interseções entre os valores e a memória na comunicação ... · suzel garcia de lima figueiredo...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES SUZEL GARCIA DE LIMA FIGUEIREDO Interseções entre os valores e a memória na comunicação organizacional São Paulo 2011

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES

    SUZEL GARCIA DE LIMA FIGUEIREDO

    Intersees entre os valores e a memria

    na comunicao organizacional

    So Paulo 2011

  • SUZEL GARCIA DE LIMA FIGUEIREDO

    Intersees entre valores e memria na

    comunicao organizacional

    So Paulo 2011

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao (PPGCom) da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao.

    rea de Concentrao: Interfaces Sociais da Comunicao.

    Linha de Pesquisa: Polticas e Estratgias de Comunicao.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Nassar.

  • Servio de Biblioteca e Documentao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo.

    Figueiredo, Suzel.

    Intersees entre valores e memria na Comunicao Organizacional / Suzel Figueiredo. Orientador: Prof. Dr. Paulo Nassar. So Paulo 2011.

    141f. : il.

    Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo, 2011.

    1. Interfaces Sociais da Comunicao. 2. Polticas e Estratgias de Comunicao. I. NASSAR, P. II. Comunicao Organizacional. III. Memria Organizacional. IV. Valores Organizacionais.

    CDD 21. Ed. -

    302

  • FIGUEIREDO, Suzel. Intersees entre valores e memria na comunicao organizacional. Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao (PPGCom) da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao.

    Aprovada em: _____/_____/_____

    Banca Examinadora

    Prof. Dr._____________________________________Instituio:_______________

    Julgamento:___________________Assinatura:_____________________________

    Prof. Dr._____________________________________Instituio:_______________

    Julgamento:___________________Assinatura:_____________________________

    Prof. Dr.______________________________________Instituio:______________

    Julgamento:___________________Assinatura:______________________________

  • Dedico este trabalho s minhas filhas, Mariana e Julia.

    Minhas amigas, minhas companheiras.

    Fontes de inspirao.

    Motivos de orgulho.

    Meu cho.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Rubens e Luzia, com quem aprendi o valor da verdade;

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Nassar, pelo comprometimento e amizade;

    Aos integrantes da minha banca de qualificao, Prof. Dr. Margarida M. Khroling

    Kunsch e Prof. Dr. Eugenio Bucci, pelo acolhimento;

    Ao Prof. Dr. Clvis Barros Filho, pelos encontros alegres;

    Aos professores Dr. Sidinia Gomes Freitas, Dr. Mitsuru Higuchi Yanaze,

    Dr.Leandro Leonardo Batista, Dr. Ecla Bosi pelo conhecimento;

    Prof Ms. Wilma Vilaa, pelo companheirismo;

    Cacau Freire, pela contribuio e estmulo;

    Carla Mingolla, pela compreenso;

    Raisa Kamaura, pelo empenho;

    Ao pessoal da Ideafix, com quem vivencio o valor de um time;

    Aos meus alunos e clientes que me mostram, todos os dias, o valor do trabalho;

    Aos Garcia e Figueirada, que traduzem o valor da famlia;

    Aos meus amigos da vida toda, que me ensinaram o valor da confiana;

    E s minhas filhas, que refletem o valor da felicidade.

    O sentido da vida se faz, assim, no exerccio dos valores.

    E a todos que so atores neste processo, deixo minha reverncia e meu afeto.

  • Os homens jamais escolhem valores,

    assim como jamais escolhem o bem ou a felicidade.

    Escolhem sempre ideias concretas, finalidades concretas,

    alternativas concretas. Seus atos concretos de escolha

    esto naturalmente relacionados com sua

    atitude valorativa geral, assim como seus juzos esto

    ligados sua imagem de mundo.

    Agnes Heller

  • RESUMO

    O objeto desta dissertao envolve um estudo dos valores organizacionais dos

    grandes grupos empresariais que operam no Brasil. O corpus terico que embasa a

    anlise est fundado nas teorias da comunicao organizacional, nos estudos de

    memria, no campo da histria e na teoria dos valores, no campo da filosofia. O

    ponto de interseo ocorre na cultura organizacional, onde os valores so

    divulgados, vivenciados ou projetados. Os conceitos de Max Scheler, principal

    terico contemporneo dos valores, so utilizados para discutir os resultados da

    pesquisa aplicada. No entanto em tempos de impermanncia, os resultados

    sugerem que a memria que particulariza as organizaes no se reflete nos valores

    divulgados. Ao contrrio, os valores explicitados tm baixa relao com a atividade

    fim das organizaes e muito vnculo com a gesto. Lucro (resultados) e tica so

    os dois valores mais presentes nos 100 grupos consultados. Os comunicadores

    organizacionais esto diretamente envolvidos no processo de difuso e

    interpretao desses valores, que so a gnese e fonte de inspirao para projetos

    e programas de gesto da identidade organizacional.

    Palavras-chave: Valores. Valores organizacionais. Cultura organizacional. Memria

    organizacional. Comunicao Organizacional.

  • ABSTRACT

    The object of this dissertation involves a study of the organizational values

    of large business groups that operate in Brazil. The theoretical corpus that sets up

    this analysis is based on the theories of organizational communication, on memory

    studies from history and on the theory of values from philosophy. The intersection

    point occurs in the organizational culture, where the values are revealed,

    experienced or projected. The concepts of Max Scheler, the main contemporary

    theoretician of the values, are used to discuss the results of the applied research.

    However, in changing times, the results suggest that the memory that particularize

    the organizations is not reflected in the values published. On the contrary, the values

    mentioned have little relation to the organizations core business and a great

    connection with the management. Profit (results) and ethics are the two values most

    often present in the 100 groups consulted. The organizational communicators are

    directly involved in the process of propagation and interpretation of these

    values, which are the genesis and the source of inspiration for projects and

    management programs of organizational identity.

    Key words: Values. Organizational values, Corporate culture. Corporate memory.

    Organizational Communication.

  • LISTAS DE TABELAS

    TABELA 1. Trs orientaes para a relao discurso-organizao.....................

    30

    TABELA 2. Metforas de Morgan........................................................................ 33

    TABELA 3. Quadro comparativo das metforas.................................................. 34

    TABELA 4. Misso, viso e valores..................................................................... 42

    TABELA 5. Classificao da histria da filosofia, de acordo com Chau............. 55

    TABELA 6. Valores terminais: valores ligados ao objetivo final........................... 76

    TABELA 7. Valores instrumentais: valores ligados aos comportamentos

    cotidianos..............................................................................................................

    77

    TABELA 8. Tipos motivacionais........................................................................... 78

    TABELA 9. Seis tipos motivacionais do IVO........................................................ 82

    TABELA 10. Grupos empresariais analisados na pesquisa................................. 84

    TABELA 11. Forma de explicitao dos valores nos ambientes virtuais............. 89

    TABELA 12. Forma de apresentao dos valores da CSN (40)......................... 93

    TABELA 13. Forma de apresentao dos valores da Kraft Foods (83).............. 94

    TABELA 14. Categoria e subcategorizao dos valores terminais...................... 96

    TABELA 15. Categoria e subcategorizao dos valores instrumentais............... 97

    TABELA 16. Grupos que no citam valores terminais......................................... 100

    TABELA 17. Hierarquizao dos valores............................................................. 101

    TABELA 18. Valores mais divulgados pelas indstrias........................................

    104

    TABELA 19. Valores mais divulgados na categoria de servios.......................... 105

    TABELA 20. Valores mais citados no comrcio................................................... 106

    TABELA 21. Valores dos grupos brasileiros x estrangeiros.................................

    106

    TABELA 22. Os grupos mais antigos................................................................... 111

  • LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1. Credo da Johnson & Johnson............................................................ 81

    FIGURA 2. Capa da Revista Valor: Especial Grandes Grupos..........................

    84

    GRFICO 1. Anlise dos dados: origem do capital............................................. 86

    GRFICO 2. Anlise dos dados: ramo de atividade............................................

    87

    FIGURA 3. Forma de apresentao dos valores da Petrobrs (1)......................

    90

    FIGURA 4. Forma de apresentao dos valores do Grupo Bayer no portal

    global.....................................................................................................................

    96

    GRFICO 3. Anlise dos dados: categorizao dos valores............................... 99

    GRFICO 4. Anlise dos dados: valores mais citados........................................ 103

    FIGURA 5. Nuvem de termos (tags) sobre a misso dos grupos empresariais.. 108

    FIGURA 6. Nuvem de termos (tags) sobre a viso dos grupos empresariais..... 109

    FIGURA 7. Misso dos 10 grupos estrangeiros................................................... 110

    FIGURA 8. Viso dos 10 grupos estrangeiros..................................................... 110

    FIGURA 9. Misso dos 10 grupos brasileiros...................................................... 110

    FIGURA 10. Viso dos 10 grupos brasileiros....................................................... 110

  • 12

    Sumrio

    1. Introduo ............................................................................................................... 13

    2. Organizao e comunicao: profundas interrrelaes ......................................... 24 2.1 A Comunicao Organizacional: a expresso de uma filosofia ....................... 35

    2.2 A Cultura Organizacional: o bero dos valores ................................................ 38

    2.3 Estudos de cultura organizacional na Comunicao ....................................... 39

    3. Memria natural, memria artificial ou memria inventada? O uso da memria na construo das narrativas organizacionais. ............................................................... 44

    3.1 Da memria mtica arte da memria ............................................................. 47

    3.2 Memria empresarial: memria artificial ou inventada? ................................... 51

    4. Virtude, excelncia moral e valor .......................................................................... 54 4.1 Valor como ideal ............................................................................................... 55

    4.2 Valor como afeto ............................................................................................... 60

    4.3 Valor como poder .............................................................................................. 64

    5. Valores corporativos: uma anlise quantitativa sobre a difuso de valores dos maiores grupos empresariais no Brasil ...................................................................... 73

    5.1 Hipteses de pesquisa ...................................................................................... 73

    5.2 Objetivos ........................................................................................................... 74

    5.3 Classificao dos valores: Rokeach ou Tamayo? ............................................ 74

    5.4 Mtodo e tcnicas de coletas de dados ........................................................... 83

    5.5 Anlise dos dados ............................................................................................. 85

    5.5.1 Perfil da amostra: brasileiros so maioria dentre os grandes grupos ....... 85 5.5.2 Sistematizao para a coleta dos dados sobre valores ............................ 87 5.5.3 Estrutura axiolgica segundo Rokeach ..................................................... 96 5.5.4 A hierarquizao dos valores ................................................................... 101 5.5.5 Valores comparados por ramo de atividade ............................................ 104 5.5.6 Comparao de valores por origem de capital ........................................ 106 5.5.7 Compasso ou descompasso com a misso e a viso? ........................... 107 5.5.8 Memria e valores: existem intersees? ................................................ 110 5.5.9 Valores do Banco Santander e Real: rpida histria organizacional ...... 113

    6. Concluso ............................................................................................................. 116 7. Referncias bibliogrficas .................................................................................... 123 Anexo 1: Formulrio de Coleta de Dados ................................................................ 135 Anexo 2: Lista completa dos valores classificados .................................................. 137

  • 13

    1. Introduo

    Desde o final da dcada de 1990 e ao longo da primeira dcada do sculo

    XXI at hoje, a comunicao organizacional vem protagonizando mudanas

    sucessivas em seu universo terico, sua rea de influncia, suas prticas e, em

    consequncia, no perfil dos profissionais que atuam nesse campo.

