inovações estilísticas na telenovela a situação em avenida brasil

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  • 7/23/2019 Inovaes Estilsticas Na Telenovela a Situao Em Avenida Brasil

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    Revista

    FAMECOSmdia, cultura e tecnologia

    Porto Alegre, v. 21, n. 2, p. 675-697, maio-agosto 2014

    Narrativa Ficcional

    Inovaes estilsticas na telenovela:a situao emAvenida Brasil1

    Stylistic innovations in telenovela: the situation inAvenida Brasil

    RENATOLUIZPUCCIJUNIOR

    Doutor em Cincias da Comunicao pela Universidade de So Paulo (USP). Professor do Mestrado em Comunicao daUniversidade Anhembi Morumbi (UAM). So Paulo SP, Brasil.

    RESUMOExame da telenovela Avenida Brasil (Globo, 2012), por meioda metodologia da anlise audiovisual, com o objetivo dedetectar inovaes estilsticas. Com base no conceito deschemata, utilizado por pesquisadores de linha cognitivista,como Patrick C. Hogan e David Bordwell, procura-se indicarque um processo de reviso de paradigma ocorre na cotelevisiva brasileira, no sentido da renovao de caractersticasestilsticas consagradas pelo sucesso de dcadas de produo.A anlise parte da ideia, sustentada por Edgar Morin, de que acultura de massa se caracteriza tambm por uma dinmica deconservao e inovao. No perodo atual, algumas telenovelas

    brasileiras, de que Avenida Brasil provavelmente o melhorexemplo, absorvem schemataaudiovisuais testados no cinemae em outras mdias, recongurando-os segundo suas prpriasnecessidades narrativas e comunicacionais.Plv-cve: Televiso brasileira. Telenovela. Cognitivismo.

    ABSTRACTThis investigation of the Brazilian telenovela AvenidaBrasil (Globo Network, 2012) uses the methodology foraudiovisual analysis to detect stylistic innovations. Based onthe concept of schemata, of researchers like Patrick C. Hoganand David Bordwell, this paper argues that a paradigm reviewis happening in the Brazilian televisions ction towards therenewal of stylistic characteristics that were established bydecades of successful production. The analysis is based onEdgar Morins idea that the mass culture is characterized bya conservation-innovation dynamic. In its current form, someBrazilian telenovelas, of which Avenida Brasil is probably the

    best example, absorb audiovisual schemata tested in cinemaand other media, reconguring them according to their ownnarrative and communicational needs.

    Keywd:Brazilian Television. Telenovela. Cognitivism.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Acrtica tem indagado sobre os motivos para que a telenovela Avenida Brasil(Globo, 2012) tenha sido um fenmeno de audincia da histria recente dateleviso brasileira. Explicaes tm-se pautado por aspectos de roteiro (como a

    ambiguidade das protagonistas) e sociais (o endereamento a uma numerosa classemdia ascendente, que se teria identicado com os personagens principais e com oambiente suburbano).Essas e outras possibilidades podem e devem ser investigadas am de que se esclarea a repercusso alcanada e o papel dessa telenovela na culturacontempornea2.

    O presente artigo se volta especicamente para um aspecto que, em geral, no dosmais enfatizados na pesquisa sobre televiso: a composio estilstica de programasespeccos. Entenda-se estilo no sentido de uso sistemtico e signicante de tcnicas

    do meio, em termos individuais ou de grupo (Bordwell, 1997, p. 04). Identica-seum estilo, exemplicando, quando um mesmo tipo de iluminao de interiores observado em diferentes telenovelas. A constatao do estilo pode ser feita por meioda anlise audiovisual, metodologia propagada por Arlindo Machado e Marta Vlez(2007) no campo dos estudos de televiso.

    Pode-se denir nos seguintes termos a questo em jogo: at que ponto persisteatualmente a histrica caracterizao das telenovelas no que diz respeito composio

    audiovisual? Por dcadas, os produtos televisivos foram caracterizados comoinsatisfatrios frente s exigncias da intelectualidade e do pblico com pretensesao renamento cultural (Freire Filho, 2008, p. 86-96). As telenovelas no foram osnicos programas a sofrer pesados ataques, mas sempre estiveram entre os maiscriticados. A maioria dos motivos para essas investidas escapa ao objetivo deste texto;so pertinentes apenas aqueles relacionados a uma suposta falta de qualidade estticada telenovela. O termo de comparao para crticas negativas era obviamente o cinema.No necessrio reconstituir a discusso, que teve como argumentos decisivos os

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    evocados por Arlindo Machado (1988, p. 40-53) acerca da baixa resoluo da imagemtelevisiva e outras caractersticas tcnicas, vistas no mais como defeitos, mas comoespecicidades do meio naquela poca de tecnologia analgica. Evidentemente, a

    telenovela poderia ser defendida segundo a mesma argumentao.A problemtica envolve mais do que aspectos tecnolgicos. Atribuiu-se telenovelauma irremedivel pobreza no uso da linguagem audiovisual, com danos irreparveis sua esttica. Preconceitos parte, havia um argumento que poderia demonstrarque o destino da telenovela estaria eternamente conectado ao baixo nvel do trabalhocom a imagem e nfase em um nico aspecto sonoro: os dilogos. Esse argumentoparecia convincente ao se fundamentar na origem do know-how da produo televisiva

    brasileira: rdio, teatro e circo, que no operam com a composio audiovisual no

    sentido em que o faz o cinema. A telenovela estaria, segundo essa argumentao,condenada preeminncia dos dilogos, deixando-se imagem e demais aspectossonoros em um plano secundrio ou irrelevante.

