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    INFLUXOS DA LEI 12.971/14 NOS DELITOS DE HOMICDIO CULPOSO DE

    TRNSITO, EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E DISPUTA AUTOMOBILSTICA NO

    AUTORIZADA

    Henrique Hoffmann Monteiro de Castro1

    Resumo: Enfrenta-se no presente estudo os influxos da Lei 12.971/14 (que alterou oCdigo de Trnsito Brasileiro) em relao aos delitos de homicdio culposo de trnsito,embriaguez ao volante e disputa automobilstica no autorizada. O artigo se limitar anlise dos dispositivos penais da Lei 9.503/97, modificados pela recente Lei, a fim deverificar a dinmica das mudanas e a consecuo do desiderato de contribuir para a

    segurana no trnsito e assegurar punies severas queles que praticam crimes nadireo de veculo automotor. Sem desmerecer a iniciativa legislativa em se conferir umtratamento mais rigoroso para situaes em que a irresponsabilidade no trnsito ofendea integridade fsica e a vida de outrem, cumpre analisar pormenorizadamente o modocom que o legislador se livrou dessa incumbncia, desafio que constitui o desideratodeste ensaio.

    Palavras-chave: Crimes de trnsito; Cdigo de Trnsito Brasileiro; Lei 12.971/14.

    Abstract: It faces in the present study the inflows of Law 12.971/14 (that changed theBrazilian Traffic Code) regarding crimes of manslaughter, drunk driving andunauthorized auto dispute. The article is limited to the analysis of the criminal provisionsof Law 9.503/97, modified by the recent Law, in order to verify the dynamics of changeand achieving the goal to contribute to road safety and ensure severe punishment tothose who commit crimes in the direction of motor vehicle. Without discrediting thelegislative initiative to give a more rigorous treatment to situations where irresponsibilityin traffic offends the physical integrity and the life of another, we must examine in detailthe way the legislature got rid of this task, the challenge of this desideratum assay.

    Keywords: Traffic crimes. Brazilian Traffic Code. Law 12,971 / 14.

    1. DELINEAMENTOS INICIAIS

    1Delegado de Polcia na Polcia Civil do Paran. Ex-Delegado de Polcia na Polcia Civil do Mato Grosso.Ex-Advogado em Minas Gerais. Professor Universitrio. Especialista em Direito Penal e Processual Penalpela Universidade Gama Filho. Especialista em Segurana Pblica pela Faculdade Barddal. Bacharel emDireito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui diversos cursos pelo Ministrio da Justia,Ministrio Pblico de Minas Gerais e Fundao Getlio Vargas. Email; [email protected]

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    No se desconhece que os acidentes de trnsito configuram

    hodiernamente uma das principais causas de morte no Brasil. As pesquisas apontam

    que mais de 35 mil pessoas morrem por ano no trnsito do pas2. Os nmeros da

    guerra do trnsito atingem nveis ainda maiores se levarmos em conta tambm as taxasde leses corporais.

    Essas tragdias quase em sua grande maioria no so fruto do acaso,

    mas decorrem particularmente de falhas humanas, motivadas especialmente por

    embriaguez e uso de drogas, excesso de velocidade e demais formas de desrespeito

    regras de circulao e conduta.

    A insegurana no trnsito certamente gera certo inconformismo e at

    revolta no seio social, no sendo razovel acreditar que a coletividade se sintaconfortvel com estatsticas como estas. No por outro motivo a Organizao das

    Naes Unidas (ONU) proclamou em Assembleia Geral, realizada no dia 2 de maro de

    2010 (Resoluo A/64/L44 da ONU em 2 de maro de 2010), o perodo de 2011 a 2020

    como a Dcada Mundial de Aes para Segurana no Trnsito. A iniciativa visa

    estimular esforos para conter e reverter a tendncia crescente de fatalidades e

    ferimentos graves em acidentes no trnsito em todo o mundo.

    Como destaca a doutrina:

    O nmero de acidentes de trnsito em nosso pas assume ocarter de verdadeira calamidade pblica. Ao cabo das friasescolares, a cada final de semana prolongado, as estatsticastraam um perfil aterrorizante da situao nas estradas. Somilhares de vtimas da imprudncia. Mortos e feridos queengrossam melanclica lista, ceifando vidas de inocentes, comprejuzos irreparveis de ordem emocional e mesmo para oEstado3.

