar, como por exemplo, “Trabalho Autónomo”, “Projetos”, “Diário e As-sembleia de Turma…”. Todos estes temas me despertavam curiosidade e precisava de algo para puder integrá-los definitivamente meus Projetos Curriculares de Turma (PCT), o atual e os futuros. Precisava de uma “bagagem” que me permitisse uma maior segurança para o implemento dos mesmos.

Perante isto, esta formação surgiu como ideal a frequentar e, um recurso óptimo para diminuir as minhas inseguranças/dúvidas, sempre com a finalidade maior de gerar maior sucesso nas aprendizagens dos meus alunos.

No desenvolvimento e conclusão deste descritivo, penso que será notório e fácil de descortinar a decisão “feliz” que foi, inscrever-me nesta ação e sobretudo frequentá-la, apesar de, como em tudo na vida, alguns avanços e recuos, certezas e dúvidas com que me fui deparando.

7 O livro eletrónico Trabalho escolar com sentido apoiado e disponibilizado pelo programa

K’CIDADE é disso um exemplo. O sítio Aprendizagens escritas em parceria, é outra forma para

fazer circular a informação.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Desenvolvimento da ação

Como já anteriormente referi, quando me inscrevi para frequentar esta acção de for-mação vinha com a intenção de:

Encontrar ajuda para implementar o Diário de Turma e a Assembleia de Turma, como instrumentos de avaliação/regulação do trabalho de sala de aula;

Perceber verdadeiramente o significado de “Estudo Autónomo” ou “Trabalho Autó-nomo”, como se preferir, e, se possível, adotá-lo na minha sala de aula;

Perceber a importância da organização da sala de aula, no incremento e desenvolvi-mento de aprendizagens nos meus alunos.

Estes meus “projetos” surgem na sequência das problemáticas existentes na turma que atualmente leciono, nomeadamente:

Problemas comportamentais;

Necessidade de criar uma maior autonomia nos alunos do 4ºano de escolaridade, tendo em vista a possibilidade proporcionar maior apoio aos alunos do 3ºano de esco-laridade e, àqueles que apresentavam maiores dificuldades de aprendizagem.

Assim, vi nesta ação e principalmente no seu formador, uma ajuda ideal para lidar com estas situações, visto ter-me revisto em muitas das coisas ditas pelo formador (Pascal Paulus), numa palestra realizada no ano letivo anterior, no âmbito das escolas de in-tervenção prioritária (TEIP).

A primeira orientação dada pelo formador foi realizar um “Diário de Bordo” de registo das principais ocorrências do grupo/turma, para funcionar como elemento facilitador para as medidas a adotar.

Desta forma, fui observando, registando e comprovando as lacunas que a minha tur-ma apresentava. Os alunos eram bastante conversadores, recorriam frequentemente às queixinhas e uma parte dos alunos demonstrava mesmo pouca vontade pelas ativi-dades desenvolvidas. Percecionei claramente no meu “Diário de Bordo”, que não dava o devido acompanhamento ao grupo de 3ºano de escolaridade, visto que o grande grupo (4ºano), não me dava margem de manobra para isso. Logo aí percebi que era urgente introduzir o Diário de Turma e a Assembleia de Turma, para regular os com-portamentos e as atitudes e o “Trabalho Autónomo”, para me dar a disponibilidade su-ficiente para fazer o acompanhamento dos alunos com maiores dificuldades.

Antes disto, criei para todos os alunos uma conta de correio eletrónico, para que pu-dessem autonomamente assimilar os conteúdos trabalhados, porque se percebia que alguns não estavam bem assimilados.

No dia 9 de Novembro e após um diálogo com o grupo/turma sobre a temática, im-plementei o Diário de Turma e Assembleia de Turma e tentei explicar aos alunos os objetivos dos mesmos, como instrumentos regularizadores da “vida” da turma.

intervir na escola com as pessoas da escola

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Imagem 1 – Diário de Turma

Imagem 2 – Assembleia de Turma

No dia seguinte, qual não é o meu espanto (ou não) que verifico que o “Diário” está repleto! Ou significava que os alunos não tinham percebido os objetivos do mesmo, ou então as coisas estavam bem piores do que eu estava à espera. Neste mesmo dia, um aluno apresentou um comportamento muito incorreto perante o professor, que teria de ser inevitavelmente discutido em Assembleia de Turma.

Chegados a esse dia, os alunos estavam excitadíssimos, questionando frequentemente se iríamos fazer a mesma. Assim, nesta 1ª “Assembleia de Turma”, discutiu-se o que era verdadeiramente relevante para ser colocado no “Diário de Turma”, em contrapon-to com aquelas situações que não seriam tão significantes e que poderiamos optar por resolver doutra maneira. As minhas dúvidas ficaram dissipadas; os alunos não tinham percebido a lógica do “Diário de Turma”, mas após o final da mesma, fiquei com relati-va certeza que desta vez tinham compreendido. Claro que os alunos não se esquece-ram que teríamos de debater a situação grave que tinha ocorrido durante a semana com um aluno, ficando decidido que a ocorrência teria de ser comunicada ao encarre-gado de educação do aluno, sendo esta uma decisão unânime.

Após a introdução destes instrumentos de regulação, notei claramente uma acalmia na turma, com menos “queixinhas”, que me deixaram desenvolver as aprendizagens pretendidas de uma forma mais eficaz. Claro que tive consciência que apesar disto, iri-am existir avanços e recuos frequentes que teria de saber gerir da melhor maneira possível.