    Uma caracterstica especca da telenovela suscitou outro tipo de ataque. Ale-gou-se que sua composio audiovisual estaria atada s condies de gravao eps-produo ao ritmo alucinante de um captulo por dia. Passadas as duas semanasde praxe dos captulos iniciais, realizados com maior antecedncia e num ritmo mais

    lento de produo, no restante da telenovela, ou seja, algo em torno de 95% do total,praticamente tudo seria feito s pressas, dentro das possibilidades de uma frenticapreparao de enquadramentos, iluminao, sonoridade, com trs ou quatro cmerasfuncionando ao mesmo tempo a m de garantir que algum material aproveitvelresultaria do dia de trabalho. Da os sucessivos campos e contracampos, a cmeraimvel ou com srias limitaes de movimentao, o rgido cuidado com o eixo dastomadas, em suma, o pouco espao para a criatividade ou mesmo para tentativas queimplicassem em maior elaborao imagtica e sonora. A derrota para o concorrente

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    flmico parecia inevitvel. Se no cinema dispe-se geralmente de trs a oito semanaspara lmagens que resultaro em cerca de 90 a 120 minutos de lme, num ritmo diriode poucos minutos efetivamente lmados, como a telenovela poderia se equiparar,

    em termos de elaborao, se gravada ao ritmo de 45 a 60 minutos de material a serexibido, cerca de metade de um longa-metragem por dia?Entretanto, h sinais de que algo se modica nesse panorama que parecia imu-

    tvel.Para examinar o que acontece na telenovela, ser utilizado o referencial terico

    cognitivista, particularmente o conceito de schemata (ou schemas, singular: schema)3.Schemata so estruturas cognitivas abstratas que, ao ativar a memria de longoprazo, fornecem condies para o conhecimento (Hogan, s/d: loc. 279, 1092-1093)4.

    Esse conceito foi utilizado nos anos 1950 por E. H. Gombrich (1986, p. 63 e ss) nahistoriograa das artes visuais. Posteriormente, os estudos cognitivos se constituramcomo um amplo programa de pesquisa, ao combinar esforos da neurobiologia,antropologia cognitiva e psicologia evolucionria, com a investigao nos camposdas artes e das humanidades (Hogan, s/d: loc. 30-53). Em relao ao cinema, DavidBordwell utilizou o referencial cognitivista ao menos desde Narration in the ction

    lm (1985, p. 30 e ss.), tanto para entender como ocorrem as escolhas tcnicas em

    cada narrativa flmica, quanto para saber o que acontece com o espectador enquantoassiste a um lme. No presente texto, aposta-se na viabilidade de utilizar o conceitode schematana anlise televisual.

    Ressalte-se que, segundo o cognitivismo, tanto os schemata quanto os demaiselementos que propiciam o conhecimento so utilizados no apenas pelos espectadorescomo tambm pelos criadores do produto narrativo: diretor, roteirista e outrosparticipantes do processo. sua disposio se encontram as solues bem-sucedidas(Bordwell, 1997, p. 149), cada uma delas fundamentada em schemata.

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    Um dos pontos centrais da abordagem cognitivista o de que, ao assistir a umaco narrativa clssica, os schematautilizados pelos espectadores so os mesmosque os seres humanos usam na vida prtica. Esta descontnua, pois nela se tmapenas fragmentos de experincia, parcialmente desordenados. O crebro utilizaschemata processuais para construir agentes, objetos, eventos, sequncias causais etentar pr os fatos num formato inteligvel (Hogan, s/d: loc.1770-1772). Igualmente,ao acompanhar uma narrativa, o crebro encadeia os segmentos em termos decausalidade, construindo espao e tempo homogneos e, assim, transforma numahistria coerente as descontinuidades entre segmentos, espaos e temporalidades quecompem o lme ou produto televisivo.

    Num trecho especco sobre o cinema, que todavia pode ser estendido para outros

    produtos narrativos audiovisuais, Bordwell (1985, p. 29) diz que um lme semprecontm uma srie de indicaes ou sinais (cues), que mostram ao espectador queele deve executar uma variedade de operaes que envolvem schemata processuais(procedural schemata). Esses schemata ativam estruturas da memria de longo prazo(Hogan, s/d: loc. 279), sem as quais as indicaes fornecidas na narrativa no podemser processadas pelo espectador. Ao assistir a uma co audiovisual, o espectadorprocessa dados que o levam a formular hipteses sobre o que acontecer. Num plano,

    o personagem aponta o revlver para o espao o sua direita e dispara; o espectador,por meio de schematapreestabelecidos, isto , aprendidos, formula a alternativa deque o tiro acertar ou no o alvo, com uma hiptese a respeito (exemplicando:acertar); a consequncia ser provavelmente visualizada no plano seguinte, apso corte, como algum a levar o tiro, que viria da esquerda para a direita da tela. Essacomposio audiovisual tpica de narrativas clssicas. Destaque-se que os schematade processamento das informaes so os necessrios a algum que testemunhasse umcrime e virasse a cabea de um lado para o outro a m de acompanhar os fatos. Eis por

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    que to fcil o aprendizado de schematadas narrativas clssicas: os procedimentosexigidos ao assistir lmes ou programas de televiso dessa linha narrativa so anlogosaos da vida cotidiana.

