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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas , Pouso Alegre, v. 30, n. 1: 185-202, jan./jun. 2014 INTERPRETIVISMO NO ARMÁRIO: VÍCIOS NO POSITIVISMO INCLUSIVO DE JULES COLEMAN INTERPRETISM IN THE CLOSET: PROBLEMS WITH JULES COLEMAN’S INCLUSIVE POSITIVISM Rubens Eduardo Glezer * RESUMO O debate contemporâneo anglo-saxão em teoria de direito é marcado por diversas complexidades. Uma delas diz respeito ao fato de que muitos au- tores parecem não compreender adequadamente a proposta teórica do adversário. Essa falta de clareza sobre o que está em disputa coloca em xeque os próprios termos do debate. Por meio deste artigo, explora-se uma faceta dessa problemática, defendendo que um autor tido como um dos principais expoentes do positivismo jurídico inclusivo, Jules Coleman, possui na verdade uma proposta teórica muito semelhante ao interpretivismo anti- positivista de Ronald Dworkin. Para tanto, faz-se uma síntese do embate entre esses dois autores e considerações são tecidas a esse respeito. Ao final, conclui-se que Coleman nega que defenda algo semelhante ao interpreti- vismo dworkiniano, porque compreende mal os detalhes dessa proposta teórica, confundindo-a com um tipo de jusnaturalismo caricato. Palavras-chave: Interpretivismo; Positivismo inclusivo; Ronald Dworkin; Jules Coleman. ABSTRACT The contemporary American debate on Jurisprudence has several com- plexities. One of them is that many authors seem to not understand very well their adversaries. This lack of clarity regarding what is at stake trou- bles the debate itself. This paper explores one side of this issue, affirming that Jules, that is meant to be one of the leading representatives of inclu- sive legal positivism, is in reality defending something very similar to Ronald Dworkin’s anti-positivist interpretism. To accomplish that, I * Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor da FGV Direi- to SP e Coordenador do projeto Supremo em Pauta. Correspondência para/Correspondence to: Rua Rocha, 233, 10º andar, Bela Vista, São Paulo/SP, 01330-000. E-mail: [email protected].

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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 30, n. 1: 185-202, jan./jun. 2014

INTERPRETIVISMO NO ARMÁRIO: VÍCIOS NO POSITIVISMO INCLUSIVO DE JULES COLEMAN

INTERPRETISM IN THE CLOSET: PROBLEMS WITH JULES COLEMAN’S INCLUSIVE POSITIVISM

Rubens Eduardo Glezer*

RESUMO

O debate contemporâneo anglo-saxão em teoria de direito é marcado por

diversas complexidades. Uma delas diz respeito ao fato de que muitos au-

tores parecem não compreender adequadamente a proposta teórica do

adversário. Essa falta de clareza sobre o que está em disputa coloca em xeque

os próprios termos do debate. Por meio deste artigo, explora-se uma faceta

dessa problemática, defendendo que um autor tido como um dos principais

expoentes do positivismo jurídico inclusivo, Jules Coleman, possui na

verdade uma proposta teórica muito semelhante ao interpretivismo anti-

positivista de Ronald Dworkin. Para tanto, faz-se uma síntese do embate

entre esses dois autores e considerações são tecidas a esse respeito. Ao final,

conclui-se que Coleman nega que defenda algo semelhante ao interpreti-

vismo dworkiniano, porque compreende mal os detalhes dessa proposta

teórica, confundindo-a com um tipo de jusnaturalismo caricato.

Palavras-chave: Interpretivismo; Positivismo inclusivo; Ronald Dworkin;

Jules Coleman.

AbSTRACT

The contemporary American debate on Jurisprudence has several com-

plexities. One of them is that many authors seem to not understand very

well their adversaries. This lack of clarity regarding what is at stake trou-

bles the debate itself. This paper explores one side of this issue, affirming

that Jules, that is meant to be one of the leading representatives of inclu-

sive legal positivism, is in reality defending something very similar to

Ronald Dworkin’s anti-positivist interpretism. To accomplish that, I

* Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor da FGV Direi-to SP e Coordenador do projeto Supremo em Pauta. Correspondência para/Correspondence to: Rua Rocha, 233, 10º andar, Bela Vista, São Paulo/SP, 01330-000. E-mail: [email protected].

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summarized the debate between these two authors and make my consi-

derations on the matter. I conclude that Coleman opposes to acknowled-

ge his position as dworkinian because he misunderstands it as some sort

of strawman natural law theory.

Keywords: Interpretism; Inclusive Positivism; Ronald Dworkin; Jules

Coleman.

INTRODUÇÃO1

Muitas vezes não somos as pessoas mais aptas para diagnosticar nossas próprias experiências subjetivas, emoções e pensamentos. É comum que uma companheira, um amigo ou um terapeuta possuam uma visão mais precisa a respeito de nosso comportamento do que nós próprios; e o mesmo ocorre no mundo acadêmico. Neil Maccormick, por exemplo, não deixou de lançar seu estudo sobre a teoria hartiana mesmo após o próprio H. L. A. Hart ter afirmado que aquela leitura não captava com exatidão o significado da sua obra2. Objeções dessa natureza não afetam, por si só, a credibilidade de uma análise. Na verdade, esse tipo de divergência é salutar para o desenvolvimento do debate teórico e das consequências que traz ao campo da prática jurídica. Este artigo se propõe a contribuir dessa mesma forma, ao explorar uma parte do embate entre Ronald Dworkin e Jules Coleman.

