ingeborg maus e o judiciário como superego da sociedade - revista cej

Upload: alexandre-gustavo-melo-franco-de-moraes-bahia

Post on 11-Feb-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 Ingeborg Maus e o Judicirio como Superego da Sociedade - Revista CEJ

    1/3

    10 R. CEJ, Braslia, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005

    INGEBORG MAUS E O

    JUDICIRIO COMOSUPEREGO DA

    SOCIEDADEAlexandre Gustavo Melo Franco Bahia

    DIREITO CONSTITUCIONAL

    RESUMO

    Traa breve reconstruo de algum as das crticas que a jur ista alem Ingeborg M aus faz a respeito da Corte Constituci onal da Alemanha (e do Judiciriocomo um todo), mostrando os perigos da adoo irrestrita da jurisprudncia dos valores.

    Discute ainda a crtica que a autora faz a Ronald Dworki n, procurando situar melhor o ju rista americano e redirecionar a crtica a Robert Alexy, um dosmais destacados defensores da juri sprudncia dos valores e que tem exercido boa infl uncia no Brasil pela adoo de insti tutos como o princpio daproporcionalidade.

    Em razo disso e das recentes alteraes do Judi ciri o brasil eiro, in daga acerca da apli cao no Brasil das crticas de Ingeborg M aus, as quais podemser resumidas na questo do papel d o Judi cirio, com o rgo consti tucional qu e decide casos a partir de razes de Direito ou de uma superentidadeque exerceria o papel de superego de uma sociedade rf.

    PALAVRAS-CHAVE

    Direito; Sociologia; Dworkin; Ingeborg Maus; Poder Judicirio; Alemanha; Direito Constitucional; m oral.

  • 7/23/2019 Ingeborg Maus e o Judicirio como Superego da Sociedade - Revista CEJ

    2/3

    11R. CEJ, Braslia, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005

    Para Ingeborg Maus1, o Judici-rio na Alemanha, principalmen-te na figura da Corte Constitu-

    cional, desde o p erodo liberal, au-menta prog ressivamente suas fun-es, num movimento em que procu-ra substituir funcionalmente a figurade pai q ue a Monarquia at entoali desempenhara.

    Essa figura do p ai (a que serefere a autora) representa, no caso,o papel d o superego coletivo deuma sociedade rf, carente de tu-tela. A tradio psicanaltica conce-be esse fato como a reincorporaoda figura paterna num cl canibal quehavia eliminado o patriarca castrador(que ditava e assim representava alei). Quando aquele que geravaassimetria eliminado, o cl restaabandonado condio de um g ru-po de iguais e livres; contudo, ogrupo no c onsegue suportar tal si-

    tuao e reintroduz, por isso, aassimetria: coloca-se algum para no-vamente ditar as leis e, pois, ser o novopai 2.

    No nos esqueamos de queo processo de d essacralizao d asociedad e deixou no seio desta umvazio axiolgico q ue, at certo mo-mento, foi ocupado, na Alemanha,pela figura do monarca. Com o fimda Monarquia, abre-se mais uma vezo problema acerca de quem poderiarepresentar o censor moral da socie-

    dade. Contingencialmente, naquelanao, a partir do momento em que aCorte Constitucional assumiu essepapel, acabou por retirar do Parlamen-to (e mais ainda, da esfera pblica) afuno de arena pblica d e debate.A eliminao de discusses e proce-dimentos no processo de construopoltica do consenso(...) alcanadapor meio d a centralizao d a "cons-cinc ia" social na Justia. (...) Quan-do a Justia ascende ela prp ria condio de mais alta instncia mo-ral da sociedade, passa a escapar de

    qualquer mecanismo de controle so-cial3.

    Tal constatao tambm preo-cupa P. Hberle4: La cuestin que vasiendo ahora de p lantearnos es, si lamirada hac ia Karlsruhe(...) no com-porta altos costes. Esforzndose almximo por la invulnerabilidad cons-titucional de las propias d ecisiones,el Legislador acaba arriesgando msbien poco ydescuidando la propiamisin poltica de configurac in. Notrae ello como "consecuenc ia" cierto

    descuido de la cultura democrtica dedebate (Streitkultur) adirimir en la are-na poltica?5

    Maus, ao reconstruir a histria

    do Judic irio na Alemanha, desde osculo XIX, mostra que, inic ialmente,este assimilou os princpios liberaisde vinculao s leis gerais e abstra-tas, alm da limitao interpretaoda lei pelo juiz (juiz bouche de la loi).No entanto, aps esse primeiro pero-do, o Jud icirio alemo vai progres-sivamente perdendo aquela vinculao

    estrita lei medida que cresce umaautocompreenso peculiar quanto aseu papel na aplicao do Direito.