    Pode-se afirmar que as organizaes so configuradas para desempenhar

    uma misso e em funo dela pessoas se relacionam em busca de um objetivo

    comum. De uma forma geral e independente de seu tamanho, as organizaes so

    complexas e tm algumas caractersticas, listadas por Nassar (2008, p.62) como

    sendo constitudas por pessoas com as quais o trabalho dividido, que apresentam

    histria e memria, adquirem ao longo dos anos identidade e enfrentam desafios de

    mudanas visando resultados.

    O que diferencia as organizaes, umas das outras, a forma como decidem

    cumprir a misso ou, em outras palavras, como definem seu jeito de ser. Para que

    todos estejam cientes desse jeito de ser, necessrio que os pblicos de

    relacionamento da organizao sejam impactados pelas mensagens que traduzam

    esta inteno.

    Organizaes se comunicam por um rol de processos, metodologias e

    ferramentas e por um mix de meios, formais e informais, desenhados para que a

    percepo dos pblicos de relacionamento esteja em conformidade com a imagem

    desejada. Quanto mais poder simblico essa organizao construir e exercer sobre

    determinado grupo ou sociedade, segundo Baldissera (2009, p. 137): mais fortes

    tendero a ser suas influncias e mais frgeis sero as resistncias a seus padres,

    suas aes, seus procedimentos, seus valores, suas crenas.

    O Brasil vem assistindo, nas ltimas dcadas, a um aumento crescente da

    participao das organizaes no mbito da sociedade na vida comunitria, seja por

    presses da populao e mercados; seja por crenas em valores que cada vez mais

  • 14

    exigem uma participao na vida social; seja pela demanda que o setor pblico no

    consegue ou no quer atender e acaba por bater porta da iniciativa privada. Com

    a ampliao da importncia das empresas para alm de sua funo econmica de

    produo, a sociedade est atribuindo a elas um papel comunitrio e o espao que

    as organizaes ocupam faz parte da histria da vida das pessoas, das cidades, dos

    meios de comunicao e das relaes sociais.

    De acordo com Castells (2005, p. 50), "diferentemente de qualquer outra

    revoluo, o cerne da transformao que estamos vivendo na revoluo atual refere-

    se s tecnologias da informao, processamento e comunicao". Os modelos

    econmicos que se desenvolvem ancorados nas novas tecnologias de informao e

    comunicao tanto influenciam como so influenciados pela sociedade e pela

    cultura, medida que ocorre a apropriao dos recursos tecnolgicos por mais e

    mais pessoas.

    Dupas (2004, p. 4) apresenta as organizaes como um dos trs grandes

    atores do jogo global: a rea do capital (atores da economia global, incluindo

    corporaes, sistema financeiro, associaes empresariais, acionistas); a rea da

    sociedade civil (indivduos e organizaes sociais no governamentais); e a rea do

    Estado (executivo, legislativo, judicirio, partidos polticos e instituies

    internacionais).

    O papel que o capital ocupa e seu poder esbarra, segundo o autor na sua

    legitimao social. O metapoder da economia global extensivo, difuso e no

    autorizado, j que no dispe de legitimidade prpria, explica (DUPAS, 2004, p. 10).

    Ele aponta ainda que o marketing dos valores dominantes e a seduo retrica dos

    discursos no so suficientes para construir esta legitimidade.

    Em seu livro, Relaes Pblicas na construo da responsabilidade histrica

    e no resgate da memria institucional das organizaes, Nassar (2007) lembra que:

    (...) a cultura, os comportamentos, os smbolos, a identidade e a comunicao, o conjunto de elementos que formam a

  • 15

    personalidade e a imagem de uma empresa ou instituio, so os grandes pilares da memria. E a memria seletiva: escolhem-se as experincias (boas ou negativas) que os inmeros pblicos tm com a organizao, seus gestores, empregados, produtos e servios. (NASSAR, 2007, p.111).

    Nesta nova configurao, a comunicao organizacional dialoga com outras

    reas de conhecimentos, como a filosofia, a sociologia, a psicologia e a histria,

    ampliando a perspectiva da abordagem comunicacional sustentada pelas cincias

    humanas.

    Na comunicao organizacional, um dos novos campos de saberes

    compartilhados a memria empresarial, que transita entre a comunicao e a

    histria (no registro), passa pela filosofia (para o entendimento dos valores), inclui a

    psicologia (nos estudos cognitivos e comportamentais) e desemboca na

    administrao (com o uso que se faz da memria na gesto). Uma anlise com tal

    abrangncia seria ousada e o que pretendemos aqui um recorte mais restrito,

    entrelaando comunicao-memria-filosofia, com um olhar voltado para o uso de

    valores corporativos na memria das organizaes.

    Floresce no meio empresarial um interesse pelo registro da memria e da

    histria, como se isso assegurasse o pertencimento, a presena fsica, a presena

    territorial da organizao, neste mundo de relacionamentos cada vez mais fludos.

    Ao registrar a histria e resgatar a memria, o passado se faz presente e passa a

    existir. Como a vida cheia de impermanncias, afinal o tempo todo deixa-se de ser,

    o registro (histria) ou a lembrana (memria) a fotografia, uma possibilidade,

    entre tantas, de se flagrar um instante no tempo.

    A esse propsito Bauman (2007, p. 84) explica que a modernidade lquida

    destronou a durao, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade

    acima do valor da permanncia. Nesse contexto, diz ele que a cultura lquido-

    moderna no se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acmulo,

    como as outras registradas nos relatos dos historiadores e etngrafos. Em vez disso,

    uma cultura de desengajamento, de descontinuidade e do esquecimento. Espaos

  • 16

    vazios na rede, intervalos entre processos de construo e desconstruo so

    espaos do saber que, segundo Lvy (2003), propem-se no s como sada por

    cima do labirinto territorial, mas como ponte entre os saberes anteriores. Para ele, o

    guia o pensamento do indivduo, o intelectual coletivo que se desdobra em um

    plano de imanncia infinito, sem apropriao, sem inrcia, prprio dele deixar

    coexistir, acolher o ser em sua diversidade. (LVY, 2003, p. 202)

    Mas, alm do questionamento de conceitos tambm nesse espao que se

    cria a reputao. Registre-se, por exemplo, o caso Toyota. Cita Nassar: Veja a crise

    que se abate sobre a Toyota, iniciada por um recall de milhares de automveis, que

    j resultou em perda de valor de mercado, uma cascata de processos indenizatrios

    (2010). A imagem da Toyota at ento solidamente associada e lembrada pelos

    consumidores como um dos cones mundiais do modelo japons de qualidade total,

    em fevereiro de 2010, foi abalada devido a problemas de recall de carros com

    problemas na acelerao. No momento em que estamos vivendo, manter uma

    imagem associada a uma lembrana positiva para os consumidores um desafio

    constante que entra direto no movimento das cadeias relacionais, segundo Nassar

    (2006, p. 33).

    Com a apropriao da tecnologia pelo pblico consumidor brasileiro desde

    meados de 1990, perodo em que os computadores e a rede passaram a ocupar um

    lugar de destaque nas residncias brasileiras, a troca de informaes sobre as

    organizaes e seus produtos circula na Internet em velocidade intensa, em lugares

    inesperados como em blogs, no Twitter ou em vdeos disponibilizados por

    consumidores no YouTube. Mercados so conversaes j fazia saber o Manifesto

    Cluetrain, escrito por um grupo de jornalistas e filsofos americanos (Levine et.

    al.,1990) que, naquela poca, estava advertindo as organizaes para que

    mudassem as posturas comunicacionais e atentassem para as novas formas de

    comunicao e do pblico fazer negcios na rede. Tratava-se de uma realidade

    emergindo, incompatvel com os meios e as formas de comunicao com os quais

    as organizaes estavam acostumadas a lidar.

  • 17

    De acordo com Ribeiro (2000) na sociedade democrtica o espao pblico se

    delineia no conflito dos inmeros discursos que o atravessam e constituem

    incluindo os que tratam diretamente da poltica, e de economia. Neste contexto, no

    qual o pblico tambm atua na formao de valores das organizaes, a

    contribuio que se espera com este projeto de pesquisa uma reflexo sobre a

    comunicao e a cultura corporativas por meio de uma anlise interdisciplinar,

    atentando para um pblico participativo e interventor, uma vez que a produo de

    pesquisas no campo das comunicaes organizacionais tem se mostrado mais

    intensas no fazer profissional.

    deste modo que o projeto se insere na rea de Concentrao: Interfaces

    Sociais da Comunicao, do Programa de Ps-Graduao em Cincias da

    Comunicao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo.

    Esta rea estuda as trocas que a comunicao realiza com a sociedade civil e suas

    instituies, centrando suas preocupaes nas condies econmicas de produo

    da cultura miditica; nas mediaes culturais presentes nos mecanismos de

    produo da comunicao; nas polticas de comunicao e suas estratgias; na

    passagem da tradio para a renovao e inovao; nos significados sociais das

    tecnologias da comunicao na sociedade contempornea. Nesse sentido, esta rea

    de concentrao volta-se essencialmente para a investigao das diferentes culturas

    existentes na sociedade em interao com os processos e prticas da comunicao.

