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INTERCULTURALIDADE E DIREITO INDÍGENA À EDUCAÇÃO - A POLÍTICA PÚBLICA DE FORMAÇÃO INTERCULTURAL DE PROFESSORES INDÍGENAS NO BRASIL Vanessa Corsetti Gonçalves Teixeira 1 Eliana dos Santos Costa Lana 2 Resumo Neste artigo temos como objetivo discutir a interculturalidade proposta na política pública de formação intercultural de professores indígenas no Brasil. Na primeira parte, analisamos os princípios consagrados no sistema internacional dos direitos indígenas, destacando a importância, para a consolidação do direito indígena à educação: (I) da participação nas decisões; (II) do respeito aos conhecimentos tradicionais e suas modalidades de transmissão e (III) da autonomia das populações indígenas no que respeita a seus objetivos socioculturais e com relação a suas futuras gerações. Na segunda parte, trazendo dados oiciais e entrevistas com professores indígenas formados pelo programa de educação intercultural da USP, analisamos o estado atual desta dimensão do processo de consolidação do direito dos povos indígenas à educação no Brasil. Concluímos que, apesar de os conteúdos especíicos da legislação serem adequados aos deveres assumidos no plano internacional, não atendem atualmente aos elementos necessários para tornarem efetivos os direitos dos povos indígenas 1 Doutoranda em Filosoia do Direito pela Universidade de São Paulo. [email protected] 2 Docente da Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes, São Paulo. [email protected]

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INTERCULTURALIDADE E DIREITO INDÍGENA À EDUCAÇÃO - A POLÍTICA PÚBLICA DE FORMAÇÃO INTERCULTURAL DE PROFESSORES INDÍGENAS NO BRASIL

Vanessa Corsetti Gonçalves Teixeira1

Eliana dos Santos Costa Lana2

ResumoNeste artigo temos como objetivo discutir a interculturalidade proposta na política pública de formação intercultural de professores indígenas no Brasil. Na primeira parte, analisamos os princípios consagrados no sistema internacional dos direitos indígenas, destacando a importância, para a consolidação do direito indígena à educação: (I) da participação nas decisões; (II) do respeito aos conhecimentos tradicionais e suas modalidades de transmissão e (III) da autonomia das populações indígenas no que respeita a seus objetivos socioculturais e com relação a suas futuras gerações. Na segunda parte, trazendo dados oi ciais e entrevistas com professores indígenas formados pelo programa de educação intercultural da USP, analisamos o estado atual desta dimensão do processo de consolidação do direito dos povos indígenas à educação no Brasil. Concluímos que, apesar de os conteúdos especíi cos da legislação serem adequados aos deveres assumidos no plano internacional, não atendem atualmente aos elementos necessários para tornarem efetivos os direitos dos povos indígenas

1 Doutoranda em Filosoi a do Direito pela Universidade de São Paulo. [email protected]

2 Docente da Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes, São Paulo. [email protected]

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brasileiros no que respeita a uma das funções essenciais da educação dei nida na CF-1988: a formação cidadã e a participação no espaço público interétnico.Palavras-chave: formação de professores indígenas, inclusão, interculturalidade.

INTRODUÇÃO

A interculturalidade pode ser entendida, em sentido amplo, como uma proposta de consolidação democrática nos Estados onde convivem diversas culturas (MONROE, 2009). Superando o paradigma multiculturalista anglo-saxão como projeto ético universal para a convivência entre as culturas e o tratamento ético da diversidade cultural, os princípios da proposta intercultural vêm-se desenvolvendo dentro de uma lógica bastante ampla. Existem noções de caráter mais classii catório que se limitam a descrever a dinâmica da diversidade cultural nos contextos nacionais especíi cos; existem concepções estritamente metodológicas da interculturalidade, entendida, por exemplo, como didática, ou mais amplamente, pedagogia; e ainda, uma proposta teórica que argumenta a favor da reconstrução dos direitos humanos universais como projeto ético emancipador sob o paradigma intercultural (SANTOS, 2006). É neste universo tão diverso de posições teóricas que se estão construindo as propostas interculturais para o tratamento da diversidade cultural.

Há que se reconhecer, contudo, que entre a diversidade de propostas teóricas e os paradigmas consagrados no sistema internacional de promoção e proteção dos direitos humanos – o mais próximo, na atualidade, a um tratamento universal das questões ético-jurídicas – existe um descompasso considerável.

Dessa forma, se é certo que se dei niu, tão cedo como a própria aprovação da Carta das Nações Unidas, que a convivência pacíi ca e harmoniosa entre as diferentes culturas era um objetivo fundamental da comunidade de Estados; e

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que a diversidade cultural contém um valor intrínseco, não se preocupou com a dei nição jurídica de “cultura”, o que gera uma multiplicidade de acepções que se podem notar nos diversos textos normativos e mecanismos de proteção internacionais.3 Por outro lado, se as agências especializadas da Organização reconhecem o valor e a necessidade do diálogo intercultural, carecem ainda dos critérios para a sua utilização como método de decisão de conl itos e formulação de leis. Além disso, no campo especíi co dos direitos dos povos indígenas, ao mesmo tempo que se consagra o direito à autodeterminação e gestão do próprio futuro aos povos indígenas, os textos internacionais não dei nem parâmetros participativos para além do mecanismo da consulta, o que em última instância, implica na reprodução da hegemonia monocultural: ou se aceita ou se recusa, mas não se participa da formulação da pergunta fundamental sobre a qual se faz a consulta.

Nesse sentido, a discussão da interculturalidade nos direitos humanos – sistema dentro do qual se localizam os direitos dos povos indígenas – é, ainda, um debate aberto.

Neste trabalho analisamos, sob a ótica da interculturalidade, uma política pública cujo fundamento é a necessidade de uma educação diferenciada, direcionada aos nacionais indígenas, como parte do projeto estatal de formação para a cidadania. Dessa maneira, a formação intercultural dos professores indígenas será entendida aqui como uma das estratégias utilizadas pelo governo brasileiro para a consolidação de direitos e valores de cidadania e de um espaço interétnico democrático através da educação formal

3 Para oferecer três exemplos de clara diferença estão: a noção de interculturalidade e diversidade das expressões culturais (UNESCO); a noção de cultura que subjaz aos princípios da Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, onde a ideia de cultura está intrinsecamente relacionada à da autoidentii cação étnica; e a noção de proteção dos sistemas culturais de conhecimento tradicional, que se está desenvolvendo no grupo de trabalho responsável pela temática na Organização Internacional da Propriedade Intelectual.

