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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO
SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL
LOSENI BUDNY
INTERTEXTUALIDADE: LITERATURA E MÚSICA NA SALA DE A ULA
CIANORTE
2009
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INTERTEXTUALIDADE: LITERATURA E MÚSICA NA SALA DE A ULA
Loseni Budny¹
Juliano Desiderato Antonio (orientador)²
RESUMO: A literatura brasileira sempre se mostrou uma fonte de inspiração para a música popular brasileira e, através da análise de várias músicas, podemos constatar a relação existente entre estes gêneros textuais diferentes. Dada a dificuldade no ensino da literatura, surge a necessidade de outras linguagens que dialoguem com a literatura e que a traga para o cotidiano dos alunos. A música popular brasileira dá a possibilidade de se estabelecerem laços com a literatura através do entrelaçamento de suas linguagens e pode colaborar no estudo reflexivo da literatura. Este trabalho com textos literários e letras de músicas populares se propôs, através de um encaminhamento metodológico, desenvolver uma seqüência didática com os alunos do ensino médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), relacionar a literatura como fonte de inspiração para autores da MPB, levar o aluno a estudar a literatura usando a música como ponto de partida, incentivar o aluno a gostar da literatura, percebendo o diálogo existente entre os textos literários e as músicas, desenvolvendo a capacidade de reflexão e ajudando-o a ver além das letras. O trabalho foi desenvolvido através do estudo de textos literários concomitantemente com a análise das músicas. Palavras-chave: Intertextualidade, literatura brasileira, música popular brasileira, Educação de Jovens e Adultos. ABSTRACT: The Brazilian Literature has always been a source of inspiration for Brazilian popular music and, through the analysis of several songs; we can see the relationship between these different text types. Given the difficulty in the teaching of literature, there is the need for other languages that communicate with the literature and bring it to the daily life of students. Brazilian popular music gives the possibility of establishing ties with the literature through the intertwining of their languages and can collaborate in reflective study of the literature. This work with literary texts and lyrics of popular songs is proposed, via a routing methodology, develop a teaching sequence with high school students of Youth and Adults (EJA) to link the literature as a source of inspiration for authors of the MPB lead students to study literature using music as a starting point, encourage students to love literature, seeing the dialogue between literary texts and music, developing the capacity for reflection and helping you see beyond the letters . The work was developed through the study of literary texts in conjunction with the analyses of the music. Key-words: Intertextuality, Brazilian Literature, B razilian music, youth and adults’ education. 1.Professora licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá, pós-graduação em Literatura e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari, Professora de Língua Portuguesa da Rede Pública, atua no CEEBJA de Cianorte. 2.Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp/Araraquara. Professor do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá.
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Introdução Na busca de contribuir com a construção do cidadão crítico, os PCNs recomendam que
as aulas de Língua Portuguesa contemplem uma grande diversidade de gêneros textuais,
inclusive a canção, a fim de enriquecer e oferecer ao aluno as mais diversas experiências de
leituras e vivências do mundo.
O trabalho com o texto literário em sala de aula constitui-se, muitas vezes, tarefa
difícil para o professor de Língua Portuguesa, já que os materiais didáticos “apresentam
propostas que escolarizam o texto literário e privilegiam questões alheias à especificidade
deste gênero [...] havendo um esvaziamento da complexidade da obra literária no aspecto das
diversas vozes presentes no texto...” (PARANÁ, 2007).
A literatura não é somente um processo artístico a ser consumido por uma elite
experimentada, que se considera única capaz de fruir a produção artística. Ela é um direito
que deve ser acessível a todos, inclusive, àqueles que foram excluídos do processo
educacional e, atualmente, procuram nos bancos escolares o conhecimento que não tiveram na
infância. Os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) podem e devem ter acesso à
literatura como atividade prazerosa e enriquecedora.
A música é a linguagem do sentimento ou da espiritualidade; é a evocadora mais
poderosa da nossa vida. Constitui uma forma particular do pensamento, sendo talvez a arte
mais complexa e universal. É também a mais pura e a mais cristalina de todas as artes. É uma
linguagem que possibilita ao ser humano comunicar-se, verbal e extra verbalmente, expressar
seus sentimentos e emoções, relacionar-se com os seus semelhantes e interagir com o mundo.
Como parte integrante da língua, é um instrumento de comunicação, interação e ação
social, através do qual o homem cria, sente, atua sobre o mundo e deixa que o mundo também
atue sobre ele.
A literatura brasileira sempre se mostrou uma fonte de inspiração para a música
popular brasileira e, através da análise de várias músicas, podemos constatar a relação
existente entre estes gêneros textuais diferentes.
Sendo assim, a música popular brasileira dá a possibilidade de se estabelecerem laços
com a literatura através do entrelaçamento de suas linguagens e pode colaborar no estudo
reflexivo da literatura.
Os PCNs preconizam que dominar a linguagem e a língua é condição de possibilidade
de plena participação social do ser cidadão. Assim, deve ser objetivo da escola possuir um
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projeto educativo comprometido com a democratização cultural e social responsável por
garantir aos alunos o acesso aos saberes lingüísticos necessários ao exercício da cidadania.
De acordo com as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para a Educação
Básica, “as aulas de Língua Portuguesa e Literatura devem tornar o estudante capaz de inserir-
se nas diversas esferas da atividade social e, consequentemente, apto a buscar vagas no ensino
superior e no mundo do trabalho” (PARANÁ, 2007).
Ana Maria Machado (2001), no texto Literatura: o direito a uma herança, ecoando as
palavras de Candido, diz que a literatura é um patrimônio cultural a que todos devem ter
acesso, é uma herança que toda sociedade que se diz democrática deve incluir como direito
do cidadão:
Ler literatura é uma forma de acesso a esse patrimônio, confirma que está sendo reconhecido e respeitado o direito de cada cidadão a essa herança, atesta que não estamos nos deixando roubar. E nos insere numa família de leitores, com quem podemos trocar experiências e nos projetar para o futuro. Aceitar que numa sociedade podemos ter gente que nunca vai ter a menor oportunidade de ter acesso a uma leitura literária é uma forma de compactuar com a exclusão. Não combina com quem pretende ser democrático (MACHADO, 2001, p.136).
