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Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação São Paulo - SP 05 a 09/09/2016 1 "It's just a naked woman!": Embates Sobre o Corpo Feminino, Artista Independente e Mídia de Massa 1 . Beatriz Azevedo Medeiros 2 Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ Resumo Este trabalho propõe uma análise das performances artísticas que se chocam com doutrinações da instituição cultural midiática, tendo como base a teoria de instituições disciplinares e a tese da disputa de poder em torno do corpo feminino. Utilizando a análise de gêneros musicais, o artigo contempla a resposta da musicista nova-iorquina Amanda Palmer, endereçada ao jornal Daily Mail, e performada posteriormente, após uma resenha sobre o seio exposto da cantora durante uma apresentação. Tendo em vista o caso relatado, pode-se admitir o envolvimento entre o corpo artístico e a mídia de massa como conflituoso, principalmente ao se tratar de um corpo feminino não sexualizado, que passa a ser alvo de críticas, pois é visto como um corpo não silenciado. Palavras-chave: corpo; performance; música; Amanda Palmer Introdução No dia 28 de junho de 2013, o jornal britânico Daily Mail publicou uma resenha sobre uma performance realizada pela musicista estadunidense Amanda Palmer no festival de música de Glastonbury. A matéria é aberta com a seguinte sentença: "She's never afraid to make a statement but Amanda Palmer made a bit of a boob of herself on stage at Glastonbury" 3 . Em seguida, o tabloide reporta como Palmer, no meio de sua apresentação, "permitiu" que seu seio "escapulisse" do sutiã, ficando à mostra. Enquanto tais tipos de matéria parecem ser recorrentes em meios de comunicação de massa, principalmente em jornais, revistas e websites voltadas para o universo das celebridades 4 , o Daily Mail provavelmente não previu o que uma reportagem que expunha o corpo de Palmer poderia gerar. Amanda Palmer não se coloca apenas como uma artista musical, mas também como uma performer. Durante anos, a cantora se engajou em causas relacionadas ao movimento 1 Trabalho apresentado no GP de Comunicação, Música e Entretenimento, XVI Encontro de Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, email: [email protected] 3 "Ela nunca tem medo de fazer uma declaração mas Amanda Palmer embaraçou a si mesma no palco em Glastonbury" [tradução livre]. Link: <http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-2351373/Making-boob-Amanda-Palmers-breast- escapes-bra-performs-stage-Glastonbury.html>, último acesso 28/06/2016. 4 Vide: <http://br.eonline.com/enews/dianna-agron-paga-peitinho-em-evento-de-gala/> e < http://hypervocal.com/news/2012/hathaway-crotch-questions-today/>, último acesso: 09/07/2016.

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

1

"It's just a naked woman!": Embates Sobre o Corpo Feminino, Artista Independente e

Mídia de Massa1.

Beatriz Azevedo Medeiros2

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ

Resumo

Este trabalho propõe uma análise das performances artísticas que se chocam com

doutrinações da instituição cultural midiática, tendo como base a teoria de instituições

disciplinares e a tese da disputa de poder em torno do corpo feminino. Utilizando a análise

de gêneros musicais, o artigo contempla a resposta da musicista nova-iorquina Amanda

Palmer, endereçada ao jornal Daily Mail, e performada posteriormente, após uma resenha

sobre o seio exposto da cantora durante uma apresentação. Tendo em vista o caso relatado,

pode-se admitir o envolvimento entre o corpo artístico e a mídia de massa como

conflituoso, principalmente ao se tratar de um corpo feminino não sexualizado, que passa a

ser alvo de críticas, pois é visto como um corpo não silenciado.

Palavras-chave: corpo; performance; música; Amanda Palmer

Introdução

No dia 28 de junho de 2013, o jornal britânico Daily Mail publicou uma resenha

sobre uma performance realizada pela musicista estadunidense Amanda Palmer no festival

de música de Glastonbury. A matéria é aberta com a seguinte sentença: "She's never afraid

to make a statement but Amanda Palmer made a bit of a boob of herself on stage at

Glastonbury"3. Em seguida, o tabloide reporta como Palmer, no meio de sua apresentação,

"permitiu" que seu seio "escapulisse" do sutiã, ficando à mostra. Enquanto tais tipos de

matéria parecem ser recorrentes em meios de comunicação de massa, principalmente em

jornais, revistas e websites voltadas para o universo das celebridades4, o Daily Mail

provavelmente não previu o que uma reportagem que expunha o corpo de Palmer poderia

gerar.