Coleman é considerado um dos principais expoentes do positivismo jurí-dico inclusivo no cenário anglo-saxão, senão o principal. Porém, é acusado por certos autores de ter desenvolvido uma teoria do direito muito mais próxima da teoria antipositivista defendida por Ronald Dworkin, também conhecida por “direito como integridade”, do que uma defesa consistente do positivismo jurí-dico. O próprio Dworkin juntou sua voz a essas acuações, afirmando que o “positivismo de Coleman é melhor descrito como antipositivismo. Ele abandonou completamente o legado filosófico que ele pretende defender”3 e, ainda, que “[...] sua [teoria do direito] é surpreendente semelhante à minha”4. Esse tipo de críti-ca, explícita e detalhadamente explorada em Justice in Robes5, já havia sido rea-lizada duas décadas antes em Law’s Empire6-7. A principal resposta de Coleman

1 A maior parte do material consultado para a execução deste artigo está em inglês, com vistas a evitar distorções quanto a erros de tradução. Todas as paráfrases e citações deste artigo são de tradução livre.

2 MACCORMICK, Neil. H. L. A. HART. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.3 DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 198.4 Ibid, p. 188.5 DWORKIN, 2006.6 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986.7 Nessa ocasião a teoria de Jules Coleman foi tida como uma “formulação subdesenvolvida” da

teoria do direito como integridade. Cf. DWORKIN, 1986, p. 126-128, com atenção à nota de rodapé n. 4.

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a essas acusações está no livro The practice of principle8, que, além de oferecer uma visão completa sobre sua proposta teórica, tenta rechaçar tais críticas como o resultado de leituras desatentas ou enviesadas de sua teoria, que não teriam como ser sustentadas “seriamente”9.

Porém, deter-se sobre as percepções imediatas dos filósofos envolvidos nes-sa disputa não será frutífero, exceto para demonstrar o quanto estão em desacor-do a este respeito. Para tratar da questão, serão exploradas as premissas básicas das teorias de Dworkin e de Coleman, bem como as críticas recíprocas entre essas teorias rivais, no mínimo necessário para responder se o positivismo inclusivo de Coleman é apenas um dworkinianismo que não se percebe como tal.

Dworkin: a crítica do aguilhão semântico e desacordos na prática jurídica

Esse artigo não pretende ser um relato ou o mapeamento das teorias rivais que compõe o seu objeto. A pretensão aqui é de destacar pontos destas teorias que permitam elucidar um foco de embate entre elas. Assim, o objetivo não é o de avaliar uma em face da outra para diagnosticar qual é a melhor como um todo, mas apenas verificar um problema específico: o quanto há um desacordo genuíno entre Ronald Dworkin e Jules Coleman.

Caracterizar a questão desta maneira é uma provocação. O cerne da crítica de Dworkin ao positivismo jurídico como um todo é realizada justamente com base na distinção entre desacordos genuínos e aparentes. O desacordo aparente é aquele que se dá entre duas pessoas que acreditam estar em discordância, mas que na verdade se encontram em um debate sem sentido. Há um desacordo aparente, por exemplo, quando duas pessoas discutem a importância da solidez dos bancos, enquanto uma se refere às instituições financeiras e outra às peças de mobiliário. Em tais casos, os interlocutores usam a mesma palavra para se referir a objetos e conceitos distintos. Outra hipótese de desacordo aparente se dá nos casos em que os sujeitos divergem a respeito da aplicação de um conceito que comporta duas posições divergentes, como no caso de pessoas que discutem se um determinado material de leitura fino é um livro ou um folhetim, quando não há critérios convencionais suficientes para se definir quem está correto.

Dworkin denuncia que o positivismo jurídico até a década de 1980 se de-senvolvia de forma a não conseguir explicar adequadamente por que juristas divergem a respeito do que o direito exige em situações concretas. O filósofo

8 COLEMAN, Jules. The practice of principle: the defense of a pragmatist approach to legal the-ory. Oxford: Oxford University Press, 2001. Os Capítulos 7 e 11 tratam com maior especifici-dade sobre as diferenças entre ambas as teorias.

9 COLEMAN, 2001, p. 4-5, nota de rodapé n. 4.

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classifica esse positivismo como um tipo de “teoria semântica”, segundo a qual o conteúdo das normas jurídicas pode ser identificado por um critério claro a todos os membros da comunidade jurídica. Se for esse o caso, juristas que diver-gem a respeito do conteúdo das normas jurídicas somente poderiam ser tolos ignorantes que se engajam em uma discussão inútil, ou pessoas ardilosas e de má--fé, que fingem haver um desacordo onde não há, visando um fim pessoal qualquer. Porém, Dworkin sinaliza que esse modo de análise não se enquadra bem com a realidade jurídica, em que o desacordo sobre o conteúdo das normas é uma carac-terística central. Em Law’s Empire, Dworkin esclarece que essas teorias semânticas são desenvolvidas por autores que sofrem com o que ele chama de “aguilhão se-mântico”: são vítimas do aguilhão aqueles teóricos que detêm uma certa compre-ensão equivocada a respeito da natureza e de quando é possível ocorrer desacordos10. Para as vítimas, todos os desacordos nos quais não há um compartilhamento dos critérios de condição de verdade são desprovidos de sentido.