Os Centros Estaduais de Educação Básica para Jovens e Adultos (CEEBJAs) são
estabelecimentos estaduais de educação básica, da rede estadual de educação, que oferecem o
ensino fundamental fase II e o ensino médio. Estas escolas não possuem outros meios que
promovam um encontro entre leitor e texto além do material didático e da biblioteca. Se os
alunos da EJA não tiveram acesso à literatura durante a infância por falta de condições
favoráveis para isto, na vida adulta tal situação não mudou, já que a escola de ensino
supletivo não consegue ser eficaz mediadora de leitura.
No entanto, a escola enquanto espaço privilegiado da literatura pode proporcionar aos
alunos um maior contato com textos diferenciados, “um planejamento aberto a um contágio
intertextual, invocando assim, outros temas, outros gêneros, hipertextos e virtualidades”
(PARANÁ, 2007), oportunizando a abertura de horizontes e alargamento de visões de
mundo, aspecto que só a leitura pode proporcionar.
Dada essa dificuldade no ensino da literatura, surge a necessidade de outras
linguagens que dialoguem com os textos literários. A junção da música e da literatura pode
ser uma conexão que venha colaborar no estudo reflexivo da literatura brasileira.
Assim, esta proposta de trabalho teve como objetivos levar o aluno a estudar literatura
usando a música como ponto de partida, incentivar o aluno a gostar de literatura, percebendo
o diálogo existente entre os textos literários e as músicas, levar o aluno a relacionar a
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literatura como fonte de inspiração para autores da MPB e desenvolver no aluno a capacidade
de reflexão, ajudando-o a ver além das letras.
Fundamentação Teórica
De acordo com o pressuposto básico de que é impossível se comunicar verbalmente a
não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por
algum texto, assim a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual.
Para Bakhtin (2000), gêneros do discurso ou gêneros textuais são “tipos relativamente
estáveis de enunciados”, que, por sua vez, são trocas reais de informações entre interlocutores.
Nesta definição do autor, é fácil perceber a relação dialógica que propõe para a utilização da
língua. Para ele, essa utilização é feita através dos enunciados. Quando esses enunciados
atingem certo grau de estabilidade, constituem um gênero.
A estabilidade a que se refere Bakhtin é definida através de três elementos que
compõem e se fundem no todo do enunciado: o conteúdo temático (o que é ou pode tornar-se
dizível por meio do gênero); o estilo (configurações específicas das unidades de linguagem
derivadas, sobretudo, da posição enunciativa do locutor, conjuntos particulares de seqüências
que compõem o texto etc.) e a estrutura composicional (estrutura particular dos textos
pertencentes ao gênero) (BRASIL, 1999, p. 21).
Marcuschi (2003) afirma que os gêneros textuais se constituem como ações sócio-
discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo e que
estes gêneros são fenômenos históricos vinculados à vida cultural e social, contribuindo para
ordenar e estabilizar as atividades comunicativas cotidianas. Para o autor, eles não só surgem
como se integram funcionalmente nas culturas onde se desenvolvem e possuem a forte
característica de funções comunicativas, cognitivas e institucionais muito mais do que
peculiaridades lingüísticas e estruturais.
Ao evidenciar essas características do gênero, o autor enfatiza a importância do seu
caráter de instrumento de linguagem como meio de comunicação e interação social, muito
mais do que seu caráter lingüístico e estrutural. Defende que a definição formal de gênero não
deve ser obstáculo para o seu uso como prática social.
A literatura é um instrumento de comunicação e de interação social, pois transmite os
conhecimentos e a cultura de um povo. Para Antonio Candido, a literatura consiste em:
uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se
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combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade. (CANDIDO, 1976, p.53)
O texto literário se organiza em gêneros literários denominados por gênero lírico,
épico e dramático.
No gênero lírico, os textos apresentam a manifestação de um eu lírico, que expressa
suas emoções, suas idéias, mundo interior ante o mundo exterior. São textos subjetivos,
normalmente os pronomes e verbos estão em 1ª pessoa e a musicalidade das palavras é
explorada.
Nos textos que pertencem ao gênero épico há a presença de um narrador que conta
uma história que envolve terceiros. Os textos épicos narram a história de um povo ou de uma
nação; geralmente são textos longos envolvendo viagens, guerras, aventuras, gestos heróicos e
há exaltação de heróis e seus feitos.
O gênero dramático expõe o conflito dos homens e seu mundo, as manifestações da
miséria humana. Neste gênero, os textos são produzidos com o intuito de serem dramatizados
por atores que fazem o papel das personagens.
O texto literário, como instrumento de leitura em sala de aula, oferece-se como um
campo em que predomina o diálogo, a interação com o leitor e a comunicação com outros
textos. Como afirma Blikstein (2003), “o discurso nunca é totalmente autônomo. Suportado
por toda uma intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas
vozes, geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço”.
A música, o som ordenado, assim como é uma linguagem universal também é uma
linguagem por meio da qual uma idéia é mais bem difundida; A prática de associar qualquer
disciplina à música demonstra possibilidade de enriquecer as aulas; permite ao aluno
“estabelecer relações intertextuais, invocando assim, outros textos, outros gêneros, hipertextos
e virtualidades” (PARANÁ, 2007).
Em suas reflexões sobre a importância da música na sala de aula, Ferreira afirma que:
É evidente a comunicação verbal é por excelência a primeira na escala comunicativa humana; também não é menos verdadeiro que, quando tem a música como aliada, ganha força, entre outros motivos, pelo suporte e penetração mais intensa que adquire a transmissão de sua mensagem original (FERREIRA, 2002, p.9).
