Íntegra da ação civil pública

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria da República na Paraíba Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão EXMO. SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA __ VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DA PARAÍBA. REF. : PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO MPF Nº. 1.24.000.001421/2014-74 JGBS Nº. /2014 - MPF/PR/PB O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL , por intermédio do Procurador da República abaixo subscrito, no exercício das suas atribuições constitucionais e legais (arts. 129, incs. II e III, da Constituição Federal e 5º, da Lei Nº. 7.347/1985), vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA em face da: UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citada no endereço Avenida Maximiano Figueiredo, N°. 404, Centro, CEP 58.013-470, João Pessoa- PB e da AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA) , autarquia federal, vinculada ao Ministério da Saúde, inscrita no CNPJ sob o número 031.123.386/0001-11, com sede no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), Trecho 05, Área Especial, Lote 200, Guará, Brasília-DF, CEP 71205-050, com lastro nos fatos e fundamentos a seguir:

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Page 1: Íntegra da Ação Civil Pública

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALProcuradoria da República na Paraíba

Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão

EXMO. SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA __ VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DA PARAÍBA.

REF. : PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO MPF Nº. 1.24.000.001421/2014-74 JGBS Nº. /2014 - MPF/PR/PB

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República abaixo subscrito, no exercício das suas atribuições constitucionais e legais (arts. 129, incs. II e III, da Constituição Federal e 5º, da Lei Nº. 7.347/1985), vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA

em face da:

UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citada no endereço Avenida Maximiano Figueiredo, N°. 404, Centro, CEP 58.013-470, João Pessoa-PB e da

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA), autarquia federal, vinculada ao Ministério da Saúde, inscrita no CNPJ sob o número 031.123.386/0001-11, com sede no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), Trecho 05, Área Especial, Lote 200, Guará, Brasília-DF, CEP 71205-050,

com lastro nos fatos e fundamentos a seguir:

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1. DOS FATOS

Em representação encaminhada ao Ministério Público Federal por Sheila Dantas Geriz (fls. 02/10 do Procedimento Preparatório N°. 1.24.000.001421/2014-741, em anexo), em nome de seu filho, Pedro Américo Geriz Pinto * – e de outros menores e jovens portadores de patologias neurológicas, caracterizadas por constantes crises epiléticas resistentes a tratamentos medicamentosos tradicionais, mencionados no item a seguir – foi relatada a urgente necessidade de providências para que os pacientes possam se utilizar do medicamento conhecido como Cannabidiol (CBD), derivado da planta Cannabis sativa.

Isto porque os tratamentos aos quais já se submeteram, além de não terem diminuído as frequentes crises convulsivas – que provocam inegáveis danos ao desenvolvimento cognitivo e psicomotor dos enfermos –, resultam em sérios efeitos colaterais prejudiciais ao bem estar e à rotina dos pacientes e de suas famílias, tais como sonolência extrema, falta de concentração, cefaleias, gastrites medicamentosas, problemas hepáticos e renais, entre outros.

A notícia acerca da existência da referida substância sobreveio após uma desesperada busca por tratamentos alternativos pelos familiares. O contato com pais enfrentando situações parecidas foi estreitado após a veiculação de uma matéria no programa “Fantástico”, da TV Globo, sobre um casal com filho nessas mesmas condições, e que clandestinamente fez uso do medicamento, obtendo ganhos significativos na eliminação das crises e na recuperação psicomotora do paciente, sem os efeitos colaterais nefastos dos medicamentos usuais.

A grande questão, além da dificuldade para conseguir obter a substância, que não tem registro ou fabricação em território nacional e teria de ser importada, é que o produto figura na lista de substâncias de uso proscrito (“F2”) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Ou seja, sua importação e uso são proibidos, e apenas excepcionalmente há a possibilidade de liberação a partir de pedido de autorização específico dirigido à autarquia, com análise caso a caso.

Entretanto, tal procedimento a cargo da Agência Reguladora, embora represente uma esperança para os familiares das crianças e jovens com síndromes epiléticas, é extremamente demorado e requer uma série de providências burocráticas, tais como a apresentação de uma série de documentos e termos, que tornam a sua efetivação praticamente impossível. Uma dessas exigências é a obtenção de uma prescrição médica específica, acompanhada de termo de responsabilidade firmado por médico. A representante aponta, inclusive, que nenhum profissional da medicina no Estado da Paraíba se dispôs a fornecer a documentação completa.

1 Os números de folhas de páginas mencionados no curso desta exordial referem-se a esse procedimento administrativo.

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Entretanto, há prescrição médica para todos os pacientes listados nessa exordial, como se pode verificar dos documentos juntados em anexo. Não houve, infelizmente, como conseguir os termos de responsabilidade exigidos pela Agência Reguladora, o que impede a formulação dos pedidos de liberação pelos interessados. Percebe-se, inclusive, um receio da classe médica local em assinar um termo de responsabilidade ao prescrever um medicamento que consta da lista “F2” da ANVISA, embora tal substância seja comprovadamente benéfica aos doentes, como se verá em continuação.

É certo que a resolução do problema por completo não se limita à mera liberação do medicamento para os pacientes aqui mencionados. Implica, também, em instar a agência a retirar o produto da lista de proscrição e conseguir, junto ao poder público, via Sistema Único de Saúde, o fornecimento gratuito do medicamento para as hipóteses em que este for necessário, pois a substância possui um preço demasiado elevado e, mesmo com a liberação, não ficaria efetivamente acessível para todos os doentes que dela necessitem, já que os em situação de hipossuficiência não teriam como comprar o produto.

Acontece que tais objetivos apenas serão alcançados a médio prazo, uma vez que a obtenção de uma prestação jurisdicional desse calibre adviria de forma mais lenta e estudada, de forma que, na presente oportunidade, apenas se busca a liberação da importação dessa substância para os pacientes mencionados, tendo em vista a urgência envolvendo essa questão pontual, resguardando-se o MPF para intentar ACPs com maior amplitude sobre o tema em discussão em momento posterior. Buscamos aqui, em suma, providências que cheguem com a velocidade que os pacientes aqui mencionados e seus familiares esperam e necessitam, ou seja, a liberação para importação e uso do Cannabidiol para os pacientes com síndromes convulsionantes abaixo listados.

1.1.SOBRE AS CRIANÇAS E JOVENS PORTADORES DAS PATOLOGIAS

Para situar a urgência e a necessidade da prestação judicial aqui pleiteada, segue um histórico individual de cada paciente cujos familiares buscam a importação e uso do Cannabidiol. Verifica-se, em todos eles, o mesmo ponto em comum: a ausência de resultados satisfatórios no tratamento medicamentoso tradicional (ou mesmo a piora, em relação à superveniência de diversos efeitos colaterais nefastos). Todos possuem laudo devidamente subscrito por profissional médico, bem como prescrição receitando o uso do Cannabidiol na finalidade de diminuir as crises, para possibilitar a recuperação cerebral e psicomotora (documentos em anexo à petição).

PEDRO AMÉRICO GERIZ PINTO*, menor, com 4 anos de idade, filho de Sheila Dantas Geriz, CPF nº 019.887.824-90, ambos residentes e domiciliados na Rua Prof. Oscar de Castro, 154, Brisamar, João Pessoa. Pedro Américo é portador de Epilepsia Multifocal de Difícil Controle, CID: G40-2, decorrente de Síndrome de West. Apresenta quadro de hipotonia e atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor. Em razão desse quadro, tem limitações bastante significativas no que concerne ao exercício das Atividades da Vida Diária

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(AVD’s) – alimentação, vestir-se, administração de medicamentos, locomoção, higiene pessoal, entre outras (o paciente não anda, não fala, não tem controle de suas necessidades fisiológicas, não faz uso funcional das mãos e tem um importante atraso cognitivo). Já fez uso, sem sucesso, de diferentes esquemas de drogas antiepilépticas, combinando medicações como: fenobarbital, clonazepan, vigabatrina, nitrazepan, clobazan, divalproato, primidona, oxcarbamazepina, entre outros, tendo feito uso, inclusive, do Synacthen Depot (ACTH). Atualmente, encontra-se em tratamento com uma combinação de duas medicações antiepilépticas (Topiramato e Ácido Valpróico) e a Dieta Cetogênica, feita e acompanhada pela equipe do Hospital da Clínicas da USP, para onde o paciente vai a cada dois meses fazer exames e o acompanhamento da dieta, que é um dos últimos recursos indicados para casos de Epilepsia Refratária. Apesar de todos os medicamentos e outros tratamentos administrados até o momento, o paciente apresenta entre 15 e 20 crises diárias.

JOÃO VITOR DE OLIVEIRA FERNANDES *, menor, com 14 anos de idade, filho de Cibelle Gomes de Oliveira Fernandes, portadora do CPF nº 026.984.284-57, residentes e domiciliados na Rua Marieta S. Silva, 190, Miramar, nesta Capital. João Vitor é portador de síndrome epiléptica de difícil controle (Lennoux Gastaut) e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. É cadeirante e tem dificuldade de interação, bem como déficit de linguagem. Depende da ajuda de terceiros para as atividades cotidianas As crises convulsivas iniciaram a partir de 1 ano e 6 meses de idade. A partir desta data, começou a tomar remédios, tendo já utilizado todos os medicamentos disponíveis no mercado, sem respostas ao tratamento. Atualmente utiliza uma combinação de Lamotrigina, Sonebom e Topiramato e, mesmo assim, ainda apresenta, em média, 60 convulsões semanais, que aumentam em número quando adoece ou sua imunidade baixa. Devido a muitos anos de utilização desses remédios, adquiriu uma gastrite medicamentosa e vários episódios de bexigoma, tendo que usar cateter para retirar a urina.