    Inserida nessa rea que proporciona intersees, encontra-se a Linha de Pesquisa

    Polticas e Estratgias de Comunicao que aborda os estudos dos paradigmas e

    correntes tericas da comunicao organizacional, da publicidade, das relaes

    pblicas, da editorao e do jornalismo, decorrentes das mltiplas interfaces sociais

    da comunicao.

    Enfocam-se as polticas e estratgias de comunicao no setor pblico,

    privado e no-governamental, desenvolvendo a pesquisa aplicada em comunicao

    administrativa, interna, institucional e mercadolgica, que tem por base tanto a

    perspectiva de uma filosofia da comunicao integrada quanto os princpios da tica,

    da responsabilidade social e da incluso social de classes, gneros e etnias. Estuda,

  • 18

    ainda, a produo, a emisso e a recepo de mensagens institucionais e

    publicitrias e seus reflexos na sociedade contempornea. Enfim, contempla

    pesquisas relativas a comunicao pblica e a polticas pblicas de comunicao.

    Dentre tantos recortes possveis, esta pesquisa privilegiou as reas de

    conhecimento da comunicao organizacional, filosofia e memria. Pesqueux (2008,

    p. 9) afirma que atualmente a filosofia vem sendo valorizada, pois grande a

    contribuio que pode oferecer ao quadro conceitual das cincias organizacionais.

    As empresas contemporneas devem s formas de empresas e de sistemas de valores de hoje em dia e so responsveis por suas caractersticas atuais. Mas difcil compreender o que est em jogo atualmente sem se confrontar com a histria e as tradies, voltando o que parece ter marcado o modo como pensamos, em um universo de rigor intelectual, em que se evita a superficialidade. (PESQUEUX, 2008, p.9).

    Na opinio de Pesqueux (2008), h certa fragilidade conceitual nas cincias

    organizacionais e a filosofia est apta a esclarecer e fundamentar o comportamento

    das empresas, j que trabalha com modelos preditivos. Observando-se o movimento

    das empresas no Brasil em busca de contedo filosfico, sociolgico, antropolgico,

    h indicativos que Pesqueux pode ter razo, ou seja, que existe de fato uma

    demanda filosfica, tanto que os principais filsofos do pas tm sido assediados por

    empresas para a discusso de tica e valores morais.

    Por sua vez, a leitura do livro de Edgar Morin (2008) A cabea bem feita

    despertou, durante o trabalho de pesquisa, o interesse pela crtica ao modo de

    pensar contemporneo decorrente da hiperespecializao, posto que o

    conhecimento com sua complexidade visto em parcelas, fragmentado. Menciona o

    autor: todos os problemas particulares s podem ser posicionados e pensados

    corretamente em seus contextos e o prprio contexto desses problemas deve ser

    posicionado, cada vez mais, no contexto planetrio. (MORIN, 2008, p.14). Cabe

    lembrar, aqui, que o ttulo do livro baseia-se na seguinte citao de Montaigne: mais

    vale uma cabea bem-feita que uma cabea bem cheia. Dessa perspectiva,

    considerei que refletir sobre a construo dos processos de comunicao nas

  • 19

    organizaes para registro da memria deveria, necessariamente, incluir conceitos

    da filosofia. Os saberes, que na Grcia clssica eram todos interrelacionados, foram

    se fragmentando.

    Descartes, no sculo XVII, em dado momento da vida decide duvidar de

    todas as verdades, tanto aquelas que se apresentavam pelos sentidos, quanto as

    que se justificavam no argumento da autoridade. Depois de viajar por muitos pases,

    conhecer muitas culturas e muitos povos, num inverno rigoroso fecha-se num quarto

    e comea a meditar, colocando em dvida todos os seus pensamentos, que registra

    metodicamente em sua obra O Discurso do Mtodo (2009).

    importante observar que quela altura Descartes j havia estudado

    Filosofia, Geometria, Matemtica e Lgica e, com base nessa ltima, ele define

    apenas quatro preceitos para o mtodo de pensar, ,afirmando, enfaticamente, que

    precisariam ser observados sempre. No texto a seguir, as palavras de Descartes, de

    forma editada.

    O primeiro consistia em nunca aceitar, por verdadeira, coisa nenhuma que no conhecesse como evidente. O segundo dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas partes quantas pudessem ser e fossem exigidas para melhor compreend-las. O terceiro conduzir por ordem os pensamentos, comeando pelos objetos mais simples e mais fceis de serem conhecidos, para subir, pouco a pouco, como por degraus, at o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo certa ordem entre os que no se precedem naturalmente uns aos outros. O ltimo fazer sempre enumeraes to completas e revises to gerais que ficasse certo de nada omitir. (DESCARTES, 2009, p. 65-68).

    A frase de Juan de Mairena, poeta e filsofo espanhol, a dvida serve para

    repensar o pensamento, junto com as proposies cartesianas me incentivaram a

    duvidar. Assim, h mais de 10 anos venho pesquisando a comunicao corporativa

    no Brasil, tanto do ponto de vista do mercado, quanto avaliando processos,

    estratgias e eficcia da comunicao.

  • 20

    Em minha trajetria pessoal fui gestora de projetos de pesquisa em mais de

    60 empresas de grande porte. Dentre elas, empresas nacionais, empresas

    estrangeiras, organizaes pblicas e privadas, da indstria, do comrcio e do ramo

    de prestao de servios, empresas mais ousadas e mais tradicionais, empresas

    com gestes completamente distintas, com atuao regional ou global. Enfim,

    considero uma experincia significativa junto vivncia das corporaes que no

    poderia deixar de mencionar nesta pesquisa se considerar que mais de 30 pessoas

    foram ouvidas ao longo deste percurso como pesquisadora, ao implementar e

    gerenciar pesquisas nas e para as organizaes.

    De fato, desta experincia pessoal que procedem as motivaes capazes

    de gerar esta investigao em gestao h muitos anos. Dentre essas motivaes, a

    principal refere-se constatao de um fato, ao mesmo tempo surpreendente e

    constante, suscitando as seguintes questes nas investigaes que tenho

    conduzido: se as empresas investem tanto em comunicao corporativa e se as

    mensagens so baseadas nas crenas e valores, por que to difcil a lembrana

    dos valores pelos pblicos de relacionamento? Apesar de as empresas serem to

    distintas, to particulares, razo os valores so sempre to similares?

    Comte-Sponville (2008), em seu livro Valor e Verdade dedica um captulo

    para discutir a moralidade nas empresas. O autor enftico ao dizer que o

    capitalismo no moral nem imoral, mas simplesmente racional, como se espera de

    uma atividade econmica. No entanto, as empresas tentam expressar cada vez mais

    atributos morais. Por qu? Para Comte-Sponville, se as empresas no possuem a

    caracterstica ou a qualidade moral, uma vez que a gesto e o cumprimento das leis

    so suficientes, ele recomenda que os indivduos que nelas desempenham suas

    funes sejam os responsveis por desenvolver esse campo moral de atuao. O

    autor critica o uso da tica pelas empresas mencionando que parece verossmil que

    uma boa tica possa ser um fator de qualidade, logo um argumento de marketing,

    no de tica! A moral desinteressada, alis, por isso que reconhecida

    (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 287).

  • 21

    As empresas registram seus valores em sua produo comunicacional, e que

    depois se torna fonte para programas de memria organizacional, tais como

    museus, livros, filmes, publicaes, mas neste projeto de pesquisa optamos por

    analisar o aspecto comunicativo da moral empresarial que o registro dos valores

    nos sites e ambientes virtuais das empresas direcionados a seus pblicos de

    relacionamento. Heller (2009, p. 13) menciona que, ao registrar a prpria histria,

    uma empresa cria uma narrativa e a histria a substncia da sociedade. Nesse

    caso, cabem as perguntas:

    Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relaes durveis? Como pode um ser humano desenvolver uma identidade e histria de vida numa sociedade composta de episdios e fragmentos? (HELLER, 2009, p.27).

    Com vrias referncias tericas em mos e muitos caminhos possveis a

    percorrer, o que pareceu mais significativo, relevante e profundo foi o estudo dos

    valores nas organizaes. Esta pesquisa no se props a focar na prtica dos

    valores empresariais, tampouco foi feito juzo de valor sobre os valores. O objetivo

    foi entender como os conceitos de virtude, excelncia moral e valor foram

    apresentados por distintos autores, ao longo da histria, contribuindo para a

    construo de um referencial terico atualizado, interdisciplinar, que possvel a

    anlise dos valores organizacionais, plataforma de trabalho do profissional de

    comunicao.

    A dissertao est estruturada em quatro captulos. O primeiro captulo,

    aborda a inter-relao entre comunicao e organizao. Com base em tericos

    organizacionais e estudiosos da comunicao, apresenta a importncia da

    comunicao corporativa na construo da imagem organizacional amparada em

    discursos e narrativas, bem como o uso associao das metforas com a

    comunicao e as organizaes. Trata ainda das complexidades apresentadas pela

    cultura organizacional na comunicao, ressaltando aspectos relevantes como

  • 22

    coerncia discursiva e dificuldade para mudar hbitos e costumes. Nesse captulo

    tambm apresentada a classificao conceitual de valores, misso e viso

    empresarial.

    No segundo captulo, so abordados os conceitos de memria e a relao

    entre comunicao organizacional e memria. Para tanto so apresentadas

    referncias conceituais da memria desde a origem grega at estudos mais

    contemporneos. Dessa perspectiva, trao um paralelo entre as musas gregas, os

    sofistas e os comunicadores organizacionais que, em comum, tratam da retrica e

    das narrativas com nfase na persuaso.

    No terceiro captulo, a abordagem recai sobre o conceito de valor. Novamente

    as bases esto na filosofia grega, com a discusso sobre as virtudes. Utilizando um

    quadro de referncias filosficas, enfoco o valor como virtude, o valor como afeto e o

    valor como poder, ao mesmo tempo em que contextualizo o momento histrico de

    cada uma dessas abordagens. Nesse momento, vrios autores so apresentados

    para uma discusso axiolgica.

    Por fim, no quarto captulo, esto descritos o objeto investigado, os objetivos

    gerais e hipteses de pesquisa, bem como os procedimentos metodolgicos

    pertinentes investigao. Trata-se de uma pesquisa de abordagem quantitativa,

    utilizando como universo os 200 maiores grupos empresariais que operam no Brasil,

    cujo banco de dados e classificao encontram-se na publicao do Valor

    Econmico denominada Valor Grandes Grupos, edio 2010.

