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227 Trabalho, Educação e Saúde, v. 3 n. 1, p. 227-238, 2005 ENTREVISTA INTERVIEW Resumo Saúde pública e educação constituem as principais áreas de atuação do professor Vic- tor Vincent Valla, desde que chegou ao Brasil, nos anos 1960. Graduado em Educação, com mes- trado e doutorado em História Social pela Uni- versidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade da Califórnia, atualmente Valla é pesquisador titular do Departamento de Ende- mias Samuel Pessoa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), pesquisador do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Inte- gralidade em Saúde (Lappis) e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Valla é autor de uma vasta obra sobre cultura, partici- pação, cidadania e religiosidade, explorando a relação intrínseca destas temáticas com o campo da educação em saúde. Nesta entrevista, discute o conceito e as práticas de educação popular, a noção de ‘capacitação técnica’, a cultura religio- sa, a pobreza e a saúde pública, destacando a ne- cessidade de se compreender as percepções e a vida cotidiana das classes populares e a impor- tância desta abordagem para o aprimoramento da formação do profissional de saúde e, portan- to, do Sistema Único de Saúde (SUS). Entrevista: Victor Valla Interview: Victor Valla Abstract Public Health and Education are the main areas to which Professor Victor Vincent Valla has been devoting himself since he arrived in Brazil in the 60s. Graduated in Education, with a Master degree and a PhD in Social His- tory by the University of São Paulo (USP) and a post-doctoral degree by the University of Cali- fornia, Valla is now titular researcher at the Sa- muel Pessoa Department of Endemic Diseases of the National School of Public Health Sergio Arouca (Ensp), researcher at the Research Labo- ratory for Practices of Integrality in Health (Lappis) and assistant professor at the Federal University of the State of Rio de Janeiro (UFF). Valla is the author of a large number of works on culture, social participation, civil rights and religiosity, in which he explores the intrinsic relationship between these themes and the field of education in the area of health. In this inter- view, he discusses the concept and the practices of popular education, the notion of ‘technical training’, religious culture, poverty and public health, giving emphasis to the need to understand the perceptions and everyday life of the less privileged classes and strongly suggesting that this understanding can significantly improve the training of health professionals and, conse- quently, the Brazilian Health System (SUS).

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Page 1: Interview: Victor Valla - SciELO · 2012. 11. 1. · 229 Trabalho, Educação e Saúde, v. 3 n. 1, p. 227-238, 2005 Interview: Victor Valla Victor Valla Era um desejo meu. Na prática

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Trabalho, Educação e Saúde, v. 3 n. 1, p. 227-238, 2005

ENTREVISTA INTERVIEW

Resumo Saúde pública e educação constituemas principais áreas de atuação do professor Vic-tor Vincent Valla, desde que chegou ao Brasil,nos anos 1960. Graduado em Educação, com mes-trado e doutorado em História Social pela Uni-versidade de São Paulo (USP) e pós-doutoradopela Universidade da Califórnia, atualmente Vallaé pesquisador titular do Departamento de Ende-mias Samuel Pessoa da Escola Nacional de SaúdePública Sergio Arouca (Ensp), pesquisador doLaboratório de Pesquisas sobre Práticas de Inte-gralidade em Saúde (Lappis) e professor adjuntoda Universidade Federal Fluminense (UFF). Vallaé autor de uma vasta obra sobre cultura, partici-pação, cidadania e religiosidade, explorando arelação intrínseca destas temáticas com o campoda educação em saúde. Nesta entrevista, discuteo conceito e as práticas de educação popular, anoção de ‘capacitação técnica’, a cultura religio-sa, a pobreza e a saúde pública, destacando a ne-cessidade de se compreender as percepções e avida cotidiana das classes populares e a impor-tância desta abordagem para o aprimoramentoda formação do profissional de saúde e, portan-to, do Sistema Único de Saúde (SUS).

Entrevista: Victor Valla

Interview: Victor Valla

Abstract Public Health and Education are themain areas to which Professor Victor VincentValla has been devoting himself since he arrivedin Brazil in the 60s. Graduated in Education,with a Master degree and a PhD in Social His-tory by the University of São Paulo (USP) and apost-doctoral degree by the University of Cali-fornia, Valla is now titular researcher at the Sa-muel Pessoa Department of Endemic Diseases ofthe National School of Public Health SergioArouca (Ensp), researcher at the Research Labo-ratory for Practices of Integrality in Health(Lappis) and assistant professor at the FederalUniversity of the State of Rio de Janeiro (UFF).Valla is the author of a large number of workson culture, social participation, civil rights andreligiosity, in which he explores the intrinsicrelationship between these themes and the fieldof education in the area of health. In this inter-view, he discusses the concept and the practicesof popular education, the notion of ‘technicaltraining’, religious culture, poverty and publichealth, giving emphasis to the need to understandthe perceptions and everyday life of the lessprivileged classes and strongly suggesting thatthis understanding can significantly improvethe training of health professionals and, conse-quently, the Brazilian Health System (SUS).

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Entrevista: Victor Valla

Eymard Vasconcelos

Prof. Victor Valla, você veio dos Estados Unidos,através de uma congregação religiosa que não ti-nha uma perspectiva de trabalho popular. Comofoi sua aproximação com a Educação Popular?

Victor Valla

Essa aproximação está relacionada com o fato deter vindo para o Brasil como missionário daIgreja Católica. Ultimamente, tenho estudado avida de Richard Shaull, missionário presbiteri-ano norte-americano que hoje é conhecido comoo ‘avô’ da Teologia da Libertação. Ele acabou fa-zendo sua autobiografia e disse que ficou abis-mado com a pobreza na Colômbia e no Brasil,onde trabalhou como pastor. Não quero me com-parar a Richard Shaull, que ajudou a criar a Teo-logia da Libertação, mas eu também fiquei abis-mado com a pobreza no Brasil desde que che-guei e continuo até hoje. Eu me perguntava, de

forma obviamente ingênua: “Não dá para fazeralguma coisa?”, como se alguém já não tivessetentado antes.

