insurreicao que vem

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    COMIT INVISVEL

    A INSURREIO QUE VEM

    LISBOA

    EDIES ANTIPTICAS2010

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    A Insurreio Que Vem

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    Titulo Original: LInsurrection Qui VientAutor: Comit Invisvel

    Traduo: Edies AntipticasPaginao: F.U.C.K. (reaks unidos contra o kapitalismo)Impresso: Publidisa

    Edio orignal a Maro de 2007 em Frana

    pelas Editions La Fabrique.

    Lisboa. Maio de 2010.

    Edies Antipticas / Rdio LeonorRadioleonor.org [email protected]

    Comit Invisvel - Bloom0101.org

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    ndice

    Qualquer que seja o ponto de vista

    Primeiro Crculo

    Segundo Crculo

    Terceiro Crculo

    Quarto Crculo

    Quinto Crculo

    Sexto Crculo

    Stimo Crculo

    Em MarchaEncontrar-se

    Organizar-se

    Insurreio

    Poscio: Ponto de situao

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    Qualquer que seja o ponto de vista que adoptarmos,

    o presente um beco sem sada. No essa a menor

    das suas virtudes. Aqueles que desejariam acima de

    tudo esperar, vem ser-lhes retirado qualquer tipo de

    sustentao. Os que pretendem ter solues vem-se

    imediatamente desmentidos. Toda a gente sabe que

    as coisas s podem ir de mal a pior. O uturo j no

    tem uturo constitui a sabedoria de uma poca que

    atingiu, sob a sua aparncia de extrema normalidade,

    o nvel de conscincia dos primeiros punks.

    A esera da representao poltica echa-se. Da esquerda

    direita, o mesmo vazio que toma, alternadamente,

    a orma de co de guarda ou ares de virgem, os

    mesmos tcnicos de vendas que mudam de discurso

    conorme as ltimas descobertas do departamento decomunicao. Aqueles que ainda votam parecem ter

    como nica inteno rebentar com as urnas, ora

    de votarem como puro acto de protesto. Comeamos

    a pensar que eectivamente contra o prprio voto que

    as pessoas continuam a votar. Nada daquilo que se

    apresenta est altura da situao, nem de longe nem

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    de perto. At no seu silncio, a populao parece

    innitamente mais adulta do que todos os antoches

    que se atropelam para a governar. H mais sabedoria

    nas palavras de qualquer chibani1 de Belleville doque em todas as declaraes juntas dos nossos auto-

    denominados dirigentes. A tampa da panela de presso

    oi echada com trs voltas, mas l dentro as tenses

    sociais no param de aumentar. Vindo da Argentina,

    o espectro do Que se vayan todos! comea seriamente a

    assombrar as cabeas dirigentes.

    O incndio de Novembro de 2005 continuar a

    projectar a sua sombra sobre todas as conscincias.

    Estas primeiras ogueiras de esta so o baptismo deuma dcada cheia de promessas. Se no alta eccia

    bula meditica dos subrbios-contra-a-Repblica,

    alta-lhe a verdade. Fogos houve que tomaram os

    centros das cidades e oram metodicamente abaados.

    Ruas inteiras de Barcelona arderam em solidariedade

    sem que ningum a no ser os seus habitantes osoubesse. E nem sequer verdade que o pas tenha

    deixado de arder desde ento. Encontramos entre

    os acusados todo o tipo de pers que nada unica

    1 - Chibani (sub.): Idoso em rabe; termo geralmenteempregue para denominar os imigrantes magrebinos queresidem em Frana desde a dcada de 60. (NT)

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    - nem a pertena a uma classe, a uma raa ou a um

    bairro - a no ser o dio sociedade existente. O que

    indito no a revolta dos subrbios j no

    era novidade nos anos oitenta mas sim a ruptura

    com as suas ormas estabelecidas. Os atacantes j

    no ouvem ningum, nem os irmos mais velhos,

    nem as associaes locais, que deviam organizar

    o regresso normalidade. Nenhum SOS Racismo

    poder mergulhar as suas razes cancerosas neste

    acontecimento, a que s o cansao, a adulterao

    e a omert2 mediticas puderam ngir ter posto um

    m. Toda esta srie de golpes nocturnos, ataques

    annimos, destruies sem palavras teve o mrito

    de abrir ao mximo a brecha entre a poltica e opoltico. Ningum pode honestamente negar a orade evidncia do ataque que no ormula qualquerreivindicao, qualquer mensagem a no ser ada ameaa; que no quer saber da poltica paranada. preciso ser-se cego para no ver tudo

    o que h de puramente poltico nesta negaoresoluta da poltica; ou ento no ter qualquerconhecimento dos movimentos autnomos dajuventude dos ltimos trinta anos. Como crianasperdidas, queimmos os primeiros bibelots de umasociedade que no merece mais considerao do

    2 - Omert: Cdigo de silncio adoptado pelos membros da CosaNostra a desde a dcada de 60. (NT)

    Qualquer que seja o ponto de vista...

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    que os monumentos de Paris no m da SemanaSangrenta3, e que o sabe pereitamente.

    No haver soluo social para a situao presente.Desde logo, porque o vago agregado de meios,instituies e bolhas individuais, a que chamamospor antrase sociedade, no tem consistncia;

    segundo, porque j no existe linguagem paraa experincia comum. E no existe partilha deriqueza sem a partilha de uma linguagem. Foinecessrio meio sculo de luta pelas Luzes paraorjar a possibilidade da Revoluo Francesa, eum sculo de luta pelo trabalho para dar luz um

    horroroso Estado Providncia. As lutas criam alinguagem com que se diz a nova ordem. Hoje, noh nada comparvel. A Europa um continentealido que vai s escondidas azer compras aoLidl e viaja em low cost para continuar a viajar.Nenhum dos problemas que se ormulam

    na linguagem social tem soluo. As questesdas penses de reorma, da precariedade,dos jovens e da sua violncia s podemcar em suspenso, enquanto se lida de orma

    3- Perodo nal da Comuna de Paris, de 22 a 28 de Maio de1871, quando as tropas de Versalhes massacraram os insurrectos

    parisienses. Vrios palcios e monumentos da cidade oram entodestrudos ou incendiados durante os combates. (NT)

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    policial com as passagens ao acto, cada vez maisimpressionantes, que aquelas dissimulam. No possvel embelezar o acto de se ter de limpar - apreo de saldos - o rabo a velhotes abandonadospelos seus amiliares e que nada tm a dizer.Os que encontraram menos humilhaes emais benecios nos meios criminosos do que

    na limpeza das ruas no deporo as suas armas,e no a priso que lhes vai inculcar o amorpela sociedade. A ria hedonista das hordas dereormados no suportar passivamente os cortesdissimulados nos seus rendimentos mensais, e nopode seno aumentar perante a recusa do trabalho

    por uma larga atia da juventude. Finalmente,nenhum rendimento garantido negociado umdia aps uma quase-revolta poder lanar as basesde um novo New Deal, de um novo pacto, de umanova paz. O sentimento social j se evaporoudemasiado para que isso possa acontecer.

    Em matria de solues, a presso paraque nada acontea, e com ela a diviso policial doterritrio em quadrculas, no vai parar de crescer.O drone que, no passado dia 14 de Julho e segundodeclaraes da prpria polcia, sobrevoou Seine-Saint-Denis4 desenha o uturo a cores mais ntidas

    4 - Seine-Saint-Denis: Subrbio localizado a Nordeste de Paris. (NT)

    Qualquer que seja o ponto de vista...

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    do que todas as brumas humanistas. O acto deterem eito questo de precisar que ele no estavaarmado mostra muito claramente o caminho emque nos encontramos. O territrio ser divididoem zonas cada vez mais estanques. Auto-estradascolocadas nos limites de um bairro sensvelormaro um muro invisvel, separando-o ao

    mesmo tempo das zonas de vivendas. Apesar doque possam pensar as boas almas republicanas,a gesto dos bairros por comunidade notoriamente a mais operativa. As parcelasexclusivamente metropolitanas do territrio, osprincipais centros das cidades, levaro as suas

    vidas luxuosas numa desconstruo cada vez maisrebuscada, cada vez mais sosticada, cada vezmais resplandecente. Iluminaro o planeta inteirocom a sua luz de bordel enquanto as patrulhasda BAC5, as empresas de segurana privada em suma, as milcias se multiplicaro at ao

    innito, beneciando de uma cobertura judicialcada vez mais descarada.

    O impasse do presente, perceptvel em todo olado, negado em todo o lado. Nunca tantos

    5 - Brigade anticriminalit: Corpo de polcia urbana rancesaespecializado em bairros problemticos. (NT)

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    psiclogos, socilogos ou literatos se dedicaram aele, cada um com o seu jargo particular, ao qualalta sobretudo qualquer tipo de concluso. Bastaouvir a msica dos nossos dias, as lamechicesda nova cano rancesa, onde a pequenaburguesia disseca os seus estados de alma, e asdeclaraes de guerra da Ma K1 Fry6 para

    perceber que a coexistncia acabar daqui apouco, que a deciso est para breve.

    Este livro assinado com o nome de um colectivoimaginrio. Os seus redactores no so os seusautores. Limitaram-se a pr um pouco de ordem

    nos lugares-comuns da poca, naquilo que sesussurra nas mesas dos bares, por detrs das portasechadas dos quartos. No zeram mais do quexar as verdades necessrias, cujo recalcamentouniversal enche os hospitais psiquitricos e osolhares de mgoa. Fizeram-se escribas da situao.

    um privilgio das circunstncias radicais queo rigor conduza logicamente revoluo. Bastaalar daquilo que temos rente dos olhos e nonos esquivarmos s concluses.

    6 - Grupo de Hip-Hop amoso em Frana. (NT)

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    PRIMEIRO CRCULOI am what I am

    I AM WHAT I AM. esta a ltima oerendado marketing ao mundo, o estdio ltimo daevoluo publicitria, para l, muito para l detodas as exortaes a sermos dierentes, a sermosns prprios e a bebermos Pepsi. Dcadas deconceitos para aqui chegar, tautologia pura.EU = EU. Ele corre na passadeira rente doespelho do ginsio. Ela volta do trabalho aovolante do Smart. Ser que se vo encontrar?

    EU SOU AQUILO QUE SOU. Omeu corpo pertence-me. Eu sou eu, tu s tu,e isto no vai nada bem. Personalizao de massa.Individualizao de todas as condies de vida,de trabalho, de inelicidade. Esquizorenia diusa.Depresso galopante. Atomizao em pequenas

    partculas paranicas. Histerizao do contacto.Quanto mais quero ser Eu, maior a sensao devazio. Quanto mais me exprimo, mais me esgoto.Quanto mais vou atrs das coisas, mais cansadoco. Eu ocupo-me, tu ocupas-te, ns ocupamo-nos do nosso Eu como num entediante balco

    de atendimento. Tornmo-nos os representantes

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    de ns prprios estranho comrcio, adoresde uma personalizao que se assemelha, anal,a uma amputao. Aanamos at runa, comuma alta de jeito mais ou menos disarada.