O “Diário de Bordo” continuou a ser um instrumento muito fiável para percecionar o ritmo de aprendizagem da turma, para que, no final de cada semana, pudesse fazer um levantamento das principais dificuldades da turma e também para “matérias” que poderiam ser motivo de discussão em sede de Assembleia de Turma.

Assim, chegados a mais uma “Assembleia de Turma”, o “Diário” encontrava-se menos preenchido, mas com mais conteúdo. Começou a haver uma troca de dúvidas e ideias mais consistente, principalmente ao nível das atitudes e dos conflitos existentes. As decisões são sempre tomadas de forma conjunta, havendo uma responsabilização mú-tua que todos deveriam cumprir. Nesta assembleia os alunos manifestaram satisfação por algumas atividades em sala de aula, o que me deu mais alento no desenvolver do meu trabalho.

Relativamente ao “Trabalho Autónomo”, nesta altura tentava que os alunos de 4ºano

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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de escolaridade, quando findo o seu trabalho, se ocupassem autonomamente a de-senvolver atividades onde sentiam maiores dificuldades. É nesta altura que começo a pensar num tempo específico para este tempo.

A turma respondeu bem à introdução destas “novidades”, contudo, as sessões de for-mação com o Pascal seriam essenciais para deteção de algum erro e “limar” de algu-mas arestas.

Entretanto, chegou-se a Dezembro e ao respetivo período avaliativo e é notava-se cla-ramente melhorias significativas com a implementação das medidas atrás referidas, principalmente ao nível das atitudes, onde as situações que foram aparecendo se re-solveram com maior rapidez e naturalidade. Esta situação era bem visível no facto do professor não ser constantemente incomodado com as “queixinhas”, “libertando-se” para a sua verdadeira função que é ensinar.

Nas Assembleias de Turma, por esta altura, debateram-se atividades desenvolvidas e propuseram-se outras a realizar. No entanto, esta é uma situação em que os alunos ainda não se sentem muito à vontade e a coluna do “Proponho” no Diário de Turma, ainda aparece pouco preenchida.

No que concerne ao Trabalho Autónomo, ainda se encontra numa fase muito precoce, como em conversas nas sessões de formação fui dando a conhecer ao formador. Nesta altura, esperava ganhar segurança para puder dar esse “passo”, não comprometendo a aprendizagem dos alunos.

Regressados da interrupção letiva e de volta à atividade letiva com os meus alunos, às vezes, nesta fase, sou invadido muitas vezes por sentimentos de desilusão, visto que os progressos que pensava ter conseguido, parecem “esfumar-se”. Os alunos voltam a demonstrar comportamentos desviantes que perturbam o normal funcionamento das aulas.

Apesar disto, o Diário de Turma regista poucas ocorrências (parecendo que se esque-cem da existência do mesmo), mas relaciono esta situação com o absentismo do aluno D. que costuma ser um dos principais visados. Durante o mês de Janeiro, por motivos de saúde, faltou às aulas.

Nas Assembleias de Turma realizadas neste espaço de tempo os alunos chegaram a uma conclusão que não queria que chegassem….o Diário de Turma está pouco preen-chido devido à ausência do aluno acima referido. Não queria que o fizessem porque assim a problemática com este aluno acentuar-se-ia e apesar de o mesmo ser proble-mático, não é com toda a certeza o único responsável pelas ocorrências menos positi-vas que vão acontecendo.

Na verdade, com o regresso do aluno D. o Diário de Turma voltou a encher-se de “queixinhas”. Comecei a aperceber-me que isto acontece muitas vezes só para “picar” o aluno em questão e convoquei uma Assembleia de Turma extraordinária para falar sobre esta situação. Nesta Assembleia, marquei uma posição firme e inflexível sobre as verdadeiras finalidades do Diário e Assembleia de Turma, e não admitiria mentiras ou uso impróprio do Diário de Turma.

A nível de aprendizagens começo a preparar os alunos para as provas de aferição e as dificuldades que vão demonstrando, são as normais para a altura.

intervir na escola com as pessoas da escola

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Os alunos já desenvolvem algumas atividades ao nível do Trabalho Autónomo (canti-nho da leitura, cantinho da matemática, cantinho das expressões…), apesar de ainda não ter implementado à data um tempo próprio para o mesmo, sendo que pensava nesta altura até ao final do 2º período letivo dar esse “passo”. Preciso de tempo e se-gurança para tomar essa decisão.

Estamos a meio do 2º período letivo e a turma continua a ter dificuldades ao nível dos comportamentos e atitudes, mas o Diário de Turma e Assembleia de Turma têm sido instrumentos de grande auxílio na regulação destes comportamentos. Começam a sair da Assembleia propostas reveladoras de alguns avanços ao nível da Formação Cívica e um exemplo disto é uma proposta de um grupo de alunos que propôs a criação de uma “equipa do ambiente” para limpar o lixo da escola. A aquisição de uma consciên-cia cívica e das competências a ela associadas é uma realidade.

É nesta altura que ocorre uma transformação ao nível da organização da sala de aula. As mesas começaram a estar dispostas em grupos de 4/5 alunos, que ajudaram a criar uma dinâmica de trabalho mais positiva, em que os alunos não se dispersam tanto e têm diminuído os seus défices de atenção/concentração.

Os alunos revelam uma cada vez maior autonomia na realização das suas atividades escolares e, sem dúvida, que é aqui que percebo que posso avançar para o implemen-to de uma hora específica para o trabalho autónomo. Os alunos terão a possibilidade de demonstrar a aquisição e desenvolvimento de algumas competências relacionadas com a apetência para trabalhar autonomamente.