Eymard Vasconcelos

Como a Educação Popular chegou como a res-posta para essa questão?

Victor Valla

À medida que você começa a mostrar suas preo-cupações, percebe que existem outras pessoascom as mesmas preocupações. É um pouco con-traditório, porque a Educação Popular é um ter-mo que, à primeira vista, traz a idéia de se ‘edu-car a população’. Esse atraso, essa miséria, essapobreza se explicaria pelo fato de a populaçãonão estar educada. Então, encontram-se pessoasque têm essa visão de Educação Popular. Come-cei a entrar por esse caminho, como eu já disse,um caminho um pouco contraditório.

Minha entrada também se deu pela IgrejaCatólica, da qual eu fazia parte quando chegueiao Brasil, mas depois me afastei. Na verdade,quando cheguei, achava que não podia fazermuita coisa, julgava não ser possível mudar apobreza. Pensava, então, que tinha que morarjunto com os pobres, principalmente nas favelas.Não iria resolver o problema, mas, pelo menos,iria compartilhá-lo.

De certo modo, é semelhante ao que os mis-sionários holandeses fizeram na Indonésia comoforma de reparar os problemas causados porseus compatriotas. Pensavam: “Posso morar jun-to, posso me integrar como forma de reparação”.Acabei não fazendo isso. Houve uma época daminha vida em que eu vivia nas favelas, passa-va o dia inteiro junto com os moradores, masnão dormia lá. É um pouco a idéia de oblaçãoque vem de algumas correntes da Igreja Católi-ca, que significa você se oferecer no sentido desacrifício; um pouco das origens, embora intui-tivas, da Teologia da Libertação.

Eymard Vasconcelos

Como você descobriu essa oblação? Essa entre-ga lhe ajudou a constituir um jeito de lidar coma população?

foto: Peter Illicciev

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Interview: Victor Valla

Victor Valla

Era um desejo meu. Na prática acabei não fazen-do isso. Acreditava que, se eu não podia fazernada, podia pelo menos conviver com o problema.Essas preocupações me levaram a me aproximarde pessoas da ‘esquerda’, que sempre ouviam oque eu estava dizendo e falavam “ora, mas a gen-te não se propõe a fazer as coisas sozinhos. Agente se propõe a fazer as coisas em conjunto”.

Cheguei ao Brasil em 1964, meu grau de po-litização era zero... Eu vim com a maior ‘cara’limpa, com a maior alegria, como se fosse fazeralguma coisa. Isso em 1964! E fui me encontran-do com pessoas que diziam que o trabalho deve-ria ser mais coletivo. Na Igreja Católica, fui meaproximando de pessoas inconformadas queme ajudaram muito. E aí começam aquelas idéiasantigas. Um amigo meu teólogo diz: “Como éque você pode ter um país cristão com tanta fo-me e miséria?”.

Devagarzinho, fui encontrando pessoas quetêm propostas de Educação Popular, que convi-vem com a população. Gosto muito deste termo‘conviver com a população’. Não se trata de as-sumir a moradia, mas de ter um contato perma-nente. Essa foi minha idéia, mesmo aqui naEnsp [Escola Nacional de Saúde Pública SergioArouca/Fiocruz]. Você encontra determinadosmoradores de uma favela toda semana duranteum período de dois a três anos. Viajei bastantepelo Brasil para encontrar essas pessoas incon-formadas com a pobreza.

Eymard Vasconcelos

Então você encontrou a proposta de EducaçãoPopular. O que você sente de mais positivo nametodologia da Educação Popular que o fez seaproximar dela e investir nesse caminho?

Victor Valla

Sempre trabalhei na Universidade, mesmo nomeu campo, que inicialmente era a história. Ten-tei aproximar a Educação Popular de um pontode vista histórico. Levantamos toda a questão dahistória da Educação Popular. Eu estou há mui-tos anos no Brasil e, com o passar dos anos, vocêacaba se inserindo, se vinculando aos movimen-tos de resistência, como o de Educação Popular.

Sempre levei essas questões para a sala deaula nas universidades. Com o tempo, descobre-se uma corrente da Educação Popular que de-

fende que a população, que pretendíamos edu-car, sabe muita coisa e tem muitas coisas a dizerque desconhecemos. É preciso prestar atençãoporque, a partir do que a população está dizen-do, pode-se melhorar o trabalho. Foi muito nes-ta perspectiva que me aproximei desse cami-nho; o intelectual atento ao que esta populaçãoestá dizendo.

Eymard Vasconcelos

Você veio de fora, teve acesso a outras correntesda Educação, e encontrou no Brasil a EducaçãoPopular. Sabe o que ela apresenta de novidadee limites. Como você avalia a contribuição que éprópria da Educação Popular?

Victor Valla

Gosto do termo ‘facilitador’, que alguns ameri-canos utilizam, mas que só aprendi no Brasil. Aidéia é de que não é você quem vai ensinar àpopulação, você vai ser um facilitador daquiloque a população já está fazendo. Nosso papelseria facilitar a realização daquilo que a popu-lação já pensou em fazer ou está fazendo. E paraisso é necessário compreender o que a outra pes-soa pensa e deseja. A vivência do educador nãodeve prevalecer. Até hoje acho que esta é a gran-de discussão.

Eymard Vasconcelos

Em que medida você acha que isso pode con-tribuir para que o SUS se torne mais humano,mais eficaz? Queria que o senhor falasse dessaperspectiva pedagógica...

Victor Valla

Essa questão nos leva para a discussão de Edu-cação Popular em Saúde. Fala-se que o SUS é o re-sultado de um processo longo de construção dosserviços de saúde no Brasil, mas uma das coisasque sempre me chamou a atenção é que ele foicriado no Brasil a partir da experiência italiana.Nessa experiência, os intelectuais das universi-dades italianas buscaram as pessoas dos movi-mentos populares para construir o SUS italiano.