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obrigatória diferenciada (ver TEIXEIRA, 2010, y LANA, 2009).4

1. DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS À EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE

No processo de ai rmação do direito dos povos indígenas à educação, consagrou-se a ideia de que essa educação não deve ser a mesma oferecida pelo Estado aos demais nacionais, mas que deve respeitar a condição de diferença cultural e linguística e as formas tradicionais de conhecimento, além de procurar oferecer igualdade de condições de acesso e qualidade do serviço público com relação aos demais nacionais do Estado. A isso se chamou educação diferenciada e, paulatinamente, ai rmou-se que deveria ser intercultural, apesar de que não se dei ne o que se quer dizer com o termo no texto normativo internacional obrigatório mais relevante sobre a matéria: o Convênio 169 da OIT, que se discute no seguinte ponto.

1.1. O Convênio 169 da OIT e o Direito dos Povos Indígenas à Educação Diferenciada

O Convênio 169 da OIT, aprovado em 19895, em seu órgão plenário e ratii cado posteriormente pela grande maioria

4 Vale dizer algumas palavras iniciais sobre o direito indígena à educação no Brasil. Quando se refere a esse direito, está-se discutindo essencialmente o dever do Estado de oferecer, incentivar ou i nanciar a educação formal (escolar) para os nacionais indígenas. Especialmente está-se discutindo o dever de oferecer educação gratuita diferenciada nos primeiros oito anos de formação, e de oferecer programas de formação de quadros docentes e administrativos para os nacionais indígenas, como resultado do dever assumido no Convênio 169 da OIT. A literatura especializada acrescenta, ademais, o dever de levar em conta a especii cidade cultural dos povos indígenas nos momentos de formular e aplicar a política pública. Como se vê em: MARÉS (1998); GRUPIONI (2006); PACHECO (1987), entre outros.

5 O Convênio 169, dos mais relevantes instrumentos internacionais para o tratamento da questão indígena, pode ser consultado na íntegra em diversos endereços na rede internet. No sitio oi cial da OIT, o documento pode ser encontrado em PDF: http://www.oit.org.br/sites/default/i les/topic/international_labour_standards/pub/convencao%20169_2011_292.pdf

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dos Estados Latino-Americanos, estabelece um rol de princípios que exclui para os Estados signatários a possibilidade de ignorar a diferença cultural ou depreciá-la objetivando sua supressão.

É com a aprovação do Convênio e a consequente proibição da formulação de políticas integracionistas que se consagram diversos deveres de prestação positiva do Estado com relação ao respeito à cultura e modos de vida indígenas. O Convênio coloca, entre suas considerações iniciais, as quais motivam a revisão do Convênio precedente sobre a matéria6, que:

“(..) a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a i m de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores (...) e reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram

Com relação às políticas para a educação, especialmente o parágrafo 2 do artigo 7°, dispõe:

“A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.”

Já em sua parte especíi ca, em seu artigo 27, o Convênio relaciona os dois elementos centrais do direito indígena à educação: os objetivos da educação diferenciada e a formação de professores:

6 O 107, de 1957, que tratava da questão indígena.

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“A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado.”.

Podemos dizer, em linhas gerais, que o texto do Convênio trabalha uma relação fundamental entre as questões do ensino referentes à proteção da língua materna, conhecimentos tradicionais e suas formas de transmissão e a livre-determinação dos objetivos para o desenvolvimento dos povos interessados e o que aqui denominamos educação diferenciada.7

Ademais, identii ca-se no texto que a educação indígena deverá também atender aos i ns de: (I) passar conhecimentos da língua nacional e informar sobre os direitos e obrigações da sociedade nacional como um todo e (II) em contrapartida, informar a população nacional não-indígena sobre as culturas indígenas de modo a eliminar os preconceitos.

Nesse sentido, pode-se ai rmar que os Estados que fazem parte do Convênio 169, aceitando-o como obrigatório, subscrevem, com relação à educação, o dever de formular política pública especíi ca nesse campo, em cooperação com os povos interessados;

I. tendo em conta os seguintes princípios: (a) atenção a suas necessidades particulares, (b) consideração de sua história, conhecimentos e técnicas, sistemas de valores e todas as demais aspirações sociais, econômicas e culturais, e (c) garantir a formação de membros desses povos e sua participação na formulação e execução de programas de educação e

II. atendendo aos objetivos de: 1. transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realizar esses programas; 2. reconhecer o direito desses povos a criar suas próprias instituições e meios de educação; 3. ensino

7 O termo é utilizado pela literatura especializada para se referir à Educação Intercultural Bilíngue.

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das crianças, incentivo ao uso, preservação e recuperação da língua materna do povo indígena; 4. ministrar conhecimentos gerais e aptidões que permitam participar plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na vida da comunidade nacional e 5. fazer conhecer os direitos e obrigações especialmente no que se refere ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, aos serviços sociais e aos direitos que derivam do Convênio.

Não se pode olvidar que, entre os princípios gerais do Convênio, garante-se ao sujeito de direito indígena (o povo indígena) o direito de gerir seu próprio futuro, determinando que os governos estabeleçam ações coordenadas de desenvolvimento regional e global em acordo com os povos interessados. Destaca-se, i nalmente, a importância de se tornarem disponíveis recursos por parte do Estado e de se formularem programas de educação especíi cos com o i m de se combater o preconceito contra os povos indígenas.8

Assim, podemos identii car que a importância da formação de professores indígenas e da oferta de um programa especíi co de formação de professores para cada povo diz respeito tanto ao fundamento do direito à educação diferenciada nos termos do Convênio 169, que é o de gerir o próprio futuro, como aos princípios de participação e ao objetivo de transferir aos povos interessados a responsabilidade pela realização dos programas de educação.

Dessa forma, entende-se que a ideia de interculturalidade deve ser mais profundamente desenvolvida no âmbito interno dos Estados, na formulação e aplicação da política pública sobre a que versa o dever internacional assumido pelos Estados.

8 Um exemplo de política que atende a esse objetivo, no caso brasileiro, foi a aprovação e entrada em vigência da lei que determina a modii cação dos conteúdos dos livros didáticos das disciplinas de história e geograi a dos ensinos médio e fundamental da educação não-diferenciada. Lei 11.645/2008, 10 de março de 2008, que modii ca a lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, obrigando a inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo oi cial das redes de ensino pública e privada.

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1. 2. Direito dos Povos Indígenas à Educação no Brasil

Em artigo publicado no ano de 2010 pela UPN, TEIXEIRA discute a proposta brasileira do tratamento da interculturalidade, a qual, conclui, está baseada em alguns objetivos fundamentais que dirigem o direito à educação para todos os cidadãos brasileiros, e outros que dão sentido especíi co à educação dirigida aos povos indígenas. Nesse sentido, o direito dos povos indígenas à educação expressa a busca pelo equilíbrio entre a igualdade de condições com os demais cidadãos brasileiros e o direito à diferença.