SAMUEL DE OLIVEIRA FERNANDES *, menor, com 12 anos de idade, é irmão de João Vítor, e com ele reside. Também é portador da Síndrome de Lennoux Gastaut, apresentando grau significativo de autismo, movimentos estereotipados, grande irritabilidade na presença das convulsões (agride ele mesmo com mordidas, murros e batidas de cabeça na parede). Tem atraso de linguagem e déficit cognitivo, dependendo da ajuda de terceiros para as atividades cotidianas. Além disso, não dorme bem à noite, por conta da hiperatividade cerebral. Começou a apresentar os episódios de crises aproximadamente aos 2 anos de idade. Já fez uso de diversos medicamentos. Atualmente recorre a uma combinação de Lamotrigina, Sonebom, Trileptal, Neozine+Fenergan. Apesar disto, apresenta ainda uma média de 60 crises semanais e frequentes episódios de bexigoma (retenção da urina na bexiga, sendo necessário o uso de cateter para esvaziá-la). Apresenta problemas renais decorrentes da grande quantidade de anticonvulsivantes que utiliza.

VITOR BEZERRA DE SOUTO *, maior incapaz, com 21 anos de idade, filho de Luciana Bezerra Von Szilagsi, portadora do CPF nº 806.581.214-72, residentes e domiciliados na Av. Monteiro da Franca, 913, Apto. 301, Bairro de Manaíra, João Pessoa-PB. Vitor foi diagnosticado, aos 3 meses de

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idade, com cranioestenose, sendo submetido a uma cirurgia aos cinco meses para abertura das fontanelas. Após a cirurgia, seu desenvolvimento psicomotor continuou defasado. Após exames com especialistas em São Paulo, seu diagnóstico foi firmado como Síndrome de Dandy-Walquer e má formação Dechiari (estreitamento do tronco encefálico). Com dois anos de idade passou a apresentar crises de espasmos e convulsões, quadro que permanece até o presente. Já fez uso de diversos tipos de medicações, chegando a ser internado por duas vezes, com crises graves e sem controle. Nessas internações, usou um medicamento muito forte, capaz de levar o paciente à morte (Hidantal), fato que gerou nele reações alérgicas como vômito e mal estar generalizado. Atualmente faz uso de uma combinação de Lamotrigina, Carbamazepina e Fenobarbital. Mesmo assim, apresenta uma média de 50 convulsões generalizadas por semana, sem contar as que lhe acometem durante o sono e que nem sempre são presenciadas (mas que já foram comprovadas em exames). Ultimamente, seu quadro tem se agravado, com a presença de crises muito fortes, chegando a causar dificuldades respiratórias a alterações cardíacas. Além disso, o uso excessivo de medicamentos tem causados um progressivo comprometimento das suas funções hepáticas.

CAMILE GONZALEZ ROCHA *, maior incapaz, com 20 anos, filha de Marília Leite Gonzalez Rocha, CPF nº 396.443.084-68, residentes e domiciliadas na Av. Cabo Branco, 4600, Cabo Branco, João Pessoa-PB. Camile tem atraso global do desenvolvimento, apresenta malformação cerebral congênita (paquigiria) e quadro de deficiência mental importante, sendo totalmente dependente de terceiros. Apresenta quadro de epilepsia de difícil controle e cifoescoliose importante, tendo feito uso de colete corretivo. Atualmente faz uso de politerapia medicamentosa com Sonebom 5mg, Topiramato 300mg e Gardenal 150mg ao dia. Ao longo de sua vida sempre precisou de politerapia, usando a cada etapa associações de diversas medicações como: Depakene, Lamictal, Sabril, Hidantal, Tegretol, Ttrileptal, Primidona, Diazepan. Essas medicações apresentaram efeitos colaterais, como: gengivite, estomatite, agitação, entre outras. Em 2003, com 10 anos e por apresentar muitas crises, fez um vídeo EEG, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, São Paulo, cujo resultado concluiu que aconteceram em 48 horas de registro 87 crises clínicas focais. A lobotomia foi contraindicada pelo fato de as crises acontecerem em todo o cérebro. Por outro lado, a lobotomia é uma medida que pode ter sequelas, de acordo com a área do cérebro a ser retirada. Os pais relatam muitos anos de angústia. As crises de Camile ocorrem das mais diversas formas, acontecendo, em algumas vezes, cinco por dia. Muitas são as tentativas de novos medicamentos. Após a ocorrência de crises, fica apática ou muito agitada, e isso muitas vezes interfere nas terapias. Ela não pode ter emoções ou alegrias, pois tais estados sempre desencadeiam uma crise.

PEDRO GABRIEL GUIMARÃES FERREIRA SIGISMUNDO *, menor, com 4 anos de idade, filho de Paula Gabriel F. de Santana, portadora do CPF nº 059.542.284-50, residentes e domiciliados na Rua Miguel Santa Cruz, 699, Torre, nesta Capital. Pedro Gabriel é portador de Síndrome de West, sofre cerca de 20 crises (em espasmos) diárias e já fez uso de vários medicamentos antiepiléticos, sem qualquer sucesso – continua apresentando espasmos mesmo com a administração atual de drogas. Atualmente toma Sabril, de 500mg (5

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comprimidos ao dia) e Amato, de 100mg (3 e meio comprimidos ao dia). As crises comprometem muito o seu desenvolvimento, causando atraso motor e cognitivo. Desde que os pais descobriram sua condição, aos 7 meses de vida, disponibilizaram acompanhamento de Fisioterapia Motora, Fonoaudiologa e Terapia Ocupacional, na Funad e no Centro de atividades Helena Holanda.

DAVI TABOSA SOUTO *, menor, com 2 anos de idade, filho de Sheila Maria Tabosa Silva Souto, CPF nº 026.971.074-44, residentes e domiciliados na Rua Carlos Barros, 500, Apto. 402, Miramar, João Pessoa-PB. Davi é portador de microcefalia congênita e espasticidade de membros. Possui visão subnormal e encefalopatia epilética. Convulsiona cerca de 100 vezes por semana. Atualmente utiliza uma combinação de Depakote Sprinkle e Lamictal. Não senta, não usa as mãos, só se alimenta de líquidos, não fala. Faz diversas intervenções terapêuticas. Todavia, o avanço no desenvolvimento é seriamente prejudicado pela frequentes crises convulsivas.

MARINA CARVALHO DE SOUZA *, menor, com 5 anos de idade, filha de Clarissa Figueiredo de Carvalho, CPF nº. 008.117.954-54, residentes e domiciliadas na Rua Esmeraldo Gomes Vieira, 350, Apto. 101, Bancários, nesta Capital. Marina é portadora de Síndrome de Rett, transtorno global de desenvolvimento, apresentando crises convulsivas e por vezes ausências, junto com espasmos frequentes. Não usa as mãos, deixando-as o tempo todo dentro da boca. Tem retração dos Aquiles e ataxia de marcha com hipotonia. Faz uso de 2 medicações: LAMICTAL de 50mg (2 vezes ao dia) e Depakote Sprinkle de 125mg ( 3 vezes ao dia).

FRANCISCO GABRIEL QUEIROZ DE FARIAS *, menor, com 4 anos de idade, filho de Joelma Farias de Queiroz, portadora do CPF nº 025.493.664-41, residentes e domiciliados na Rua Maria Ferreira da Silva, 43, Bancários, João Pessoa-PB. Francisco é portador de epilepsia multifocal de difícil controle, decorrente de Síndrome de West. Apresenta cerca de 10 crises convulsivas diárias, em espasmos e crises de ausência. Tem um importante atraso no desenvolvimento, apresenta movimentos estereotipados e involuntários. Não fala e não tem segurança no andar, precisando de amparo. Já fez uso de todos os tipos de anticonvulsivantes disponíveis no mercado, inclusive o ACTH (Synacthen Depot). Atualmente usa uma combinação de Topamax e Trileptal.

ISABELLY LARISSA DIAS ARAÚJO *, menor, com 3 anos de idade, portadora do RG 3904863 e CPF 10891705481, filha de Vandaleide Dias Bandeira, portadora do RG 1560541 e CPF 839.313.414-53, residentes e domiciliadas na Rua Cícero Alves de Brito, 189, Campina Grande-PB. Isabelly foi diagnosticada, aos quarenta e oito dias de vida, com paralisia cerebral do lado esquerdo (E.E.G com presença de atividade irritativa cerebral e crises convulsivas refratárias). Nenhum remédio receitado pelos nove neurologistas que já a acompanharam conseguiu controlar suas crises convulsivas. Um deles falou que as crises de Larissa são de difícil controle. Apresenta, em média, 16 convulsões ao dia. Faz uso de Sabril 500mg, de 12 em 12 horas, Topiramato 50mg, 8 em 8hrs e Diasepan 5mg, 8 em 8 horas.

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FERNANDO RUY DE LIMA BARDELLA *, menor, filho de Zélia de Lima Bardella, CPF 039.581.664-58, residentes e domiciliados na Rua Abelardo da Silva Guimarães Barreto, 115, Ap. 2404, Altiplano Cabo Branco. Com um ano de vida apresentou atraso global no desenvolvimento neuropsicomotor, seguido de uma epilepsia de difícil controle, com crises convulsivas. Submete-se a Fisioterapia, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Equoterapia e Hidroterapia. Já fez uso das seguintes drogas antiepilépticas: Depakene; Depakote; Sonebon; Trileptal; Topiramato; Lamitor; Keppra; Etoxin; Rufinamida; Sabril; Zonegran e Hormônio Adrenocorticotrófico (ACTH), com internação. Realizou ainda a Dieta Cetogênica e a implantação de Estimulador do Nervo Vago, sem controle efetivo das crises epilépticas. Hoje permanece com pelo menos 50 crises ao dia, entre crises de ausência, espasmos e parciais. Faz uso diário de 3 cápsulas de Keppra , 05 cápsulas de Depakote Sprinkle, 1,5 comprimidos de Frisium, 1,5 comprimido de Topiramato e 1,5 comprimido de Primidona.