Hoje, há uma discussão mostrando que nãofoi isso que aconteceu no Brasil. Aqui, as pes-soas responsáveis pela criação da Reforma Sani-tária eram mais de sala de aula, de gabinetes depolíticos, intelectuais das universidades, gente

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que não queria seguir o mesmo caminho, ou se-ja, buscar o movimento popular para construiro SUS. Queriam muito mais construir o SUS co-mo proposta e depois chamar os movimentospopulares para discutirem.

Até hoje, acho que a população tem umagrande dificuldade em compreender o SUS. Nãofoi um movimento que incorporou a população,como foi na Itália. Então, a questão da EducaçãoPopular em Saúde passa pelos conselhos munici-pais e distritais de saúde. Os intelectuais preocu-pados com a Educação Popular afirmam que a re-lação dos profissionais de saúde com os usuáriosdo SUS revela as contradições dos conselhos desaúde, seja na esfera municipal ou distrital. Ouseja, o profissional, com sua experiência, com suaformação intelectual, tem muita clareza do quequer, mas essa clareza afasta os usuários da par-ticipação, usuários que não possuem essa mesmaclareza e formação. A clareza e a convicção muitofortes em uma proposta de ação técnica fecham oprofissional para o diálogo com a população.

Sempre acreditei que o papel do profissionalde saúde e dos conselhos de saúde é justamentefacilitar a participação dos usuários. Mas a lin-guagem dos profissionais de saúde muitas vezesimpede que os usuários tenham uma participa-ção mais ativa.

Eymard Vasconcelos

Você insiste na importância de compreender me-lhor o que as classes populares pensam e dese-jam. Como fazer isto no campo da saúde?

Victor Valla

Sempre me lembro de pessoas dizendo que erapreciso educar o povo. Por quê? Porque a popu-lação usuária fica muito tempo na fila nos cen-tros de saúde e acaba indo direto para a emer-gência dos hospitais a fim de ser atendida logo.Argumentavam que a população tinha de sereducada para que não fizesse isso, como se elafosse ignorante.

Ora, esse mecanismo da população é uma for-ma que ela inventou para sobreviver, porque sa-be que a emergência atende mais rapidamente.É preciso compreender porque o povo faz isso.Atualmente estou envolvido com a mesma dis-cussão aqui na Ensp. Estamos com uma pesquisa,chamada Vigilância em saúde: uma proposta deouvidoria coletiva, em que buscamos os agen-

tes de saúde na região da Leopoldina para sabercomo são as condições de vida das pessoas quefreqüentam os centros de saúde.

Discutimos as mesmas coisas: pessoas quevão para os centros de saúde recebem gratuita-mente caixas de medicamentos para hipertensãoe diabetes e as vendem para comprar comida. Onível de pobreza chega a esse ponto. Tambémverificamos a dificuldade que as pessoas maispobres têm para combater a diabetes com dieta.Elas não têm dinheiro para comprar o necessá-rio para combater a doença. Para mim, essa situ-ação é uma discussão perfeita para a EducaçãoPopular. Imediatamente, as pessoas pensam queé necessário fazer esclarecimentos. Concordoque tem que explicar, mas a população faz issonão porque não entende, faz isso porque nãopossui alternativas. Esse é o segredo da Edu-cação Popular.

Eymard Vasconcelos

Uma ênfase maior na compreensão da lógica dooutro e menor na técnica de convencimento...

Victor Valla

Sou defensor de uma idéia de ‘capacitação técni-ca’. Foi uma das primeiras coisas que aprendi du-rante a ditadura militar no Brasil. Havia um sin-dicato de trabalhadores rurais combativo, queincomodava o regime militar. O que o regime mi-litar fazia? Contratava um advogado que ia parao sindicato representando o regime militar e pe-dia para verificar os livros de contabilidade.

Quando achava um erro nos livros, o que nãoera difícil para um sindicato de trabalhadores ru-rais, o advogado acusava o sindicato de desones-tidade e o fechava. O que o pessoal da Fase [Fede-ração de Órgãos para a Assistência Social e Edu-cacional] me ensinou é que a tarefa da EducaçãoPopular seria dar capacitação política, explicarpara o sindicato o que é ditadura, como poderi-am se organizar para reagir. Mas o sindicato jásabia tudo isso, não precisava explicar. O que elenão sabia era contabilidade, isso era uma grandecontribuição da Educação Popular, que nós cha-mamos de capacitação técnica.

Revista

Esse exemplo reforça a necessidade de trabalharos conteúdos, mesmo no âmbito da Educação Po-

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pular, para não cair nisso que o professor estáfalando, ficar restrito ao saber trazido pela po-pulação, não qualificar, não capacitar...

Victor Valla

De fato, é um instrumento de que a populaçãonecessita. Quando a população necessita de ummelhor saneamento básico, o que as prefeiturasmais maldosas fazem? Chamam a população pa-ra sentar à mesa e perguntam o que ela quer defato. A população não sabe com clareza comodeve ser o saneamento básico, que envolve ques-tões técnicas.

Revista

Pode-se então dizer que o conceito de EducaçãoPopular que o senhor compartilha está associa-do à luta pela escolaridade, que envolve não sóum ensino formal, mas que também não nega odireito à educação básica, aos conhecimentoselaborados pela humanidade.

Victor Valla

Sou um grande defensor da escola pública, masacho que a Educação Popular está distante daatual organização da escola pública. Lembro-mede um exemplo da Cecilia Collares, da Unicamp,que falava que, enquanto na sala de aula você es-tá tentando explicar para as crianças a impor-tância da água potável de uma forma mais elabo-rada cientificamente, ao lado passa um movimen-to dos moradores e pais daquelas crianças exigin-do saneamento básico. Acho ótimo esse exemplo,pois fala da importância de se criar uma ponte en-tre o ensino na escola e a vida na comunidade.