O sentido desse direito à igualdade está essencialmente relacionado à ampliação do acesso à educação de qualidade. De outro lado, o direito à diferença encontra seu norte na formulação de uma política especíi ca que permita a reprodução cultural, ao mesmo tempo que prepara os alunos dessa escola diferenciada para conviver em um espaço público interétnico.

Não obstante, como nota a co-autora deste texto em seu outro trabalho (LANA, 2009), a respeito deste espaço público interétnico não se diz nada mais que a necessidade de fortalecer a educação sobre os direitos humanos. Porém, o último plano nacional sobre educação em direitos humanos não dei ne objetivos mais detalhados que: o estímulo da relação democrática entre escola e comunidade; a luta contra a discriminação e a tolerância; o apoio às políticas dirigidas às populações indígenas; a garantia de formação inicial e continuada sobre os direitos humanos para os professores de ensino infantil e a melhora das condições de trabalho dos professores indígenas. Ademais, diversas questões especíi cas como a leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente9 estão expressas no plano.

Não foram encontrados, contudo, estudos sobre como as legislações especíi cas de direitos humanos (idosos,

9 Lei especíi ca sobre os direitos da criança e do adolescente.

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crianças e mulheres, por exemplo) estão sendo discutidas com os professores indígenas e é provável que os programas de formação não se tenham dedicado especii camente à formação nessas temáticas, o que se deduz da ausência de referência especíi ca nos informes oi ciais (TEIXEIRA, 2010).

Assim, de uma perspectiva principiológica, a interculturalidade, na concepção consagrada nos textos oi ciais brasileiros, remete à ideia de uma convivência harmoniosa entre as culturas indígenas e a nacional em um espaço público democrático destinado a receber igualmente todas essas culturas, onde as políticas de educação devem servir para preparar as duas partes (alunos diferenciados por seu pertencimento às culturas indígenas e alunos não diferenciados, pertencentes aos demais setores sociedade nacional) para essa convivência harmoniosa. O cerne dessa proposta, jus-política, está na apropriação dos princípios de direitos humanos, concretizada no fortalecimento das ações especíi cas de educação em direitos humanos. Isso poderia ser dei nido como o objetivo fundamental da educação na proposta político-democrática da interculturalidade.

Sem embargo, existe também uma perspectiva metodológica da interculturalidade, concretizada nas linhas gerais e nas políticas especíi cas dirigidas à educação indígena que pretendem responder à pergunta, não menos complexa, mas talvez mais objetiva: como respeitar às culturas indígenas na educação formal?

O princípio guia para a resposta a esta indagação é a garantia de que sejam respeitados os conhecimentos indígenas e suas formas de produção e transmissão, com base nos compromissos assumidos internacionalmente. Como se dá a discussão da interculturalidade na educação indígena no Brasil? No próximo ponto, discutimos os textos normativos e as linhas fundamentais de debates sobre a questão na literatura especializada.

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2. LEGISLAÇÃO E EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL

Observa-se que no Brasil a legislação dirigida à educação indígena tornou possível o desenvolvimento de um projeto de ensino formal diferenciado (escolar) cuja sistematização dos saberes deve ser culturalmente adequada às reivindicações desses povos. É dizer onde os professores das escolas, localizadas dentro das aldeias, e o calendário escolar sejam adaptados às atividades próprias da comunidade (GRUPIONI, 2001).

A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 209, § 2º 10 reconhece o direito dos povos indígenas a utilizar suas línguas maternas na escola e a escolher os processos próprios de aprendizagem, ou seja, de preservar suas práticas culturais, línguas, crenças e tradições. É uma concepção relativamente recente e que demonstra a ruptura com o paradigma integracionista vigente até então.

A legislação também colocou os povos e comunidades como protagonistas da escola indígena, resguardando-lhes o direito a ter seus próprios membros indicados para tornarem-se professores a partir de programas especíi cos de formação e titulação.

Assim, buscando cumprir com a obrigação assumida constitucional e internacionalmente, o Estado brasileiro teve como primeira tarefa a de providenciar um documento cuja função é dei nir parâmetros de uma política nacional para a educação indígena que se pretendia que fosse “diferenciada” da educação oferecida aos demais nacionais. Este documento, redigido em 1993 – “Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena” – tem como objetivo principal orientar a atuação dos responsáveis pela educação indígena e estabelece princípios de uma prática pedagógica orientada

10 A Constituição brasileira de 1988 em seu artigo 209, §2º dispõe: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

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para o respeito à diversidade cultural dos povos indígenas, e para um modelo de formação próprio para os professores indígenas, para que possam assumir a docência e a gestão de suas próprias escolas.

Outra ação importante, resultado da formação de professores indígenas, foi a publicação de materiais didático-pedagógicos elaborados pelos próprios povos interessados. Para dar continuidade aos avanços ocorridos até então, em 1998, criou-se o Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (RCNEI).

De acordo com o MEC11 (2008), o documento apresenta uma primeira parte em que se reúnem os fundamentos históricos, políticos, legais, antropológicos e pedagógicos que estruturam a proposta da escola indígena intercultural, bilíngue e diferenciada. Na segunda parte, fazem-se sugestões de trabalho, a partir das áreas de conhecimento, para a construção dos currículos escolares indígenas especíi cos a cada realidade.

Esse documento orienta as novas práticas e apresenta considerações gerais sobre a educação escolar indígena, além de garantir a diversidade e multiplicidade das culturas indígenas, em proposta pedagógica de ensino-aprendizagem cujo objetivo é incentivar a educação intercultural e bilíngue.

2.1 Documentos que impulsionam a implementação da educação indígena.

Este novo modelo de educação indígena substituiu a escola formal como instituição que, desde o século XVI, faz parte da vida dos povos indígenas, e que foi introduzida pelos jesuítas da Companhia de Jesus ou, posteriormente, pelos diversos missionários que se sucederam desde então até a segunda metade do século XX, com o imperativo de

11 Ministério da Educação do Brasil.

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catequizar e integrar os povos indígenas à sociedade não indígena.12

Grupioni (2009:37) argumenta que a escola que passa a ser reivindicada pelos povos indígenas a partir da década de 1970 se deu, “em contraposição a uma escola que se constituía pela imposição do ensino da língua portuguesa, pelo acesso à cultura nacional e pela perspectiva da integração” e por esse motivo:

[...] se molda outro modelo de como deveria ser a nova escola indígena, caracterizada como uma escola comunitária (na qual a comunidade indígena deveria ter papel preponderante), diferenciada (das demais escolas brasileiras), especíi ca (própria a cada grupo indígena onde fosse instalada), intercultural (no estabelecimento de um diálogo entre conhecimentos ditos universais e indígenas) e bilíngue (com a consequente valorização das línguas maternas e não só de acesso à língua nacional) (GRUPIONI, 2009:37).