Assim e com o constante apoio do formador Pascal tomei finalmente a decisão de es-tabelecer uma hora semanal para o Trabalho Autónomo. Com todos os meus receios e inseguranças a diminuírem senti que poderia finalmente por em prática, os “ensina-mentos” que as diversas sessões da ação de formação me facultaram.

Imagem 3- “Cantinho” da leitura

Imagem 4 - Ficheiros

5. “Fábrica” de histórias

Os comportamentos desviantes da turma são cada vez menores e isso também facili-tou esta minha tarefa, porque estava perfeitamente convencido que o “passo” que es-tava a dar me iria dar um feedback muito positivo do trabalho desenvolvido, quer nas sessões de formação, mas principalmente no trabalho com os meus alunos em sala de aula.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Imagem 6 – Trabalho autónomo

Imagem 7 – Trabalho autónomo

Imagem 8 – Trabalho autónomo

Imagem 9 – Trabalho autónomo

É nesta altura que recebemos o Pascal na nossa sala de aula, isto depois de um deline-ar de estratégias com o mesmo, para me certificar se o que estava a fazer estava certo e sobretudo para recolher do Pascal, orientações e propostas que certamente me iri-am ajudar a implementar mais esta forma de regular o trabalho da minha turma.

Chegado o dia e após conversa com os alunos sobre a “visita” que iríamos ter, os alu-nos mostraram-se extremamente excitados com a situação e muito compenetrados no desenvolvimento das atividades. Pena é que neste dia, devido ao facto de me ter des-locado à escola sede, no âmbito duma inspeção escolar, não ter podido estar presente a totalidade do tempo com a turma. Mas, com o feedback que recebi do Pascal no Di-ário de Turma e em conversa informal e também por todo o trabalho desenvolvido até à data, acredito que tudo correu dentro da normalidade e que os alunos assimilaram os verdadeiros propósitos do Trabalho Autónomo, como regulador das aprendizagens da turma em geral e de cada aluno em particular.

A partir deste dia, esta prática (trabalho autónomo) começou a ser uma forma de tra-balho frequente na sala de aula, bem superior à “meta” que me tinha proposto, que era uma hora semanal. E o que agradou sobremaneira, foi a forma como os alunos se “embutiram” neste espírito de trabalho, mostrando competência e sentido de respon-sabilidade no realizar do mesmo.

Conclusão

Chegados a esta fase deste descritivo não há muito a dizer, à exceção de um pequeno balanço, que servirá como avaliação de todo este processo.

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Assim, aquando da elaboração do Projeto Curricular de Turma e como já acima referi, já previa no mesmo a promoção da autonomia e responsabilização dos meus alunos. Desta forma, todos os aspetos vivenciados ao longo desta formação, foram trabalha-dos em sala de aula com a mais rica da “matéria - prima”, os meus alunos, que são os pilares que suportam toda a estrutura da minha atividade profissional.

No seguimento do que disse acima, o balanço que posso fazer desta formação e, so-bretudo da mais-valia que trouxe ao meu PCT, só pode ser considerado extremamente positivo e enriquecedor, tanto a nível profissional, mas também pessoal. Todas as ses-sões de formação e todo o trabalho em sala de aula, melhoraram significativamente a minha prática pedagógica e por consequência o percurso escolar dos meus alunos.

Todas as ilações que descrevo são realizadas em consciência e não pelo facto de ter de apresentar este relatório. Para mim os papéis valem o que valem e, o que escrevo, re-sulta de tudo aquilo que vivenciei durante todo este processo e que certamente resul-taram numa melhoria concreta e efetiva da minha atividade profissional.

Assim, considero que esta formação atingiu grande parte dos desígnios a que me pro-pus quando resolvi frequentá-la. Sinto-me agora com a “bagagem” necessária, a que várias vezes aludi durante este descritivo, para introduzir e desenvolver novas, e “qui-çá”, melhores formas de trabalho.

Tenho plena consciência que este foi só mais um pequeno passo, na minha ainda curta experiência profissional. Contudo, todas as ações (como esta) que despertem em mim curiosidade e que perspetivem acrescentar qualidade ao meu ensino, serão conside-radas por mim como excelentes para frequentar.

Artur Ferreira

Muitas das escolas com as quais temos trabalhado têm procurado ativamente

soluções a diferenciação, devido ao número elevado de línguas que nela se

falam e do número elevado de culturas que se cruzam. O texto que segue é um

dos 15 que foram produzidos por um grupo de professores do mesmo agru-

pamento, a partir de uma oficina que foi especificamente concebida para con-

tinuar a reflexão acerca da prática começada dois anos antes, com o compro-

misso firme de traduzir a reflexão num texto publicável.

O sentido como caminho de aprendizagem: uma situação

Antes de mais, importa conhecer o contexto pedagógico em que se insere o caso que se vai relatar. O contexto em apreço é o da Oficina de Português Língua Não Materna (OPLNM), parte integrante do Agrupamento Vertical de Escolas de Vialonga.

A OPLNM existe desde 2006 e visa integrar os alunos que chegam às escolas do Agru-pamento, e que não têm o Português como Língua Materna. Procura-se, neste espaço, que se poderá designar de “espaço cultural intermédio”, dotar os alunos de compe-tências linguísticas, mas também de competências ligadas à socialização no meio esco-lar e, por esta via, à comunidade envolvente.