MARCELLY MARIA SILVA MAIA *, menor, filha de Inaldete Silva Santos Maia de Oliveira, CPF N°. 877.003.894-68 e RG N°. 1.553.035 SSP/PB, residentes e domiciliadas na Rua Luiz Sodré Filho, 70, Catolé, Campina Grande-PB. Foi diagnosticada com Microcefalia, causada por Citomegalovírus. Apresentou a primeira convulsão com um ano de vida, dando inicio ao tratamento medicamentoso com Gardenal, sem o efeito esperado. Chegou a apresentar 30 convulsões por dia. Após tratamento com um comprimido duas vezes ao dia de Topamax e Trileptal, e um comprimido três vezes ao dia de Depakene, Marcelly ainda apresenta em torno de 15 crises ao dia, mesmo durante o período do sono.

BÁRBARA ISADORA AMARAL CARVALHO GOMES DE SÁ *, menor, com 4 anos de idade, filha de Sayonara Nyji Amaral Albuquerque Guedes e Dion Carvalho Gomes de Sá, residentes e domiciliados na Av. Cairu, 386, apto 902, Cabo Branco, João Pessoa-PB. As suas primeiras crises foram acontecer no quarto mês de nascida. Dois dias depois, aconteceu uma crise mais forte, com contração de membros e olhos virados para o alto. Médico neuro-pediatra receitou TRILEPTAL, substituído por GARDENAL e, duas semanas depois, por RIVOTRIL. Retornando à administração do TRILEPTAL, apresentou sucessivas crises do mesmo gênero e duradouras. Foi levada para internação hospitalar em UTI, por oito dias, e mais dois em apartamento. Sobreveio o diagnóstico de síndrome de West e encefalopatia crônica não progressiva. Seguiu-se a administração de synacthen depot (ACTH), hidantal, sonebon, depakene, topiramato, levetiracetam, ospolot, frisium. Atualmente utiliza-se de forma exclusiva do Topiramato, 25 mg, 6 comprimidos por dia. As crises convulsivas continuam e são comuns ao acordar, quando leva algum susto, quando baixa a imunidade, durante e após viagens de automóvel. Foram oferecidas outras terapias de apoio, para complementar o tratamento alopático: acupuntura, floral, fisioterapia, terapia ocupacional, entre outras. Durante a administração de tantas drogas, ocorreram diversos efeitos colaterais decorrentes da medicação: alteração do sistema endócrino, fazendo com que a bebê apresentasse manifestações de desenvolvimento sexual precoce, a exemplo de pelos pubianos e seios; retenção de líquidos, produzindo deformação na cabeça conhecida como “cara de gato”; refluxo gástrico; vômito após ingestão de medicamentos; sono profundo e prolongado, quase como um coma; excesso de secreção na região oro-faríngea, com risco de causar broncoaspiração; crises de

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otite e de garganta frequentes. Em razão de não ter conseguido obter ainda a conquista do primeiro passo no tratamento (controle das crises), não conseguiu evoluir em termos cognitivos e motor. Mesmo tendo 4 anos e meio, ainda não fala e não anda. Está evoluindo, lentamente, na conquista do controle do pescoço e tronco, dentro do processo de se colocar em pé. E ainda não desenvolveu o aparelho fonador, não sendo capaz de articular palavras e de mastigar adequadamente, o que compromete a alimentação e a nutrição.

JOÃO VITOR BATISTA FERREIRA * , menor, com 5 anos de idade, filho de Perla Calixto de Brito Batista, portadora do CPF 068.846.624-92 e do RG 3.250.297 SSP/PB, residentes e domiciliados na Rua Luiz Antônio, 507, São José da Mata, Campina Grande-PB. Foi diagnosticado com epilepsia congênita. Começou a ter crises convulsivas com 1 ano e 9 meses. Já ficou internado várias vezes em razão das fortes crises. foram administradas várias combinações de medicamentos, sem nenhum resultado. Devido à piora no quadro das crises, está perdendo os movimentos do lado direito e apresentando dificuldade para falar. Atualmente, submete-se aos seguintes medicamentos: Tegretol, Hidantal e Topiramato.

RAYSSA GABRIELY NUNES DA SILVA *, menor, com 3 anos de idade, filha de Rayane Nunes da Silva, portadora do CPF 087.967.484-94, residentes e domiciliados na Rua Luiz Gonzaga H. Almeida, S/N, Bloco B II, Ap. 304, Mangabeira VII, nesta Capital. Foi diagnosticada com paralisia cerebral aos 3 meses de nascida. Aos 8 meses, sobrevieram as primeiras crises, com novo diagnóstico, agora de Síndrome de West. Administrou-se Sonebom, e em seguida Sabril juntamente ao Depakene. Passou para o Topiramato, mas os espasmos continuaram, quando foi retirado o Sabril e acrescentado Lamitor. Foi internada novamente. Novo médico neurologista retirou todos os medicamentos e prescreveu Frisium, Rivotril e Trileptal, que também não funcionaram, pois os espasmos continuavam. Novamente, ela apresentou quadro de alergia, e outra médica receitou Gardenal, Sonebom, Trileptal e Topiramato. As crises diminuíram um pouco, mas ainda são mais de 10 por dia.

SAMUEL VITOR LIMA FERNANDES *, menor, com 2 anos e seis meses de idade, filho de Roberta Karoline L. Fernandes, residentes e domiciliados na Rua João Lordês, 60, Nordeste III, Guarabira-PB. Samuel possui diagnóstico de Síndrome de West, epilepsia multifocal, retardo no desenvolvimento neuropsicomotor e infecção congênita por CMV. Sofre crises convulsivas desde os oito meses de vida e, atualmente, ocorrem episódios numa média de até 100 vezes por dia. Faz uso de ácido valproico, Vigabratina, Gardenal e Rivotril, além de estimulação psicomotora por fisioterapia. O tratamento não resultou em nenhuma evolução no quadro do menor, que apresenta problemas de coordenação motora, neurológica e auditiva.

Em suma, as crianças e jovens acima mencionados são portadores de patologias neurológicas que tem como característica comum um quadro de epilepsia refratária a medicações. Na busca pelo controle das frequentes crises convulsivas, já se submeteram aos diversos tipos de tratamento e combinações de anticonvulsivantes disponíveis no mercado, sem sucesso. As altas dosagens de medicação a que são submetidos provocam sérios efeitos

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colaterais, como comprometimento das funções hepáticas e renais, perda de visão, fraqueza muscular, depressão do sistema imunológico, inflamação das mucosas, entre outros.

Esses pacientes, apresentam crises diárias que causam danos ao seu desenvolvimento neuropsicomotor, provocando perdas e involuções que podem ser irreversíveis, visto que a plasticidade neural – mecanismo essencial para a recuperação de danos cerebrais – diminui com o avançar da idade, o que pode comprometer de forma definitiva sua autonomia. O quadro ainda repercute na vida de suas famílias, tanto do ponto de vista econômico e social, quanto no que concerne ao equilíbrio psicoemocional, comprometendo a rotina e o bem estar dos que sofrem, direta ou indiretamente, com a enfermidade dos requerentes. Exemplo dessa realidade é a angústia experimentada pelos pais e familiares, ao vê-los, após inúmeras crises, perder ganhos cognitivos e/ou motores já adquiridos após meses de árduo trabalho de estimulação dos diversos profissionais que os acompanham, tendo que sempre reiniciar todo o processo sem a garantia de reconquistar o que foi perdido.

1.2. RESUMO DA PRETENSÃO DO AUTOR MINISTERIAL

Claro está que as crianças e jovens cuja história clínica foi aqui trazida se submeteram a toda espécie de tratamento possível para eliminar ou diminuir a quantidade de crises epilépticas sofridas – que, sabe-se, chega-se a 450 ou 500 por mês e podem até conduzi-los à morte. No horizonte, apenas a substância conhecida como Cannabidiol desponta como tratamento viável e com resultados importantes obtidos até o momento. Porém, em que pese a necessidade de tal medicamento, estão os pacientes impossibilitados de obtê-lo, pois, além de ser produzido e comercializado apenas no estrangeiro, sem registro no país, sua importação e uso em território nacional, como já colocado, é proibida pelas regulamentações baixadas pela ANVISA.

Diante disto, é na esteira do sucesso de casos isolados, nos quais se obteve, através de prestação jurisdicional, a liberação da importação e do uso da substância para portadores de síndromes epiléticas, que a presente ação se lastreia – como a decisão liminar exarada pelo Juízo de Direito da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Cuiabá-MT (fls. 174/175), a decisão liminar proferida pelo Juiz Federal da 24ª Vara da Seção Judiciária de Pernambuco, Subseção de Caruaru-PE (PJE 0800100-75.2014.4.05.8302) e a decisão de antecipação dos efeitos da tutela de lavra do Juízo Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, sempre condicionando a liberação da importação à requisição médica.

