informÁticos mar (ia sem ver)gonha

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( ia - sem - ver )

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traçado na fuleragem do desvio, como detalhes de um processo artístico feito em alcateia denominada corpos informáticos que ativa, na prova dos nove. oque se sente é o corpo fazendo política, performance, jogando pique-bandeira, inserindo parafernálias. este processo se inicia em 1992. Aqui escorre o trecho recente 2009/2011, não estratificado, não maquiado: pipoca nas mãos das vizinhanças.

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  • (ia-sem-ver)

  • corpos informticosperformance, corpo, poltica

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    Reitor Jos Geraldo de Sousa Jr.

    Vice-reitor Joo Batista de Sousa

    INSTITUTO DE ARTES

    Diretora do Instituto de Artes Izabela Brochado

    Vice-diretora Nivalda Assuno

    Coordenadora da Ps-graduao em Arte Maria Beatriz de Medeiros

    ___________________________________________

    Este livro contm um DVD-encarte com vdeos documentrios e videoartes sobre as atividades citadas nos textos

    Todas as fotografias so de autoria do Corpos Informticos: Felipe Olalquiaga, Laurem Crossetti, Alexandra Martins, Mrcio H. Mota e quem mais tiver fotografado

    Tratamento de imagens: A. Martins, Bia Medeiros, Camila Soato, F. Olalquiaga e outros

    Projeto grfico: Minas Padro (www.tabuletas.net)

    Edio de vdeos: Camila Soato, Jackson Marinho, Juliana Rodrigues e outros.

    Reviso de texto: Bianca Tinoco

    Capa: A Festa. Espetculo Mar(ia-sem-ver)gonha. Teatro SESC Garagem, Braslia, 2009. Foto: Laurem Crossetti

    Agradecimentos aos artistas Henrique Oliveira e Paulo Bruscky pela cesso das imagens

    ___________________________________________

    Corpos Informticos: 2009/2011Alexandra Martins, Camila Soato, Carlos Fino, Diego Azambuja, Felipe Olalquiaga, Fernando Aquino, Jackson Marinho, Luara Learth, Mrcio H. Mota, Maria Beatriz de Medeiros, Maria

    Eugnia Matricardi, Mariana Brites.

    www.corpos.org | www.corpos.blogspot.comwww.mar-iasemver-gonha.net | www.performancecorpopolitica.net

    ___________________________________________

    Editora do Programa de Ps-graduao em Arte da Universidade de Braslia

    Campus Universitrio Darcy Ribeiro. Prdio SG 1. Braslia. DF. CEP 70910-900.Telefones (61) 31071174 | [email protected]

  • mar(ia-sem-ver)gonha

    Fernando AquinoMaria Beatriz de Medeiros

    (organizadores)

    corpos informticosperformance, corpo, poltica

  • sumrio

    in tro duo | 09Fernando Aquino, Maria Beatriz de Medeiros

    pesquisa em arte, linguagem da arte. ou como escrever sobre o pensamentocomocorpo inteiro | 15

    Maria Beatriz de Medeiros

    performance: do ftido ao fuleiro | 37Maria Beatriz de Medeiros

    mar(ia-sem-ver)gonha | 50Diego Azambuja, Fernando Aquino, Maria Beatriz de Medeiros

    a vida e a vida de mar(ia-sem-ver)gonha | 99Bianca Tinoco

    paisagem contraditria | 116Fernando Aquino

    o duro da performance e o doce do duro | 70Diego Azambuja, Fernando Aquino, Maria Beatriz de Medeiros

    unhas defeitas em UAI-UI | 80Fernando Aquino, Maria Beatriz de Medeiros

    11 | 90Diego Azambuja, Fernando Aquino, Mrcio H. Mota, Maria Beatriz de Medeiros

    que canta e ri | 100Maria Beatriz de Medeiros

    referncias bibliogrficas | 200

  • 9inin Arte

    in Corpoin Performance

    in Polticain Linguagem, no

    in formticos, Corposin existe

    in vergonha, maria semin ver sem ia

    in urbana, como composioin fuleiro

    in fuleragemin mixuruca

    nos olhos da moscain finita, Amarelinha Binria

    in Anticorposin Duro, doce e

    in visvel, Mulherin Aquino, Fernando; in Azambuja, Diego; in

    Marinho, Jackson; in Medeiros, Maria Beatriz dein Mota, Mrcio H.; in Soato, Camila

    in Omolu eletrnicoin Defeitas, unhas

    in UI, UAIin Deleuze, Gilles; in Derrida, Jacques; in Heidegger,

    Martin; in Serres, Michel; in Stiegler, BernardIncorucolubilubil

  • 11

    trotritre

    traabraa

    trb ootrao

    tramatrecotrootrato

    tanto na fuleragem, perto do animal, do verbal cotidi-ano, nesse grito polido. no tanto, seu entanto, na rua,

    o quanto custa, o quanto se escuta; aqui, o duro, o spero, o fosco.

  • 13

    duotraado na fuleragem do desvio, como detalhes de

    um processo artstico feito em alcateia denominada corpos informticos que ativa, na prova dos nove. o

    que se sente o corpo fazendo poltica, performance, jogando pique-bandeira, inserindo parafernlias.

    este processo se inicia em 1992. Aqui escorre o trecho recente 2009/2011, no estratificado, no maquiado:

    pipoca nas mos das vizinhanas.

  • 15

    pesquisa em arte, linguagem da arte

    ou como escrever sobre

    o pensamentocomocorpo inteiro

    O homem branco toma a sua mitologia, indo-europia, o seu logos, isto , o mythos do seu idioma, pela forma universal do que deve ainda

    querer designar Razo. O que no de modo algum pacfico.

    Derrida

    Em arte, o corpo e seus onze sentidos se engajam na voluo1 da eminncia

    do presente. As palavras calam, os tendes escoam para fora dos limites da

    pele. Nem sempre resultado resulta. No entanto, a vida ocorreu, performance.

    Relaxo, lapso de silncio, no mundo desobstrudo. Bolhas de prazer e mente

    esvaziada. Provar o duro, por oposio ao doce da linguagem.

    Que linguagem para falar desta vida sentida pelo ser humano, por vezes

    denominado artista, pelos participantes, por aqueles que ousaram escutar o sopro de movimentos de invisveis tenses adubadas ou escoadas no vazio? A

    arte mpar, sem par nem mpar, sem melhor de trs ou zerinho ou um, mesmo

    se realizada em grupo ou em alcatia, ecoa em inter-subjetividades prenhas de

    apreenses do momento.

    _______________________

    1 Entendemos que no h evoluo, nem desenvolvimento. H voluo, processos em voluta, em espiral rodando sem objetivo, sem jamais atingir o centro, sem jamais manter um s movimen-to. A voluo se aproxima da volpia, quando paixes deixam mentes-corpos em voluo. As fragatas planam em voluo. O progresso no uma iluso. Ele acontece, mas de forma lenta. E, invariavelmente, termina nos decepcionando. [George Orwell]

  • 16

    Que metodologia quando se buscou por semanas enceradeiras e aspiradores de p em ferros-velho empoeirados, risco de ttano, demasiada poeira, alguma

    gosma de larvas transportadas nas costas e muitas gargalhadas? Que histria

    ou teoria para o descompassado desejo de estar face a face com o aqui agora j apagado?

    Montanhas de artistas como gros de areia em praias abandonadas

    vislumbram horizontes de diferentes tonalidades. Ss ou em alcatia fungando

    a possibilidade de transformao, formao, ativao, mesmo que esta por vezes seja pura calmaria. Um estado abafado do ar aguarda a tempestade ou

    rajadas de ventos e cabelos independentes na cabea que ousa o mergulho no mar salgado. Cura de feridas e pulmes revigorados.

    A arte trata, maltrata e trai a tcnica ou a tecnologia. Uma das primeiras

    destas tcnicas no seria a palavra, grito gutural domado, desejo cantado

    dopado? prprio de certa arte buscar o outro da performance (entendida aqui como desempenho), o outro do rendimento, o outro da eficcia, do doce: eficac(i)rrealidade desnudada por mani-festa-aes (performances). Deixemos a performance optima para os carros desejosos de se tornarem

    dinheiro no bolso de algum. Deixemos a performance optima aos preos das

    aes bancrias, especulao, espeluncao.

    O avesso da performance optima pode se tornar desejo de arte da performance.

    da perfeita intimidade com os meios, tcnicas e procedimentos que o artista ser capaz de traio, de gritar um grito preciso que corte a positividade tcnica. A faceta prtica da arte da mesma natureza que dirigir com arte, cozinhar com arte, pintar com arte, editar com arte. No momento da criao,

    da realizao, da voluo, os atos desses artistas dar-se-o sem pensar os

    passos, a cada passo. O maltratar flui dos tendes para o objeto introjetado.

    No h exceo ao princpio [de prazer], mas h um resduo irredutvel ao princpio; nada contrrio ao princpio, mas h algo exterior e heterogneo em relao a ele um aqum... (Deleuze, 2009, 110)

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    A base terica para a arte e a performance como viajar ou falar outras

    lnguas. Permite ver o mundo, a arte, sua arte, de pontos de vista outros, logo,

    permite ver outros mundos, outras artes (poesia ou literatura, para dizer as artes visuais, artes cnicas ou a msica) e sintagmas inditos para a infiltrao de outros fazeres para a linguagem do artista. Mas ela fala da arte? Implanta,

    enxerta prteses tcnicas na linguagem do grito.

    A teoria sobre arte pode ser entendida como ps-arte? A teoria no diz a arte: quando fala no mais a arte que fala. E esta no fica intacta com este falar. A arte se redimensiona, sofre um deslocamento, um esbarro, se re-configura com estruturas rompidas, luxaes, talvez inflamaes posteriores surjam. Talvez cicatrizes.

    Arte no monumento, no obra, no objeto, composio urbana (C.U.), pedao de coisa abandonada na praia, na relva, nos cantos, que cria limo, poeira e se encontra com pregos que possuem o privilgio do abandono (Manoel de Barros). Arte que busca o errante, o tra-errante, por oposio ao traficante. O traficante, tra-ficante, de certa forma fica, qui no trfico. O tra-errante trans errante, j foi flneur, anda perambulando, busca nos contornos, beija com lngua e sente os sabores degustados.

    Sheila Cabo Geraldo, historiadora da arte (UERJ), nos alertou: as metodologias da histria da arte no do conta do objeto da arte, objeto fugidio que, alm de fato histrico, fato esttico. Objeto fugidio ou mesmo secreto, jamais tocvel, interessa e podemos pens-lo j com Heidegger.

    Em Ser e tempo (2004), Heidegger, na introduo (11-71), nos d uma lio sobre o que seria questionamento, investigao, pesquisa, mtodo de pesquisa. Heidegger nos ensina como ser tra-errante em busca da composio urbana,

    isto , da arte que se instala na vida. O foco de Heidegger o ser e, nele, ele encontra a questo do tempo2. Nos permitiremos apresentar os ensinamentos

    _______________________

    2 MEDEIROS, M.B. Pequeno ensaio sobre o tempo na/da arte e SABOYA, L. Uma interpretao do tema o tempo na/da arte. In: Arte Pesquisa. vol.1. Anais do XII Encontro Nacional da ANPAP (284-294 e 270-284, respectivamente).

  • 18

    de Heidegger consubstanciando-os para a arte entendida como composio

    e decomposio (performance, interveno urbana). E, consequentemente, consubstanciando-os para a poesia, essncia da arte, e veremos que colocar o ser em questo da mesma ordem do questionar este dizer o ser que a arte. Visualizar, compreender, escolher, aceder a so atitudes constitutivas do questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que ns mesmos, os que questionam, sempre somos (2004, 33, grifo do autor).