Linguisticamente, as teorias semânticas caracterizam o desacordo como disputas que ocorrem em casos marginais (borderline cases) de significado, nos quais falta convergência linguística suficiente para padronizar os critérios de identificação das condições de verdade de determinadas proposições. Em tais hipóteses não há opinião melhor que a outra, porque simplesmente não há como se falar em “verdadeiro” ou “falso”. Como as vítimas concebem apenas esse tipo de desacordo como possível, aplicam esse modelo para explicar a divergência sobre qualquer tipo de conceito, inclusive o de democracia ou o de direito: o desacordo entre duas pessoas que discutem se na Venezuela há um regime de-mocrático seria linguisticamente idêntico àquele das pessoas que discutem se determinado exemplar é um livro ou um folhetim.

Na visão do filósofo, ao se aplicar esse modelo explicativo a respeito de di-vergências ao conceito de direito, chega-se a uma de duas conclusões: a primeira seria de que, “a despeito das aparências, todos os juristas aceitam, de modo geral, os mesmos critérios para decidir quando uma proposição jurídica é verdadeira”; a segunda, de que “não há acordo ou desacordo genuíno a respeito do direito, mas supostos desacordos entre pessoas que atribuem significados diferentes a um mesmo som”11. Deste modo, como a segunda opção é absurda, muito filóso-fos partiriam da premissa que a primeira conclusão é correta e, a partir disso, tentam encontrar as condições de verdade partilhadas entre juristas. As constru-ções que partem desse pressuposto criam teorias semânticas do direito12.

Na teoria dworkiniana, as teorias semânticas estão fadadas ao fracasso. A premissa epistemológica adotada faz supor que todos os juristas poderiam ser

10 DWORKIN, 1986, p. 45.11 Ibid, ibidem.12 Ibid, p. 46.

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capazes de concordar sobre quais são os critérios a serem utilizados para decidir, por exemplo, se uma determinada conduta é lícita ou ilícita. Nesse sentido, os desacordos teriam de ser frutos de má-fé (resistência ideológica, projetos de poder, vingança pessoal etc.) ou de dúvidas em lidar com penumbras linguísticas (para utilizar a terminologia hartiana)13, como no caso do folhetim. Isso faz com que se pense que, em casos de divergência, uma parte está sendo “fiel” ao direi-to, enquanto a outra quer “modificá-lo”. Contudo, para Dworkin, juristas entram em desacordo sobre qual é o conteúdo de uma norma, mesmo quando não há dúvida sobre o sentido das palavras, e esse tipo de desacordo ocorre com uma frequência elevada demais para que seja razoável supor que seja sempre um fru-to de má-fé dos envolvidos14.

As teorias semânticas não permitem ver que os desacordos entre juristas são genuínos e que ocorrem porque, para que uma pessoa possa identificar o con- teúdo de uma norma jurídica qualquer, tal decisão será permeada por suas con-cepções de moralidade política. A extração do aguilhão semântico permite o desenvolvimento de teorias interpretivas do direito. A contraparte interpretiva do positivismo jurídico é o convencionalismo. O argumento do aguilhão semân-tico é central para a teoria dworkiniana, pois é pedra angular de sua crítica pelo fracasso da pretensão de neutralidade descritiva do positivismo jurídico. Todos os seus opositores se sentiram compelidos a responder a essa poderosa objeção, que acabou sendo parcialmente responsável por inaugurar uma fase essencial-mente metodológica dos debates na teoria do direito15. Jules Coleman não fugiu à regra e gastou diversas páginas para refutar o argumento. A questão que nos preocupa no caso é saber, supondo que esteja correto o argumento, se Coleman é “picado” pelo aguilhão semântico.

Coleman: superação do positivismo semântico

Jules Coleman não foi picado pelo aguilhão semântico porque ele adere a uma teoria interpretiva do Direito, o convencionalismo. É justamente por não perceber que o argumento do aguilhão semântico é criado para apontar o vício das teorias semânticas do direito que, ao tentar refutar o argumento, acaba reafirmando-o.

Segundo Coleman, o argumento do aguilhão semântico “imputa aos posi-tivistas duas teses, as quais não são – e nem precisam ser – sustentadas por

13 HART, Herbert L. A. The concept of law. Oxford: Claredon Press, 1961.14 DWORKIN, 1986, p. 46.15 PERRY, Stephen. Interpretação e metodologia na teoria jurídica. In: MARMOR, Andrei. Dire-

ito e interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Ver também GLEZER, Rubens Eduardo. Hermenêutica e realidade: o debate metodológico entre Hart, Dworkin e Raz. Fides – Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, v. 1, n. 2, 2010. Disponível em: <dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/ 3647961.pdf>.