    A ascenso do nazismo cobrouna Alemanha uma desvinculao dojuiz lei (e Constituio de Weimar),fazendo com que p retensos direitosnaturais suprap ositivos se sobrepu-sessem e subordinassem leiturados d ireitos fundamentais. Como noslembra Ernesto Garzn Valds, o pe-rodo nazista, ao contrrio do quecrem alguns, marcado mais por umjusnaturalismo racista do que pelo

    apego positivista lei6. Aps a 2Guerra, a despeito da derrota do na-zismo, os setores mais conservado-res do Judicirio e de Escolas de Direi-to alems (que haviam atuado significa-tivamente pr-nazismo) tiveram um pa-pel importante na reconstruo insti-tucional do Pas, inclusive com a cria-o de uma Corte Constitucional7.

    A partir da, a independnc iado Judicirio passou a significar,muito mais do que independncia fun-cional frente aos demais poderes,

    uma desvinculao autoridade dasleis e da Constituio.A emergncia de um Direito

    suprapositivo fez com que a CorteConstitucional, alm de aumentar, porconta prpria, suas funes, se con-siderasse competente para julgar ata prpria Constituio, dando-lhe ainterpretao que lhe parecesse me-lhor. Tudo p orque a referncia a umDireito suprapositivo pressupe quese perceba a Constituio como umaordem concreta de valores que Cor-te Constitucional cabe densificar:

    quando a Corte procede ao controlede constitucionalidad e, exerce suacompetncia de julgar axiologicamenteas opes d o legislador, avaliando,pois, o contedo valorativo das leis e,at, se estas foram elaboradas dentroda margem de discricionariedade quea Corte julga que o legislador possuiem cada caso8.

    Segundo Maus, o Judicirioalemo inserir-se-ia numa doutrinamuito difundida na Alemanha (a juris-prudnc ia dos valores), mas abran-

    geria outras leituras que confundiriamo Direito e a moral, subordinandoaquele a esta. Nesse ponto ela colo-ca Dworkin, por acreditar que o juris-

    ta (com seu conceito de Integrida-de) acaba por no diferenciar Direitoe moral9.

    No entanto, a despeito da bri-lhante anlise crtico-reconstrutiva doJudicirio em seu pas, a crtica deMaus a Dworkin no procede. Talvezinfluenciada pela leitura alexyana queo jurista americano possui na Alema-

    nha10

    , a autora acaba por comp reen-der de forma equivocada sua propos-ta. Desde as perspectivas de Gnther11

    e Habermas12, as crticas de Maus se-riam muito melhor aplicveis a Alexy e dificilmente a Dworkin. Segundo aque-les, Dworkin concebe muito claramen-te a diferena no s entre Direito emoral, mas tambm destes para comargumentos ticos e pragmticos, porexemplo.

    Dworkin13 demonstra que argu-mentos morais, ticos e pragmticosdesempenham um papel importante

    no processo legislativo, mas, apssua incorporao ao Direito, sua rei-vindicao jurisdicional apenas sepode d ar por meio de argumentos deprincpio (jurdicos) e no (mais) porargumentos de p oltica14.

    Os princpios, argumentaHabermas15, como normas jurdicasque so, movem-se por uma lgicadiscursiva diferente dos valores. Prin-cpios so comandos deontolgicos(obrigaes binariamente codificadasde expectativas de comportamento);

    j valores possuem um cd igo gra-dual acerca de preferncias que com-petem entre si numa ordem transitivae referente a uma forma de vida (quese pressupe homognea).

    O problema que Alexy,apesar de reconhecer a natureza di-versa entre aqueles, parece no lev-la a srio e justifica a soluo deconflitos entre princpios a partir domesmo mtodo de soluo de confli-tos entre valores. Assim, os direitosfundamentais, como princ pios, somandados de otimizao que devem

    ser realizados na medid a do p oss-vel, dados os custos e benefciosenvolvidos. Os princpios possuiriamforma jurdica, mas seriam regidos porcontedos morais. Dessarte, Alexycoloca a argumentao jurdica comoum caso especial da argumentaomoral16.

