interseções entre os valores e a memória na comunicação ... · suzel garcia de lima figueiredo...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
SUZEL GARCIA DE LIMA FIGUEIREDO
Intersees entre os valores e a memria
na comunicao organizacional
So Paulo 2011
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SUZEL GARCIA DE LIMA FIGUEIREDO
Intersees entre valores e memria na
comunicao organizacional
So Paulo 2011
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao (PPGCom) da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao.
rea de Concentrao: Interfaces Sociais da Comunicao.
Linha de Pesquisa: Polticas e Estratgias de Comunicao.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Nassar.
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Servio de Biblioteca e Documentao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo.
Figueiredo, Suzel.
Intersees entre valores e memria na Comunicao Organizacional / Suzel Figueiredo. Orientador: Prof. Dr. Paulo Nassar. So Paulo 2011.
141f. : il.
Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo, 2011.
1. Interfaces Sociais da Comunicao. 2. Polticas e Estratgias de Comunicao. I. NASSAR, P. II. Comunicao Organizacional. III. Memria Organizacional. IV. Valores Organizacionais.
CDD 21. Ed. -
302
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FIGUEIREDO, Suzel. Intersees entre valores e memria na comunicao organizacional. Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao (PPGCom) da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao.
Aprovada em: _____/_____/_____
Banca Examinadora
Prof. Dr._____________________________________Instituio:_______________
Julgamento:___________________Assinatura:_____________________________
Prof. Dr._____________________________________Instituio:_______________
Julgamento:___________________Assinatura:_____________________________
Prof. Dr.______________________________________Instituio:______________
Julgamento:___________________Assinatura:______________________________
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Dedico este trabalho s minhas filhas, Mariana e Julia.
Minhas amigas, minhas companheiras.
Fontes de inspirao.
Motivos de orgulho.
Meu cho.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Rubens e Luzia, com quem aprendi o valor da verdade;
Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Nassar, pelo comprometimento e amizade;
Aos integrantes da minha banca de qualificao, Prof. Dr. Margarida M. Khroling
Kunsch e Prof. Dr. Eugenio Bucci, pelo acolhimento;
Ao Prof. Dr. Clvis Barros Filho, pelos encontros alegres;
Aos professores Dr. Sidinia Gomes Freitas, Dr. Mitsuru Higuchi Yanaze,
Dr.Leandro Leonardo Batista, Dr. Ecla Bosi pelo conhecimento;
Prof Ms. Wilma Vilaa, pelo companheirismo;
Cacau Freire, pela contribuio e estmulo;
Carla Mingolla, pela compreenso;
Raisa Kamaura, pelo empenho;
Ao pessoal da Ideafix, com quem vivencio o valor de um time;
Aos meus alunos e clientes que me mostram, todos os dias, o valor do trabalho;
Aos Garcia e Figueirada, que traduzem o valor da famlia;
Aos meus amigos da vida toda, que me ensinaram o valor da confiana;
E s minhas filhas, que refletem o valor da felicidade.
O sentido da vida se faz, assim, no exerccio dos valores.
E a todos que so atores neste processo, deixo minha reverncia e meu afeto.
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Os homens jamais escolhem valores,
assim como jamais escolhem o bem ou a felicidade.
Escolhem sempre ideias concretas, finalidades concretas,
alternativas concretas. Seus atos concretos de escolha
esto naturalmente relacionados com sua
atitude valorativa geral, assim como seus juzos esto
ligados sua imagem de mundo.
Agnes Heller
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RESUMO
O objeto desta dissertao envolve um estudo dos valores organizacionais dos
grandes grupos empresariais que operam no Brasil. O corpus terico que embasa a
anlise est fundado nas teorias da comunicao organizacional, nos estudos de
memria, no campo da histria e na teoria dos valores, no campo da filosofia. O
ponto de interseo ocorre na cultura organizacional, onde os valores so
divulgados, vivenciados ou projetados. Os conceitos de Max Scheler, principal
terico contemporneo dos valores, so utilizados para discutir os resultados da
pesquisa aplicada. No entanto em tempos de impermanncia, os resultados
sugerem que a memria que particulariza as organizaes no se reflete nos valores
divulgados. Ao contrrio, os valores explicitados tm baixa relao com a atividade
fim das organizaes e muito vnculo com a gesto. Lucro (resultados) e tica so
os dois valores mais presentes nos 100 grupos consultados. Os comunicadores
organizacionais esto diretamente envolvidos no processo de difuso e
interpretao desses valores, que so a gnese e fonte de inspirao para projetos
e programas de gesto da identidade organizacional.
Palavras-chave: Valores. Valores organizacionais. Cultura organizacional. Memria
organizacional. Comunicao Organizacional.
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ABSTRACT
The object of this dissertation involves a study of the organizational values
of large business groups that operate in Brazil. The theoretical corpus that sets up
this analysis is based on the theories of organizational communication, on memory
studies from history and on the theory of values from philosophy. The intersection
point occurs in the organizational culture, where the values are revealed,
experienced or projected. The concepts of Max Scheler, the main contemporary
theoretician of the values, are used to discuss the results of the applied research.
However, in changing times, the results suggest that the memory that particularize
the organizations is not reflected in the values published. On the contrary, the values
mentioned have little relation to the organizations core business and a great
connection with the management. Profit (results) and ethics are the two values most
often present in the 100 groups consulted. The organizational communicators are
directly involved in the process of propagation and interpretation of these
values, which are the genesis and the source of inspiration for projects and
management programs of organizational identity.
Key words: Values. Organizational values, Corporate culture. Corporate memory.
Organizational Communication.
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LISTAS DE TABELAS
TABELA 1. Trs orientaes para a relao discurso-organizao.....................
30
TABELA 2. Metforas de Morgan........................................................................ 33
TABELA 3. Quadro comparativo das metforas.................................................. 34
TABELA 4. Misso, viso e valores..................................................................... 42
TABELA 5. Classificao da histria da filosofia, de acordo com Chau............. 55
TABELA 6. Valores terminais: valores ligados ao objetivo final........................... 76
TABELA 7. Valores instrumentais: valores ligados aos comportamentos
cotidianos..............................................................................................................
77
TABELA 8. Tipos motivacionais........................................................................... 78
TABELA 9. Seis tipos motivacionais do IVO........................................................ 82
TABELA 10. Grupos empresariais analisados na pesquisa................................. 84
TABELA 11. Forma de explicitao dos valores nos ambientes virtuais............. 89
TABELA 12. Forma de apresentao dos valores da CSN (40)......................... 93
TABELA 13. Forma de apresentao dos valores da Kraft Foods (83).............. 94
TABELA 14. Categoria e subcategorizao dos valores terminais...................... 96
TABELA 15. Categoria e subcategorizao dos valores instrumentais............... 97
TABELA 16. Grupos que no citam valores terminais......................................... 100
TABELA 17. Hierarquizao dos valores............................................................. 101
TABELA 18. Valores mais divulgados pelas indstrias........................................
104
TABELA 19. Valores mais divulgados na categoria de servios.......................... 105
TABELA 20. Valores mais citados no comrcio................................................... 106
TABELA 21. Valores dos grupos brasileiros x estrangeiros.................................
106
TABELA 22. Os grupos mais antigos................................................................... 111
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1. Credo da Johnson & Johnson............................................................ 81
FIGURA 2. Capa da Revista Valor: Especial Grandes Grupos..........................
84
GRFICO 1. Anlise dos dados: origem do capital............................................. 86
GRFICO 2. Anlise dos dados: ramo de atividade............................................
87
FIGURA 3. Forma de apresentao dos valores da Petrobrs (1)......................
90
FIGURA 4. Forma de apresentao dos valores do Grupo Bayer no portal
global.....................................................................................................................
96
GRFICO 3. Anlise dos dados: categorizao dos valores............................... 99
GRFICO 4. Anlise dos dados: valores mais citados........................................ 103
FIGURA 5. Nuvem de termos (tags) sobre a misso dos grupos empresariais.. 108
FIGURA 6. Nuvem de termos (tags) sobre a viso dos grupos empresariais..... 109
FIGURA 7. Misso dos 10 grupos estrangeiros................................................... 110
FIGURA 8. Viso dos 10 grupos estrangeiros..................................................... 110
FIGURA 9. Misso dos 10 grupos brasileiros...................................................... 110
FIGURA 10. Viso dos 10 grupos brasileiros....................................................... 110
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Sumrio
1. Introduo ............................................................................................................... 13
2. Organizao e comunicao: profundas interrrelaes ......................................... 24 2.1 A Comunicao Organizacional: a expresso de uma filosofia ....................... 35
2.2 A Cultura Organizacional: o bero dos valores ................................................ 38
2.3 Estudos de cultura organizacional na Comunicao ....................................... 39
3. Memria natural, memria artificial ou memria inventada? O uso da memria na construo das narrativas organizacionais. ............................................................... 44
3.1 Da memria mtica arte da memria ............................................................. 47
3.2 Memria empresarial: memria artificial ou inventada? ................................... 51
4. Virtude, excelncia moral e valor .......................................................................... 54 4.1 Valor como ideal ............................................................................................... 55
4.2 Valor como afeto ............................................................................................... 60
4.3 Valor como poder .............................................................................................. 64
5. Valores corporativos: uma anlise quantitativa sobre a difuso de valores dos maiores grupos empresariais no Brasil ...................................................................... 73
5.1 Hipteses de pesquisa ...................................................................................... 73
5.2 Objetivos ........................................................................................................... 74
5.3 Classificao dos valores: Rokeach ou Tamayo? ............................................ 74
5.4 Mtodo e tcnicas de coletas de dados ........................................................... 83
5.5 Anlise dos dados ............................................................................................. 85
5.5.1 Perfil da amostra: brasileiros so maioria dentre os grandes grupos ....... 85 5.5.2 Sistematizao para a coleta dos dados sobre valores ............................ 87 5.5.3 Estrutura axiolgica segundo Rokeach ..................................................... 96 5.5.4 A hierarquizao dos valores ................................................................... 101 5.5.5 Valores comparados por ramo de atividade ............................................ 104 5.5.6 Comparao de valores por origem de capital ........................................ 106 5.5.7 Compasso ou descompasso com a misso e a viso? ........................... 107 5.5.8 Memria e valores: existem intersees? ................................................ 110 5.5.9 Valores do Banco Santander e Real: rpida histria organizacional ...... 113
6. Concluso ............................................................................................................. 116 7. Referncias bibliogrficas .................................................................................... 123 Anexo 1: Formulrio de Coleta de Dados ................................................................ 135 Anexo 2: Lista completa dos valores classificados .................................................. 137
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1. Introduo
Desde o final da dcada de 1990 e ao longo da primeira dcada do sculo
XXI at hoje, a comunicao organizacional vem protagonizando mudanas
sucessivas em seu universo terico, sua rea de influncia, suas prticas e, em
consequncia, no perfil dos profissionais que atuam nesse campo.