Eymard Vasconcelos

Você falou da importância da capacitação técni-ca, mas me lembro de outra imagem que vocêcostuma repetir muito. O problema é que nãosabemos que conhecimento técnico será utiliza-do. Temos que ir com uma ‘mochila’ da qual re-tiramos um conhecimento. Quando ‘não é bemaquele’, escolhemos outro. É preciso ter uma re-lação de troca para adequar. Se ‘despejarmos’ deuma vez toda a mochila de conhecimentos, tam-bém iremos atrapalhar.

Victor Valla

Não é só isso. Muitos conhecimentos que vocêgostaria de encontrar na mochila, a universida-de não ensinou, necessariamente. Há muita coisaque a população quer saber e que nós podería-mos ter aprendido, mas a universidade não en-sinou. Um exemplo é a desnutrição. Trabalheidurante anos com a questão do fracasso escolartendo a desnutrição como explicação do proble-ma. Muitas vezes, a educação recorre à saúdepara explicar por que a criança pobre não passade ano. Nessa discussão, a professora pode falarpara os pais que a criança não irá passar de anona escola porque é pobre e não se alimentoubem nos primeiros anos de vida. De fato, sabe-mos que até os dois anos, se a criança não for su-ficientemente alimentada, irá apresentar proble-mas pelo resto da vida. Mas isto se tiver desnu-trição muito grave.

Neste primeiro momento, quando a profes-sora deixou os pais encurralados num canto coma explicação científica, falta alguém dizer — eesse alguém pode ser o educador popular —que a desnutrição pode ser de três tipos: grave— tão grave que a criança morre no caminho daescola; moderada — que impede a permanênciada criança na escola; e por fim, leve — que todomundo tem, até a classe média.

A maior parte dos alunos apresenta desnu-trição leve, mas isso não significa que não pos-sam aprender. Podem aprender se tiver alguémcom a capacidade de ensiná-los, de trabalhar comos alunos pobres. Muitas vezes, esta conversade que a criança está incapacitada de aprenderporque teve desnutrição é uma forma de fugirdo debate sobre a qualidade do ensino dado.Gosto desta discussão. Retomando a questão dacapacitação técnica, nesse exemplo, esse mo-mento corresponderia à explicação do que é des-nutrição para os pais. Posteriormente, vamos tera questão da nossa convivência com essa popu-lação. Muitas vezes, essa convivência não é per-mitida, a reunião com os pais não ocorre diaria-mente, só uma vez ao mês. Considero a convi-vência importante para que o educador popularpossa transmitir esses conhecimentos técnicos.

Eymard Vasconcelos

Então, educador popular não é apenas aqueleque convive, mas também aquele que ensinae que pesquisa, porque ele mesmo não tem os

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conhecimentos do jeito que a população estáprecisando, a partir do enfoque em que a lutapolítica está se dando. Antes de tudo, ele tam-bém é um pesquisador. Às vezes, esse conheci-mento não está ‘arrumado’ nem na escola...

Victor Valla

Muitas vezes, a escola não tem isso claro. Umbom exemplo é a criação da vacina. Quando a va-cina estava sendo criada, na Europa já estava sen-do feito o saneamento básico, a produção agrí-cola estava crescendo e as pessoas estavam se ali-mentando mais. Conseqüentemente, as própriasdoenças, que mais tarde a vacina iria combater,já estavam sendo vencidas pelo saneamento bá-sico e pela alimentação. A vacina chega ao Bra-sil para superar doenças que afligiam a popu-lação e ao mesmo tempo era dito: não precisa desaneamento básico e nem de boa alimentação, ésó dar a vacina. Gosto desse exemplo porquemostra como a descoberta de certos aspectos doconhecimento acumulado cria condições parauma visão crítica da situação.

Eymard Vasconcelos

É preciso um refinamento do conhecimento parapoder sair dessas armadilhas...

Victor Valla

É uma armadilha que, no exemplo da relação en-tre fracasso escolar e desnutrição, deixa as cri-anças e os pais paralisados.

Eymard Vasconcelos

Depois que o Programa de Saúde da Família (PSF)se expandiu, depois que os profissionais estão seinserindo nas comunidades, está ficando muitoclara a insuficiência dessa formação técnica queos profissionais de saúde recebem na escola. Épreciso mudar a formação desse profissional. Co-mo a Educação Popular pode contribuir no pro-cesso de mudança na formação dos trabalhado-res em saúde?

Victor Valla

Essa questão passa pela compreensão da pobre-za. Para mim, se o PSF não avança, não é porqueo profissional desconhece o programa e sua dou-trina. Mesmo quando ele compreende, muitasvezes os resultados são insuficientes, porque as

condições de vida da população não permitemque as pessoas consigam superar seus problemasde doença. Acredito que, quando a pessoa é mui-to doente e pobre, não tem como superar suasdoenças, mesmo que receba tratamento médico.Isso passa por essa questão que nós estamos en-frentando agora, que o diabético pobre não pos-sui recursos para comprar os alimentos que irãopermitir a ele que combata a doença. Então, aformação passa pela compreensão das condiçõesde vida e pela compreensão de como a popu-lação lida com essas condições. Essa questão tal-vez ajude as pessoas dentro do PSF para elas nãoficarem fazendo exigências absurdas para a po-pulação, culpabilizando as vítimas.

Eymard Vasconcelos

Como podemos levar essa compreensão paradentro da formação dos profissionais? Que es-tratégias pedagógicas devem ser usadas?

Victor Valla

Através da discussão de quantas coisas as pes-soas carentes conseguem fazer com o pouco quetêm, como conseguem compreender. É uma valo-rização das classes populares em termos de co-nhecimento, é incentivar as pessoas a perceberque as classes populares possuem um conheci-mento acumulado muito grande pela sua expe-riência e têm muito mais clareza das coisas doque a gente imagina. Essas pessoas vivenciamcoisas que a gente não pode imaginar que elasestão experimentando. Essa é a nossa tarefa.