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qualquer positivista”16. Segundo ele, os positivistas são acusados, em primeiro

lugar, de oferecer uma análise do conteúdo semântico do termo “direito” e, em

segundo lugar, de adotar uma teoria semântica segundo a qual “há critérios para

a aplicação adequada de qualquer termo e que estes critérios são partilhados por

todos aqueles que sabem utilizar aquele conceito”17. Com base nessas premissas

é que positivistas procurariam encontrar os critérios partilhados para identificar

“critérios de legalidade”18. A partir disso, indica que o argumento do aguilhão

está equivocado, porque “pessoas que partilham dos mesmos critérios podem

discordar [por exemplo] se uma forma de governo cumpre com estes critérios”19,

já que é possível partilhar um conceito pelo uso de um mesmo conjunto de pa-

radigmas (revisáveis) e não somente por concordar com o mesmo critério de

aplicação20.

Ironicamente, a resposta de Coleman nada mais faz do que afirmar que o

positivismo jurídico não precisa se desenvolver enquanto teoria semântica, mas

que pode se desenvolver sob uma vertente, a qual deve ser amparada por uma

nova noção a respeito de quando é possível haver desacordos genuínos. Em sín-

tese, Coleman aceita que o convencionalismo seria de fato a versão melhorada

do positivismo jurídico21. Ele mantém a essência da distinção que Dworkin

traça entre os níveis interpretativos, exemplificada na ideia do filósofo da corte-

sia em Law’s Empire:

[...] Sob certo aspecto a sua análise, se bem-sucedida, precisa também ser

incontroversa, por que sua tese – de que o conceito de cortesia frui da

noção de respeito – fracassará a não ser que as pessoas, em geral, concor-

dem que cortesia é uma questão de respeito. Apesar de incontroversa deste

modo, sua tese é interpretiva e não semântica; não é uma tese a respeito

de normas linguísticas fundamentais que precisam ser seguidas por todos

para fazerem sentido [...], [mas que] se mantém em razão de um padrão

de acordo e desacordo que pode [...] desaparecer no futuro [...].

[...] Alguém que rejeita um paradigma pode parecer estar realizando

um equívoco extraordinário. Contudo, há uma diferença relevante

entre estes paradigmas interpretivos de verdade e casos nos quais, como

dizem os filósofos, um conceito estabelece algo “por definição”, do modo

como ser solteiro se relaciona a ser um homem que não é casado. Para-

16 COLEMAN, 2001, p. 155.17 Ibid, ibidem.18 Ibid, ibidem.19 Ibid, ibidem.20 Ibid, p. 157.21 DWORKIN, 2006, p. 218.

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digmas ancoram a interpretação, mas nenhum paradigma está a salvo de questionamentos por uma interpretação que concebe melhor a rela-

ção entre outros paradigmas e o exclui, por considerá-lo um equívoco22.

O próprio Coleman afirma explicitamente que sua versão do positivismo jurídico é perfeitamente compatível com o modo pelo qual Dworkin caracteriza os desacordos teóricos entre juristas. Com isso, é parcialmente bem-sucedido em sua empreitada de refutar o aguilhão semântico. Ele é capaz de demonstrar que esse aguilhão semântico não afeta a sua teoria, contudo o faz não ao apresentar a falha do argumento, mas por indicar que sua teoria está fora do alcance da picada, por ter encampado uma versão interpretativa do positivismo jurídico. Mas se ele adere ao convencionalismo, como ele se defende dos ataques que Dworkin impõe a essa forma de positivismo?

O convencionalismo e a crítica dworkiniana

O convencionalismo é a teoria interpretiva do direito que coaduna com a noção popular de que juízes não devem criar leis, mas apenas aplicá-las. Extra-ído o aguilhão semântico, essa ideia corresponde à noção de que o dever moral dos juízes é o de reconhecer a existência de direitos apenas quando eles estiverem lastreados em decisões políticas pretéritas. Por essa corrente, tenta-se manter uma distinção entre o que seria o direito e o que é fruto da moralidade política pessoal de cada juiz. Nessa concepção, decidir de acordo com o direito significa proteger as expectativas daqueles que guiam suas condutas a partir das normas presentes no ordenamento jurídico, as quais são passíveis de serem conhecidas pelos agentes da comunidade política, por serem fatos sociais no mundo23.

Sob a perspectiva convencionalista, adotar uma concepção rival e, portan-to, agir em outro sentido, equivaleria a privilegiar que juízes atuem com base em uma moralidade subjetiva e imprevisível, em vez de agir segundo convenções claras ou uma moralidade pública conhecida. Para o convencionalista, ao con-trário do positivista semântico, a divergência teórica não é fruto de dissimulações, mas de uma concepção equivocada da finalidade a que se presta o empreendi-mento jurídico e de como os juristas devem agir24. É justamente essa a ideia que Coleman parece endossar:

como Hart, eu defendo que a possibilidade de autoridade jurídica deve ser explicada em termos de práticas sociais convencionais, especifica-mente pela adesão de oficiais a uma regra de reconhecimento que im-ponha sobre eles o dever de aplicar todas e tão somente as regras que

qualificar como válidas25.