Com base, então, no direito dos povos indígenas à educação diferenciada, consagrado com a entrada em vigência da Constituição de 1988, inicia-se um processo de reforma na legislação secundária que acompanha as determinações constitucionais. O espírito da Carta Maior brasileira está presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LBDEN), de 1996 que, em seu artigo 32°, § 3º, dispõe: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,

12 Essa atitude “missionária” continua sendo preocupação dos povos indígenas em regiões onde a política pública de educação diferenciada não foi posta em prática, como ai rma Daniel Munduruku em seu artigo Entre a cruz e a espada: A presença missionária em terra indígena e o Estado Laico. “E o que pode nos parecer mais contraditório é justamente o fato de que a comprovação da destruição da alma indígena não é sui ciente para que o Estado, responsável direto pela assistência aos indígenas, tome uma providência no sentido de fazer valer a lei máxima que garante ser anticonstitucional a continuidade da presença missionária – sob qualquer denominação – em terra indígena. A sentença é simples: se o Estado é laico e os indígenas estão sob o cuidado dele, então não tem sentido manter instituições que fazem proselitismo religioso. Isso causa interferência direta na cultura destes povos sendo, portanto, um crime que pode virar etnocídio cultural e perda imediata da identidade étnica” www.danielmunduruku.com.br/artigos.html

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assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

Da mesma forma que na LBDEN, o Plano Nacional de Educação de 2001 também apresenta um capítulo (parte II, capítulo 9)13 dedicado à educação escolar indígena, no qual se estabelece como meta a oferta de programas educacionais aos povos indígenas para todas as séries do Ensino Fundamental e programas especíi cos para atender às escolas indígenas. Trata-se de documento que serve como guia para a implantação da escola indígena, cujo objetivo é atribuir aos Estados a responsabilidade legal pela educação indígena seja diretamente, seja através de delegação de responsabilidades a seus municípios, sob a coordenação geral e com o apoio i nanceiro do Ministério da Educação.

Não obstante os esforços e a especii cidade da legislação especíi ca, o projeto de tornar efetiva a escola diferenciada entre os indígenas ainda encontra dii culdades de ordem prática e resistências das esferas pertinentes do Estado em absorver as escolas indígenas.

Com relação à falta de autonomia da escola indígena e, em consequência, de seus professores, destaca-se (GRUPIONI, 2009:212/213):

Os relatos de dii culdades, para verem aceito o que estão propondo ou realizando no âmbito de suas escolas, continuam frequentes por parte de professores indígenas em encontros e reuniões, revelando a consciência da situação de dependência face aos sistemas de ensino nos quais estão inseridos [...] e se os grupos indígenas continuarem presos ao que os sistemas

13 “Assegurar a autonomia das escolas indígenas, tanto no que se refere ao projeto pedagógico quanto ao uso de recursos i nanceiros públicos para a manutenção do cotidiano escolar, garantindo a plena participação de cada comunidade indígena nas decisões relativas ao funcionamento da escola. Estabelecer, dentro de um ano, padrões mínimos mais l exíveis de infra-estrutura escolar para esses estabelecimentos, que garantam a adaptação às condições climáticas da região e, sempre que possível, as técnicas de edii cação próprias do grupo, de acordo com o uso social e concepções do espaço próprias de cada comunidade indígena, além de condições sanitárias e de higiene”.

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de ensino determinam para a escola indígena, pouco será conquistado em termos da proposição de novos modelos de escola.

Outra questão relevante que inl ui neste processo é a dii culdade dos órgãos públicos responsáveis pela educação indígena em entender a educação especíi ca e diferenciada, e a forma através da qual os professores indígenas atuam nas escolas. Desse modo, o que se vê são gestores públicos impondo políticas que contrariam a realidade sociocultural dos povos indígenas, prevalecendo, assim, os entraves burocráticos do sistema de ensino indígena. Estes acontecimentos nos levam a recorrer a GRUPIONI (2009:61) quando ai rma: “com o passar dos anos, vê-se alargar a distância entre o que está preconizado como proposta de uma educação diferenciada e os meios administrativos postos em prática para efetivá-los”.

2.2. A importância da formação dos professores indígenas

Juntamente aos problemas já citados, um dos principais desai os para que se consolide a proposta da educação escolar indígena é a formação dos professores indígenas, de modo a que seja pautada pelos princípios de respeito à diferença, GRUPIONI (2006). Além disso, não há que se olvidar que parte do compromisso assumido internacionalmente compreende, como garantia da qualidade da escola indígena, a possibilidade de ter à frente gestores e professores indígenas.

A formação especíi ca de professores indígenas não é uma reivindicação somente dos professores, mas de toda a comunidade, uma vez que até princípios do século XXI, muitos professores não possuíam formação superior ou

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magistério e alguns nem sequer haviam concluído o ensino básico.14

Atualmente, o processo de formação dos professores indígenas é realizado por organizações não-governamentais (ONGs) e por órgãos públicos estatais e municipais, por intermédio de suas secretarias de educação.

A temática da formação de professores indígenas ganha cada vez mais força nas pautas de atuação do movimento indígena do país, na medida em que se percebe sua importância para a construção de escolas que se pretendam realmente indígenas (GRUPIONI, 2006, p.55). Desse modo, o Estado tenta responder a demanda de garantir aos povos indígenas o tipo de escola que, ao ser apropriada por eles, adquira um novo signii cado e corresponda ao modo de ser indígena (ou aos modos de ser indígenas, no caso brasileiro, de reconhecida multidiversidade).

Mas como essas propostas/projetos, uma vez postos em marcha pelo governo, foram recebidos pelos povos indígenas? Um exemplo relevante, pela amplitude das políticas realizadas é o caso dos guaranis do Estado de São Paulo.15 A presença da Instituição Escolar dentro da comunidade, segundo o Professor Guarani Antonio Macena,16 foi recebida pelos indígenas, em principio, com alguma desconi ança. Isso se deveu, de acordo com nossas entrevistas, ao fato de que as comunidades não sabiam se a presença da escola modii caria o seu cotidiano.

14 Os programas para o Magistério Indígena se destinam a formar um tipo de professor que, em muitos casos, já atua na escola de sua comunidade e tem muito pouca experiência de escolarização formal: sempre traz em sua “bagagem” um amplo domínio dos conhecimentos acumulados por seu povo, mas seu conhecimento sobre os saberes acadêmicos é restrito (Grupioni,2006, p.25).