    Pode-se perguntar se, devido a essa conexo com o aparelho cognitivo, o estilonarrativo clssico seria invarivel. No . No cinema, os princpios narrativoscontinuaram os mesmos desde antes de O Nascimento de uma Nao (D. W. Grith, 1915)at o presente, ressaltam diferenas estilsticas entre aquele lme e os mais recenteslanamentos do cinema. O mesmo vale para a telenovela, desde antes de Beto Rockfeller(Tupi, 1969) at as que esto em exibio no momento. Para cada princpio estabelecidoh um nmero indenido de estratgias para concretiz-lo, da as mudanas do estiloclssico ao longo do tempo.

    Como foi argutamente formulado por Edgar Morin (1997, p. 24-29), na cultura demassas prevalece uma dinmica de conservao e inovao, eternamente contestada,sempre evidenciada.

    Primeira anlise: a raiz do conflitoAvenida Brasil comea de forma impactante, concentrada, com apenas duas tramasparalelas, poucas personagens, acelerado ritmo narrativo e mnima redundncia.

    Proliferam trechos fortes, como o do primeiro choque entre Carmen Lucia (interpretadapor Adriana Esteves) e sua enteada Rita (a menina Mel Maia), a cerca de quatrominutos do primeiro captulo. Carminha rspida e, diante da reao revoltada dacriana, atira-lhe na cara que a me dela est morta, enterrada e que as minhocas

    j comeram todo o corpo dela. Em seguida, torce e arranca o pescoo da bonecade Ritinha. De imediato, portanto, conagra-se o embate entre as duas e evidencia-se o carter prdo da madrasta, temas a desenvolver at o ltimo captulo, comambiguidades que tornaram clebre a caracterizao da dupla. Talvez o grande mrito

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    da cena mencionada seja o de acontecer to cedo na trama, sem qualquer preparativoou uma situao estvel e desejvel, rompida com o conito entre as personagens,como seria o schemamais tradicional da narrao clssica.

    Outro trecho memorvel, agora menos em termos narrativos que de composioaudiovisual, o do atropelamento e morte de Gensio (Tony Ramos), pai de Ritinha,no nal do primeiro captulo e incio do segundo. noite, Tufo (Murilo Bencio)dirige sob chuva, com mnima visibilidade. Est eufrico pela bem-aventurana navida amorosa e, notvel jogador de futebol, por sua atuao na partida em que atuouhoras antes. Corta para Gensio, claudicando no meio da rua vazia, aps ter sidogolpeado por Carminha, que lhe tentou roubar o dinheiro da venda da casa em quemoram. O ponto de vista retorna a Tufo, que apenas sente o choque do veculo

    com algo que no v. H sangue no para-brisa. Atnito, olha para o retrovisor e vum corpo estendido na pista. Corta para um plonge(cmera alta) com Tufo em pe o corpo de Gensio cado metros atrs do veculo. Em poucos minutos a vtimamorre, sob a chuva, poste de luz ao fundo, numa ambientao que remonta delmes noir, como Beira do Abismo (The Big Sleep, Howard Hawks, 1946). Tudo excepcionalmente bem realizado, com iluminao contrastada, uidez na edio, almde haver o detalhe nada desprezvel de que o atropelamento no visualizado, apenas

    indicado.Essa morte desencadear as principais linhas dramticas da trama, pois, das ltimase balbuciantes palavras de Gensio, que so um alerta contra Carmen Lucia, a esposamaligna, Tufo entende que deve cuidar dela. Sua vida mudar de rumo, ao rompercom a noiva Monalisa (Helosa Periss) e se casar com a viva.

    Com certeza simplicadoras, essas poucas linhas sobre as duas cenas devem bastarpara situar os leitores e dar uma ideia da qualidade esttica mais visvel de AvenidaBrasil.