Pode-se afirmar que as organizaes so configuradas para desempenhar
uma misso e em funo dela pessoas se relacionam em busca de um objetivo
comum. De uma forma geral e independente de seu tamanho, as organizaes so
complexas e tm algumas caractersticas, listadas por Nassar (2008, p.62) como
sendo constitudas por pessoas com as quais o trabalho dividido, que apresentam
histria e memria, adquirem ao longo dos anos identidade e enfrentam desafios de
mudanas visando resultados.
O que diferencia as organizaes, umas das outras, a forma como decidem
cumprir a misso ou, em outras palavras, como definem seu jeito de ser. Para que
todos estejam cientes desse jeito de ser, necessrio que os pblicos de
relacionamento da organizao sejam impactados pelas mensagens que traduzam
esta inteno.
Organizaes se comunicam por um rol de processos, metodologias e
ferramentas e por um mix de meios, formais e informais, desenhados para que a
percepo dos pblicos de relacionamento esteja em conformidade com a imagem
desejada. Quanto mais poder simblico essa organizao construir e exercer sobre
determinado grupo ou sociedade, segundo Baldissera (2009, p. 137): mais fortes
tendero a ser suas influncias e mais frgeis sero as resistncias a seus padres,
suas aes, seus procedimentos, seus valores, suas crenas.
O Brasil vem assistindo, nas ltimas dcadas, a um aumento crescente da
participao das organizaes no mbito da sociedade na vida comunitria, seja por
presses da populao e mercados; seja por crenas em valores que cada vez mais
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exigem uma participao na vida social; seja pela demanda que o setor pblico no
consegue ou no quer atender e acaba por bater porta da iniciativa privada. Com
a ampliao da importncia das empresas para alm de sua funo econmica de
produo, a sociedade est atribuindo a elas um papel comunitrio e o espao que
as organizaes ocupam faz parte da histria da vida das pessoas, das cidades, dos
meios de comunicao e das relaes sociais.
De acordo com Castells (2005, p. 50), "diferentemente de qualquer outra
revoluo, o cerne da transformao que estamos vivendo na revoluo atual refere-
se s tecnologias da informao, processamento e comunicao". Os modelos
econmicos que se desenvolvem ancorados nas novas tecnologias de informao e
comunicao tanto influenciam como so influenciados pela sociedade e pela
cultura, medida que ocorre a apropriao dos recursos tecnolgicos por mais e
mais pessoas.
Dupas (2004, p. 4) apresenta as organizaes como um dos trs grandes
atores do jogo global: a rea do capital (atores da economia global, incluindo
corporaes, sistema financeiro, associaes empresariais, acionistas); a rea da
sociedade civil (indivduos e organizaes sociais no governamentais); e a rea do
Estado (executivo, legislativo, judicirio, partidos polticos e instituies
internacionais).
O papel que o capital ocupa e seu poder esbarra, segundo o autor na sua
legitimao social. O metapoder da economia global extensivo, difuso e no
autorizado, j que no dispe de legitimidade prpria, explica (DUPAS, 2004, p. 10).
Ele aponta ainda que o marketing dos valores dominantes e a seduo retrica dos
discursos no so suficientes para construir esta legitimidade.
Em seu livro, Relaes Pblicas na construo da responsabilidade histrica
e no resgate da memria institucional das organizaes, Nassar (2007) lembra que:
(...) a cultura, os comportamentos, os smbolos, a identidade e a comunicao, o conjunto de elementos que formam a
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personalidade e a imagem de uma empresa ou instituio, so os grandes pilares da memria. E a memria seletiva: escolhem-se as experincias (boas ou negativas) que os inmeros pblicos tm com a organizao, seus gestores, empregados, produtos e servios. (NASSAR, 2007, p.111).
Nesta nova configurao, a comunicao organizacional dialoga com outras
reas de conhecimentos, como a filosofia, a sociologia, a psicologia e a histria,
ampliando a perspectiva da abordagem comunicacional sustentada pelas cincias
humanas.
Na comunicao organizacional, um dos novos campos de saberes
compartilhados a memria empresarial, que transita entre a comunicao e a
histria (no registro), passa pela filosofia (para o entendimento dos valores), inclui a
psicologia (nos estudos cognitivos e comportamentais) e desemboca na
administrao (com o uso que se faz da memria na gesto). Uma anlise com tal
abrangncia seria ousada e o que pretendemos aqui um recorte mais restrito,
entrelaando comunicao-memria-filosofia, com um olhar voltado para o uso de
valores corporativos na memria das organizaes.
Floresce no meio empresarial um interesse pelo registro da memria e da
histria, como se isso assegurasse o pertencimento, a presena fsica, a presena
territorial da organizao, neste mundo de relacionamentos cada vez mais fludos.
Ao registrar a histria e resgatar a memria, o passado se faz presente e passa a
existir. Como a vida cheia de impermanncias, afinal o tempo todo deixa-se de ser,
o registro (histria) ou a lembrana (memria) a fotografia, uma possibilidade,
entre tantas, de se flagrar um instante no tempo.
A esse propsito Bauman (2007, p. 84) explica que a modernidade lquida
destronou a durao, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade
acima do valor da permanncia. Nesse contexto, diz ele que a cultura lquido-
moderna no se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acmulo,
como as outras registradas nos relatos dos historiadores e etngrafos. Em vez disso,
uma cultura de desengajamento, de descontinuidade e do esquecimento. Espaos
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vazios na rede, intervalos entre processos de construo e desconstruo so
espaos do saber que, segundo Lvy (2003), propem-se no s como sada por
cima do labirinto territorial, mas como ponte entre os saberes anteriores. Para ele, o
guia o pensamento do indivduo, o intelectual coletivo que se desdobra em um
plano de imanncia infinito, sem apropriao, sem inrcia, prprio dele deixar
coexistir, acolher o ser em sua diversidade. (LVY, 2003, p. 202)
Mas, alm do questionamento de conceitos tambm nesse espao que se
cria a reputao. Registre-se, por exemplo, o caso Toyota. Cita Nassar: Veja a crise
que se abate sobre a Toyota, iniciada por um recall de milhares de automveis, que
j resultou em perda de valor de mercado, uma cascata de processos indenizatrios
(2010). A imagem da Toyota at ento solidamente associada e lembrada pelos
consumidores como um dos cones mundiais do modelo japons de qualidade total,
em fevereiro de 2010, foi abalada devido a problemas de recall de carros com
problemas na acelerao. No momento em que estamos vivendo, manter uma
imagem associada a uma lembrana positiva para os consumidores um desafio
constante que entra direto no movimento das cadeias relacionais, segundo Nassar
(2006, p. 33).
Com a apropriao da tecnologia pelo pblico consumidor brasileiro desde
meados de 1990, perodo em que os computadores e a rede passaram a ocupar um
lugar de destaque nas residncias brasileiras, a troca de informaes sobre as
organizaes e seus produtos circula na Internet em velocidade intensa, em lugares
inesperados como em blogs, no Twitter ou em vdeos disponibilizados por
consumidores no YouTube. Mercados so conversaes j fazia saber o Manifesto
Cluetrain, escrito por um grupo de jornalistas e filsofos americanos (Levine et.
al.,1990) que, naquela poca, estava advertindo as organizaes para que
mudassem as posturas comunicacionais e atentassem para as novas formas de
comunicao e do pblico fazer negcios na rede. Tratava-se de uma realidade
emergindo, incompatvel com os meios e as formas de comunicao com os quais
as organizaes estavam acostumadas a lidar.
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De acordo com Ribeiro (2000) na sociedade democrtica o espao pblico se
delineia no conflito dos inmeros discursos que o atravessam e constituem
incluindo os que tratam diretamente da poltica, e de economia. Neste contexto, no
qual o pblico tambm atua na formao de valores das organizaes, a
contribuio que se espera com este projeto de pesquisa uma reflexo sobre a
comunicao e a cultura corporativas por meio de uma anlise interdisciplinar,
atentando para um pblico participativo e interventor, uma vez que a produo de
pesquisas no campo das comunicaes organizacionais tem se mostrado mais
intensas no fazer profissional.
deste modo que o projeto se insere na rea de Concentrao: Interfaces
Sociais da Comunicao, do Programa de Ps-Graduao em Cincias da
Comunicao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo.
Esta rea estuda as trocas que a comunicao realiza com a sociedade civil e suas
instituies, centrando suas preocupaes nas condies econmicas de produo
da cultura miditica; nas mediaes culturais presentes nos mecanismos de
produo da comunicao; nas polticas de comunicao e suas estratgias; na
passagem da tradio para a renovao e inovao; nos significados sociais das
tecnologias da comunicao na sociedade contempornea. Nesse sentido, esta rea
de concentrao volta-se essencialmente para a investigao das diferentes culturas
existentes na sociedade em interao com os processos e prticas da comunicao.
Inserida nessa rea que proporciona intersees, encontra-se a Linha de Pesquisa
Polticas e Estratgias de Comunicao que aborda os estudos dos paradigmas e
correntes tericas da comunicao organizacional, da publicidade, das relaes
pblicas, da editorao e do jornalismo, decorrentes das mltiplas interfaces sociais
da comunicao.