    No entretanto, ao a gesto. Da procurade uma identidade, do meu blog, do meuapartamento, das ltimas patetices da moda,

    das histrias a dois ou de cama a quantidadede prteses que preciso para sustentar umEu! Se a sociedade no se tivesse tornadoesta abstraco completa, designaria o conjuntodas muletas existenciais que me estendem paraque me continue a arrastar, o conjunto das

    dependncias que contra em troca da minhaidentidade. O deciente constitui o modelo da cidadania quevem. No sem uma certa dose de premonioque as associaes que o exploram reivindicamactualmente para o deciente um rendimentode subsistncia.

    A obrigao constante de ser algum preservao estado patolgico que torna necessria estasociedade. A obrigao de ser orte produz araqueza pela qual ela se mantm, ao ponto detudo parecer assumir um aspecto teraputico, at trabalhar,

    at amar. Todos os tudo bem? que trocamos ao

    Primeiro Crculo

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    longo do dia sugerem uma sociedade de pacientessempre a medir a temperatura uns dos outros.A sociabilidade actualmente ormada por milpequenos nichos, mil pequenos regios ondeuma pessoa se mantm quentinha. Onde se estsempre melhor do que no muito rio que az lora. Onde tudo also, porque no passa de um

    pretexto para nos aquecermos. Onde nada podeacontecer porque estamos todos silenciosamenteocupados a tiritar em conjunto. Em breve, estasociedade s se aguentar atravs da tenso detodos os tomos sociais em direco a uma curailusria. uma central que az uncionar as suas

    turbinas graas a um gigantesco reservatrio delgrimas, sempre beira de transbordar.

    I AM WHAT I AM. Nunca a dominao tinhaencontrado palavra de ordem to insuspeita. Amanuteno do Eu num estado de semi-runa

    permanente, de semi-desalecimento crnico, o segredo mais bem guardado do actual estadode coisas. O Eu rgil, deprimido, auto-crtico,virtual , por essncia, o sujeito indenidamenteadaptvel que requer uma produo baseadana inovao, na obsolescncia acelerada das

    tecnologias, na constante transormao das

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    normas sociais, na fexibilidade generalizada. ao mesmo tempo o mais voraz consumidor e,paradoxalmente, o Eu mais produtivo, aquele que selanar com mais energia e avidez sobre o maispequenoprojecto, para depois voltar ao seu estadolarvar original.

    AQUILO QUE SOU, ento? Atravessado

    desde a inncia por fuxos de leite, de cheiros,de histrias, de sons, de aectos, de cantilenas, desubstncias, de gestos, de ideias, de impresses,de olhares, de cantos e de comida. Aquilo que sou?Completamente ligado a lugares, sorimentos,antepassados, amigos, amores, acontecimentos,

    lnguas, recordaes, a todo o tipo de coisas que,obviamente, no so eu. Tudo o que me prendeao mundo, todos os laos que me constituem,todas as oras que me povoam no tecem umaidentidade, como me incitam a apregoar, masantes uma existncia, singular, comum, viva, e

    de onde, aqui e ali, de vez em quando, emergeesse ser que diz eu. O nosso sentimento deinconsistncia apenas o eeito dessa crena tolana permanncia do Eu, e da pouca ateno queconcedemos quilo que nos constitui.

    vertiginoso ver o I AM WHAT I

    AM da Reebok entronado no topo de um

    Primeiro Crculo

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    arranha-cus de Xangai. O Ocidente avana emtodas as direces, tal como o seu cavalo deTria preerido, essa antinomia mortera entreo Eu e o mundo, o indivduo e o grupo, entreenraizamento e liberdade. A liberdade no ogesto de nos desazermos dos nossos laos, masa capacidadeprtica de agirmos sobre eles, de nos

    movermos dentro deles, de os estabelecermos oude os cortarmos. A amlia s existe como amlia,isto , como inerno, para aquele que renuncioua alterar-lhe os mecanismos debilitantes, ou queno sabe como o azer. A liberdade de uma pessoase subtrair oi sempre o antasma da liberdade.

    Nunca nos desembaraamos daquilo que nosbloqueia sem ao mesmo tempo perdermosaquilo sobre o qual as nossas oras se poderiamexercer.

    I AM WHAT I AM no portantouma simples mentira, uma simples campanha

    publicitria, mas sim uma campanha militar,um grito de guerra lanado contra tudo oque existe entre os seres, contra tudo o quecircula indistintamente, tudo o que os ligainvisivelmente, tudo o que serve de obstculo desolao completa, contra tudo o que az com

    que ns existamos e que o mundo inteiro no se

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    assemelhe a uma auto-estrada, a um parque dediverses ou a uma nova cidade tdio puro, bemordenado e sem paixo, espao vazio, glacial,onde s transitam corpos registados, molculasautomveis e mercadorias ideais.

    A Frana no seria a ptria dos ansiolticos,

    o paraso dos anti-depressivos, a Meca daneurose se no osse simultaneamente a campeeuropeia da produtividade horria. A doena,o cansao, a depresso podem ser vistos comosintomas individuais daquilo que preciso curar.Contribuem dessa orma para a manuteno da

    ordem existente, para a minha adaptao dcil anormas idiotas, para a modernizao das minhasmuletas. Encobrem a seleco que eu prprioao entre as minhas inclinaes oportunas,conormes, produtivas, e aquelas de que, comjeitinho, ser preciso azer o luto. preciso

    saber mudar, sabes? No entanto, tomadas comoactos, as minhas alhas podem tambm levar aodesmantelamento da hiptese do Eu. Tornam-se ento actos de resistncia na guerra queest em curso. Tornam-se rebelio e centro deenergia contra tudo aquilo que conspira para nos

    normalizar, para nos amputar. No o Eu que est

    Primeiro Crculo

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    em crise, mas sim a maneira como nos querem impor esse Eu.Querem tornar-nos Eus bem delimitados, isolados,classicveis e catalogveis por qualidades, numapalavra, controlveis, quando somos criaturasentre as criaturas, singularidades entre os nossossemelhantes, carne viva que compe a carne domundo. Ao contrrio do que nos dizem desde

    pequenos, a inteligncia no a capacidadede adaptao ou, se isso inteligncia, sera dos escravos. A nossa inadaptao, o nossocansao, s so problemas do ponto de vista dequem nos quer subjugar. Indicam sobretudoum ponto de partida, um ponto de confuncia

    para cumplicidades inditas. Deixam entreveruma paisagem muito mais deteriorada, masinnitamente mais partilhvel do que todas asantasmagorias que esta sociedade alimenta arespeito de si prpria.

    Ns no estamos deprimidos, estamos

    em greve. Para aqueles que se recusam agerir-se a si prprios, a depresso no um estado mas sim uma passagem, umadeus, um passo para ao lado, em direco auma desiliao poltica. A partir da, a nicaconciliao possvel a dos medicamentos e

    a da polcia. por isso que esta sociedade no

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    hesita em impr Ritalin7 s suas crianas maisirrequietas, enredando-as tranquilamente nasteias da dependncia de rmacos e pretendendoconseguir detectar distrbios comportamentaisdesde os trs anos. Porque a hiptese do Eu queest a abrir brechas por todo o lado.

    7 - Ritalin: Frmaco. Estimulante do sistema nervoso central,utilizado sobretudo em crianas a quem oram diagnosticadas

    diculdades de concentrao e hiperactividade. (NT)

    Primeiro Crculo

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    Um governo que declara o estado de emergnciacontra midos de quinze anos. Um pas quecoloca a sua salvao nas mos de uma equipa

    de utebol. Um ba numa cama de hospital quese queixa de ter sido vtima de violncias. Umgovernador civil que toma medidas contra quemconstruir cabanas nas rvores. Duas crianas dedez anos, em Chelles, inculpadas pelo incndiode uma ludoteca. Esta poca revela um talento

    especial para um certo grotesco de situao, quea cada momento parece escapar-lhe. precisodizer que os mdia no se poupam a esorospara, nos registos da queixa e da indignao,abaarem a exploso de riso com que notciasdestas deviam ser recebidas.

    O rebentar de uma exploso de riso seriaa resposta adequada a todas as graves questesque a actualidade tanto gosta de levantar. Acomear pela mais repisada de todas: a questoda imigrao, que no existe. Quem que aindacresce no mesmo stio onde nasceu? Quem que

    vive no mesmo stio onde cresceu? Quem que

    SEGUNDO CRCULOA diverso uma necessidade vital

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    trabalha no mesmo stio onde vive? Quem quevive no mesmo stio onde os seus antepassadosviveram? E as crianas desta poca so lhas dequem, da televiso ou dos pais? A verdade queomos, em massa, arrancados a toda e qualquerpertena, j no somos de lado nenhum, e queda resulta, a par de uma indita propenso para

    o turismo, um inegvel sorimento. A nossahistria a das colonizaes, das migraes, dasguerras, dos exlios, da destruio de qualquerenraizamento. Foi a histria de tudo isso que ezde ns estrangeiros neste mundo, convidadosna nossa prpria amlia. Fomos expropriados

    da nossa lngua pelo ensino, das nossas canespelos espectculos de variedades, da nossa carnepela pornograa de massa, da nossa cidadepela polcia, dos nossos amigos pelo trabalhoassalariado. A isto junta-se, em Frana, o trabalhoeroz e secular de individualizao levado a cabo

    por um poder de Estado que regista, compara,disciplina e separa os seus cidados desde amais tenra idade, que tritura instintivamente assolidariedades que lhe escapam, de modo a queno reste nada seno a cidadania, a pura pertena antasmtica Repblica. O rancs, mais

    do que qualquer outra coisa, o espoliado, o

    Segundo Crculo

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    miservel. O dio que tem ao estrangeiro unde-se com o dio a si prprio enquanto estrangeiro. Omisto de inveja e terror que sente em relaos cits8 revela apenas o seu ressentimento portudo o que perdeu. No consegue evitar invejaresses bairros ditos problemticos onde aindapersiste um pouco de vida comum, alguns

    laos entre as pessoas, algumas solidariedadesno-estatais, uma economia inormal, umaorganizao que ainda no se separou daquelesque se organizam. Chegmos a um ponto tal deprivao que a nica maneira de nos sentirmosranceses baraustarmos contra os imigrantes,

    contra aqueles que so mais visivelmenteestrangeiros como eu. Os imigrantes ocupam nestepas uma curiosa posio de soberania: se eles c

    no estivessem, os ranceses talvez j no existissem.