Eymard Vasconcelos

Mas esta compreensão é difícil de se passar den-tro da sala de aula. Não seria mais bem transmi-tida se construíssemos espaços de convivênciado aluno com o meio popular, para criar vincu-lações afetivas e, a partir desse vínculo, buscás-semos, então, essa compreensão? Não tanto daraulas sobre a pobreza, mas criar vínculos... Co-mo você vê a criação de espaços pedagógicos pa-ra que o aluno possa conversar com as pessoas?

Victor Valla

Tenho essas preocupações há anos. Quando tra-balhava em São José dos Campos, em São Paulo,um sindicalista vinha me visitar domingo demanhã e me levava para um passeio. Íamos para

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uma pequena cidade chamada Santa Isabel, nointerior de São Paulo, para visitar alguns operá-rios. Um dia, ele pediu que um operário noscontasse o que havia acontecido com ele numônibus. “Estava no ônibus e meu amigo brigoucom o motorista e com o cobrador. Começou umbate-boca. Meu amigo ameaçou agredir o cobra-dor e escapou. Fui preso porque estava com ele.Na polícia, o delegado bateu em mim”, contou ooperário. Aí meu amigo sindicalista perguntou:“Bateu em você, e você fez o quê?”. O rapaz res-pondeu: “O que vou fazer se o delegado está ba-tendo em mim?” Então, o sindicalista se lem-brou do caso do dono de uma loja que havia si-do detido por matar uma pessoa. O operário res-pondeu: “Mas ele foi solto, ele é negociante”.

Sabe porque o operário não fez nada para odelegado que bateu nele? Porque, dentro de suacultura machista, a resposta seria matar o dele-gado por ter batido nele. Como ele não podiamatar o delegado, então ele incorporou aquelahumilhação.

Você tem que visitar as pessoas, conversarcom elas para conhecer sua história, para com-preendê-las.

Revista

O senhor estava falando sobre a necessidade doconvívio com a realidade de dada comunidadepara o profissional da área de saúde aprendermelhor. Embora não seja sua área de reflexão,como ficaria a questão da Educação a Distânciapara a formação dos trabalhadores diante daabordagem da Educação Popular? Atualmente,há muitas pesquisas na área de Educação a Dis-tância para a formação dos profissionais de saú-de em todos os níveis. Como é a relação entreEducação Popular e Educação a Distância?

Victor Valla

De fato, não tenho pensado muito nessa questão.Acho difícil conciliar Educação Popular com Edu-cação a Distância. O único lugar onde isso talvezseja possível é nessa experiência de rádios co-munitárias, uma espécie de Educação a Distân-cia. Ou seja, pessoas junto ao receptor, receben-do a mensagem no seu radinho de pilha e conver-sando sobre aquilo que está sendo transmitido.

Eymard Vasconcelos

Ultimamente você tem se voltado para estudar areligiosidade. Por que considera esse tema im-portante no trabalho de saúde?

Victor Valla

Primeiro, devo dizer como entrei nessa discus-são. Há algum tempo, venho trabalhando com aidéia do José de Souza Martins, que ressaltou,num artigo, a dificuldade de os intelectuais in-terpretarem o que está sendo dito e feito pelapopulação.

Minha aproximação com a questão da reli-giosidade não passa por uma valorização da re-ligião, mas sim pelo interesse em uma esfera davida das classes populares, esfera que, muitasvezes, é difícil de os intelectuais-pesquisadorescompreenderem.

Eymard Vasconcelos

Gostaria de dar só um depoimento. Conheço oValla há muito tempo. Quando ele começou a es-tudar essa questão, estava afastado da Igreja. Te-nho claro que a questão da religiosidade nãoveio por conta de um interesse pessoal. Veio porconta da constatação da importância dessa di-mensão religiosa na vida da população...

Victor Valla

Leonardo Boff diz que “a religião é o código quea população pobre mais compreende e que elamais usa para analisar a realidade. É o códigoque mais utiliza”. Trata-se de uma discussão quesurgiu com a Teologia da Libertação. A chegadada religião com os jesuítas, na colonização, é acoisa mais antiga que existe na história do Bra-sil. A religião faz parte da cultura popular.

Mas só descobri isso mais tarde. Meus com-panheiros do Partido dos Trabalhadores (PT) meperguntavam: “A gente faz uma reunião do par-tido para sete pessoas e, ao lado, tem uma igrejaevangélica com três mil pessoas. O que está ha-vendo?”. Fica a perplexidade das pessoas em fa-ce de uma igreja cheia de pessoas e de poucaspessoas do PT reunidas. Quero descobrir o quemotiva essa população a ir para uma Igreja Uni-versal do Reino de Deus, Assembléia de Deus,mas não quero discutir isso numa mesa de bar,bebendo chope. Se sou pesquisador, tenho queestudar essa questão. Não posso dizer: “Eu acho.Me passa mais um chope”. Para mim, “eu acho”

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Entrevista: Victor Valla

não resolve o problema. O que se passa na cabeçada população que faz com que ela continue indoa essas igrejas? O que ela descobre? Minha preo-cupação hoje é compreender por que a popula-ção se encanta e se entusiasma, por que demons-tra enorme alegria quando lá está reunida.

Se estamos trabalhando com Educação Po-pular, temos, no mínimo, que entender isso, atémesmo pela perspectiva da transformação que al-mejamos para o Brasil. Isso é um debate que façocom o deputado federal Chico Alencar, meu ami-go. Gostamos de ter em nosso partido um mem-bro que é da Teologia da Libertação, que é daIgreja Católica. Isso nos interessa. Mas se ele forda Assembléia de Deus, não nos interessa tanto.Temos dificuldades com essas pessoas. Qual é anossa compreensão do que elas estão buscandonessas igrejas? Isso tem a ver com a transforma-ção do Brasil, essa era a minha preocupação aocomeçar a estudar essa questão.