15 Os povos guaranis são dos mais numerosos na América do Sul e no Brasil. Para maiores informações sobre sua localização, etnograi a e características dos movimentos sociais acesse os sítios eletrônicos da Comissão Pró-Indio de São Paulo; do Centro de Trabalho Indigenista e da FUNAI. Os dois primeiros são organizações não-governamentais de longa e reconhecida relação com as comunidades guaranis do Estado de São Paulo e do sul do Brasil, o último é o órgão indigenista nacional.

16 Terra Indígena Rio Silveira, em Bertioga, litoral norte do Estado de São Paulo.

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Por isso, levou algum tempo para aceitarem a nova proposta de educação, cujo primeiro passo foi a instalação da escola em seu interior. A escola foi vista como algo alheio, e temia-se que pudesse ser um instrumento de interferência na cultura tradicional.

Nesse sentido, ainda hoje, alguns professores indígenas a percebem sob essa perspectiva. A professora Guarany Cora Martins, da escola da Terra Indígena Krukutu, no bairro de Parelheiros, São Paulo, receia que a escola possa ser um instrumento de interferência na cultura tradicional, e explica, em entrevista de março de 2009:

“Tenho medo que a escola seja uma forma de assimilação mais forte que a catequese, porque agora ela está dentro da aldeia, apesar de ser uma reivindicação nossa. Às vezes penso que continuam querendo que a gente perca nossa língua e nossa cultura. Fomos nós que pedimos a escola, para que as crianças não precisassem sair da aldeia para aprender a língua portuguesa. O motivo principal foi o choque cultural e linguístico que as crianças passavam quando chegavam à escola branca. Nossos pais queriam que aprendêssemos a língua portuguesa e por isso nos mandavam à escola, mas alguns de nós nunca tínhamos ouvido ou falado o português, e quando chegávamos à escola levávamos um choque. Por isso, muitos de nós não conseguimos terminar nem o ensino básico.”

E acrescenta: a escola diferenciada como está agora estaria mais próxima à cultura não indígena do que à “cultura indígena”17, já que a única coisa que afastaria uma cultura da outra é o ensino da língua nativa. Relata que é professora de português, guarani e matemática mas que o ensino da cultura guarani não é realizada porque a estrutura física da escola não é apropriada, é dizer, “não há como colocar a cultura indígena dentro de um prédio como este, entre quatro paredes”.

17 Neste ponto destacamos, por questão de clareza, que quando os professores entrevistados falam da “cultura indígena” se referem mais propriamente a sua cultura, a cultura Guarany.

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Ainda de acordo com essa professora, o formato da escola não oferece condições para os conhecimentos do dia-a-dia do índio, do cotidiano de uma aldeia, de uma comunidade indígena. São muitas as vezes nas quais as crianças se mostram entediados dentro da classe. “Nesses momentos é preciso tirá-las de lá e levá-las para fazer algo diferente, como pescar, por exemplo, que faz parte da cultura”.

A professora imagina a estrutura da escola dentro da comunidade de forma muito distinta da existente, por exemplo:

“Se tivesse em minhas mãos, escolher a escola, ou melhor, o espaço físico da escola, não seria assim como é. Seria uma casa sem paredes, apenas o teto para a proteção do sol e da chuva, em contato com a natureza, e assim poderia falar da nossa cultura e passar os ensinamentos para as crianças. Da maneira como está, não é possível. Nós já falamos sobre isso com os órgãos oi ciais, mas não somos ouvidos. Tenho certeza de que os povos indígenas têm condições de cuidar sozinhos de sua escola. Mas não temos autonomia para isso, pois temos que prestar contas o tempo todo, seja na questão da avaliação dos alunos, com a qual eu não concordo, seja com os documentos burocráticos que nos são exigidos o tempo todo. Por mim, desmontava o prédio da escola, porque acredito na educação pela convivência, na qual a criança vê, ouve, observa e repete, e não é preciso dizer “olha aqui, é assim que se faz”, ela simplesmente faz, no início errado, mas aos poucos vai aprendendo.”

O discurso dessa professora indica que ainda que os métodos, os conteúdos e os programas tenham sido adaptados ao que se pretende como interculturalidade, é o mesmo projeto de educação escolar como formação de crianças indígenas o que resulta não totalmente convincente, a partir de sua perspectiva. Por exemplo, a questão da formalidade das aulas e a burocracia administrativa da escola são indicadas como “contrárias à cultura”. A proposta da professora é bastante clara, ademais: o aprendizado a partir da cultura guarani se faz pela participação direta e a observação dos adultos em suas

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atividades, a formação na cultura, então, se faz no convívio coletivo nos espaços comunais.

Nesse sentido, torna-se explícita a falta de participação indígena na formulação dos próprios objetivos fundamentais da educação escolar.

2.3 O papel do Professor Indígena

Nas palavras de Grupioni, o professor indígena tem duas funções especíi cas: ao mesmo tempo que prepara seus alunos para conhecer seus direitos dentro da sociedade nacional, deve garantir que esses continuem exercendo sua cidadania dentro da comunidade: “os professores indígenas, em seu processo de formação, têm que, o tempo todo, rel etir criticamente sobre as possíveis contradições embutidas nesse duplo objetivo, de modo a encontrar soluções para os conl itos e tensões daí resultantes” (GRUPIONI, 2006:24).

O professor indígena, assim, estaria encarregado tanto da elaboração do calendário escolar, como da elaboração do projeto político pedagógico de suas escolas. Não obstante, para respeitar o Referencial Curricular, devem-se estabelecer os objetivos educacionais, estruturar a grade curricular, escolher o conteúdo das disciplinas e qual o melhor sistema de avaliação, isso, também, parte das atribuições dos professores indígenas.

Essa não é tarefa fácil já que os órgãos oi ciais de ensino dos Estados por vezes pressionam os professores no que se refere ao cumprimento dos programas, sem compreender que os princípios pedagógicos dos povos indígenas têm seu fundamento em outras noções de aprendizagem, como se nota na declaração da professora Cora Martins, já comentada.

Ainda sobre o modelo de educação indígena praticado pelo Estado e suas instituições educacionais, podemos recorrer a BRAND (2009: 9/10), que percebe alguns riscos que podem advir da presença do Estado como responsável por um tipo de educação diferenciado da educação do sistema nacional.