    Dessa forma, a referida subor-dinao d o Direito moral, presentena crtica de Ingeborg Maus, parece-nos ser melhor aplicvel a Alexy e sua intransigente defesa da Corte

    Constitucional alem, colocando-a, defato, como censor moral da (rf) so-ciedade alem. Dworkin, ao c ontr-rio, ao defender a construo do Di-

  • 7/23/2019 Ingeborg Maus e o Judicirio como Superego da Sociedade - Revista CEJ

    3/3

    12 R. CEJ, Braslia, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005

    reito como romance em cadeia, emque cada caso comparece como casonico que a comunidade de princpios(jurdicos) tem d iante de si, procuradiferenciar uma argumentao propri-amente jurdica de uma argumenta-o baseada em poltica ou em mo-ral.

    Deve-se refletir em que medi-

    da as crticas de Ingeborg Maus Corte Constitucional alem acima ex-postas podem ser aplicadas ao Su-premo Tribunal Federal, notadamentea partir do momento em que, porexemplo, este se considera uma Cor-te Constitucional nos moldes euro-peus (ou ao menos num processonesse sentido)17. Se entendemos quea soluo para nossa (?) Crise d oJudicirio se dar com a concentra-o de competncias nas mos dostribunais superiores basta vermosa Emenda Constitucional de Reforma

    do Judic irio , bom pensarmossobre a possvel aplicao das crti-cas de Ingeborg Maus ao nosso Ju-dic irio e aplicao irrestrita do prin-cpio da proporcionalidade como pa-nacia de resoluo de nossos con-flitos entre direitos fundamentais princip almente porque isso implicareferncia a uma ordem suprapositivade valores, confundindo d ireitos, nor-mas morais, polticas, argumentos decusto/benefcio etc.

    REFERNCIAS

    1 MAUS, Ingeborg. Judicirio como supe-rego da sociedade: o papel da atividadejurisprudencial na sociedade rf. NovosEstudos CEBRAP, So Paulo, n. 58, p. 185,nov. 2000.

    2 BARUS-MICHEL, Jacqueline. A demo-cracia ou a sociedade sem pai. In:

    ARAJO, Jos Newton; SOUKI, LaGuimares; FARIA, Carlos A. Pimenta de.Figura paterna e ordem social: tutela,autoridade e legitimidade nas sociedadescontemporneas. Belo Horizonte: Au-tntica;PUC Minas, 2001. p. 35. A autora

    mostra que, paraFreud, e depois para

    Lacan, o pai a figura da Lei. Figura querdizer aqui que ele , enquanto senhor da

    mulher e ameaa de castrao para osfi lhos, a origem, o fundamento e a

    realizao daquilo que constitui a lei. Verainda SOUKI, Lea Guimares. A meta-morfose do rei: tradio e mudana emprocessos de democratizao. In:

    ARAJO; SOUKI; FARIA, op. cit., p. 143-170.

    3 MAUS, op. cit., p. 186-187.4 HBERLE, Peter. Jurisprudencia consti-

    tucional. In: LOPEZ PINA, Antonio. Lagaranta constitucional de los derechosfundamentales: Alemania, Espaa, Francia

    e Italia. Madrid: Civitas, 1991. p. 340.5 Ver ainda Klaus Schalaich (apud SAMPAIO,

    Jos Adrcio Leite. A cons-tituioreinventada pela jurisdio consti-tucional.

    Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 67).6 Segundo Garzn Valds, a asceno do

    nazismo significou na Alemanha antes aproposta de um Jusnaturalismo Racial doque o apego a um positivismo de viskelseniano (ao contrrio do que inva-riavelmente se diz). Repudiando o apego lei, juristas da poca defendiam a sub-misso do Direito positivo a uma ordemconcreta de valores. (GARZN VALDS,Ernesto (compilador). Introduccin. In:Derecho y Filosofa. Barcelona: Alfa, 1985,p. 5-41).

    7 MAUS, op. cit., p. 196-198.8 ALEXI, Robert. Direitos fundamentais no

    Estado constitucional democrtico: para arelao entre direitos do homem, direitosfundamentais, democracia e jurisdioconstitucional. Revista de Direito Admi-

    nistrativo, Rio de Janeiro, n. 217, p. 64, jul./set. 1999. Para o autor, se h nos Estadosmodernos uma luta pelos direitos funda-mentais, o rbitro dessa luta no o povo,mas o Tribunal Constitucional. Enquanto oParlamento representaria o povo poli-ticamente, o tribunal constitucional (o

    representa) argumentativamente (idem, p.66). Um melhor desenvolvimento dessaproeminncia do Tribunal Constitucionalencontra-se no posfcio do seu a theoryof constitutional rights. Oxford/NewYork:Oxford University Press, 2002. p. 388-425.Sobre um direito suprapositivo a deter-minar at a Constituio, ver tambm:BACHOF, Otto. Normas constitucionais

    inconstitucionais? Coimbra: Almedina,1994. p. 3; MLLER, Friedrich. O signi-ficado terico de "constitucionalidade/in-constitucionalidade" e as dimensestemporais da declarao de incons-titucionalidade de leis no Direito alemo.Palestra realizada na Procuradoria Geral doRio de Janeiro, em 19/9/2002. Disponvelem: .