Amanda Palmer não se coloca apenas como uma artista musical, mas também como

uma performer. Durante anos, a cantora se engajou em causas relacionadas ao movimento

1 Trabalho apresentado no GP de Comunicação, Música e Entretenimento, XVI Encontro de Grupos de Pesquisa em

Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, email: [email protected]

3 "Ela nunca tem medo de fazer uma declaração mas Amanda Palmer embaraçou a si mesma no palco em Glastonbury"

[tradução livre]. Link: <http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-2351373/Making-boob-Amanda-Palmers-breast-

escapes-bra-performs-stage-Glastonbury.html>, último acesso 28/06/2016. 4Vide: <http://br.eonline.com/enews/dianna-agron-paga-peitinho-em-evento-de-gala/> e < http://hypervocal.com/news/2012/hathaway-crotch-questions-today/>, último acesso: 09/07/2016.

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feminista, visando certa liberdade tanto da exposição do corpo feminino quanto artística,

para produzir músicas sem depender necessariamente de uma major5. Iniciando sua carreira

musical aos 24 anos de idade, Amanda Palmer se uniu ao baterista Brian Viglione6 e ambos

criaram o duo The Dresden Dolls, que ficou conhecido pelos seus rostos pintados como os

de mímicos e figurinos que ofereciam um tom teatral às performances. Além disso, Palmer

e Viglione carregavam suas composições líricas com temáticas favoráveis à liberdade

sexual, principalmente a feminina.

Esse início de carreira com o Dresden Dolls já mostrava todo o incômodo que

Amanda Palmer tinha quanto a imposições feitas pelo que poderíamos chamar de uma

"moral burguesa" (SIBILIA, 2014, p. 8), principalmente com relação ao seu corpo. No

entanto, foi apenas com sua carreira solo que Palmer conseguiu efetivamente expor sua

indignação de forma mais artística. Seu primeiro álbum sem Viglione, Who Killed Amanda

Palmer?, lançado em 2008, teve um conceito peculiar. Amanda tirou diversas fotos em

locais aleatórios, simulando assassinatos de si mesma – que poderiam vir a ser suicídios, ou

não. Tal performance engendrou uma notável participação do público, que ofereceu uma

visibilidade representativa para Palmer e seu álbum (POTTS, 2012). A partir deste

momento, Amanda se viu cada vez menos necessitada da gravadora da qual fazia parte

desde a época do Dresden Dolls, a Roadrunner Records. Ela conseguiu fidelizar um nicho

de fãs online de tamanho representativo. Tais fãs inclusive auxiliaram no lançamento do

segundo álbum da artista, o Theater is Evil, considerado um sucesso do crowdfunding na

plataforma Kickstarter7.

Amanda Palmer, após se desligar da gravadora e lançar um segundo álbum com a

ajuda do público, ficou conhecida por suas práticas "Do It Yourself" (POTTS, 2012, p.

361), ou, traduzindo literalmente, "faça você mesmo", que é um termo que se popularizou

nos anos 1970 com o crescente movimento Punk. O termo segue uma espécie de ideologia

que incentiva a independência do sujeito em relação ao sistema em vigência, ou às grandes

corporações e massificações culturais (MORAN, 2011). Atualmente, a cultura Do It

Yourself (D.I.Y.) poderia ser lida como a busca da independência que artistas musicais, por

exemplo, procuram ao se distanciarem de majors ou da super exposição em mídias de

massa consolidadas, como jornais e revistas de grande circulação. Amanda Palmer acredita

5 Gravadoras e/ou produtoras de artistas musicais que visam grandes vendas e popularização daqueles que agenciam. 6 Atualmente, Viglione trabalha como baterista na banda Scarlet Sails. 7 Mais informações em: <http://www.fastcocreate.com/1681569/deep-inside-amanda-palmers-crowd-powered-naked-

creativity-machine> e <https://www.kickstarter.com/projects/amandapalmer/amanda-palmer-the-new-record-art-book-

and-tour>, último acesso: 28/06/2016.

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nessa ideologia. Ela não apenas ela se desliga de grandes gravadoras, como se porta de

forma diferenciada com relação ao público e à própria mídia, muitas vezes causando

polêmicas para defender seus valores pessoais. Em diversas ocasiões utiliza sua visibilidade

para promover causas e pessoas8 nas quais acredita, sem, aparentemente, se preocupar com

a repercussão que isso pode gerar em relação ao seu próprio público.

A equidade de gênero mostra-se como uma das causas em que a artista mais se

engaja. Declaradamente feminista, Palmer fica nua em apresentações públicas, bem como

em vídeo clipes e em fotos compartilhadas pela mesma em seus Sites de Redes Sociais. Ela

explica em uma entrevista dizendo: "It’s not about sexiness. It’s not even about nakedness.

It really makes people think about what the rules are and why they’re following them."9.