    Dos 100 grupos empresariais selecionados, foram coletados os valores e

    analisados segundo perfil da empresa, nmero de funcionrios, setor e ramo de

    atividade; misso, viso, categorizao e anlise dos valores encontrados nos

    ambientes virtuais (sites ou portais) dessas organizaes.

  • 23

    Para classificar os valores, esta autora lanou mo de referncias de

    estudiosos da Psicologia Social que desenvolveram teorias com base nos valores

    humanos e que depois foram transpostas para o ambiente organizacional.

  • 24

    2. Organizao e comunicao: profundas interrrelaes

    Os estudos da comunicao organizacional, com intuito de classificao

    terico-conceitual, comearam na segunda metade do sculo XX e intensificaram,

    particularmente no Brasil, nas trs ltimas dcadas. Uma rpida discusso acerca

    dos principais tericos e escolas foi realizada, devido necessidade de se delimitar

    o escopo a ser tratado. Para tanto, os conceitos de organizao e comunicao so

    abordados preliminarmente.

    Muitas so as Teorias das Organizaes ou Teorias da Administrao que se

    desenvolveram ao longo de mais de um sculo e muitos so os estudiosos que se

    dedicaram a traduzi-las. A Teoria da Burocracia, a Teoria Clssica, a Teoria das

    Relaes Humanas, a Teoria Neoclssica, a, a Teoria Estruturalista, a Teoria

    Comportamental, a Teoria dos Sistemas e a Teoria Contingencial so algumas

    delas.

    Ao definir a ao social como objeto de estudo nos primrdios da sociologia,

    ainda no sc. XIX, Max Weber (2000) procurou estudar o sentido que os atores

    sociais atribuam s suas aes. Para ele, uma ao constitui-se em uma conduta

    de elaborao simblica, por meio de subjetividade e intersubjetividade. A ao

    social, no entanto, a conduta dotada de sentido para quem a efetua e deve ser

    praticada com inteno. Desta forma, a teoria da burocracia weberiana procurou

    organizar no apenas o processo de trabalho com base na racionalidade da

    administrao, mas tambm toda uma viso de mundo observada como possvel de

    se administrar.

    Em relao aos processos de ao no trabalho, esta teoria organizou de tal

    forma os processos de clculo e previso caracterizando a burocracia com o mais

    puro tipo de dominao legal-racional. (Chiavenato, 2000, p.309). A burocracia

    prope o formalismo, pelas normas escritas, pela estrutura hierrquica e pela diviso

  • 25

    horizontal e vertical do trabalho. Na opinio de Tragtenberg (apud PAULA, 2008, p.

    99), com forte nfase na dominao.

    Inspirado nas grandes empresas capitalistas modernas, nos primeiros anos

    do sculo XX, Weber desenha um modelo que prescinde do indivduo, afirmando

    que o cumprimento objetivo das tarefas significa, primordialmente, um cumprimento

    de tarefas segundo regras calculveis e sem relao com pessoas. (WEBER, 1979,

    p.250). A burocracia desumanizada, explica Weber, pois elimina dos negcios

    oficiais o amor, o dio e todos os elementos pessoais, irracionais e emocionais que

    fogem ao clculo.

    No incio do sculo XX comearam os primeiros estudos de Frederick Taylor

    (1903) e Henri Fayol (1916) baseados nos princpios da Teoria Cientfica ou Teoria

    da Administrao Clssica. Esses estudos primavam, com grande nfase, a

    organizao do trabalho e o controle. A administrao das organizaes se

    caracterizava pelas tarefas de planejar, comandar, organizar, controlar e coordenar.

    A esse modelo de gesto denominou-se gesto mecanicista.

    Entretanto, de acordo com Chiavenato (2002, p. 22) organizao um

    sistema de atividades conscientemente coordenadas de duas ou mais pessoas. As

    organizaes formais seriam organizaes sociais que se distinguem pela

    formalidade de seu estabelecimento. O autor esclarece que os objetivos pessoais e

    os objetivos da organizao se fundem por meio da ao social dos indivduos.

    Por sua vez, KUNSCH (2003, p. 27) entende que as organizaes

    constituem aglomerados humanos planejados conscientemente, que passam por um

    processo de mudanas, se constroem e se reconstroem, sem cessar e visam obter

    determinados resultados.

    Do ponto de vista do modelo funcional, as organizaes podem ser

    mecanicistas (tayloristas e fordistas), orgnicas e flexveis (toyotistas,

    multidirecionais) ou abertas em rede (horizontalizadas). Segundo Nassar:

  • 26

    Constata-se que o modelo de administrao taylorista, fortemente enraizado nas empresas brasileiras dos anos 60 e 70, priorizava os processos internos organizacionais e relegava os aspectos relacionados aos contextos histrico, poltico e social que, de alguma forma, influenciavam as aes de uma empresa ou instituio. (NASSAR, 2010, p. 320)

    O divisor de guas nos estudos organizacionais ocorre com o surgimento da

    Escola das Relaes Humanas, na dcada de 1930, em contraposio ao

    pensamento mecanicista representado por Taylor e Fayol. A nova perspectiva,

    apresentada nos estudos de Elton Mayo, aponta, como resume Caldas:

    (...) que a comunicao interpessoal, a dinmica de grupo e os valores e atitudes dos empregados em relao organizao eram mais importantes para os resultados e performance organizacional do que a estruturao do trabalho propriamente dita. (CALDAS, 2010, p. 31).

    De acordo com Chiavenato (2000, p.113), os principais resultados dos

    experimentos de Mayo com funcionrios de uma fbrica indicam que: (1) o nvel de

    produo resultante da integrao social (2) o comportamento do indivduo se

    apia no grupo; (3) o comportamento est condicionado a normas e padres sociais

    (4) os grupos so informais e no atrelados hierarquia (5) os aspectos emocionais

    so considerados e (6) o contedo e a natureza do trabalho tem influencia sobre o

    moral do trabalhador.

    A partir de ento, a relao entre organizao e comunicao comea a

    ganhar corpo. Ainda nos anos 30, Chester Barnard, que teve experincia executiva,

    foi o primeiro a vincular a eficcia da gesto aos aspectos da comunicao. Tambm

    na mesma dcada surgem os estudos de Maslow, que definiu uma hierarquia de

    necessidades das pessoas.

    Na dcada de 1960, uma nova escola comea a se configurar nos estudos

    organizacionais e que foi denominada Teoria Sistmica. Ao buscar referncias em

    Morgan (2002) e suas metforas, esta dimenso humana poderia ser encontrada em

  • 27

    organizaes vistas como organismos, como culturas, como crebros e como fluxo e

    transformao. Conforme Morgan (2002, p. 54):

    Desta forma, vamos v-las como sistemas vivos, que existem em ambientes mais amplos dos quais dependem para a satisfao de vrias necessidades. E quando examinamos o mundo organizacional, comeamos a ver que possvel identificar diferentes espcies de organizaes em diferentes tipos de ambientes. (...) Neste processo, a teoria da organizao tornou-se uma espcie de biologia em que as distines e as relaes entre as molculas, clulas, organismos complexos, espcies e ecologia tm um paralelo nas distines entre indivduos, grupos, organizaes, populaes (espcies) de organizaes e sua ecologia social. (MORGAN, 2002, p. 54).

    Uma perspectiva integrada da viso da organizao por meio da comunicao

    encontrada em Kunsch (2009), autora que vem desenvolvendo no Brasil, j h

    muitos anos, estudos sobre as diferentes dimenses da comunicao

    organizacional. Para ela, a comunicao est presente de maneira sistmica na

    organizao, nas vertentes administrativa, mercadolgica e institucional. A

    comunicao est a servio do planejamento e gesto estratgica e, por este

    motivo, os projetos e as aes de comunicao integradas levados a efeito

    necessitam estar alinhados com a misso, a viso, os valores e os objetivos da

    organizaes. (KUNSCH, 2008, p.117). Como se v, comunicao e organizao

    se relacionam recursivamente.

    Os estudos da comunicao organizacional esto de tal forma imbricados

    com os estudos organizacionais que, ao abordar o primeiro significa

    necessariamente envolver o segundo. Desta forma, a cada salto terico na teoria da

    administrao, o mesmo se observou no campo da comunicao.

    (...) comunicao e organizao se relacionam entre si como um processo de produo com smbolos produzindo textos. (...) Os smbolos fornecem a maneira pela qual os membros da organizao negociam os scripts, mas tambm servem como meios sutis de preservar o status quo e recriar o modo tradicional de controle. So mais do que manifestaes de

  • 28

    uma cultura organizacional; so os meios pelos quais o ato de organizar realizado com sucesso (PUTNAM; PHILIPS; CHAPMAN, 2004, p. 98).

    Com o surgimento e desenvolvimento das novas tecnologias de informao e

    comunicao, Castells (2009, p. 36) ressalta que os impactos decorrentes foram os

    responsveis pela emergncia de um novo modo informacional de desenvolvimento

    no qual a fonte de produtividade acha-se na tecnologia de gerao de

    conhecimento, visto que o processo produtivo sempre se baseia em algum grau de

    conhecimento e no processo da informao.

    Um dos grupos que se mobilizou para estudar a comunicao nas

    organizaes canadense e recebeu o nome de Escola de Montreal, cujo maior

    expoente James Taylor, por meio de seus estudos que se iniciaram nos anos

    1990. A proposta central de anlise deste tema foi uma ampliao de seu conceito

    relacionado informao e a interligao, para uma ideia de ao, sem perder seus

    significados originais.

    Ao explicar seu conceito, Taylor menciona o que a organizao no : no

    mquina, no objeto, no crebro, pois o que ela verdadeiramente s ocorre

    por intermdio da comunicao. Para Taylor; Casali (2010, p.73), uma organizao

    uma configurao de pessoas, tecnologias, edifcios e objetos que se mantm

    unidos pela mais frgil das amarras: a comunicao.. Ou, em outras palavras, nos

    primrdios dos estudos de Taylor, a organizao um tecido de comunicao

    (TAYLOR; CASALI, 2010, p. 31).

    A fuso conceitual que deu origem nova Escola de Montreal nasceu de

    influncias diversas - norte-americanas e europias - o que gerou uma concepo

    terica nica da comunicao organizacional com nfase na linguagem e no

    discurso, sem abandonar os aspectos materiais da realidade (TAYLOR; CASALI,

    2010, p. 31).