    Para comentar as atitudes constitutivas do questionamento, no diremos visualizar, mas sentir, com os onze sentidos, pois ver interessa apenas a deus, um deus voyeur3.

    Tambm no diremos compreender, a no ser que este seja entendido como algo que acontece com o corpo inteiro: apreenso, ou melhor, surpreenso (prprio daquilo que surpreende). Tambm no escolheremos, perambularemos toa somando todo o percebido como Deleuze e Guattari (e, e, e, e, ), bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer, quando acabarem as ptalas, plantaremos as sementes e comeremos o sabugo. Maria-

    sem-vergonha (Impatiens walleriana).

    Ento diremos: sentir, apreender, surpreender, somar, errar, farejar podem ser atitudes constitutivas do questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que ns mesmos, os que questionam, sempre somos (HEIDEGGER, 2004, 33).

    _______________________

    3 Escreve Derrida (2002, 37 a 39): essa nominao [nominao dos animais pelo homem] apre-goada permanece ao mesmo tempo livre e vigiada, sob vigilncia [...] Deus deixa Ado, ele deixa o homem, o homem s, ele o deixa gritar livremente os nomes. Ele o deixa, s, dedicar-se s denominaes. Mas ele o espreita, o homem s. Ele vigia com uma mescla de curiosidade e de autoridade. Deus observa: Ado observado, ele est em observao. Traduo de Chouraqui: Ele os faz vir [os animais], at o homem da gleba para ver o que este lhes apregoar. [...] Este para ver marca ao mesmo tempo a infinitude do direito de um Deus todo-poderoso e a finutude de um Deus que no sabe o que lhe vai ocorrer com a linguagem. E com os nomes. [...] Pergunto--me frequentemente se essa vertigem quanto ao abismo de um tal para ver no fundo dos olhos de Deus, no o que me toma quando me sinto to nu diante de um gato, de frente, e quando cruzando ento seu olhar, escuto o gato ou Deus se perguntar, me perguntar: ele vai me chamar? Vai dirigir-se a mim? Como vai ele me chamar, esse homem nu.

  • 19

  • 20

    Heidegger (2004, 30) diz que toda procura retira do procurado sua direo prvia. Em arte, seria dizer que a linguagem do artista-produtor-interrogador, fazendo teoria sobre seu prprio trabalho, seria retirada de seu caminho pelo

    fato dele realizar pesquisa sobre sua prtica. Isto implica, necessariamente, alteridade, introduo do distinto na prtica deste artista. Se o artista-

    investigador procurar sua linguagem artstica por meio de outra linguagem

    (falada ou escrita) estar retirando da primeira sua direo prvia? Sim, o investigar desloca a pesquisa prtica e vice-versa. Isso implica forosamente mudana de direo de ambas as pesquisas.

    De fato, este deslocamento acontece tanto se o investigador for o artista-

    produtor-interrogador fazendo teoria sobre seu prprio trabalho (como no caso do presente livro), quanto se o investigador for um crtico ou um historiador da arte. No caso do artista, o deslocamento do trabalho ser potente, presente,

    imediato, sem mediao.

    No caso do terico, historiador ou crtico, escrevendo sobre a pesquisa prtica de um artista, este deslocamento ser efetuado de fora para dentro

    podendo implicar em maior ou menor alteridade. Isto depender do impacto,

    da concordncia, de aceitao por parte do artista. O mesmo ocorrer junto

    ao pblico confrontado ao texto produzido pelo terico. O texto sobre uma

    exposio, colado na parede de entrada da sala, necessrio? Ele modifica a surpreenso do pblico? Este modificao interessa?

    A arte por si e em si, ela se basta, um texto, se procurado, interessa. Mas um

    texto imposto, antes mesmo do contato com o trabalho, neutraliza e direciona

    o sentir, anestesia a aisthesis, recruta o crebro para uma leitura. A exceo

    so os textos poticos. Fazer outra arte, poesia, para falar de arte, afirma Barthes em algum lugar ad tempura da minha memria.

    Heidegger (2004, 30) prossegue: A procura ciente pode transformar-se em investigao se o que se questiona for determinado de maneira libertadora. Interessante notar essa condio da investigao ser libertadora, isto , no

    buscar nem por meios estreitos nem com fins restritos. Esta liberdade, para falar de arte, no seria a poesia?

  • 21

    Na investigao, isto , na questo terica, deve-se determinar e chegar a conceber o questionado (2004, 31). Aqui Heidegger identifica a investigao com a questo terica ela-mesma. No entanto, na prtica que possvel conceber o questionado. A investigao, em arte, concebe o questionado. No define, no determina, mas concebe. Fazer nascer o processo-produto artstico da prpria pesquisa para, assim fazendo, conceb-lo. Esta a maneira pela qual a arte se d. Determinar, do nosso ponto de vista, s seria possvel no instante do sublime, ou melhor, seria incompossvel.

    Continua Heidegger (2004, 31): Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientao prvia do procurado. Para isso, o sentido do ser

    deve estar, de alguma maneira, disponvel. Na nossa investigao, seria o sentido da arte que deveria estar disponvel, e o sentido da arte est disponvel nela mesma, e no no dizer. Em arte no se trata de quando dizer fazer (Austin), mas sim de quando fazer dizer (Stigler).

    Afirma Bernard Stigler (1996, grifos do autor), atravs da tcnica que permite dizer:

    O animal pode ter um mundo, j que ele acede ao ente, mas ele privado de mundo porque ele no acede ao ente como tal e no seu ser (Heidegger, 89) [...]. O animal pode o mundo, mas no o faz; ele o sabe de alguma maneira sem poder faz-lo e, primeiro, porque ele no pode diz-lo, quando fazer dizer. Esta incapacidade de nomear no em primeiro lugar simplesmente lingstica; ela incapacidade de visar um eidos [...]. Quer dizer que este seria o enigma do fazer: um negcio de mo (une affaire de main); nesse caso isto , de tcnica.4

    Stigler joga com as palavras, maneira de Heidegger une affaire de main (um negcio de mo, uma coisa de mo, um caso de mo), sendo, sobretudo, une a-faire de main (um a-fazer de mo, a fazer com a mo) , quando afirma, de fato, que esse fazer dizer.

    _______________________

    4 Esse texto foi pronunciado por Bernard Stiegler no colquio Le passages des frontires. Autour du travail de Jacques Derrida (Cerisy, 1994), e posteriormente publicado nos Anais de mesmo nome (Paris: Galile, 1994. 271-283). Parte foi publicada em Stigler (1996). A ntegra foi tradu-zida para o portugus por M. B. de Medeiros e publicada em reVISta: PPG-Arte/UnB, Braslia, n. 3, 9-20, 1999.

  • 22

    Assim como o ser, ns nem sequer conhecemos o horizonte em que poderamos apreender e fixar-lhe o sentido. Essa compreenso do ser vaga e mediana um fato (Heidegger, 2004, 32). O questionar a arte, grito do ser, da mesma forma voltil, mltiplo e sempre particular. Como o ser que inapreensvel, assim tambm a arte permanecer inapreensvel ou, se apreendida, deixar de

    ser capaz de expresso para se tornar cdigo.

    Heidegger identifica determinados setores de objetos que poderiam se transformar em temas e objetos de investigao cientfica: histria, natureza, espao, vida, presena, linguagem. Mas afirma que os mesmos so levantados e fixados por uma maneira ingnua e a grosso modo.

    Se o peso de uma pesquisa sempre se coloca nessa positividade [levantar e fixar setores de objetos], o seu progresso propriamente dito no consiste tanto em acumular resultados e conserv-los em manuais, mas em questionar a constituio fundamental de cada setor que, na maioria das vezes, surge reativamente do conhecimento crescente das coisas (2004, 35).

    Nosso autor afirma que conceitos fundamentais, frutos de uma investigao prvia, guiam pesquisas positivas. Ser que Heidegger consideraria a arte e a poesia pesquisas positivas?

    Mar(ia-sem-ver)gonha | Ceilndia-DF | 2010

  • 23

    Se positivas fossem, de que positividade se trataria? Positividade tcnica? Esta, na poca hiperindustrial muito conhecida e procurada. Acreditamos

    que ela no interessa composio urbana, nem Maria-sem-vergonha (a performance), nem maria-sem-vergonha, nem mar(ia-sem-ver)gonha (conceito volvido pelo Corpos Informticos). Como afirmamos anteriormente, acreditamos que a arte deve buscar um outro da positividade tcnica, tratar, maltratar e trair a tcnica, ou a tecnologia.

    Heidegger distingue investigao prvia e lgica. A lgica analisaria o estado

    momentneo de uma cincia em seu mtodo. importante prestar ateno

    neste em seu mtodo, que grifo. A lgica no analisaria o estado momentneo de uma cincia em si, mas o estado momentneo de uma cincia em seu

    mtodo.

    A investigao lgica no levaria em conta o tempo, e a investigao prvia

    realizaria uma interpretao daquele ente, propriamente histrico, em sua historicidade.

    Em geral, pode-se definir cincia como o todo de um conjunto de fundamentao de sentenas verdadeiras. Essa definio no completa e nem alcana o sentido da cincia. Como atitude do homem, as cincias possuem o modo de ser desse ente (homem). Ns o designamos com o termo presena (2004, 38).

    Dasein (presena)5 entendido por Heidegger como aquilo que sendo coloca em jogo seu prprio ser; aquilo que se compreende em seu ser, isto , sendo; como ente determinado em seu ser pela existncia. O dasein tem seu sentido

    na temporalidade. Assim as cincias, inclusive a arte, como atitude do ser

    humano, possuiriam aquilo que sendo coloca em jogo o prprio ser.

    _______________________

    5 Heidegger recusa a traduo francesa de dasein por tre-l, ser-a. O dasein, pode ser en-tendido como, ser aberto-para-sempre (ouvert--tout-jamais), ser aberto do homem. O outro nome do dasein alethia. Outra forma de entender o dasein v-lo como conscincia necess-ria da morte que leva fuga da angstia, do nada e da prpria morte, tornando assim o sujeito ligado ao mundo, clamando o mundo. O sujeito, este ser-jogado, pelo dasein, que sozinho se angustia, se coloca no espao mundano. Isto, com o tempo avanando.

  • 24

    Assim sendo, relendo e parafraseando, veremos que se pode definir cincia como todo um conjunto de fundamentao de sentenas momentaneamente

    verdadeiras e, j que momentneas, verdadeiras. Propomos, ainda, o termo coerentes, para substituir o termo verdadeiras, j que a verdade inexiste.

    Algumas afirmativas so coerentes: Est chovendo, mas de fato, pode estar garoando, ou haver uma tempestade, ou ainda uma momentnea vontade de

    continuar debaixo dos lenis sem mesmo se levantar para saber se chove,

    de fato. Pode tambm estar chovendo apenas na pele daquele que deseja imensamente e se v alagado em plena parada de nibus, no avio ou no

    restaurante.6

    O que , portanto a verdade? Uma multido mvel de metforas, de metonmias, de antropomosfismos, em resumo, uma soma de relaes humanas que foram poeticamente e retoricamente aladas, transpostas, ornadas, e que, depois de um longo uso, parecem a um povo firme, cannicas e constrangedoras: as verdades so iluses que ns esquecemos que o so, metforas que foram usadas e que perderam a sua fora sensvel, peas de moeda que perderam o seu cunho e que so consideradas a partir de ento no j como peas de moeda mas como metal. (Nietzsche, 2002, 181-182).

    Concluindo: com Heidegger diremos que, em geral, pode-se definir pensamento (sempre de corpo inteiro) como o todo de um conjunto de fundamentao de sentenas momentaneamente coerentes. E com Nietzsche nos calaremos.