22 DWORKIN, 1986, p. 71-72.23 Ibid., op. cit., p. 114-120.24 Ibid., op. cit., p. 116-117.25 COLEMAN, 2001, p. 77.

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Em Law’s Empire, Dworkin argumenta que, para que a proposta convencio-nalista logre êxito, ela precisa demonstrar que as convenções às quais eles impu-tam o fundamento do direito efetivamente existem. Para tanto, seria preciso indicar a existência de um comportamento convergente por boa parte dos juízes, mesmo que não sejam convencionalistas26. Contudo, Dworkin nega que exista tal convergência, na medida em que “dois juristas tendem a divergir a respeito da melhor interpretação das práticas legislativas e jurisprudências em um caso concreto porque suas convicções morais e políticas gerais são distintas”27.

Para Dworkin, esse campo de divergência profunda mina a plausibilidade da teoria convencionalista. As decisões judiciais que lhe servem de exemplo ao longo de Law’s Empire (snail darter, McLoughlin e Brown) indicam que juízes entram em desacordo a respeito de aspectos fundamentais da aplicação da legis-lação e de precedentes e que, portanto, não poderia haver convenção nenhuma a esse respeito. Como viria a explicitar em Justice in Robes, “uma comunidade não possui uma regra convencional exigindo um determinado comportamento a não ser que a maioria das pessoas desta comunidade exiba tal comportamento [...]” (destacamos)28. Diante da incapacidade de se reconhecer conteúdos norma-tivos exclusivamente a partir de convenções, Dworkin aprofunda a crítica ao convencionalismo, por entender que possui uma “ambiguidade” em sua propos-ta. Essa ambiguidade decorre de existirem dois níveis distintos pelos quais se pode acatar o conteúdo de uma convenção, e seria preciso pensar que há uma “escola” de pensamento dentro do convencionalismo para cada um desses níveis.

O primeiro nível se restringe aos conteúdos quase incontroversos entre os membros da convenção, o que Dworkin chama de atender à “extensão explícita” da convenção. Por essa escola, os juízes devem se ater a reconhecer o direito apenas quando houver efetiva convergência dos critérios de legalidade. O segun-do nível é o de atender à “extensão implícita” da convenção, o que consistiria em “seguir a melhor interpretação, ou a mais razoável, da convenção, a despeito de integrar sua extensão explícita” a respeito das quais sempre haverá desacordo. Por essa escola, os juízes podem decidir com uma espécie de raciocínio teleoló-gico aplicado às extensões explícitas29.

Para Dworkin, o real convencionalismo se restringe à consideração do ju-rídico ao campo das extensões explícitas. Contudo, essa escola reduz o fenôme-no jurídico a um conteúdo ínfimo e basicamente irrelevante para a decisão ju-dicial. O grau de consenso exigido é tão grande que impede de atribuir aos juízes o dever de as normas conterem um significado claro, se elas forem compostas

26 DWORKIN, 1986, p. 121.27 Ibid., op. cit., p. 123.28 DWORKIN, 2006, p. 197.29 DWORKIN, 1986, p. 123.

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por palavras claras30, pelo simples fato de que juízes divergem sobre esse ponto

de tal modo que esta não poderia ser uma extensão explícita da convenção que

fixa o respeito às leis e precedentes. Por essa teoria há muitos poucos direitos na

comunidade política, e os juízes, na maior parte do tempo, estão decidindo ex-

trajuridicamente, ou seja, fora de qualquer parâmetro jurídico toda vez em que

estiverem tratando de norma vaga, ambígua ou problemática31. Já o convencio-

nalismo baseado em extensões implícitas, como o de Jules Coleman, seria, aos

olhos de Dworkin, apenas uma forma subdesenvolvida de Direito como integri-

dade, na medida em que leva os juízes justamente a decidirem com base nas suas

convicções a respeito do Direito. Ao final, o juiz que adere à concepção de direi-

to defendida por Coleman não se sente impedido de decidir com base em racio-

cínios fundados em convicções morais e políticas controversas, e por esse moti-

vo não deveria ser considerado filiado a uma forma de positivismo32.

O convencionalismo de Coleman

A compatibilidade entre o positivismo e os desacordos teóricos no direito

pode ser percebida, aos olhos de Coleman, ao se reconhecer a prática judicial

como uma forma de Atividade Cooperativa Partilhada – ACP (Shared Coopera-

tive Activity – SCA)33. Ao adotar o aparato teórico de Michel Bratman, Coleman

tenta apontar que os desacordos teóricos ocorrem dentro de um empreendimen-

to cooperativo, cuja natureza é convencional. O fenômeno jurídico seria um tipo

de atividade conjunta, tal como “caminhar conjuntamente, construir coletiva-

mente uma casa e cantar um dueto”34.

Para o filósofo, “quando juízes avaliam condutas à luz de regras que satis-

fazem certos critérios de legalidade”, eles atuam com características próprias de

uma ACP, quais sejam, responsividade mútua (mutual responsiveness), compro-

metimento com a atividade conjunta (commitment to the joint activity) e com-

prometimento com o auxílio mútuo (commitment to mutual support). Nessa

visão, a prática do precedente e de obediência à legislação é compreendida como

um “comprometimento à finalidade de tornar possível a existência de uma prá-

tica jurídica durável”, ainda que tenham razões distintas para zelar por essa fi-

nalidade35. Em essência, Coleman crê que caracterizar a atividade judicial como

um empreendimento fundado em uma intencionalidade intersubjetiva (para

30 Ibid., op. cit., p. 125.31 Ibid., op. cit., p. 127.32 Ibid., op. cit., 126-128.33 COLEMAN, 2001, p. 100.34 Ibid., op. cit., p. 96.35 Ibid., op. cit., p. 96-97.