  • 29

    Duas teorias explicam a relao genealgica comunicao-organizao: (1)

    teoria da co-orientao e (2) o modelo texto-conversaes. A teoria da coorientao

    pressupe a existncia de dois sujeitos comunicadores em processo de troca,

    envolvidos em uma ao e que possuem uma orientao comum. O objeto da troca

    deve interessar aos sujeitos e quando recorrem ao universo lingustico, tanto os

    sujeitos so impactados pelo mundo objetivo, quanto este impactado pelos sujeitos

    (Casali, 2005).

    Este tipo de comunicao organizacional ocorre, por exemplo, na

    comunicao administrativa, de natureza cotidiana e que engloba todas as aes

    comunicativas no trabalho, tais como conversaes pessoais ou telefnicas, relatos

    de processos, reunies, mensagens de texto eletrnicas ou impressas, negociaes,

    entre outras.

    O modelo texto-conversaes, proposto por Taylor e Van Every (2000),

    considera que conversaes so traduzidas em textos e estes so traduzidos em

    conversaes. Definem os autores que as organizaes so:

    (...) formas de vida, uma forma de estruturar o mundo social e cultural para produzir uma ambiente onde estas formas expressam a vida social e criam um contexto para que elas se desenvolvam. (TAYLOR; VAN EVERY, 2000, p. 121 apud CASALI, 2005, p. 9).

    possvel identificar neste modelo texto-conversaes em comunicao

    interna e institucional das organizaes, que se retroalimentam de suas prprias

    mensagens, reorganizando-as, ressignificando-as e reproduzindo-as. No mesmo

    sentido, Eisenberg; Goodall (2001, p. 33) desenvolveram a perspectiva do modelo

    das organizaes como dilogos, aprimorando uma anlise da interao simblica

    capaz de aproximar o equilbrio entre a criatividade e a coao dentro das

    organizaes. A comunicao balanceada refere-se a um processo relacional que

    ocorre atravs do dilogo, ou seja, a comunicao na qual cada indivduo tem voz,

    chance para falar e ser ouvido.

  • 30

    A partir de discusses metatericas, duas estudiosas norte-americanas,

    PUTNAM & FAIRHURST (2010), recortam a proposta de comunicao da

    organizao e iluminam o discurso. As autoras distinguem trs orientaes para a

    relao discurso-organizao: (1) Organizao enquanto objeto, (2) Organizao em

    permanente estado de constituio e (3) Organizao alicerada na ao.

    TABELA 1. Trs orientaes para a relao discurso-organizao

    Categorias de Anlise Comparativa

    Organizao enquanto objeto

    Organizao como em permanente estado de

    constituio

    Organizao alicerada na ao

    Definio Organizao j identificada como objeto j formado com caractersticas discursivas ou resultados.

    Organizao em permanente estado de vir a ser; o discurso formativo

    Organizao alicerada na ao e em formas discursivas.

    Variaes Discurso como artefato, organizao como caixa-preta.

    A variao lingustica marca fronteiras de comunidades de discurso.

    Organizao reduzida a componentes fundamentais que produzem discurso.

    Organizao emerge como linguagem em uso e processo de interao.

    A organizao emerge em sistemas de poder/conhecimento.

    Organizao emerge em processos de responsabilidade laminada.

    As organizaes emergem como sistemas sociais reproduzidos continuamente.

    As organizaes emergem em associaes entre humanos e objetos.

    nfase emergente Estado de organizao como uma entidade.

    Emergente, organizando propriedades do discurso.

    A durr ou o fluxo contnuo de conduta; como o global ancorado no local.

    Relao indivduo- organizao

    De cima para baixo; modelo de organizao distinta de e dominante a modelo de pessoa.

    De baixo para cima; modelo de pessoa cria organizao.

    De dentro; modelo de pessoa como um componente ativo de modelo de organizao.

    Macro-micro Separada, mas interativa. Separada, mas interativa. Indiferente ou rejeita Agncia-estrutura A organizao retratada

    como separada das aes de membros; a agncia desconsiderada ou reprimida rigorosamente.

    Favorece agncia sobre estrutura.

    Visa o equilbrio; a agncia uma estrutura componente ativa.

    Modelo de agente principal Inconsciente ou parcialmente ciente

    Tem seu foco no que os atores sociais sabem

    Tem seu foco no que os atores sociais sabem, mas permite consequncias involuntrias.

    Crtica Menospreza o poder formativo do discurso.

    Concretiza a organizao.

    Muda de organizing para organizao.

    Relativismo.

    Tende em direo agncia que minimiza restries contextuais.

    Fonte: Putnam; Fairhurst (2010, p. 113)

  • 31

    Schuler (2005) apresenta um olhar multidimensional e multirreferencial sobre

    a organizao atravs de uma abordagem transdisciplinar:

    A abordagem transdisciplinar a tendncia de reunir as disciplinas numa totalidade, ante os fenmenos naturais. a tendncia de criar pontes entre as disciplinas, um terreno comum de troca, dilogo e integrao, onde os fenmenos naturais possam ser encarados de diversas perspectivas diferentes ao mesmo tempo, gerando uma compreenso holstica desse fenmeno, compreenso essa que no se enquadra mais dentro de nenhuma disciplina, ao final. (SCHULER, 2005, p. 2).

    A abordagem transdisciplinar de grande valia neste estudo, j que a

    comunicao se d sempre em determinado contexto; no caso do estudo dos

    valores, acontece na cultura organizacional.

    Como pode-se observar a Comunicao Organizacional pode ser definida por

    suas dimenses, suas perspectivas, seus objetivos, seus processos, seus pblicos

    impactados, suas mensagens, seus resultados e outros recortes menos explorados.

    De acordo com Nassar (2010, p. 314), no ambiente organizacional da

    atualidade tem-se a presena de novas formas de administrar voltadas para atender

    s demandas produtivas em escala internacional, que exigem outros critrios de

    qualidade, de competitividade, inovao e produtividade. Deetz (1995) indica que as

    organizaes definem vrios aspectos das relaes de trabalho, a quantidade de

    tempo que se tem disponvel para a famlia e para o lazer, o tempo e as condies

    de desenvolvimento pessoal e fatores que influenciam at mesmo a identidade,

    compromissos sociais, valores ticos e morais dos indivduos.

    J Kunsch (2008) considera as dimenses humana, instrumental e

    estratgica. Assumindo que sem comunicao no h organizao, Kunsch explica

    que a comunicao viabiliza a organizao a alcanar seus objetivos e como esta

    funo se d por intermdio das pessoas, a autora classifica esta dimenso como

    humana.

  • 32

    Para ela, a dimenso humana aborda o contexto, a pessoa e suas

    particularidades, suas relaes com a sociedade e o impacto das mensagens

    emitidas pelas organizaes e, desta forma, ultrapassa os limites instrumentais da

    perspectiva meramente mecanicista, como enfatiza Kunsch (2008), e se transforma

    em comunicao mais interpretativa e crtica.

    Outra dimenso considerada por Kunsch (2008) a instrumental, que trata a

    comunicao organizacional de forma tcnica, e portanto a nfase dada na

    transmisso das informaes. Essas perspectivas se assemelham comunicao

    Weaver, que teve sua influncia j na dcada de 1940. Recorrendo novamente

    Morgan, este tipo de comunicao poderia ser encontrado nas organizaes vistas

    como mquinas, como prises psquicas e como instrumentos de dominao.

    grande a possibilidade de no haver comunicao nestas organizaes, visto que

    comunicar pressupe o entendimento e sem interao com o outro so poucas as

    perspectivas de sucesso.

    A ltima dimenso que Kunsch (2008) aborda a estratgica e que estaria

    associada fortemente aos resultados organizacionais, sob a perspectiva do negcio.

    A autora considera que esta dimenso a mais delicada, pois h muito a caminhar

    em direo de uma comunicao mais focada em resultados e menos nos

    processos e meios.

    Morgan (2002) entende que todas as teorias organizacionais e administrativas

    possuem metforas implcitas que orientam a fixao de planos e compromissos, de

    formas e estruturas, de procedimentos e processos organizacionais. Essa

    construo se d a partir do uso de um sistema de significados comuns, calcado no

    significado simblico das interaes dos membros da organizao. As metforas so

    utilizadas como recursos representativos tanto no campo da teoria organizacional

    quanto na teoria comunicacional. No quadro seguinte, elaborado por Nassar (2008,

    p. 72), as metforas de Morgan esto organizadas assim:

  • 33

    Tabela 2. Metforas de Morgan

    Metforas de Morgan Segundo o autor:

    As organizaes vistas como mquinas (1996, p.21-41)

    Quando os administradores pensam nas organizaes como mquinas, tendem a administr-las e planej-las como mquinas, feitas de partes que se interligam, cada uma desempenhando um papel claramente definido no funcionamento do todo.

    As organizaes vistas como organismos (1996, p.43-79)

    possvel pensar nas organizaes como se fossem organismos. Dessa forma, as organizaes so concebidas como sistemas vivos, que existem em um ambiente mais amplo do qual dependem em termos da satisfao das suas vrias necessidades.

    As organizaes vistas como crebros

    (1996, p.81-113)

    possvel que, usando o crebro como uma metfora para a organizao, seja vivel desenvolver a habilidade para realizar o processo de organizao de maneira que promova a ao flexvel e criativa.

    As organizaes vistas com culturas

    (1996, p.115-144)

    A organizao vista como um lugar onde residem ideias, valores, normas, rituais e crenas que sustentam as organizaes como realidades socialmente construdas.

    As organizaes vistas como sistemas polticos

    (1996, p.145-203)

    Ao reconhecer que a organizao intrinsecamente poltica, no sentido de que devem ser encontradas formas de criar ordem e direo entre as pessoas com interesses potencialmente diversos e conflitantes, muito pode ser aprendido sobre os problemas e a legitimidade da administrao, como um processo de governo e a legitimidade da administrao como um processo de governo e sobre a relao entre organizao e sociedade.

    As organizaes vistas como prises psquicas

    (1996, p.205-238)

    [...]as organizaes so fenmenos psquicos, no sentido de que so processos conscientes e inconscientes que as criam e as mantm como tais com a noo de que as pessoas podem, na verdade, tornar-se confinadas ou prisioneiras de imagem, idias, pensamentos e aes que esses processos acabam por gerar. A metfora encoraja a compreenso de que, embora as organizaes possam ser realidades socialmente construdas, estas construes freqentemente acabam por apresentar uma existncia e poder prprios e que permitem a elas exercer certo grau de controle sobre os seus criadores.