    _______________________

    6 Derrida explica, em Marges de la philosophie (Paris: Minuit, 1972, 326 e seguintes), que, para J. L. Austin, o discurso comunicao e esta para um conceito apenas semitico, lingstico, simblico. Deste discurso, para sua anlise, quando diferencia discurso constativo e performati-vo, Austin exclui as pragas reflexas, o no-srio, a parasitagem e o estiolamento. Ao Corpos In-formticos interessa a parasitagem (oratio obliqua). Derrida afirma, e interessa que, de fato, todo discurso constativo pode, assim como o performativo, ser transformador, efetuar ao, operar. Derrida lembra que Austin sabe e afirma que todos os gestos esto sujeitos ao fracasso e que h sempre risco. Ao Corpos Informticos, assim como lembra Evando Nascimento em Performar o discurso: teatro, travestismo, corpo-cidade (www.performancecorpopolitica.net ver tambm pa-lestra na ntegra em www.ustream.tv/recorded/11100126), interessa o fracasso, o imprevisvel, o resto, o outro de toda proposta artstica. (grifos nossos).

    Henrique Oliveira | A origem do terceiro mundo | 2010

  • 25

  • 26

    O que verdadeiro, de modo ainda mais originrio do que o logos [...] a aisthesis, a simples (2004, 64). Por logos, Heidegger entende: discurso (apofansis), razo, juzo, conceito, definio, fundamento, aquilo que revela, deixa e faz ver sendo fala, articulao em palavras, na qual sempre algo j visualizado. E afirma, ainda, o logos pode ser verdadeiro ou falso.

    Seria possvel o logos dizer o abismo intransponvel (HEIDEGGER, 2000, 67)? Seria possvel utilizar o logos, que no originrio, que no o lugar da verdade (da coerncia) para falar a aisthesis? Para dizer aquilo que toca a percepo, isto , aquilo que diz respeito ao que sempre verdadeiro?

    A arte revela um outro do mundo real, cria um mundo que lhe prprio, abertura para a fuso do socius, sua confuso que leva e encontra outra vez o movimento mesmo, aquele que a vida necessita, isto , o tempo, onde o dasein tem seu sentido.

    A arte pensamento, mas pensamentocomocorpointeiro, descoberta a cada

    resto e a cada novo re-sentir a criao.

    poesia

    Para Martin Heidegger (2000, 60. grifo do autor): Uma obra s real como obra na medida em que nos livramos do nosso prprio sistema de hbitos e entramos no que aberto pela obra, para assim trazermos a nossa essncia a persistir na verdade do ente. [...] Toda arte [...] na sua essncia Poesia.

    Mesmo crendo que a performance no busca a obra, mas a fuleragem, o parasitismo, pensem em livrar-se do nosso prprio sistema de hbitos, em entrarmos no aberto da obra e estaremos em performance. Digo, ns espectadores estaremos em performance.

    Penso em A origem do Terceiro Mundo de Henrique Oliveira na Bienal de So Paulo, 2010. Ao entrar, solitrio, sem milhares de criancinhas felizes a correr a seu lado, nos livramos de nosso prprio sistema de hbitos: o andar outro, a perspectiva se inverte, silncio e odores. Cad a sada? E ao sair: quero entrar de novo!

  • Uma outra leitura da afirmao de Heidegger poderia levar a equvocos, j que a poesia feita de palavras, de linguagem falada e escrita, de linguagem passvel de dicionrio. E para a arte no se trata de linguagem. No entanto,

    vejamos um sentido coerente da palavra poesia, distinguindo-a da arte, descobrindo a essncia da arte, segundo Heidegger. Primeiramente, ele afirma que basta uma correta noo de linguagem.

    Na concepo corrente, a linguagem teria surgido como forma de comunicao,

    servindo para a conversa em geral e para o entendimento (compreenso), mas, de fato, ela no seria nem apenas expresso oral e escrita do que queremos comunicar nem apenas transporte de palavras e frases. A linguagem, para

    Heidegger, seria o que traz ao aberto o ente enquanto ente, a verdade do ente sendo compreendida como a no-dissimulao.

    Heidegger refere-se a um conceito mais amplo de linguagem, isto , linguagem

    como expresso, como lanar, como desocultao, no simplesmente a linguagem falada e escrita. A linguagem da poesia, no seu entender, seria um

    dizer projetante, um dizer que, na preparao do dizvel, faz, ao mesmo tempo, advir, enquanto tal, o indizvel do mundo. A poesia, para Heidegger, a essncia da arte, pois a arte poesia e vice-versa.

    Mar(ia-sem-ver)gonha | mosca | 2010

  • 28

    Para Paul Valry (ad tempura), a poesia a obra suprema da produo humana, e a obra de arte na qual se incluem a poesia e as artes visuais , o momento em que a linguagem se torna outra coisa que o seu sentido imediato. O ritmo potico uma experincia do corpo, do sonho e o desejo de desejo. E,

    ainda, as artes plsticas seriam inscrio do infinito no finito. Como falar com finitas palavras, com um vocabulrio pouco, sobre o infinito no finito?

    Segundo Roland Barthes (1973), para falarmos de arte, necessitamos fazer arte. A obra artstica (plstica, visual ou textual) texto de prazer. Se para falarmos sobre uma obra de arte preciso fazer outra obra, somos a favor de

    que o texto-objeto-arte seja sempre um pouco-muito arte. Um pouco porque possvel construir discursos sobre a tcnica, a composio-estruturao da

    obra; possvel falar do desejo de equilbrio/desequilbrio; possvel pensar sobre cores em dilogo, o tempo de uma e de outra performance, sua raiva

    ou quietude, o agenciamento da cadeia de movimentos em um videoarte, etc. Tudo isso deve/pode ser feito com todo o cuidado para que a obra de arte em questo, o trabalho analisado pulsa.

    Podemos dizer tambm que, se do sculo XV ao XVII houve o nascimento do pensamento cientfico, que tudo gostaria de classificar, organizar, definir, criando verdades, no sculo XX houve uma virada em direo linguagem, uma tentativa de compreenso das linguagens como possibilidade de

    conhecimento do mundo como um todo.

    Hoje, acredita-se que o cdigo gentico, escrita da vida, poder resolver as lacunas do conhecimento que o ser humano almeja do mundo.7 Ainda no se entendeu que o mundo, ns, a vida no sero decodificados ou compreendidos se levarmos em considerao apenas um aspecto do ser. O cdigo gentico

    h de ser apenas mais um dos aspectos a conhecer e h de entrar em relao

    dinmica com tantos outros aspectos, todos dinmicos e em contnua

    modificao. _______________________

    7 O cdigo gentico que temos hoje decifrado o de uma mulher. O grupo Emmagenetics, EUA, entre outros grupos feministas, protesta contra o fato da cincia, sempre e novamente, investir, no por acaso, (contra) o corpo da mulher.

  • 29

    No ser demasiado lembrar Ilya Prigogine (1994) e sua afirmao quanto necessidade da existncia de um longe do equilbrio para que a vida seja possvel: composio/decomposio. A razo e a linguagem codificada participam da domesticao do mundo, enquanto a arte permanece revelando o monstruoso8. A arte, em sua linguagem da des-ordem do grito, lembra que o inquietante perdura, permanece presente, sempre presente.

    mais linguagem

    O ser humano muito pouco conhece sobre processos de aparecimento da

    linguagem nas diferentes civilizaes, muito pouco sabe sobre a formao da

    linguagem na mente infantil e sobre os processos de aprendizagem. E ainda,

    o ser humano muito pouco sabe sobre o funcionamento de seu crebro em

    relao linguagem: onde se estoca? Por onde passam os estmulos? Como se do as perdas e reaquisies da funo da linguagem? Por que desejo quando apenas leio? Por que leio quando apenas desejo? Por que leio quando apenas fuleragem, performance, brin-cadeira?

    De aorcdo com uma pqsieusa de uma uinrvesriddae ignlsea, no ipomtra em qaul odrem as lrteas de uma plravaa etso, a ncia csioa iprotmatne que a piremria e tmlia lrteas etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma ttaol bguana que vco pdoe anida ler sem pobrlmea. Itso poqrue ns no lmeos cdaa lrtea isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. Vdaerde! (ANNIMO, 2003).

    O texto acima, recebido por e-mail, vem evidenciar a nossa ignorncia no que diz respeito ao conhecimento do processo de construo, de compreenso e

    de apreenso da linguagem. Com esse texto, toda a questo da alfabetizao, para cada lngua, se retorna, novamente, enigma no que se acreditava existir algum consenso.

    _______________________

    8 Recomendo vivamente Monstrutivismo. Reta e curva das vanguardas, de Lcio Agra (So Paulo: Perspectiva, 2010)

  • 30

    A palavra fala o mundo porque o mundo nos fala de aisthesis e de pertencimento a um ns (eu, tu, ele, ns, vs, eles). A aisthesis estar aberto ao mundo, aberto ao sensvel do mundo, ao sensvel no mundo e deixar-se contaminar.

    A tendncia a sistematizar, a busca de estabilidade, a tendncia a categorizar,

    a busca de compreensibilidade, e a tendncia a racionalizar, exacerbada

    nos ltimos sculos, tornam a palavra, mundo-desejo do outro, cotidiano e

    esvaziam-na de sua potncia potica.

    Para Julia Kristeva (1981), a linguagem um objeto de conhecimento. De que conhecimento se trata quando falamos de arte? A linguagem entendida como objeto de pensamento permite que estudemos a arte que objeto de pensamentocomocorpointeiro como linguagem, mas esse estudo nunca ser

    conclusivo, visto a abrangncia do que pode ser pesquisado sobre linguagem, a dificuldade mesma em situar a arte como linguagem e as inmeras linguagens da arte.

    O ser humano se constitui pela linguagem. pela linguagem que ele se torna sujeito e membro de um grupo social. Ao estudar a linguagem, entraremos

    em contato com o funcionamento da prpria lngua, linguagem especfica, e, conseqentemente, aprenderemos muito sobre as relaes sociais do grupo que se utiliza dessa linguagem. Ao estudarmos uma linguagem artstica, conheceremos no s as obras, mas tambm o estado tecnolgico em que se encontrava o grupo que as produziu, alm das foras internas operantes no meio social onde essa manifestao artstica se deu e tantos outros aspectos.

    Segundo Kristeva (1981, 17), estudar a linguagem seria fornecer um saber cada vez mais preciso do funcionamento significante do homem. No entanto, preciso assinalar que esse estudo tornar a linguagem em questo mais e mais esvaziada de significantes.

    Ser que para a arte interessa fornecer um saber cada vez mais preciso do funcionamento significante do homem? O saber da ordem da verdade: as verdades so iluses que ns esquecemos que o so, metforas que foram usadas e que perderam a sua fora sensvel (Nietzsche). A arte iluso (inlusio, entrada em jogo) que possui fora sensvel.

  • 31

    Existe um preciso ou impreciso funcionamento significante do homem?

    A partir do momento em que nasce a filosofia, nasce o pensar sobre o pensar e comea a separao entre a palavra e a vida. a palavra viva que velada por ser demais des-velada. A palavra que Kristeva utiliza para apontar o que aconteceu com a linguagem na cultura ocidental, a partir do surgimento da filosofia, do racionalismo, mas, sobretudo, com a lingstica, as cincias da linguagem e a semitica, no fim do sculo XX morcellement, do francs morceau, pedao: despedaamento. Despedaamento da relao pensamentocomocorpointeiro com o mundo.

    Divrcio e desiluso. Desmontar o apartamento, dividir os bens e... Com quem ficaro as crianas? Aquelas que ainda no possuem plenamente a linguagem, logo, que se encontram na aisthesis, no mais originrio do que o logos.