Um questionamento que a cantora recorrentemente levanta para seu público é justamente o

motivo da vergonha de verem corpos nus, sobretudo corpos de mulheres nuas, que se expõe

com todos os seus detalhes e – como ela – não se preocupam em seguir hábitos estéticos

socialmente entendidos como agradáveis10

.

Após a resenha publicada pelo Daily Mail, na qual este não fala em momento algum

sobre a performance que estava acontecendo no palco, mas decide focar no seio exposto de

Palmer, a cantora produziu uma carta resposta, que foi posteriormente musicada e cantada

em um show para o jornal inglês. No conteúdo da carta, Amanda Palmer denuncia o Daily

Mail pela sua escolha de conteúdo jornalístico, mas não se atém a apenas isso. Ela também

denuncia a própria sociedade, que, segundo a musicista, objetifica o corpo feminino,

impedindo-o de ser exposto se não de forma sexualizada.

Tal ação de Palmer remete ao movimento Riot Grrrl, que surgiu dentro da cena

Punk, com o objetivo de denunciar as práticas machistas sociais, que privilegiam o gênero

masculino, fazendo das mulheres meras espectadoras, ou panos de fundo de acontecimentos

histórico-sociais. As bandas do movimento Riot compõem músicas com conteúdos

políticos, mas focando na questão dos problemas de gênero. Seguindo a lógica Punk do

D.I.Y., a cena feminista apresenta uma instrumentalização pouco complexa, tendo as letras

8 Nesse ano (2016), durante a época da primeira fase das eleições estadunidenses, Amanda Palmer se aliou ao candidato

democrata Bernie Sanders. A cantora fez vídeos, postou votos e chamou seus seguidores para votar, ressaltando seu

candidato escolhido. Ela inclusive realizou um show para levantar fundos para a campanha do senador. Vide: < http://www.stereogum.com/1870702/michael-stipe-miley-cyrus-amanda-palmer-sean-lennon-other-artists-endorse-bernie-

sanders-in-new-video/video/>, último acesso: 09/07/2016. 9 "Não é sobre ser sexy. Não é, nem mesmo, sobre ser estar nua. Na realidade, isso deixa as pessoas pensando sobre quais

são as regras e porque [elas] as seguem." (nossa tradução). Declaração dada em entrevista ao site Austin Chronicle.

Disponível em: <http://www.austinchronicle.com/daily/music/2012-09-14/the-naked-authenticity-of-amanda-palmer/>,

último acesso: 28/06/2016. 10 Amanda Palmer não depila suas axilas ou área pubiana, o que gera debates enormes entre haters e fãs da artista, sendo

feministas ou não.

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como foco principal. É entendido que são nelas que estão incutidas as mensagens de

protesto e essas músicas devem ser tocadas e entendidas por quem desejar (BODANSKY,

2013).

Defendemos neste trabalho a inclusão de Amanda Palmer no Riot Grrrl, tendo em

vista o histórico da artista e o propósito da carta analisada. Acreditamos que os embates

ideológicos e os protestos que a artista promove partem da premissa dela estar inserida

dentro do movimento feminista Punk Riot Grrrl, movimento este que tenta se desligar da

massificação midiática tradicional, pois tem como objetivo desfazer construções sociais que

diminuem a existência feminina (BODANSKY, 2013). Para tal defesa, utilizaremos a

análise de gêneros musicais (JANOTTI JR., 2004), complementando a pesquisa com as

linhas teóricas dos Estudos de Performance, corpo e Estudos Feministas.

Sobre performance

A performance neste trabalho se mostrará como uma variante importante para ser

analisada, já que é através dela que Palmer passa sua mensagem. Para Butler (1988), a

"performatividade" faz parte da representação da identidade do sujeito a partir do momento

em que ele acredita na ação que realiza, assim como esta é creditada por terceiros

(BUTLER, 1988, p. 520). Para ser acreditada, a performance precisa não apenas ser

assistida, mas entendida como tal, mesmo que as interpretações variem de receptor para

receptor (SCHECHNER, 2006; ZUMTHOR, 2000). Portanto, a presença de um público que

compreenda a performance, basta para que a mesma seja passível de existência.

Richard Schechner irá concordar com Butler ao afirmar que: "Performances marcam

identidades, dobram o tempo, remodulam e adornam o corpo" (2006, p. 28), ou seja fazem

parte da construção do sujeito e de sua própria identidade. Paul Zumthor (2000) irá afirmar

que a performance está entrelaçada com a prática e a forma comunicacional. O autor não se

aprofunda no mérito da performance como um componente importante para a construção da

identidade, mas irá concordar com Butler e Schechner ao dizer que as ações performáticas

são vivas, pois fazem parte do "corpo vivo" (ZUMTHOR, 2000, p. 31), ou seja, estão em

constante mudança conforme são interpretadas de formas diferenciadas, todas as vezes que

o performer as realiza. O significado de uma performance nunca é fixo, mas complexo e

fluido.