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    A desconcentrao narrativa comea ao nal do captulo sete, com a reformada manso no bairro suburbano do Divino, para a qual se muda a famlia deTufo. Sucede-se a passagem de mais de uma dcada em alguns segundos de

    trama e o aniversrio de doze anos do casamento de Tufo e Carminha, em queJorginho (Cau Reymond), lho adotivo do casal, bbado, provoca um escndaloao se voltar contra a madrasta. A partir da, multiplicam-se os ncleos de perso-nagens em linhas narrativas paralelas. Nos 172 captulos restantes, boa parte dosquais com quase uma hora efetiva de durao, h o que foi chamado de avalanchede fatos, tpica caracterstica de telenovelas (Sadek, 2008, p. 79). Entretanto, no necessrio fazer anotaes sobre a obra inteira diz um princpio da metodologiaanaltica aplicvel em relao ao cinema (Bellour, 1979, p. 10-11) e, por excelentesrazes, aos estudos de televiso. Mesmo que a anlise completa fosse possvel nocaso de um nico lme (o que no , alm de que seria um trabalho estafante e intil),em relao telenovela o empreendimento seria absurdo devido s gigantescasdimenses do objeto. Para uma anlise proveitosa devem bastar os pontos quepossam conter elementos para que se atinja o objetivo da investigao. No ter emvista essa possibilidade um dos motivos por que crticos que se propem a analisartelenovelas se limitam, com frequncia, a uma sinopse e passagem rpida de umacena marcante para outra, sem chegar propriamente a se caracterizar uma anliseaudiovisual.

    Outro aspecto da metodologia analtica pouco levado em conta o de que porvezes as cenas escolhidas no so aquelas que sobressaem nas avaliaes da crtica ouna memria do espectador, como provavelmente so as duas acima descritas. No raro que a relativa pobreza do segmento analisado conduza ao interesse pelo mesmo(Bellour, 1979, p. 126).

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    Para este trabalho, optou-se por deter a ateno sobre uma cena dos primeiroscaptulos de Avenida Brasil . Numa segunda etapa, a ttulo de corroborao deresultados, a anlise ser feita com cenas de um captulo avanado.

    O trecho ocorre no captulo dois (exibido em 27/03/2012) aps a notcia da morte deGensio chegar a Carminha e Rita, com a farsa da primeira, no papel de viva trgica,e o choro da menina. Sem conseguir pela intimidao que Rita lhe diga onde est odinheiro escondido pelo pai, Carminha muda de estratgia. Aps o salto para a tramaparalela e cmica do bgamo Cadinho (Alexandre Borges), retorna-se ao confrontoentre Carminha e Rita.

    No quarto da menina, a cmera efetua um travellinglateral da direita para esquerda,pouco a pouco enquadrando em plano mdio desenhos infantis pregados na parede,

    porta ao fundo, ps de Rita no primeiro plano e, quando Carminha entra no quarto,a menina deitada na cama. No h trilha sonora. A iluminao contrastada, fora dopadro de luz clara e difusa de telenovelas tradicionais. Mal se enxergam detalhesdo recinto; esto em plena obscuridade espaos abaixo dos desenhos na parede eatrs da porta. Atravs desta, penetra a luz da manh, que atravessa uma janela aofundo e joga um pouco de iluminao sobre a dupla. Seguem-se primeiros planosde ambas, com Carminha aparentemente abatida e Ritinha agressiva nas palavras

    e ns olhar. Carminha diz querer fazer as pazes e que preparou um caf da manhpara as duas. Retorna o enquadramento estabelecido ao nal do travelling, com amenina na cama no primeiro plano e a porta aberta ao fundo. Carminha sai para ocorredor.

    O que se sucede o ponto a ser realado. So trs planos curtos, num total de7,2 segundos, em que Carminha cruza transversalmente o corredor e entra nacozinha. Poderia ser um segmento trivial se gravado segundo corriqueiras normas decomposio televisiva. No o que acontece. No nal do plano anterior, Carminha

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    andou do centro do quarto para a porta, que est esquerda da tela e desaparece noespao o esquerda (Figura 1).

    Seria de se esperar que o prximo plano a mostrasse a sair do quarto e atravessar

    o corredor da direita para a esquerdada tela. Assim a edio estaria de acordo com asregras de continuidade consolidadas por dcadas do que Kristin Thompson chamade classical television (2003, p. 19-35): o estilo de composio audiovisual que setornou hegemnico na co televisiva americana e de outros pases, como o Brasil.Entretanto, o primeiro dos trs planos em foco exibe Carminha a atravessar o corredorno sentido inverso ao esperado, ou seja, da esquerda para a direita, em descontinuidadecom o movimento anterior (Figura 2). Trata-se de uma agrante quebra de eixo, pecadomortal para a composio clssica.

    Figura 1Avenida Brasil,captulo de 27/03/2012.

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    Como se no bastasse, o segundo plano mostra a personagem a concluir a passagempelo corredor e chegar porta da cozinha, agora movendo-se da direita para a esquerdada tela, em nova quebra de eixo, enquadrada a partir do quarto do casal (Figura 3).

    Figura 2Avenida Brasil,captulo de 27/03/2012.

    Figura 3Avenida Brasil,captulo de 27/03/2012

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    No foi essa a ltima infrao. Para nalizar o trajeto, no terceiro plano,Carminha atravessa

    a cortina de contas e entra na cozinha, caminhando da esquerdapara a direita da tela, em direo mesa, numa terceira quebra de eixo, em planossucessivos (Figura 4).

    Figura 4Avenida Brasil, captulo de 27/03/2012.