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Existem, no entanto, alguns riscos a serem superados ou evitados pelos professores índios em seu trabalho na escola. O primeiro e o mais grave risco resulta do processo de institucionalização da escola e da i gura do professor indígena, com as consequentes imposições da burocracia que rege e condiciona a ação dos órgãos públicos. O reconhecimento legal da i gura do professor índio e sua transformação em funcionário público, embora, certamente, uma reivindicação dos próprios professores, traz embutido o risco de esvaziar a escola e o trabalho do professor de sua dimensão de serviço à comunidade, suas lutas pelo direito à terra e seus projetos de desenvolvimento dei nidos a partir de suas pautas culturais especíi cas, condicionando seu trabalho a imposições advindas do órgão contratador de seu trabalho, o Município ou o Estado.

O que se percebe das declarações dos professores e ai rmações dos estudiosos do assunto é a contradição presente nas comunidades indígenas hoje: a reivindicação da política pública não gera os efeitos esperados, o que dá espaço para o aparecimento dos paradoxos que resultam da ausência de interculturalidade e diálogo intercultural real nos momentos anteriores à implementação da política. É exatamente por esse motivo que o Professor Sergio Lira, da Escola da Terra Indígena Uruity, na região do Vale do Ribeira, explica: cada comunidade tem sua especii cidade e apresenta necessidades distintas. Nesse caso, o currículo escolar deve ser pensado a partir dessa realidade, é dizer, das especii cidades decorrentes das contradições oriundas do contato das comunidades indígenas com a sociedade do entorno.

Novamente, BRAND (2009) dei ne da seguinte forma a importância da formação do professor indígena e de sua atuação frente à educação diferenciada intercultural e bilíngue, para a concretização de uma educação de qualidade para os povos indígenas:

Restringir-me-ei, nessa breve abordagem, ao professor indígena, na perspectiva de uma escola diferenciada.

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Essa opção não é, certamente, aleatória, mas parte da constatação de que ele é o personagem de quem depende efetivamente a implementação de uma escola indígena de qualidade. Parte da convicção de que a melhor contribuição que, neste momento, os órgãos públicos e organizações de apoio podem dar às comunidades indígenas no campo da educação é oferecer as melhores condições para a formação desses professores. Há, certamente, outras urgências no campo da educação escolar indígena, mas todas elas dependem da presença, em sala de aula, de professores com clareza sobre o papel da escola e, portanto, de seu próprio papel, frente às expectativas e demandas de suas comunidades.

A percepção com relação à não correspondência entre a demanda indígena e a política pública se estende também ao campo da descrença na efetividade das leis do ordenamento como um todo. Como diz o professor Guarani Sergio Lira da Aldeia Uruity:

O cumprimento das leis depende de muita gente, o que torna difícil sua execução. Em algumas ocasiões somos ouvidos, como determina a lei, o que não garante que as coisas sejam feitas como o acordado, o que signii ca que, quando somos chamados para dar nossa opinião, é claro que somos ouvidos, mas é somente uma formalidade, pois no i nal os órgãos governamentais decidem e nós temos que obedecer, ou seja, nossa participação não muda nada.

As palavras desse professor indicam que a sensação que i ca das instâncias de participação é a de que não há real participação. Algumas razões podem ser, hipoteticamente, levantadas com relação à questão:

não há real intenção de escutar os povos interessados; não há entendimento real das demandas desses povos

A partir de nossa perspectiva, apesar de considerar possível também a primeira hipótese, preferimos fazer aqui o exercício de desenvolver a veracidade da segunda.

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Nesse sentido, apesar do esforço, político e jurídico em gerar instancias de participação, estas instâncias estariam carentes de efetividade inter-comunicativa, de forma que não se estaria logrando “traduzir” as demandas na linguagem especíi ca das políticas. Denegando a possibilidade de diálogo sobre a necessidade de determinados elementos da política pública para a educação escolar, a instância participativa perde seu sentido e impossibilita a apropriação, pelos professores indígenas, do projeto político que subjaz à educação escolar.

Nessa perspectiva, muitos professores indígenas se preocupam com as transformações ocorridas na comunidade a partir da presença da escola nas aldeias. Destacam-se, não obstante, pontos positivos também, apesar da interferência nos costumes, como ai rma Sergio Lira, da aldeia Uruity, em Miracatu. Para esse professor, o fato de as crianças estudarem dentro de suas comunidades as protege contra a discriminação que os alunos indígenas sofriam nas escolas não indígenas, ou que ainda sofrem se pertencem a alguma das aldeias onde ainda não há escola.

Dessa forma, a escola, para o professor guarani, seria entendida como uma forma de aprender a língua portuguesa, somente, não para o aprendizado da cultura da etnia. Essa, como já se argumentou com as declarações dos professores indígenas, não é possível dentro de um ambiente fechado como o prédio da escola. Não obstante, a escola dentro da aldeia facilitaria o aprendizado da língua nacional, porque as crianças se sentiriam mais cômodas e estariam protegidas contra a discriminação.

Como pesquisadoras, nos i ca a pergunta: seria um dos objetivos da proposta da política de educação escolar o ensino da cultura da etnia no sentido de substituição de outros espaços formativos comunais? A legislação especíi ca parece inclinar-se para o sentido oposto. Na nossa forma de ver, a ideia de ensinar a cultura indígena na escola equivaleria a fazer da escola o mais importante espaço formativo da comunidade, centralizando os processos de ensino e aprendizagem. É dizer: se os professores estão preocupados porque não podem ensinar

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a cultura indígena na escola não estaria isso relacionado a uma carência no debate crítico sobre o papel da escola como espaço de formação na comunidade?

Talvez as críticas de Cora Martins e Sergio Lira digam respeito à seguinte problemática, constante também do Plano de Educação em Direitos Humanos, como uma preocupação central: a relação entre a comunidade e a escola. O professor e administrador indígena têm clareza de seu papel? Ou, mais que isso, a construção desses papéis na comunidade indígena se dá de maneira tão marcada? Em outras palavras: opõe-se neste processo escola e comunidade? Essas perguntas, de difícil resposta, parecem-nos fundamentais no aparato de formação dos professores da educação diferenciada.

2.4 – Formação dos Professores Indígenas no Brasil: Alguns dados complementares

Em todas as regiões do Brasil surgiram, nos últimos anos, diferentes experiências na construção de projetos educacionais especíi cos para a formação de professores indígenas. Além de formar grupos de professores indígenas, como o COPIAM (Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia), por exemplo, localizado em Manaus, os professores indígenas que trabalham nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste participam de encontros como o estudo dos Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena, realizado em 2002, objetivando o ensino e a aprendizagem, bem como a rel exão sobre a prática pedagógica nas escolas indígenas. Este último projeto, i nanciado pelo MEC.

Devido à heterogeneidade e diversidade dos povos indígenas, de suas culturas e tradições, as soluções encontradas também devem ser diversas, o que torna mais complexo o processo.