Entre os 116 alunos, de treze nacionalidades, a frequentar a OPLNM, no ano letivo de 2010-2011, está o Fernando, de nacionalidade espanhola, do 3º ano. O aluno, de nove

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anos, iniciou a escolaridade em Espanha e chegou ao Agrupamento no ano letivo pas-sado. É um aluno que revela dificuldades de aprendizagem, sobretudo ao nível da compreensão e da produção escritas, que tem baixos índices de concentração e que se distrai frequentemente, arrastando consigo os colegas. E é um aluno muito insegu-ro quando realiza as tarefas escolares. Isso é bem visível na interação que se desenha entre o referido aluno e um outro que também se encontra a receber este apoio, o Andrei. Num dos apoios, o aluno teve este desabafo desconcertante: “Gostava de ser como o Andrei”. De salientar que o aluno em questão interage perfeitamente em Por-tuguês, dando provas do seu bilinguismo, como muitos outros alunos do Agrupamen-to.

É este, traços gerais, um dos casos que configura uma situação que vai mais além da questão linguística, com implicações igualmente ao nível das relações socioeducativas, e que exigem uma resposta pedagógica específica.

Ora, trabalhando a OPLNM com pedagogias diferenciadas, analisou-se a utilidade des-tas para o caso em questão. Vale a pena, pois, referir as duas vertentes em que se en-contra estruturado o trabalho da OPLNM: O Trabalho Autónomo (TA) e o Trabalho de Projecto (TP).

No TA, pretende-se que o aluno desenvolva autonomamente a sua aprendizagem, que se responsabilize pela mesma. Assim, há um conjunto de ficheiros que o aluno tem à disposição, e dos quais escolhe a atividade que quer realizar. Existem ficheiros de Lei-tura, de Oralidade, de Escrita, de Gramática e de Ortografia.

O TP consiste, como o nome indica, na realização de um projeto sobre um tema que o aluno escolhe, de acordo com os seus gostos e interesses pessoais ou com a matéria de uma das disciplinas que frequenta. Pode, ainda, surgir na sequência de uma ativi-dade do TA (por exemplo, no Ficheiro de Escrita, a partir de um questionário, para exercitar a compreensão leitora, sobre um animal ameaçado de extinção, pode nascer um TP sobre animais em vias de extinção). Pretende-se com o TP, antes de mais, que o aluno entre em interação verbal, de forma a melhorar a sua expressão em Língua Por-tuguesa. Para além, claro, de se procurar melhorar também a sua expressão escrita. O TP assenta sempre na ideia de que tem de haver um produto final que deve ser co-municado inter-pares (um cartaz, um apresentação em Power-Point, etc.).

Tanto o TA como o TP integram o portefólio individual do aluno. É no portefólio que estão os instrumentos orientadores do trabalho – as grelhas com os descritores de de-sempenho, as grelhas do TP e do TA, as grelhas de registo do trabalho realizado em cada sessão e as grelhas de auto-avaliação. Todos estes instrumentos pedagógicos constituem o Plano Individual de Trabalho (PIT) do aluno. No caso do 1º Ciclo, só se utiliza a grelha relativa ao TA, na qual o aluno vai registando, aula a aula, o que vai rea-lizando (ver em Anexo uma grelha de TA do Fernando). É importante, no entanto, também haver uma grelha para o TP, à semelhança do que existe para os 2º e 3º ci-clos, por forma a definir com precisão os contornos do projeto, as etapas do mesmo, os momentos de auto-avaliação, etc. Outros colegas da OPLNM também sentiram, no decurso deste ano, esta necessidade de maior operacionalização do TP ao nível do 1º Ciclo, pelo que se irá trabalhar para criar brevemente este instrumento.

A avaliação, na OPLNM, inicia-se após a definição do perfil sociolinguístico do aluno. Este trabalho permite identificar quais são as línguas que o aluno domina e o contexto

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da sua utilização (casa, amigos, escola…). É-lhe aplicado, a seguir, um teste diagnósti-co, para definição do nível de proficiência linguística, e podem ser aplicados ao longo do percurso na OPLNM testes de nível, sempre que o professor entenda que o aluno atingiu um determinado nível de proficiência.

Voltando ao caso do aluno inicialmente apresentado, o Fernando, agora que se deu uma ideia geral do trabalho que a OPLNM realiza, foi necessário encontrar estratégias para pôr o aluno a realizar as atividades da OPLNM e que, indiretamente, induzissem melhorias no seu comportamento e atitude face ao trabalho escolar. O trabalho inter-pares foi a estratégia encontrada. A apresentação do TP à turma seria o culminar des-se trabalho, procurando-se, por esta via, aumentar a autoestima do aluno, aspeto fun-damental a ser trabalhado, por ser condicionador dos demais.