    Dois alertas que talvez paream desnecessrios, embora no o sejam. Primeiro, o deque no foi a primeira vez que aconteceu uma quebra de eixo na televiso brasileira.Mesmo as normas clssicas mais rgidas do cinema e da televiso, possibilitam quebrasde eixo em algumas circunstncias: a chegada de mais um personagem, que propiciariaa formao de novo eixo; situaes em que est absolutamente claro que o movimento

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    dos personagens retilneo, como um automvel em movimento numa estrada reta;cenas de convulso dramtica, como em batalhas de lmes de guerra, quando a quebrade eixo auxilia o efeito de confuso visual experimentado pelas personagens. No seinscreve em nenhuma dessas excees a cena deAvenida Brasil.

    O segundo alerta contra a hiptese de um vulgar erro de continuidade. implausvel porque, num produto feito com dezenas de prossionais, numa emissoracom know-how de quase cinco dcadas, torna-se quase impossvel uma quebra deeixo ao acaso, quanto mais trs em sucesso, que saltariam aos olhos de qualquereditor minimamente qualicado, sem contar diretores, assistentes e demais membrosda equipe que tenham tido contato com o material ou que estivessem na gravao.Recorde-se que o captulo foi gravado e ps-produzido na fase em que a telenovela

    feita com tempo para ser levado ao ar sem correria. A m de no restar dvida quantoao alerta, note-se que em seguida, na mesma cena, Ritinha sai do quarto refazendo omesmo trajeto da madrasta, com idnticos enquadramentos, isto , ocorrem mais trsquebras de eixo sucessivas, o que seria erro demais at para a mais parva equipe derealizao televisiva.

    Para encontrar antecedentes de composio, pode-se voltar aos lmes de YasujiroOzu (1903-1963), como sua obra-prima Era uma Vez em Tquio, tambm conhecida

    como Viagem a Tquio (Tokio Monogatari, 1953). Ozu, que se tornou clebre no Ocidentea partir dos anos sessenta, tinha como uma de suas marcas estilsticas o uso frequentede sucesses de quebras de eixo no clssicas, isto , que no se inscreviam naquelasexcees acima enumeradas. Era uma Vez em Tquio a histria de dois velhos queviajam para a capital a m de se encontrar com os lhos adultos, que j no tm tempoe pacincia para eles. H diversas ocorrncias do schemade mltiplas quebras de eixo,como no primeiro dilogo, em que os velhos esto sentados no tatame e aparecemvoltados para esquerda ou para a direita da tela dependendo da posio da cmera.

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    Esse resultado no seria admissvel em telenovelas tradicionais. Um exemplo de Erauma Vez em Tquio est ainda mais prximo ao deAvenida Brasil: a primeira cena emTquio, quando a nora dos velhos arruma a casa. Ela est numa sacada, esfrega o piso,pega o balde e saipela direita da tela. No plano posterior, que mostra a continuao deseu caminho da sacada para o interior da casa, a mulher entra na sala, balde mo,da direita para a esquerda da tela. Corte e ela entra na cozinha da esquerda para a direita,segundo o mesmo schema, visto emAvenida Brasil, de sucessivas quebras de eixo e emsituao idntica, ou seja, quando a personagem atravessa o espao domstico.

    Note-se que, embora o schema seja utilizado no lme e na telenovela, o sentidono igual. Em Ozu, sucessivas quebras de eixo aconteciam em cenas de baixadramaticidade, como na acima descrita. Ozu foi um cineasta que no obedecia

    s normas da narrativa clssica. Bordwell (1985, p. 274-311) colocou os lmes deOzu no rol do cinema paramtrico, em que os recursos estilsticos so utilizadosindependentemente do momento da trama em que ocorrem. Era uma forma estranhapara o padro da poca, em ambos os hemisfrios do planeta. Em Avenida Brasil, porsua vez, a tripla quebra de eixo ocorre num momento especco, altamente dramtico.Como dito acima, Carminha mudou de estratgia em seu objetivo de pr as mos nodinheiro escondido. No h mais agresses verbais e gestuais da madrasta. Fala com

    calma no quarto e continua a faz-lo na cozinha, quando diz que ir embora parasempre e deixar Rita sozinha na casa. um blefe, evidentemente. Nesse ponto ocorreo dilogo que servir de mote para o desenrolar da trama, at o ltimo captulo:

    Carminha: Espero que um dia voc me perdoe. Quando voc crescer, voc vaientender que ningum s bom ou s mau.

    Ritinha (furiosa):Voc s m! Voc no gente! s ento que inicia a trilha sonora, suave, quase imperceptvel, em contraste com

    a fala vigarista da mulher e dura da menina. Em outras palavras, o trecho analisado

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    estritamente clssico em termos narrativos: tudo obedece teleologia que articula asaes segundo a causalidade e em vista do confronto decisivo entre as personagens,que ocorrer em captulos exibidos meses adiante. O uso do schemade mltiplasquebras de eixo segue essa premissa, pois mantm no campo visual uma tenso quepoderia ter-se esvado caso fosse utilizada uma edio tradicional. As duas triplasquebras de eixo so indicativas de um mal-estar no ambiente, tanto quanto o seriauma trilha melodramtica.

    A sequncia se conclui com Carminha a pr os pertences na caminhonete de Max(Marcello Novaes), seu companheiro e comparsa. O estratagema funciona. Vendo-sesozinha, Rita vai at o dinheiro e agrada por Carminha que, bvio, no tinhaido longe. Com a posse do dinheiro, a madrasta envia a enteada para viver no lixo.