    As organizaes vistas como fluxo e transformao

    (1996, p.239-278)

    Uma [lgica] enfatiza como as organizaes so sistemas autoprodutores que se criam nas suas prprias imagens. A outra [lgica] enfatiza como so produzidos [os sistemas organizacionais] enquanto resultado de fluxos circulares de feedback positivo e negativo. A terceira [lgica] sugere que [as organizaes] sejam o produto de uma lgica dialtica por meio da qual todos os fenmenos tendem a gerar o seu oposto.

    As organizaes vistas como instrumentos de

    dominao (1996, p.279-326)

    Ao longo da histria, organizaes tm sido associadas a processos de dominao social nos quais indivduos ou grupos encontram formas de impor a respectiva vontade sobre os outros. Isto se torna bastante evidente quando se traa a evoluo histrica da empresa moderna, desde as suas razes na Antiguidade at o seu papel no mundo atual, passando por diferentes estgios de crescimento e de desenvolvimento, inclusive como empresa militar e imprio.

  • 34

    Putnam, Philips e Chapman (2004), organizaram sua classificao da

    comunicao organizacional em sete metforas e que esto resumidas no quadro a

    seguir, com novas associaes propostas por esta autora.

    TABELA 3. Quadro comparativo das metforas

    METFORA TIPO DE ORGANIZAO OBJETIVO DA COMUNICAO

    Condute Organizao como canal Transmitir informao

    Lente Organizao como filtro Controlar

    Linkage Organizao como rede Integrar e cooperar

    Performance Organizao como significado Reconhecer

    Smbolo Organizao como histria Registrar, interpretar, reconhecer

    Voz Organizao como dominao Selecionar

    Discurso Organizao com agente comunicador Dialogar

    Fonte: Organizado pela autora.

    Scroferneker (2006), em texto que aborda as trajetrias terico-conceituais da

    comunicao organizacional, recupera conceitos dos autores Daniels, Spiker e Papa

    (1997) que identificaram trs modelos ou perspectivas de comunicao

    organizacional: tradicional, interpretativo e crtico.

    No primeiro caso, tradicional, a comunicao uma atividade cujo

    comportamento pode ser medido, padronizado e classificado. Permite ainda duas

    leituras, considerando a organizao como mquina e, portanto, remete dimenso

    instrumental de Kunsch, considerando-se a organizao como sistema, tendo neste

    caso um processo de comunicao orgnico e dinmico.

    A perspectiva interpretativa percebe as organizaes como culturas e est

    associada interao das pessoas e ao compartilhamento de significados. A

    comunicao, neste caso, ajuda a construir os smbolos e as significaes dentro

    das organizaes e estas so entendidas como um espao de negociao e criao

    de discursos coletivos. Empresas com este modelo de comunicao tendem a

    explicar os comportamentos dos indivduos com base em seus aspectos culturais.

  • 35

    J a perspectiva crtica aborda a organizao com instrumento de opresso

    (Scroferneker, 2006) e a comunicao como instrumento de dominao. Encontra-se

    este tipo de comunicao nas organizaes burocrticas, como conceitualiza Weber

    e simboliza Morgan.

    2.1 A Comunicao Organizacional: a expresso de uma filosofia

    Para Nassar (2010, p. 315) o olhar e a ao mais abrangente da comunicao

    organizacional podem ser delineados pela preocupao retrica em fazer com que a

    empresa seja percebida no s pela utilidade de seus produtos e operaes, mas

    tambm por atributos relacionados aos seus produtos. Segundo sua anlise:

    A comunicao uma habilidade humana, produtora de sentidos para os seus protagonistas, que, ao contrrio das habilidades conceituais e tcnicas, ocupa uma importncia similar nos nveis de alta direo, gerncias e operacionais. Isso significa que todos os integrantes das organizaes, em sua ao cotidiana, so protagonistas da expressividade da filosofia organizacional. (NASSAR, 2008, p. 248)

    De acordo com Schockley-Zalabak (1991, p. 30-31) a comunicao

    organizacional um processo, por meio do qual as organizaes so criadas e que,

    por sua vez, criam e modelam eventos. O processo pode ser entendido como uma

    combinao de processos, pessoas, mensagens, significados e propsito. Trata-se

    de um processo relacional entre indivduos, departamentos, unidades e

    organizaes. Para esta autora a comunicao organizacional tem seu fundamento

    em Linda Putnam, sendo compreendida como:

    (...) comportamento simblico dos indivduos e das organizaes que, quando interpretado, afeta todas as atividades da organizao. O foco central o processo pelo qual os significados organizacionais so gerados. O significado, nessa abordagem, no reside nas mensagens, nos canais ou nas falhas perceptuais, mas em cenrios de contnua mudana de comportamento, tanto para criar quanto para mudar os eventos. (SHOCKLEY-ZALABAK, 1991, p. 32)

  • 36

    Stanley Deetz (1995, apud Jablin; Putnam, 2001) prope uma anlise da

    comunicao organizacional baseando-se em trs focos: (1) foco de natureza

    produtiva: que trata de departamentos ou associaes; (2) foco de natureza

    independente: no necessariamente departamentalizado e (3) foco singular: que

    trata cada organizao como singular.

    Nassar (2008, p. 73) destaca a crescente abrangncia do campo da

    comunicao organizacional, conceituando-a como:

    (...) um metassistema social e tecnolgico que tem como objeto de estudo os processos comunicacionais, no mbito das empresas e das instituies, suas redes de relacionamento e sociedade definido dinamicamente a partir de suas interrelaes com os conhecimentos e as prticas das Cincias Sociais, das Cincias Humanas, das Cincias Exatas e das Cincias Biolgicas. (NASSAR, 2008, p. 73)

    preciso que a comunicao tambm assuma a posio de geradora de

    fatos, criadora de contextos, o que sugere um novo comportamento na medida em

    que cocriadora do futuro da organizao, aponta Marchiori (2009, p. 295). Pepper

    (1995, p. 36) afirma que a comunicao cria a organizao por meio da construo

    de culturas. Como se v, o olhar que os estudiosos da rea tm sobre seus

    domnios de profunda relevncia, mas, de fato no isso que a prtica no

    mercado demonstra.

    Enfatiza Hall (1992) que a identidade de uma organizao no estvel ou

    fixa, mas social e historicamente construda, estando sujeita a contradies, revises

    e mudanas, Por sua vez, Van Riel (1995), cujo foco de estudo a comunicao em

    seu nvel estratgico, diz que a nfase deve recair na reputao e na imagem da

    empresa, explicitando um mix de identidade atravs de trs elementos: (1)

    comportamento: dos membros da empresa; (2) smbolos: imagens, marcas,

    logotipos, que possuem significados especficos e so poderosos no processo de

    comunicao: (3) comunicao: coerncia entre o comportamento de uma

    organizao e suas mensagens.

  • 37

    No obstante, para Baudrillard (1972) a essncia (ou o que poderia ser

    identidade, neste caso) no verdadeiramente uma realidade e sim a imagem que

    fazemos dessa realidade, sendo essa imagem passvel de ser construda como

    verdade coerente para o ator social.

    De acordo com Van Riel & Fombrun (1997), trabalha-se atualmente a imagem

    como reputao organizacional, ou seja, a representao coletiva das aes e dos

    resultados da organizao mediante a gerao de valores para mltiplos

    stakeholders. Neste sentido, hoje, segundo Almeida (2009, p. 233), um dos grandes

    desafios das organizaes entender como se constri a reputao, como lidar com

    ela no dia a dia da organizao, como sustent-la durante anos, como trabalhar as

    diversas expectativas de diferentes stakeholders. A construo da reputao est,

    portanto, ancorada nos processos histricos, nas aes e representaes

    organizacionais, nos valores e nas crenas organizacionais.

    Kunsch (2008, p. 169) afirma, em uma anlise sobre o processo evolutivo das

    prticas comunicacionais nas organizaes, que assim como a propaganda teve um

    papel fundamental aps a Revoluo Industrial, a comunicao organizacional

    atualmente encarada como fundamental e rea estratgica nas organizaes:

    As aes isoladas de comunicao de marketing so insuficientes para fazer frente aos novos mercados competitivos e para se relacionar com os stakeholders ou pblicos estratgicos. Estes so cada vez mais exigentes e cobram das organizaes responsabilidade social, atitudes transparentes, comportamentos ticos, graas a uma sociedade mais consciente e uma opinio pblica sempre mais vigilante. (KUNSCH, 2008, p. 169)

    Portanto, conforme Halliday (2009), o discurso organizacional uma forma de

    ao interrelacionada com as demais aes. Diz ela: Se h disparidade entre o

    discurso e outras aes, a legitimao vai para o brejo, por que a entramos no

    territrio da dissimulao e da perda de confiana. (HALLYDAY, 2009, p. 48)

  • 38

    2.2 A Cultura Organizacional: o bero dos valores

    Os estudos acerca desta cultura datam da dcada de 1960, quando Allport

    (1962) e Schein (1965) publicaram seus estudos em psicologia organizacional. Para

    Schein (1986, apud Deal; Kennedy, 1982), a cultura organizacional de um grupo

    pode ser definida como o conjunto de pressupostos bsicos que um determinado

    grupo inventou, descobriu e desenvolveu ao aprender como lidar com os problemas

    de adaptao externa e integrao interna. Para aquele autor, se esse conjunto

    funciona bem o suficiente deve ser considerado vlido e ensinado como valores e

    tradies aos novos membros do grupo como a maneira correta de perceber,

    pensar e sentir, em relao a esses problemas.

    Segundo Katz e Kahn (1978), os principais componentes de uma organizao

    so os papis, as normas e os valores. Esses trs elementos definem e orientam o

    funcionamento de uma empresa. Os papis definem e prescrevem formas de

    comportamento associadas a determinadas tarefas, as normas so expectativas

    transformadas em exigncias e os valores so as justificativas e aspiraes

    ideolgicas mais generalizadas.(1978, p.54)

    Em 1982, Deal & Kennedy publicaram um livro denominado Corporate

    Cultures, resultante de estudos que ambos fizeram juntos. Kennedy, oriundo da

    consultoria McKinsey e Deal, da Faculdade de Educao de Harvard, durante um

    perodo de seis meses estudaram os perfis de oitenta empresas americanas. Um

    tero delas tinha crenas claramente definidas e todas elas foram consideradas

    empresas de alta performance. Embora os prprios autores reconheam que no de

    trata de pesquisa cientifica, acreditam que as evidncias do impacto dos valores e

    crenas na performance real.