Assim, depois de uma negociação com os dois alunos, no sentido de trabalharem em conjunto, conseguiu-se que ambos trabalhassem o mesmo tema, “Os animais”. Diga-se que esta negociação não foi fácil, uma vez que o Andrei se recusou inicialmente a trabalhar em grupo. A mediação passou, antes de mais, por tentar perceber quais dos temas tratados na sala de aula eram mais apelativos para os dois e encontrar um tema do interesse de ambos. Depois de se encontrar o tema, procurou-se uma solução in-termédia, que ao mesmo tempo aproximou o Andrei do Fernando e que deixou para o Andrei um espaço de autonomia que o mesmo reclamava: ambos trabalhariam o mesmo tema, mas cada um escolheria um animal diferente. O que é certo é que, ain-da assim, o facto de trabalhar o mesmo tema já representou para o Fernando uma motivação acrescida, uma espécie de ‘alavanca’ para a aprendizagem. A apresentação do referido TP aos alunos da EB1 do Cabo, no âmbito da Semana da Língua Materna, com efeito, revelou-se para ambos, mas sobretudo para o Fernando, um motivo de orgulho e contentamento. O trabalho interpares foi fundamental, não só para traba-lhar competências sociais (que o Andrei também necessita, por ser pouco dado a tra-balhar desta forma), como para fazer aumentar os níveis de autoconfiança e de moti-vação em relação às tarefas escolares. Houve mesmo momentos de interajuda, como aqueles em que o Andrei, muito talentoso no desenho, ajudou o Fernando, ou em que o Andrei e o Fernando realizaram atividades conjuntas - como, por exemplo, na reali-zação de “Ditados Visuais”, atividade que consistiu na substituição, em várias frases, da imagem pela palavra correspondente, e em que foi negociado que cada um fizesse um desenho e escrevesse uma frase.

Outro TP surgiu já, na sequência do primeiro. O tema foi “ Animais Sagrados no Antigo Egipto”. Também aqui houve um grande entusiasmo de ambos, sobretudo motivado pelas figuras fantásticas dos deuses egípcios, muito do seu agrado. A apresentação deste e do primeiro TP à turma foi um momento muito importante. Em primeiro lugar, na afirmação do Fernando em relação à turma, pois pôde “brilhar” em frente aos co-legas. A reação destes foi muita positiva, tendo-se inclusive disponibilizado para afixar, num dos placards da sala, os trabalhos apresentados. Tanto o Fernando como o Andrei também mostraram muita satisfação por verem os seus trabalhos publicados no Blo-gue da Oficina8, percebendo-se que se sentem valorizados com essa publicação. De-pois, parece-me que momentos como este podem constituir um “apport” para a re-presentação que o aluno manifesta em relação às tarefas escolares e, assim, dar mais sentido às aprendizagens, fator essencial de sucesso. A construção do sentido das

8 http://escolab1-n2-ol.blogspot.com/

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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aprendizagens é, sem dúvida, essencial para o Fernando, mas também para o Andrei – no fundo, para todos os alunos.

Foi iniciado, já a terminar o ano letivo, um terceiro TP, alusivo ao “Espaço”, temática que está a ser abordada em Estudo do Meio, e pela qual os dois alunos da OPLNM manifestaram vontade de desenvolver trabalho. A mesma estratégia de trabalhar um tema comum, mas com cada aluno a tratar subtemas, foi seguida. A atividade de mo-tivação, chamemos-lhe assim, consistiu em construir, a partir de uma imagem de uma nave espacial, uma notícia de uma invasão extraterrestre. O Andrei, muito habilidoso no desenho, resolveu representar a invasão, partindo depois para a construção do tex-to da notícia. Esta constituiu uma oportunidade para introduzir, de forma lúdica, al-guns dos elementos da notícia. O Fernando aproveitou o embalo do colega para reali-zar o mesmo trabalho. Houve alguma resistência na parte do aperfeiçoamento do tex-to, mas a tarefa foi concluída com sucesso. O TP consiste em fazer marcadores de li-vros, com informação sobre a temática em estudo. O Andrei, depois de fazer uma pesquisa num dos livros da biblioteca, realizou o primeiro marcador sobre a nave es-pacial, os seus constituintes e o fim das suas missões. O Fernando terminou o seu marcador sobre o astro-rei: o Sol. Os marcadores foram oferecidos depois aos colegas da turma.

Na outra vertente do trabalho da OPLNM – o Trabalho Autónomo –, foram sentidas as mesmas dificuldades que se sentiram na implementação do TP. Aliás, autonomia é al-go de que o Fernando pouco goza. As atividades mais bem-sucedidas foram também aquelas realizadas com o colega de Oficina, como a dos “Ditados Visuais”, que se refe-riu anteriormente. As atividades realizadas individualmente, embora selecionadas pelo Fernando, foram bem mais difíceis de concretizar por parte deste último. Ao contrário do TP, o TA não assenta na ideia de comunicação do produto final, podendo, no entan-to, ser publicado no Blogue da Oficina, o que constitui para muitos alunos – como o foi para o Fernando – um fator de motivação importante.

Ainda nesta vertente, e na sequência da remodelação da página MOODLE da OPLNM, que está estruturada de forma a apoiar o trabalho da Oficina (contém recursos, na área do Português Língua Não Materna, que permitem aos alunos trabalhar as várias competências linguísticas), foram realizadas por aqueles alunos algumas das ativida-des disponíveis na plataforma. A adesão às mesmas foi entusiástica, sobretudo na par-te respeitante aos jogos de língua (Jogo da Glória, Jogo da Forca, etc.), constituindo-se, assim, esta ferramenta como parte ativa do trabalho do TA, e que se está a revelar também um sucesso com alunos de outros ciclos.

É altura, pois, de concluir, e de fazer os necessários balanços, agora que estamos no fim das atividades letivas. A principal conclusão do trabalho que se fez com estes dois alunos, e com o Fernando em particular, é esta: se é verdade que não houve melhorias significativas nas atitudes do Fernando face às aprendizagens, houve pelo menos mo-mentos, no seu percurso escolar, na parte que respeita ao trabalho em contexto de OPLNM, mas também na sala de aula, na altura das apresentações dos TP, que se tra-duziram em pequenos grandes sucessos individuais, construídos com base na procura dos caminhos do sentido da aprendizagem, na perspetiva do aluno. É nessa procura que o professor se deve constituir como parte ativa. E é aí que as pedagogias diferen-ciadoras parecem fazer toda a diferença.