    Est congurado o cenrio que originar a vingana de Rita, sempre de acordo comprincpios narrativos clssicos, imergindo em linhas do melodrama, um dos gnerosdo cinema e da televiso mais ao gosto do grande pblico.

    A nfase concedida ao carter narrativo clssico da telenovela no deve confundira anlise. Como explicado, o schemade sucessivas quebras de eixo pode no ser usualna co televisiva, contudo foi utilizado, na cena analisada, segundo princpiosh dcadas por ela adotados. No rompe a consagrada linha narrativa, cuja imensa

    aceitao por parte do pblico incontestvel, apenas a revisa.Segundo Bordwell (1997, p. 152-154), schematanarrativos podem ser objeto dequatro formas de utilizao. Eles podem ser:

    a) replicados, quando utilizados sem modicao, por exemplo, campos e con-tracampos feitos da mesma forma em incontveis telenovelas ao longo dedcadas;

    b) sintetizados, quando schematadiferentes se fundem, o que tende a ocorrer emlmes e programas televisivos ps-modernos, caso da co flmica e televisiva

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    de Guel Arraes e Jorge Furtado, alm de algumas minissries de Luiz FernandoCarvalho;

    c) rejeitados, quando os schemata so substitudos por outros, como ocorre emlmes e programas televisivos de linha modernista, caso de A Pedra do Reino(Luiz Fernando Carvalho, 2007);

    d) ou revisados, quando sua utilizao sofre uma alterao a mudar-lhe o sentido,caso do citado schema, que em Ozu era parte da composio paramtrica e em

    Avenida Brasilfoi absorvido segundo ns clssicos.No deve provocar espanto que schematado cinema sejam transpostos para a co

    televisiva. Esse processo tem sido recorrente, intensicando-se no Brasil h cerca deuma dcada, devido ao crescente nmero de diretores, roteiristas, tcnicos, atores e

    demais participantes do processo de realizao que atuam nas duas mdias5.Aqui importa to somente mostrar queAvenida Brasilopera de forma bem sucedida,conforme atestado pela audincia e avaliaes crticas em geral, com schematanadacomuns. As duas cenas descritas no incio desta anlise, a do primeiro conito entreas protagonistas e o atropelamento de Gensio por Tufo podem ser associadas a essahiptese. Na primeira, havia conciso narrativa a mostrar imediatamente quem a vile quem a vtima, o que at poderia proporcionar a sensao de que em duas horas

    contar-se-ia a histria inteira; na segunda, a congurao visual de lme noir. Enm,deve car claro que a utilizao da trplice quebra de eixos uma indicao de queo revisionismo televisivo est a ser levado bem mais adiante do que nos dois outrosexemplos, alis, nada desprezveis no presente contexto.

    Entenda-se que a anlise proposta no tem objetivo indutivo: no se pretendedizer que Avenida Brasilesteja repleta de quebras de eixo em sucesso, o que seriaapenas transgresses repetidas. Bastar a constatao emprica do schemarevisionistae a indicao que algumas telenovelas no mais correspondem a padres de baixa

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    elaborao visual, tal como se diagnosticava h no muitos anos e ainda consta emmanuais de realizao televisiva com que alunos de cursos de audiovisual tentamaprender o ofcio.

    Segunda anlise: no lixo necessria uma segunda anlise para no deixar dvidas sobre a existncia deinovaes estilsticas emAvenida Brasil, alm de mostrar que ocorrem de uma ponta aoutra da trama. A anlise acima pode suscitar a objeo de que, por se tratar de umacena do segundo captulo, o schemaconstatado pode ser atribudo ao tempo abundante,presumivelmente ocioso e propcio criatividade, ento disponvel aos realizadores.Portanto, a ateno agora se volta para o captulo 171, exibido em 10/10/2012, a oito

    captulos do nal da telenovela, portanto no alucinante ritmo de gravao e ps-produo de um captulo por dia.Trata-se do trecho em que Max, revoltado pela tentativa de Carminha de assassin-

    lo, o que rompeu uma parceria que vinha da infncia de ambos, aprisiona-a junto comMe Lucinda e Nilo, os grandes personagens do lixo e pais de Max. Pode-se dizer queno um trecho obscuro, perdido entre cenas marcantes, at porque logo ir resultarno assassinato de um dos personagens. Aqui se pretende indicar o que pode no serclaro aos telespectadores e que, no entanto, est ali na tela, a impression-los.