Nesses termos, a pretensão aqui inserta é de todo razoável e necessária. Busca a concretização dos preceitos constitucionais de acesso à saúde e de proteção à infância e à juventude, estes últimos também presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, que pontua o desenvolvimento saudável, a dignidade e o fornecimento de medicamentos por parte do poder público.

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Assim, em razão da ineficácia do tratamento permitido em solo nacional e da impossibilidade de importação e utilização do medicamento Cannabidiol sem o demorado e burocratizado processo administrativo de liberação por parte da ANVISA, é que se insurge o autor ministerial contra a União e a própria Agência Reguladora, para que se abstenham de destruir, devolver, reter, impedir a compra e a obtenção ou, de alguma outra forma, fazer com que qualquer objeto postal importado, contendo produto com o referido medicamento, acompanhado da devida receita médica, e endereçado aos pacientes listados nesta inicial e/ou seus responsáveis, não chegue ao seu destino, com base nos fundamentos apresentados em continuação.

2. DOS FUNDAMENTOS

2. 1. DO SUPORTE CONSTITUCIONAL E LEGAL

Os documentos médicos e artigos científicos que acompanham a presente inicial apontam inexistir dúvida de que o medicamento em questão é necessário ao tratamento de crises epilépticas sofridas pelos jovens e menores mencionados. Não é demais repetir que todo tipo de tratamento tradicional, com medicamentos disponíveis aos médicos no Brasil, já foi utilizado sem que se conseguisse eliminar os episódios de crises convulsivas enfrentados. Não bastasse isso, esses medicamentos, além de não debelarem as severas crises, ainda provocam sérios efeitos colaterais, que trazem uma segunda preocupação para os responsáveis pelos pacientes. A continuidade das crises ainda agrava o quadro de saúde mental e psicomotora dos enfermos, pois a recuperação do tecido neural dessas crianças e jovens fica cada vez mais comprometida após os episódios, frisando o perigo da demora da prestação jurisdicional pretendida.

Dessa forma, havendo necessidade em saúde, devem os requeridos (União e ANVISA) disponibilizar os meios necessários para satisfazê-la, abstendo-se de impedir a importação e a utilização do medicamento. Afinal, tal obrigação é imposta pela própria Constituição Federal que, além de incumbir os entes públicos envolvidos de cuidarem da saúde e assistência pública (art. 23), aponta que a saúde é direito social (art. 6º) de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Como se não bastassem essas disposições constitucionais, a Lei Nº. 8.080/90, que regula o Sistema Único de Saúde, preceitua, no mesmo sentido, que:

“Art. 2.º - A saúde é um direito fundamental do ser humano devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”“Art. 5.º - São objetivos do Sistema único de Saúde SUS :(…) III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção e recuperação da saúde com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.”“Art.6.º - Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):I - a execução de ações:

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(…) d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”“Art. 7.º - As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:(…) II - integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.

Vê-se, assim, que tanto o legislador constitucional quanto o infraconstitucional determinaram aos poderes públicos o atendimento integral à saúde, não fazendo em nenhum momento restrição aos medicamentos ou forma de tratamento a serem utilizados. Aliás, se com apoio nestes preceitos normativos a jurisprudência pátria já vem decidindo ser possível compelir o fornecimento de todo um tratamento hospitalar adequado – mesmo sem previsão no SUS e sem profissionais aptos a prestá-lo no Brasil, bastando que o paciente dele precise – com mais justiça ainda caberia à União e à ANVISA deixar de impedir que pessoas com condições de se submeterem a um tratamento necessário para a sua qualidade de vida possam fazê-lo, de forma a efetivamente fazer cumprir os preceitos constitucionais e legais. É o que se apanha do seguinte precedente:

ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). TRATAMENTO MÉDICO NO EXTERIOR. UNIÃO E ESTADO DO CEARÁ. LEGITIMIDADE PASSIVA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NATUREZA INDISPONÍVEL. LEGITIMIDADE ATIVA PARA MANEJO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PEDIDO INICIAL. EXISTÊNCIA E HIGIDEZ. ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CONFUSÃO COM O MÉRITO DA LIDE. CUSTEIO DE TRATAMENTO MÉDICO NO EXTERIOR PELO SUS. AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL. MSUD ("MAPLE SYRUP URINE DISEASE"). TRATAMENTO ATRAVÉS DE TRANSPLANTE DE FÍGADO. CENTRO MÉDICO NO EXTERIOR. ÚNICO COM EXPERIÊNCIA E PROTOCOLO ESPECÍFICO. AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO ANTERIOR DESSA CIRURGIA NO BRASIL. CUSTO FINANCEIRO DO TRATAMENTO NO EXTERIOR APENAS UM POUCO SUPERIOR. SOPESAMENTO DOS INTERESSES FINANCEIRO DA ADMINISTRAÇÃO E DO MENOR SUBSTITUÍDO. RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA E À VIDA MAIOR NO TRATAMENTO LOCAL. PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DO MENOR. REALIZAÇÃO DO TRANSPLANTE NO EXTERIOR. DIREITO. EXISTÊNCIA. CUSTEIO DA VIAGEM E ESTADIA NO EXTERIOR. ALTO CUSTO. AUSÊNCIA DE PROVA DE DESNECESSIDADE. CABIMENTO. 1. A jurisprudência do STJ encontra-se pacificada no sentido de que as ações relativas à assistência à saúde pelo SUS (fornecimento de medicamentos ou detratamento médico, inclusive, no exterior) podem ser propostas em face de qualquer dos entes componentes da Federação Brasileira (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), sendo todos legitimados passivos para responderem a elas, individualmente ou em conjunto. 2. Em face da legitimidade passiva da UNIÃO nesta causa, resta evidenciada a competência da Justiça Federal para seu processamento, afastando-se a preliminar de incompetência deduzida

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pela UNIÃO. 3. A jurisprudência do STJ encontra-se, também, pacificada quanto à legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública, bem como quanto ao cabimento da utilização desse instrumento processual, na defesa do direito à vida e à saúde de pessoa determinada para fins de fornecimento a ela de tratamento médico, em face da natureza indisponível desses direitos. (…) 7. Conforme corretamente analisado pela sentença apelada, o tratamento da MSUD ("Maple Syrup Urine Disease") (em português, Doença do Xarope do Bordo na Urina - DUXB) através de transplante de fígado, nos termos das informações médicas colhidas nos autos, nunca foi realizado no Brasil, havendo, apenas, um centro médico no mundo com protocolo específico para sua realização (Thomas E. Starzl Transplantation Institute, em Pittsburgh, Pennsylvania, EUA) e casos bem-sucedidos decorrentes desse tratamento. 8. As manifestações médicas transcritas pela UNIÃO em sua apelação e já existentes nos autos, sobretudo a do Hospital das Clínicas da UFRGS, apenas indicam, como já examinado na sentença apelada, que a possibilidade de realização dessa cirurgia no Brasil dependeria da confecção de protocolo médico específico, aquisição de equipamentos e de solução parental necessária à estabilização metabólica, e de viagem de treinamento de membro da equipe médica ao exterior para capacitação técnica. 9. Na hipótese, conforme, também, bem analisado na sentença apelada, em sendo os custos médicos do tratamento cirúrgico do menor substituído no exterior, em face de descontos e subvenções conseguidas, apenas um pouco superior ao de seu tratamento no Brasil, não há razoabilidade na sua submissão ao tratamento local por equipe sem experiência na modalidade específica de transplante em questão, como o demonstram as necessidades de criação de protocolo específico e aquisição de equipamentos e solução parental, com maior risco à sua integridade física e à sua vida, devendo, na hipótese, prevalecer o interesse dele na proteção desses bens jurídicos indisponíveis. (…) 14. Não provimento das apelações. TRF 5, AC 200481000202989 Apelação Civel 360863, Relator Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, 1ª Turma, unânime, DJE 19/11/2009, p. 176. No mesmo sentido: TRF5, AC 200884000084312, Apelação Civel 469254, Relator Desembargador Federal Fernando Braga, 2ª Turma, unânime, DJE 24/04/2014, p. 87.

Dessa forma, não se requer aos entes listados no polo passivo, com a presente ação, nenhum procedimento mirabolante, além daquele estritamente necessário a prover uma qualidade de vida digna aos jovens e crianças acometidos pelas enfermidades neurológicas convulsionantes. Entender de forma distinta é sucumbir à burocracia, em detrimento dos mandamentos da Carta Magna que pregam a dignidade da pessoa humana e o acesso irrestrito aos meios necessários para uma vida digna e com saúde!

2.2. DO SUPORTE CIENTÍFICO - EFICÁCIA DO MEDICAMENTO

O exame dos documentos e artigos científicos anexos à presente exordial dão conta que o medicamento em questão se presta ao tratamento do mal sofrido pelas crianças e jovens relacionados pelo autor civil público. Há uma série de evidências e estudos científicos em que ficou assente a propriedade antiepiléptica do Cannabidiol. Seu uso já é autorizado em vários

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países como Inglaterra, Nova Zelândia e Canadá, e em mais de 20 estados americanos consoante se pode perceber da leitura de vários artigos existentes na rede mundial de computadores2.

No Brasil, inclusive, os estudos com Cannabidiol vinham sendo sendo feitos desde a década de 70, tendo se constatado sua eficácia no tratamento de pacientes infantis sofredores de crises epiléticas severas e resistentes a medicamentos tradicionais. Aliás, sobre o tema merece destaque a carta confeccionada pelo Professor Dr. Antonio Waldo Zuardi e outros professores que integram o Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, defendendo a reclassificação da substância pela ANVISA e a sua eficiência na terapêutica de crises epiléticas.