Este é um trabalho que não deve ficar por aqui, no que a este aluno diz respeito. É

intervir na escola com as pessoas da escola

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preciso continuar a trabalhar de forma diferenciada, para que se avance um pouco mais (pouco mas continuadamente) neste caminho, e para que a Escola ganhe sempre novos sentidos.

João Paulo Ferreira

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Ficha 8: alargar a partilha

O quê? Um grupo de reflexão entre professores que mantêm um diário de bordo profissio-nal pessoal. Os professores trabalham relativamente próximos uns dos outros ou têm meios para se encontrar entre eles com alguma facilidade. Cada participante no grupo tem o compromisso de escrever uma história ou um artigo. Os textos apro-fundam um aspeto da relação pedagógica. As discussões são monitorizadas por um formador, conhecedor da realidade a partir da qual os professores discutem. Este aprofundamento tem como dupla finalidade promover o aperfeiçoamento da prática pedagógica dos autores bem como constituir um espólio documental útil para parti-lhas de prática em comunidades de aprendizagem.

Com quem? Os grupos constituem-se de professores que produzem curtas reflexões por escrito, baseadas nos seus diários de bordo, e de discuti-las em conjunto. São acompanha-dos por um ou mais do que um formador, conhecedor da realidade e dos cenários pedagógicos discutidos.

Como? Os grupos alternam momentos de trabalho presenciais com momentos de trabalho individual. Nos momentos de trabalho individual, é possível haver uma interação com os for-madores, em contexto de trabalho. A plataforma Moodle serve de plataforma de apoio, onde, em fórum, os participantes deixam as suas notas e os seus esboços de texto, que são discutidos entre todos. Esta plataforma também permite a partilha de instrumentos de trabalho referidos. Os momentos presenciais são momentos de discussão de textos em elaboração, permitindo aprofundar aspetos da prática (com visionamento de pequenos vídeos, realizadas em contexto de sala de aula de participantes, do(s) formador(es) ou pro-venientes de outras comunidades de prática. Se o grupo de trabalho for registado como formação acreditada, o produto escrito serve de base de avaliação.

Função da avaliação? A avaliação é visto como um processo contínuo, que acompanha cada um dos textos em produção. As discussões entre participantes no grupo permitem corrigir, apro-fundar ou aperfeiçoar os textos.

Mais textos partilhados em Trabalho escolar com sentido [+] e Aprendizagens escri-tas em parceria [+]

intervir na escola com as pessoas da escola

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Gerir e escrever a prática entre aprendentes

A expressão “diário de bordo” é polissémica.

Quando começamos a trabalhar com os professores, como já referi, propuse-

mos a manutenção de um diário de bordo profissional, organizado de maneira

a facilitar a reflexão da própria pessoa sobre o trabalho em curso. Fizemos a

distinção com o diário de bordo pessoal, muitas vezes simplesmente referido

como “diário”.

De modo geral, quando falamos de investigação, o diário de bordo profissio-

nal, ou a reflexão sobre ele, é utilizado como fonte de informação por investi-

gadores para se fazer uma imagem da realidade descrita por quem nela se en-

contra. Já referi a este respeito o trabalho de Zabalza e os textos organizados

por António Nóvoa.

No trabalho que temos desenvolvido, apresentámos o diário de bordo como

um instrumento “três-em-um”, porque o trabalho assim se apresenta: apoia em

primeiro lugar o próprio na sua reflexão, e portanto, na sua autoformação.

Apoia o formador a perceber como se poderá organizar a formação para ela

ser um percurso desenvolvido em conjunto a partir de um programa de traba-

lho que se ancora nas reflexões e aspirações de cada uma das pessoas partici-

pantes. Por último, apoia o grupo na sua ação investigativa. Cada um, em con-

fronto com o seu próprio diário e em confronto com as reflexões dos outros,

participa no trabalho de desocultação, necessário para a elaboração de hipóte-

ses e de reorganização da sua atuação como profissional. É possível procurar e

adaptar, entre todos, as propostas de trabalho e os instrumentos de regulação

que serão os mais interessantes em determinado contexto, com determinado

grupo de crianças ou de adultos.

A reflexão escrita que decorre da manutenção do diário de bordo acompanha

portanto a mesma proposta “três em um”, e dá consistência ao grupo que

sustenta a autoformação em cooperação. Neste contexto, não é estranho ver

que muitos textos ganham o contorno de um artigo ou de um testemunho e

passam a ser divulgados e acompanhados pela disponibilização de instrumen-

tos de trabalho adaptados, que por sua vez poderão ser adaptados por outros.

O grupo, constituído em comunidade de prática, interliga-se com outros, de

quem, em várias ocasiões, leu testemunhos e artigos.

A expressão “diário de bordo” aparece nalgumas turmas, com o significado de

um registo de acontecimentos, o “logbook” do barco, onde pequenos feitos são

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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registados. Em alguns contextos, este diário de bordo recebe o nome de mural,

ou diário de parede, às vezes aparece como coluna com o título “fizemos”,

num registo de ocorrências, público de toda a turma.