    Em nota de rodap, Kristeva (1981, 55) diz que os chamados povos primitivos estariam longe de ser inconscientes do sistema no qual e pelo qual eles ordenam o real, seu prprio corpo e suas funes sociais: a linguagem. interessante notar como nessa nota, com muita simplicidade, sistematiza o

    que seria a linguagem, a saber: O sistema no qual e pelo qual algum ordena o real, seu prprio corpo e suas funes sociais.

    A arte traz o real tona, desnuda e torna translcida a carne do corpo de

    um mundo, escancara as relaes sociais, econmicas e polticas sem instituir

    sistema: propostas. A arte vai buscando escapar dissecao da linguagem. Quando a tornam palavra, discurso, significado especfico, manual de utilizao e objeto de academias, ela busca outros files.

    Quando ela se deixa ler, apreendida, torna-se objeto de conhecimento, deixa

    de ser espao aberto ao sensvel e se abole como fora de fascinao (MOLES e ROHMER, 1977). Da a necessidade de inovao. A busca do novo no a busca de novidade isso prprio da publicidade. Quando acontece arte,

    um outro que solicitado.

  • 32

    Isso meu prazer, mas no meu gozo (ma jouissance); este s tem chance de vir com o novo absoluto, pois s o novo adoece (infirme) a conscincia (fcil? absolutamente no: nove entre dez vezes, o novo apenas esteretipo da novidade) (BARTHES, 1973, 65).9

    Pensemos nos pintores impressionistas de Montmartre, Paris, que, at hoje, e certamente durante muitos anos ainda, pintam quadros muito bons, maneira dos impressionistas: extemporneos. Os impressionistas contemporneos

    _______________________

    9 Da dificuldade de traduzir jouissance: rapidamente diremos que jouissance tem como tra-duo gozo, j que jouir ter prazer. No entanto, a terminao sance nos deixa pressentir a impreciso dessa traduo. Alguns tradutores de lngua portuguesa tm optado por fruio, termo que nos parece por demais fugaz. Carter a-social do gozo (jouissance). Ele a perda abrupta da sociabilidade e, ainda assim, no se segue nenhuma recada em direo ao sujeito ( subjetividade), pessoa, solido: tudo se perde, integralmente. Fundo extremo da clan-destinidade, negro de cinema (BARTHES, 1973, 63). Mergulhar nas guas de uma chuva de vero era, exatamente, aquilo que ns chamvamos jouissane (MEDEIROS, 1989). Segundo Franoise Duroux (1985), para Lacan, no sabemos nunca do que falamos quando falamos de jouissance .

    Re-replexo | Luiz Ribeiro | 2008

  • 33

    so realmente impressionantes: aprenderam a linguagem, como se aprende tabuada, e a recitam sem escorregadelas, embora as pinceladas corram soltas

    pelas telas. O impressionismo se tornou linguagem.

    No podemos aplicar arte nem as categorias da lingstica nem o vocabulrio

    da teoria da informao. A arte no se deixa aprisionar por cdigos nem ser

    esmiuada em elementos precisos que possam se tornar significados. Se se deixa aprisionar, torna-se outra coisa, algo extemporneo que perde assim a fora do sensvel. Textos elucidativos elucidam, no compem com a arte e

    retiram dela a capacidade de decomposio.

    Segundo Jean-Franois Lyotard, possvel fazer uma anlise dentro de uma obra especfica, mas no, a partir disso, estabelecer critrios e aplic-los a outras obras, outros momentos histricos, outras linguagens artsticas (GUALANDI, 1999). No possvel o estabelecimento de critrios porque a arte no estabelece linguagem: cada obra cria um mundo, e esse mundo singular.

    Rudy Steinmetz (1997, 30, 32 e 36), falando sobre Lyotard, afirma que, para este, a pintura seria irredutvel a outras formas discursivas, reflexo do sensvel sobre ele mesmo, reflexo sobre o outro da linguagem, que deixaria a razo desnorteada e desalojaria a conscincia de seu prprio lugar. Certamente, Lyotard assim se posicionaria tambm em relao s outras linguagens da arte: escultura, gravura, fotografia, performance, instalao, videoarte, arte digital, etc.

    Sobre o que foi dito, poderamos buscar apoio, ainda, em Wittgenstein. Segundo ele, no samos nunca da linguagem. Assim, quando estivermos na arte, estaremos, ainda, em linguagem. Para Wittgenstein, pensar operar com signos, e no haveria nada alm de signos. E nossa interrogao retorna.

    Porm, Wittgenstein fala do inefvel, do inexprimvel, do impensvel e afirma que temos que respeitar as fronteiras do indizvel. E um desses indizveis seria a arte, j que Wittgenstein admite a possibilidade de que faamos poesia.10

    _______________________

    10 Essas reflexes foram retiradas das notas de aulas de Antonia Soulez, durante o curso Supposez que...: langage et exprience, realizado no Collge International de Philosophie, Paris, 1999.

  • 34

    Dito diferentemente, com o auxlio de Umberto Eco (1998, 127-128): A linguagem funciona agrupando as ocorrncias mltiplas sob um s tipo (e essa linguagem sempre acometida, como se dizia na Idade Mdia, de uma penuria

    nominum). Agrupando o que mltiplo e heterogneo, h esquecimento, rejeio do singular. no espao da penuria nominum que a arte e a poesia introduzem o especfico que deseja o universal.

    A arte comunicao no-lingstica, voz do corpo e cor do grito. Trata-

    se de criar um outro do discurso, a ordem do grito. Grito do ser humano.

    Significaes incertas. A indeterminao desejada: obra aberta. Esse grito no diz nada.

    Toda palavra daqueles que se manifestam contra algo afirma o que negam. O grito da arte no grita nada. Ele sopro escamoteado, voz catastrfica. Ele rasga a totalidade de nosso ser, de nosso corpo. Ele esvazia. Nega, por sua

    fora, a totalidade dos corpos tensos. Comunicao no-lingstica. O grito da

    arte no grita nada, ainda que ele pronuncie palavras, como no teatro e, por vezes, na performance, ou em trabalhos que se utilizam da palavra mesmo, como Barbara Kruger ou Wilton Azevedo. Esses textos no falam apenas o que as palavras dizem. O contedo da arte sopro e som. Ele arranca a totalidade

    de nosso ser para fora do nosso corpo, para constituir um mundo com a obra.

    Pura composio com a vida.

    Em Le langage, cet inconnu, Julia Kristeva (1981) ressalta que a literatura e a poesia seriam parte da semitica literria e seriam mais passveis de estudo

    do que as artes visuais. Menos evidente seria, por exemplo, estudar as prticas gestuais: os gestos e a dana. claro que a gestualidade um sistema de comunicao transmitindo mensagens, um sistema a-significante, portanto de certa forma significante.

    Mas difcil precisar certos elementos dessa linguagem, como os fonemas,

    morfemas e sintagmas da linguagem verbal, e aplic-los a uma linguagem

    corporal. Assim tambm com a pintura.

  • 35

    O gesto, para Kristeva, seria o ato primordial da significao, um processo de significao que se gera antes de se fixar na palavra. Diante do gesto, teramos uma significao, mas no seria possvel fazer uma afirmao unvoca sobre seu significado. Toda afirmao, delineando um significado, seria sempre parcial e pessoal.

    Se a literatura e a poesia so mais passveis de estudo que a linguagem dos gestos, se uma teoria da literatura, segundo Derrida, inconcebvel, ento vemos que, buscando o que seria pesquisa em arte, ou uma escrita para a arte, estamos mesmo vislumbrando horizontes inatingveis. Mas o caminhar agrada

    e a sugesto que prossigamos esboando possibilidades composicionais fugidias, pois, vivas.

  • 36

  • 37

    performance: do ftido ao fuleiro

    A performance na arte contempornea, seja ela realizada por artistas oriundos

    das artes visuais ou das artes cnicas, com ou sem participao de msicos ou

    tcnicos, se torna a cada dia mais reconhecida como possibilidade em arte.

    Os questionamentos por ela suscitados invadem instncias e arredores: tea-tro, dana, circo, escrita, artes visuais, msica. Estes questionamentos do-se tambm no cerne e na pele da performance: de sua definio indomvel abrangncia de suas prticas.

    Estamos em um terreno interessante: corpos humanos e animais, lodo, areia movedia, chuva, sol, areia seca, maria-sem-vergonha, fcus, mangueira,

    antas, capivaras, formigas, carrapatos e, muito pouco, animais domsticos.

    Ao, arte.

    Buscar uma definio para o termo no interessa. O que vemos como necessi-dade, neste momento histrico no Brasil e no mundo, a presena de uma

    discusso sobre esta quase linguagem. Sabemos do valor das publicaes em portugus sobre este tema e salientamos que os livros de Renato Cohen, Jac Guinsburg e Roselee Goldberg tm sido as fontes mais presentes em textos

    sobre performance artstica na contemporaneidade.1

    _______________________

    1 Ver tambm MEDEIROS, M.B, MONTEIRO, M.F.M., MATSUMOTO, R. Tempo e performance. Braslia: PPG-Arte, 2007 e MEDEIROS, M.B, MONTEIRO, M.F.M., MATSUMOTO, R. Espao e performance. Braslia: PPG-Arte, 2007. LABRA, Daniela (org.). Performance Presente Futuro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. So Paulo: Per-spectiva, 1987. GRANATO, Ivald. Ivald Granato. Art Performance (1964-1978). So Paulo: Ed. J.J.Carol, 2009. GMEZ-PEA, Guillermo. Em defesa del arte del performance. In Horizontes Antropolgicos. UFRGS/IFCH, PPG em Antropologia Social. Ano II, n 24, 2005. 199-226.

    Mar(ia-sem-ver)gonha | mosca | 2010

  • 38

    Cabe ressaltar que nosso interesse reside na arte contempornea e que enten-demos as definies e abrangncias do conceito de performance nas cincias sociais, na msica, no sentido da performance de um instrumentista, assim como o entendemos no que diz respeito indstria e economia. Certamente este termo nestas reas bem-vindo e pertinente. No entanto, para o presente texto, no os estaremos pensando.

    A performance, entendida como possibilidade artstica, nascida nos anos 1920, na Europa, com os futuristas, dadastas, com os grupos Fluxus e Gutai, muito realizada nos anos 1970, em galerias, museus ou nas ruas, nosso foco de interesse. Estamos pensando em Allan Kaprow, Gina Pane, Michel Jour-niac, Benjamin Vautier (conhecido como Ben), Yves Klein, Joseph Beuys, Ma-rina Abramovc, Orlan. Estaremos nos referindo Hlio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Celeida Tostes, Wesley Duke Lee, Ronald Duarte, Ricardo Bas-baum, Alex Hambrguer, Grupo Empreza, entre outros, a cada vez que dis-sermos performance.

    Em 2009, comprei o livro La folie Kennaway (1988) no sebo da SCLRN 407, Braslia, escrito por Christian Lehmann, autor que desconhecia. O romance se passa em Londres e seu protagonista (Kennaway) um escritor fracassado que foi amante de um pintor (Henry Childss) aos poucos reconhecido no mer-cado de arte. Por frequentarem o meio artstico, quando eles viviam juntos, no ano de 1976, certo dia de vero, conta o romance, os dois personagens vo a uma soire de performance, assim descrita:

    O Hangar era como uma ferida purulenta, ftida, no centro da cidade. Tudo que a cidade continha de artistas da moda (branchs) tinha mar-cado encontro para expor nesta quermesse de vmito. [...] vinham exci-tar suas conscincias burguesas ao contato ntimo desta imundice.