A presença de um texto em outro texto por citação ou alusão é denominada de
intertextualidade. Segundo Marcuschi (2008, p.129), “existe um consenso em admitir que
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todos os textos comungam com outros textos, ou seja, não existem textos que não mantenham
algum aspecto intertextual, pois nenhum texto se acha isolado e solitário”.
Pode-se dizer que a intertextualidade é uma “propriedade constitutiva de qualquer
texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos
determinado mantém com outros textos” (Dicionário de análise do discurso, 2004, p.288 in
MARCUSCHI, 2008).
A intertextualidade supõe a presença de um texto em outro (por citação, alusão etc.) e
é um fator importante para o estabelecimento dos tipos e gêneros de textos na medida em que
os relaciona e os distingue.
Koch (2006, p. 86) afirma que “todo texto é um intertexto; outros textos estão
presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis”. A
intertextualidade, num sentido amplo, é uma condição de existência do próprio discurso e
pode equivaler à noção de interdiscursividade ou heterogeneidade. Ela ocorre quando em um
texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória
social de uma coletividade. Para Koch, a intertextualidade pode se constituir implícita ou
explicitamente.
A intertextualidade explícita ocorre quando há citação da fonte do intertexto, como
ocorre em resumos, referências, citações e retomadas de texto para questioná-lo na
conversação. A intertextualidade implícita ocorre sem citação expressa da fonte, cabendo ao
interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto, como nas alusões,
paródias paráfrases e ironia. (KOCH, 2006, p.91).
Sobre a leitura do texto literário, Franco Júnior afirma que ela difere dos demais
textos, pelo fato do código representar um papel central que não pode ser negligenciado, isto
é, a forma não se separa do conteúdo da mensagem. Sendo assim, é preciso fazer a passagem
da análise descritiva para a análise interpretativa, resgatando a ambigüidade da obra literária,
seu caráter polissêmico e sua abertura semântica. É preciso não contentar-se com o sentido
superficial das palavras, mas explorar a intenção daquele que fala (FRANCO JR, 1996, p. 10).
Para este desafio, ele se vale de uma concepção de leitura em que se manifestam
quatro níveis: a decodificação (o que diz o texto): este nível abrange a superfície textual,
englobando desde o conjunto de signos lingüísticos que constitui a expressão corporal da
mensagem (o texto) até o conjunto de informações e referências culturais básicas e
necessárias à compreensão mínima daquilo que se lê; a associação (o que o texto faz
lembrar): a analogia constitui, aqui, a fonte de força principal, uma vez que o leitor
naturalmente insere o texto lido num conjunto de paradigmas que lhe são fornecidos, quase
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que automaticamente, pela sua memória afetivo-intelectual. Os afetos aqui mobilizados
situam-se para além dos juízos de gostos e constituem um importante fator de construção da
leitura, sugerindo, influenciando e até mesmo determinando a recepção critica e a
interpretação do texto literário; a análise (como o texto diz o que diz): este nível implica um
conjunto maior de abstrações maior que os anteriores, por apoiar-se em proposições teóricas e
sistemas conceituais de abordagem do texto literário. Os conhecimentos básicos de teoria e
estética literária aqui são essenciais; a interpretação (o que o texto quer dizer com aquilo que
diz): este nível implica um distanciamento critico entre o leitor e o texto, fundamental para
que se produza ao menos um juízo de valor e um posicionamento critico sobre aquilo que se
leu. Os três níveis anteriores concorrem neste para que a leitura se realize em profundidade.
Daí a importância para este nível de um saber básico sobre história, sociologia, filosofia,
geografia etc.
Não podemos estabelecer em relação ao ato de leitura, uma correspondência entre os
quatro níveis apresentados e a idéia de fases distintas de leitura. A especificidade do texto
literário e sua ambigüidade fundamental impedem tais tentativas.
No estudo dos textos literários e das músicas, não foram estabelecidas fases distintas
para estes níveis, visto que eles se manifestam simultaneamente, interpenetrando-se,
desembocando-se continuamente uns nos outros, desnorteando o estabelecimento de limites
precisos entre um e outro níveis.
O conhecimento dos textos em associação com o conhecimento dos intertextos é de
fundamental importância na atividade de leitura e construção de sentido do novo texto.
A possibilidade de se trabalhar com o simbólico, com a metáfora, com a
intertextualidade, evidencia que o conhecimento não se fecha em si mesmo, mas, pelo
contrário, abre-se em múltiplas possibilidades, e a verdade não se instaura em nenhuma delas.
Consciente da importância de práticas pedagógicas que valorizem linguagens verbais e
não-verbais, este projeto propôs a análise de textos literários de diversos gêneros e músicas de
variados intérpretes e ritmos, com o objetivo de que o aluno percebesse seu papel na interação
com o texto e a intertextualidade presente entre os textos e as músicas.