As performances também serão entendidas como precursoras de afetações, não

apenas em quem as assiste, mas também em quem as realiza. Schechner (2006), citando

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Goffman, irá afirmar que uma performance "serve para influenciar de qualquer maneira

qualquer um dos participantes" (p. 29). Ou seja, não existe no ideário performático,

nenhuma ação que não influencie quem faz parte dela – seja como emissor, seja como

receptor da mensagem. Ainda segundo Schechner, a performance necessariamente irá afetar

seus participantes, seja para entreter ou para "formar ou modificar uma identidade"

(SCHECHNER, 2006, p. 46). A performance tem como objetivo causar algo em –

principalmente – quem a assiste, seja choque ou maravilhamento. Zumthor (2000) irá

correlacionar a performance a um texto que influencia por completo não apenas o receptor,

mas o próprio emissor. Para o autor, a "performance, de qualquer jeito, modifica o

conhecimento" (ZUMTHOR, 2000, p. 32), ou seja, ela sempre surte uma influência na

própria mensagem que é comunicada, marcando-a, produzindo significado. Por isso, o autor

também entende a performance como algo vivo, em constante mudança, uma influenciadora

de afetações naqueles com que ela se envolvem.

Com isso, entendemos que as performances – sejam artísticas, sejam cotidianas –

são parte representativas do próprio ser humano. Elas integram aquilo em que as pessoas

acreditam e desejam que outros acreditem. Amanda Palmer, quando constrói sua

performance de forma impactante, realizando ações para afetar o público que a assiste,

constrói sua própria identidade. Quando ela se coloca como uma feminista, produzindo um

tipo de música acessível e que denuncia práticas de opressão do corpo feminino, ela expõe

sua performance como integrante da cena Riot Grrrl, cumprindo as categorizações

simbólicas desse cenário, inclusive ao ir de encontro à mídia de massa tradicional.

Corpo (feminino) e suas disputas

O corpo, atentado através da lente da performance, pode ser entendido como um

"dispositivo contemporâneo" que inspira representações e afetividades, principalmente se

este corpo se vê presente nos meandros das mídias de massa ou da Indústria Cultural

(GARCIA, 2005). Sendo uma artista performática, Amanda Palmer tenta transformar seu

próprio corpo em peça ou ferramenta de inspiração artística. Ao ficar nua e permitir que seu

público a risque – sendo essa uma forma de intervenção comum em peças como as da

artista contemporânea Marina Abramović – deseja demonstrar que existe nela mesma a

confiança em seu próprio público (PALMER, 2015). Palmer revisita a forma de arte

performática iniciada nos anos 70 e conhecida como happenings, que tinham como objetivo

estimular o pensamento crítico a partir de atos artísticos impactantes (SALGADO, 2013).

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Judith Butler (1990) irá colocar o corpo como parte fundamental da edificação da

identidade do sujeito. O poder da performance, ou ato performativo, estaria ligado a como o

corpo trabalha em conjunto com a palavra, chegando à capacidade de subverter as leis

paternalistas vigentes na sociedade e influenciando a identidade do sujeito, assim como os

atos performativos são influenciados pela identidade já existente. Percebe-se, portanto, que

este trabalho segue a vertente que enxerga a "ordem natural" imposta socialmente como a

ordem da lei paternalista, que privilegia o posicionamento masculino na sociedade, mas que

oferece bases para disputas de discurso entre gêneros e questionamentos, iniciados

principalmente pela parcela feminina da sociedade (LIMA COSTA, 2002).

Butler (1990) ainda afirma que o corpo sempre "antecipa algum significado que

pode ser atribuído somente pela consciência transcendente" (p. 129, nossa tradução), ou

seja, o corpo só irá representar expectativas e entendimentos já constituídos socialmente

pelo que é entendido como "senso comum". Antes da resposta de Amanda Palmer para o

Daily Mail, compreendemos que a matéria cobriu a exposição do torso nu de uma mulher.

Na diferenciação de gênero, e pela construção cultural, o corpo exposto masculino não

representaria um escândalo tão grande quanto o corpo exposto feminino, como vemos

acontecer de forma recorrente.

De fato, esta construção não é um movimento apenas midiático, mas algo

socialmente recorrente. A ação de transformar o corpo – e principalmente, o corpo feminino

– em algo perfeito aos olhos da sociedade, remontam à Idade Média, quando o corpo

feminino exposto passa a ser enxergado como algo impuro, não digno de ser visto no

âmbito público, "indecente". Esta noção parte da pesquisadora Paula Sibilia, ao questionar

quando o corpo feminino nu começa a ser visto como obsceno (2014). Sibilia resgata

imagens sacras, como A Virgem do Leite, que tinham seus seios expostos em quadros ao

longo da Idade Média. Após a Reforma Luterana e o Concílio de Trento, os seios de santas

passam a ser censurados com a prerrogativa da obscenidade. Chamando essas mudanças de

"processos de secularização" e "erotização" (SIBILIA, 2014, p. 41), a representação de

corpo feminino é encoberta com a justificava de evitar o desejo e o olhar masculinizado da

sociedade que ditava aquele corpo como "indecente", impróprio aos olhos públicos.