Enfocam-se as polticas e estratgias de comunicao no setor pblico,
privado e no-governamental, desenvolvendo a pesquisa aplicada em comunicao
administrativa, interna, institucional e mercadolgica, que tem por base tanto a
perspectiva de uma filosofia da comunicao integrada quanto os princpios da tica,
da responsabilidade social e da incluso social de classes, gneros e etnias. Estuda,
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ainda, a produo, a emisso e a recepo de mensagens institucionais e
publicitrias e seus reflexos na sociedade contempornea. Enfim, contempla
pesquisas relativas a comunicao pblica e a polticas pblicas de comunicao.
Dentre tantos recortes possveis, esta pesquisa privilegiou as reas de
conhecimento da comunicao organizacional, filosofia e memria. Pesqueux (2008,
p. 9) afirma que atualmente a filosofia vem sendo valorizada, pois grande a
contribuio que pode oferecer ao quadro conceitual das cincias organizacionais.
As empresas contemporneas devem s formas de empresas e de sistemas de valores de hoje em dia e so responsveis por suas caractersticas atuais. Mas difcil compreender o que est em jogo atualmente sem se confrontar com a histria e as tradies, voltando o que parece ter marcado o modo como pensamos, em um universo de rigor intelectual, em que se evita a superficialidade. (PESQUEUX, 2008, p.9).
Na opinio de Pesqueux (2008), h certa fragilidade conceitual nas cincias
organizacionais e a filosofia est apta a esclarecer e fundamentar o comportamento
das empresas, j que trabalha com modelos preditivos. Observando-se o movimento
das empresas no Brasil em busca de contedo filosfico, sociolgico, antropolgico,
h indicativos que Pesqueux pode ter razo, ou seja, que existe de fato uma
demanda filosfica, tanto que os principais filsofos do pas tm sido assediados por
empresas para a discusso de tica e valores morais.
Por sua vez, a leitura do livro de Edgar Morin (2008) A cabea bem feita
despertou, durante o trabalho de pesquisa, o interesse pela crtica ao modo de
pensar contemporneo decorrente da hiperespecializao, posto que o
conhecimento com sua complexidade visto em parcelas, fragmentado. Menciona o
autor: todos os problemas particulares s podem ser posicionados e pensados
corretamente em seus contextos e o prprio contexto desses problemas deve ser
posicionado, cada vez mais, no contexto planetrio. (MORIN, 2008, p.14). Cabe
lembrar, aqui, que o ttulo do livro baseia-se na seguinte citao de Montaigne: mais
vale uma cabea bem-feita que uma cabea bem cheia. Dessa perspectiva,
considerei que refletir sobre a construo dos processos de comunicao nas
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organizaes para registro da memria deveria, necessariamente, incluir conceitos
da filosofia. Os saberes, que na Grcia clssica eram todos interrelacionados, foram
se fragmentando.
Descartes, no sculo XVII, em dado momento da vida decide duvidar de
todas as verdades, tanto aquelas que se apresentavam pelos sentidos, quanto as
que se justificavam no argumento da autoridade. Depois de viajar por muitos pases,
conhecer muitas culturas e muitos povos, num inverno rigoroso fecha-se num quarto
e comea a meditar, colocando em dvida todos os seus pensamentos, que registra
metodicamente em sua obra O Discurso do Mtodo (2009).
importante observar que quela altura Descartes j havia estudado
Filosofia, Geometria, Matemtica e Lgica e, com base nessa ltima, ele define
apenas quatro preceitos para o mtodo de pensar, ,afirmando, enfaticamente, que
precisariam ser observados sempre. No texto a seguir, as palavras de Descartes, de
forma editada.
O primeiro consistia em nunca aceitar, por verdadeira, coisa nenhuma que no conhecesse como evidente. O segundo dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas partes quantas pudessem ser e fossem exigidas para melhor compreend-las. O terceiro conduzir por ordem os pensamentos, comeando pelos objetos mais simples e mais fceis de serem conhecidos, para subir, pouco a pouco, como por degraus, at o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo certa ordem entre os que no se precedem naturalmente uns aos outros. O ltimo fazer sempre enumeraes to completas e revises to gerais que ficasse certo de nada omitir. (DESCARTES, 2009, p. 65-68).
A frase de Juan de Mairena, poeta e filsofo espanhol, a dvida serve para
repensar o pensamento, junto com as proposies cartesianas me incentivaram a
duvidar. Assim, h mais de 10 anos venho pesquisando a comunicao corporativa
no Brasil, tanto do ponto de vista do mercado, quanto avaliando processos,
estratgias e eficcia da comunicao.
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Em minha trajetria pessoal fui gestora de projetos de pesquisa em mais de
60 empresas de grande porte. Dentre elas, empresas nacionais, empresas
estrangeiras, organizaes pblicas e privadas, da indstria, do comrcio e do ramo
de prestao de servios, empresas mais ousadas e mais tradicionais, empresas
com gestes completamente distintas, com atuao regional ou global. Enfim,
considero uma experincia significativa junto vivncia das corporaes que no
poderia deixar de mencionar nesta pesquisa se considerar que mais de 30 pessoas
foram ouvidas ao longo deste percurso como pesquisadora, ao implementar e
gerenciar pesquisas nas e para as organizaes.
De fato, desta experincia pessoal que procedem as motivaes capazes
de gerar esta investigao em gestao h muitos anos. Dentre essas motivaes, a
principal refere-se constatao de um fato, ao mesmo tempo surpreendente e
constante, suscitando as seguintes questes nas investigaes que tenho
conduzido: se as empresas investem tanto em comunicao corporativa e se as
mensagens so baseadas nas crenas e valores, por que to difcil a lembrana
dos valores pelos pblicos de relacionamento? Apesar de as empresas serem to
distintas, to particulares, razo os valores so sempre to similares?
Comte-Sponville (2008), em seu livro Valor e Verdade dedica um captulo
para discutir a moralidade nas empresas. O autor enftico ao dizer que o
capitalismo no moral nem imoral, mas simplesmente racional, como se espera de
uma atividade econmica. No entanto, as empresas tentam expressar cada vez mais
atributos morais. Por qu? Para Comte-Sponville, se as empresas no possuem a
caracterstica ou a qualidade moral, uma vez que a gesto e o cumprimento das leis
so suficientes, ele recomenda que os indivduos que nelas desempenham suas
funes sejam os responsveis por desenvolver esse campo moral de atuao. O
autor critica o uso da tica pelas empresas mencionando que parece verossmil que
uma boa tica possa ser um fator de qualidade, logo um argumento de marketing,
no de tica! A moral desinteressada, alis, por isso que reconhecida
(COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 287).
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As empresas registram seus valores em sua produo comunicacional, e que
depois se torna fonte para programas de memria organizacional, tais como
museus, livros, filmes, publicaes, mas neste projeto de pesquisa optamos por
analisar o aspecto comunicativo da moral empresarial que o registro dos valores
nos sites e ambientes virtuais das empresas direcionados a seus pblicos de
relacionamento. Heller (2009, p. 13) menciona que, ao registrar a prpria histria,
uma empresa cria uma narrativa e a histria a substncia da sociedade. Nesse
caso, cabem as perguntas:
Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relaes durveis? Como pode um ser humano desenvolver uma identidade e histria de vida numa sociedade composta de episdios e fragmentos? (HELLER, 2009, p.27).
Com vrias referncias tericas em mos e muitos caminhos possveis a
percorrer, o que pareceu mais significativo, relevante e profundo foi o estudo dos
valores nas organizaes. Esta pesquisa no se props a focar na prtica dos
valores empresariais, tampouco foi feito juzo de valor sobre os valores. O objetivo
foi entender como os conceitos de virtude, excelncia moral e valor foram
apresentados por distintos autores, ao longo da histria, contribuindo para a
construo de um referencial terico atualizado, interdisciplinar, que possvel a
anlise dos valores organizacionais, plataforma de trabalho do profissional de
comunicao.
A dissertao est estruturada em quatro captulos. O primeiro captulo,
aborda a inter-relao entre comunicao e organizao. Com base em tericos
organizacionais e estudiosos da comunicao, apresenta a importncia da
comunicao corporativa na construo da imagem organizacional amparada em
discursos e narrativas, bem como o uso associao das metforas com a
comunicao e as organizaes. Trata ainda das complexidades apresentadas pela
cultura organizacional na comunicao, ressaltando aspectos relevantes como
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coerncia discursiva e dificuldade para mudar hbitos e costumes. Nesse captulo
tambm apresentada a classificao conceitual de valores, misso e viso
empresarial.
No segundo captulo, so abordados os conceitos de memria e a relao
entre comunicao organizacional e memria. Para tanto so apresentadas
referncias conceituais da memria desde a origem grega at estudos mais
contemporneos. Dessa perspectiva, trao um paralelo entre as musas gregas, os
sofistas e os comunicadores organizacionais que, em comum, tratam da retrica e
das narrativas com nfase na persuaso.
No terceiro captulo, a abordagem recai sobre o conceito de valor. Novamente
as bases esto na filosofia grega, com a discusso sobre as virtudes. Utilizando um
quadro de referncias filosficas, enfoco o valor como virtude, o valor como afeto e o
valor como poder, ao mesmo tempo em que contextualizo o momento histrico de
cada uma dessas abordagens. Nesse momento, vrios autores so apresentados
para uma discusso axiolgica.
Por fim, no quarto captulo, esto descritos o objeto investigado, os objetivos
gerais e hipteses de pesquisa, bem como os procedimentos metodolgicos
pertinentes investigao. Trata-se de uma pesquisa de abordagem quantitativa,
utilizando como universo os 200 maiores grupos empresariais que operam no Brasil,
cujo banco de dados e classificao encontram-se na publicao do Valor
Econmico denominada Valor Grandes Grupos, edio 2010.