Uma colega nossa, muito amiga, ficava recla-mando comigo que as mulheres nessas igrejaseram passivas, não tinham um desenvolvimentopróprio. Aí indiquei a ela vários livros que di-ziam justamente o contrário. No fundo, as pes-soas não acreditam que podem aprofundar essasquestões e avançar a discussão. Acho que nós,classe média intelectualizada, temos muito pre-conceito em relação a isso, não conseguimos nosaproximar. É fundamental aprofundar esse de-bate, porque essa questão tem o poder de mobi-lizar a população e, se mobiliza a população, nóstemos que compreender isso como uma dasquestões da Educação Popular. Também façouma ponte com a saúde, porque a população vaibuscar superar seus problemas de saúde nas igre-jas, principalmente as evangélicas e as pentecos-tais. As pesquisas sobre esse comportamento sãocada vez mais freqüentes nas universidades ame-ricanas. Desde que uma matéria sobre o assuntosaiu na revista Time, agora permitem as pesqui-sas, agora está liberado. Sempre defendi que adiscussão é científica.

Eymard Vasconcelos

Essa colocação reforça a idéia da Educação Po-pular como a ênfase na compreensão do pobre.Quer dizer, a religiosidade como um elementoque estava sendo deixado de lado e que é im-portante para a compreensão de como as pes-soas organizam sua vida, seus pensamentos...

Victor Valla

Christian Parken afirma que a religiosidade é umelemento da cultura popular. A pessoa nascecom essa questão, a carrega pelo resto de sua vi-da, e a gente, como intelectual, tenta mostrar ocontrário. Dizemos: “Não é assim, é pela ciência,é pela racionalidade”.

Temos pesquisas sobre estas novas formasde vivência religiosa no meio popular que fo-ram julgadas como sendo de qualidade e forampremiadas. A explicação mais fascinante queouvi sobre o demônio foi quando escutei umamulher dizer que ia para a igreja porque o mari-do bebia e batia nela. Aí o pastor disse: “Isso aí éo demônio”. A mulher fica aliviada. Até entãoela achava que era a culpada por aquela situaçãoe, de repente, entra um terceiro elemento emque ela não tinha pensado. Está tão aliviada quecomeça a conversar com os colegas da igreja so-bre aquilo, e as pessoas passam a bater palmas.Essa ‘sacação’ do demônio alivia a situação. Per-mite a ela mudar a relação com o marido, poisele também não é culpado: está possuído. Elacomeça a pensar em estratégias para ajudar omarido. Muitas pessoas têm abandonado o al-coolismo assim.

Talvez uma pessoa oriunda da Igreja Católi-ca considerasse que aquilo era pecado dela, queela era culpada pelo comportamento do marido.O demônio mais e mais vai se transformando emviolência, em exploração, todas essas questõessão vistas como um mal, como o ‘demônio’. Tal-vez as igrejas evangélicas, sem querer, estejampolitizando a questão...

Revista

Ao mesmo tempo, neste caso, podemos conside-rar que ocorre uma espécie de alienação, porquenão se pode transformar numa força superior...

Victor Valla

Você vira suas costas para a violência, a explo-ração, os problemas conjugais... Dizem que o po-pulismo, sem querer, politiza a população. Popu-lismo é prometer à população aquilo que ela achaviável receber. Consegue-se convencer a popula-ção que não tem água de que é seu direito rece-ber água. Vai-se elevando o patamar da populaçãopoliticamente, mesmo que aquela água não tenhasido entregue. A pessoa sai do debate com a idéiade que ela tem direito de usufruir desse serviço.

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Penso, às vezes, que as igrejas evangélicasestão andando no mesmo caminho. Não que elastenham essa intenção. É o que a Maria das Doresclassifica como ‘desvio de trajetória’. Ela dizque, na primeira vez que a mulher vai ao cultoda igreja, ela provavelmente vai à noite, prova-velmente é a primeira vez que essa mulher po-bre sai de casa à noite sozinha, explicando parao marido que precisa ir à igreja. Dessa forma, elajá começa a conquistar uma certa independên-cia. Agora, isso não é intenção nem da mulher,nem do pastor, por isso a expressão ‘desvio detrajetória’, ou seja, o resultado é diferente doque havia sido planejado. Essa mulher encosta,sem querer, na plataforma do feminismo, no di-reito da mulher de sair de noite sozinha.

Eymard Vasconcelos

Você considera essa questão religiosa um ele-mento para compreender o outro, justamente aclientela do serviço de saúde. E para o profis-sional? Você acha que a dimensão religiosa de-sempenha um papel importante na formação dotrabalhador em saúde?

Victor Valla

Acho. Gosto da frase que usei numa apresen-tação: “Não precisa ter fé, precisa compreendera fé do outro”. Muitas vezes, meus colegas argu-mentam que não têm fé, querendo dizer que, setivessem, faria sentido considerar essa dimensãoreligiosa nas pesquisas. Temos aqui, na Ensp,uma disciplina que se intitula Religião Popularem Saúde.

Eymard Vasconcelos

Suas pesquisas apresentam uma grande reper-cussão nas áreas da saúde e da educação. Sintoque você tem um jeito próprio de fazer pesqui-sa que é diferente do caminho tradicional. Quepostura de pesquisa precisa ser mais expandidahoje nos campos da saúde e da educação? A par-tir de sua experiência, que postura metodológi-ca deve ser mais valorizada na academia, em ter-mos de pesquisa?

Victor Valla

O pesquisador na academia tem uma preocu-pação muito grande de ser bem visto pelos cole-gas. Resta saber se os colegas pelos quais você

quer ser bem visto têm os mesmos valores quevocê. Normalmente não têm.