Artigo científico subscrito pelo Professor Renato Malcher-Lopes, do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília, Doutor em Neurociências e pós-doutor em Neurofisiologia Celular e Bioquímica Analítica3, comprova a atividade antiepilética em humanos do Cannabidiol, destacando o registro na literatura científica de redução de convulsões e, inclusive, sintomas de autismo. E o mais importante: coloca que a substância não é tóxica para as células, e seu uso crônico não causa reações adversas, não alterando funções psicomotoras e não demonstrando propriedades psicotrópicas – o único efeito colateral observado em alguns casos foi a possível ocorrência de sonolência, efeito presente em diversos tratamentos liberados pela ANVISA.

O caso Fischer é um dos mais emblemáticos na História recente da administração do Cannabidiol no Brasil, ganhando destaque na mídia nacional. A menor Anny de Bortoli Fischer *, com cinco anos de idade, portadora de encefalopatia epilética infantil precoce tipo 2, sofria desde os 45 dias de vida crises convulsivas, numa frequência de 30 a 80 vezes por semana, provocando atraso intenso e global do desenvolvimento, que evoluiu para um retardo mental e pobre controle motor, com falhas no desenvolvimento da fala, dismorfias faciais, distúrbios do sono, anormalidades gastrointestinais e movimentos estereotipados das mãos. Nenhum tratamento convencional surtiu qualquer efeito sobre os episódios – inclusive a realização de cirurgia para implante de marca-passo no nervo vago.

Mesmo antes de obter decisão judicial favorável, liberando a importação e uso do Cannabidiol, exarada pelo Juízo da 3ª Vara Federal do Distrito Federal, os pais da criança resolveram administrar a substância clandestinamente, com supervisão médica, e obtiveram resultados surpreendentes: a contínua redução das crises, até a sua completa cessação. Interrompido o uso do medicamento, para testar a sua eficácia, as crises retornaram (42 vezes em uma semana). E, com a retomada do tratamento em seguida, as convulsões desapareceram por completo novamente4.

2 Por exemplo: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/bele-reduziu-convulsoesb-de-minha-filha.html3 Revisão da literatura científica sobre o uso de Cannabidiol e óleo de Cannabis sativa rica em Cannabidiol para o tratamento de epilepsia e autismo. 22/07/2014. Texto a ser publicado na Revista de Biologia da Universidade de São Paulo (USP).4 Vide decisão de antecipação dos efeitos da tutela nos autos N°. 24632-22.2014.4.01.3400, exarada em 3 de abril de 2014, em anexo.

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Sabe-se que, dentre os motivos que impedem a disponibilização do Cannabidiol no Brasil, está o fato de que a substância figura entre um dos 80 canabinoides presentes na planta Cannabis Sativa L. (maconha). Trata-se de medicamento não integrante da lista de medicamentos fornecidos pelo SUS, sem registro no país e feito à base de substância derivada de planta com potencial entorpecente ou psicotrópico (e por isso não sujeito à prescrição médica). Por essas razões, nem o Ministério da Saúde, tampouco a ANVISA, toleram a sua importação e utilização em solo brasileiro. Entretanto, o Cannabidiol (CBD), como já dito, não produz os efeitos típicos da planta (euforia, despersonalização, distorção sensorial, alucinações, delírios), que são resultantes de outro componente químico, qual seja, o tetrahidrocanabinol (THC). O professor Malcher-Lopes pontua que as muitas informações da literatura científica comemorando os resultados positivos do uso do medicamento Cannabidiol em portadores de síndromes neurológicas convulsionantes parecem ser ignoradas pelas autoridades e boa parte dos conselhos médicos.

Dessa forma, os argumentos lançados pela agência reguladora não podem ser invocados para obstar o acesso dos enfermos aqui listados à medicação, por meio de seus pais ou representantes legais. Em primeiro lugar, como exposto, o uso de Cannabidiol para tratamento de crises epilépticas vem sendo reconhecido pela ciência médica como uma alternativa viável e segura às substâncias tradicionais, de efeitos limitados e com reações adversas graves. É o que se apanha de vários artigos publicados por autoridades em neurologia no Brasil e em outros países, alguns deles juntados à presente peça.

As listas oficiais de medicamentos se prestam a possibilitar o planejamento da assistência, uniformização, exercício da farmacovigilância e, inclusive, o controle da disponibilidade do estoque pela população e Poder Público. Atende-se, assim, a exigência de economia de recursos públicos, transparência, impessoalidade e eficiência da gestão administrativa. Ora, a pretexto de proteger tais valores, não parece razoável negar ao indivíduo o acesso a tratamento medicamentoso que se constitui na última alternativa disponível na ciência ao restabelecimento de sua saúde.

Por sua vez, o registro de medicamento no órgão de vigilância sanitária depende de pedido do laboratório interessado, que o efetua, ou não, em virtude de razões econômicas, de mercado e de oportunidade. Por isso, nem sempre coincidem o interesse de determinado laboratório e o interesse público na introdução de um medicamento em território nacional. Logo, a obstaculização do acesso a alternativas terapêuticas existentes em outros países, feita no caso concreto por meio da exigência do registro do medicamento, termina por subordinar ou restringir o atendimento adequado de direito indisponível fundamental a interesses e pretensões de caráter puramente econômico.

Além disso, a ausência de prescrição médica decorre, no caso, de imposição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que, no artigo 61 da Portaria ANVISA RDC Nº. 344/98, dispôs que as plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, bem como seus sais e isômeros não poderão ser objeto de prescrição e manipulação de medicamentos alopáticos

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e homeopáticos. Destarte, a impossibilidade de prescrição decorre não de uma omissão estatal, mas de uma portaria emitida pela autarquia federal ora requerida.

Como se vê, não resta qualquer motivo razoável que impeça o acesso ao medicamento pretendido. Além disso, comprovado está que os pacientes possuem o direito de acesso a medicação integral para a garantia de sua saúde, e que esse direito constitucional não pode ser exercido em sua plenitude no território nacional, em razão dos problemas que cercam o registro, comercialização, importação e prescrição do medicamento em questão. Ante o exposto, alternativa não resta senão o ajuizamento da presente Ação Civil Pública, como único instrumento possível para o resguardo do comando constitucional de garantir à pessoa humana o tratamento adequado à sua saúde.

2.3. DOS TRATADOS INTERNACIONAIS EM VIGOR NO BRASIL SOBRE O TEMA

Os Tratados Internacionais aplicáveis à demanda possuem naturezas jurídicas diversas, conforme o rito de incorporação no ordenamento jurídico interno ou a matéria regulamentada em seu teor. Dessa forma, possuem status de lei ordinária as três Convenções da ONU sobre entorpecentes, como será visitado em seguida, tendo em vista que não são consideradas tratados de direitos humanos e nem foram internalizadas pelo quórum especial do art 5º, § 3º da CRFB/88.

Todavia, a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por ter sido internalizada no Brasil pelo rito do §3º, art. 5 da CRFB/88, adquiriu status constitucional. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por sua vez, apresenta natureza jurídica de norma supralegal e infraconstitucional, conforme decisão do STF nos Recursos Extraordinários (RE 349703 e RE 466343) e do Habeas Corpus (HC 87585).

Por outro lado, cuidando da relação jurídica entre os Tratados Internacionais e o direito interno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos – órgão judicial responsável pela aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), com jurisdição sobre o Brasil – no ano de 2006, ao abordar o caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile, expôs a necessidade do exercício de um juízo de compatibilidade entre as normas internas do Estado e os dispositivos da Convenção Americano sobre Direitos Humanos e de outras convenções internacionais através de “uma espécie de ‘controle de convencionalidade’”5.

Dessa forma, constitui dever do Estado Brasileiro a compatibilidade do direito interno com os tratados internacionais em vigor no país, por meio do controle jurisdicional da convencionalidade das leis, tendo por finalidade compatibilizar a atividade administrativa e as normas domésticas com

5 Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Setencia de 26 de septiembre de 2006, Serie C, nº 154. § 124.

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os tratados internacionais6. Sendo assim, a omissão Estatal em realizar o controle de convencionalidade na atividade jurisdicional interna gera hipótese de responsabilidade internacional, como preceitua o art. 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que assegura a obrigação de adotar disposições de direito interno para satisfazer os preceitos da Convenção.

No mesmo sentido, ressalta a Corte, ainda no caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile, § 124, que o Judiciário não deve levar em conta somente os tratados internacionais para o exercício do controle de convencionalidade, mas também a jurisprudência da Corte Interamericana, que é seu intérprete autêntico, conforme preceito dos arts. 62 e 64 da citada Convenção. Nesse deambular, a jurisprudência produzida pela Corte é parâmetro de controle da convencionalidade das leis7 – podendo ser definido como a compatibilização das leis à jurisprudência interamericana – uma vez que declara o real sentido do texto da Convenção e deve ser observada pela atividade jurisdicional brasileira. Dessa forma, é inconvencional (e, por lógica, ilegal) qualquer negação ou limitação dos efeitos da jurisprudência da Corte IDH em âmbito interno.

Portanto, a falta de regulamentação doméstica não pode ser arguida para eximir o Estado de observar os standards determinados pela Corte nos diferentes casos sujeitos à sua jurisdição, sendo configurada uma omissão inconvencional a negligência em internalizar e cumprir os preceitos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, seja o próprio Tratado ou a jurisprudência que o ilumina, sob pena de responsabilidade internacional Estado. Vejamos, em seguida, em que sentido essa omissão ocorre no caso ora em discussão.