Dos 100 grupos empresariais selecionados, foram coletados os valores e
analisados segundo perfil da empresa, nmero de funcionrios, setor e ramo de
atividade; misso, viso, categorizao e anlise dos valores encontrados nos
ambientes virtuais (sites ou portais) dessas organizaes.
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23
Para classificar os valores, esta autora lanou mo de referncias de
estudiosos da Psicologia Social que desenvolveram teorias com base nos valores
humanos e que depois foram transpostas para o ambiente organizacional.
-
24
2. Organizao e comunicao: profundas interrrelaes
Os estudos da comunicao organizacional, com intuito de classificao
terico-conceitual, comearam na segunda metade do sculo XX e intensificaram,
particularmente no Brasil, nas trs ltimas dcadas. Uma rpida discusso acerca
dos principais tericos e escolas foi realizada, devido necessidade de se delimitar
o escopo a ser tratado. Para tanto, os conceitos de organizao e comunicao so
abordados preliminarmente.
Muitas so as Teorias das Organizaes ou Teorias da Administrao que se
desenvolveram ao longo de mais de um sculo e muitos so os estudiosos que se
dedicaram a traduzi-las. A Teoria da Burocracia, a Teoria Clssica, a Teoria das
Relaes Humanas, a Teoria Neoclssica, a, a Teoria Estruturalista, a Teoria
Comportamental, a Teoria dos Sistemas e a Teoria Contingencial so algumas
delas.
Ao definir a ao social como objeto de estudo nos primrdios da sociologia,
ainda no sc. XIX, Max Weber (2000) procurou estudar o sentido que os atores
sociais atribuam s suas aes. Para ele, uma ao constitui-se em uma conduta
de elaborao simblica, por meio de subjetividade e intersubjetividade. A ao
social, no entanto, a conduta dotada de sentido para quem a efetua e deve ser
praticada com inteno. Desta forma, a teoria da burocracia weberiana procurou
organizar no apenas o processo de trabalho com base na racionalidade da
administrao, mas tambm toda uma viso de mundo observada como possvel de
se administrar.
Em relao aos processos de ao no trabalho, esta teoria organizou de tal
forma os processos de clculo e previso caracterizando a burocracia com o mais
puro tipo de dominao legal-racional. (Chiavenato, 2000, p.309). A burocracia
prope o formalismo, pelas normas escritas, pela estrutura hierrquica e pela diviso
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horizontal e vertical do trabalho. Na opinio de Tragtenberg (apud PAULA, 2008, p.
99), com forte nfase na dominao.
Inspirado nas grandes empresas capitalistas modernas, nos primeiros anos
do sculo XX, Weber desenha um modelo que prescinde do indivduo, afirmando
que o cumprimento objetivo das tarefas significa, primordialmente, um cumprimento
de tarefas segundo regras calculveis e sem relao com pessoas. (WEBER, 1979,
p.250). A burocracia desumanizada, explica Weber, pois elimina dos negcios
oficiais o amor, o dio e todos os elementos pessoais, irracionais e emocionais que
fogem ao clculo.
No incio do sculo XX comearam os primeiros estudos de Frederick Taylor
(1903) e Henri Fayol (1916) baseados nos princpios da Teoria Cientfica ou Teoria
da Administrao Clssica. Esses estudos primavam, com grande nfase, a
organizao do trabalho e o controle. A administrao das organizaes se
caracterizava pelas tarefas de planejar, comandar, organizar, controlar e coordenar.
A esse modelo de gesto denominou-se gesto mecanicista.
Entretanto, de acordo com Chiavenato (2002, p. 22) organizao um
sistema de atividades conscientemente coordenadas de duas ou mais pessoas. As
organizaes formais seriam organizaes sociais que se distinguem pela
formalidade de seu estabelecimento. O autor esclarece que os objetivos pessoais e
os objetivos da organizao se fundem por meio da ao social dos indivduos.
Por sua vez, KUNSCH (2003, p. 27) entende que as organizaes
constituem aglomerados humanos planejados conscientemente, que passam por um
processo de mudanas, se constroem e se reconstroem, sem cessar e visam obter
determinados resultados.
Do ponto de vista do modelo funcional, as organizaes podem ser
mecanicistas (tayloristas e fordistas), orgnicas e flexveis (toyotistas,
multidirecionais) ou abertas em rede (horizontalizadas). Segundo Nassar:
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26
Constata-se que o modelo de administrao taylorista, fortemente enraizado nas empresas brasileiras dos anos 60 e 70, priorizava os processos internos organizacionais e relegava os aspectos relacionados aos contextos histrico, poltico e social que, de alguma forma, influenciavam as aes de uma empresa ou instituio. (NASSAR, 2010, p. 320)
O divisor de guas nos estudos organizacionais ocorre com o surgimento da
Escola das Relaes Humanas, na dcada de 1930, em contraposio ao
pensamento mecanicista representado por Taylor e Fayol. A nova perspectiva,
apresentada nos estudos de Elton Mayo, aponta, como resume Caldas:
(...) que a comunicao interpessoal, a dinmica de grupo e os valores e atitudes dos empregados em relao organizao eram mais importantes para os resultados e performance organizacional do que a estruturao do trabalho propriamente dita. (CALDAS, 2010, p. 31).
De acordo com Chiavenato (2000, p.113), os principais resultados dos
experimentos de Mayo com funcionrios de uma fbrica indicam que: (1) o nvel de
produo resultante da integrao social (2) o comportamento do indivduo se
apia no grupo; (3) o comportamento est condicionado a normas e padres sociais
(4) os grupos so informais e no atrelados hierarquia (5) os aspectos emocionais
so considerados e (6) o contedo e a natureza do trabalho tem influencia sobre o
moral do trabalhador.
A partir de ento, a relao entre organizao e comunicao comea a
ganhar corpo. Ainda nos anos 30, Chester Barnard, que teve experincia executiva,
foi o primeiro a vincular a eficcia da gesto aos aspectos da comunicao. Tambm
na mesma dcada surgem os estudos de Maslow, que definiu uma hierarquia de
necessidades das pessoas.
Na dcada de 1960, uma nova escola comea a se configurar nos estudos
organizacionais e que foi denominada Teoria Sistmica. Ao buscar referncias em
Morgan (2002) e suas metforas, esta dimenso humana poderia ser encontrada em
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organizaes vistas como organismos, como culturas, como crebros e como fluxo e
transformao. Conforme Morgan (2002, p. 54):
Desta forma, vamos v-las como sistemas vivos, que existem em ambientes mais amplos dos quais dependem para a satisfao de vrias necessidades. E quando examinamos o mundo organizacional, comeamos a ver que possvel identificar diferentes espcies de organizaes em diferentes tipos de ambientes. (...) Neste processo, a teoria da organizao tornou-se uma espcie de biologia em que as distines e as relaes entre as molculas, clulas, organismos complexos, espcies e ecologia tm um paralelo nas distines entre indivduos, grupos, organizaes, populaes (espcies) de organizaes e sua ecologia social. (MORGAN, 2002, p. 54).
Uma perspectiva integrada da viso da organizao por meio da comunicao
encontrada em Kunsch (2009), autora que vem desenvolvendo no Brasil, j h
muitos anos, estudos sobre as diferentes dimenses da comunicao
organizacional. Para ela, a comunicao est presente de maneira sistmica na
organizao, nas vertentes administrativa, mercadolgica e institucional. A
comunicao est a servio do planejamento e gesto estratgica e, por este
motivo, os projetos e as aes de comunicao integradas levados a efeito
necessitam estar alinhados com a misso, a viso, os valores e os objetivos da
organizaes. (KUNSCH, 2008, p.117). Como se v, comunicao e organizao
se relacionam recursivamente.
Os estudos da comunicao organizacional esto de tal forma imbricados
com os estudos organizacionais que, ao abordar o primeiro significa
necessariamente envolver o segundo. Desta forma, a cada salto terico na teoria da
administrao, o mesmo se observou no campo da comunicao.
(...) comunicao e organizao se relacionam entre si como um processo de produo com smbolos produzindo textos. (...) Os smbolos fornecem a maneira pela qual os membros da organizao negociam os scripts, mas tambm servem como meios sutis de preservar o status quo e recriar o modo tradicional de controle. So mais do que manifestaes de
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28
uma cultura organizacional; so os meios pelos quais o ato de organizar realizado com sucesso (PUTNAM; PHILIPS; CHAPMAN, 2004, p. 98).
Com o surgimento e desenvolvimento das novas tecnologias de informao e
comunicao, Castells (2009, p. 36) ressalta que os impactos decorrentes foram os
responsveis pela emergncia de um novo modo informacional de desenvolvimento
no qual a fonte de produtividade acha-se na tecnologia de gerao de
conhecimento, visto que o processo produtivo sempre se baseia em algum grau de
conhecimento e no processo da informao.
Um dos grupos que se mobilizou para estudar a comunicao nas
organizaes canadense e recebeu o nome de Escola de Montreal, cujo maior
expoente James Taylor, por meio de seus estudos que se iniciaram nos anos
1990. A proposta central de anlise deste tema foi uma ampliao de seu conceito
relacionado informao e a interligao, para uma ideia de ao, sem perder seus
significados originais.
Ao explicar seu conceito, Taylor menciona o que a organizao no : no
mquina, no objeto, no crebro, pois o que ela verdadeiramente s ocorre
por intermdio da comunicao. Para Taylor; Casali (2010, p.73), uma organizao
uma configurao de pessoas, tecnologias, edifcios e objetos que se mantm
unidos pela mais frgil das amarras: a comunicao.. Ou, em outras palavras, nos
primrdios dos estudos de Taylor, a organizao um tecido de comunicao
(TAYLOR; CASALI, 2010, p. 31).
A fuso conceitual que deu origem nova Escola de Montreal nasceu de
influncias diversas - norte-americanas e europias - o que gerou uma concepo
terica nica da comunicao organizacional com nfase na linguagem e no
discurso, sem abandonar os aspectos materiais da realidade (TAYLOR; CASALI,
2010, p. 31).