Muitas vezes, você está querendo o impos-sível ao pedir que a pessoa valorize aquilo quevocê faz. Minha idéia é ser ousado no sentido deenfatizar certas questões necessárias para atransformação do Brasil. Por isso, boa parte dasminhas pesquisas vão na direção da pobreza, afim de tentar compreendê-la.

O último livro que estamos fazendo chama-se Para compreender a pobreza. Esse livro é umaresposta às pessoas que dizem que a pobreza éuma ‘coisa muito complicada’. Acredito que ascoisas não são complicadas, precisamos buscaruma compreensão mais simples nas coisas apa-rentemente difíceis. A palavra ‘complicado’ re-solve tudo. Dizemos que uma coisa é complica-da e a discussão se encerra.

Eymard Vasconcelos

Isso significa que você enfatiza uma pesquisaque nasce mais de uma demanda originada emum movimento social. Como você diz, as pessoasestão muito preocupadas em se projetar na aca-demia e aí temos pesquisas que não têm base nademanda social. Sua preocupação com o social éuma característica de quem está envolvido naEducação Popular, em pesquisas a serviço dasociedade.

Victor Valla

A Ensp lançou uma proposta que se chama Es-cola de Governo. A Ensp irá oferecer 600 milreais para 30 pesquisas, sendo 20 mil para cadauma. Quem quiser pode disputar os 20 mil, en-tão propus à minha equipe que avaliássemos ascondições de saúde de uma região administrati-va do Rio de Janeiro.

A equipe captou a idéia melhor do que eu, esugeriu que tinha que haver um profissional desaúde na comissão, além de um agente de saúde,um pastor, uma mãe de santo e um espírita. Defato, essas pessoas mantêm contato freqüentecom a população e podem nos dizer o que elapensa. Nós não podemos ir de casa em casa paraconversar com a população, mas o agente desaúde pode entrar nas casas das pessoas. Depoisalguém da equipe sugeriu que fôssemos ouvi-dores e criássemos uma ouvidoria coletiva. Es-colhemos as comunidades da Vila do João, deManguinhos e da Penha para realizar o trabalho.

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Depois soubemos que a comissão da Ensp,que avaliou nossa pesquisa, teve restrições aoprojeto. Argumentou que a pesquisa tinha a in-tenção de avaliar o serviço de saúde duas vezes.Nas entrelinhas, estava dizendo que ninguémprecisava avaliar os serviços de saúde, eles ti-nham a capacidade de se auto-avaliar, e a socie-dade civil, que éramos nós, não possuía a capa-cidade de realizar essa tarefa.

Qual não foi a nossa surpresa quando profis-sionais do Centro Municipal da Penha falaramque queriam participar da comissão da nossa pes-quisa. Desejavam se avaliar e fazer com que aprefeitura soubesse de fato o que estava aconte-cendo. É interessante: a comissão que nos julga-va achava que nós queríamos avaliar duas vezesos serviços, e o próprio serviço dizia que queriafazer parte da pesquisa para contar o que estavaacontecendo nos centros de saúde, mostrandosaber dos limites da avaliação feita por ele mesmo.

Elaboramos dez itens que deveriam ser vis-tos pela comissão. Cada comissão iria se reuniruma vez por mês para discutir os itens. Um dositens era a alimentação. Ficamos três meses neleporque tínhamos muita informação colhida comos moradores. Encontramos famílias da favela daMaré que precisam se juntar para comprar umbotijão de gás porque não têm dinheiro. Passamo botijão de gás de uma família para outra a fimde esquentar o jantar. Ou esquentam a refeiçãocoletivamente em uma casa para todos teremacesso ao botijão de gás.

A pobreza é muito grande. Ratos de tama-nho tal que os pais precisam suspender os ber-ços dos filhos no ar para que não sejam mordi-dos durante a noite. Casas de papelão e plásticoconstruídas sobre valas e esgoto. É inimaginávelo grau de pobreza, equivalente ao de muitas ci-dades do Nordeste. Descobrimos nos centros desaúde uma coordenadora que dizia que seusfuncionários sofrem de depressão e exaustão enão conseguem atender a demanda dos serviços.Muitos funcionários contraem as doenças queeles mesmos tratam nos usuários, como a tuber-culose. A população não recebe os remédios quesão de uso gratuito e as creches não recebem aalimentação.

Agora surgiu a proposta da própria coorde-nadora do centro de saúde de criar uma rede en-tre igrejas e organizações não-governamentaisem torno dos centros de saúde. A proposta delaé maravilhosa. Assim, a partir da preocupação

inicial com a pobreza, a pesquisa desencadeouuma articulação de movimentos, lideranças eprofissionais para expressarem de forma públi-ca e organizada a sua visão da realidade. E nãobasta dizer: “Todo mundo sabe o que é a pobre-za, não precisa insistir”. Precisa insistir sim.

Eymard Vasconcelos

Você é uma pessoa que cultivou uma inserção nomeio popular. Aqui na Ensp, um lugar de refe-rência nacional, o pesquisador é muito chamadopara um envolvimento com as grandes institui-ções. Mas você sempre fez questão de ter essainserção no meio popular e o Centro de Pesquisada Leopoldina foi uma forma de você semanal-mente manter contato com a população. Quan-do você abordou a Educação Popular, frisou aquestão do convívio e fez questão de manter es-sa convivência como pesquisador. Além disso,você elabora suas pesquisas a partir de uma coi-sa muito afetiva, dessas impressões que o inco-modam, de certas intuições que, no início, sãonebulosas. Sinto que muitos pesquisadores fi-cam incomodados com um jeito de fazer pesqui-sa que sai da formalidade. Ao mesmo tempo, vo-cê é respeitado por conta do resultado, da reper-cussão das suas pesquisas.