2.3.1. O dever convencional em regulamentar o uso de substâncias psicotrópicas para fins medicinais.

O sistema universal de controle de drogas é determinado por três convenções internacionais da Organização das Nações Unidas, ratificadas no Brasil com status de lei ordinária: a (i) Convenção Única de Drogas Narcóticas de 1961, emendada pelo Protocolo de 1972 (ratificada no Brasil pelo Decreto nº 54.216, de 27 de Agosto de 1964); a (ii) Convenção de Substâncias Psicotrópicas de 1971 (ratificada no Brasil pelo Decreto nº 79.388, de 14 de março de 1977); e a (iii) Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (ratificada no Brasil pelo Decreto no 154 de 26 de junho de 1991).

Frise-se que as referidas convenções foram motivadas pela necessidade de prevenção da produção, uso e comercialização de drogas ilícitas,

6 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 132.7 NÓBREGA, Flavianne; TENNO, Yulgan. Os desafios para a efetividade das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: estudo comparado sobre a convencionalidade da Lei da Anistia no Brasil, no Peru e na Argentina. Revista Jurídica da Presidência. No Prelo. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/centrodeestudos/publicacoes/revista-juridica-da-presidencia>.

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por causarem um grave mal para o indivíduo e constituírem um perigo social e econômico para a humanidade. Por outro lado , todas elas ressaltam a necessidade do uso dessas substâncias com fins medicinais ou científicos em tratamentos que não respondem à terapia tradicional, para o fim de proporcionar o mínimo de dignidade às pessoas que necessitam de medicação à base de psicoativos, como as crianças e jovens no presente caso.

Aliás, constitui dever do Estado regulamentar sua manipulação terapêutica, consoante o preâmbulo da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, no reconhecimento de que “o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para o alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais fins”. Nesse deambular, o art. 4º estabelece uma obrigação de fazer do Estado, no sentido de que este deve adotar todas as medidas legislativas e administrativas para limitar o uso de entorpecentes a fins medicinais e científicos. Em seu teor, aduz:

As Partes adotarão todas as medidas legislativas e administrativas que possam ser necessárias:a) a entrada em vigor e ao cumprimento das disposições da presente convenção em seus respectivos territórios;b) à cooperação com os demais Estados na execução das disposições da presente Convenção;c) à limitação exclusiva a fins médicos e científicos, da produção, fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio uso e posse de entorpecentes, dentro dos dispositivos da presente Convenção. (grifei).

Na mesma esteira, apresenta-se a Convenção de Substâncias Psicotrópicas de 1971, objetivando também a restrição da produção, distribuição e uso de drogas psicotrópicas a fins médicos e científicos. Tal qual a Convenção anterior, esta estabelece uma classificação das drogas ilícitas, mas vai além da Convenção Única, uma vez que procura equilibrar – levando em conta sua utilidade terapêutica – o controle e as sanções contra danos e efeitos da dependência de substâncias.

Complementarmente, assevera a Convenção de 1988, em seu art. 14, § 2º, a respeito da necessidade de se combater o cultivo ilícito de tais substâncias, dentre elas a cannabis, todavia respeitando os direitos humanos fundamentais, ipsis litteris:

Cada uma das Partes adotará medidas adequadas para evitar o cultivo ilícito das plantas que contenham entorpecentes ou substâncias psicotrópicas, tais como as semente ópio; os arbustos de coca e as plantas de cannabis, assim como para erradicar aquelas que são ilicitamente cultivadas em seu território. As medidas adotadas deverão respeitar os direitos humanos fundamentais e levarão em devida consideração, não só os usos tradicionais, onde exista evidência histórica sobre o assunto, senão também a proteção do meio ambiente. (grifei).

Assim, resta claro que as Convenções multicitadas

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estabelecem a obrigação do Estado em permitir o uso medicinal ou científico de substâncias psicoativas, com fulcro em conceder uma melhor qualidade de vida às pessoas que necessitam de seu uso terapêutico. Portanto, in casu, a negligência do Estado brasileiro, em permitir esse uso às crianças e jovens acometidos pela patologia neurológica que gera crises convulsivas, configura uma omissão inconvencional – e, portanto, ilegal –, porquanto contrária aos preceitos das Convenções da ONU aplicáveis ao tema.

2.3.2. A proteção contra ingerências que dificultam o pleno desenvolvimento da autonomia e dignidade de vida dos incapazes ora substituídos, por meio das diretrizes constitucionais da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, assinado em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, foram formalmente incorporados à Constituição Federal, por meio do rito previsto no § 3º, art. 5ª da CRFB/88, adquirindo, portanto, status de Emenda Constitucional, desde 9 de julho de 2008 (data de publicação do decreto). A referida Convenção traz, em seu art. 1º, a definição do que seja pessoa com deficiência, entendida como “(...) aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.

No presente caso, as vítimas são portadoras de uma patologia neurológica, que gera crises convulsivas, cuja severidade conduz os seus portadores a danos no desenvolvimento neuropsicomotor, que têm como consequência perdas e involuções cognitivas. Estas, por sua vez, podem ser irreversíveis, em razão da diminuição da plasticidade neural com o decorrer dos anos.

Com efeito, as crianças e jovens em questão têm sua autonomia e inserção social dificultada pela patologia neurológica de que são portadores, descrição que conduz à correta classificação delas como pessoas com deficiência, nos termos do artigo supramencionado. Isso posto, e em observação a urgência do pedido, decorrente do estado de risco no qual se encontram, a pretensão jurisdicional aqui lançada tem amparo no documento legal já citado, obtendo lastro principalmente nos artigos 3º, “a” e “h”, 7º, §1 e §2, 10º, 11º, ipsis litteris:

Art 3º. Os princípios da presente convenção são: a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; [...] h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.Art. 7º. §1. Os Estados Partes tomarão todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiências o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças. §2. Em todas as ações

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relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial. (grifos nossos)Art. 10º. Os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida e tomarão todas as medidas necessárias para assegurar o efetivo exercício desse direito pelas pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.Art. 11º. [...] Os Estados Partes tomarão todas as medidas necessárias para assegurar a proteção e a segurança das pessoas com deficiência que se encontrarem em situações de risco [...].

No mesmo sentido, o artigo 25º, “a” e “b”, verbis:

Art. 25. Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível [...] Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde [...]; a) Oferecerão às pessoas com deficiência programas de atenção à saúde gratuitos ou a custas acessíveis da mesma variedade, qualidade e padrão que são oferecidos às demais pessoa, inclusive na área [...] de programas de saúde pública [...] d) Exigirão dos profissionais de saúde que dispensem às pessoas com deficiência a mesma qualidade de serviços dispensada às demais pessoas [...] Para este fim, os Estados Partes realizarão atividades de formação e definirão regras éticas para os setores de saúde público e privado, de modo a conscientizar os profissionais de saúde acerca dos direitos humanos, da dignidade, autonomia e das necessidades das pessoas com deficiência.

Note-se que a finalidade superior dos artigos referenciados é a proteção contra ingerências e/ou omissões que dificultem o pleno desenvolvimento dos deficientes, sua autonomia, dignidade, seu projeto de vida. No presente caso, a pretensão do autor ministerial busca diminuir uma das barreiras para o caminhar de uma vida mais estável, de forma justa, sem prejuízos ulteriores à sociedade.

Apesar de encontrado na Cannabis Sativa (maconha), o Cannabidiol não provoca nenhum efeito colateral significativo, à exceção de sonolência presente apenas em altas dosagens, de acordo com os estudos realizados até então (vide artigo do Prof. Malcher-Lopes, citado acima). Portanto, é dever do Estado garantir os direitos fundamentais de autonomia, autodeterminação, desenvolvimento pleno das capacidades intelectuais, socialização e – o princípio máximo da nossa constituição e dos direitos humanos – a dignidade da pessoa humana aos portadores de enfermidades neurológicas convulsionantes, bem como a todos os demais em condições semelhantes, cabendo a responsabilização por omissão inconstitucional e/ou inconvencional, caso as demandas não sejam atendidas.

2.3.3. O regime jurídico especial concedido pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos – da ofensa ao direito convencional à saúde.

Quanto a esta matéria, importante repetir que a alta frequência de crises epiléticas tem o condão de afetar a integridade física e

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psicológica dos substituídos, a sua qualidade de vida e a sua dignidade, enquanto seres humanos. Assim, evidente se torna que o Estado precisa tomar as posturas necessárias para soluções de tais inconvenientes, para que seja tutelado, urgentemente, o Fundamento da República Federativa do Brasil, exposto no art. 1º, inciso III, da Constituição de 1988.

Ainda, o direito de acesso à saúde é previsto, do mesmo modo, na Constituição Federal, de 1988, em seu art. 196. Dessa forma, evidente que o Estado tem uma obrigação positiva para com essas pessoas, posto que é seu o dever de prover-lhes a saúde e, assim, restaurar sua dignidade enquanto seres humanos. Desta forma, a liberação, pelo Estado, da importação e uso do Cannabidiol a esses pacientes é medida urgente e necessária, uma vez convolado, como aqui se demonstra, no tratamento mais eficaz e seguro.