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Duas teorias explicam a relao genealgica comunicao-organizao: (1)
teoria da co-orientao e (2) o modelo texto-conversaes. A teoria da coorientao
pressupe a existncia de dois sujeitos comunicadores em processo de troca,
envolvidos em uma ao e que possuem uma orientao comum. O objeto da troca
deve interessar aos sujeitos e quando recorrem ao universo lingustico, tanto os
sujeitos so impactados pelo mundo objetivo, quanto este impactado pelos sujeitos
(Casali, 2005).
Este tipo de comunicao organizacional ocorre, por exemplo, na
comunicao administrativa, de natureza cotidiana e que engloba todas as aes
comunicativas no trabalho, tais como conversaes pessoais ou telefnicas, relatos
de processos, reunies, mensagens de texto eletrnicas ou impressas, negociaes,
entre outras.
O modelo texto-conversaes, proposto por Taylor e Van Every (2000),
considera que conversaes so traduzidas em textos e estes so traduzidos em
conversaes. Definem os autores que as organizaes so:
(...) formas de vida, uma forma de estruturar o mundo social e cultural para produzir uma ambiente onde estas formas expressam a vida social e criam um contexto para que elas se desenvolvam. (TAYLOR; VAN EVERY, 2000, p. 121 apud CASALI, 2005, p. 9).
possvel identificar neste modelo texto-conversaes em comunicao
interna e institucional das organizaes, que se retroalimentam de suas prprias
mensagens, reorganizando-as, ressignificando-as e reproduzindo-as. No mesmo
sentido, Eisenberg; Goodall (2001, p. 33) desenvolveram a perspectiva do modelo
das organizaes como dilogos, aprimorando uma anlise da interao simblica
capaz de aproximar o equilbrio entre a criatividade e a coao dentro das
organizaes. A comunicao balanceada refere-se a um processo relacional que
ocorre atravs do dilogo, ou seja, a comunicao na qual cada indivduo tem voz,
chance para falar e ser ouvido.
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30
A partir de discusses metatericas, duas estudiosas norte-americanas,
PUTNAM & FAIRHURST (2010), recortam a proposta de comunicao da
organizao e iluminam o discurso. As autoras distinguem trs orientaes para a
relao discurso-organizao: (1) Organizao enquanto objeto, (2) Organizao em
permanente estado de constituio e (3) Organizao alicerada na ao.
TABELA 1. Trs orientaes para a relao discurso-organizao
Categorias de Anlise Comparativa
Organizao enquanto objeto
Organizao como em permanente estado de
constituio
Organizao alicerada na ao
Definio Organizao j identificada como objeto j formado com caractersticas discursivas ou resultados.
Organizao em permanente estado de vir a ser; o discurso formativo
Organizao alicerada na ao e em formas discursivas.
Variaes Discurso como artefato, organizao como caixa-preta.
A variao lingustica marca fronteiras de comunidades de discurso.
Organizao reduzida a componentes fundamentais que produzem discurso.
Organizao emerge como linguagem em uso e processo de interao.
A organizao emerge em sistemas de poder/conhecimento.
Organizao emerge em processos de responsabilidade laminada.
As organizaes emergem como sistemas sociais reproduzidos continuamente.
As organizaes emergem em associaes entre humanos e objetos.
nfase emergente Estado de organizao como uma entidade.
Emergente, organizando propriedades do discurso.
A durr ou o fluxo contnuo de conduta; como o global ancorado no local.
Relao indivduo- organizao
De cima para baixo; modelo de organizao distinta de e dominante a modelo de pessoa.
De baixo para cima; modelo de pessoa cria organizao.
De dentro; modelo de pessoa como um componente ativo de modelo de organizao.
Macro-micro Separada, mas interativa. Separada, mas interativa. Indiferente ou rejeita Agncia-estrutura A organizao retratada
como separada das aes de membros; a agncia desconsiderada ou reprimida rigorosamente.
Favorece agncia sobre estrutura.
Visa o equilbrio; a agncia uma estrutura componente ativa.
Modelo de agente principal Inconsciente ou parcialmente ciente
Tem seu foco no que os atores sociais sabem
Tem seu foco no que os atores sociais sabem, mas permite consequncias involuntrias.
Crtica Menospreza o poder formativo do discurso.
Concretiza a organizao.
Muda de organizing para organizao.
Relativismo.
Tende em direo agncia que minimiza restries contextuais.
Fonte: Putnam; Fairhurst (2010, p. 113)
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31
Schuler (2005) apresenta um olhar multidimensional e multirreferencial sobre
a organizao atravs de uma abordagem transdisciplinar:
A abordagem transdisciplinar a tendncia de reunir as disciplinas numa totalidade, ante os fenmenos naturais. a tendncia de criar pontes entre as disciplinas, um terreno comum de troca, dilogo e integrao, onde os fenmenos naturais possam ser encarados de diversas perspectivas diferentes ao mesmo tempo, gerando uma compreenso holstica desse fenmeno, compreenso essa que no se enquadra mais dentro de nenhuma disciplina, ao final. (SCHULER, 2005, p. 2).
A abordagem transdisciplinar de grande valia neste estudo, j que a
comunicao se d sempre em determinado contexto; no caso do estudo dos
valores, acontece na cultura organizacional.
Como pode-se observar a Comunicao Organizacional pode ser definida por
suas dimenses, suas perspectivas, seus objetivos, seus processos, seus pblicos
impactados, suas mensagens, seus resultados e outros recortes menos explorados.
De acordo com Nassar (2010, p. 314), no ambiente organizacional da
atualidade tem-se a presena de novas formas de administrar voltadas para atender
s demandas produtivas em escala internacional, que exigem outros critrios de
qualidade, de competitividade, inovao e produtividade. Deetz (1995) indica que as
organizaes definem vrios aspectos das relaes de trabalho, a quantidade de
tempo que se tem disponvel para a famlia e para o lazer, o tempo e as condies
de desenvolvimento pessoal e fatores que influenciam at mesmo a identidade,
compromissos sociais, valores ticos e morais dos indivduos.
J Kunsch (2008) considera as dimenses humana, instrumental e
estratgica. Assumindo que sem comunicao no h organizao, Kunsch explica
que a comunicao viabiliza a organizao a alcanar seus objetivos e como esta
funo se d por intermdio das pessoas, a autora classifica esta dimenso como
humana.
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Para ela, a dimenso humana aborda o contexto, a pessoa e suas
particularidades, suas relaes com a sociedade e o impacto das mensagens
emitidas pelas organizaes e, desta forma, ultrapassa os limites instrumentais da
perspectiva meramente mecanicista, como enfatiza Kunsch (2008), e se transforma
em comunicao mais interpretativa e crtica.
Outra dimenso considerada por Kunsch (2008) a instrumental, que trata a
comunicao organizacional de forma tcnica, e portanto a nfase dada na
transmisso das informaes. Essas perspectivas se assemelham comunicao
Weaver, que teve sua influncia j na dcada de 1940. Recorrendo novamente
Morgan, este tipo de comunicao poderia ser encontrado nas organizaes vistas
como mquinas, como prises psquicas e como instrumentos de dominao.
grande a possibilidade de no haver comunicao nestas organizaes, visto que
comunicar pressupe o entendimento e sem interao com o outro so poucas as
perspectivas de sucesso.
A ltima dimenso que Kunsch (2008) aborda a estratgica e que estaria
associada fortemente aos resultados organizacionais, sob a perspectiva do negcio.
A autora considera que esta dimenso a mais delicada, pois h muito a caminhar
em direo de uma comunicao mais focada em resultados e menos nos
processos e meios.
Morgan (2002) entende que todas as teorias organizacionais e administrativas
possuem metforas implcitas que orientam a fixao de planos e compromissos, de
formas e estruturas, de procedimentos e processos organizacionais. Essa
construo se d a partir do uso de um sistema de significados comuns, calcado no
significado simblico das interaes dos membros da organizao. As metforas so
utilizadas como recursos representativos tanto no campo da teoria organizacional
quanto na teoria comunicacional. No quadro seguinte, elaborado por Nassar (2008,
p. 72), as metforas de Morgan esto organizadas assim:
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Tabela 2. Metforas de Morgan
Metforas de Morgan Segundo o autor:
As organizaes vistas como mquinas (1996, p.21-41)
Quando os administradores pensam nas organizaes como mquinas, tendem a administr-las e planej-las como mquinas, feitas de partes que se interligam, cada uma desempenhando um papel claramente definido no funcionamento do todo.
As organizaes vistas como organismos (1996, p.43-79)
possvel pensar nas organizaes como se fossem organismos. Dessa forma, as organizaes so concebidas como sistemas vivos, que existem em um ambiente mais amplo do qual dependem em termos da satisfao das suas vrias necessidades.
As organizaes vistas como crebros
(1996, p.81-113)
possvel que, usando o crebro como uma metfora para a organizao, seja vivel desenvolver a habilidade para realizar o processo de organizao de maneira que promova a ao flexvel e criativa.
As organizaes vistas com culturas
(1996, p.115-144)
A organizao vista como um lugar onde residem ideias, valores, normas, rituais e crenas que sustentam as organizaes como realidades socialmente construdas.
As organizaes vistas como sistemas polticos
(1996, p.145-203)
Ao reconhecer que a organizao intrinsecamente poltica, no sentido de que devem ser encontradas formas de criar ordem e direo entre as pessoas com interesses potencialmente diversos e conflitantes, muito pode ser aprendido sobre os problemas e a legitimidade da administrao, como um processo de governo e a legitimidade da administrao como um processo de governo e sobre a relao entre organizao e sociedade.
As organizaes vistas como prises psquicas
(1996, p.205-238)
[...]as organizaes so fenmenos psquicos, no sentido de que so processos conscientes e inconscientes que as criam e as mantm como tais com a noo de que as pessoas podem, na verdade, tornar-se confinadas ou prisioneiras de imagem, idias, pensamentos e aes que esses processos acabam por gerar. A metfora encoraja a compreenso de que, embora as organizaes possam ser realidades socialmente construdas, estas construes freqentemente acabam por apresentar uma existncia e poder prprios e que permitem a elas exercer certo grau de controle sobre os seus criadores.