Ainda utilizando a pesquisadora, em um outro texto, Sibilia (2014) irá afirmar que o

incômodo com o corpo contemporâneo exposto se dá justamente no corpo sem os efeitos de

ferramentas de aprimoramento de imagens, como o Photoshop. Ou seja, o nu "espontâneo"

e "natural", sem que ele tenha, necessariamente, o objetivo da sexualização.

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Michelle Perrot (2003) traz uma outra perspectiva quanto ao "silenciamento" do

corpo feminino. A pesquisadora revê a modernidade e como o corpo feminino era

representado e estudado por artistas, poetas, médicos e políticos. No entanto, aquele corpo

era quase sempre "assimilado à função anônima" (PERROT, 2003, p. 13). Esta seria a

primeira instância do silêncio imposto ao feminino, os homens que expunham o corpo

feminino sob a perspectiva masculina, negligenciando a representatividade necessária da

mulher. A autora irá trabalhar com a ideia do corpo público e o corpo privado. O corpo

público seria aquele que se mostra, mas nunca se expressa, amarrado e moldado para os

olhos da sociedade. "No palco do teatro, nos muros da cidade, a mulher é o espetáculo do

homem." (PERROT, 2003, p. 14). O corpo privado é o corpo que ninguém vê, oculto,

portanto não real. O corpo feminino exposto e calado é o ideal. A partir do momento em

que este corpo adquire voz e exprime o que deseja, há o repúdio e o rechaço; a segunda

instância do silêncio imposto.

Diferentemente de Sibilia (2014), Perrot (2003) entende a censura como existente

puramente para impedir a "voz" feminina. A censura não se dará somente na exposição do

corpo, mas no próprio discurso. O que percebemos no caso da carta/música "Dear Daily

Mail" é a disputa pelo poder de representação do corpo feminino e seu direito de

"liberdade" ou a imposição pelo "recatado"11

. Tais disputas mostram-se recorrentes na cena

de Punk Riot Grrrl.

"Dear Daily Mail"12

, a análise

Para atestar nossa teoria que inclui Amanda Palmer no movimento Riot, usaremos a

análise de gêneros musicais utilizando como base teórica o pesquisador Jedder Janotti Jr.

(2004). A utilização do mesmo se dá pela eficiência com que discute autores igualmente

importantes, sendo eles Simon Frith e David Brackett, salvando certo espaço nesse trabalho

para a análise efetiva. Iniciaremos a observação com as chamadas regras de gêneros, sendo

elas:

Regras econômicas (direcionamento e apropriações culturais), regras semióticas

(estratégias de produção de sentido inscritas nos produtos musicais) e regras

técnicas e formais (que envolvem a produção e a recepção musical em sentido

estrito) (JANOTTI JR, 2004, p. 192)

11 Compreendemos que esses dois conceitos mostram-se problemáticos a partir do momento em que se ponderam os

conceitos de liberdade ou recato. Esses termos terão significados diferenciados conforme se diversificam questões como

construção histórico-social, econômica, moral vigente, etc. 12 A letra da música está disponível em: <http://blog.amandapalmer.net/20130713/>. A carta musicada está disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=OiAffX0x04k>. Último acesso: 11/07/2016

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Entendemos que Palmer oferece material suficiente para cumprir os requesitos das

regras citadas acima. Entendemos, também, que a contextualização histórica e social se

mostrará um dos fatores de maior relevância, nesse caso, portanto nossa maior atenção para

tal elemento.

Por aparentar certa condição e defesa de uma ideia de autenticidade (PALMER,

2015; POTTS, 2012), é comum que Amanda Palmer inclua em suas composições conteúdos

autobiográficos. Isso se faz presente em "Dear Daily Mail", não apenas pela situação em

que foi composta, mas pela própria construção de identidade da artista. Tal característica

também se aparece no movimento Riot Grrrl, um dos primeiros indícios de similaridade

entre a artista e o movimento.