    Bbado, cheio de ressentimento e com um revlver na mo, Max ameaa a todos: Max: Agora a gente vai fazer... a gente vai fazer uma brincadeira. A gente vai

    brincar como se a gente fosse uma famlia normal.O enquadramento poderia ser chamado de esdrxulo para os padres da co

    televisiva brasileira. No primeiro plano, h um objeto escuro e desfocado, talvez umachaleira. Atrs desse objeto, muito prximo, est o rosto de Max. Ao fundo a janelapor onde penetra uma das fontes de luz. O rosto de Max est no canto superior direito,

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    ocupando cerca de 30% da tela, com uma zona de sombra, em contraluz, sobre o ladoesquerdo de sua face. O objeto escuro ocupa quase a metade da tela, portanto, mais doque o personagem, e ainda tem um cabo que encobre parte da boca, nariz e olho direitode Max. Nenhuma relevncia causal possui esse objeto, ou seja, no ser, por exemplo,

    tomado pelo personagem a m de realizar alguma ao. Simplesmente, o objeto estali, encobrindo o espao. Passados alguns segundos, Max se move para trs, e a cmerao reenquadra, o que reduz a parte visvel do objeto a menos da metade do que antesdele se via, mas os desfocados surgem sobre Max, de modo que permanece o schemade colocar objetos frente do que mais importante na tela: o rosto do personagem.

    O schema persistir no restante da sequncia. Destaquem-se apenas mais doisplanos, a m de deixar claro que ele se acentua conforme as cenas cam mais tensas.

    Carminha, alvo principal da revolta de Max, tambm cercada dentro da tela porobjetos desfocados no primeiro plano, no caso a tampa da mesa e a parte superior deuma garrafa. Quando Carminha, rosto crispado, pergunta a Max o que ele quer comessa brincadeira, Max se aproxima e aponta o revlver para o rosto dela. O novoenquadramento de Carminha leva mais longe o schemaem uso. O rosto ocupa a metadeesquerda da tela, enquanto no primeiro plano, um tringulo negro corta a tela da suaparte superior esquerda, desde a testa da personagem at o canto inferior direito. Oque essa mancha negra? um objeto daquele espao, fora de foco, cuja identicaopouco importa. Interessa que rasga a tela de uma forma agressiva e que ajuda a elevara tenso.

    O terceiro plano ocorre no princpio do captulo seguinte, de 11/10/2012, ainda namesma sequncia em que Max aterroriza no lixo. Avisada por um dos meninos de MeLucinda, Rita vai ao lixo para tentar salv-la. Aprisionada por Max, posta entre suasvtimas. Note-se que os planos de Carminha e Max permanecem construdos segundoo schemaacima apontado, que mais e mais se acentua. Em determinado momento, Max

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    sorri ao dizer, sempre com a arma em punho, que Mame est presa, papai tambm;ao apontar outra vez a arma para Carminha, completa: A minha mulherzinhavagabunda.... A tenso foi incrementada, o que visvel pelo enquadramento deCarminha. Dela se veem apenas testa, olhos e nariz, no canto superior direito da tela;

    todo o restante desta ocupado por objetos desfocados: a tampa da mesa, que cortao rosto de Carminha altura de seu lbio superior, e, esquerda, encobrindo toda aparte posterior da cabea da personagem uma mancha escura, tambm triangular e

    Mencione-se, a ttulo de exemplo entre incontveis outros, um segmento do captulo de24/08/2012, portanto do bloco central da telenovela. Na lancha de Max, Tufo agrouCarminha a dar dinheiro para o comparsa. Desconado de que eles so mais do quemeros concunhados, Tufo investe contra a esposa, pedindo explicao. Nesse trecho,

    Figura 5-Avenida Brasil, captulo de 11/10/2012

    totalmente fora de foco a nuca deRita (Figura 5).

    Outros planos poderiam ser ana-lisados, porm bastam os trs para

    que se indique o quanto determinadosenquadramentos de Avenida Brasildiferem da limpeza visual durante d-cadas apregoada por manuais de TV,atacada pela crtica de extrao moder-nista e encontrvel na quase totalidadedo que a co televisiva brasileira fezat cerca de uma dcada atrs.

    Desde o princpio deAvenida Brasilvisualizaram-se enquadramentos se-melhantes, ainda que menos intensos.

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    h vrios segmentos com objetos desfocados no primeiro plano, mesmo que sem asobrecarregada presena visual dos trechos acima analisados.

    Na sequncia em que Max ameaa os quatro prisioneiros, o schemarompe normasde composio televisiva de forma radical. Como dito, trata-se de uma gravao

    realizada numa fase de produo em ritmo hiperacelerado, da qual seria de se esperaro trivial, j visto, testado e aprovado em outras telenovelas, mas no o que ocorre.Toda a sequncia, de que se destacaram apenas trs enquadramentos, corrobora ahiptese de que na televiso brasileira podem-se encontrar telenovelas com um nvelde elaborao que teria sido imprevisvel anos atrs. O que antes poderia ser visto comomera poluio visual, surge como um schemacompositivo de alta expressividade, semque por esse motivo tenha havido, at onde se sabe, comprometimento da aceitao

    deAvenida Brasilpor parte do grande pblico.