As organizaes vistas como fluxo e transformao
(1996, p.239-278)
Uma [lgica] enfatiza como as organizaes so sistemas autoprodutores que se criam nas suas prprias imagens. A outra [lgica] enfatiza como so produzidos [os sistemas organizacionais] enquanto resultado de fluxos circulares de feedback positivo e negativo. A terceira [lgica] sugere que [as organizaes] sejam o produto de uma lgica dialtica por meio da qual todos os fenmenos tendem a gerar o seu oposto.
As organizaes vistas como instrumentos de
dominao (1996, p.279-326)
Ao longo da histria, organizaes tm sido associadas a processos de dominao social nos quais indivduos ou grupos encontram formas de impor a respectiva vontade sobre os outros. Isto se torna bastante evidente quando se traa a evoluo histrica da empresa moderna, desde as suas razes na Antiguidade at o seu papel no mundo atual, passando por diferentes estgios de crescimento e de desenvolvimento, inclusive como empresa militar e imprio.
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Putnam, Philips e Chapman (2004), organizaram sua classificao da
comunicao organizacional em sete metforas e que esto resumidas no quadro a
seguir, com novas associaes propostas por esta autora.
TABELA 3. Quadro comparativo das metforas
METFORA TIPO DE ORGANIZAO OBJETIVO DA COMUNICAO
Condute Organizao como canal Transmitir informao
Lente Organizao como filtro Controlar
Linkage Organizao como rede Integrar e cooperar
Performance Organizao como significado Reconhecer
Smbolo Organizao como histria Registrar, interpretar, reconhecer
Voz Organizao como dominao Selecionar
Discurso Organizao com agente comunicador Dialogar
Fonte: Organizado pela autora.
Scroferneker (2006), em texto que aborda as trajetrias terico-conceituais da
comunicao organizacional, recupera conceitos dos autores Daniels, Spiker e Papa
(1997) que identificaram trs modelos ou perspectivas de comunicao
organizacional: tradicional, interpretativo e crtico.
No primeiro caso, tradicional, a comunicao uma atividade cujo
comportamento pode ser medido, padronizado e classificado. Permite ainda duas
leituras, considerando a organizao como mquina e, portanto, remete dimenso
instrumental de Kunsch, considerando-se a organizao como sistema, tendo neste
caso um processo de comunicao orgnico e dinmico.
A perspectiva interpretativa percebe as organizaes como culturas e est
associada interao das pessoas e ao compartilhamento de significados. A
comunicao, neste caso, ajuda a construir os smbolos e as significaes dentro
das organizaes e estas so entendidas como um espao de negociao e criao
de discursos coletivos. Empresas com este modelo de comunicao tendem a
explicar os comportamentos dos indivduos com base em seus aspectos culturais.
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J a perspectiva crtica aborda a organizao com instrumento de opresso
(Scroferneker, 2006) e a comunicao como instrumento de dominao. Encontra-se
este tipo de comunicao nas organizaes burocrticas, como conceitualiza Weber
e simboliza Morgan.
2.1 A Comunicao Organizacional: a expresso de uma filosofia
Para Nassar (2010, p. 315) o olhar e a ao mais abrangente da comunicao
organizacional podem ser delineados pela preocupao retrica em fazer com que a
empresa seja percebida no s pela utilidade de seus produtos e operaes, mas
tambm por atributos relacionados aos seus produtos. Segundo sua anlise:
A comunicao uma habilidade humana, produtora de sentidos para os seus protagonistas, que, ao contrrio das habilidades conceituais e tcnicas, ocupa uma importncia similar nos nveis de alta direo, gerncias e operacionais. Isso significa que todos os integrantes das organizaes, em sua ao cotidiana, so protagonistas da expressividade da filosofia organizacional. (NASSAR, 2008, p. 248)
De acordo com Schockley-Zalabak (1991, p. 30-31) a comunicao
organizacional um processo, por meio do qual as organizaes so criadas e que,
por sua vez, criam e modelam eventos. O processo pode ser entendido como uma
combinao de processos, pessoas, mensagens, significados e propsito. Trata-se
de um processo relacional entre indivduos, departamentos, unidades e
organizaes. Para esta autora a comunicao organizacional tem seu fundamento
em Linda Putnam, sendo compreendida como:
(...) comportamento simblico dos indivduos e das organizaes que, quando interpretado, afeta todas as atividades da organizao. O foco central o processo pelo qual os significados organizacionais so gerados. O significado, nessa abordagem, no reside nas mensagens, nos canais ou nas falhas perceptuais, mas em cenrios de contnua mudana de comportamento, tanto para criar quanto para mudar os eventos. (SHOCKLEY-ZALABAK, 1991, p. 32)
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Stanley Deetz (1995, apud Jablin; Putnam, 2001) prope uma anlise da
comunicao organizacional baseando-se em trs focos: (1) foco de natureza
produtiva: que trata de departamentos ou associaes; (2) foco de natureza
independente: no necessariamente departamentalizado e (3) foco singular: que
trata cada organizao como singular.
Nassar (2008, p. 73) destaca a crescente abrangncia do campo da
comunicao organizacional, conceituando-a como:
(...) um metassistema social e tecnolgico que tem como objeto de estudo os processos comunicacionais, no mbito das empresas e das instituies, suas redes de relacionamento e sociedade definido dinamicamente a partir de suas interrelaes com os conhecimentos e as prticas das Cincias Sociais, das Cincias Humanas, das Cincias Exatas e das Cincias Biolgicas. (NASSAR, 2008, p. 73)
preciso que a comunicao tambm assuma a posio de geradora de
fatos, criadora de contextos, o que sugere um novo comportamento na medida em
que cocriadora do futuro da organizao, aponta Marchiori (2009, p. 295). Pepper
(1995, p. 36) afirma que a comunicao cria a organizao por meio da construo
de culturas. Como se v, o olhar que os estudiosos da rea tm sobre seus
domnios de profunda relevncia, mas, de fato no isso que a prtica no
mercado demonstra.
Enfatiza Hall (1992) que a identidade de uma organizao no estvel ou
fixa, mas social e historicamente construda, estando sujeita a contradies, revises
e mudanas, Por sua vez, Van Riel (1995), cujo foco de estudo a comunicao em
seu nvel estratgico, diz que a nfase deve recair na reputao e na imagem da
empresa, explicitando um mix de identidade atravs de trs elementos: (1)
comportamento: dos membros da empresa; (2) smbolos: imagens, marcas,
logotipos, que possuem significados especficos e so poderosos no processo de
comunicao: (3) comunicao: coerncia entre o comportamento de uma
organizao e suas mensagens.
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37
No obstante, para Baudrillard (1972) a essncia (ou o que poderia ser
identidade, neste caso) no verdadeiramente uma realidade e sim a imagem que
fazemos dessa realidade, sendo essa imagem passvel de ser construda como
verdade coerente para o ator social.
De acordo com Van Riel & Fombrun (1997), trabalha-se atualmente a imagem
como reputao organizacional, ou seja, a representao coletiva das aes e dos
resultados da organizao mediante a gerao de valores para mltiplos
stakeholders. Neste sentido, hoje, segundo Almeida (2009, p. 233), um dos grandes
desafios das organizaes entender como se constri a reputao, como lidar com
ela no dia a dia da organizao, como sustent-la durante anos, como trabalhar as
diversas expectativas de diferentes stakeholders. A construo da reputao est,
portanto, ancorada nos processos histricos, nas aes e representaes
organizacionais, nos valores e nas crenas organizacionais.
Kunsch (2008, p. 169) afirma, em uma anlise sobre o processo evolutivo das
prticas comunicacionais nas organizaes, que assim como a propaganda teve um
papel fundamental aps a Revoluo Industrial, a comunicao organizacional
atualmente encarada como fundamental e rea estratgica nas organizaes:
As aes isoladas de comunicao de marketing so insuficientes para fazer frente aos novos mercados competitivos e para se relacionar com os stakeholders ou pblicos estratgicos. Estes so cada vez mais exigentes e cobram das organizaes responsabilidade social, atitudes transparentes, comportamentos ticos, graas a uma sociedade mais consciente e uma opinio pblica sempre mais vigilante. (KUNSCH, 2008, p. 169)
Portanto, conforme Halliday (2009), o discurso organizacional uma forma de
ao interrelacionada com as demais aes. Diz ela: Se h disparidade entre o
discurso e outras aes, a legitimao vai para o brejo, por que a entramos no
territrio da dissimulao e da perda de confiana. (HALLYDAY, 2009, p. 48)
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2.2 A Cultura Organizacional: o bero dos valores
Os estudos acerca desta cultura datam da dcada de 1960, quando Allport
(1962) e Schein (1965) publicaram seus estudos em psicologia organizacional. Para
Schein (1986, apud Deal; Kennedy, 1982), a cultura organizacional de um grupo
pode ser definida como o conjunto de pressupostos bsicos que um determinado
grupo inventou, descobriu e desenvolveu ao aprender como lidar com os problemas
de adaptao externa e integrao interna. Para aquele autor, se esse conjunto
funciona bem o suficiente deve ser considerado vlido e ensinado como valores e
tradies aos novos membros do grupo como a maneira correta de perceber,
pensar e sentir, em relao a esses problemas.
Segundo Katz e Kahn (1978), os principais componentes de uma organizao
so os papis, as normas e os valores. Esses trs elementos definem e orientam o
funcionamento de uma empresa. Os papis definem e prescrevem formas de
comportamento associadas a determinadas tarefas, as normas so expectativas
transformadas em exigncias e os valores so as justificativas e aspiraes
ideolgicas mais generalizadas.(1978, p.54)
Em 1982, Deal & Kennedy publicaram um livro denominado Corporate
Cultures, resultante de estudos que ambos fizeram juntos. Kennedy, oriundo da
consultoria McKinsey e Deal, da Faculdade de Educao de Harvard, durante um
perodo de seis meses estudaram os perfis de oitenta empresas americanas. Um
tero delas tinha crenas claramente definidas e todas elas foram consideradas
empresas de alta performance. Embora os prprios autores reconheam que no de
trata de pesquisa cientifica, acreditam que as evidncias do impacto dos valores e
crenas na performance real.