dear daily mail,13

it has come to my recent attention

that my recent appearance at glastonbury festivals kindly received a mention

(PALMER, 2013)14

A carta musical de Palmer é introduzida com a estrofe acima, uma contextualização

do evento que acarretou em sua resposta. A artista se utiliza da ironia – o riso feminino, tão

repudiado pela sociedade patriarcal, segundo Perrot (2003) – ao escolher, com cuidado, as

palavras que empregaria inicialmente em seu discurso. "Querido Daily Mail" e

"gentilmente" foram expressões escolhidas previamente, como se a cantora estivesse se

referindo a um conhecido, quem sabe um amigo. Essa percepção é quebrada nas palavras

seguintes da música:

i was doing a number of things on that stage up to and including singing songs

but you choose to ignore that and instead you published a feature review of my

boob

(...)

there's a thing called a search engine: use it!

if you'd googled my tits in advance you'd found that your photos are hardly

exclusive (PALMER, 2013, grifo nosso)15

Percebemos a utilização de um "tom" – se é que esse termo é passível de utilização

para referenciar textos escritos –, com o objetivo de causar impacto. Ao dizer "existe uma

coisa chamada ferramenta de pesquisa: use-a!", poderíamos entender que Amanda Palmer

desafia a inteligência do Daily Mail, já que parte do princípio de que o jornal possui certo

conhecimento de como utilizar ferramentas disponíveis online, levando em conta que ele

13 O não uso de letras maiúsculas no início das sentenças, ou pontuação a final das mesmas, foi uma escolha que a artista

fez ao postar a letra da música em seu blog.

14 "querido daily mail/chegou à minha atenção recentemente/que minha recente aparência no festival de glastonbury

gentilmente recebeu uma menção" (nossa tradução) 15 "eu estava fazendo um número de coisas no palco inclusive cantando músicas/mas você decidiu ignorar isso e publicou

uma crítica sobre o meu peito/(...)/existe uma coisa chamada ferramenta de pesquisa: use!/ se você pesquisasse as minhas

tetas anteriormente veria que suas fotos não são exclusivas" (nossa tradução, grifo nosso)

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possui um site próprio e contas em Sites de Redes Sociais como Facebook, Twitter, entre

outros.

Tal enfrentamento de Palmer poderia ser categorizado como algo presente dentro da

cena Riot Grrrl. Segundo Rachel Bodansky (2013), o movimento Punk feminista escolheu

se retirar da mídia tradicional, optando por alcançar um número menor de meninas, mas

valorizando as mídias alternativas e o processo de D.I.Y. Além disso, o enfrentamento à

mídia de massa era algo recorrente para artistas do movimento, como por exemplo a ex-

vocalista da Bikini Kill, Kathleen Hanna. Ela confrontava o público com suas letras16

, bem

como possuía um histórico de desentendimento com a mídia popular, principalmente

jornais e revistas que insistiam em "desvendar" sua história pessoal, algo que a incomodava

profundamente (PUNK..., 2013).

Um outro trecho muito interessante para ser analisado é o seguinte:

it's so sad what you tabloids are doing

your focus on debasing women's appearances ruins our species of humans

but a rag is a rag, and far be it from me to go censoring anyone OH NO

(PALMER, 2013)17

Nesse momento, Amanda Palmer levanta uma conscientização sobre o papel que

fazem os meios de mídia massiva – entendidos como meios tradicionais – ao "rebaixar a

aparência das mulheres" e como isso as degrada. Entende-se a mídia tradicional como uma

repercussora de discursos maculados com a lógica do moralismo vigente; um moralismo

que remonta padronizações de censura do corpo feminino, iniciado no início da

modernidade e ainda reforçado atualmente, mesmo que com diferentes formas de crítica

(SIBILIA, 2014). Palmer se queixa justamente dessa moralização sobre os corpos femininos

"reais" como ela irá, mais tarde, ressaltar em seu livro auto-biográfico A Arte de Pedir

(2015), ou seja, os corpos com "imperfeições", sem estarem previamente padronizados

através de programas de edição de imagens, como Photoshop, corpos expostos de forma

natural, que não buscam o "olhar 'pornificador'" (SIBILIA, 2014, p. 16) da sociedade

contemporânea.

Ainda nessa estrofe, um detalhe que nos chama a atenção é o fato do início da

problematização que Palmer dá quanto à censura da crítica a partir do sujeito feminino.

Mesmo não discorrendo sobre tal minúcia, o fato da cantora utilizar a ironia para dizer que

tudo bem falarem do corpo dela, contanto que ela não julgue ninguém por isso, mostra-se

16 Um exemplo é a letra de "Alien She" que possui o refrão: "Feminista/ Sapatão puta/ Eu sou tão bonita/ Alienada" (nossa

tradução). Disponível em: <http://www.lyricsfreak.com/b/bikini+kill/alien+she_20017746.html>, último acesso:

11/07/2016 17 "é tão triste o que vocês, tabloides, andam fazendo/seu foco em rebaixar a aparência das mulheres arruína nossa espécie

humana/mas tanto faz, e que eu não vá censurando ninguém por aí, oh não" (nossa tradução).