Este registo de ocorrências leva-nos a outro diário, o diário da turma, que

fazem parte do instrumentário de determinados modelos pedagógicos, que

sustentem uma forma escolar de relações sociais, na qual o poder instituinte do

grupo está na mão de todos, crianças e professores9. O diário de turma (que

alguns referem como diário do conselho) apresenta-se normalmente como

uma grelha com três colunas, permanentemente acessível por todos. As colu-

nas são identificadas por títulos do género “não gostei/gostámos”, “gos-

tei/gostámos” e “proponho/propomos”, às vezes acompanhada pela quarta

que tem mais uma função de registo de feitos, como já referi. Nas correntes

pedagógicas que o originam, ele está associado ao Conselho, ou Conselho de

Cooperação, órgão regulador da vida e do trabalho do grupo em aprendiza-

gem.

Nos grupos de formação que acompanhamos, as pessoas utilizam frequente-

mente a expressão “assembleia de turma” termo com que se referia ao conse-

lho de cooperação no seio do MEM até o início dos anos ’90 e que se popula-

rizou no meio educativo, mas que na associação pedagógica referida caiu em

desuso. É frequente encontrarmos reflexões do género:

“É importante salientar que têm existido melhorias significativas desde a implementa-ção do Diário de Turma e da Assembleia de Turma, nomeadamente ao nível das atitu-des. Tem sido possível resolver as problemáticas da turma com maior naturalidade e rapidez. Outra das vantagens tem sido o facto não ser constantemente incomodado com “birras”, “amuos” e sobretudo “queixinhas” libertando-me para trabalho mais im-portante. Assim, pode ter um papel mais ativo e interventivo no auxílio dos alunos, principalmente aqueles com mais dificuldades de aprendizagem. Na Assembleia de Turma têm-se proposto e debatido atividades a desenvolver, pro-postas pelos alunos. No entanto, os alunos ainda não se mostram muito à vontade no apresentar das mesmas, por isso a coluna do “Quero saber (proponho) ”, ainda apare-ce pouco preenchida ou em branco.”

Professor, Rio de Mouro

Fica portanto claro que quando é referido “diário da turma” ou “diário de

bordo” no contexto do trabalho desenvolvido entre professores e alunos, não

9 A proposta pedagógica do Movimento da Escola Moderna Português (MEM), bem como o

legado da pedagogia institucional (Collectif Européen d’équipes de pédagogie institutionnelle

– Ceepi; association vers une pédagogie institutionnelle – AVPI; Téchniques Freinet Pédago-

gie Institutionnelle – T.F.P.I; Pédagogie Institutionnelle Gironde – P.I.G.) são duas abordagens

dessa prática. Ver também Sérgio Niza (2012), o MEM [+] e o catálogo de Champ Social [+].

intervir na escola com as pessoas da escola

71

se trata do mesmo tipo de diário de bordo profissional com até agora referido.

A gestão do grupo de aprendizagem, entre aprendentes, crianças e adultos,

recorrendo aos variantes do diário de bordo é possível, da mesma forma como

o é a gestão de um grupo de aprendizagem entre adultos. Esta gestão propria-

mente dita, não é mais desenvolvida aqui, mas está descrito e discutido em

outros lugares. As referências bibliográficas remetem para alguns documentos

eventualmente úteis (ver por exemplo Niza (2012) e Paulus (2006)).

A plataforma Moodle, que acompanha os grupos de reflexão e formação, com

os quais desenvolvemos o nosso trabalho, contem nalgumas das páginas,

exemplos de trabalho das pessoas que deles fizeram parte.

Não obstante, e como relatamos (Paulus (org.), 2012, p. 65-67), a direção de

um dos agrupamentos que acompanhamos desde 2009, fomentou hábitos de

registo em diário de bordo entre responsáveis de departamento e diretores de

turma. Para permitir uma mais fácil condução do projeto educativo da escola,

que propõe uma dinâmica generalizada de conselhos (ou assembleias) com as

turmas e que coloca uma ênfase grande na diferenciação pedagógica em sala de

aula, foi essencial criar espaços de apoio e de reflexão.

Mais do que o diário de bordo como instrumento de registo, o que aqui se

revela é uma prática de escuta e de devolução desta escuta acerca das medidas

implementadas. A direção da escola quis desenvolver um projeto pedagógico

no qual existisse a possibilidade para crianças e adultos refletirem mais sobre a

sua relação pedagógica e sobre a função da escola socializadora. Para conseguir

organizar discussões entre diretores de turma e entre grupos de professores,

insistiu-se desde o início do mandato na criação de circuitos de comunicação e

o diário de bordo foi uma sugestão logo valorizada pela equipa diretiva.

No primeiro ano da introdução dos diários de bordo – segundo ano de manda-

to – ritualizou-se o intercâmbio de informação tendencialmente pedagógico

entre quem mantinha o diário e a pessoa responsável pela implementação das

ações contempladas no projeto educativo. Permitiu entender melhor de parte a

parte como eram entendidos determinadas propostas de trabalho e como

interpretações pessoais facilitavam ou dificultavam algumas opções. As discus-

sões a partir das reflexões em diário de bordo permitiram por exemplo fazer

avançar numa perceção mais alinhada acerca da função de um tutor ou de um

professor coadjuvante. Facilitaram também avançar na interpretação da função

de uma área de apoio e estudo para os alunos, mediada por professores em

rotação e onde algumas atividades de tutoria e de coadjuvação podem ocorrer.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

72

O conselho pedagógico despende um ponto na sua agenda para as reflexões

que surgem através de quem mantém um diário de bordo. As oficinas pedagó-

gicos internos que o agrupamento organiza retratam a prática de diálogo regis-

tado por escrito: muitos dos temas são sugeridos através das discussões gera-

das e, embora a participação é de carater voluntária, nas oficinas, por norma,

esgotam a lotação. As oficinas contam por vezes com convidados, mas em

muitas ocasiões constituem-se como espaços de partilha entre pares, professo-

res do agrupamento.

intervir na escola com as pessoas da escola

73

Ficha 9: a partilha da monitorização do projeto curricular

O quê? Saindo ligeiramente do estrito conceito de diário de bordo profissional, a reflexão individual e coletiva provocada pela manutenção de um diário de ocorrências, facili-ta a interpretação de como executar o currículo prescrito e como a ação conjunta está a ser desenvolvida, bem como os pontos que merecem atenção. O diário de bordo apresenta-se aqui como um dos instrumentos que facilitam a monitorização de um projeto.