O número de professores indígenas atualmente é muito maior do que há 20 anos. Não obstante, ainda há professores que não concluíram o Ensino Médio e poucos são os que cursaram

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o magistério, ainda que o requisito básico para tornar efetiva a Educação Diferenciada Intercultural e Bilíngue dependa fundamentalmente da formação dos professores indígenas. Apesar dessa ai rmação, pode-se dizer que houve uma melhora signii cativa na formação dos professores indígenas desde que essa função passou a ser obrigação do MEC. Hoje são 10.928 professores indígenas (MEC, 2006)18.

Nesse sentido, há diferenças relevantes entre as regiões quanto ao número de professores e com relação ao nível de escolaridade desses professores que variam razoavelmente de região para região e em cada Estado. Cada situação exige uma resposta distinta, de modo que o professor indígena complete sua escolarização básica e se qualii que por meio de uma formação especíi ca para a atuação no magistério indígena. Ademais, hoje, com a nova legislação, exige-se dele, como dos demais professores do país, a titulação em nível superior.

A Agência Brasil, em 2007, apresentou a seguinte estatística oferecida pelo MEC: dos aproximadamente oito mil professores que ensinam nas escolas indígenas, 64% completaram o Ensino Médio e 13,2%, o Ensino Superior. Não obstante, a pesquisa indica que 12,1% dos professores somente têm completo o Ensino Fundamental e 9,9% nem sequer concluíram esse nível de ensino.

De acordo com a pesquisa, o Norte e o Nordeste são as regiões com número mais relevante de professores com menor escolaridade. Em relação à média nacional, a porcentagem de professores nesses estados com Ensino Fundamental incompleto é mais determinante que nos demais.

De acordo com o MEC, duas das principais ações da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD – do Ministério da Educação para garantir a oferta de educação escolar de qualidade são as seguintes:

18 Apesar do crescimento no número de professores indígenas, segundo os dados do MEC, existem inúmeras escolas indígenas cujos professores não são indígenas, o que, em suma, quer dizer que subsiste o déi cit. O número de professores indígenas formados não atende à demanda. Em algumas aldeias, os professores não formados não recebem por seu trabalho, apesar de que trabalham nas escolas.

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Formação Inicial e continuada de professores indígenas em nível médio (Magistério Indígena). Estes cursos têm, em média, a duração de cinco anos e são compostos, em sua grande parte, por etapas intensivas de ensino presencial (quando os professores indígenas deixam suas aldeias e, durante um mês, participam de atividades conjuntas em um centro de formação) e etapas de estudos autônomos, pesquisas e rel exão sobre a prática pedagógica nas aldeias. A SECAD/MEC oferece apoio técnico e i nanceiro para a realização dos cursos.

Formação de Professores Indígenas em Nível Superior – Licenciaturas Interculturais. O Ministério da Educação abriu edital para viabilizar a implementação de Cursos de Licenciatura Intercultural em Universidades públicas federais e estaduais. O objetivo principal é garantir educação escolar de qualidade e ampliar a oferta dos quatro anos i nais do Ensino Fundamental e implantar o Ensino Médio nas terras indígenas.

Além dessas ações, existe a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena – CNEEI, instância de participação, proposição e deliberação com relação às políticas de educação escolar indígena desenvolvida pelo MEC. Essa Comissão está formada por quinze representantes indígenas indicados por organizações indígenas de todas as regiões do País.

CONCLUSÕES

A interculturalidade pode ser entendida como uma proposta de consolidação democrática, mas a diversidade de entendimentos teóricos sobre esse paradigma ainda não se encontra rel etida no direito internacional dos direitos humanos. Especii camente, da perspectiva ético-jurídica, as fórmulas bastantes abstratas assumidas nos textos normativos internacionais deixam um espaço discricionário aos Estados, que deve se integrar através de propostas jus-políticas de caráter especíi co interno.

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No caso brasileiro, a análise dos documentos oi ciais e textos normativos indicam a ideia de interculturalidade como princípio para a convivência harmoniosa entre as diversas culturas indígenas e a cultura hegemônica nacional em um espaço público democrático interétnico. A participação da educação nesta proposta jus-política (a participação, portanto, da educação na interculturalidade) remete à ideia de preparar os cidadãos, indígenas ou não-indígenas, para essa convivência harmoniosa. A educação em direitos humanos é considerada central nesta proposta, mas, atualmente, mostra-se uma lacuna de pesquisas sobre a aplicação de ações de educação em direitos humanos nos programas de formação dos professores indígenas. Isso indica a necessidade de pesquisa nessa área.

É necessário destacar que, da perspectiva dos direitos humanos e dos direitos dos povos indígenas, não se dei ne especii camente o que se quer dizer com educação intercultural ou interculturalidade na educação no plano internacional, de forma que também se anuncia um espaço discricionário para a ação Estatal. No caso brasileiro, o princípio que fundamenta o paradigma intercultural na educação é o respeito à cultura e às formas tradicionais de produção e transmissão do conhecimento. Esta poderia ser dei nida como uma perspectiva mais metodológica da interculturalidade, no sentido de que pretende responder à pergunta: como respeitar a cultura na educação formal?

O direito à educação diferenciada para os povos indígenas surge dentro do contexto da rediscussão dos paradigmas sobre os direitos dos povos indígenas. Da ideia de integração e superação da condição diferenciada que regravam a relação entre o Estado e seus povos indígenas, passa-se ao respeito à diferença e aos objetivos daqueles para seu futuro e desenvolvimento.

Como se viu, a formação dos professores indígenas corresponde a um dos mais importantes pontos da política pública no que respeita à efetividade do direito dos povos indígenas à educação, já que se relaciona diretamente com o direito à participação dos povos interessados nas políticas

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públicas e ao dever de transferir a responsabilidade pela educação às comunidades interessadas.

A existência de um corpo docente preparado para ministrar aulas atento ao equilíbrio entre os conteúdos que contribuem para a participação da sociedade nacional e, ao mesmo tempo, a reprodução cultural – reai rmando ou redei nindo os objetivos internos de cada comunidade ou etnia – corresponde, na realidade, à própria possibilidade de optar pelo futuro e inserção digna na sociedade, respeitado, dessa forma, seu direito à própria cultura.

No que respeita à formação de professores, a política pública tem como um de seus pontos cruciais o equilíbrio entre o ensino bilíngue e o uso das técnicas tradicionais de transmissão do conhecimento. O ensino da língua materna é um dos elementos diferenciados da educação escolar indígena, de modo que é imprescindível que o professor seja de comunidade e tenha formação apropriada nas duas línguas (o português e a língua indígena). Não obstante, uma das principais reivindicações do povo guarani, que analisamos, é que a educação diferenciada não seja somente o ensino da língua materna, mas que inclua a forma de viver de cada povo. Esse, argumentamos, é parte de seu entendimento da ideia da interculturalidade e do bilinguismo.