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bem emblemático não apenas para servir de ilustração da primeira e segunda instâncias do

silenciamento feminino citada por Perrot (2003), o impedimento da representatividade

feminina perante seu próprio gênero, esse trecho também remonta a uma das críticas

presentes no Riot Grrrl: a do silenciamento de mulheres em shows. Silenciamento este, que

era respondido por bandas como Bikini Kill, que chamavam as jovens presentes em seus

concertos para a frente do palco, enquanto os homens deveriam se posicionar ao fundo das

casas de show (BODANSKY, 2013; PUNK..., 2013).

O choque mostrou-se algo importante na estruturação do movimento Riot. Segundo

Rachel Bodansky, "elas chocavam e deixavam pessoas desconfortáveis, porque estavam

desafiando normas de gênero convencionais" (2013, p. 39, nossa tradução). O valor do

choque é algo estimado na cultura Punk (MORAN, 2011) e foi abarcado com a mesma

intensidade pelo Riot Grrrl. É possível dizer que o choque chama atenção para o que está

sendo dito pelo emissor, e este será um artifício utilizado por Amanda Palmer ao longo de

sua carreira. Na performance de Dear Daily Mail, esse fato não se faz insólito. A artista fica

nua diante do público, enquanto toca e canta sua carta, para provar que seu seio não tem

vontade própria, mas ela mesma a possui, e o fato de ter o corpo exposto não a incomoda

como a moral dita que deveria.

Figura 1: Amanda Palmer fica nua na performance de "Dear Daily Mail"

Fonte: Tumblr Scribomaniac18

Amanda fica nua nesta performance para provar um ponto. Como já explicou em

entrevista, ela deseja chamar atenção para aquilo que está sendo dito por ela. Nesse

momento, o que ela quer dizer é que não importa qual parte do corpo ela deixa à mostra,

18 Disponível em: <https://scribomaniac.wordpress.com/2013/11/11/blah-blah-blah-gender-shit-nsfw/>, último acesso:

13/07/2016

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isso não é motivo de vergonha. Palmer busca, portanto, uma despornificação do olhar

midiático (SIBILIA, 2014), e critica o Daily Mail não só por não fazê-lo, mas por

repreender quem não se importa com aquilo. Uma atitude que reflete o embate com a mídia,

como já ressaltamos anteriormente.

Por fim, Amanda Palmer expressa exatamente aquilo que entende por ser o Daily

Mail

you misogynist pile of twats

i'm tired of these baby bumps, vadge flashes, muffintops19

where are the newsworthy COCKS? (PALMER, 2013)20

E complementa, ressaltando uma verdade, mas sem perder o tom irônico que a

música contempla:

if iggy or jagger or bowie go topless the news barely causes a ripple

blah bla blah feminist bla blah blah gender shit blah blah blah

OH MY GOD A NIPPLE (PALMER, 2013)21

Esses dois trechos, já quase no final da carta/música, parecem ser os mais

"empoderadores" no sentido de confronto direto àquilo que Palmer entende como

problemático no discurso jornalístico do Daily Mail. Ao ofender o jornal britânico,

chamando-o de "pilha de misóginos babacas", Amanda parece expor toda a raiva pessoal

que sente. Até então, a cantora não havia utilizado palavras propriamente ofensivas para

atingir o meio de comunicação, ela parece satisfeita fazendo uso apenas da ironia. E de fato,

esse será o único momento em que a artista usará uma palavra efetivamente hostil.

De qualquer forma, esse trecho pode ser comparado a muitas músicas de bandas

Riot Grrrl. Além disso, a comparação entre gêneros também é uma abordagem comum na

cena. A busca nesse momento, aparentemente, é de um confronto direto entre artista e mídia

de massa através da música, remontando práticas do movimento Punk, como aponta

Bodansky (2013, p. 39).

Por fim, ainda se tratando do poder midiático, Amanda Palmer canta o seguinte

trecho quase ao final da música/carta: "but thanks to the internet people all over the world

you can enjoy this discourse" (PALMER, 2013)22

. Enxergamos aqui o reconhecimento que

a cantora oferece ao poder da mídia alternativa, à internet, da mesma forma que as

19 Termos populares utilizados, geralmente quando uma mulher deixa alguma parte do corpo à mostra. Poderia ser

traduzido como "pagar peitinho", "pagar pepeca", ou variações. 20 "sua pilha de misóginos babacas/estou cansada desses baby bumps, vadge flashes, muffintops/onde estão os pintos

interessantes?" (nossa tradução, grifo nosso) 21 "se iggy [Pop] ou [Mick] jagger ou [David] bowie ficam sem blusa as notícias mal fazem um murmúrio/ blá blá blá

feminista blá blá blá merda de gênero blá blá blá/ OH MEU DEUS UM MAMILO" (nossa tradução). 22 "mas graças às pessoas da internet vocês conseguem aproveitar esse discurso" (nossa tradução).