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utilizar a terminologia da Searle)36 permite identificar a base da prática social exclusivamente em fatos, isto é, em convenções37.

A esse respeito Dworkin apresenta duas objeções. A primeira delas é que nenhuma atividade de ACP precisa ter como base uma convenção. Os próprios exemplos dados por Coleman indicam tarefas que precisam ser realizadas por meio de interação e diálogo entre os participantes, mas que não exigem absolu-tamente nenhuma convenção. As razões que cada um possui para agir em uma ACP levam em conta as atitudes dos outros participantes, mas isso não implica que tais razões se pautam exclusivamente por isso, tal como deve ocorrer em uma convenção. A segunda objeção consiste em indicar que o grau pelo qual juízes de uma comunidade jurídica agem com responsividade em relação aos demais é uma questão empírica e não uma necessidade conceitual. Dworkin aponta o quanto juízes norte-americanos atuam em competição em vez de em um mode-lo cooperativo em relação a todos os demais38.

Entre as duas objeções apresentadas, a primeira é muito mais poderosa. Se, por um lado, Coleman poderia facilmente objetar que os exemplos de competição entre juízes são plenamente acomodados na ideia de que todos agem com vistas à finalidade comum de manter uma prática jurídica durável, por outro lado, não seria possível responder de maneira tão simples à ideia de que ACPs não geram necessariamente convenções. Aparentemente a ideia de que a prática judicial enquanto ACP estaria baseada em convenções deve trabalhar conjuntamente39 com a distinção que Coleman faz entre desacordos a respeito do conteúdo de uma convenção e desacordos quanto à aplicação dessa convenção40. Por meio desse argumento, juízes se engajam em uma atividade cooperativa que tem por base a regra de reconhecimento, cuja natureza é convencional.

Coleman retoma a noção central ao positivismo contemporâneo de que “[u]ma coisa é determinar os critérios de legalidade de uma comunidade e outra coisa é identificar os padrões de conduta que satisfazem tais critérios”. Sendo que “a existência dos critérios de legalidade em qualquer comunidade é, ao final, uma questão de fato social”41. O curioso é como isso se concretiza em uma teoria que foge ao aguilhão semântico e que acata as extensões implícitas das convenções. No positivismo inclusivo de Coleman, os parâmetros morais positivados são incorporados como parâmetros jurídicos e se tornam convenções a respeito dos

36 SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.37 COLEMAN, 2001, p. 159-160.38 DWORKIN, 2006, p. 195-196.39 Dworkin, ao contrário, pensa que se tratam de duas estratégias distintas de desenvolvimento

do argumento (DWORKIN, 2006, p. 191-192).40 COLEMAN, 2001, p. 125-126.41 Ibid., op. cit., p. 161.

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critérios de legalidade42. A natureza eminentemente controversa de tais normas de conteúdo moral não é problemática, pois em algum nível de abstração os ju-ízes conseguem concordar com seu conteúdo. Seria como imaginar que no Brasil há uma convenção que estabelece que a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada, mas que os juízes possuem dúvidas de como aplicar esse critério ao julgar, por exemplo, a constitucionalidade da criminalização das práticas abortivas. O desacordo genuíno é reconhecido, mas em um nível abaixo da con-venção estabelecida43.

Para rebater essa sofisticada estratégia, Dworkin leva o argumento de Co-leman ao extremo para expor sua fragilidade e o denuncia como uma técnica de “abstrativização”. Essa técnica permite identificar que qualquer tipo de desacor-do jurídico esteja fundado em uma convenção, a ponto de se qualificarem como jurídicas inclusive as normas mais eminentemente morais. Segundo Dworkin, essa estratégia viola “a própria ideia de convenção”44. A convenção é caracteriza-da pelas razões que dão para agir. As razões que motivam a convergência de comportamento por convenção45 se fundam exclusivamente no comportamento dos demais membros da comunidade. Exemplos clássicos de convenção social indicam o quanto o sentido da prática decorre da convergência social de uma atitude. Se um paulistano passa a olhar de soslaio para outras pessoas na rua, supondo que as está cumprimentando, ele está simplesmente equivocado. Para que seu movimento ocular possa fazer sentido como uma saudação, isso depen-de de uma comunidade qualquer passar a aceitar essa conduta por acordo ou convenção. Antes disso, é simplesmente uma tentativa de implementar um novo cumprimento ou um equívoco, a despeito da sua intencionalidade individual46.

Com isso em mente, vê-se como é difícil aplicar a noção de convenção a uma regra de aplicação da dignidade da pessoa humana. É razoável argumentar que juízes decidem em observância com a dignidade humana exclusivamente segun-do o comportamento dos demais juízes? É possível imaginar que juízes passem a tomar decisões deliberadamente contra a dignidade da pessoa humana? Juristas divergem não só em como aplicar a regra da dignidade da pessoa humana, mas entram em desacordo exatamente sobre o que é dignidade, ou especialmente, qual dignidade deve ser tutelada em um sistema jurídico. Para utilizar o exemplo

42 Ibid., op. cit., p. 126.43 Neste ponto, a estratégia argumentativa possui um paralelo distante com a adotada por An-

drei Marmor, que localiza os desacordos no cerne das convenções superficiais, longe das con-venções profundas. Vide MARMOR, Andrei. Social conventions. New York: Routledge, 2012.