    Foi no meio destes quadros vivos repugnantes, onde conviviam vsceras e pus [...]. Esta corja habitual de masturbadores se entrega s delcias do body-art, cobertos de chocolate derretido ou de iogurte de frutas, es-corregavam nus, lvidos como cadveres, sob carcaas de boi rgidos de gordura e de pintura, suas erees murchas batiam no ritmo de copu-laes lobotomizadas. Cada um dos artistas presente procurava arrancar a ateno dos espectadores. Os limites do ignbil foram rompidos mui-tas vezes, em uma ambincia de blasfmias derrisrias. [...] eu tentava, como eles, levar a conscincia de mim mesmo alm dos limites comu-mente admitidos, at tocar a escria. (LEHMANN, 1988, 109-110)

  • 39

    Ao final, Childss convida os presentes para sua prpria performance, dene-grindo suas aes:

    A incapacidade trgica de meus colegas a ir alm de sua prpria humani-dade... Que aprenderam vocs hoje sobre o mundo e sobretudo sobre vocs mesmos ? Nada... O nada no to vazio... Vocs assistiram a uma doente obscenidade, mas o que aprenderam seno o fato de que a maior parte de vocs no foi alm do estgio anal? (idem)

    Impressionante, ainda, a descrio da performance realizada por Henry em uma tentativa de ir alm de todas estas prticas de body art. Ele convida al-

    guns artistas a ir a um apartamento, alguns dias depois da cena transcrita

    acima, e l, em grande estilo, lhes mostra um Rembrandt, recm descoberto,

    uma terceira verso da Adorao dos pastores, mais escura, mas mais rica de luzes, a mais ntima, mas tambm a mais gloriosa. (idem). Em seguida, ele ateia fogo obra.

    a este tipo de manifestao artstica que me refiro. Uma linguagem da arte que, nos anos 1970, buscava colocar o corpo em cena, romper os limites do ignbil, levar a conscincia... alm dos limites comumente admitidos, to-car a escria, criar revolta, questionar o mundo. A descrio de Lehmann nos lembra as aes do grupo Acionismo Vienense (Otto Muehl, Hermann Nitsch, Rudolf Schwarzkogler, Gnther Brus):

    A incorporao do corpo humano e do corpo animal na tela, a penetrao at as vsceras e as entranhas, assim como as funes corporais e a liberao das

    pulses constituem os elementos fundamentais da primeira fase do acionismo

    vienense. (WEIBEL, 1984, 45) O autor se refere ao perodo anterior a 1965. Em 1970, perseguidos judicialmente, o grupo expulso da ustria.

    Na entrevista a Daniele Roussel e Thierry Laurent, a primeira fala de Mue-hl faz parecer que retornamos ao romance sobre Kennaway: Os atores se batem com uma galinha, a rasgam, a mordem, depois enfim a estrangulam enquanto uma jovem toca placidamente violoncelo. Os espectadores estavam chocados.2

    _______________________

    2 Chroniques: les archives. Otto Muelh et laccionisme viennois. Entrevista entre Daniele Rous-set e Thierry Laurent. www.visuelimage.com/ch/muelh.html

  • 40

    Vale dizer que, se a performance aos poucos foi parando de atirar com ar-mas de fogo, por vezes no prprio corpo, foi deixando de incorporar animais

    sacrificados, simulao de pnis decepado, isto no implica que ela tenha de todo abandonado estas possibilidades. Nem a capacidade de chocar, mesmo

    no mundo de hoje, globalizado, onde, no Brasil, 70% das notcias so: pren-deram 15, mataram 31, 72 foram encontrados mortos, baleados, sequestrados, 2500 vtimas de terremoto, 2 milhes de desabrigados etc.3

    Por outro lado, outras formas de expresso artsticas foram tomando o rumo

    da denncia.

    A exposio Sensation, por exemplo, na Royal Academy of Arts, Londres, em 1997, apresentando a coleo de Charles Saatchi, chocou por ter este carter de mundo cru, erotismo, violncia, vulgaridade e humor, abandono de praticamente toda experincia abstrata, e uma forte preocupao com a natureza corporal, disse Felipe Fortuna sem fazer referncia existncia de performances nesta exposio4. A arte aqui mostrada teria acontecido sem a performance? Ningum poder provar, mas ela certamente leva uma forte in-

    fluncia das experincias da arte da performance, sobretudo o mundo cru, o corpo real, os sentidos todos flor da pele, pele da flor.

    Sensation foi aberta na Royal Academy, em Londres de 1997, com 110 trabal-hos de 42 artistas jovens ingleses, em sua maioria pintura e escultura. Depois foi para o museu Hamburger Bahnhof de Berlim, em 1998, e para o Brooklin Museum em New York, sempre causando tumulto e protestos.

    _______________________

    3 Em que medida este tipo de notcia pe ou retira humanidade? Como e quando ele anestsico ou estimulante? Que fatos encobre ou descobre? Qual a causa da formao da quadrilha? Es-tudaram? Leram? Em quem votaram os que morreram? Por que os ditos traficantes mataram os imigrantes ilegais? Eram de fato traficantes? O que os levou a tornarem-se traficantes? No h nenhuma reflexo que torne estas notcias de alguma forma reveladoras de realidades, incitao maior participao nos processos polticos cotidianos ou partidrios. Quanto s catstrofes naturais, que fazem temer o fim do mundo, que sentimentos, atitudes, geram estas notcias?

    4 FORTUNA, Felipe, Individualismo Sensacional, in Folha de So Paulo, Caderno Mais!, 23 de novembro de 1997, 6.

  • Mar(ia-sem-ver)gonha | Goinia | 2010

  • Mar(ia-sem-ver)gonha | Goinia | Linda rosa juvenil | 2010

  • 43

    Finalmente, agendada para seguir sua itinerncia no PS1 em New York em junho de 1999, foi cancelada. E cancelada por causa de uma pintura, que tive a oportunidade de ver e achei inocente.

    Trata-se de Chris Ofili e de seu quadro The Holy Virgin Mary. Pintura colori-da de cerca com 243,8 cm de altura, onde v-se representada figura da Virgem Maria estilizada, de traos cercada de imagens de vulvas de revistas pornogr-

    ficas e exposta sobre dois pedaos de excremento de elefante.

    Quando me refiro a uma arte que poderamos pensar ter influncia da perfor-mance art, ou melhor dizendo, uma arte possvel pela performance, me refiro certamente aos excrementos de Ofili mas tambm a Jenny Saville em suas pinturas de mulheres gordas nuas5, ou a Damien Hirst com seus porcos, vacas

    e tubares preservados em formol. The physical impossibility of death in the

    mind of someone living (A impossibilidade fsica da morte na mente de al-gum vivo) o ttulo de um dos tubares de Hirst.

    Muitos colecionadores so especuladores. Saatchi no escapa. Muitos trabal-

    hos pareciam pura provocao. Alguns falaram em novas tendncias artsti-

    cas. Passado pouco tempo, Sensation revelou-se pura estratgia comercial. O

    trabalho de Hirst foi vendido, em 1995, por cerca de 7 milhes de dlares.

    Me refiro ainda a Jake e Dinos Chapman e seus manequins infantis quase realistas, pregados por diferentes partes do corpo, por vezes com genitlias

    saindo de suas bocas, sapatos Nike, cabelos artificiais (como em certas est-tuas sacras asquerosas de igrejas catlicas). E ainda, a escultura dos irmos Chapman feita a partir da pintura de Goya, Great Deeds! Against the dead, 1810-1820, de mesmo nome. Esta escultura extremamente chocante, mas na realidade apenas apresenta a pintura de Goya em formato tridimensional e em tamanho real.

    _______________________

    5 Ver imagens e outras informaes sobre Saville em www.saatchi-gallery.co.uk e www.artfact.com. Ou SCHAMA, Simon. Jenny Saville. Complete Works. New York/Londres: RIZZOLI(USA)/Gagosian Gallery, 2005.

  • 44

    Neste exemplo vemos que, na arte, o corpo sempre esteve presente, foi de-lator e agressor, mas as dimenses dissimulavam a dor deste corpo. Talvez,

    na poca em que foi pintado, este quadro tenha feito efeito, causado afectos, chocado. Mas pinturas de pequenos formatos so capazes de nos chocar, hoje, como nos faz esta escultura de Chapman?

    Alis, por que a gerao 80, liderada por Luiz quila da Rocha Miranda, re-solveu pintar em grandes formatos? Eu o vi afirmar, em conferncia no Rio de Janeiro, por volta de 1990, que tinha sido necessrio pintar muito grande para chamar a ateno diante da performance que paralisava o mercado de arte, sedento de mexer com dinheiro.

    Talvez Guernica, de Pablo Picasso, tenha feito chorar. Hoje, para mim, quando pude me deparar com ela, vi apenas, tinta, riscos, rastros, sombras e tcnica.

    Estou cega, tornei-me rude, meus sentidos esto calejados? Ou esta pintura,

    tornada estampa de bolsa, perdeu seus suores e lgrimas? E a Monalisa, de

    Leonardo da Vinci, que nem lgrimas tem para chorar?

    Laymert Garcia dos Santos6, comentando a exposio Sensation, toma Gilles Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon (2002), onde este apresenta a lgi-ca dos sentidos, que dirige-se ao crebro, age por intermdio do crebro, e a lgica da sensao, que age imediatamente sobre o sistema nervoso que carne.

    As fotografias de Robert Mappelthorpe e Cindy Sherman seriam da ordem da lgica da sensao por agirem sobre a carne, por pulsarem na interseco entre o mundo da Natureza e o mundo sufocante da Cultura Contempornea.7 Porm fotografias no podem ser consideradas performances, por mais fortes e envolventes que sejam. Sero arte, certamente, e sero registros, recortes de aes retiradas de seus contextos, arrancadas de seus sons e cheiros, sero

    registros, fragmentos de instantes desterritorializados. O tempo, elemento es-

    ttico imprescindvel da performance, ter sido desintegrado. _______________________

    6 SANTOS, Laymert Garcia dos, Sensao da contemplao, in Folha de So Paulo, Caderno Mais!, 23 de novembro de 1997, 6.

    7 ibdem.

  • Alguns autores, como Peggy Phelan e Regina Melim, deixam entrever, crer, que fotografias so performances. De nosso ponto de vista, registro no vida. Uma fotografia pode se referir a algo que houve, que esteve presente, mas ela s presente enquanto fotografia como tal.

    Bianca Tinoco, em O corpo presente e o conceito ampliado de performance (2009, 235-236) salienta esta exagerada ampliao do conceito de perfor-mance por Regina Melim:

    [...] medida que a performance tornou-se mais e mais dependente do registro fotogrfico para eternizar a imagem de uma ao, a fotografia tornou-se a base para uma forma hbrida de performance, como no caso de Cindy Sherman. Melim [Performance nas artes visuais (2008)] es-tende tal concluso aos demais meios de registro e objetos envolvidos em uma ao, os quais, longe de serem apenas estmulos para a memria, serviriam de encorajamento para que esta se torne presente e real, po-dendo se apresentados como suas expanses.

    Assim, aes realizadas sem audincia alguma, no espao pblico da cidade, ou no prprio estdio do artista performando apenas diante de cmeras (idem) tambm seriam performance!

    Valentin de Boulogne | Judith e Holophernes | 1626

  • 46

    Zhu Yu comeu um feto de ser humano, cozido, em Eating a dead baby. Afirma ele (in Art Press, 2001, 63): meu projeto consistia em encontrar nos hospitais um beb fruto de um aborto natural, o conservar na geladeira, comprar um belo jogo de mesa, preparar um prato delicioso com a carne do bebe e enfim o comer. Este projeto foi realizado em 2000.