    Este foi o fator que motivou os autores a continuar seus estudos, pois era

    uma evidncia de que se tratava de uma mina de ouro. Algumas caractersticas

    comuns foram encontradas nas empresas com este tipo de cultura: (1) valores, a

  • 39

    pedra fundamental da cultura corporativa; (2) heris, que personificam a cultura e

    definem a fora da organizao; (3) ritos e rituais, que so a cultura em ao; (4)

    comunicao, responsvel pela rede cultural. A partir destas constataes, Kennedy

    & Deal afirmaram que era possvel prever a performance de uma empresa.

    Rodrigues (2002) elenca vrios autores que abordam a cultura organizacional:

    Pettigrew (1979), Deal & Kenedy (1982), Ouchi & Wilkins (1985), Sharivastava

    (1985), Wilkins & Patterson, Schein (1986), Beyer & Trice (1987) e todos eles

    incluem os valores como parte do conjunto de smbolos que caracterizam as

    organizaes.

    A fonte das culturas organizacionais so as exigncias universais do ser

    humano, basicamente de trs tipos como apontam Tamayo; Mendes; Paz (2000): (1)

    as necessidades biolgicas do organismo, (2) as necessidades sociais relativas

    regulao das interaes interpessoais e (3) as necessidades scio-institucionais

    referentes sobrevivncia e bem-estar dos grupos.

    Como as organizaes nada mais so que pessoas se relacionando em prol

    de um objetivo comum, estas exigncias universais tambm esto presentes e a

    elas so acrescidas as exigncias organizacionais, que se ancoram na misso a que

    a organizao se prope a desenvolver.

    2.3 Estudos de cultura organizacional na Comunicao

    Cultura e comunicao tm uma das relaes mais ntimas do mundo

    humano do conhecimento, diz Marchiori (2009, p. 294) e a cultura responsvel

    pelo que se pode chamar de personalidade da organizao. Defende a autora que

    a comunicao construo de significado e interrelao e que a cultura e

    comunicao so, com certeza, recursos indissociveis, estratgicos e responsveis

    pelo desempenho das organizaes.

  • 40

    Para Schuler (2009, p. 244) o termo cultura pode ser definido como um

    processo coletivo de construo da realidade, por meio da representao, que

    permite que as pessoas vejam, interpretem e entendam a realidade compartilhada

    de forma semelhante. Segundo ela, gerar cultura , antes de tudo, compartilhar

    significados ou tornar significados comuns, ou ainda, comunicar.

    Sobre as possveis manifestaes da cultura interessante notar as

    dimenses mental, afetiva e expressiva observadas por Schuler (2009, p. 260), nas

    quais variveis como hbitos, usos, costumes e crenas relacionados, so

    fundamentais para a ao dos recursos humanos na organizao.

    Mas para administrar eficazmente um processo de interveno cultural,

    conforme Morgan explica no livro Imagens da organizao (2002), preciso

    estabelecer significados e valores fundamentais que a pessoas possuem e

    compartilham, em substituio ao controle por regras externas, deixando sempre

    aberto o espao de flexibilidade e de adaptabilidade s situaes.

    De acordo com Marchiori (2006, p. 161) a nica forma de modificar uma

    organizao por meio de sua cultura. J em seu artigo Gesto da comunicao e

    das mudanas culturais, ela menciona que a cultura compartilhada, ressalta o

    comprometimento das pessoas com valores, tem sentido emocional, estabelece

    identificao dos membros e aprova ou no comportamentos. (MARCHIORI, 2009,

    p. 297). Quanto mais unidade existir entre os membros, mais consensual ser a

    viso da cultura organizacional: a definio expressa de valores, ideias

    compartilhadas por todos os agentes organizacionais. Por isso, (...) a cultura no

    algo que uma organizao possui; uma cultura algo que uma organizao .

    (MARCHIORI, 2009, p. 303).

    Pioneira em desenvolver uma cultura organizacional, a organizao japonesa

    vista como uma coletividade a que os empregados pertencem e no como um

    local de trabalho constitudo de vrias pessoas separadas. De acordo com Morgan:

  • 41

    O esprito de colaborao de um vilarejo ou comunidade prevalece na experincia

    de trabalho e existe considervel nfase na interdependncia, nos interesses

    comuns e na ajuda mtua. (2002, p. 141). Alm disso:

    As organizaes so minissociedades que tm seus prprios padres especficos de cultura e subcultura. Uma organizao pode-se considerar como uma equipe muito unida ou uma famlia que acredita em trabalho conjunto. Outra pode estar imbuda da ideia de que somos os melhores do ramo e pretendemos continuar sendo. Uma outra pode ser altamente fragmentada, dividida em grupos que veem o mundo de maneiras muito diferentes ou que tm diferentes aspiraes quanto ao que sua empresa deveria ser. Esses padres de crenas ou significado compartilhado, fragmentados ou integrados e apoiados por vrias normas operacionais e rituais, podem exercer influncia decisiva sobre a habilidade geral de uma organizao em lidar com os desafios que tem que enfrentar. (MORGAN, 2002, p. 148).

    Estudos realizados na dcada de 1980, como o de Peters; Waterman (1982)

    enfatizam que as organizaes bem-sucedidas constroem culturas coesas em torno

    de conjuntos comuns de normas, valores, ideias que criam um foco adequado para a

    realizao de negcios. No se deve desprezar a complexidade do que se chama

    cultura organizacional, suas metforas e valores. De acordo com Morgan:

    A cultura e a cultura corporativa so muito mais do que os olhos podem ver. Muitos tericos e praticantes da administrao, influenciados pela metfora, no conseguem ver isto. (...) pensam e falam sobre cultura como algo que pode ser descrito como o nvel de lemas, e seus mtodos e tcnicas de mudana cultural, em geral, no fazem mais do que arranhar a superfcie da realidade. (MORGAN, 2002, p. 165).

    Para Lipovetsky (2003), o respeito aos princpios da moral e da tica tem se

    mostrado atualmente uma condio para a sustentabilidade e a legitimidade pblica

    das organizaes devido a quatro fatores: (1) conscincia adquirida pelas

    organizaes para a preservao do meio ambiente e para a proteo da sade e

    da qualidade de vida; (2) modelo da economia financeira global que visa

  • 42

    transparncia de suas aes; (3) polticas de comunicao e produtos: valorizao

    de uma postura tica no marketing e divulgao. Confiana na solidariedade, na

    segurana, no antirracismo e (4) promoo da cultura organizacional e do

    engajamento dos trabalhadores na organizao.

    Pensar a tica nos negcios constitui-se um fenmeno do futuro, resultante

    da transformao que visa ao equilbrio tradicional dos poderes e contrapoderes nas

    democracias liberais, explica Lipovetsky (2003, p. 79). Para Nassar (2007, p. 90) e

    Kotler (1995, p. 73) a histria de uma organizao pode ser vista como um trao

    fundamental de seu presente e de sua misso. O primeiro elemento responsvel

    pela fundao da misso de uma empresa o seu percurso histrico.

    A cultura organizacional influencia cumprimento ou no da misso, da viso e

    dos valores nas organizaes. Para Kotler (1994, p. 74) uma declarao de misso

    bem definida fornece aos funcionrios de uma empresa um senso mtuo de

    propsito, direo e oportunidade agindo como uma mo invisvel que guia o

    trabalho em direo realizao das metas da organizao.

    Misso, viso e valores so conceitos fundamentais a partir dos quais foi

    possvel estruturar o quadro abaixo, de acordo com Ianhez (2008, p. 102):

    TABELA 4 Misso, viso e valores MISSO

    VISO

    VALORES

    Estabelece o campo de

    atuao da organizao. Diz

    porqu e para qu ela existe.

    Deve ser formalizada de

    maneira clara e objetiva.

    Ponto de referncia para aquilo

    que se deseja atingir no futuro

    de uma organizao. Guia para

    se determinar o nvel de

    ambio e seta indicativa para

    qualquer planejamento.

    Um cdigo de valores d aos

    membros de uma organizao

    um comum. Transmite esprito

    de unidade e coerncia para o

    pblico.

    Fonte: Ianhez, J. A. Misso, viso, polticas e valores. (2008, p. 102).

    Para Ianhez (2008, p. 110) o cdigo de valores pressupe um comportamento

    tico, mais e mais amplo ao se basear no apenas num comportamento considerado

  • 43

    bom pela sociedade, mas tambm naqueles que os usos e costumes de uma

    determinada organizao definem como bom e eficaz no relacionamento com o

    pblico que com ela interage.

    Para Nassar (2007, p. 59) processos dialgicos na discusso da misso e da

    viso das organizaes atuam na recuperao das memrias como formas de

    reconhecimento e fortalecimento de sentimento de pertena dos indivduos que

    integram as empresas. O elo organizao-comunicao e cultura j est

    estabelecido. No prximo captulo, os conceitos tericos adentram nos domnios da

    memria.

  • 44

    3. Memria natural, memria artificial ou memria inventada? O uso

    da memria na construo das narrativas organizacionais.

    Memria um conceito que permeia o cotidiano das pessoas. No campo da

    tecnologia referimo-nos memria do computador; nas cincias mdicas, a

    neurocincia estuda os caminhos que ativam a memria humana; a pesquisa clnica

    na neurologia investiga a perda de memria nas doenas degenerativas. J nas

    cincias humanas, a memria objeto de estudo na Histria, nas Cincias Sociais,

    na Sociologia, na Antropologia e recentemente, no campo da Comunicao Social,

    mais especificamente, no domnio da Comunicao Organizacional.

    Um estudo sobre a memria sugere um mergulho, mesmo que superficial, em

    alguns conceitos da mitologia grega. Mnemosyne, nome grego para a personificao

    da memria, era filha de Urano e Gaia, o cu e a terra e irm de Chronos e

    Okeanos, o tempo e o oceano. Tudo na titnide Mnemosyne pode ser considerado

    grandioso, como era a vida dos deuses gregos. Com Zeus, o deus do Olimpo,

    deitou-se por nove noites consecutivas e gerou as nove musas: Calope, a musa da

    eloquncia; Clio, a musa da Histria; rato, a musa da poesia lrica; Tlia, a musa da

    comdia; Melpomne, a musa da tragdia; Terpscore, a musa da dana; Euterpe, a

    musa da msica; Ucrnia, a musa da astronomia e Polmnia, a musa da poesia

    lrica. As filhas de Zeus e Mnemosyne ou Memria foram conhecidas,

    originalmente, como palavras cantadas.