    A Frana um produto da sua escola, e no o

    inverso. Vivemos num pas excessivamenteescolar, onde as pessoas se lembram do examedo bac como um momento marcante na vida.Onde h reormados que ainda alam de como,h quarenta anos, chumbaram neste ou naquele

    8 - Cits: Termo inormal empregue para designar os grandes bairrosde realojamento localizados na perieria dos centros urbanos. (NT)

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    exame, e como isso lhes pesou durante toda asua carreira, toda a sua vida. A escola republicanavem ormando, de h um sculo e meio parac, um tipo de subjectividades estatizadas,pereitamente reconhecveis em toda a gente.Pessoas que aceitam a seleco e a competiodesde que haja igualdade de oportunidades. Que

    esperam da vida que cada um seja recompensado,como num concurso, de acordo com o seumrito. Que pedem licena por tudo e por nada.Que respeitam silenciosamente a cultura, osregulamentos e os melhores alunos da turma.At a sua estima pelos grandes intelectuais

    crticos e pela sua rejeio do capitalismo estoimpregnadas deste amor pela escola. E estaconstruo estatal das subjectividades que, diaaps dia, se vai a pouco e pouco desmoronandocom a decadncia da instituio escolar. Oreaparecimento, nos ltimos vinte anos, da

    escola e da cultura de rua em competiocom a escola republicana e a sua cultura depapelo constitui o golpe mais proundo queo universalismo rancs sore actualmente. Nesteponto a direita mais extremista reconcilia-seantecipadamente com a esquerda mais virulenta.

    Apenas o nome de Jules Ferry, ministro de Thiers

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    durante o esmagamento da Comuna e terico dacolonizao, deveria ser suciente para tornaresta instituio suspeita aos nossos olhos.

    Quanto a ns, quando vemos proessorespertencentes a um qualquer comit devigilncia de bairro choramingar no telejornalque queimaram a sua escola, lembramo-nos da

    quantidade de vezes que, em midos, sonhmosazer isso mesmo. Quando ouvimos umintelectual de esquerda arrotar sobre a barbriedos bandos de jovens que interpelam as pessoasna rua, roubam nas lojas, incendeiam carros eazem o jogo do gato e do rato com os CRS9,

    recordamo-nos do que se dizia dos blousonsnoirs10 dos anos 60 ou, melhor ainda, do quese dizia dos apaches durante a Belle poque.Como escreveu um juiz do tribunal de Seineem 1907: De h alguns anos para c, tornou-se moda usar o termo genrico apaches para

    designar todos os indivduos perigosos, corja dereincidentes, inimigos da sociedade, sem ptrianem amlia, desertores de todos os deveres,dispostos aos mais ousados golpes de surpresa

    9 - Compagnies Rpublicaines de Scurit: Equivalente rancs aoCorpo de Interveno. (NT)

    10 - Subcultura Francesa dos anos 60 identicada com os rockersamericanos e com a deliquncia juvenil. (NT)

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    e a todo e qualquer atentado contra as pessoasou a propriedade. Estes bandos, que ogem aotrabalho, adoptam os nomes dos seus bairrose enrentam a polcia, so o pesadelo do bomcidado individualizado rancesa: encarnamtudo aquilo a que ele renunciou, toda a alegriapossvel, a que ele nunca aceder. H uma certa

    impertinncia em existir, num pas onde umacriana que seja apanhada a cantar como lheapetece inevitavelmente repreendida com umpra com isso, que me arranhas os ouvidos!,onde a castrao escolar debita em fuxo contnuogeraes de empregados bem disciplinados. A

    aura que ainda hoje rodeia Mesrine11

    tem menosa ver com a sua rectido ou audcia do que como acto ele ter decidido vingar-se daquilo de quetodos ns nos devamos vingar. Ou melhor, deque nos devamos vingar directamente, l ondecontinuamos a desviarmo-nos ou a adiar. Porque

    no restam dvidas de que, atravs de mil e umamesquinhices imperceptveis, de todo o tipo demaledicncias, de uma maldadezinha glida e de

    11 - Jacques Ren Mesrine: Inimigo pblico n1 do Estado rancsnas dcadas de 60 e 70, apelidado de homem dos mil rostos eRobin Hood rancs. Veterano condecorado na Guerra da Arglia,

    tornou-se notrio por um conjunto de roubos e assaltos, a par deuma espectacular evaso prisional realizada em 1972. (NT)

    Segundo Crculo

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    uma delicadeza venenosa, o rancs no pra dese vingar, permanentemente e contra todos, daderrota a que se resignou. J era altura de o quese oda a polcia! substituir o sim, senhor guarda!. Desteponto de vista, a hostilidade absoluta de certosbandos no az mais do que exprimir, de umamaneira um pouco menos velada que outras,

    o mau ambiente, o mal-estar generalizado, avontade de destruio salvadora em que este passe consome.

    Chamar sociedade massa de estrangeirosentre os quais vivemos uma usurpao tal

    que at os socilogos consideram renunciar aum conceito que oi, durante um sculo, o seuganha-po. Actualmente, preerem a metora darede para descrever o modo como se relacionamas solides cibernticas, o modo como seligam as interaces rgeis que so conhecidas

    pelos termos colega, contacto, amigo,relao ou aventura. Mesmo assim, estasredes condensam-se num milieux, onde a nicacoisa que se partilha so cdigos, e onde sest em jogo a incessante recomposio de umaidentidade.

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    Seria uma perda de tempo detalhar tudo o queh de agonizante nas relaes sociais existentes.Diz-se que se verica um regresso da amlia, umregresso do casal. Mas a amlia que volta no amesma que se tinha ido embora. O seu regresso apenas um aproundamento da separao

    reinante, sendo a amlia usada para a dissimular,tornando-se assim ela prpria dissimulao.Qualquer um pode testemunhar as doses detristeza que as estas de amlia acumulam, anoaps ano, os sorrisos orados, o embarao de vertoda a gente num ngimento intil, a sensao de

    que h um cadver em cima da mesa, e que todagente se comporta como se nada osse. Do firt aodivrcio, da concubinagem reconcialiao, cadaum sente a inanidade do triste ncleo amiliar;contudo, a maioria parece pensar que seria aindamais triste renunciar a esse ncleo. A amlia

    j no tanto a asxia da dominao maternaou o patriarcado da chapada na cara, mas simum abandono inantil a uma dependncia mole,onde j se conhece tudo, e que corresponde aum momento de despreocupao perante ummundo cujo desabar inegvel, e onde tornar-se

    autnomo um euemismo para ter arranjado

    Segundo Crculo

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    Na realidade, a decomposio de todasas ormas sociais constitui uma oportunidadeinesperada. Para ns, a condio ideal de umaexperimentao em massa, selvagem, de novosagenciamentos, de novas delidades. A amosademisso dos pais imps-nos uma conrontaocom o mundo que nos orou a uma lucidez precoce,

    augurando belas revoltas. Na morte do casal, vemoso nascimento de inquietantes ormas de aectividadecolectiva, agora que o sexo oi usado at aos limites,que a virilidade e a eminilidade trazem roupasvelhas e comidas pela traa, que trs dcadas decontnuas inovaes pornogrcas esgotaram todo

    o atractivo da transgresso e da libertao. Comaquilo que existe de incondicional nos laos deparentesco, contamos azer o sustentculo de umasolidariedade poltica to impenetrvel ingernciaestatal como um acampamento de ciganos. At osinterminveis subsdios que muitos pais do sua

    prole proletarizada podem tornar-se uma ormade mecenato a avor da subverso social. Tornar-se autnomo poderia igualmente querer dizer:aprender a lutar nas ruas, a ocupar casas devolutas,a no trabalhar, a amar loucamente e a roubar naslojas.

    Segundo Crculo

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    TERCEIRO CRCULOA vida, a sade, o amor so precrios, porque

    que o trabalho escaparia a esta lei?

    No h questo mais enredada, em Frana, quea do trabalho. No h relao mais torcida que a

    dos ranceses com o trabalho. Ide Andaluzia, Arglia, a Npoles. A despreza-se, na realidade, otrabalho. Ide Alemanha, aos Estados Unidos, aoJapo. A venera-se o trabalho. As coisas mudam, verdade. H bastantes otaku no Japo, rohe

    Arbeitslose na Alemanha eworkaholics na Andaluzia.

    Mas por agora so apenas curiosidades. EmFrana az-se o possvel e o impossvel parasubir na hierarquia, mas gaba-se em privadopor se estar nas tintas. Fica-se at s dez horas danoite no trabalho quando se est a transbordar,mas nunca se tem dvidas em roubar aqui e ali

    material de escritrio, ou em selecionar nos stocksda brica peas separadas para revenda. Detesta-se os patres, mas quer-se a todo o custo estarempregado. Ter um trabalho uma honra, etrabalhar uma marca de servilidade. Resumindo:o pereito quadro clnico da histeria. Ama-se

    detestando, detesta-se amando. E cada um sabe

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    o espanto e o desespero que afige o histricoquando perde a sua vtima, o seu amo. A maiorparte das vezes no se recompe.

    Neste pas essencialmente poltico que aFrana, o poder industrial sempre esteve submetidoao poder estatal. A actividade econmica nuncadeixou de estar suspeitosamente enquadrada

    por uma administrao minuciosa. Os grandespatres que no so oriundos da nobreza deEstado, tipo Polytechnique-ENA12, so os priasdo mundo dos negcios onde se comenta, nosbastidores, que azem alguma pena. BernardTapie o seu heri trgico: adulado um dia,

    preso no dia seguinte,mas sempre um intocvel. Nadatem de surpreendente que ele se mantenha aindaem cena. Contemplando-o como se contemplaum monstro, o pblico rancs deixa-o a umadistncia conortvel e, atravs do espectculode uma to ascinante inmia, preserva-se do

    seu contacto. Apesar do grande bludos anos 80,o culto da empresa nunca pegou em Frana. Quem querque escreva um livro para a vilipendiar garanteum best-seller. Os gestores, os seus hbitos e a

    12 - cole Polytechnique e cole Nationale dAdministration: Instituiesdo ensino superior pblico francs conhecidas pelo seu elitismo, exigncia

    e competio, onde so formados os altos quadros da administrao pblicae empresarial. (NT)

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    qualquer momento. tanto a economia psquicados ranceses como a estabilidade poltica dopas que esto em jogo na manuteno da cotrabalhista.

    Que nos seja permitido estarmo-nosbem a cagar para isso.