44 DWORKIN, 2006, p. 191.45 Dworkin (1986) realiza a distinção entre convergência por convenção e convergência por

convicção.46 Os exemplos clássicos de convenção social são dirigir em determinado sentido das rodovias,

atender ao telefone de determinada maneira etc.

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dworkiniano, isso equivale a dizer que os juízes possuem uma convenção de que

devem decidir “adequadamente”. Não é possível reconhecer uma convenção que

não dá qualquer diretriz sobre como as pessoas que aderem a ela devem agir47.

Nesse sentido, essa hipótese aceita que o direito possa ser reduzido a tal

modo que deixaria de ter qualquer característica própria sobre o raciocínio ju-

rídico (anulando a eventual diferença prática que o direito poderia ter sobre o

sistema de razão prática). Por último, ainda que se aceite reconhecer convenções

com esse alto grau de abstração, mesmo nesse nível é possível que juízes discor-

dem se a positivação da norma de dignidade da pessoa humana é necessariamen-

te a abertura do sistema jurídico a padrões morais de decisão, afinal, alguns ju-

ízes podem defender, com razoabilidade, que interpretar a norma corretamente

é verificar a intenção da Assembleia Constituinte ou que essa é uma norma para

balizar exclusivamente o legislativo etc.48.

À luz da denúncia que Dworkin faz da estratégia da abstrativização, eviden-

cia-se em grande parte a inconsistência teórica própria do positivismo jurídico

inclusivista e o fracasso de Coleman em fundamentar o direito exclusivamente

em fatos sociais49. Contudo, como isso responde à questão proposta por este

artigo? Coleman sustenta um convencionalismo que sofre fortes críticas de

Dworkin ou sustenta, sem perceber, um interpretivismo dworkiniano velado?

(Auto)engano e resistência

Até aqui conseguimos coletar as seguintes informações sobre o aparato te-

órico de Coleman: primeiramente, verificamos que, apesar do extenso ataque ao

argumento do aguilhão semântico, sua teoria não foi em nada afetada por ele, à

medida que é construída a partir das mesmas premissas que Dworkin a respeito

dos desacordos teóricos. Isso, por si só, apenas indica que Coleman não produz

uma teoria semântica do direito, mas interpretiva, como é o convencionalismo.

Em segundo lugar, vimos que Coleman tenta sustentar a ideia de que na base do

direito há convenções sociais, que, apesar de abstratas, constrangem seus mem-

bros a agir com uma finalidade comum.

Segundo Dworkin, a teoria colemaniana aceita que as convenções possuam

um grau excessivo de abstração a tal ponto que se afastariam das qualidades que

tornam as convenções sociais valorosas ao positivismo em primeiro lugar. Nessa

47 DWORKIN, 2006, p. 191-193.48 Idem, ibidem.49 Para uma crítica detalhada, FINNIS, John. Natural law: the classical tradition. In: COLE-

MAN, Jules; SHAPIRO, Scott (Eds.). The Oxford handbook of jurisprudence and philosophy of law. Oxford: Oxford University Press, 2002.

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concepção excessivamente abstrata, a convenção (no caso, o direito) não é capaz

de fornecer diretrizes aos indivíduos de maneira (total ou relativamente) inde-

pendente de juízos morais subjetivos.

Mas e então? Supondo que Dworkin esteja correto em sua crítica, como

acreditamos que está, o que isso diz a respeito da teoria de Coleman? Pensamos

que o exame de como ambas as teorias tratam a ideia da “teoria das fontes sociais”

não é suficiente para aprofundar a ideia de que a teoria de Coleman é apenas uma

versão subdesenvolvida do Direito como integridade. Essa conclusão somente

pode ser alcançada quando esse aparato teórico é posto em confronto com as

análises substantivas que Coleman faz a respeito do funcionamento do sistema

jurídico.

A primeira seção de The practice of principle é inteiramente dedicada ao

desenvolvimento de uma teoria a respeito da responsabilidade civil (tort law), e

é nela que o seu discurso teórico abstrato entra em conflito com seu discurso

teórico concreto. Muito grosseiramente, nela Coleman explica como as normas

de responsabilidade civil devem ser pensadas a partir do princípio da justiça

corretiva, porque esse é “o princípio que melhor explica o sentido dessa prática”,

a ponto de excluir desse setor do pensamento jurídico as normas ordinariamen-

te pensadas como de responsabilidade civil, mas que não operam sob o princípio

da justiça corretiva; ou seja, permitindo a revisão de paradigmas50.

Para aplicar corretamente esse princípio, ele deve ser pensando a partir do

princípio de equidade (fairness), para permitir a devida alocação de custos sociais.