    Em 2000, temos tambm Sun Yuan, do Grupo Cadver de Pequim, expondo cadveres, ou mesmo apresentando a morte como obra de arte: eu escolhi a vida (e no o animal em si mesmo) como suporte de expresso: deixar a vida desaparecer sob uma forma dada e permitir ao pblico assistir este desapare-cimento (in Art Press, 2001, 61). Do lado destas aes, Cindy Sherman e Joel-Peter Witkin so apenas fotografia. Eles no fazem performance.

    O horror, o vmito, a imundcie, os limites do ignbil sempre estiveram pre-sentes na arte e no so privilgio da performance. Como exemplo, podemos ci-tar Judith e Holofernes (1597-1598), de Caravaggio. Este quadro foi pintado por outros artistas, como Valentin de Boulogne (1626) e Artemisia Gentileschi (1612).

    Fotografias das performances de Hermann Nitsch, do Acionismo Vienense, muito se parecem com este quadro. Lembremos tambm do filme A Cela8, que possui, dentre outras referncias histria da arte, um frame do martrio de So Erasmo.

    Voltando no tempo, citaremos as decoraes das igrejas medievais, com seus in-fernos, monstros, mrtires, mortos etc. Vontade de temor por parte da populao.

    Uma outra questo se colocaria aquiHappening, performance, body art?

    Performances acontecem em espaos in situ (bienais, museus, galerias) e ex situ. E, portanto se tornam, muitas vezes, prximas do que chamado inter-veno urbana. Performances na rua muito nos interessam, pois acreditamos que elas levam longe uma das propostas desta linguagem artstica: no sendo produto, sendo efmera, muitas vezes solicitante da participao do pblico, ela se quer perto da vida, do grande pblico, logo, a rua seu lugar.

    _______________________

    8 Dirigido por Tarsem Singh com Jennifer Lopez, Colton James e Dylan Baker, texto de Mark Protosevich. 2000. 107 min.

  • 47

    Em espaos in situ, normalmente, o pblico vacinado, certamente est pre-parado para a arte, ainda que, muitas vezes, no saiba o que arte. Na rua, a performance possui potncia de surpresa. Ela desloca o espao e pode modi-ficar o tempo do errante. Ele encontra aquele que no ousa entrar em institu-ies por no se sentir convidado.

    Alguns afirmaro que, mesmo na rua, uma ao, quando identificada como arte, sofre um processo de separao da vida. como se uma redoma imaginria fosse criada em torno da ao. Como quebrar a redoma para o verdadeiro contato, com-tato? Com a participao do errante como participador, qui como criador.

    Na rua, em rodovirias e estaes de trem ou metro, com grande circulao de pessoas, a performance pode atingir mil, trs mil, vinte mil pessoas. Que dizer da obra Wave UFO de Mariko Mori? Montada no Centro Cultural Banco do Brasil de Braslia, de 25 de janeiro a 03 de abril de 2011, com um custo provavelmente superior a 4 milhes de reais, esta obra s pode ser visitada por trs pessoas a cada 20 minutos.

    A performance no precisa ameaar, sendo lenta, pouca, gerando imprevisvel, ela possui forte manancial para deslocar membros e membranas. Corpos Informticos se interessa por esta delcia: expectativa. Fazer aguardar regando lentamente o desejo e penetrar, com os poros sugando o vento, com as narinas perseguindo o movimento. No interessa a ferida purulenta, ftida. Nossos quadros vivos oscilam entre a sensualidade, a nudez e a brincadeira. Tambm pulam corda pelados e se divertem vendo o pinto e os peitos subindo e descendo em cmera lenta. Esta nudez no cadavrica nem se esconde em quermese de vmitos. Ela acontece em plena luz do dia, no leito do lago ou no prdio da CAPES, em Braslia. No interessamos ao mercado. No pintamos quadros nem fazemos monumentos. Criamos momentos de preferncia deliciosos e plenos de sabores.

    Para a performance, no conceito do Corpos Informticos, so necessrias dis-tenso, abstrao e negao positiva. Para a insegurana de todos, aquela que garante a possibilidade de evento, a mosca circula com as portas e janelas abertas, o teto foi levado pela carcia, as paredes derreteram. Ajudem-se brin-cando tambm! E deixemos os lamentos para o velho mundo.

  • 48

    nibus

  • 49

  • 50

    mar(ia-sem-ver)gonha

    ao I ideia | disciplina | apresentao

    ao II o roteiro / a rua | CUestionrio 1984 | CUestionrio 1983

    ao III parada 1 | parada 2 - casa da Dina | parada 3 - placa w/uparada 4 - amarelinha binria | parada 5 - alongamento

    ao IV festa pique | momento TV | jogral

    ao VOmolu eletrnico | ciranda | reverberaes

    Adriana Lopes Camila SoatoCarlos FinoDiego AzambujaEva Maria Foloni SantoroFarlley DerzeFelipe OlalquiagaFrancinia Gomes SoaresIngrid BarrosJackson Marinho VieiraLaureen Crossetti (Fotografias)Mara NobreMrcio MotaMaria Beatriz de MedeirosMariana Tesch MorgonMaria Vitria Canesin Pedro Moura SantosRafaela Rezende Taiom Almeida

    Corpos Informticos & turma de performance

    Colaboradores

    Ana Carolina MendesCinara BarbosaGabrielle CorraLarissa FerreiraBianca Tinoco

    Cmeras

    Joo Angelini Pedro Oswald

    Sonoplastia

    Anbal Alexandre Victor Valentim

    Consultoria figurino

    Cyntia Carla

  • 51

    ao 1

    ideia

    Desde 2007, a pesquisa do Grupo Corpos Informticos se encaminhou para a reflexo sobre Composio Urbana (CU). Este conceito entendido tanto como composio da arte com a cidade (instalao ou performance), como da arte com a internet - a rede mundial de computadores - ou seja, a nossa urbis

    virtual.

    Para a cidade, seja ela fsica ou virtual, relaes pessoais ou redes sociais in-

    clusive: Composio Urbana (CU). Esta arte, parte da vida, com a urbis, com-pe (Spinoza, Deleuze e Guattari) e ao compor decompe, sempre.

    Fruto de extenso trabalho prtico, CU percebe a obra de arte em contnua transformao com a cidade e seus habitantes, ao invs de isolar, ferir, inter-

    vir (interveno: processo de fora para dentro, onde algo do fora se impe ao dentro), inferir, inter-ferir.

    Especificamente para a world wide web, desenvolvemos o conceito de UAI: Ueb Arte Iterativa. Composio iterativa, isto , relacional, participativa, co-

    laborativa, realizada na rede internet. Para a rede mundial de computadores

    diz-se web. O desprezo do brasileiro por sua prpria lngua tendncia: lngua de portugus. Alis, somos todos donos de padarias e aougues. O que escon-demos? Fugimos de ns mesmos? E que tal pensar a brasilidade: mineiro--carioca-baiano-portugus-judeu-libans-ndio-manioba-feijoada-baru-ho-

    lands-azedo-semvergonha?

    Ns, Corpos Informticos, tambm queremos ser VIP (very important peo-ple) e tambm dizemos web, porm somos Macunama, mneirins, uai! Fulei-ros e propomos o termo ueb, por preguia, por mixurucagem, para rir. A ueb cidade, mas tambm paisagem. Nela pode chover, ter enchente. Ela pode

    beber, cair e levantar, pode coneco, afeio, distanciamento incgnito.

    Ambas ideias, CU e UAI, nos levaram ao conceito de Maria-sem-vergonha, e

    posteriormente Mar(ia-sem-ver)gonha. Aqui a irreverncia da maria-sem--vergonha, rizoma de Pindorama, vai sem ver, realiza arte sem dar privilgio

    viso. Ela pode tornar-se Mar( )gonha ou Margonha e tambm ( ).

  • 52

    disciplina

    Realizada no 1 semestre de 2009 pela Profa. Maria Beatriz de Medeiros, a disciplina Interveno, Performance, Instalao, do curso de Graduao em

    Artes Visuais da Universidade de Braslia, teve como co-autoras a doutoranda

    Ana Carolina Mendes e as mestrandas Bianca Tinoco, Larissa Ferreira e Ga-brielle Corra.

    O trabalho (4h semanais) foi conduzido por meio de metodologia desenvolvi-da no seio do Corpos Informticos desde 1992. Cada encontro foi dividido da seguinte maneira:

    - Leitura e anlise crtica de textos sobre performance (1h30)

    - Alongamento e exerccios corporais (40 min)

    - Propostas performticas individuais (30 min)

    - Propostas performticas individuais expandidas para o grupo (1h)

    - Avaliao sobre os trabalhos

    Em cada encontro, o alongamento foi proposto de forma diferenciada: puro alongamento feito em academias de ginstica; propostas mais soltas utiliza-

    das para preparao em dana; brincadeiras e jogos diversos; massagens in-

    dividuais e coletivas etc.

  • 53

    Metodologia para as propostas performticas: cada aluno traz para a aula um elemento, de qualquer natureza, com o qual deseja realizar uma ao, ter uma relao, brincar (30 min). A escolha deste elemento livre, observando ape-nas o carter individual e coletivo que esta escolha implica. Isto , cada aluno traz um elemento para si, mas tambm para todos. Assim, pretende-se que a proposta individual se torne coletiva, ou melhor, coletivada. Estes processos podem resultar em propostas para aes futuras ou ser apenas exerccios abs-tratos.

    Passados os primeiros minutos da experimentao individual, aos poucos, so-licita-se que outros alunos participem da ao, apropriando-se do elemento, compartilhando-o, roubando-o, jogando-o... Cada interao proposio de algo ou integrao ao jogo estabelecido, sua iterao. Desencadeiam-se novas estruturas, aberturas inesperadas, induo ao, exemplo: lambe o elemen-to dele; acaricia o proponente para ele se distrair do elemento.

    Esta proposta, inicialmente livre, gera um repertrio de aes discutidas e lapidadas na avaliao. Analisa-se o tempo e o ritmo da ao vivenciada, entende-se de que forma as aes podem se dar como performance, em que espao, com ou sem participantes externos, com o elemento proposto ou com elementos diferenciados.

    Estes elementos - jamais sugeridos pelos professores - podem ser um sopro ou um toque, podem gerar propostas de performances sem objeto, podem ser um palito de fsforo, duzentos metros de pano, grito, sorriso, ventilador, pas-

    sarinho.

    Rizometes | Maria Vitria, Mariana, Adriana e Rafaela

  • 54

    Algumas performances tendem a processos individuais e pouco funcionam em grupo; outras tendem ao jogo e ao envolvimento de muitas pessoas; por vezes funcionam de forma lenta dando tempo de leitura ao espectador; vez ou outra so mais eficazes (se eficcia existe em performance). Algumas so velozes, repentinas, surpreendem o pblico. Outras ameaam ou acariciam.

    Em anos anteriores, como resultado final da disciplina, apresentamos uma s-rie de performances individuais ou em grupos pequenos, na universidade ou em locais pblicos. Em 2009, o Corpos Informticos tinha uma pauta no tea-tro SESC Garagem (713/913 Sul). Ento, conduzimos a pesquisa da linguagem performance para um espetculo agenciado, aos poucos as aes sugeridas, discutidas pelo grupo e aceitas como viveis. Estas formaram um quase script.

    Um script pode prever aes encadeadas com muita preciso e minutagem fe-chada. No nosso caso, no h minutagem. apenas o encadeamento de aes. No h ensaio total. Acreditamos que ensaio, marcao de tempo e determina-o fechada de aes impedem a torrente quando se deseja a participao do pblico. O improviso s possvel se o script for improvisado. Gerar expecta-tiva impede o espanto e a conseqente adaptao ao inesperado.