    O nascimento das musas narrado na obra de Hesodo, Teogonia: a origem

    dos deuses. Hesodo, poeta grego arcaico, divide com Homero os principais

    registros do que se denominou a identidade helnica sendo considerado o mais

    antigo tratado de mitologia grega que chegou at os nossos dias. A prpria obra de

    Hesodo , segundo ele, uma inspirao das musas. E foi assim, cantando as

    musas, que comeou o poeta a narrar acerca da criao do mundo. Depois de

    exult-las, Hesodo explicou sua origem:

  • 45

    Na Piria gerou-as, da unio do Pai Cronida, Memria rainha nas colinas de Eleutera, para oblvio dos males e pausas de aflies. Nove noites teve unies com ela o sbio Zeus longe dos imortais subindo ao sagrado leito. Quando girou o ano e retornaram as estaes com as mnguas das luas e muitos dias findaram, ela pariu nove moas concordes que dos cantares tem o desvelo no peito e no-triste nimo, perto do pide altssimo do nervoso. Olimpo a os seus coros luzentes e belo palcio. (HESODO, 2007, p.107).

    A memria, conforme Torrano (2007) tradutor e pesquisador da obra de

    Hesodo, assegura a circulao das foras entre o domnio do invisvel e do visvel j

    que decide entre o ocultamento e a revelao. O texto arcaico de Hesodo,

    apresenta uma traduo sofisticada e comentrios de domnio restrito e acadmico

    que tornam complexa sua leitura. O que se depreende da narrativa que o poder de

    Zeus se estende de ponta a ponta no universo, e que desta forma no existem

    limites entre o presente, futuro e passado. Ao se unir Memria, perde-se a lgica

    entre o antes e o depois, at mesmo porque o universo pode ser visto como cclico e

    circular e tudo retorna onde comeou. O autor comenta que o trao mais marcante

    do pensamento que organiza a Teogonia o da continuidade. (TORRANO, 2007,

    p.68). No entanto no se trata de uma continuidade linear e simples, com relaes

    de causa e efeito, mas sim de certa forma anrquica, multiplamente imbricada,

    interposta, interrelacionada. Como neste universo multidivino tudo sempre causa,

    tudo origem, no h como se estabelecer a linearidade temporal.

    BOSI (1994, p.89) cita Jean-Pierre Vernant, que descreve o ritual no orculo

    de Lebadia. Ao morrer, antes de entrar no pas dos mortos, o consultante bebia de

    duas fontes: na Leth, o poo do esquecimento de sua vida humana, e na

    Mnemosyne, para lembrar o que havia visto no outro mundo. Ela explica que quem

    guarda a memria no Hades transcende a condio mortal, no v mais oposio

    entre a vida e a morte. Se no h distino entre vida e morte, no h tempo

    presente. Hoje, a funo da memria o conhecimento do passado que se organiza,

    ordena o tempo, localiza cronologicamente, explica o autor. Na Grcia arcaica, a

    Memria era a vidncia. Em Hesodo as palavras so foras divinas e o poeta ,

  • 46

    dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memria. Ele tem, na

    palavra cantada, o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distncias

    espaciais e temporais, um poder que s lhe conferido pela Memria. Tal assim

    considerada a memria, uma entidade sobrenatural, de carter divino.

    As narrativas sempre ocuparam espao importante nas sociedades, desde as

    mais primitivas. Durante milnios, a poesia oral foi o centro, o eixo da vida espiritual

    dos povos, da gente que reunida em torno do poeta numa cerimnia ao mesmo

    tempo festiva, religiosa e mgica a ouvia, indica Torrano (2007, p.19).

    As musas tm e mantm o domnio do ser enquanto poderes provenientes

    da Memria. Enquanto filhas da Memria que as Musas fazem revelaes ou

    impem o esquecimento. (TORRANO, 2007, p.30). De certa forma, ao escolherem

    o que vo esquecer e o que revelar, as Musas tm o poder (atribudo pelo pai Zeus)

    de construir a realidade.

    Ao poeta permitido transitar no tempo, j que o tempo da poesia no

    linear, quase atemporal, pois arte que se vale de distintos cdigos, de recursos de

    linguagem, de metforas. Na verdade, a lembrana do passado no retoma algo que

    j se foi; o passado est situado em outros nveis csmicos que somente o poeta

    possui acesso. Nessa perspectiva, a memria no reconstri ou anula o tempo.

    A memria composta pelo par revelao e esquecimento, sendo que esta

    revelao se d pela linguagem. na linguagem que se concretiza o ser ou no-ser,

    o que atribui s musas uma enorme fonte de poder, que vem de seu pai Zeus. E to

    logo nascem, elas instauram o coro e a festa e comeam a seduzir, persuadir e a

    encantar.

    As organizaes, de alguma forma, se utilizam deste par revelao e

    esquecimento, ao decidir o que comunicar e no comunicar. Existe uma relao

    estreita entre as musas e os rituais corporativos dos nossos tempos. O espao

    organizacional de natureza mtica, j que as ritualidades organizam nosso universo

  • 47

    privado, como a casa em que moramos, o nosso primeiro emprego, nosso primeiro

    amor. Eliade nos diz que os locais guardam, mesmo para o homem mais

    francamente no religioso, uma qualidade excepcional, nica: so os lugares

    sagrados do seu universo privado. (ELIADE, 1992, p. 37).

    Em sua anlise, este autor dissocia a sacralidade da religio ao atribuir a

    sensao do sagrado a questes profanas. Desta forma, os valores organizacionais

    deveriam guardar relao nica com a histria, de qualidade nica, de uma

    organizao especfica, de forma que ao explicit-los seria simples correlacionar

    com sua origem. Valores estariam na categoria dos ritos sagrados de uma

    organizao, aquilo que se tem de mais valioso.

    3.1 Da memria mtica arte da memria

    Se a memria mtica tem uma de suas origens na Grcia, tambm l que

    nasce a arte da memria. Yates (2007, p. 17), historiadora britnica, em sua obra A

    arte da memria, aponta que os primeiros registros sobre a arte da memria foram

    feitos em fontes latinas, embora o objeto do relato fosse uma histria grega. Na obra

    De Oratore, de Ccero, conta-se que um admirado poeta grego de nome Simonides

    de Ceos (556-468 aC.) foi o precursor da arte da memria. Convidado para entoar

    seus poemas lricos durante um banquete oferecido pelo nobre Scopas, Simonides

    de Ceos louvou os gmeos Castor e Plux. Scopas se recusou a pagar o combinado

    e recomendou que cobrasse a metade dos gmeos que haviam sido mencionados.

    Chamado a sair do recinto para falar com dois jovens que o solicitavam, Simonides

    no encontra ningum. Ao voltar v o salo em runas, devido ao desabamento do

    teto, com anfitrio e convidados mortos. Simonides de Ceos ajuda, com o uso da

    memria, a identificar os corpos relatando aos parentes os locais onde os

    convidados se encontravam.

  • 48

    Desta forma comea-se a configurar a origem da arte da memria associada

    a lugares e imagens de memria, e a esta tcnica atribuiu-se o nome de

    mnemotcnica. Note-se que da mesma forma que a Memria mtica, a tcnica da

    memria nasce associada palavra cantada, ao poeta, doura dos versos e a

    Simonides de Ceos, que era o nico poeta que recebia pagamento por seus poemas

    e tinha, portanto, a poesia por ofcio. Apresentava grande capacidade de lidar com

    associaes de imagens, com as metforas, tanto que os romanos o denominavam

    Simonides Melicus, o poeta da lngua de mel.

    De acordo com Yates (2007), que relaciona a memria com textos de autores

    clssicos, Ccero, na obra De Oratore apresenta a memria como uma das cinco

    partes da retrica.

    A inveno o exame aprofundado de coisas verdadeiras (res) ou de coisas verossmeis para tornar uma causa plausvel; a disposio arranjar em ordem as coisas j descobertas: a elocuo adaptar as palavras (verba) convenientes s (coisas) inventadas; a memria a percepo firme, pela alma, das coisas e das palavras; a pronunciao o controle da voz e do corpo para se adequar dignidade das coisas e das palavras. (YATES, 2007, p.25).

    curioso notar que a memria est mais associada ao discurso que

    propriamente aos fatos, de onde se entende que a retrica nasce da inveno

    temtica, que pode ser verdadeira ou no. Desta forma no h, pelo menos no

    claramente, uma associao entre o tempo e a memria, como de fato na memria

    mtica. Torrano (2007) explica que o tempo grego circular e no linear. Segundo

    Yates (2007) h dois tipos de memria:

    (...) a memria natural e outra artificial. A natural aquela inserida em nossas mentes, que nasce ao mesmo tempo que o pensamento. A memria artificial fundamenta-se em lugares e imagens. Um locus um lugar facilmente apreendido pela memria, como uma casa, um canto, um arco etc. Imagens so formas, signos distintivos, smbolos daquilo que queremos lembrar (YATES, 2007, p.23).

  • 49

    A memria artificial aquela reforada e consolidada pelo treinamento. ,

    portanto, construda a partir de um repertrio nico e que depender da habilidade

    de seu usurio e treino, para se valer da memria de lugares e de coisas.

    E se isto verdade, ento voltamos s origens mticas, pois eram os poetas,

    inspirados pelas musas, que cantavam os feitos dos deuses. E, por este motivo, est

    vinculada memria oral, que passava de gerao para gerao, como foi a

    Teogonia de Hesodo, ao relatar a origem dos deuses.

    Aristteles, que viveu depois de Simonides, em 384 a.C., foca a memria na

    teoria do conhecimento. Os cinco sentidos trazem a informao e as imagens so

    formadas e se tornam a matria da faculdade intelectual. A imaginao a

    intermediria entre percepo e pensamento. dele a frase: a alma nunca pensa

    sem uma imagem mental.

    A teoria do conhecimento o ramo da filosofia que explora o conhecimento

    do homem e existem muitos movimentos, em diferentes po