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integrantes do Riot Grrrl fazem com zines23

e também com as ferramentas da web como

blogs, quando migraram para o meio digital. Nessa afirmação, a artista demonstra que não

necessita de um representante da mídia de massa como o Daily Mail para sua auto

promoção (isso também se faz presente quando, antes de começar a performance, ela pede

para que os presentes no concerto gravem o show naquele momento com suas câmeras ou

celulares e depois postem os vídeos produzidos), mas ainda assim repudia o fato do jornal

ter dado um foco depreciativo à ela, mostrando que compreende que esse tipo de mídia

também vem a ser um formador de opinião pública.

Assim como as feministas Punk do Riot Grrrl, Palmer compreende a importância da

mídia de massa, mas prefere "perambular" por meios mais alternativos, talvez para se

blindar de certo moralismo secularizado e ganhar uma suposta "liberdade", como fizeram as

integrantes do movimento previamente citado o (PUNK..., 2013).

Conclusão

Após a performance da carta/música, o Daily Mail não respondeu ou mencionou

Palmer e o caso. No entanto, alguns vídeos da apresentação foram gravados e bastante

replicados, com mais de 1.200.000 visualizações, 1.700 compartilhamentos e 4.200

"curtidas"24

, dando a entender que a mensagem proposta pela cantora foi de fato passada e

entendida enquanto performance. Além disso, conseguimos encontrar algumas postagens

em blogs pessoais de pessoas concordando, ou não, com a ação realizada por Palmer, o que,

na percepção da presente análise, prova que o conflito entre artista e mídia de massa é algo

real e reconhecido pelo próprio público, alvo de ambos os emissores. Tal conflito mostra-se

ainda mais característico quando se trata das relações problemáticas existentes entre o corpo

feminino e a sociedade com sua moral vigente.

O conflito no entorno do corpo feminino e da mídia ainda se mostra vigente, pois é

recorrente o julgamento moral de corpos (femininos) expostos ao acaso. Tal arbitrariedade

perpassa pela construção social de juízo de valor que dita que um corpo pode ser exposto,

desde que seja "magro, bonito e bronzeado" (FOUCAULT, 1979, p. 147), podendo essa

prerrogativa ser complementada por corpos constituídos para olhares sexualizados e

voltados para o público masculino. A presente análise demonstra que meios de veiculação

de massa, como o próprio Daily Mail, também ressaltam tais padrões de exposição do corpo

23 Revistas de circulação na cena punk (e subsequentemente, na Riot Grrrl) que eram produzidas através do sistema D.I.Y.

para promover mensagens, bandas, músicas e ideologias (BODANSKY, 2013; MORAN, 2013). 24 Segundo as estatísticas do site de vídeos Youtube, presentes na página do vídeo utilizado. Link de acesso: <

https://www.youtube.com/watch?v=OiAffX0x04k&list=RDOiAffX0x04k#t=2>.

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feminino, o que pode causar certo incômodo em artistas como Palmer, engendrando

produções artísticas com o intuito da disputa pelo poder de ser ouvida, bem como a disputa

para a visibilidade de si mesma.

Tais embates não são engendrados aleatoriamente. Entendendo a importância dessas

disputas dentro do âmbito social, não é surpresa quando a mesma se faz em outros

segmentos e setores culturais. O movimento Riot Grrrl cumpriu e ainda cumpre esse papel,

mas ele se expande para além da lógica do gênero musical Punk, abarcando outros artistas,

como Amanda Palmer, que se entendem – por rótulos mercadológicos – mais inseridos

dentro de gêneros ligados ao pop ou a outros estilos ainda por serem definidos (POTTS,

2013).

O que se mostra em jogo nesse momento é justamente o desejo de poder por ambas

as partes, o jornal britânico, que deseja salientar moralismos sociais já impostos e lucrar ao

publicar uma matéria que gera "polêmica" por reproduzir moralismos sociais, e a artista

estadunidense, que deseja possuir a autonomia total de seu corpo – exposto ou não – sem se

preocupar com momentos reportados como "vergonhosos". Amanda Palmer coloca-se,

portanto, como transgressora feminista – título muitas vezes cedido, também, às integrantes

do Riot Grrrl – para gerar uma autopromoção caucada na lógica de "autenticidade".

Disputar o discurso com um meio de comunicação de massa "tradicionalista" como o Daily

Mail oferece a oportunidade de legitimação desse papel social, focalizando a atenção no

grupo o qual ela deseja estar inserida.

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