    Pertencemos a uma gerao que vive

    muito bem sem esta co. Que nunca se importoucom a reorma nem com o direito do trabalho emenos ainda com o direito ao trabalho. Que nemchega a ser precria como se contentam emteoriz-lo as aces mais avanadas da militnciaesquerdista, porque ser precrio ainda denir-

    se em relao esera do trabalho, neste caso, sua decomposio. Admitimos a necessidade dearranjar dinheiro, quaisquer que sejam os meios,porque presentemente impossvel dispens-lo,mas no a necessidade de trabalhar. Alis, ns jno trabalhamos: azemos umas merdas. A empresa

    no um lugar onde existimos, um lugarque atravessamos. No somos cnicos, apenasreticentes em ser abusados. Os discursos sobre amotivao, a qualidade, o investimento pessoal,passam-nos ao lado, para grande perturbao detodos os gestores de recursos humanos. Dizem

    que estamos desiludidos com a empresa, que esta

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    com o trabalho, vez amaldioado, porquantonos torna estranhos ao que azemos, e adorado,porquanto uma parte de ns prprios que a sejoga. O desastre, aqui, prvio: reside em tudoo que oi necessrio destruir, em todos os queoi necessrio desenraizar para que o trabalhoacabasse por surgir como a nica orma de existir. O

    horrvel do trabalho est menos no trabalho emsi que na metdica destruio, desde h sculos,de tudo o que no se resume a ele: amiliaridadesde bairro, de prosso, de aldeia, de luta, deparentesco, ligaes a lugares, a seres, s estaesdo ano, a ormas de azer e de alar.

    A reside o paradoxo actual: o trabalhotriunou completamente sobre todas as outrasormas de existir, ao mesmo tempo que ostrabalhadores se tornaram suprfuos. Os ganhosde produtividade, a deslocalizao, a mecanizao,a automatizao e a numerizao da produo

    progrediram tanto, que reduziram a quasenada a quantidade de trabalho vivo necessrio coneco de cada mercadoria. Ns vivemoso paradoxo de uma sociedade de trabalhadoressem trabalho onde a distraco, o consumo, olazer no azem seno acusar mais a alta daquilo

    de que nos deviam distrair. A mina de Carmaux,

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    que durante um sculo se tornou clebre pelassuas greves violentas, oi reconvertida em CapDcouverte, um plo multilazer onde se andade skate e de bicicleta e que se destaca por ummuseu da Mina no qual so simuladas ugasde grisu14 para os veraneantes.

    Nas empresas, o trabalho divide-se

    de orma cada vez mais visvel em empregosaltamente qualicados de pesquisa, concepo,controlo, coordenao e comunicao, ligados execuo de todos os saberes necessrios aonovo processo de produo cibernetizado; eem empregos desqualicados de manuteno

    e vigilncia desses processos. Os primeirosso em pequeno nmero, muito bem pagos eportanto to cobiados que a minoria que osmonopoliza no se lembraria de deixar escaparuma s migalha. O seu trabalho e eles prpriosormam, na realidade, uma s apertada angstia.

    Gestores, cientistas, lobbyistas, investigadores,programadores, consultores, engenheiros nopram nunca, literalmente, de trabalhar. Mesmoos engates aumentam a sua produtividade. As

    14 - grisu: Combinao entre Gs natural (metano) e oxignio,altamente explosiva e responsvel por numerosos acidentes em

    minas de carvo. (NT)

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    empresas mais criativas so tambm aquelasonde as relaes ntimas so mais numerosas,teoriza um lsoo para a Direco de RecursosHumanos. Os colaboradores da empresa,conrma a Daimler-Benz, azem parte docapital da empresa. (...) A sua motivao, o seusavoir-aire, a sua capacidade de inovao e o seu

    conhecimento e preocupao com os desejosda clientela constituem a matria-prima dosservios inovadores. (...) O seu comportamento,a sua competncia social e emocional tm umpeso crescente na avaliao do seu trabalho (...).Este no ser mais avaliado em nmero de horas

    de presena mas sobre a base dos objectivosatendidos e da qualidade dos resultados. Eles soempreendedores.

    O conjunto das tareas que no puderamser delegadas na automao/automatizaoorma uma nebulosa de lugares que, por no

    serem ocupveis pelas mquinas, so ocupadospor qualquer humano pessoal da manuteno,lojistas, trabalhadores da linha de montagem,trabalhadores temporrios, etc. Esta mo-de-obra fexvel, indierencivel, que passa de umatarea a outra e nunca ca muito tempo numa

    empresa, j no pode agregar-se numa ora, no

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    se encontrando nunca no centro do processo deproduo mas sim pulverizada numa multitude deinterstcios, ocupada em tapar os buracos do queno oi mecanizado. O trabalhador temporrio a gura deste operrio que j no o , que j notem um ocio mas antes competncias que vendeno curso das suas misses, e cuja disponibilidade

    tambm um trabalho.

    margem deste ncleo de trabalhadores eectivos,necessrios ao bom uncionamento da mquina,desenvolve-se doravante uma maioria tornadasupranumerria, que evidentemente til ao

    escoamento da produo, mas no mais do queisso, e que az pesar sobre a mquina o risco, nasua ociosidade, de se pr a sabot-la. A ameaade uma desmobilizao geral o espectro queassombra o actual sistema de produo. questoPara qu trabalhar, ento?, ningum responde

    melhor do que esta antiga beneciria dorendimento social de insero ao jornal Libration:Pelo meu bem-estar. Tinha que estar ocupada.H o srio risco de acabarmos por encontrar um emprego para

    a nossa ociosidade. Esta populao futuante deve serocupada, ou mantida. Ora, at hoje, ainda no

    se encontrou melhor mtodo disciplinar do que

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    o trabalho assalariado. Ser, portanto, necessrioprosseguir o demantelamento das conquistassociais para voltar a trazer ao ambiente salarialos mais recalcitrantes, aqueles que apenas seentregam ace alternativa entre morrer deome e apodrecer na priso. A exploso dosector esclavagista dos servios pessoais tem

    que continuar: mulheres-a-dias, restaurao,massagens, assistncia ao domiclio, prostituio,assistncia, aulas particulares, actividadesldicas teraputicas, ajuda psicolgica, etc. Tudoisto acompanhado de uma elevao contnuadas normas de segurana, de higiene, de

    comportamento e de cultura, de uma aceleraona ugacidade das modas, que asseguram porsi s a necessidade de tais servios. Em Rouen,os antigos parqumetros deram lugar aoparqumetro humano: algum que se aborrecena rua entrega-vos uma senha de estacionamento

    e aluga-vos, se or caso disso, um chapu-de-chuva para o mau tempo.

    A ordem do trabalho oi a ordem de um mundo.A evidncia da sua runa arrepia s pela ideia detudo o que da decorre. Trabalhar, hoje, prende-

    se menos com a necessidade econmica de

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    produzir mercadorias do que com a necessidadepoltica de produzir produtores e consumidores, desalvar por todos os meios a ordem do trabalho.Produzir-se a si prprio est em condies de setornar a ocupao dominante de uma sociedadeonde a produo perdeu o seu objecto: como ummarceneiro que tivesse sido desapossado da sua

    ocina e que se pusesse, em desespero de causa,a aplainar-se a si prprio. Da o espectculo detodos esses jovens que se treinam a sorrir paraa sua entrevista de emprego, que vo branquearos dentes por uma promoo, que vo sair paraestimular o esprito de equipa, que aprendem

    ingls para dar um empurro sua carreira, quese divorciam ou se casam para se destacarem, queazem cursos de teatro para se tornarem lderes oude desenvolvimento pessoal para uma melhorgesto dos confitos O desenvolvimentopessoal mais ntimo, deendem todos os gurus,

    levar a uma maior estabilidade emocional,a uma abertura relacional mais cil, a umaacuidade intelectual mais bem dirigida eportanto a uma melhorperormance econmica. Obulcio de todo este pequeno mundo que esperaimpacientemente ser seleccionado, treinando-

    se a ser natural, resulta de uma tentativa de

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    salvamento da ordem do trabalho por umaretrica damobilizao. Ser mobilizado entregar-se ao trabalho no como actividade mas como

    possibilidade. Se o desempregado que tira ospiercings,vai ao cabeleireiro e az projectos trabalhade acto para a sua empregabilidade, comose diz, porque ele testemunha atravs disso

    a sua mobilizao. A mobilizao este ligeirodescolamento de si, este mnimo arrancamentoao que nos constitui, esta condio de estranhezaa partir da qual o Eu pode ser tomado comoobjecto de trabalho, a partir do qual se tornapossvel vendermo-nos a ns prprios e no nossa

    ora de trabalho, ser remunerado no peloque azemos mas pelo que somos, pelo nossoexcelente domnio dos cdigos sociais, pelosnossos talentos relacionais, pelo nosso sorrisoou pela nossa orma de nos apresentarmos. anova norma de socializao. A mobilizao opera

    a uso dos dois plos contraditrios do trabalho:atravs dela, participamos na nossa explorao eexploramos qualquer participao. Idealmente,somos em relao a ns prprios como umapequena empresa, o seu prprio patro e o seuprprio produto. Trata-se, trabalhemos ou no, de

    acumular os contactos, as competncias, a rede,

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    resumindo: o capital humano. A injunoplanetria a mobilizar-se ao menor pretexto ocancro, o terrorismo, um terramoto, os sem-abrigo resume a determinao das potnciasreinantes em manter o reino do trabalho para ldo seu desaparecimento sico. O actual aparelhode produo ento, por um lado, esta gigantesca

    mquina de mobilizao psquica e sica, de sugar aenergia dos seres humanos tornados excedentriose, por outro, esta mquina de triagem que concedea sobrevivncia s subjectividades conormes edeixa sucumbir todos os indivduos em risco,todos os que encarnam um outro emprego da

    vida e, dessa orma, lhe resistem. De um ladoazem viver os espectros, de outro deixam morreros vivos. Tal a uno propriamente poltica doactual aparelho de produo.

    Organizar-se para l do e contra o trabalho, desertar

    colectivamente do regime da mobilizao, maniestara existncia de uma vitalidade e de uma disciplinana

    prpria desmobilizao um crime que uma civilizaocom a corda na gargante no est nem perto denos perdoar; , na realidade, a nica orma de lhesobreviver.

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    QUARTO CRCULOMais simples, mais divertido, mais mvel, mais

    seguro!