Desta feita, a negativa do Estado em liberar a citada substância, para importação e utilização no tratamento dos acometidos, resulta em flagrante desrespeito ao direito à integridade pessoal dos mesmos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), interpretando a Convenção Americana de Direitos Humanos, tem decidido que o gozo do direito à vida está diretamente ligado ao fornecimento de condições que permitam a proteção à integridade física, psicológica e moral (integridade pessoal) dos indivíduos:

“A Corte tem, repetidamente, estatuído que o direto à vida é um direito humano fundamental, o gozo e exercícios deste é prerrequisito para o exercício de todos os outros direitos. Integridade pessoal é essencial para o gozo da vida humana.”8

Também, a Corte IDH tem julgado que a proteção ao direito à integridade pessoal perpassa a proteção à saúde humana:

“No que toca à relação entre a obrigação de garantia (artigo 1 (1)) e artigo 5(1) da Convenção, a Corte tem estabelecido que o direito à integridade pessoal é direta e imediatamente ligado à atenção à saúde humana”.9

Quanto à proteção e exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, como o é o direito a saúde, adverte a Corte IDH:

“Nesse contexto, a Corte julga que é apropriado recordar sobre a interdependência que existe entre direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais, uma vez que eles devem ser totalmente entendidos como direitos humanos, sem nenhuma hierarquia e exigíveis em todos os casos perante as autoridades competentes.”10

Sobre a hipóteses de responsabilização do Estado, dispõe a

Corte IDH:

8 Caso Albán – Cornejo e outros v. Equador, Julgamento de 22 de novembro de 2007, parág. 117.9 Caso Suárez Peralta v. Equador, Julgamento de 21 de maio de 2013, parág. 130.10 Caso Acevedo Buendia e outros v. Perú, Julgamento de 1 de julho de 2009, parág. 101.

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“As hipóteses de responsabilidade do Estado podem ser geradas quando um órgão ou autoridade estatal ou uma instituição pública pode afetar, ilegalmente, tanto por atos quanto por omissões, algum dos interesses legais protegidos pela Convenção Americana.”11

“A assistência médica deficiente recebida pela alegada vítima constitui uma violação ao Artigo 5 da Convenção Americana.”12

Ainda, tal ato de denegação Estatal constituirá violação da integridade psicológica e moral dos familiares dos enfermos que tiveram seus direitos violados pela omissão estatal, conforme inteligência da jurisprudência da Corte IDH:

“Sobre este ponto, a Corte tem considerado que o direito à integridade psicológica e moral de alguns membros das famílias das vítimas tem sido violado devido ao sofrimento adicional ao qual foram submetidos como resultado de circunstâncias específicas de violações perpetradas contra seus entes queridos, e por causa dos subsequentes atos ou omissões das autoridades do Estado em relação aos fatos.”13

Ex positis, entende-se que ao impedir o acesso dos substituídos e/ou responsáveis à substância “Cannabidiol”, o Estado brasileiro viola os supracitados artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, expondo-se à possível tutela da matéria pela Corte IDH, e à consequente condenação internacional por parte desta.

2.3.4. Adequação das Normas Regentes do caso para uma efetiva tutela do direito à saúde dos que dele necessitam.

A forma disciplinada pela ANVISA para acesso à tal substância, frise-se, é demasiado imprópria, eis que as exigências estabelecidas para o acesso daqueles que necessitam do tratamento constituem-se em tarefa quase impossível, conforme os depoimentos colhidos no curso do Procedimento Preparatório do MPF (em anexo, e com trechos transcritos na presente exordial), posto que médicos não fornecem as prescrições acompanhadas do termo de responsabilidade. Diante disto, uma medida que visa o interesse fiscalizatório, por parte do Estado, termina por assumir claro viés proibitório, ao impor apresentação de documento cuja obtenção é dificultosa, algo que vai de encontro à urgência do acesso constante e ininterrupto ao produto inerente a qualquer tratamento de médio e longo prazo.

Ante o exposto, resulta cristalina a omissão inconvencional do Estado, em desacordo com os standards estabelecidos pelas Convenções da ONU sobre entorpecentes; Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua jurisprudência correlata, o que sedimenta ainda mais os pedidos lançados pelo autor ministerial ao final desta peça.

11 Caso Albán – Cornejo e outros v. Equador, Julgamento de 22 de novembro de 2007, parág. 119.12 Caso Tibi v. Equador, Julgamento de 07 de setembro de 2004, parág. 157.13 Caso Suárez Peralta v. Equador, Julgamento de 21 de maio de 2013, parág. 156.

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3. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Ao Ministério Público foi incumbida a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, competindo-lhe ainda zelar pelos serviços de relevância pública e pelos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia, conforme insculpido nos artigos 127 e 129, inc. II, da Carta Magna. Com base nesse mesmo texto, ficou reconhecida a legitimidade processual ativa ao Ministério Público para promover ação civil pública na defesa de direito individual indisponível.

A saúde é direito individual, indisponível e homogêneo, assegurado constitucionalmente e que constitui serviço de relevância pública, competindo ao Estado assegurá-la a todos os cidadãos. Dessa forma, quando tal direito é obstado, negligenciado, negado ou postergado, atinge a sociedade como um todo, na medida em que seu direito líquido e certo à saúde está em vias de ser lesionado pela ação desproporcional da autoridade pública (a quem compete o ônus de garantir referido direito), ao obstar o acesso ao tratamento adequado à recuperação do paciente, cuja saúde necessita de assistência e prioridade.

Assim, o Ministério Público, agindo em defesa de serviço público relevante, de quadrante constitucional, que é o direito à saúde, possui legitimação processual extraordinária para garantir o direito indisponível dos substituídos PEDRO AMÉRICO GERIZ NETO, JOÃO VITOR DE OLIVEIRA FERNANDES, SAMUEL DE OLIVEIRA FERNANDES, VITOR BEZERRA DE SOUTO, CAMILE GONZALEZ ROCHA, PEDRO GABRIEL GUIMARÃES FERREIRA SIGISMUNDO, DAVI TABOSA SOUTO, MARINA CARVALHO DE SOUZA, FRANCISCO GABRIEL QUEIROZ DE FARIAS, ISABELLY LARISSA DIAS ARAÚJO, FERNANDO RUY DE LIMA BARDELLA, MARCELLY MARIA SILVA MAIA, BÁRBARA ISADORA AMARAL CARVALHO GOMES DE SÁ, JOÃO VITOR BATISTA FERREIRA, RAYSSA GABRIELY NUNES DA SILVA e SAMUEL VITOR LIMA FERNANDES * à obtenção do único tratamento medicamentoso atualmente capaz de debelar crises epilépticas decorrentes de encefalopatia incurável, mas que atualmente não pode ser realizado de forma ordinária no país em razão da ausência de registro do medicamento e por ser a substância de uso proscrito em lista da ANVISA.

Em inúmeras decisões, os Tribunais pátrios já reconheceram a legitimidade do Ministério Público para atuar como substituto processual em favor de pessoa doente, haja vista ser indiscutível a legitimidade do órgão ministerial, como forma de preservar o direito do substituído que reclama do Poder Público atuação efetiva para resguardar-lhe a saúde e a vida. É o que se apanha dos seguintes julgados, verbis:

PROCESSO CIVIL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA VISANDO AO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A PESSOA IDOSA. OBRIGAÇÕES DE FAZER E ENTREGAR COISA. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA.CABIMENTO, INCLUSIVE CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. 1. O Ministério Público possui legitimidade para defesa dos direitos individuais indisponíveis,

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mesmo quando a ação vise à tutela de pessoa individualmente considerada. 2. O artigo 127 da Constituição, que atribui ao Ministério Público à incumbência de defender interesses individuais indisponíveis, contém norma auto-aplicável, inclusive no que se refere à legitimação para atuar em juízo. 3. Tem natureza de interesse indisponível a tutela jurisdicional do direito à vida e à saúde de que tratam os arts. 5º, caput e 196 da Constituição, em favor de pessoa idosa que precisa fazer uso contínuo de medicamento. A legitimidade ativa, portanto, se afirma, não por se tratar de tutela de direitos individuais homogêneos, mas sim por se tratar de interesses individuais indisponíveis. 4. É cabível, mesmo contra a Fazenda Pública, a cominação de multa diária (astreintes) como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer (fungível ou infungível) ou entregar coisa. Precedentes. 5. Recurso especial a quese nega provimento (REsp 822712/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04.04.2006, DJ 17.04.2006 p. 196 referência).

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MENOR. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONFIGURAÇÃO. PRECEDENTES DO STF E STJ. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. A Primeira Seção deste Tribunal Superior pacificou o entendimento das Turmas de Direito Público no sentido de que o Ministério Público possui legitimidade para ajuizar medidas judiciais para defender direitos individuais indisponíveis, ainda que em favor de pessoa determinada: EREsp 734.493/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 16.10.2006; EREsp 485.969/SP, Rel. Min. José Delgado, DJ de 11.9.2006. 2. No mesmo sentido, os recentes precedentes desta Corte Superior: EREsp 466.861/SP, 1ª Seção, Rel. Min Teori Albino Zavascki, DJ de 7.5.2007; REsp 920.217/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 6.6.2007; REsp 852.935/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 4.10.2006; Resp 823.079/RS, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 2.10.2006; REsp 856.194/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 22.9.2006; REsp 700.853/RS, 1ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, DJ de 21.9.2006; REsp 822.712/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 17.4.2006. 3. Embargos de divergência providos (EREsp 737958/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12.09.2007, DJ 15.10.2007 p. 219).

PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SUS. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO, PELO ESTADO, ÀPESSOA HIPOSSUFICIENTE PORTADORA DE DOENÇA GRAVE. OBRIGATORIEDADE. LEGITIMIDADE PASSIVA. SECRETÁRIO DE ESTADO DA SAÚDE. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. ART. 515, § 3º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. EFETIVIDADE. AFASTAMENTO DAS DELIMITAÇÕES. PROTEÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER CONSTITUCIONAL. ARTS. 5º, CAPUT, 6º, 196 E 227 DA CF/1988. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR E DO COLENDO STF.(…) 5. Constitui função institucional e nobre do Ministério Público buscar a entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer medicamento essencial à saúde de pessoa carente, especialmente quando sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar, prematuramente, a sua morte.