Os textos e as músicas foram divididos em quatro unidades, que podem corresponder a
duas horas/aulas cada unidade, nesta sequência:
ANÁLISE DOS TEXTOS E DAS MÚSICAS
1ª UNIDADE
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TEXTO:
Tragédia Brasileira
Misael, funcionário da fazenda, com 63 anos de idade. Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria. Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa. Viveram três anos assim. Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos... Por fim, na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. (Manuel Bandeira. In: José de Nicola, Língua, Literatura e Redação, SP: Scipione, 1988. p. 149)
MÚSICA:
Domingo no parque
O rei da brincadeira – ê José O rei da confusão – ê João Um trabalhava na feira – ê José Outro na construção – ê João A semana passada, no fim de semana, João resolveu não brigar. No domingo de tarde saiu apressado E não foi pra ribeira jogar Capoeira. Não foi pra lá, pra ribeira, Foi namorar. O José, como sempre, no fim de semana Guardou a barraca e sumiu. Foi fazer no domingo, um passeio no parque, Lá perto da boca do rio. Foi no parque que ele avistou Juliana,
Foi que ele viu Juliana na roda com João, Uma rosa e um sorvete na mão. Juliana, seu sonho, uma ilusão, Juliana e o amigo João. O espinho da rosa feriu Zé E o sorvete gelou seu coração. O sorvete e a rosa – ê José A rosa e o sorvete – ê José Oi dançando no peito -- ê José Do José brincalhão -- ê José O sorvete e a rosa -- ê José A rosa e o sorvete -- ê José Oi girando na mente -- ê José Do José brincalhão -- ê José Juliana girando – oi girando Oi na roda gigante – oi girando Oi na roda gigante – oi girando O amigo João – oi João
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O sorvete é morango – é vermelho Oi girando e a rosa – é vermelha Oi girando, girando – é vermelha Oi girando, girando – olha a faca Olha o sangue na mão – ê José Juliana no chão – ê José Outro corpo caído – ê José
Seu amigo João – ê José Amanhã não tem feira – ê José Não tem mais construção – ê João Não tem mais brincadeira – ê José Não tem mais confusão – ê João
(Gilberto Gil. Disponível em: www.vagalume.com.br. Acesso em 17/11/2008).
ANALISANDO
O texto e a música nos relatam dois casos de crime passional. São ricos no uso de metáforas,
antíteses, ironia, nomes e cores que nos remetem a muitos significados. O estudo da
simbologia contribui bastante para a compreensão dos textos.
Professor:
-- Converse com seus alunos sobre a semelhança de conteúdo entre o texto e a música;
embora um seja escrito em prosa e o outro em verso, ambos falam de assassinato. Os motivos
(velhice, prostituição, marginalidade social, desejo, solidão, doença, ascensão social, pobreza,
medo, violência, ciúme, inveja) que deram origem aos crimes foram os mesmos?
-- Fale sobre a importância da escolha dos nomes feita pelos autores e do significado deles.
(Sugira que eles pesquisem o significado de seus nomes e tragam para a próxima aula, para
que possam interagir e conhecer melhor os colegas). Fale sobre o significado dos nomes
usados no texto e na música:
• Misael, (hebraico) ‘Quem é que é Deus?’, emotivo e muito ligado à família, exagera
nos cuidados e corre o risco de sufocar aqueles que ama.
• Maria, ‘senhora, soberana’.
• Elvira, ‘inteligente e comunicativa, tem necessidade incrível de falar, mas nem
sempre diz tudo o que se passa pela cabeça’.
-- Teria Maria Elvira, de acordo com o significado de seu nome, dona e senhora de si,
comunicativa, se sentido sufocada pelo amor e cuidados de Misael e lhe traído tantas vezes?
Estas características presentes no nome teriam contribuído na construção das características
da personagem?
-- O texto não menciona a idade de Maria Elvira. Seria ela bem mais jovem que Misael que já
tinha 63 anos, podendo ser este um motivo a mais de ciúme e consecução do crime? Maria
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Elvira era uma prostituta e Misael já não era moço; haveria neste fato um conflito no que se
refere à disposição dos amantes para o sexo?
-- Na música:
• José, ‘aquele que acrescenta’
• João, ‘Deus é gracioso’
• Juliana, ‘forma derivada de Júlia, cheia de juventude’
-- Os três personagens, quanto ao significado dos nomes, têm características em comum:
todos começam com a letra ‘j’, o que cria uma identidade entre eles, reforçando os laços de
amor e ódio presentes no triângulo amoroso; jogam de igual para igual com qualquer pessoa.
Não se sentem melhor nem pior que ninguém e têm uma cabeça bastante aberta. Com sua
agilidade mental e física, não perdem uma oportunidade de viajar e têm uma paixão pela vida
de dar inveja a qualquer um. Só não são moderados na hora de julgar os outros ou de dizer
certas "verdades" à queima-roupa, sem um pingo de diplomacia. Talvez essa agilidade
comum aos três personagens tenha feito com que José agisse impetuosamente, sem pensar.
-- Na música, José é denominado ‘o rei da brincadeira’, mas revela-se violento e assassino;
quanto ao significado ‘aquele que acrescenta’, ele não acrescentou e sim subtraiu a vida do
casal. João é o rei da confusão, mas revela-se amoroso e delicado com Juliana (dando-lhe a
rosa, o sorvete), além de frágil perante a violência de seu rival; quanto ao significado ‘Deus é
gracioso’, há uma antítese, pois ele não foi agraciado na narrativa; para Juliana, não é
mencionada nenhuma descrição, a não ser a representação de um sonho, de uma ilusão para
João, e o significado ‘cheia de juventude’ traz uma antítese, já que perde sua vida e sua
juventude.
-- Comente sobre o ambiente em que se passa a narrativa: na música, tudo ocorre num parque
de diversões, local normalmente marcado pela alegria e descontração; o assassinato do casal
destoa desse ambiente. No texto, a busca de Misael por estabilidade no relacionamento se
contrasta com a quantidade de mudanças de bairro que o casal faz. Os bairros para onde o
casal se muda ficam muito distantes um do outro; isto pode sugerir que Misael levava Maria
Elvira para bem longe com a esperança de que ela esquecesse ou não se encontrasse mais com
os amantes. As diversas mudanças de endereço significam o número de traições cometido por
Maria Elvira. A enumeração destes lugares cria um efeito cômico no texto e nos remetem ao
progressivo esgotamento da paciência de Misael que explode no momento do assassinato. A
Rua da Constituição onde Maria Elvira foi morta, simboliza com ironia, o respeito às leis, que
foi infringida por Misael quando a matou. (Sugira que seus alunos consultem o mapa da
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cidade do Rio de Janeiro no Google Earth e verifiquem a posição dos bairros mencionados no
texto).