    Que no nos alem mais da cidade e docampo, e menos ainda da sua antiga oposio.O que se estende nossa volta no se parece,

    nem de perto nem de longe, com nada disso: uma nica mancha urbana, sem orma esem ordem; uma zona desolada, indenida eilimitada; um continuum mundial de hipercentrosmuseicados e de parques naturais; de grandesconjuntos e de imensas exploraes agrcolas; de

    zonas industriais e de loteamentos; de casas deturismo rural e de bares na moda. a metrpole. certo que houve a cidade da Antiguidade, acidade medieval ou a cidade moderna; mas noh a cidade metropolitana. A metrpole exige asntese de todo o territrio. Tudo a coabita, no

    tanto geogracamente como pelo entrosar dassuas redes.

    justamente porque ela acaba dedesaparecer que a cidade agora etichisada comoHistria. As bricas de Lille tornam-se salasde espectculos, o centro betonado de Havre

    patrimnio da UNESCO. Em Pequim, os hutongs

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    que rodeiam a Cidade Proibida so destrudose reconstroem-se uns alsos, um pouco maislonge, para usuruto dos curiosos. Em Troyes socoladas achadas de tabique sobre os prdios emcimento, uma arte de pastiche que az lembrar aslojas de estilo vitoriano da Disneyland de Paris. Oscentros histricos, durante muito tempo ocos

    de sedio, encontram sabiamente o seu lugarno organigrama da metrpole. So entreguesao turismo e ao consumo ostentatrio. So ososis do deslumbramento mercantil, mantidospelo seu aspecto de eira e pela esttica, mastambm pela ora. A pieguice asxiante dos

    mercados de Natal paga-se com cada vez maisseguranas privados e mais patrulhas de polciasmunicipais. O controlo integra-se pereitamentena paisagem da mercadoria, mostrando, a quema queira ver, a sua ace autoritria. A poca decruzamento, cruzamento de musiquinhas, de

    bastes telescpicos e de algodo doce. Quantavigilncia policial pressupe o encantamento!

    Este gosto pelo autntico-entre-aspas, epelo controlo que lhe est associado, acompanhaa pequena burguesia na sua colonizao dosbairros populares. Empurrada para ora dos

    hipercentros, procura neles uma vida de

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    bairro que nunca encontrar no meio das casasPhnix. E ao expulsar os pobres, os carros e osimigrantes, tornando-os zonas limpas, extirpandoos micrbios, pulveriza aquilo mesmo quetinha ido procurar. Num cartaz camarrio, umtrabalhador da limpeza estende a mo a umpolcia; um slogan: Montauban, cidade limpa.

    A decncia que obriga os urbanistas a noalarem mais da cidade, que destruram, masantes do urbano, devia tambm incit-los ano alarem mais do campo, que j no existe.O que h, no seu local e lugar, uma paisagemexibida s multides stressadas e desenraizadas, um

    passado que se pode bem encenar, agora que oscamponeses oram reduzidos a to pouco. ummarketing que se estende sobre um territrioonde tudo deve ser valorizado ou transormadoem patrimnio. sempre o mesmo vazio geladoque atinge at os campanrios mais aastados.

    A metrpole esta morte simultneada cidade e do campo, no cruzamento ondeconvergem todas as classes mdias, neste meioda classe do meio, que, de xodo rural emperi-urbanizao se alonga indenidamente. vitricao do territrio mundial corresponde

    o cinismo da arquitectura contempornea.

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    Um liceu, um hospital, uma mediateca sooutras tantas variantes de um mesmo tema:transparncia, neutralidade, uniormidade.Edicios, macios e fuidos, concebidos semqualquer necessidade de saber o que albergaro,e quepoderiam estar aqui, como em qualquer outrolado. Que azer das torres de escritrios de La

    Dense, da Part Dieu, ou de Euralille? A expressopronto a estrear captura em si todo o seu destino.Um viajante escocs, depois de os insurrectosterem queimado o Htel de Ville de Paris em Maiode 1871, conrmou o singular esplendor dopoder em chamas: (...) Nunca tinha imaginado

    nada de mais belo; soberbo. Os homens daComuna so uns paties, no o posso negar, masque artistas so! E eles no tiveram conscinciada sua obra! (...) Vi as runas de Amal banhadaspelas ondas azuis do Mediterrneo, as runasdos templos de Tung-hoor no Punjab; vi Roma

    e muitas outras coisas: nada pode ser comparadoao que tive esta noite rente dos olhos.

    Subsistem, presos nas redes metropolitanas,alguns ragmentos de cidade e alguns resduosde campo. Mas tudo aquilo que vive veio alojar-

    se nas zonas de abandono. Dita o paradoxo que

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    os locais aparentemente mais inabitveis sejamos nicos de alguma maneira ainda habitados.Um velho casebre ocupado ter sempre um armais povoado do que esses apartamentos topode gama onde apenas se pode pousar os mveise apereioar a decorao enquanto se aguardaa prxima mudana. Os bairros de barracas so

    em muitas megacidades os ltimos lugares vivos,habitveis e, sem surpresa, tambm os maismortais. Eles so o inverso do cenrio electrnicoda metrpole mundial. As cidades-dormitrio daperieria Norte de Paris, abandonadas por umapequena burguesia que partiu caa de vivendas,

    oram devolvidas vida pelo desemprego emmassa e brilham agora mais intensamente que oQuartier Latin. Tanto pelo verbo como pelo ogo.

    O incndio de Novembro de 2005 noresultou da extrema despossesso, como oitantas vezes repetido, mas antes pelo contrrio

    da plena posse de um territrio. Podemosqueimar carros porque nos aborrecemos, maspara propagar o motim ao longo de um ms ecolocar permanentemente a polcia em cheque, preciso saber organizar-se, preciso dispor decumplicidades, conhecer o terreno na pereio,

    partilhar uma linguagem e um inimigo comum.

    Quarto Crculo

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    Os quilmetros e as semanas no impedirama propagao do ogo. s primeiras chamasresponderam outras, l onde eram menosesperadas. O rumor no pode ser posto sobescuta.

    A metrpole o terreno de um incessante

    confito de baixa intensidade, do qual a tomadade Bassor, de Mogadscio ou de Nablus so ospontos culminantes. Para os militares, a cidadeoi durante muito tempo um local a evitar, ouquanto muito a sitiar; a metrpole, por seu lado, pereitamente compatvel com a guerra. O confito

    armado no seno um momento da sua constanterecongurao. As batalhas travadas pelas grandespotncias assemelham-se a um trabalho policialconstantemente em curso, nos buracos negros dametrpole seja no Burkina Faso, no Sul do Bronx,em Kamagasaki, em Chiapas ou em Courneuve.

    As intervenes no se dirigem tanto vitria,nem mesmo ao reestabelecimento da ordem eda paz, quanto busca de um empreendimentosecuritrio permanentemente em curso. A guerraj no isolvel no tempo, mas divide-se numasrie de micro-operaes, militares e policiais,

    para garantir a segurana.

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    A polcia e o exrcito adaptam-se emparalelo e passo a passo. Um criminlogo pedeaos CRS que se organizem em pequenas unidadesmveis e prossionalizadas. A instituio militar,bero dos mtodos disciplinares, pe em causa asua prpria organizao hierrquica. Um ocialda NATO aplica, no seu batalho de granadeiros,

    um mtodo participativo que implica cada umna anlise, preparao, execuo e avaliao deuma aco. O plano discutido e rediscutidodurante dias, no decurso dos exerccios e segundoas ltimas inormaes recebidas. (...) Nada comoum plano elaborado em comum para aumentar

    tanto a adeso como a motivao.As oras armadas no se adaptam s metrpole, do-lhe orma. Foi assim queos soldados israelitas, depois da batalha deNablus, se tornaram arquitectos de interiores.Constrangidos pela guerrilha palestiniana a

    abandonarem as ruas, demasiado perigosas,aprenderam a avanar vertical e horizontalmenteno meio das construes urbanas, arrasandoparedes e tectos para a se moverem.

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    Um ocial das oras de deesa israelitas,licenciado em losoa, explica: O inimigointerpreta o espao de uma maneira clssica,tradicional e eu recuso-me a seguir a suainterpretao e a cair nas suas armadilhas.(...) Eu quero surpreend-lo! Eis a essnciada guerra. Eu tenho que ganhar. Ora bem:

    escolhi a metodologia que me az atravessar asparedes... Como um verme que avana comendoo que encontra pelo caminho. O urbano mais do que um teatro do arontamento, ele o seu meio. Isto sem esquecer os conselhos deBlanqui, desta vez para o partido da insurreio,

    que recomendava aos uturos insurrectos deParis que investissem sobre as casas das ruasbarricadas para protegerem as suas posies, queurassem as paredes para comunicarem entre si,que derrubassem as escadas dos rs-do-cho eque esburacassem os tectos para se deenderem

    de eventuais assaltantes, que arrancassem asportas para barricarem as janelas e que zessemde cada andar uma carreira de tiro.

    A metrpole no mais do que esta amlgamaurbanizada, esta coliso nal entre a cidade e o

    campo, e simultaneamente um fuxo de seres e de

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    coisas. Uma corrente que passa por toda uma redede bras pticas, de linhas de TGV, de satlites,de cmaras de vdeo-vigilncia, para que estemundo nunca pare de dar cabo de si prprio.Uma corrente que desejaria tudo agrupar nasua mobilidade sem esperana, que mobiliza cadaum. Onde estamos sitiados por inormaes,

    como por outras tantas oras hostis. Onde noresta seno correr. Onde se torna dicil esperar,mesmo que se trate de uma ensima carruagemde metro.

    A multiplicao dos meios de locomooe de comunicao arranca-nos continuamente ao

    aqui e ao agora, pela tentao de estar sempre emqualquer outro lado. Apanhar um TGV, um RER,um teleone, para chegar j l. Esta mobilidadeno implica seno separao, isolamento, exlio.Ela seria insuportvel para qualquer um se no setratasse sempre da mobilidade do espao privado, do

    interior porttil. A bolha privada no explode,pe-se a futuar. No se trata do m do pequenocasulo domstico, apenas da sua colocao emmovimento. De uma estao de comboios, deum centro comercial, de um banco de negcios,de um hotel a outro, em todo o lado esta mesma

    estranheza, to banal, to conhecida que assume

    Quarto Crculo

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    a orma da derradeira intimidade.O lado luxuriante da metrpole esta misturaaleatria de ambientes denidos, susceptveis dese recombinarem indenidamente. Os centrosdestas cidades apresentam-se no como lugaresidnticos mas sim como oertas originais deambientes, por entre os quais giramos, escolhendo

    um, deixando outro, ao sabor de uma espcie deshopping existencial entre os estilos dos bares, daspessoas, dos designs, ou por entre asplaylists de umIpod. Com o meu leitor de mp3, eu sou senhordo meu mundo. Para sobreviver uniormidadeque nos cerca, a nica opo reconstituir sem

    parar o nosso prprio mundo interior, comouma criana que reconstruiria por todo o lado amesma cabana. Como Robinson, reproduzindoo seu universo de merceeiro na ilha deserta,com a dierena de que a nossa ilha deserta a prpria civilizao e de que somos milhes a

    desembarcar incessantemente.Precisamente por ser esta arquitectura de

    fuxos, a metrpole uma das ormaes humanasmais vulnerveis que j existiram. Flexvel, subtil,mas vulnervel. Um encerramento brutal dasronteiras por causa de uma epidemia uriosa,

    qualquer insucincia de um abastecimento

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    vital, um bloqueio organizado dos eixos decomunicao, e todo este cenrio se aunda, semconseguir mais disarar as cenas de carnicinaque permanentemente o assediam. Estemundo no correria to depressa se no osseconstantemente perseguido pela proximidade doseu colapso.