Com quem? Com os envolvidos no projeto: alunos e professores na turma, e na condução do projeto curricular de turma; professores e diretores na escola, e na condução do projeto curricular da escola.

Como? Prévio a qualquer solicitação de escrita individual ou coletiva acerca do projeto curricular em questão, está a necessidade de conhecer bem o que se propõe desen-volver em conjunto. Seja o projeto elaborado de raiz entre todos, seja o projeto da mão de um grupo restrito, a apropriação por parte de todos é importante. Esta apropriação é feita de maneiras diferentes, dependente de quem estiver envolvido. Em todo caso passa por uma explicitação de como abordar localmente o currículo imposto centralmente. É neste contexto que se sugere também a monitorização conjunto do projeto de trabalho e a utilização de uma das variantes de diário. Logo que a forma de diário estiver definido, define-se também como a reflexão acerca dele será conduzido: poderá ter o figurino de reuniões regulares em que se faz uma leitura coletiva de ocorrências registadas, poderá ter o figurino utilizado com o diário de bordo profissional, de análise de reflexões, a pares ou em grupo, ou poderá ainda servir para despoletar momentos de trabalho em conjunto, para re-pensar linhas de ação ou estratégias de intervenção ou ainda para partilhar momen-tos de prática, caso se tratar de oficinas entre professores. Os resultados das discussões, reflexões ou partilhas são anotados, ficando disponí-veis para todos (no próprio diário, caso ele ser coletivo, numa plataforma de comu-nicação como o moodle, ou em pequenos textos que circulam entre os participan-tes, por exemplo).

O que avaliámos? O grupo e quem media a reflexão do grupo (professor com a turma, diretor no con-selho pedagógico, dinamizador de oficinas na escola, etc.) monitorizam em conjunto um projeto em execução. A avaliação serve sobretudo para perceber em que medida o trabalho desenvolvido facilita a execução do projeto.

Pascal Paulus - programa K’CIDADE

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Considerações Finais

É desde já possível afirmar que o diário de bordo como instrumento de for-

mação, de reflexão e de investigação entre pares, se mostrou eficaz nos traba-

lhos em curso no eixo “educação” do programa K'CIDADE. Permitiu a reco-

lha de dados para vários fins, de grupos de pessoas a trabalhar em simultâneo,

com quem apoia na mediação numas situações, na supervisão pedagógica,

noutras. O trabalho é tanto mais eficaz quanto for possível fazer a análise e

uma categorização de questões emergentes a partir das reflexões individuais e

coletivas em torno dos diários de bordo, nos momentos considerados oportu-

nos ou nos momentos chave.

A fixação em simultâneo de processos que estão a decorrer e a recolha regular

e em tempo útil por quem coordena ou medeia o projeto de trabalho facilita a

reflexão formativa para todo o grupo de aprendentes, formandos e formado-

res, alunos e professores, tutorados e tutores. Ao mesmo tempo, o diário de

bordo é, em muitas ocasiões um instrumento que ajuda o próprio a ganhar

capacidade de reflexão acerca do trabalho em curso como autoformação em

cooperação, em geral.

Com exemplos provenientes de duas ações, nas quais participaram colaborado-

res da equipa de educação do K’CIDADE, procuramos ilustrar como os diá-

rios de bordo são um instrumento multifacetada que permitem uma investiga-

ção-no-ato, sobre a prática, por parte de quem está diretamente envolvido,

como formando ou como formador, mas sempre como aprendente.

Na sua essência simples – cinco minutos de escrita por dia, uma hora de leitura

e anotação reflexiva de quinze em quinze dias – constitui uma rotina de forma-

ção do próprio, tanto mais rico quanto em articulação e discussões com os

outros.

O diário de bordo facilita processos de formação e de aprendizagem que se

inscrevem na abordagem construtivista, na qual o sujeito é autor, porque ator

na definição do processo de aprendizagem individual. Facilita também o pro-

cesso de elaboração em conjunto de projetos de aprendizagem e de formação,

como o são um projeto curricular de turma ou um projeto curricular de escola.

Estes projetos têm sentido, logo que a escola não seja interpretada de modo

redutora, como uma estrutura com um preceito de conteúdos normalizados a

transmitir e o modo de o fazer, pesada herança da proliferação da escola do

século XVIII, concebido para disciplinar o pobre.

intervir na escola com as pessoas da escola

75

A utilização de instrumentos que suscitam a reflexão, como o é o diário de

bordo, inscreve-se assim na lógica de promoção da cidadania ativa, da cidada-

nia-no-ato, comummente apontada como conditio sine qua non para uma socie-

dade moderna e democrática, tantas vezes ameaçada pela retórica oca de quem

se considera detentor do poder, originando a deturpação dos princípios bási-

cos de cultivo da diversidade direito à afirmação individual, num projeto de

sociedade plural.

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