    Comentrios finaisNos estudos da telenovela, a gura considerada mais decisiva a do autor, ou seja,o escritor do roteiro. Com certeza, um papel fundamental, que nunca deve sersubestimado. Contudo, pode haver outras guras centrais na realizao. Joo EmanuelCarneiro, o autor deAvenida Brasil, deve ter escrito, para uma cena do captulo trs,algo como: Ritinha chora sob a chuva, no lixo, noite. Nilo ameaa-a distncia.Ela se esconde numa carcaa de automvel. Como surge a cena na tela? O que seescuta? De maneira simplicada, pode-se dizer que a cena apresenta jogos de luzes,de movimentos de cmera e de foco, alm de uma trilha sonora chapliniana. Assolues tcnicas foram adotadas por outra instncia, a da direo, no caso a duplade diretores, Amora Mautner e Jos Luiz Villamarim. Entender como em cada casoso tomadas as decises, com ou sem a participao do diretor de ncleo (no caso,Ricardo Waddington), de assistentes de direo, de tcnicos, de atores, um campo

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    de estudos concernente ao exame da produo, cujos resultados teriam efeito sobreas anlises audiovisuais.

    EmAvenida Brasil possvel detectar, nos momentos de maior tenso, a tendncia scomposies audiovisuais fora de padro, permanecendo as cenas cmicas e leves, que

    no so poucas, conforme tradicionais schematade realizao. Ao aumentar o conito,potencialmente ou de fato, desenvolve-se a utilizao de schematainovadores; ao sereduzir ou anular-se o conito, as cenas seguem padres habituais. Pode-se pensarque essa modulao seja um dos fatores a permitir a gravao de um captulo por diae, mesmo assim, abrir-se espao para uma elaborao audiovisual diferenciada.

    Que no se julgue que toda a co televisiva brasileira, nem ao menos a da RedeGlobo, se paute por essa linha de realizao. A disparidade entreAvenida Brasile outras

    telenovelas contemporneas salta aos olhos e ouvidos de crticos e telespectadores,embora explicaes claras para a diferena no venham tona. Convivem sempre, emcada poca, realizadores que optam por solues mais tradicionais com outros queousam muito mais.

    O que se pode armar com segurana que uma renada e exaustiva elaboraoaudiovisual penetrou na telenovela.Avenida Brasilno foi pioneira: algo semelhantepde ser visto emA Favorita (Globo, 2008-2009) e na inventiva ps-produo deTi-Ti-Ti(Globo, 2010-2011). EmAvenida Brasiltalvez o resultado tenha sido mais signicativoem sua ousadia de assimilar elementos de outra mdia, incorporando-os segundonecessidades comunicacionais. Conclui-se que o paradigma clssico de composioaudiovisual passa por intensivas revises.

    A esta altura, haveria o direito de indagar: para que tanto esforo de elaboraoestilstica se o pblico nada percebe? A resposta simples: percebe sim. Para queschemata de criao sejam operativos preciso que existam schematacorrelatos dostelespectadores, os mencionados procedural schemata(Hogan, s/d, loc. 703-704, 1785-

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    1786). Do contrrio, diante da incapacidade de processar estmulos provenientes dotelevisor, a percepo da telenovela teria provocado raiva e aborrecimento (Hogan,s/d, loc. 105-173), o que, em vista da audincia, no aconteceu6.

    Para terminar, ressalte-se que ainda so necessrias pesquisas que informem o que

    exatamente ocorre com o pblico ao se deparar com cada um dos schemataanalisados.Em outras palavras, estudos de recepo precisam se associar s anlises dos estilosaudiovisuais. l

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    NOTAS1 Este artigo tem por base o trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televiso, do XXII

    Encontro Anual da Comps, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013.2 O grupo de pesquisa Inovaes e Rupturas na Fico Televisiva Brasileira, ligado ao Mestrado em

    Comunicao da Universidade Anhembi Morumbi e ao OBITEL Brasil, desenvolve um projeto

    multiperspectivstico em torno deAvenida Brasil, em que se examinou a narrativa, o roteiro, a transmidiaoe o proposto neste texto (Pucci Jr. et al., 2013, p. 95-131).

    3 A traduo esquema no foi utilizada a m de se evitar a confuso com sentidos dessa palavra emportugus.

    4 No Kindle, no h paginao, pois o texto dividido em locations. Assim, cinco ou oito locations sucessivosequivalem ao texto de uma pgina impressa.

    5 O processo acontece tambm em sentido inverso: lmes em que se assimilaram schemata oriundos dateleviso ou que nela encontraram especial campo de desenvolvimento. Essa considerao til para queno se perca o intenso movimento de trocas entre os meios e a m de evitar a impresso de que a televisoesteja a parasitar o cinema.

    6 Como foi bem colocado por participantes do debate no GT Estudos de Televiso, da XXII Comps, quandoforam apresentadas as ideias do presente artigo, ao longo das ltimas dcadas a televiso realizou trocasestilsticas com videoclipes e com produtos de internet, alm do cinema, algumas das quais a envolverelementos encontrveis em Avenida Brasil. Esse processo explicaria por que tantos telespectadores norepudiaram schemata raros ou inexistentes em outras telenovelas. O grande pblico tambm est emprocesso de transformao, nem sempre por conta da prpria programao televisiva.

    Recebido em: 18 mar. 2014Aceito em: 05 maio 2014

    Endereo do Autor:

    Renato Luiz Pucci Junior Universidade Anhembi MorumbiRua Casa do Ator, 294, 7andar Vila Olmpia04546-001 So Paulo, SP, Brasil

    mailto:[email protected]://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_4/[email protected]:[email protected]