    A sua estrutura em rede, toda a suainra-estrutura tecnolgica de ns e conexes,a sua arquitectura descentralizada, teriam apretenso de colocar a metrpole ao abrigo dassuas inevitveis disuncionalidades. A Internettem de resistir a um ataque nuclear. O controlo

    permanente dos fuxos de inormaes, de homense de mercadorias deve assegurar a mobilidademetropolitana, o rastreio, assegurar que nuncaalte uma palette num stock de mercadorias, quenunca encontremos uma nota roubada numa lojaou um terrorista num avio. Atravs de um chip

    RFID15

    , um passaporte biomtrico, um cheirode ADN.

    Mas a metrpole produz tambmos meios para a sua prpria destruio. Um

    15 - RFID [Radio-Frequency Identication]: Identicao por Rdio

    Frequncia. Trata-se de um mtodo de identicao automticaatravs de sinais de rdios. (NT)

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    especialista norte-americano em seguranaexplica a derrota no Iraque pela capacidade daguerrilha em tirar proveito dos novos meios decomunicao. Pela invaso, os Estados Unidosno introduziram tanto a democracia como asredes cibernticas. Transportaram consigo umadas armas da sua prpria derrota. A multiplicao

    dos telemveis e dos pontos de acesso Internetorneceu guerrilha meios inditos para seorganizar e se tornar ela prpria to dicilmenteatacvel.

    A cada rede os seus pontos racos, aevidncia dos ns que necessrio desazer para

    que a circulao pare, para que a rede imploda.O ltimo grande apago elctrico europeumostrou-o: bastou um incidente numa linha dealta tenso para mergulhar uma boa parte docontinente no escuro. O primeiro gesto para quealgo possa surgir no seio da metrpole, para que

    se abram outros possveis, parar o seuperpetuummobile. Foi o que perceberam os rebeldes tailandesesque rebentaram com os postes elctricos.Foi oque perceberam os anti-CPE16, que bloquearamas universidades para depois tentarem bloquear

    16 - CPE [Contrat Premire Embauche]: Contrato de primeiroemprego.

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    a economia. Foi tambm o que compreenderamos estivadores norte-americanos, em greve, emOutubro de 2002, pela manuteno de trezentospostos de trabalho, que bloquearam durantedez dias os principais portos da costa Oeste. Aeconomia norte-americana to dependentedos fuxos sensveis provenientes da sia que

    o custo do bloqueio subiu a mil milhes deeuros por dia. Dez mil puderam azer vacilar amaior potncia econmica mundial. Segundocertos especialistas, se o movimento se tivesseprolongado mais um ms teramos assistido aum regresso recesso nos Estados Unidos

    e a um pesadelo econmico para o Sudeste dasia.

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    QUINTO CRCULOmenos bens, mais ligaes

    Trinta anos de desemprego em massa, decrise, de crescimento enganoso, e ainda nos

    querem azer acreditar na economia. Trinta anospontuados, verdade, por alguns intervalos deiluso: o intervalo de 1981-1983, iluso de queum governo de esquerda poderia azer a alegriado povo; o intervalo dos anos do lucro (1986-89)onde nos tornaramos todos ricos, homens de

    negcios e especuladores nanceiros; o intervaloInternet (1998-2001), onde todos encontraramosum emprego virtual por estarmos sempreinormados, onde a Frana multicolor, mastambm multicultural e instruda, ganharia todasas taas do mundo. E enm, esgotmos todas

    as nossas reservas de iluso, tocmos o undo,estamos a seco, seno mesmo a descoberto.

    ora, apreendemos isto: se no aeconomia que est em crise, a economia que a crise; se no se trata do trabalho que alta,trata-se do trabalho que existe em demasia; tudo bem

    pesado, no a crise mas sim o crescimento que

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    nos deprime. preciso coness-lo: a ladainhadas cotaes da Bolsa toca-nos tanto como umamissa em latim. Felizmente para ns, somosj uns quantos a chegar a esta concluso. Noalamos de todos os que vivem de esquemasvariados, de trcos de toda a espcie ou queesto h dez anos a viver do rendimento social

    de insero. De todos os que j no conseguemidenticar-se com o seu trabalho e se reservampara os seus lazeres. De todos os que esto postosna prateleira ou encostados de modo a azer omnimo e que constituem a maioria. De todosos que atingiram este desapego em massa, que vem

    ainda acentuar o exemplo dos desempregados eda sobre-explorao cnica de uma mo-de-obrafexibilizada. No alamos, portanto, daquelesque, de uma maneira ou de outra, chegarobrevemente a uma concluso.

    Falamos de todos estes pases, destes

    continentes inteiros que perderam a econmicapor terem visto passar com perdas e racasso osBoeing do FMI, por terem sentido um pouco otoque do Banco Mundial. No se trata, ali, dessacrise de vocaes pela qual passa preguiosamentea economia, no Ocidente. Aquilo de que se trata

    na Guin, na Rssia, na Argentina, na Bolvia, de

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    um descrdito violento e durvel desta religio, edo seu clero. O que um milhar de economistasdo FMI no undo do mar? Um bom comeogozavam no Banco Mundial. Piada russa:Encontro entre dois economistas. Um perguntaao outro: Tu compreendes o que se passa? Eo outro responde: Espera, vou-te explicar.

    No, no, retoma o primeiro, explicar no dicil, eu tambm sou economista. No, o queeu te pergunto : tu compreendes?. Mesmo oseu clero se v orado a entrar em dissidnciae a criticar o dogma. A ltima corrente umpouco viva da pretensa cincia econmica -

    corrente que se nomeia sem humor economiano autista - tornou-se doravante num trabalhode desmontagem de usurpaes, truques demagia, ndices alsicados de uma cincia cujanica uno tangvel a de agitar o crucixoem torno das vocieraes dos dominantes,

    de enquadrar com um pouco de cerimnia osseus apelos submisso e, enm, como semprezeram as religies, de ornecer as explicaes. Porqueo descontentamento geral deixa de ser suportvela partir do momento em que aparece tal como :sem causa nem razo.

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    O dinheiro j no respeitado em lado nenhum,nem pelos que o tm, nem por aqueles a quemaz alta. Vinte por cento dos jovens alemes,quando interrogados acerca do que querem azermais tarde, respondem artista. O trabalhodeixou de ser encarado como uma condioda humanidade. A contabilidade das empresas

    reconhece que j no sabe onde nasce o valor.A m reputao do mercado t-lo-ia reutadoh j uma dcada, no ora pela raiva e pelosvastos meios dos seus apologistas. O progressotornou-se por todo o lado sinnimo de desastre.Tudo oge esera da economia como tudo

    ugia da URSS na poca de Andropov. Quemse tiver debruado um pouco sobre os ltimosanos da URSS identicar sem diculdades,em todos os apelos dos nossos dirigentes aovoluntarismo, em todas as aluses a um uturodo qual perdemos rasto, em todas as prosses

    de na reorma de tudo e mais algumacoisa, as primeiras ssuras na estrutura domuro. O desmoronamento do bloco socialistano ter consagrado o triuno do capitalismo,mas apenas atestado a alibilidade de uma dassuas ormas. Alm do mais, a condenao

    morte da URSS no consistiu no eito de um

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    povo em revolta mas de uma nomenclatura emreconverso. Proclamando o im do socialismo,uma raco da classe dirigente libertou-se,antes de mais, de todos os deveres anacrnicosque a ligavam populao. Tomou o controlo

    privado daquilo que j controlava, ainda que oizesse em nome de todos. J que aparentam

    pagar-nos, aparentemos trabalhar dizia-senas bricas. Pouco importa, abandonemosas aparncias respondeu a oligarquia. Parauns, as matrias-primas, as inra-estruturasindustriais, o complexo militar-industrial, osbancos, as discotecas, para outros, a misria

    ou a emigrao. Da mesma orma que noacreditvamos na URSS poca de Andropov,no acreditamos hoje na Frana das salasde reunio, dos seminrios, dos gabinetes.Pouco importa!, respondem os patres egovernantes, que j nem tomam a posio

    de atenuar as duras leis da economia,desactivando uma brica durante a noite paraanunciar o seu encerramento ao pessoal pelamanh, nem hesitam em chamar o GIGN17para acabar com uma greve - tal como oi

    17- Groupe dIntervention de la Gendarmerie Nationale: Corpo deinterveno das oras policiais militarizadas. (NT)

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    eito na da SNCM18 ou durante a ocupao,o ano passado, de um centro de seleco deresduos em Rennes. Toda a actividade morterado poder consiste em gerar tal runa de um ladoenquanto dispe no outro as bases de uma novaeconomia.

    Estamos, portanto, bem adaptados economia.H geraes que ela nos disciplina, nos pacica,que az de ns sujeitos, naturalmente produtivos,contentes por consumir. E eis que se revelatudo o que nos queriam azer esquecer: que aeconomia uma poltica. E que esta poltica , hoje

    em dia, uma poltica de seleco no seio de umahumanidade que se tornou, na sua grande massa,suprfua. De Colbert a De Gaulle passando porNapoleo III, o Estado concebeu desde semprea economia como poltica, no menos do que aburguesia, que dela retira o seu lucro, e do que

    os proletrios, que a enrentam. No surpreendeque apenas aquele estranho estrato intermdioda populao, esse curioso agregado sem oradaqueles que no tomam partido, a pequena burguesia,parea ter acreditado na economia como uma

    18 - Socit Nationale Maritime Corse Mditerrane: Companhia denavegao que opera no Mediterrneo.

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    realidade - porque a sua neutralidade estava aindapreservada. Pequenos comerciantes, pequenospatres, pequenos uncionrios, administradores,proessores, jornalistas, intermedirios de todosos tipos ormam em Frana esta no-classe, estagelatina social composta pela massa daqueles quegostariam simplesmente de passar a sua pequena

    vida privada margem da Histria e dos seustumultos. Este pntano por predisposio ocampeo da alsa conscincia, pronto a tudo paracontinuar, na sua hibernao, de olhos echadosperante a guerra que se trava em seu redor. Cadarente de combate que se identica tambm

    acompanhada, em Frana, pela inveno de umnovo capricho. Durante os ltimos dez anos, oia ATTAC e a sua inverosmil taxa Tobin - cujainstaurao exigiria no menos que a criaode um governo mundial -, a sua apologia daeconomia real contra os mercados nanceiros

    e a sua tocante nostalgia do Estado. A comdiadurar aquilo que durar, e acabar comosimples hipocrisia. Um capricho substituindoo anterior, e eis o decrescimento. Se a ATTAC comas suas aulas de educao popular tentou salvara economia enquanto cincia, o decrescimento

    pretende salv-la enquanto moral. Uma s alternativa

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    perante o apocalipse em marcha: decrescer.Consumir e produzir menos. Tornarmo-nosalegremente simples. Comer biolgico, andar debicicleta, parar de umar e vigiar severamenteos produtos que compramos. Contentarmo-noscom o estritamente necessrio. Simplicidadevoluntria. Redescobrir a verdadeira riqueza

    no forescer de relaes sociais amigveis nummundo so. Nada tirar do nosso capitalnatural. Ir de encontro a uma economia s.Evitar a regulao pelo caos Evitar gerar umacrise social que ponha em causa a democracia eo humanismo. Em suma, tornarmo-nos econmicos.