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6. O Estado, ao negar a proteção perseguida nas circunstâncias dos autos, omitindo-se em garantir o direito fundamental à saúde, humilha a cidadania, descumpre o seu dever constitucional e ostenta prática violenta de atentado à dignidade humana e à vida. É totalitário e insensível.7. Pela peculiaridade do caso e em face da sua urgência, hão de se afastar as delimitações na efetivação da medida sócio-protetiva pleiteada, não padecendo de ilegalidade a decisão que ordena à Administração Pública a dar continuidade a tratamento médico.8.Legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação civil pública em defesa de direito indisponível, como é o direito à saúde, em benefício de pessoa pobre.9. Precedentes desta Corte Superior e do colendo STF.10. Recurso provido(RMS 23.184/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27.02.2007, DJ 19.03.2007 p. 285).

4. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO

O debate quanto à legitimidade passiva da UNIÃO, em ação judicial que busca a liberação do fornecimento de medicamento, cujo controle e fiscalização cabe a autarquia federal, qual seja, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), é questão que dispensa maiores discussões.

É importante repisar que, indubitavelmente, a substância em foco é necessária ao tratamento de crises epilépticas sofridas pelos menores e jovens acometidos, referidos no item 1.1. desta petição, que correm risco de danos cerebrais e psicomotores irreversíveis (inclusive de morte) caso não seja ministrada, pois todo tratamento à disposição não surte qualquer efeito.

Com isso, diante da clara necessidade em saúde, deve a União disponibilizar os meios necessários para satisfazê-la, uma vez que é a ANVISA, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, órgão da União, principal órgão responsável pelo entrave que resulta na não administração regular do medicamento para os substituídos.

Afinal, tal obrigação é imposta pela própria Constituição Federal que, além de incumbir União e Estados de cuidarem da saúde e assistência pública (art. 23), aponta que a saúde é direito social (art. 6º) de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Como se não bastassem as disposições constitucionais supra, a Lei nº 8.080/1990, que regula o Sistema Único de Saúde (SUS), preceitua no mesmo sentido (arts. 2º, 5º, inc. III, 6º, inc. I, “d”, e 7º, caput e inc. II).

5. DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

Diante da gravidade do direito protegido por meio desta demanda (saúde de jovens e crianças), e levando em consideração a evidente situação de impossibilidade de assistência a esse direito através dos meios e

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técnicas ordinários (tratamentos medicamentosos tradicionais) à disposição dos profissionais de saúde em território nacional, como demonstrado no curso da presente peça, é de se supor que a solução judicial ora pleiteada – qual seja, a liberação para importação e uso da substância Cannabidiol pelos substituídos, por se tratar de único tratamento viável para as crises epiléticas e os danos cerebrais e psicomotores delas provenientes – deva oferecer a mais célere tutela possível.

A possibilidade de concessão de medida liminar em ação civil pública encontra previsão legal expressa no artigo 12, caput, da Lei Nº. 7.347/1985. Ante a ausência, no regramento próprio, de previsão acerca dos requisitos para o deferimento da medida liminar, aplicam-se as regras do Código de Processo Civil atinentes à tutela antecipatória, especialmente a seguinte, verbis:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.§ 1º. Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento.§ 2º. Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.§ 3º. A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º e 5º, e 461-A (…).

Percebe-se, sem muita dificuldade, que os requisitos legais exigidos para a concessão da tutela antecipatória assecuratória aqui requerida estão efetivamente presentes. A verossimilhança vem demonstrada pela exposição fática e jurídica até o momento exposta, corroborada pela conteúdo probatório que acompanha a inicial, consubstanciado no Inquérito Civil Público Nº. 1.24.000.001421/2014-74, donde se extrai senão a prova inequívoca dos fatos narrados, mas elementos suficientes para a formação do convencimento provisório do Juízo (ineficiência dos tratamentos à disposição e eficácia da substância proscrita pela ANVISA nos casos enfrentados pelas crianças e jovens aqui mencionados).

Demais disso, não faria sentido que, em sede de antecipação de tutela, se exigisse um grau de certeza ainda maior do que o propugnado pelos próprios princípios do direito processual civil, sabendo-se que sequer para a sentença que julga o mérito é necessária a demonstração da verdade real. Nesse sentido, comprovada a verossimilhança da alegação, pois certo é o direito das crianças e jovens substituídos de acesso à única alternativa médica disponível no momento para amenizar os efeitos nefastos da enfermidade que enfrentam, qual seja, o uso do medicamento conhecido como CANNABIDIOL.

Certa, também, é a responsabilidade da União e da Agência de Vigilância Sanitária, ora requeridos, ao impedir, de forma totalmente

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desarrazoada, a disponibilização desse tratamento, ao vedar a importação e proibir o uso e, ainda, criar fortes entraves burocráticos para excepcionar alguns poucos casos, sem que tal possa ser posto em dúvida diante do arcabouço normativo ora citado.

No tocante ao perigo da demora, de maneira nenhuma poder-se-á duvidar do atendimento ao requisito da existência de "fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação". O estado de saúde das crianças e jovens é grave, senão preocupante, pois as crises por eles sofridas, como já discutido, seguidamente vão solapando a possibilidade de recuperação do epitélio neural, resultando em sérios danos psicomotores que prejudicarão, em definitivo, o desenvolvimento mental e físico dessas pessoas, podendo até levá-los a óbito, caso não lhes sejam administrado o CANNABIDIOL.

Nesse contexto, conclui-se que a antecipação dos efeitos da tutela é medida que se impõe, haja vista que o seu não deferimento acarretará em prejuízos irreparáveis à saúde e à vida das pessoas envolvidas.

Assim, uma vez que se encontram presentes os requisitos legais autorizadores previstos no art. 273 e incisos do CPC, há a possibilidade de concessão de medida de natureza cautelar, evitando o perecimento do direito do autor, conforme preceitua o artigo 273, §7º, verbis:

§ 7º Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.

Evidenciada, portanto, a necessidade de obtenção da medida antecipatória, de fundamental importância para (16 crianças e jovens)*PEDRO AMÉRICO GERIZ NETO, JOÃO VITOR DE OLIVEIRA FERNANDES, SAMUEL DE OLIVEIRA FERNANDES, VITOR BEZERRA DE SOUTO, CAMILE GONZALEZ ROCHA, PEDRO GABRIEL GUIMARÃES FERREIRA SIGISMUNDO, DAVI TABOSA SOUTO, MARINA CARVALHO DE SOUZA, FRANCISCO GABRIEL QUEIROZ DE FARIAS, ISABELLY LARISSA DIAS ARAÚJO, FERNANDO RUY DE LIMA BARDELLA, MARCELLY MARIA SILVA MAIA, BÁRBARA ISADORA AMARAL CARVALHO GOMES DE SÁ, JOÃO VITOR BATISTA FERREIRA, RAYSSA GABRIELY NUNES DA SILVA e SAMUEL VITOR LIMA FERNANDES , requer o MPF:

a) em primeiro lugar, seja determinada à UNIÃO e à AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA que se abstenham de destruir, devolver, reter, impedir a compra e a obtenção ou, de alguma outra forma, fazer com que qualquer objeto postal importado, contendo produto com medicamento composto de CANNABIDIOL com a devida receita médica, e endereçado aos pacientes listados nesta inicial (item 1.1) e/ou seus responsáveis, não chegue ao seu destino;

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b) a aplicação de multa diária na ordem de R$ 100.000,00 (cem mil reais) em razão de eventual descumprimento a quaisquer das determinações acima;

6. DOS PEDIDOS

Em face de tudo quanto acima foi exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL requer:

a) a concessão de antecipação de tutela nos termos formulados acima (item “5”, letras “a” e “b”);

b) a citação dos demandados, nos endereços mencionados, para, querendo, responder aos termos da presente ação, sob pena de revelia;

c) provar o alegado por todos os meios em Direito admitidos, especialmente, juntada posterior de documentos, realização de perícias médicas e oitiva de testemunhas, tudo desde logo requerido;

d) por fim, a procedência do pedido, ordenando-se:

d.1. a confirmação da tutela antecipada requerida, para que se determine à UNIÃO e à AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA que se abstenham de destruir, devolver, reter, impedir a compra e a obtenção ou, de alguma outra forma, fazer com que qualquer objeto postal importado, contendo produto com medicamento composto de CANNABIDIOL com a devida receita médica, e endereçado aos pacientes listados nesta inicial (item 1.1) e/ou seus responsáveis, não chegue ao seu destino;

d.2. à AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA que se abstenha de exigir, dos pacientes listados nesta inicial (item 1.1) e/ou dos seus responsáveis, a apresentação de termo de compromisso firmado por médico ou de qualquer outra documentação para a importação e o uso do medicamento CANNABIDIOL além da receita médica mencionada no item anterior;

e) a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, na forma do que dispõe o art. 18 da Lei Federal nº 7.347/1985, e no artigo 87, do Código de Defesa do Consumidor;

f) à causa, para efeitos fiscais, dá-se o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).

João Pessoa, 31 de julho de 2014.

JOSÉ GODOY BEZERRA DE SOUZAProcurador da República

Procurador Regional dos Direitos do Cidadão

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*Todas as informações de caráter pessoal foram retiradas em obediência ao artigo 9º, inciso III, da Portaria PGR/MPF nº 918, de 18 de dezembro de 2013, que instituiu a Política Nacional de Comunicação Social do

Ministério Público Federal.