-- Na música, a repetição cria um efeito de circularidade, que tanto marca o girar dos
namorados na roda gigante como a perturbação emocional de José que mistura amor e ódio ao
ciúme que cresce progressivamente dentro dele. No texto, as constantes mudanças de bairro
marcam o adiamento da decisão de Misael, sempre dando mais uma chance para Maria Elvira
se regenerar e o efeito de circularidade se dá quando voltam a morar no Estácio.
-- Na música, a ênfase dada à cor vermelha intensifica o conflito dramático, pois simboliza o
amor e o ódio; é a cor da paixão e do sentimento. Simboliza o amor, o desejo, mas também o
orgulho, a violência, a agressividade ou o poder. A rosa e o sorvete, além de representarem a
relação amorosa entre Juliana e João, já prenunciam ou sugerem pela cor vermelha, o sangue
na mão de José. O sorvete de morango, a rosa e o sangue nos remetem ao vermelho, cor que
sintetiza o tema e alguns motivos importantes da narrativa: amor, paixão, ciúme, ódio,
violência, morte e crime. No texto, o vestido de Maria Elvira é azul, que é a cor do céu, do
espírito e do pensamento. Simboliza a lealdade, a fidelidade, a personalidade e sutileza.
Simboliza também o ideal e o sonho. É a mais fria das cores frias. A simbologia da cor azul
do vestido de Maria Elvira ironicamente contrasta com sua infidelidade, falta de sutileza e sua
triste realidade. O vestido de organdi azul revela sua ascensão social após a ligação com
Misael. Além de fino, o organdi é um tecido transparente, o que indica que ela usava do seu
poder de sedução.
-- Use as questões seguintes para expandir a compreensão do texto e da música:
1. Os textos líricos (poemas) e as músicas podem ser compostos em estruturas
semelhantes. Não é o caso deste texto e desta música em análise. Como se estruturam
o texto e a música acima em termos de estrutura de composição? (parágrafos, rimas,
estrofes, escolha vocabular, figuras de linguagem, fábula, narrador, ações, foco
narrativo, personagens, tempo, espaço, a qual movimento literário pertencem....).
2. A leitura do texto nos remete a um crime passional resultante de um adultério crônico.
Esta mesma situação se comprova na música? Que motivo(s) teria(m) levado José a
matar Juliana e o seu amigo João? Quais as semelhanças e as diferenças quanto ao
que se conta em cada uma das composições?
3. Existem semelhanças entre as personagens do texto e da música? Estas semelhanças
estão na classe social a que pertencem ou se estendem a outros planos? Comente.
4. O texto e a música contêm informações que poderiam ser publicadas em um jornal. Se
fossem, em qual página estariam? (Sugira que os alunos produzam uma narrativa com
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os mesmos dados da música ou do texto para hipoteticamente ser publicado no jornal.
Este é um bom momento para serem trabalhados os conceitos de narrativa real e
ficcional e outros relacionados).
2ª UNIDADE
TEXTO:
Fragmento da Carta de Caminha
(...)
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na
mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro:
não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr
a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados.
Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem
quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na
boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito
com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra
e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria
as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar.
E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas
vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O
Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por
não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e
dormiram.
(...)
(Pero Vaz de Caminha. In: Maria da Conceição Castro.. Língua e Literatura. vol1. SP:
Saraiva, 1994)
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MÚSICA:
Índios
Quem me dera, ao menos uma vez, Ter de volta todo o ouro que entreguei A quem conseguiu me convencer Que era prova de amizade Se alguém levasse embora até o que eu não tinha. Quem me dera, ao menos uma vez, Esquecer que acreditei que era por brincadeira Que se cortava sempre um pano-de-chão De linho nobre e pura seda. Quem me dera, ao menos uma vez, Explicar o que ninguém consegue entender: Que o que aconteceu ainda está por vir E o futuro não é mais como era antigamente. Quem me dera, ao menos uma vez, Provar que quem tem mais do que precisa ter Quase sempre se convence que não tem o bastante E fala demais por não ter nada a dizer Quem me dera, ao menos uma vez, Que o mais simples fosse visto como o mais importante Mas nos deram espelhos E vimos um mundo doente. Quem me dera, ao menos uma vez, Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três E esse mesmo Deus foi morto por vocês - É só maldade então, deixar um Deus tão triste.
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho. Entenda - assim pude trazer você de volta prá mim, Quando descobri que é sempre só você Que me entende do inicio ao fim E é só você que tem a cura pro meu vício De insistir nessa saudade que eu sinto De tudo que eu ainda não vi. Quem me dera, ao menos uma vez, Acreditar por um instante em tudo que existe E acreditar que o mundo é perfeito E que todas as pessoas são felizes. Quem me dera, ao menos uma vez, Fazer com que o mundo saiba que seu nome Está em tudo e mesmo assim Ninguém lhe diz ao menos obrigado. Quem me dera, ao menos uma vez, Como a mais bela tribo, dos mais belos índios, Não ser atacado por ser inocente. Eu quis o perigo e até sangrei sozinho. Entenda - assim pude trazer você de volta pra mim, Quando descobri que é sempre só você Que me entende do início ao fim E é só você que tem a cura pro meu vício De insistir nessa saudade que eu sinto De tudo que eu ainda não vi. Nos deram espelhos e vimos um mundo doente Tentei chorar e não consegui.
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(Legião Urbana. Disponível em: www.vagalume.com.br. Acesso em 17/11/2008).
ANALISANDO
O trecho da carta de Caminha e a música Índios tratam do mesmo tema: a chegada dos
portugueses ao Brasil, o primeiro contato com os índios, a busca por ouro e a conseqüente
exploração da nossa terra. Caminha descreve o primeiro encontro entre os índios e o capitão
da embarcação portuguesa na postura de colonizador. O autor da música fala deste e de outros
fatos relacionados, porém, sob a ótica do colonizado. O escrivão português demonstrou
grande interesse em descrever o povo que habitava a terra nova, numa visão bastante
interessante, usando parâmetros da civilização européia, nada adequados à observação de
povos indígenas. Na música, é apresentada uma visão bem crítica dos fatos, possibilitada pelo
indispensável distanciamento histórico.