    Voltar economia do tempo da avzinha, idade de ouro da pequena burguesia: os anos 50.Quando o indivduo se torna um bom poupador,a sua propriedade preenche ento pereitamentea sua uno, que a de permitir desrutar da suavida prpria ao abrigo da sua existncia pblica

    ou no crculo privado da sua vida.

    Um designer com uma camisola artesanal bebeum cocktail de rutos, entre amigos, na esplanadade um ca tnico. Somos eloquentes, cordiais,gracejamos moderadamente, no azemos

    demasiado barulho nem demasiado silncio,

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    olhamo-nos sorrindo, um pouco tolos: tocivilizados que ns somos. Mais tarde, alguns iroremexer a terra de um jardim de bairro enquantoos outros vo azer cermica, zen ou um lme deanimao. Comunicamos no virtuoso sentido deormar uma nova humanidade, mais sbia, maisrenada, a derradeira. E temos razo. A Apple

    e o decrescimento, curiosamente, entendem-sequanto civilizao do uturo. A ideia do regresso economia de antigamente, avanada por uns, a nvoa oportuna por trs da qual avana aideia do grande salto tecnolgico, de outros.Porque na Histria os retrocessos no existem.

    A exortao ao retorno ao passado no exprimemais do que uma das ormas da conscincia doseu tempo, e raramente a menos moderna. No por acaso que o decrescimento o estandartedos publicitrios dissidentes da revista Casseurs de

    pub. Os criadores do crescimento zero - o clube

    de Roma em 1972 - eram eles mesmos um grupode industriais e de uncionrios que se apoiavamnum estudo de cibernticos do MIT.

    Esta convergncia no ortuita. Elainscreve-se no caminho orado para encontrarum relanamento da economia. O capitalismo

    desintegrou em seu benecio tudo o que

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    subsistia de ligaes sociais, lanando-se agoraa reconstru-las desde a raiz sobre as suas prpriasbases. A sociabilidade metropolitana actual asua incubadora. Da mesma orma, devastou osmundos naturais e lana-se agora na absurdaideia de os reconstituir como outros tantos meioscontrolados, dotados de sensores adequados. A

    esta nova humanidade corresponde uma novaeconomia, que j no pretende ser uma eseraseparada da existncia mas antes o seu tecido, quequer ser a matria das relaes humanas; umanova denio do trabalho como trabalho para simesmo, e do Capital enquanto capital humano;

    uma nova ideia da produo enquanto produode bens relacionais, e do consumo como consumo desituaes; e sobretudo uma nova ideia do valorque abarcar todas as qualidades dos seres. Estabioeconomia em gestao concebe o planetacomo um sistema echado a gerir, pretendendo

    levantar as bases de uma cincia que integrartodos os parmetros da vida. Semelhante cinciapoder azer-nos um dia sentir saudades dosbelos tempos dos ndices enganadores, em quese pretendia medir a alegria do povo a partirdo crescimento do PIB, mas nos quais ningum

    acreditava.

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    Revalorizar os aspectos no-econmicos da vida simultaneamenteuma palavra de ordem do decrescimento e oprograma de reorma do Capital. Eco-aldeias,cmaras de videovigilncia, espiritualidade,biotecnologias e convivialidade pertencem aomesmo paradigma civilizacional em ormao,

    o da economia total produzida a partir da base.A sua matriz intelectual no mais do que aciberntica, a cincia dos sistemas, ou seja, do seucontrolo. Para impor denitivamente a economia,a sua tica do trabalho e avareza, oi necessriono decurso do sc. XVII internar e eliminar toda

    a auna de ociosos, de mendigos, eiticeiros,loucos, hedonistas e outros pobres vagabundos,toda uma humanidade que desmentia pela suaprpria existncia a ordem dos interesses e datemperana. A nova economia no se imporsem uma similar seleco dos sujeitos e zonas

    aptas mutao. O caos to anunciado ser aocasio desta triagem, ou a nossa vitria sobreto detestvel projecto.

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    A ecologia a descoberta do ano. Nos ltimostrinta anos deixmos isso para os Verdes, rimosalarvemente ao domingo para recuperar um ar

    srio na segunda-eira. E eis que ela agora nosagarra. Que invade as ondas como um xito deVero, porque esto vinte graus em Dezembro.Um quarto das espcies de peixe desapareceu dosoceanos. E o resto no durar muito mais.

    Alerta de gripe aviria: promete-se abater

    em pleno voo as aves migratrias, s centenas demilhar.A taxa de mercrio no leite materno

    dez vezes superior ao limite autorizado nas vacas.E estes lbios que incham quando trinco umama deve ter sido comprada no mercado. Os

    gestos mais simples tornam-se txicos. Morre-seaos trinta e cinco de uma doena prolongadaque pensamos controlar, tal como temos tudoo resto sob controlo. Teria sido necessrio tirarconcluses antes que ela aqui nos trouxesse, aopavilho B do centro de cuidados paliativos.

    SEXTO CRCULO

    O ambiente um desafo industrial

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    preciso admitir: toda esta catstroe, deque nos alimentam to ruidosamente, no nostoca. Pelo menos enquanto no ormos atingidospor uma das suas previsveis consequncias. Eladiz-nos respeito, talvez, mas no nos aecta. E precisamente a que reside a catstroe.

    No h uma catstroe ambiental. H,

    sim, esta catstroe que o ambiente. O ambiente oque resta ao homem quando ele j perdeu tudo oresto. Aqueles que habitam um bairro, uma rua, umvale, uma guerra, um atelier, no tm ambiente,evoluem num mundo povoado de presenas, deperigos, de amigos, de inimigos, de pontos de vida

    e pontos de morte, de toda a espcie de seres. Essemundo tem a sua consistncia prpria, que variasegundo a intensidade e qualidade dos laos quenos ligam a esses seres e a esses lugares. No hnada para alm de ns, lhos da despossesso nal,exilados da ltima hora que vimos ao mundo em

    cubos de beto, colhemos rutos em supermercadose seguimos os ecos do mundo na tv para ter umambiente. No h nada para alm de ns a assistir aonosso prprio desvanecimento, como se tratassede uma simples mudana de atmosera. Para nosindignarmos com os ltimos avanos do desastre e

    redigir pacientemente a enciclopdia.

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    Aquilo que se xou enquanto ambiente oi umarelao com o mundo undada na gesto, ou seja,na estranheza. Uma tal relao com o mundoem que ns no somos eitos do murmrio dasrvores, do cheiro a ritos do prdio, do correr dagua, do bru das salas de aula, ou da humidadedas noites de Vero, uma tal relao com o

    mundo em que existo eu e o meu ambiente, queme rodeia sem nunca me constituir. Tornmo-nos vizinhos numa reunio de condomnioplanetrio. No cil imaginar um inerno maiscompleto.

    Nunca nenhum meio material

    mereceu a designao de ambiente, a no sereventualmente, neste momento, a metrpole.Voz digital dos anncios sonoros, elctrico quechia to sculo XXI, luz azulada de candeeiroem orma de soro gigante, pees disaradosde manequins alhados, rotao silenciosa de

    uma cmara de videovigilncia, rudo sbrioe metlico das portas do metro, caixas desupermercado, tabuletas de escritrios, atmoseraelectrnica de um cyber-ca, prouso deecrs plasma, de vias rpidas e de ltex. Nuncaum cenrio dispensou to bem as almas que o

    atravessam. Nunca o meio oi to automtico. Nunca

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    o contexto oi to indierente e nunca exigiu, emtroca da sobrevivncia no seu seio, uma to totalindierena. O ambiente anal no seno isso: arelao com o mundo prpria da metrpole, quese projecta sobre tudo o que lhe escapa.

    A situao a seguinte: empregaram os nossos

    pais na destruio deste mundo, agora queremazer-nos trabalhar na sua reconstruo e queela seja, para cmulo, rentvel. A excitaomrbida que anima actualmente jornalistase publicitrios perante cada nova prova doaquecimento climtico revela o sorriso de ao do

    novo capitalismo verde, aquele que se anunciavaj desde os anos 70, que nos esperava na prximaesquina mas que nunca mais chegava. E eis quea est! A ecologia, ele! As solues alternativas, ele! A sade do planeta, outra vez ele! Norestam dvidas: os tempos que correm so verdes;

    o ambiente ser o pivot da economia poltica dosculo XXI. De hoje em diante, a cada investidado catastrosmo corresponde uma enxurrada desolues industriais.

    O inventor da bomba H, Edward Teller,sugere pulverizar a estratosera com milhes

    de toneladas de poeiras metlicas para parar o

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    aquecimento climtico. A NASA, rustrada porter de arrumar a sua grande ideia de um escudoantimssil no museu das antasmagorias da guerraria, promete colocar um espelho gigante paral da rbita lunar para nos proteger dos uturosraios de sol prejudiciais. Outra viso do uturo:uma humanidade motorizada, rolando com

    bioetanol de So Paulo a Estocolmo; um sonhode latiundirio cerealero, que no implicamais do que a converso de todas as terras arveisdo planeta em campos de soja e de beterraba.Viaturas ecolgicas, energias limpas, consultoriaambiental que coexiste sem problemas com

    a ltima publicidade da Chanel ao longo daspginas acetinadas das revistas. que o ambiente tem este mrito

    incomparvel de ser, dizem-nos, o primeiro problema global que se coloca humanidade. Umproblema global, isto , um problema que s poder

    ser resolvido por aqueles que se organizamglobalmente. E j se sabe quem so. So osgrupos que desde h quase um sculo esto navanguarda do desastre, e onde se pensam manteratravs da simples alterao do logtipo. A ormadescarada como a EDF nos volta a oerecer o seu

    programa nuclear como nova soluo para a crise

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    energtica mundial, diz bastante sobre comoas novas solues se assemelham aos antigosproblemas.

    Das Secretarias de Estado s traseiras doscas alternativos, as preocupaes exprimem-se agora com as mesmas palavras, que so deresto as mesmas de sempre. necessriomobilizar.