Este foi o fator que motivou os autores a continuar seus estudos, pois era
uma evidncia de que se tratava de uma mina de ouro. Algumas caractersticas
comuns foram encontradas nas empresas com este tipo de cultura: (1) valores, a
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pedra fundamental da cultura corporativa; (2) heris, que personificam a cultura e
definem a fora da organizao; (3) ritos e rituais, que so a cultura em ao; (4)
comunicao, responsvel pela rede cultural. A partir destas constataes, Kennedy
& Deal afirmaram que era possvel prever a performance de uma empresa.
Rodrigues (2002) elenca vrios autores que abordam a cultura organizacional:
Pettigrew (1979), Deal & Kenedy (1982), Ouchi & Wilkins (1985), Sharivastava
(1985), Wilkins & Patterson, Schein (1986), Beyer & Trice (1987) e todos eles
incluem os valores como parte do conjunto de smbolos que caracterizam as
organizaes.
A fonte das culturas organizacionais so as exigncias universais do ser
humano, basicamente de trs tipos como apontam Tamayo; Mendes; Paz (2000): (1)
as necessidades biolgicas do organismo, (2) as necessidades sociais relativas
regulao das interaes interpessoais e (3) as necessidades scio-institucionais
referentes sobrevivncia e bem-estar dos grupos.
Como as organizaes nada mais so que pessoas se relacionando em prol
de um objetivo comum, estas exigncias universais tambm esto presentes e a
elas so acrescidas as exigncias organizacionais, que se ancoram na misso a que
a organizao se prope a desenvolver.
2.3 Estudos de cultura organizacional na Comunicao
Cultura e comunicao tm uma das relaes mais ntimas do mundo
humano do conhecimento, diz Marchiori (2009, p. 294) e a cultura responsvel
pelo que se pode chamar de personalidade da organizao. Defende a autora que
a comunicao construo de significado e interrelao e que a cultura e
comunicao so, com certeza, recursos indissociveis, estratgicos e responsveis
pelo desempenho das organizaes.
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Para Schuler (2009, p. 244) o termo cultura pode ser definido como um
processo coletivo de construo da realidade, por meio da representao, que
permite que as pessoas vejam, interpretem e entendam a realidade compartilhada
de forma semelhante. Segundo ela, gerar cultura , antes de tudo, compartilhar
significados ou tornar significados comuns, ou ainda, comunicar.
Sobre as possveis manifestaes da cultura interessante notar as
dimenses mental, afetiva e expressiva observadas por Schuler (2009, p. 260), nas
quais variveis como hbitos, usos, costumes e crenas relacionados, so
fundamentais para a ao dos recursos humanos na organizao.
Mas para administrar eficazmente um processo de interveno cultural,
conforme Morgan explica no livro Imagens da organizao (2002), preciso
estabelecer significados e valores fundamentais que a pessoas possuem e
compartilham, em substituio ao controle por regras externas, deixando sempre
aberto o espao de flexibilidade e de adaptabilidade s situaes.
De acordo com Marchiori (2006, p. 161) a nica forma de modificar uma
organizao por meio de sua cultura. J em seu artigo Gesto da comunicao e
das mudanas culturais, ela menciona que a cultura compartilhada, ressalta o
comprometimento das pessoas com valores, tem sentido emocional, estabelece
identificao dos membros e aprova ou no comportamentos. (MARCHIORI, 2009,
p. 297). Quanto mais unidade existir entre os membros, mais consensual ser a
viso da cultura organizacional: a definio expressa de valores, ideias
compartilhadas por todos os agentes organizacionais. Por isso, (...) a cultura no
algo que uma organizao possui; uma cultura algo que uma organizao .
(MARCHIORI, 2009, p. 303).
Pioneira em desenvolver uma cultura organizacional, a organizao japonesa
vista como uma coletividade a que os empregados pertencem e no como um
local de trabalho constitudo de vrias pessoas separadas. De acordo com Morgan:
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O esprito de colaborao de um vilarejo ou comunidade prevalece na experincia
de trabalho e existe considervel nfase na interdependncia, nos interesses
comuns e na ajuda mtua. (2002, p. 141). Alm disso:
As organizaes so minissociedades que tm seus prprios padres especficos de cultura e subcultura. Uma organizao pode-se considerar como uma equipe muito unida ou uma famlia que acredita em trabalho conjunto. Outra pode estar imbuda da ideia de que somos os melhores do ramo e pretendemos continuar sendo. Uma outra pode ser altamente fragmentada, dividida em grupos que veem o mundo de maneiras muito diferentes ou que tm diferentes aspiraes quanto ao que sua empresa deveria ser. Esses padres de crenas ou significado compartilhado, fragmentados ou integrados e apoiados por vrias normas operacionais e rituais, podem exercer influncia decisiva sobre a habilidade geral de uma organizao em lidar com os desafios que tem que enfrentar. (MORGAN, 2002, p. 148).
Estudos realizados na dcada de 1980, como o de Peters; Waterman (1982)
enfatizam que as organizaes bem-sucedidas constroem culturas coesas em torno
de conjuntos comuns de normas, valores, ideias que criam um foco adequado para a
realizao de negcios. No se deve desprezar a complexidade do que se chama
cultura organizacional, suas metforas e valores. De acordo com Morgan:
A cultura e a cultura corporativa so muito mais do que os olhos podem ver. Muitos tericos e praticantes da administrao, influenciados pela metfora, no conseguem ver isto. (...) pensam e falam sobre cultura como algo que pode ser descrito como o nvel de lemas, e seus mtodos e tcnicas de mudana cultural, em geral, no fazem mais do que arranhar a superfcie da realidade. (MORGAN, 2002, p. 165).
Para Lipovetsky (2003), o respeito aos princpios da moral e da tica tem se
mostrado atualmente uma condio para a sustentabilidade e a legitimidade pblica
das organizaes devido a quatro fatores: (1) conscincia adquirida pelas
organizaes para a preservao do meio ambiente e para a proteo da sade e
da qualidade de vida; (2) modelo da economia financeira global que visa
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transparncia de suas aes; (3) polticas de comunicao e produtos: valorizao
de uma postura tica no marketing e divulgao. Confiana na solidariedade, na
segurana, no antirracismo e (4) promoo da cultura organizacional e do
engajamento dos trabalhadores na organizao.
Pensar a tica nos negcios constitui-se um fenmeno do futuro, resultante
da transformao que visa ao equilbrio tradicional dos poderes e contrapoderes nas
democracias liberais, explica Lipovetsky (2003, p. 79). Para Nassar (2007, p. 90) e
Kotler (1995, p. 73) a histria de uma organizao pode ser vista como um trao
fundamental de seu presente e de sua misso. O primeiro elemento responsvel
pela fundao da misso de uma empresa o seu percurso histrico.
A cultura organizacional influencia cumprimento ou no da misso, da viso e
dos valores nas organizaes. Para Kotler (1994, p. 74) uma declarao de misso
bem definida fornece aos funcionrios de uma empresa um senso mtuo de
propsito, direo e oportunidade agindo como uma mo invisvel que guia o
trabalho em direo realizao das metas da organizao.
Misso, viso e valores so conceitos fundamentais a partir dos quais foi
possvel estruturar o quadro abaixo, de acordo com Ianhez (2008, p. 102):
TABELA 4 Misso, viso e valores MISSO
VISO
VALORES
Estabelece o campo de
atuao da organizao. Diz
porqu e para qu ela existe.
Deve ser formalizada de
maneira clara e objetiva.
Ponto de referncia para aquilo
que se deseja atingir no futuro
de uma organizao. Guia para
se determinar o nvel de
ambio e seta indicativa para
qualquer planejamento.
Um cdigo de valores d aos
membros de uma organizao
um comum. Transmite esprito
de unidade e coerncia para o
pblico.
Fonte: Ianhez, J. A. Misso, viso, polticas e valores. (2008, p. 102).
Para Ianhez (2008, p. 110) o cdigo de valores pressupe um comportamento
tico, mais e mais amplo ao se basear no apenas num comportamento considerado
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bom pela sociedade, mas tambm naqueles que os usos e costumes de uma
determinada organizao definem como bom e eficaz no relacionamento com o
pblico que com ela interage.
Para Nassar (2007, p. 59) processos dialgicos na discusso da misso e da
viso das organizaes atuam na recuperao das memrias como formas de
reconhecimento e fortalecimento de sentimento de pertena dos indivduos que
integram as empresas. O elo organizao-comunicao e cultura j est
estabelecido. No prximo captulo, os conceitos tericos adentram nos domnios da
memria.
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3. Memria natural, memria artificial ou memria inventada? O uso
da memria na construo das narrativas organizacionais.
Memria um conceito que permeia o cotidiano das pessoas. No campo da
tecnologia referimo-nos memria do computador; nas cincias mdicas, a
neurocincia estuda os caminhos que ativam a memria humana; a pesquisa clnica
na neurologia investiga a perda de memria nas doenas degenerativas. J nas
cincias humanas, a memria objeto de estudo na Histria, nas Cincias Sociais,
na Sociologia, na Antropologia e recentemente, no campo da Comunicao Social,
mais especificamente, no domnio da Comunicao Organizacional.
Um estudo sobre a memria sugere um mergulho, mesmo que superficial, em
alguns conceitos da mitologia grega. Mnemosyne, nome grego para a personificao
da memria, era filha de Urano e Gaia, o cu e a terra e irm de Chronos e
Okeanos, o tempo e o oceano. Tudo na titnide Mnemosyne pode ser considerado
grandioso, como era a vida dos deuses gregos. Com Zeus, o deus do Olimpo,
deitou-se por nove noites consecutivas e gerou as nove musas: Calope, a musa da
eloquncia; Clio, a musa da Histria; rato, a musa da poesia lrica; Tlia, a musa da
comdia; Melpomne, a musa da tragdia; Terpscore, a musa da dana; Euterpe, a
musa da msica; Ucrnia, a musa da astronomia e Polmnia, a musa da poesia
lrica. As filhas de Zeus e Mnemosyne ou Memria foram conhecidas,
originalmente, como palavras cantadas.