    O improviso espirala o espetculo. na surpreenso, mais do que na com-preenso, que as experincias sensveis artsticas se produzem em nome da afirmao de uma diferena que cuestiona. no jogo, na ao e reao, que o espetculo sugere parada, trajetos e desvios possveis, tanto na rua como no teatro. O roteiro do espetculo gerado, Mar(ia-sem-ver)gonha, inclua ainda ideias j realizadas pelo Corpos Informticos, propostas dos alunos e improvi-sos gerados na construo dos adereos.

    Iteratores

  • 55

    apresentao

    Foram dois dias de espetculo, duas apresentaes absolutamente distintas. Isso devido ao improviso, participao do pblico mas, sobretudo, devido

    chuva. No segundo dia, chovia cntaros no momento do percurso.

    Retirar a arte de seus espaos institucionais uma necessidade. No Brasil, a

    maioria das pessoas no se sente convidada a entrar num museu ou galeria.

    Estes espaos no abrem em horrios acessveis aos trabalhadores. Uma ati-

    vidade vista na rua, se identificada como arte, logo colocada dentro de uma redonda imaginria. O cenrio atual, fazer arte na rua atitude poltica, en-

    frentamento e resistncia.

    Queramos comear fora do teatro, na rua: composio urbana. As fontes de inspirao foram performances de rua do Corpos Informticos: interveno na rodoviria de Braslia (1996); os A.CON.TE.CIMENTOs (2004 e 2005); os recentes jogos de pique-bandeira na Esplanada e na FUNARTE-Braslia e a pea de teatro assistida em So Paulo, no incio de 2009, da Cia So Jorge

    de Variedades: Quem no sabe mais quem , o que e onde est, precisa se mexer, com Marcelo Reis, Mariana Senne e Patrcia Gifford, dirigido por Georgette Fadel.1

    Desde o incio, uma das ideias era trabalhar com componentes eletrnicos

    desmontados: lixo re-significado, conforme vinha fazendo o Corpos Inform-ticos em suas composies urbanas desde 2006. Junto ao almoxarifado da UnB conseguimos cerca de 100 teclados de computador, mouses, mquinas de escrever, ventiladores de p e outros traquitandas.

    _______________________

    1 Criao coletiva. [...] o trabalho ganha forma a partir da interao do elenco com a plateia e os pedestres em ruas da Barra Funda. A interveno sai da Casa de So Jorge (Barra Funda) e segue para frente do Teatro So Pedro. No trajeto de quinze minutos [...]. S depois da volta pelo quarteiro, os trinta espectadores da sesso se acomodam no teatro para acompanhar a pea.http://vejasp.abril.com.br/teatro/quem-nao-sabe-mais-quem-que-onde-esta-precisa-se-mexer

  • 56

    Teclados desmontados muito renderam: teclas so chocalhos; circuitos eletr-nicos, que existem no interior do teclado, so mapas e foram distribudos para o pblico como roteiros do espetculo; alguns teclados possuem uma folha de silicone sobre as teclas, com relevos semelhantes a mamilos, e se tornaram rou-

    pas juntamente com fios e placas de circuito eletrnico. Colocados lado a lado de forma vertical lembram sanfonas com timo som. A parte de trs dos tecla-

    dos foi o cho da Mulher Invisvel: andar sobre eles era realmente perigoso.

    ao 2

    0 roteiro / a rua

    Ficou decidido que comearamos na parada de nibus mais prxima ao teatro (713 sul, sentido sul). Durante a pesquisa do espao de ao, chegamos p no ponto de nibus. Num compor constante de ideias, ficou claro que deveramos iniciar o espetculo descendo de um nibus. Da parada ao teatro

    cantaramos. Isto representava um percurso e, como tal, deveria ter um guia

    (Bianca Tinoco). E se guia haveria, mapas seriam necessrios. Os mapas dis-tribudos eram as folhas de acetato com circuito integrado que retiramos de cerca de 30 teclados de computador.

    Vieram de nibus Eva Maria, Taiom, Diego Azambuja e uma cmera (Joo Angelini). Taiom levava enrolado um tapete de 20/2 m feito de TNT e plsti-co bolha. O texto dizia mais ou menos isto:

    Boa noite, no queria incomodar. Eu poderia estar roubando, mas estou aqui anunciando e convidando vocs para uma performance: Mar(ia-sem-ver)gonha, que vai acontecer na parada de nibus da 713 e convido a todos para descerem conosco para participar.

    Na parada de nibus estvamos reunidos; uns performando, outros apenas

    aguardando o pblico e o pessoal que vinha de nibus. Carlos Fino, de saia, em cima do ponto de nibus. Ao subir, descobriu um livro, datado de 1954, com instrues sobre como concertar rdios. Ao final de cada lio havia uma espcie de ensinamento e ele os lia: Deixe de ajudar ao prximo e vers... O livro era grande como uma Bblia e muito ilustrado. Carlos rasgava as folhas e

    as distribua ao pblico.

  • 57

    Carlo

    s Fin

    oLa

    rissa

    Fer

    reira

    CUes

    tion

    rio

  • Carlo

    s Fin

    o sob

    re pa

    rada

    de

    nibu

    sIte

    rato

    res c

    om ro

    teiro

    sFe

    lipe O

    alqu

    iaga

  • Felipe Olalquiaga, com um tabuleiro pendurado no pescoo, vendia balinhas e chocolate: o doce. Quando um fregus pedia algum doce de seu tabuleiro, ele lentamente pegava a guloseima, a desembrulhava e a comia, deixando o

    fregus desconcertado ou rindo muito: o duro.

    Ainda, na parada de nibus, havia uma performance intimista de Mara Nobre

    que carimbava folhas de rolos de papel higinico com o dizer Composio urbana C.U.; Jackson Marinho quebrava tijolos e um questionrio, a ser res-pondido pelos iteratores, denominado CUestionrio (desenvolvido por Pe-dro Moura) foi distribudo. Larissa Ferreira, com um despertador, performava no buraco-janela do ponto de nibus.

    Iteratores

  • 60

    CUestionrio 01 (1984)

    01.01 Data de nascimento: ___\___\____02.01b Quantos anos mais ou menos?* ____01.02 Signo do zodaco:* ______________________________________________________

    01.02 Signo do horscopo chins:* ___________________________________

    01.04 Se no se chamasse assim se chamaria:* (___) Morgana Saionara (___) Ivan Weshlwy ?Andrei (___) Maria da Graa01.05 Qual a diferena que tem do sexo de baixo pro seio? Cite 02.*_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________

    01.06 Gosta de esquema A vontade?* Sim(_) No(_) b pegar sol a vontade? Sim(_) No(_)01.07 Como o cheiro do amor?* _______________________ _____________________________________________________________________________

    01.07b Qual perfume voc mais gosta?* ___________________________

    01.08 Todo mundo sabe o que vc tem??* __________________

    B) De que outra maneira voc pode mostrar?*_______________ ____________________________________________________________________________________________________

    01.09 Se ficasse numa ilha se chatearia muito: s (_) n (_)O que faria?* __________________________________ _________________________________________________________________________________________________________

    * Campos de preenchimento obrigatrio.

    NOME:___|___|___|___|___|___|___|___||___|___|___|___|___|SOBRENOME: ___|___|___|___|___|___|___|___|___|___|___|_

    Telefone para CONTATO - cel.:___|___|___|___|___|___|___|

  • 61

    CUestionrio 02 (1983)

    02.01 Sua popularidade aumenta a cada dia fruto de:*( ) uma estratgia ( ) casualidade ( ) Luxury ( ) fruto proibido ( ) ______________

    02.05 O que gostaria de ser?* ( ) estrela ( ) superstar ( ) ex-estre-la ( )cadela02.02 O que voc d muito ao pblico?* ___________________ _____________________________________________________

    b. O que o pblico lhe d? ( ) cigarros ( ) microfones ( ) muito calor ( ) muito carinho

    ( ) muito amor ( ) ______________________________________02.04 Eleies:* a. ( ) Londres ou ( )Nova Iorque b. ( ) Paris ou ( )Madri c. ( ) carne ou ( )pescado d. ( ) Divine ou ( ) Sara Montiel e. ( ) excitantes ou ( ) tranquilizantes f. ( ) dinmico ou ( ) aerodinmico02.03 De todas as suas facetas qual a que mais gosta?* ( ) cantor ( ) pintor ( ) modelo ( ) poeta ( ) mulher superfi-cial ( )___________________________ 02.03b Assim sendo; onde pretende passar frias? ________________________________________________________

    02.06 Com quem quer se parecer?* ___________________________ ________________________________________________________

    B) Com quem acabar se parecendo?* ( ) Deusa da Mitologia Ass-ria ( ) _________________________________________________

    02.07 Voc um plgio do que mais gosta?* _____________________ ____________________________________________________

    * Campos de preenchimento obrigatrio.NOME:___|___|___|___|___|___|___|___||___|___|___|___|___|SOBRENOME: ___|___|___|___|___|___|___|___|___|___|___|_Telefone para CONTATO - cel.:___|___|___|___|___|___|___|

  • 62

    ao 3

    parada 1

    Quando os performers do nibus chegaram, Bianca, a guia, com seu megafo-

    ne, convocou os espectadores para o espetculo.

    Intimao do pblico presente! Meu nome Bianca e serei a guia de vocs na visita guiada Mar(ia-sem-ver)gonha.

    Este aqui o mapa do nosso passeio. muito importante que todos prestem ateno no mapa para se perderem. Estamos todos aqui, no quadrante infe-rior externo da mesma mama identifica-se um ndulo slido.2

    Ns seguiremos agora um trajeto em que aprenderemos mais sobre a Mar(ia-sem-ver)gonha e as composies urbanas. Aqui neste ponto de ni-bus, por exemplo, vimos nos ltimos minutos uma srie de composies urbanas, e veremos outras pelo caminho.

    _______________________

    2 No quadrante inferior externo da mesma mama identifica-se um ndulo slido, refere-se aos laudos mdicos de radiografias que usamos no decorrer da criao do espetculo. Outros trechos, nas falas da guia, referem-se a laudos mdicos que compuseram o jogral, a trechos de CU. O filme e a trabalhos anteriores do Corpos Informticos.

    Bianca Tinoco | Guia

  • 63

    Para alegrar nosso passeio, contratamos uma banda do Rio Grande do Nor-te, a dor sincera do Rio Grande do Norte, narrador sincero do Rio Grande do Norte3. As letras do repertrio da banda j esto sendo distribudas.

    Mas, importante! Toda vez em que eu for dar uma explicao, usarei este apito vermelho (mostra apito). Quando eu soprar o apito, a banda vai parar de tocar e importante que todos faam silncio, pois darei uma explicao fundamental para a compreenso da Mar(ia-sem-ver)gonha. Entenderam? Ouviram o apito, silncio!

    Todos com o mapa na mo? Prontos? Se tiverem alguma dvida, no per-guntem para mim, guardem para vocs que assim mesmo, nem tudo na vida tem explicao.

    Banda pode comear!

    Internet

    Internetinha

    Vamos logo deslogar

    Vamos dar a volta ao mundo

    Volta ao mundo

    Vamos dar

    Celular que tu me destes era vivo e timganouO e mail tinha vrus

    E o computador lascou

    O cortejo desfilou uns 20 metros cantando esta msica e carregando o tapete vermelho. Este tapete tinha uma funo agregadora, mas no sabamos exa-tamente para que servia visto que jamais foi usado como tapete. Interessante foi ver sua funo se revelar no 2 dia de apresentao: chovia e o tapete se transformou em um imenso guarda-chuva.