Victor Valla

Fiquei impressionado com Richard Shaull; aliás,iniciei a entrevista falando dele. Richard Shaullera um missionário presbiteriano que ficou abis-mado com a pobreza no Brasil e sugeriu que osmissionários da Igreja Presbiteriana fossem mo-rar com os operários, em Campinas. Ele falava:“Bate na porta, vê se tem um quarto vazio, umlugar para você dormir e vê se há um empregona fábrica”. Ele tinha ouvido falar dos padresoperários franceses, incorporou essa idéia e lan-çou as idéias que geraram as Comunidades Ecle-siais de Base, que mais tarde foram incorporadasà Igreja Católica.

Richard Shaull propôs, em 1950, a fusão docristianismo com o marxismo, que mais tarderepresentou a fundação da Ação Popular. Umadas últimas coisas que fez na vida foi estudarpentecostalismo. No último congresso da Anped[Associação Nacional de Pós-Graduação e Pes-quisa em Educação], as pessoas me questiona-ram porque eu estava estudando os pentecostaise não insistia com a Teologia da Libertação.

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Interview: Victor Valla

Richard Shaull pesquisou os pentecostais,porque, se de fato estamos preocupados com apobreza, temos que saber para onde estão indoos pobres. Eles estão indo para as igrejas evan-gélicas, então, temos que estudar isso. Nessa au-tobiografia que ele escreveu, intitulada Surpre-endido pela graça, ele conta suas preocupaçõescom os pentecostais.

Richard Shaull usa a mesma expressão que opastor Edson Fernando de Almeida, da IgrejaCristã de Ipanema, utiliza quando narra a his-tória da criação do mundo por Deus. SegundoEdson, Deus “esvaziou-se de si mesmo” quandocriou o universo. Para Richard Shaull, a genteprecisa “esvaziar-se de si mesmo” para entenderos outros. Esta afirmação é importante para seraplicada na pesquisa também.

Eymard Vasconcelos

O que significa ‘esvaziar-se de si mesmo’ para opesquisador?

Victor Valla

Significa que você não é o ponto, o centro dereferência. Edson é um pastor presbiteriano, foicriado pela mãe, presbiteriana também. Hoje,ele é pastor da Igreja Cristã de Ipanema, umaigreja famosa e polêmica.

Edson disse que sua mãe custeou seus estu-dos para que pudesse fazer os seminários e setornar pastor. Finalmente, quando chega à Igre-ja Cristã de Ipanema como pastor, encontra umgrupo grande pessoas que era contra a ditaduramilitar. Essas pessoas simplesmente ficavam jo-gando cartas, bebendo cerveja. Um dia, a mãedo pastor Edson falou que não havia custeado osestudos para que ele ficasse conversando comquem bebe cerveja e joga cartas. Então, ele res-pondeu que precisava ‘esvaziar-se de si mesmo’para compreender aquelas pessoas. O pesquisa-dor deveria também fazer este movimento paratrabalhar com as classes populares.

Eymard Vasconcelos

Você viveu uma crise pessoal importante, quefoi o seu acidente vascular, há três anos. Essa ex-periência teve implicações na sua compreensãoda educação, na sua pesquisa? Em que essa ex-periência tem influenciado seu trabalho?

Victor Valla

É toda a questão da recuperação. Depois de umAVC, muita gente morre. Eu soube de uma pessoaque trabalhava no Banco do Brasil e fazia tudocom a mão direita. Ele teve um AVC que afetouseu lado direito, só que ele se entregou e morreude frustração. Isso me marcou. Também me mar-cou o fato de o pastor Edson, da Igreja Cristã deIpanema, me visitar todos os dias em que estiveinternado no hospital, durante mais de um mês.Vendo os outros levarem uma vida normal, diziaa mim mesmo: “Vou voltar a ser normal”.

Estou me recuperando, melhorando gradual-mente. Há pequenos avanços que são grandesconquistas, como aprender a amarrar o sapato,por exemplo. Minha primeira fisioterapeuta, daequipe que reabilitou o Herbert Viana, foi fun-damental na minha recuperação. Ela me reensi-nou a andar. Estou fazendo fisioterapia na pisci-

foto: Peter Illicciev

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Entrevista: Victor Valla

Nota

1 Para a condução desta entrevista, foi con-vidado o professor Eymard Vasconcelos, Profes-sor do Departamento de Promoção da Saúde doCentro de Ciências da Saúde da UniversidadeFederal da Paraíba, Doutor em Medicina Tropi-cal pela Universidade Federal de Minas Gerais.<[email protected]>

na. Estou insistindo comigo, quero melhorar.Acordo todos os dias às seis horas para poderandar nas calçadas com calma. A essa hora narua só tem eu, os porteiros e os jornaleiros. Masainda sofro com certos medos, como o de cair narua; já caí três vezes. Estou experimentando emmim o que é ser marcado por fortes fragilidades,como tanto acontece no mundo popular. Estouexperimentando também o que são a garra e aincrível força de vontade que anima as pessoasdas classes populares.

Eymard Vasconcelos

Sua pesquisa em educação está voltada paracompreender o outro, o marginalizado, que in-clusive é marcado pela doença. De repente vocêestá sendo submetido a uma dimensão de com-preender ainda mais essa situação que marcatambém a vida de outras pessoas.

Victor Valla

Tenho uma formação norte-americana muito for-te. Vejo como meus irmãos e amigos dos EstadosUnidos têm pouca compreensão do que está sepassando aqui no Brasil. Quanto mais me apro-ximo da população brasileira, mais compreendoo Brasil, mais me afasto das pessoas dos EstadosUnidos. O acidente aprofundou um pouco essapercepção.

Vou terminar a entrevista com uma fala dopastor Edson de alguns meses atrás. Ele disseque conversão não é a pessoa não acreditar emDeus e depois passar a acreditar. Não é ser daIgreja Católica e depois passar para outra. A úni-ca conversão que existe de fato é aquela em quea pessoa se converte às causas dos pobres. Essaé a verdadeira conversão, que tem a ver com suarelação diante da pobreza, que esvazia toda aquestão de Deus, religião, tudo.

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