O nascimento das musas narrado na obra de Hesodo, Teogonia: a origem
dos deuses. Hesodo, poeta grego arcaico, divide com Homero os principais
registros do que se denominou a identidade helnica sendo considerado o mais
antigo tratado de mitologia grega que chegou at os nossos dias. A prpria obra de
Hesodo , segundo ele, uma inspirao das musas. E foi assim, cantando as
musas, que comeou o poeta a narrar acerca da criao do mundo. Depois de
exult-las, Hesodo explicou sua origem:
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Na Piria gerou-as, da unio do Pai Cronida, Memria rainha nas colinas de Eleutera, para oblvio dos males e pausas de aflies. Nove noites teve unies com ela o sbio Zeus longe dos imortais subindo ao sagrado leito. Quando girou o ano e retornaram as estaes com as mnguas das luas e muitos dias findaram, ela pariu nove moas concordes que dos cantares tem o desvelo no peito e no-triste nimo, perto do pide altssimo do nervoso. Olimpo a os seus coros luzentes e belo palcio. (HESODO, 2007, p.107).
A memria, conforme Torrano (2007) tradutor e pesquisador da obra de
Hesodo, assegura a circulao das foras entre o domnio do invisvel e do visvel j
que decide entre o ocultamento e a revelao. O texto arcaico de Hesodo,
apresenta uma traduo sofisticada e comentrios de domnio restrito e acadmico
que tornam complexa sua leitura. O que se depreende da narrativa que o poder de
Zeus se estende de ponta a ponta no universo, e que desta forma no existem
limites entre o presente, futuro e passado. Ao se unir Memria, perde-se a lgica
entre o antes e o depois, at mesmo porque o universo pode ser visto como cclico e
circular e tudo retorna onde comeou. O autor comenta que o trao mais marcante
do pensamento que organiza a Teogonia o da continuidade. (TORRANO, 2007,
p.68). No entanto no se trata de uma continuidade linear e simples, com relaes
de causa e efeito, mas sim de certa forma anrquica, multiplamente imbricada,
interposta, interrelacionada. Como neste universo multidivino tudo sempre causa,
tudo origem, no h como se estabelecer a linearidade temporal.
BOSI (1994, p.89) cita Jean-Pierre Vernant, que descreve o ritual no orculo
de Lebadia. Ao morrer, antes de entrar no pas dos mortos, o consultante bebia de
duas fontes: na Leth, o poo do esquecimento de sua vida humana, e na
Mnemosyne, para lembrar o que havia visto no outro mundo. Ela explica que quem
guarda a memria no Hades transcende a condio mortal, no v mais oposio
entre a vida e a morte. Se no h distino entre vida e morte, no h tempo
presente. Hoje, a funo da memria o conhecimento do passado que se organiza,
ordena o tempo, localiza cronologicamente, explica o autor. Na Grcia arcaica, a
Memria era a vidncia. Em Hesodo as palavras so foras divinas e o poeta ,
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dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memria. Ele tem, na
palavra cantada, o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distncias
espaciais e temporais, um poder que s lhe conferido pela Memria. Tal assim
considerada a memria, uma entidade sobrenatural, de carter divino.
As narrativas sempre ocuparam espao importante nas sociedades, desde as
mais primitivas. Durante milnios, a poesia oral foi o centro, o eixo da vida espiritual
dos povos, da gente que reunida em torno do poeta numa cerimnia ao mesmo
tempo festiva, religiosa e mgica a ouvia, indica Torrano (2007, p.19).
As musas tm e mantm o domnio do ser enquanto poderes provenientes
da Memria. Enquanto filhas da Memria que as Musas fazem revelaes ou
impem o esquecimento. (TORRANO, 2007, p.30). De certa forma, ao escolherem
o que vo esquecer e o que revelar, as Musas tm o poder (atribudo pelo pai Zeus)
de construir a realidade.
Ao poeta permitido transitar no tempo, j que o tempo da poesia no
linear, quase atemporal, pois arte que se vale de distintos cdigos, de recursos de
linguagem, de metforas. Na verdade, a lembrana do passado no retoma algo que
j se foi; o passado est situado em outros nveis csmicos que somente o poeta
possui acesso. Nessa perspectiva, a memria no reconstri ou anula o tempo.
A memria composta pelo par revelao e esquecimento, sendo que esta
revelao se d pela linguagem. na linguagem que se concretiza o ser ou no-ser,
o que atribui s musas uma enorme fonte de poder, que vem de seu pai Zeus. E to
logo nascem, elas instauram o coro e a festa e comeam a seduzir, persuadir e a
encantar.
As organizaes, de alguma forma, se utilizam deste par revelao e
esquecimento, ao decidir o que comunicar e no comunicar. Existe uma relao
estreita entre as musas e os rituais corporativos dos nossos tempos. O espao
organizacional de natureza mtica, j que as ritualidades organizam nosso universo
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privado, como a casa em que moramos, o nosso primeiro emprego, nosso primeiro
amor. Eliade nos diz que os locais guardam, mesmo para o homem mais
francamente no religioso, uma qualidade excepcional, nica: so os lugares
sagrados do seu universo privado. (ELIADE, 1992, p. 37).
Em sua anlise, este autor dissocia a sacralidade da religio ao atribuir a
sensao do sagrado a questes profanas. Desta forma, os valores organizacionais
deveriam guardar relao nica com a histria, de qualidade nica, de uma
organizao especfica, de forma que ao explicit-los seria simples correlacionar
com sua origem. Valores estariam na categoria dos ritos sagrados de uma
organizao, aquilo que se tem de mais valioso.
3.1 Da memria mtica arte da memria
Se a memria mtica tem uma de suas origens na Grcia, tambm l que
nasce a arte da memria. Yates (2007, p. 17), historiadora britnica, em sua obra A
arte da memria, aponta que os primeiros registros sobre a arte da memria foram
feitos em fontes latinas, embora o objeto do relato fosse uma histria grega. Na obra
De Oratore, de Ccero, conta-se que um admirado poeta grego de nome Simonides
de Ceos (556-468 aC.) foi o precursor da arte da memria. Convidado para entoar
seus poemas lricos durante um banquete oferecido pelo nobre Scopas, Simonides
de Ceos louvou os gmeos Castor e Plux. Scopas se recusou a pagar o combinado
e recomendou que cobrasse a metade dos gmeos que haviam sido mencionados.
Chamado a sair do recinto para falar com dois jovens que o solicitavam, Simonides
no encontra ningum. Ao voltar v o salo em runas, devido ao desabamento do
teto, com anfitrio e convidados mortos. Simonides de Ceos ajuda, com o uso da
memria, a identificar os corpos relatando aos parentes os locais onde os
convidados se encontravam.
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Desta forma comea-se a configurar a origem da arte da memria associada
a lugares e imagens de memria, e a esta tcnica atribuiu-se o nome de
mnemotcnica. Note-se que da mesma forma que a Memria mtica, a tcnica da
memria nasce associada palavra cantada, ao poeta, doura dos versos e a
Simonides de Ceos, que era o nico poeta que recebia pagamento por seus poemas
e tinha, portanto, a poesia por ofcio. Apresentava grande capacidade de lidar com
associaes de imagens, com as metforas, tanto que os romanos o denominavam
Simonides Melicus, o poeta da lngua de mel.
De acordo com Yates (2007), que relaciona a memria com textos de autores
clssicos, Ccero, na obra De Oratore apresenta a memria como uma das cinco
partes da retrica.
A inveno o exame aprofundado de coisas verdadeiras (res) ou de coisas verossmeis para tornar uma causa plausvel; a disposio arranjar em ordem as coisas j descobertas: a elocuo adaptar as palavras (verba) convenientes s (coisas) inventadas; a memria a percepo firme, pela alma, das coisas e das palavras; a pronunciao o controle da voz e do corpo para se adequar dignidade das coisas e das palavras. (YATES, 2007, p.25).
curioso notar que a memria est mais associada ao discurso que
propriamente aos fatos, de onde se entende que a retrica nasce da inveno
temtica, que pode ser verdadeira ou no. Desta forma no h, pelo menos no
claramente, uma associao entre o tempo e a memria, como de fato na memria
mtica. Torrano (2007) explica que o tempo grego circular e no linear. Segundo
Yates (2007) h dois tipos de memria:
(...) a memria natural e outra artificial. A natural aquela inserida em nossas mentes, que nasce ao mesmo tempo que o pensamento. A memria artificial fundamenta-se em lugares e imagens. Um locus um lugar facilmente apreendido pela memria, como uma casa, um canto, um arco etc. Imagens so formas, signos distintivos, smbolos daquilo que queremos lembrar (YATES, 2007, p.23).
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A memria artificial aquela reforada e consolidada pelo treinamento. ,
portanto, construda a partir de um repertrio nico e que depender da habilidade
de seu usurio e treino, para se valer da memria de lugares e de coisas.
E se isto verdade, ento voltamos s origens mticas, pois eram os poetas,
inspirados pelas musas, que cantavam os feitos dos deuses. E, por este motivo, est
vinculada memria oral, que passava de gerao para gerao, como foi a
Teogonia de Hesodo, ao relatar a origem dos deuses.
Aristteles, que viveu depois de Simonides, em 384 a.C., foca a memria na
teoria do conhecimento. Os cinco sentidos trazem a informao e as imagens so
formadas e se tornam a matria da faculdade intelectual. A imaginao a
intermediria entre percepo e pensamento. dele a frase: a alma nunca pensa
sem uma imagem mental.
A teoria do conhecimento o ramo da filosofia que explora o conhecimento
do homem e existem muitos movimentos, em diferentes po