    _______________________

    3 Rio Grande do Norte, a dor sincera do Rio Grande do Norte, narrador sincero do Rio Grande do Norte, o texto final do filme CU. O filme. Interessante ressaltar que este trecho, retirado de Os Sertes de Euclides da Cunha, e manipulado no momento da edio do vdeo, criou coincidncias, ou no, divertidas: do Rio Grande do Norte no h ningum no Grupo (somos de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, ou Braslia), a dor sincera resultado da repetio entrecortada de narrador sincero e torna-se, no filme, a doce encera. Como, no filme, enceramos a via W3 e a rodoviria de Braslia. Uma doce encera, sugestiva.

  • 65Diego Azambuja | Max Steel

  • 66

    [Apito]

    Todos pram em frente a quatro performers vestidas com folhas artificiais, deitadas na grama entre alguns coqueiros ou palmeiras. Seduo do pblico e convite a entrar em suas bolhas de sabo.

    [Texto da guia]

    Prezado pblico, aqui encontraremos uma explicao fundamental sobre a Mar(ia-sem-ver)gonha. Algum aqui j viu uma Mar(ia-sem-ver)gonha? No, no so as meninas que esto a se exibindo na f do chocolate. uma plantinha de flores midas, articulares, geralmente cor-de-rosa, coldoco de calibre normal, que se espalham pelos jardins, pelos terrenos. Temos aqui outra espcie parecida: a grama. A grama, assim como a Mar(ia-sem--ver)gonha, um rizoma, graas a um tecido celular subcutneo e muscu-latura retromamria sem alteraes. Luis, porra! O rizoma, alm de se espalhar por meio das razes, tem a capacidade de se espalhar em rede. Se arrancar um pedao de grama, o pedao cresce e se espalha tambm, exceto no quadrante superior na regio retro-auricular. Agora que j aprendemos sobre o comportamento da Mar(ia-sem-ver)gonha, vamos!

    [Trajeto at o SESC]

    parada 2

    casa da Dina

    Senhoras e senhores. Em nosso dia-a-dia, muito comum encontrarmos composies urbanas que nem mesmo sabem que so composies urba-nas, como aqueles cartazes dizendo: Dona Mrcia traz a pessoa amada em trs dias, bzios e tar 3273-4977. Aqui neste porto temos um deles (l o cartaz da Dina). um cartaz muito interessante, at porque, algum aqui sabia onde encontrar uma costureira especialista em cintas? Do lado des-te cartaz, h um pedido, uma solicitao, um apelo clamoroso da estilista: CHAMAR DINA AQUI. Sendo assim, vamos chamar a Dina para vir conos-co. Todos bem alto, um dois trs e j: DIIIIIIINAAAAAA!!!

    De novo: DIIIIIIINAAAAAA!!!

    [Espera para ver se algum aparece]

    Pronto, atendemos ao pedido da Dina, vamos continuar nosso trajeto. Gira o frango!

  • 67

    parada 3

    placa W / U

    Aqui, visualizem uma linha imaginria, como a do Equador, exatamente nesta extenso que leva do conjunto W, desta placa minha direita, ao con-junto U da placa do outro lado da rua4. Temos aqui a passagem do reino da Web, com W, da WWW, para o mundo da Ueb arte iterativa, tambm co-nhecido como UAI. Como o nome ento? (repete) UAI UAI UAI UAI UAI UAI. Passando por esta linha imaginria, todos ns seremos tomados pelo devir criana: vamos perder a vergonha, como a Mar(ia-sem-ver)gonha! E cad a siririca? Banda, p de siririca!

    [O cortejo prossegue com msica]

    Na minha casa tem um p de siririca

    Mas minha me disse que pode viciarMas da janela parecia to bonita

    Que dessa fruta resolvi provar

    P de siririca

    P de siririca que eu dou (2x)

    Maracuj, goiaba, amora tangerina

    Como gostosa essa fruta siririca

    Maracuj, goiaba, amora, tangerina

    Como cheirosa essa flor de siririca

    P de siririca

    P de siririca que eu dou (2x)

    Mas minha filha isso no flor que se cheireE dessa fruta no se deve lambusar

    Eu j te disse que essa tal de siririca perigosa ela pode viciar

    P de siririca

    P de siririca que eu dou (2x)5_______________________

    4 As quadras 700 de Braslia so divididas em conjuntos, conjuntos de casas. E que coincidncia termos escolhidos passar justamente entre os conjunto W e U!

    5 Letra e msica: Camila Soato, Laurem Crossetti e Roberta Senda. http:// vimeo.com/9522185.

  • 68

    parada 4

    amarelinha binria

    Senhoras e senhores, agora que j estamos sem vergonha e incorporamos o devir criana, vamos comear a trabalhar com nosso corpo. Temos aqui uma amarelinha, como aquelas do tempo de criana. Mas no uma ama-relinha qualquer, uma amarelinha binria! S tem dois nmeros, e vocs precisam sair pulando at o final que no o cu, vocs vo ver o que . Sugerimos que vocs no pulem sozinhos, se juntem aos amigos ou aos des-conhecidos, faam corpo sem rgos, pois estamos no Brasil e precisamos aglutinar! A banda estar do outro lado, esperando por todos. Todo mundo em um p s e no treme, no treme, no treme!

    [Todos pulam amarelinha e atingem o C.U.]

    parada 5

    alongamento [Apito]

    Senhoras e senhores, ns j cantamos, danamos, pulamos, e estamos um pouco cansados, no? Precisamos de um alongamento para continuar, cer-to? Chamamos ento o professor Diego MaxSteel para uma rpida aula de alongamento antes de continuarmos nosso trajeto.

    [Diego Azambuja, sentado no asfalto, comanda

    o MaxSteel que comanda o alongamento]

    Mais 30 metros e estamos em frente ao teatro. No hall do teatro, obstculos? Primeiro foi necessrio pular corda (Francinia e Ana Carolina). Em seguida, descendo a escada, adentrar a sala de espetculo conhecendo em profundida-

    de a Mulher Invisvel.

  • 69

    [Diego convida as pessoas]

    Ela invisvel, ela imprevisvel, ela ia sem ver, ela pode te prender, a Mu-lher Invisvel te escolheu [apontando para algum entrar], a mulher invis-vel te prendeu...

    A Mulher Invisvel adora brincos, bolsas. melhor tirar brinco, segurem suas bolsas, cuidado com a Mulher Invisvel, ela imprevisvel...

    Esta Mulher Invisvel foi retirada de algum recanto de minha memria: anos 1980, no Morro da Urca, eu havia experienciado uma Mulher Invisvel: cor-redor, feito de panos pendurados, de cerca de 3 metros de comprimento onde havia uma mulher invisvel, isto , nada alm de badulaques pendurados que roavam os corpos cegos pela escurido no interior do tnel. Nossa montagem

    da Mulher Invisvel tinha 3 metros de altura, 1 de largura e 6 de profundidade.

    Um dos iteratores, Marco Antonio Siqueira, relatou posteriormente por email a experincia de atravessar a extenso da mulher que ia sem ver:

    O mestre de cerimnia anunciava e convidava: Venham ver a Mulher Invi-svel!. Resisti, inconscientemente, o quanto pude, mas enfim me meti na-quele tnel negro. A escurido claustrofbica me remeteu ao desconforto que ainda sinto em parques de diverso; o emaranhado catico de pendu-ricalhos, um puxozinho aqui, um toquezinho ali, lembrou de Hlio e Ly-gia, Freud e Lacan, e, de uma tal vagina dentada, senti um alvio catrtico quando sa. Que bacana, invaginando numa obra de arte psicanalizei um de meus medinhos inconscientes, gostei. Parabns Bia, parabns Corpos...

  • 70

    ao 4

    festa pique

    Ao entrar no espao do teatro em si, totalmente livre, sem cadeiras, Carlos e Ingrid dividiram o pblico em dois times: pique-bandeira. A banda tocava solenemente o Hino Nacional.

    Para o pique-bandeira, Carlos havia iluminado a cena com luzes verdes e ama-relas. Esta iluminao delimitava suavemente os campos para o jogo. Melhor de trs. Ao final, a luz se transmutou em luz negra e o som foi de festa. Este momento foi denominado a festa e durou cerca de 5 minutos.

    momento TV

    O Momento TV pediu pipoca. Um verdadeiro pipoqueiro de rua foi convidado a adentrar a cena com seu carrinho e distribuir saquinhos de pipoca. No sen-do atletas, nem danarinos, nem atores, verificamos que no tnhamos pique para correr, danar, cantar sem momentos de descanso. Entre o pique-ban-deira e o jogral foi introduzido um Momento TV: puxamos cinco televisores e cinco DVDS para o centro do espao e nos instalamos confortavelmente vendo televiso. Um performer, Maria Vitria Canesin, foi deslocada para ver uma televiso diferente: um retro-projetor e na projeo radiografias e imagens medicinais. Assim afirmou Maria Vitria:

    Pedi, desesperada, uma pipoca para a moa que me olhava espantada. Eu no podia perder ali aquela vescula registrada por ultra-sonografia, era a melhor parte do filme! Ela trouxe a pipoca, se abaixou e disse:

    _ Se precisar de alguma coisa, pode me pedir que eu fao.

    _ (eu) Sente aqui, esse filme imperdvel!

    Ela no sentou. Provavelmente achou que eu estava louca por uma pipoca e, por estar ali, atuando, e compondo o espetculo, no poderia sair daquele lugar quela hora. Eu era, para ela, uma obra viva em uma moldura em uma exposio [...] E nessa vivncia que a performance se solidificou, cada pa-lavra que eu dirigi a essa garota, no era espetculo e ao mesmo tempo era, e, ela, trazendo a pipoca, tambm performava. Mas ela no devia ter perdido aquela cena: aquela vescula era demais!6

    _______________________

    6 CANESIN, Maria Vitria. Trabalho final, escrito, da disciplina Interveno, Performance, In-stalao, julho de 2009.

  • 71

    [braos esquerdos esticados]

    0 - Intimao do pblico presente!

    [abaixa o brao]

    0 - Intimamos o pblico presente para cincia audincia de uma oitava abaixo marcada para... Agora. Sob as penas da lei verifica-se: Em muitos lugares rareavam, eram poucos

    1 - No Quadrante infe-rior externo da mesma mama identifica-se um ndulo slido.

    0 - Tecido celular sub-cutneo e musculatura retromamaria sem alte-raes [sinal da cruz] na f do chocolate. TAIOM: palavra do Senhor.

    [mos e olhos para cima]

    Todos: graas a deus

    [3 vezes]

    1 - No treme, no tre-me.

    [balana o quadril]

    0 - No Quadrante infe-rior externo da mesma mama identifica-se um ndulo slido

    1 - Oh Luis, porra!

    0 - Linfonodos em regi-es axilares

    [cheira o sovaco do cara a esquerda]

    1 - isso, agora aqui, isso. isso, agora aqui, isso. isso, agora aqui, isso.

    0 - No Rio Grande do Norte

    Todos: nnnnnnnnnnnnn.

    1 - Jackson: antena neu-tra.

    0 - Estamos em el brasil e reivindica-mos aglutinar

    1 - Ele chama o Nietzche de - Coldoco de calibre normal, de bigode.

    [olhos arregalados]

    0 - Mediatismo sem alte-raes.

    1 - Dona mrcia traz a pessoa amada na palma da sua mo em 3 dias, buzios e tar, 32734977. 32734977. 32734977. Tu Tu Tu. 1 - Coldoco de calibre normal, gira o frango

    jogral

    [Deixamos os iteratores instalados, vendo TV e comendo pipoca, e samos subrepticiamente para vestirmos nossas roupas de teclado]

    [jogral binrio]

  • 72

    0 - Gira o frango, gira o frango.

    [todos giram]

    1 - Imagens csticas sem contedo egocntrico, exceto no quadrante su-perior na regioretro-areolar.

    [todos fazem os gestos correspondentes ao texto]

    0 - JACKSON: a ideia arrumar 10 car-rinhos de supermercado e pend