Isso deve ser feito a partir de uma visão holística, de tal modo que “a pressão

normativa que a justiça exerce sobre a responsabilidade civil é a pressão de toda

outra prática da qual a justiça faça parte” (destaque no original), tendo em vista

que “o conceito de equidade (fairness) é parcialmente definido pela responsabi-

lidade civil, mas também parcialmente por todas outras práticas morais – jurí-

dicas, políticas e privadas – da qual a justiça faz parte”51.

Coleman insiste que tudo o que faz é uma justificação teórica e não uma

justificação moral da prática da responsabilidade civil, e supõe que há uma di-

ferença entre explicar como o direito se organiza ao redor de determinado valor

(como ele) e fornece a melhor interpretação do fenômeno/explicar a prática ju-

rídica em sua melhor forma possível (como Dworkin)52. Todavia, Coleman de-

senvolve uma teoria substantiva acerca do Direito e de como devem ser resolvidos

problemas jurídicos que é absolutamente semelhante àquilo que faz o “filósofo

50 COLEMAN, 2001, p. 3-63, especialmente o Capítulo 6, “Holism and explanation”.51 Ibid., op. cit., p. 57.52 Ibid., op. cit., p. 5-10.

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da cortesia” e o “juiz Hércules” de Dworkin53, especialmente quando aborda a

questão do “holismo”54.

Qual é a razão, então, que Coleman possui para manter a ideia de que sua

teoria é positivista e não antipositivista? Dworkin imputa a Coleman a defesa de

um “pickwickian positivism”55, que é um positivismo que emprega mal o conceito

do que vem a ser o positivismo. Para ele, positivistas mantêm seu apego aos câno-

nes positivistas, mesmo após estarem progressivamente caminhando a um beco

sem saída especialmente por um motivo de orgulho profissional: manter-se no

domínio de uma disciplina autônoma, que não exige conhecimento de ciência

política, sociologia jurídica, antropologia etc.56.

Cremos que, no caso de Coleman, algo distinto ocorre. O filósofo compre-

ende muito mal a proposta de Dworkin, e a confunde com uma espécie de jus-

naturalismo caricato pelo qual se tenta projetar um valor à prática, independen-

temente de como essa prática se dá57, como se Dworkin sustentasse que o direito

possui eidos a partir dos quais avaliasse a prática jurídica. Coleman não percebe

que a “imposição” de sentido e valor que Dworkin realiza é gadameriana58 e,

nesse sentido, idêntica à sua:

Deve-se notar, contudo, que apesar de as normas de equidade e de justiça

corretiva serem normas morais, o tipo de pressão normativo que descrevi

é, em primeiro lugar, vinculada à sua justificação teórica ao invés de sua

justificação moral. Qual parâmetro subjetivo de alocação de custo é ina-

dequado à prática da responsabilidade civil porque irá se desgarrar do

princípio que melhor explica a responsabilidade civil – a saber, o princípio

da justiça corretiva59 (destaque no original).

Coleman, contudo, ainda partilha um medo que parece ser comum a todos

os positivistas: a ideia de que juízes se sintam livres para pensar a moralidade po-

lítica em suas decisões; o medo de que o raciocínio moral conduza ao arbítrio ju-

dicial e de que juízes possam confortavelmente agir como se fossem partes interes-

sadas no processo. O positivismo de Coleman é uma tentativa de fazer com que os

juízes se sintam adstritos por algo que está além do seu raciocínio jurídico e de

moralidade política, uma tentativa de mascarar até o fim que, de certo modo, o

53 Nas palavras de Dworkin, “[a teoria de Coleman] não lembra o positivismo, lembra o trabalho de Hércules e de seus colegas” (DWORKIN, 2006, p. 189).

54 A comparação entre a primeira seção de The practice of principle e os Capítulos 2, 6 e 7 de Law’s Empire aponta para as semelhanças das duas construções.

55 DWORKIN, 2006, p. 188.56 Ibid., op. cit., p. 211-214.57 COLEMAN, 2001, p. xix, 5 e 57.58 DWORKIN, 1986, p. 47 e nota de rodapé n. 2 do Capítulo “Interpretive concepts”.59 COLEMAN, 2001, p. 58.

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juiz ainda é o instrumento de vocalização de uma decisão política tomada em outra instância; algo que os termos concretos de sua teoria contradizem.

Em conclusão, a teoria de Coleman é melhor percebida como um antiposi-tivismo que não se percebe enquanto tal. Argumentamos que essa característica não pode ser adequadamente percebida apenas pela leitura dos escritos teóricos abstratos de Coleman, mas sim pela leitura conjunta com seus escritos de teoria substantiva. Por sua teoria abstrata se percebe: (i) que ele compreende muito mal o empreendimento dworkiniano; bem como (ii) defende uma noção de conven-ção que se afasta demasiadamente dos valores e premissas positivistas. Pela teo-ria substantiva se percebe que não há diferença relevante a respeito de como um juiz “colemaniano” decidiria um caso em face de um juiz comprometido com o Direito como integridade, inclusive nos hard cases. A isso acrescentamos, ensais-ticamente, que Coleman partilha sim algo relevante com os positivistas: o medo de que o constrangimento argumentativo não seja suficiente para conter arbítrios judiciais e que esta – e não o orgulho profissional – é a razão de seu apego à bandeira do positivismo.

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Data de recebimento: 16/7/2014

Data de aprovação: 17/12/2014