Professor, analise com seus alunos:
-- Quem é o autor da carta e da música? Quanto tempo se passou entre estes dois momentos?
Os autores são representantes de duas culturas que se contrapõem. Quais são os interesses de
cada um? O que revela a postura do capitão? Na carta (em outro trecho), os interesses
econômicos do imperialismo português são justificados com o argumento da necessidade de
levar o cristianismo aos pagãos. Seria este argumento verdadeiro?
-- Os portugueses interpretam alguns sinais e comportamentos dos índios como melhor lhes
convém. Que passagens do texto comprovam isso? Isto mostra o real objetivo da vinda dos
portugueses ao Brasil? Quais informações acerca de nossa terra mais interessavam aos
portugueses?
-- Explore o vocabulário da carta, tentando reconstituir o cenário e os costumes da época. Se
possível, leve o texto integral da Carta para que os alunos tomem conhecimento; (Sugestão:
os alunos poderão se reunir em grupo; cada grupo resume partes da carta e apresenta aos
colegas; assim todos ficam conhecendo o texto inteiro).
-- Na música, a repetição da expressão ‘quem me dera ao menos uma vez’ traduz talvez o
desejo do autor de voltar ao passado e mudar a história, tentar compreender os fatos ou até
mesmo demonstrar alguma atitude perante eles e não somente assistir a tudo passivamente. Se
isso fosse possível, o que o autor gostaria de ver mudado?
-- Como podem ser interpretados os versos 3 e 4 da segunda estrofe? Seriam indicativos do
desperdício da corte à custa do povo brasileiro?
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-- Na quarta estrofe, a quais pessoas o autor pode estar se referindo quando diz que elas têm
mais do que precisam ter, mas se convencem do contrário e apresentam um discurso vazio?
Converse com os alunos sobre o consumo exagerado em nossa sociedade, a sustentabilidade
do planeta, distribuição desigual de renda e outros assuntos que julgar pertinentes a este tema.
-- Como podemos analisar a expressão ‘mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente’?
Em vez do índio se ver no espelho, teria este o poder ou a função da representação do futuro?
O oferecimento de bugigangas, representadas por espelhos na música, seria o prenúncio de
que os portugueses levariam nossas riquezas (pau-brasil, açúcar, ouro...) em troca de quase
nada ou nada em troca?
-- Na sexta estrofe, o conceito da Trindade (um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo em
uma só pessoa) nos remete à catequização dos índios. Para eles, este conceito era tão
incompreensível quanto o fato de Jesus ser morto pelo branco (vocês), e Deus, que também é
Jesus, continuar vivo e adorado pelos brancos. Podemos afirmar que a reverência do índio ao
sagrado, como se menciona em outro trecho da carta, quando descreve a primeira missa, seria
sincera e consciente? Não teria ele sido induzido pelos portugueses, num gesto de pura
imitação? (Sugira que os alunos assistam ao filme: Brincando nos Campos do Senhor, de
Hector Babenco, 1991, que aborda o tema da evangelização e exploração dos povos indígenas
pelos brancos em nome de Deus).
-- Na oitava estrofe se acentua o tom irônico, presente ao longo da música, (seria prova de
amizade alguém levar até o que eu não tinha?) quando o autor expressa o desejo de acreditar
num mundo perfeito, em meio à hipocrisia de um mundo doente e de pessoas ingratas como
se nota na nona estrofe.
-- Na décima estrofe, estaria o autor dizendo que se os índios não fossem tão inocentes e
pacíficos não teriam sido atacados e dizimados pelos brancos?
-- A quem o autor da música se dirige quando diz ‘que é só você que me entende do início ao
fim e que tem a cura pro meu vício... ’?
-- Sugestão: Peça aos alunos que produzam uma carta dirigida a Pero Vaz de Caminha,
descrevendo a atual situação do país, 500 anos após a passagem dele por aqui.
3ª UNIDADE
TEXTO:
À mesma D. Ângela
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Anjo no nome, Angélica na cara! Isso é ser flor, e Anjo juntamente: Ser Angélica flor, e Anjo florente, Em quem, senão em vós, se uniformara: Quem vira uma tal flor, que a não cortara, De verde pé, da rama florescente; E quem um Anjo vira tão luzente, Que por Deus o não idolatrara?
Se pois como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo, que por bela, e por galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
(Gregório de Matos Guerra. In: Tânia Pellegrini. Português: palavra e arte. vol.1. SP: Atual,
1997. p. 265)
MÚSICA: UMAS E OUTRAS Se uma nunca tem sorriso É pra melhor se reservar E diz que espera o paraíso E a hora de desabafar A vida é feita de um rosário Que custa tanto a se acabar Por isso às vezes ela pára E senta um pouco pra chorar Que dia! Nossa, pra que tanta conta Já perdi a conta de tanto rezar Se a outra não tem paraíso Não dá muita importância, não Pois já forjou o seu sorriso E fez do mesmo profissão A vida é sempre aquela dança Onde não se escolhe o par Por isso às vezes ela cansa E senta um pouco pra chorar Que dia! Puxa, que vida danada Tem tanta calçada pra se caminhar
Mas toda santa madrugada Quando uma já sonhou com Deus E a outra, triste namorada Coitada, já deitou com os seus O acaso faz com que essas duas Que a sorte sempre separou Se cruzem pela mesma rua Olhando-se com a mesma dor Que dia! Nossa! Pra que tanta conta Já perdi a conta de tanto rezar... Que dia! Puxa! Que vida danada Tem tanta calçada pra se caminhar. Que dia! Puxa! Que vida comprida Pra que tanta vida pra gente viver. Que dia...