    No para a reconstruo, como no ps-guerra,no pelos Etopes, como nos anos 80, no peloemprego, como nos anos 90. No, desta vez, pelo ambiente. Eles cam-vos agradecidos. AlGore, a ecologia la Hulot e o decrescimentoarrumam-se ao lado das grandes almas eternas

    da Repblica para desempenhar o seu papel nareanimao do pequeno povo de esquerda e dobem conhecido idealismo da juventude. Tendocomo estandarte a austeridade voluntria, elestrabalham sem remunerao para nos moldar aoestado de urgncia ecolgica que vem. A massa

    redonda e viscosa da sua culpabilidade abate-sesobre as nossos ombros cansados e quer pr-nosa cultivar a nossa horta, a separar os nossos lixos,a azer o composto biolgico com os restos doestim macabro no e pelo qual omos mimados.

    Gerir a sada do nuclear, os excedentes

    de CO2 na atmosera, o degelo, os uraces,

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    as epidemias, o crescimento exponencial dapopulao, a eroso dos solos, o desaparecimentomassivo das espcies eis o nosso ardo. Cabea cada um alterar os seus comportamentos,dizem eles, se se quiser salvar o nosso belomodelo civilizacional. preciso consumir poucopara poder ainda consumir. Produzir biolgico para

    poder ainda produzir. preciso auto-coaco parapoder ainda haver coaco. assim que a lgica deum mundo sobrevive dando ares de uma rupturahistrica. assim que procuram convencer-nosa participar nos grandes desaos industriaisdo sculo presente. Atordoados que camos,

    estaremos prontos a saltar nos braos dessesmesmos que lideram a pilhagem, para que nostirem daqui.

    A ecologia no s a lgica da economia total, tambm a nova moral do Capital. O estado de

    crise interna do sistema e o rigor da seleco emcurso so tais que preciso de novo um critrioem nome do qual operar uma semelhante escolha.A ideia de virtude nunca oi, de poca em poca,outra coisa seno uma inveno do vcio. Nopoderamos nunca, sem a ecologia, justicar a

    existncia de duas leiras de alimentao, uma

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    saudvel e biolgica para os ricos e seus rebentos,a outra notoriamente txica para a plebe e seusdescendentes, prometidos obesidade. A hiper-burguesia planetria no saberia azer passarpor respeitvel o seu rumo de vida se estesseus caprichos no ossem escrupulosamenterespeitadores do ambiente. Sem a ecologia,

    ningum teria ainda autoridade sucientepara azer calar toda a objeco aos progressosexorbitantes do controlo.

    Rastreio, transparncia, certicao,eco-taxas, excelncia ambiental, polcia da guaauguram o estado de excepo ecolgica que se

    anuncia. Tudo permitido a um poder que tomaa autoridade sobre a Natureza, a sade e o bem-estar.

    Uma vez que a nova cultura econmicae comportamental tenha passado para a moral,as medidas coercivas cairo certamente por si

    mesmas. preciso toda a rescura ridculade um aventureiro das lides televisivas paradeender uma perspectiva de tal maneirapetricante e ao mesmo tempo apelar-nos a quesintamos suciente dor pelo planeta para nosmobilizarmos e que quemos anestesiados o

    suciente para assistir a tudo isto com conteno

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    e civismo. O novo ascetismo bio o controlo de sique exigido a todos para negociar a operaode salvamento que o sistema se atribuiu asi prprio. em nome da ecologia que sernecessrio apertar os cintos daqui para a rente,tal como o oi em nome da economia at aqui.A estrada poderia seguramente transormar-se

    em pistas de bicicletas, ns poderamos mesmo,nas nossas latitudes, ser um dia recompensadoscom um rendimento garantido, mas apenascomo prmio de uma existncia inteiramenteteraputica. Aqueles que deendem que o auto-controlo generalizado nos poupar da submisso

    a uma ditadura ambiental mentem: um ar acama para a outra e ns acabaremos por dormircom ambos.

    Enquanto houver o Homem e o Ambientehaver sempre a polcia entre eles.

    Tudo para inverter nos discursos ecologistas.Onde alam de catstroes para se reerir sderrapagens do regime actual de gesto dos serese das coisas, no vemos seno a catstroe doseu mais que pereito uncionamento. A maiorvaga de ome conhecida at hoje na zona tropical

    (1876-1879), coincidiu com uma seca mundial,

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    mas sobretudo com o apogeu da colonizao.A destruio dos mundos camponeses e dasprticas de criao de vveres zeram desapareceros meios de azer ace penria. Mais do quea alta de gua, oram os eeitos da economiacolonial em plena expanso que cobriram commilhes de cadveres toda a aixa tropical.

    Aquilo que se apresenta por todo o lado comouma catstroe ecolgica no deixou nunca deser, em primeiro lugar, a maniestao de umarelao desastrosa com o mundo. No habitarnada torna-nos vulnerveis ao menor solavancodo sistema, ao menor acaso climtico. medida

    que se aproximava o ltimo tsunami, enquantoos turistas brincavam nas ondas, os caadores-recolectores das ilhas apressavam-se a ugir dacosta seguindo os pssaros. O paradoxo presenteda ecologia que, sob o pretexto de salvar aTerra, ela salvar apenas o undamento daquilo

    que a tornou este astro desolado.A regularidade do uncionamento

    mundial converte o nosso estado de despossesso,eectivamente catastrco, num temponormal. Aquilo a que chamamos catstroe a suspenso orada deste estado, um desses

    raros momentos onde recuperamos alguma

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    compelidos a restabelecer um contacto, aindaque atal, com o que temos, a reencontrar osritmos da realidade. Aquilo que nos rodeia j no paisagem, panorama, teatro, mas sim aquiloque nos dado a habitar, com o qual devemoscriar e no qual podemos aprender. Durante acatstroe, no nos deixaremos derrubar por

    aqueles que lhe determinaram os contedospossveis. Enquanto os gestores se interrogamplatonicamente sobre como inverter o vaporsem partir a loua, ns no vemos outra oporealista seno partir a loua o quanto antes etirar ento partido de cada colapso do sistema

    para ganhar ora.

    Nova Orlees, alguns dias depois da passagem douraco Katrina. Na atmosera de apocalipse, aquie ali, a vida organiza-se. Perante a inaco dospoderes pblicos - mais ocupados em limpar as

    zonas tursticas do Bairro rancs e em protegeras lojas do que a vir em auxlio dos habitantespobres da cidade - renascem ormas esquecidas.Apesar das tentativas por vezes musculadas paraevacuar a zona, apesar das batidas de caa aonegro abertas oportunamente por milcias

    racistas, muitos no quiseram abandonar o

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    terreno. Para estes, que se recusaram a serdeportados como reugiados ambientais paraos quatro cantos do pas, e para os que vieramde todo o lado, em solidariedade convocada porum antigo Pantera Negra, ressurge a evidnciada auto-organizao. No espao de algumassemanas posta de p a Common Ground Clinic.

    Este verdadeiro hospital de campanha dispensaassistncia gratuita desde os primeiros dias, comuma capacidade crescente graas incessanteafuncia de voluntrios. Ao m de um ano,a clnica estava na base de uma resistnciaquotidiana operao de terraplanagem levada

    a cabo pelos bulldozers do governo, com vistaa azer de toda esta parte da cidade um campoaberto para os promotores. Cozinhas populares,abastecimentos, medicina de rua, expropriaesselvagens, construo de pr-abricados: todoum saber prtico acumulado por uns e outros

    ao longo da vida, que encontrou aqui o espaopara se desenvolver. Longe dos uniormes e dassirenes.

    Quem conheceu a alegria despojada destesbairros de Nova-Orlees antes da catstroe, adesconana em relao ao Estado que j reinava e

    a prtica massiva do desenrascano que l existia,

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    no cou surpreendido por tudo isso ter sidopossvel naquele lugar. Quem, contrariamente,se encontra connado ao quotidiano anmicoe atomizado dos nossos desertos residenciaispoder duvidar que possa existir tal determinao.Retomar estes gestos submersos em anos de vidanormalizada , no entanto, a nica via praticvel

    para no denhar neste mundo. E que venha umtempo de arrebatamento.

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    STIMO CRCULOEstamos a construir um espao civilizado

    A primeira carnicina mundial, aquela que entre1914 e 1918 permitiu acabar de uma s vez comboa parte do proletariado dos campos e das

    cidades, oi conduzida em nome da liberdade, dademocracia e da civilizao. aparentemente emnome dos mesmos valores que prossegue desdeh cinco anos, a golpes de assassinato cirrgicoe operaes especiais, a amosa guerra contrao terrorismo. O paralelismo termina aqui,

    nas aparncias. A civilizao deixou de ser estaevidncia que se leva aos indgenas sem mais. Aliberdade deixou de ser o nome que escrevemosnas paredes, seguida que , como se doravanteda sua sombra se tratasse, pela segurana. E ademocracia tornou-se, como do conhecimento

    geral, solvel nas mais puras leis de excepo por exemplo no restabelecimento ocial datortura nos Estados Unidos ou da lei Perben IIem Frana.

    Num sculo a liberdade, a democraciae a civilizao oram reconduzidas ao estado de

    hiptese. Todo o trabalho dos dirigentes consiste,

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    doravante, em gerir as condies materiais emorais, simblicas e sociais, nas quais as ditashipteses possam ser mais ou menos validadas, emcongurar espaos onde estas paream uncionar.Todos os meios so vlidos para este m, incluindoos menos democrticos, os menos civilizados, osmais securitrios. D-se o caso de a democracia ter

    presidido vrias vezes, ao longo do ltimo sculo,ao nascimento de regimes ascistas; de a civilizaonunca ter deixado de rimar - ao som de Wagnerou de Iron Maiden - com exterminao e de aliberdade ter assumido em 1929 a dupla ace de umbanqueiro que se lana da janela e de uma amlia

    operria que morre de ome. Convencionou-se digamos: desde 1945 que a manipulaodas massas, a actividade dos servios secretos, arestrio das liberdades pblicas e a soberania dasdiversas polcias pertencem aos meios legtimosde assegurar a democracia, a liberdade e a

    civilizao. No ltimo patamar desta evoluo,temos o primeiro presidente da cmara socialistade Paris, que lana a ltima pedra na pacicaourbana e na gesto policial de um bairro popular,justicando-se com palavras cuidadosamentecalibradas: Aqui construimos espao civilizado.

    Nada a acrescentar, tudo a destruir.

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    Sob os seus ares de generalidade, esta questo dacivilizao nada tem de losco. Uma civilizaono uma abstraco que se sobrepe vida. sobretudo o que rege, investe e coloniza aexistncia no que ela possui de mais quotidiano,de mais pessoal. aquilo que mantm unidas adimenso mais ntima e a mais geral. Em Frana,

    a civilizao inseparvel do Estado. Quanto maisorte e antigo or um Estado, menos ele se limitara ser uma superestrutura ou um exosqueletoda sociedade e maior ser a sua tendncia paraormar as subjectividades que o habitam. O Estadorancs a prpria trama das subjectividades

    ra