    Acesso em: 20 jul. 2003; MENDES,Gilmar F. Direitos fundamentais e controlede constitucionalidade: estudos de DireitoConstitucional. So Paulo: Celso BastosEditor, 1998. p. 463.

    9 MAUS, op. cit., p. 186-187.10 ALEXI, Robert. Derecho y razn prctica.

    Mxico: Distribuciones Fontamara, 1993.p. 14 e ss.

    11 GNTHER, Klaus. Teoria da argumen-tao no Direito e na moral: justificao eaplicao. So Paulo: Landy, 2004.

    12 HABERMAS, Jrgen. Facticidad y validez:

    sobre el Derecho y el Estado democrticode Derecho en trminos de teora deldiscurso. Madrid: Trotta, 1998. p. 328 e ss._______.A incluso do outro. So Paulo:Loyola, 2002. p. 357 e ss.

    13 DWORKIN, Ronald. Uma questo deprincpio. So Paulo: Martins Fontes, 2001.p. 101 e ss.

    14 Valendo-nos das premissas de Dworkin,podemos afirmar que Alexy, a despeito depretender diferenciar as regras e osprincpios, acaba confundindo estes comas diretrizes polticas, isto , Alexy nodiferencia estas normas (que prescrevemque direitos os cidados possuem numdeterminado sistema constitucional) e as

    polticas pblicas (que tratam de comopromover melhor o bem-estar geral).Segundo ainda Dworkin (op. cit., p. 107 ess.), o processo legislativo se move em

    torno de questes de poltica. No entanto,ao ser levantada em juzo, o como umaquesto de princpio, isto , de direitos, node polticas. CATONI DE OLIVEIRA,Marcelo de Andrade. Direito Constitucional.Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.88-89.

    15 HABERMAS, Jrgen.A incluso do outro,op. cit., p. 355 e ss.

    16 Para mais detalhes sobre a teoria do casoespecial em Alexy, ver CATTONI DEOLIVEIRA. Direito Processual Consti-tucional. Belo Horizonte: Mandamentos,2001. p. 96 e ss. GARCA FIGUEROA,

    Alfonso. La tesis del caso especial y elpositivismo jurdico. Revista Doxa, Alicante,n. 22, p. 209-210, 1999; e o prprio Alexiem Teora de la argumentacin jurdica: lateora del discurso racional como teora dela fundamentacin jurdica. Madrid: Centrode Estudios Constitucionales, 1989. p. 38e ss. A Teoria do Discurso Prtico Geraldas Normas, que soluciona conflitos entrenormas morais poder, em Alexy, ser usadapara a argumentao jurdica, j que umcaso especial daquela, diferenciando-se

    to-s em termos lgico-extensivos(CATTONI DE OLIVEIRA. Direito Proces-sual..., op. cit., p. 156).

    17 Ver, por exemplo, os votos dos MinistrosNelson Jobim e Seplveda Pertence porocasio do julgamento da ADC n. 4.

    Artigo recebido em 16/2/2005.

    Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

    Mestre e doutorand o em Direito

    Constitucional na UFMG e Professorde Di re i to Processual Civ i l daFaculdade d e Direito Estcio de S emBelo Horizonte - MG.

    ABSTRACT

    The author outlines a briefreconstruction of some of the criticisms fromGerman jurist Ingeborg Maus of the

    Constitutional Court of Germany (and theJudiciary Power as a whole), pointing out thehazards of unrestricted adoption of thejurisprudence of values.

    He also discusses the authoresscriticism of Ronald Dworkin, trying to understandthe American jurist better and redirect criticismto Robert Alexy, one of the most remarkabledefender of the jurisprudence of values, whohas had good influence in Brazil by the adoptionof institutes as the principle of proportionality.

    Given such facts and the recentchanges of Brazilian Judiciary, he enquiresabout the application of Ingeborg Mauscriticisms in Brazil, which come down to the

    matter of the Judiciary role, as a constitutionalorgan that decides cases based on legalreasons or on a super-entity performing thesuperego role of an orphan society.

    KEYWORDS Law; Sociology;Dworkin; Ingeborg Maus; Judiciary Power;Germany; Constitutional Law; moral.