(CHICO BUARQUE. Disponível em: www.vagalume.com.br. Acesso em 17/11/2008)
ANALISANDO:
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-- O texto e a música estruturam-se em torno de antíteses. O conflito entre matéria e espírito e
também a busca da síntese entre esses opostos é constante no ser humano e manifesta-se com
maior ou menor intensidade em qualquer época, individual ou coletivamente. O texto é
representante do Barroco, estilo em que esta preocupação foi tão forte que se tornou o traço
distintivo das manifestações culturais desse período.
-- O soneto revela muito desse estilo. A lírica amorosa é fortemente marcada pelo dualismo
amoroso carne/espírito, que leva normalmente a um sentimento de culpa no plano espiritual.
A mulher, muitas vezes é a personificação do próprio pecado, da perdição espiritual. Há uma
dualidade que percorre todo o texto: na primeira estrofe o “eu-lírico” começa a esboçar uma
imagem da mulher construída a partir de duas palavras que associa ao seu nome e ao seu
rosto: flor e anjo. Note que a mulher, inicialmente identificada com a figura de um anjo (que
remete à pureza angelical contida no próprio nome Ângela) é vista como um ser superior,
dotado de grandezas absolutas e inacessíveis. Podemos observar o uso de trocadilhos
(anjo/Angélica) na construção imagética do poema: trata-se de uma mulher de nome e feições
angelicais, tão bela que se assemelha a uma flor. O toque barroco aparece no jogo de
contradições revelado nos dois tercetos: se essa mulher é um anjo, como é possível que, em
vez de garantir proteção, guardá-lo, livrá-lo de diabólicos azares, cause apenas a tentação ao
eu-lírico? Em vez de proteger, a mulher, com sua beleza, leva ao desejo e, consequentemente
ao pecado. Já que a mulher amada é anjo e flor, ao mesmo tempo em que marcam a dualidade,
marcam também a tentativa de unificação. Tentativa cuja base é a beleza que quando
associada à flor, tende a ser breve, destruída (Quem vira uma tal flor, que a não cortara...?), e
quando associada a anjo, tende a ser idolatrada, glorificada, eternizada (E quem um anjo vira
tão luzente,/ Que por seu Deus o não idolatrara?). O apelo sensorial do corpo se contrapõe ao
ideal religioso, gerando um sentimento de culpa. O poeta aparentemente opta por um dos
atributos da mulher, ou seja, parte da suposição de que é anjo. Entretanto essa suposição não
se confirma. O que se confirma é a dualidade, que converte a mulher amada num anjo
contraditório, que tenta sem deixar de ser anjo, sendo ao mesmo tempo flor. Assim, o poema
que se inicia com a louvação de uma beleza angelical, encerra-se como advertência contra
uma tentação demoníaca, mantendo viva a tensão entre a imagem feminina angelical e a
tentação da carne que atormenta o espírito, ambas presentes na mesma pessoa da mulher,
representada por Ângela.
-- Na música, a antítese é a figura usada para realçar a oposição entre duas mulheres: a
vivência predominantemente terrena, material da prostituta e a vivência quase exclusivamente
espiritualizada da religiosa.
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-- No poema, fala-se de uma mulher composta por dois lados que se opõem. Na música, são
duas mulheres com características opostas que se descobrem muito semelhantes no final.
-- A antítese abrange também os espaços onde as duas mulheres cumprem sua rotina:
enquanto uma faz uso da noite para trabalhar, a outra dorme. Esta figura de linguagem serve
para realçar o contraste, a situação da vida de cada personagem.
-- Embora a religiosa procure justificar a falta do sorriso como um modo de se preservar,
esperando desabafar no paraíso, deixa transparecer que a vida é enfadonha, o rosário é muito
comprido e também se senta pra chorar. Enquanto isso, a prostituta parece não se importar
muito com o paraíso, mas seu sorriso é forjado por causa da profissão, ela é uma triste
namorada que não escolhe o par e também chora. Em ambas, o sorriso não é espontâneo,
natural.
-- O dia-a-dia das mulheres é sintetizado por duas palavras: conta e calçada. As duas
simbolizam na música, trabalho penoso, obrigatório, sem prazer.
-- No final da música, a antítese em torno da qual ela se estrutura, desfaz-se. Procura-se uma
síntese entre esses elementos opostos, síntese que está metaforizada no encontro das duas
personagens, cruzando pela mesma rua, ambas “olhando-se com a mesma dor”. Essa síntese
mescla a existência das duas mulheres, mostrando o cansaço e a condição solitária de ambas.
4ª UNIDADE TEXTO I: Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?
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(Luiz Vaz de Camões. In: Maria da Conceição Castro.. Língua e Literatura. vol1. SP: Saraiva,
1994. p. 208)
TEXTO II: Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. (Primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios 13: 1 a 7 – A Bíblia Sagrada. Trad. por João Ferreira de Almeida. RJ: Imprensa Bíblica Brasileira, 1962. Parte 2, p. 201) MÚSICA:
Monte Castelo
Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. O amor é bom, não quer o mal. Não sente inveja ou se envaidece. O amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer. Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É um não querer mais que bem querer. É solitário andar por entre a gente. É um não contentar-se de contente. É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrario a si é o mesmo amor. Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem. Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face. É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
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(Legião Urbana. Disponível em: www.vagalume.com.br. Acesso em 17/11/2008)
ANALISANDO:
-- O soneto de Camões, o trecho bíblico e a música de Renato Russo falam sobre um dos
temas mais explorados pela literatura: o amor. Embora tenham se passado muitos anos entre o
registro de cada texto, é clara a relação de intertextualidade e interdiscursividade entre eles. A
influência dos textos bíblicos é marcante em toda a literatura brasileira e também nas músicas
populares e não somente nas sacras. Os textos de Camões também foram retomados por
autores modernistas como Vinícius de Moraes e Guilherme de Almeida, entre outros, dado o
caráter clássico da composição de sua obra.