O censo escolar do INEP/MEC de 2005 indica que a oferta de educação escolar indígena cresceu, especialmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Há que se perguntar, não obstante, se as taxas de matrícula indicam igualmente, um crescimento signii cativo em termos de recursos destinados à educação escolar indígena. Esses números, ao que parece, servem somente para enfeitar as estatísticas oi ciais, encobrindo com cores festivas uma realidade perversa (Bonin, 2006)19.

Há que se comentar, ainda, que o processo de expansão da oferta do Ensino Fundamental, que incluiu as comunidades

19 Iara Tatiana Bonin. Membro do CIMI e Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, 2006.

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indígenas e que se deu a partir da lei 9394/96 (LDBN) e do Plano Nacional de Educação de 2001, apresenta uma grande lacuna que carece de integração: a extensão da oferta de ensino médio e superior.

Os avanços obtidos nos últimos anos de oferta da educação escolar para os povos indígenas se devem especialmente à mobilização desses povos e das políticas de universalização do ensino básico no país. Outro ponto a ser destacado é o que diz respeito aos materiais didáticos especíi cos e as metodologias inovadoras que vêm ganhando espaço nas escolas indígenas de todo o país. Esse avanço deveria permitir que os povos indígenas pudessem escolher seus projetos pedagógicos e defender seus direitos e interesses.

Não obstante, para Berrantes (2007), o avanço quantitativo não foi acompanhado pela qualidade da escola indígena. De acordo com os dados preliminares levantados pela coordenação das organizações indígenas da Amazônia brasileira (COIAB), a grande parte das escolas indígenas na região Amazônica continua com antigos problemas, que vão desde a carência de alimentos e material escolar até a carência de prédios e professores qualii cados. Isso demonstra que existem problemas na gestão das políticas da educação escolar indígena.

Para Gersem Baniwa20, conselheiro na Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, a solução para a questão passa por dois caminhos: o desenvolvimento de mecanismos para o cumprimento da legislação vigente e de formas de participação e controle social, que respeitem, sobretudo, as formas próprias de organização dos povos indígenas, como encontros, assembleias, congressos, mobilizações, que podem combinar-se com formas mais institucionalizadas como conselhos e comissões.

20 Gersem é professor Baniwa, que lê, escreve e fala as línguas indígenas Baniwa e Nheengatué. Natural do Estado de Amazonas, e originário da etnia Baniwa, Gersem é graduado em Filosoi a pela Universidade Federal do Amazonas e mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília.

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Atualmente, não existe um modelo institucional que garanta a participação efetiva dos líderes indígenas no processo de formulação das políticas de educação escolar indígena. Os instrumentos desenvolvidos até o momento se mostram insui cientes, já que não existe espaço real para que as comunidades expressem suas demandas, que tomem parte da formulação dos programas e acompanhem as ações políticas que lhes dizem respeito, ainda que esse acompanhamento esteja garantido pelo Estado brasileiro no marco do Convênio 169 da OIT.

Há que criar-se condições para que os povos indígenas possam elaborar suas diretrizes curriculares; repensar o modelo físico da escola, para que estas respeitem a realidade, conhecimentos e a cultura de cada comunidade; a produção do material didático e especíi co para as escolas indígenas deve ser de autoria dos próprios indígenas e, por i m, deve-se garantir, na legislação, formas de participação e controle social nas políticas de educação escolar indígena, uma vez que o que se constata é que não se criaram órgãos ou modelos institucionais capazes de tornar efetivos os direitos educacionais indígenas.

É dever do governo federal brasileiro, por intermédio do MEC, dar o primeiro passo, instituindo o Conselho Nacional de Educação Escolar Indígena, como órgão regulamentar da política nacional de educação escolar indígena. É imprescindível, não obstante, que esse ato se realize com ampla participação de professores indígenas e outros atores relevantes na oferta da educação escolar indígena, de modo a propiciar a articulação mais efetiva dos sistemas de ensino, as universidades e as organizações de sociedade civil.

Os temas aqui levantados têm o objetivo de alimentar o debate, de forma que não se pretende que sejam exaustivos, mas que, ao contrário, indiquem áreas onde, no caso brasileiro, precisamos consolidar e construir conceitos. Ademais,

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identii camos pelo menos duas pautas de pesquisa que podem ser expressas nas seguintes perguntas:

A educação na interculturalidade: qual está sendo o papel das políticas educacionais na formação e consolidação do pretendido espaço público interétnico democrático?

A interculturalidade na Educação: como está sendo visto o papel das escolas nas comunidades a partir de sua função formativa nas culturas tradicionais?

A discussão e tentativa de resolver essas indagações podem revelar um cenário mais amplo e participativo para a interculturalidade no Brasil.

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Cora Augusto Martim – Professora da etnia Guarani, da Aldeia Krukutu, Parelheiros, São Paulo. Março de 2009.

Sergio Lira – Professor da etnia Guarani, da Aldeia Uruity, Miracatu, São Paulo. Abril de 2009

Sites Relacionados:

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http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf

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Vanessa Corsetti

Gonçalves Teixeira,

Eliana dos Santos

Costa Lana

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INTERCULTURALITY AND THE INDIFENOUS RIGHT OF EDUCATION - THE PUBLIC POLICY OF INTERCULTURAL FORMATION OF INDIGENOUS TEACHERS IN BRAZIL

AbstractIn this essay we have as our goal to discuss the interculturality proposed on the public policy of intercultural formation of indigenous teachers in Brazil. In the i rst part, we analyze the undisputed principals on the international system of indigenous rights, highlighting the importance to the consolidation of the indigenous right to education: (I) on the participating on decisions; (II) on respect to traditional knowledge and their means of transmission and (III) on indigenous populations’ autonomy in respect to their social and cultural goals and regarding their future generations. In the second part, bringing oi cial data and interviews with indigenous teachers trained by the intercultural education program at USP, we analyze the current state of this dimension in the process of consolidating the indigenous peoples’ right to education in Brazil. We conclude that despite the fact that specii c contents of the legislation are suitable to the duties assumed on the international level, they do not currently cater to the necessary elements to make ef ective the Brazilian indigenous peoples’ rights in regards to one of the core functions of education dei ned on CF-1988: citizenship formation and participation on the inter-ethnic public space.Key words: indigenous teacher formation; inclusion; interculturality.

Data de recebimento: março 2011Data de aceite: junho 2011