-- Professor: Desperte nos alunos a sensibilidade necessária à percepção dos elementos
melódicos presentes no texto 1 e na música, destacando o jogo de contrários, as rimas, o
ritmo.
-- Leve os alunos a perceber que Camões se propõe a discutir o Amor em termos universais e
não um caso específico de amor. Essa questão pode ser aproveitada para se falar do caráter
universal da poesia clássica em oposição à simples expressão de uma realidade particular.
-- Discuta:
� Como é possível chegar à felicidade e harmonia pelo amor, se os seus efeitos são tão
contraditórios?
� O que é estar solitário entre as gentes?
� As afirmações do primeiro terceto.
� Se o amor definido no texto bíblico e na música possui também uma dimensão
universal.
� A concepção de amor exposta nos textos e na música coincide com a atual visão de
mundo lógica e racional?
-- O verso ‘Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face’ é citação de um outro trecho
bíblico. Como podemos interpretá-lo?
-- Renato Russo, ao se apropriar dos discursos camoniano e bíblico, atribui novos sentidos a
eles, condizentes com suas idéias e sua época. Considerando o título da canção: Monte
Castelo, nome do local, na Itália, que foi tomado pelos soldados brasileiros no final da
Segunda Guerra Mundial e a interdiscursividade dela com outros discursos, que sentido ganha
a canção, considerada a época em que foi produzida? A canção seria um apelo ao amor, uma
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forma de revitalizar esse sentimento que anda tão esquecido em nosso tempo? O amor seria
um sentimento muito mais significativo nos dias de hoje, tão cheios de ódio e guerras?
-- A impossibilidade de explicar racionalmente o sentimento amoroso e de conciliar desejo
carnal e purificação espiritual levam a poesia a manifestar freqüentes contradições, que se
explicitam no uso intenso de antíteses e paradoxos. O Amor de que se fala não é individual,
mas universal (observe o uso da letra maiúscula nesse substantivo comum).
-- O poeta usa incansavelmente o verbo ser procurando definir os paradoxos, as contradições
que caracterizam esse sentimento: Amor é fogo, é ferida, é um contentamento, é dor, é um
não querer, é ser solitário, é nunca contentar-se, é cuidar que se ganha, é querer estar preso, é
servir a quem vence, é ter lealdade. O que há de comum entre essas definições do amor?
-- Se por um lado há um esforço tão grande de racionalizar, definir, explicar, por outro há uma
sucessão tão grande de falta de lógica, de nexo: como o amor pode ser fogo que arde
(redundância) e ao mesmo tempo não se vê, ferida que dói (redundância) e ao mesmo tempo
não se sente. Enfim, como o Amor pode ser um contentamento descontente, um não querer
mais que bem querer, um cuidar que se ganha em se perder etc?
-- Há no soneto uma preocupação constante de racionalizar o que vai além da razão, de
universalizar o que pertence a cada coração. Note que a interrogação com que o poema
termina é argumentativa, ou seja, mantém o tom polêmico presente em todo o texto, não abre
mão de provar racionalmente a irracionalidade do sentimento amoroso.
-- Por fim, o texto bíblico resume o imenso significado desse sentimento: eu poderia fazer
tudo, alcançar coisas inatingíveis, até mesmo morrer queimado, mas se não tivesse amor...
nada seria.
Conclusão
O trabalho foi desenvolvido com alunos do ensino médio do CEEBJA de Cianorte, na
disciplina de Português.
Assim que a turma teve início, no 1º bimestre de 2009, o projeto foi apresentado. Em
seguida, foi necessário oferecer alguns subsídios teóricos sobre literatura para se proceder a
análise dos textos. Os textos foram selecionados previamente de acordo com o programa de
Língua Portuguesa e Literatura do ensino médio da educação de jovens e adultos e foram
escolhidas as músicas que têm relação com estes textos.
A duração do estudo da disciplina de Língua Portuguesa nesta modalidade de ensino é
de 52 (cinqüenta e dois) dias letivos ou 208 (duzentas e oito) h/a. Tempo este suficiente para
desenvolver o projeto e os conteúdos relativos à disciplina.
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O trabalho se deu por meio do estudo de textos literários concomitantemente com a
análise de músicas populares brasileiras. Ao trabalhar com as músicas e os textos literários
selecionados, foram seguidos alguns passos com o objetivo de levar o aluno a constatar a
dialogicidade entre os textos e a música. Motivação: os alunos analisaram um texto visual
(pintura, escultura, propaganda, charge...) que se relacionava ao tema literário, para ativar
conhecimentos prévios; questionamento: os alunos viram e/ou ouviram um texto auditivo ou
midiático (música, vídeo, notícia ou reportagem...) que se relacionava ao tema, mas que
apresentava uma visão diferente da primeira e motivava outro posicionamento; análise: os
alunos leram e analisaram um texto literário (poema, crônica, conto...) que aprofundava o
tema; extrapolação: os alunos leram e analisaram um texto literário que expandia o tema e
provocava novas reflexões, novos temas e possíveis novos textos (produções artísticas dos
alunos).
Acredito que as seqüências propõem temas que dialogam com vários estilos de época,
possuem riqueza lingüística a ser explorada, apresentam conteúdos chamativos geradores de
debates e reveladores de conflitos atuais. Dessa forma, é possível explorar não só conteúdos
de teoria literária e estilos de época, mas de filosofia, sociologia e afins.
Referências
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SP: Nova Cultural, 1996.
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intertextualidade. 2. ed. SP: Editora da USP, 2003.
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24
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. in: DIONISIO, A. P.
(org.). Gêneros textuais & ensino. 2. ed. RJ: Lucerna, 2003.
_________________. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. SP: Parábola
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NICOLA, José de. Língua, Literatura e Redação. vol. 3. SP: Scipione, 1988.
PARANÁ. Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para a Educação Básica. Curitiba,
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