    Os fatores so muitos. Falta de fiscalizao, pavimento ruim (frutotambm da corrupo e da m qualidade do material empregado),rodovias e ruas mal sinalizadas, motoristas inabilitados emprofuso, veculos sem condies de trfego (de novo a corrupoajuda), imprudncia e irresponsabilidade de condutores,combinao mortal de lcool e direo e, por fim, confiana na

    2Anurio Brasileiro de Segurana Pblica. Ano 8. 2014. Frum Brasileiro de Segurana Pblica.3 PINTO, Lucia Bocardo Batista; PINTO, Ronaldo Batista. Trnsito. In: CUNHA, Rogrio Sanches;GOMES, Luiz Flvio. Legislao criminal especial. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 967.

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    impunidade, facilitada por leis ruins, doutrina conivente e umajurisprudncia vacilante4.

    Nesse sentido, o legislador ordinrio sentiu a necessidade de

    aperfeioar o Cdigo de Trnsito Brasileiro com vistas a dar uma resposta adequada

    aos anseios e reclames da sociedade, e promover efetividade ao comando inserido no

    art. 1, 2 do CTB, segundo o qual o trnsito, em condies seguras, um direito de

    todos. Obviamente sem esquecer que o motorista deve conduzir o veculo com ateno

    e cuidados indispensveis segurana do trnsito (art. 28 do CTB). Afinal, a segurana

    dos cidados tutelada pela Constituio logo no art. 5, caput, o que abrange a tutela

    da incolumidade pblica no trnsito5. H evidente interesse estatal no funcionamento do

    sistema virio e na observncia dos direitos dos usurios, garantindo-lhes segurana eestabelecendo um forte vnculo entre trnsito e cidadania.

    Nessa linha foi editada a Lei 12.971/14, que altera a Lei 9.503/97 com o

    desiderato de contribuir para a segurana no trnsito e assegurar punies severas

    queles que praticam crimes na direo de veculo automotor6.

    A Lei 12.971/14, editada em 09/05/2014, publicada em 12/05/2014 e em

    vigor desde 01/11/2014, promoveu alteraes no CTB, tanto na parte administrativa

    quanto penal da Lei 9.503/97. Alterou os arts. 173, 174, 175, 191, 202, 203, 292, 302,

    303, 306 e 308 do Cdigo de Trnsito Brasileiro, reforando o rigor das sanes por

    infraes administrativas e crimes de trnsito, em especial aqueles relativos a corridas,

    competies, manobras e ultrapassagens perigosas, embriaguez e uso de drogas,

    geradores ou no de leso corporal e morte.

    O presente artigo se limitar anlise dos dispositivos penais do CTB

    modificados pela recente Lei. Isso no impede de frisar que as modificaes na parte

    administrativa da norma consistiram em elevar os valores das penalidades pecunirias

    para infraes administrativas de trnsito envolvendo corridas, competies e manobras

    4ARAS, Vladimir. A Lei do Racha e a rebimboca da parafuseta. Blog do Vlad. 2014. Disponvel em:. Acessoem: 15 out. 2014.5JESUS, Damsio de. Crimes de trnsito. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 5.6 Justificativa do Projeto de Lei da Cmara dos Deputados 2.592/07 (com numerao 26/2013 noSenado), que foi convertido na Lei 12.971/14.

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    perigosas realizadas em vias pblicas (arts. 173, 174 e 175 do CTB), alm de

    ultrapassagens perigosas (arts. 191 e 203 da Lei 9.503/97).

    Na parte penal do Cdigo de Trnsito Brasileiro, significativas

    alteraes foram produzidas nos delitos de trnsito, especialmente no homicdioculposo de trnsito e na disputa automobilstica no autorizada, inclusive por intermdio

    da criao de qualificadoras.

    A iniciativa legislativa em se conferir um tratamento mais rigoroso para

    situaes em que a irresponsabilidade no trnsito ofende a integridade fsica e a vida

    de outrem merece aplausos. Cumpre analisar pormenorizadamente o modo com que o

    legislador se livrou dessa incumbncia, desafio que constitui o desiderato deste ensaio.

    2. TCNICA LEGISLATIVA E LEI PENAL NO TEMPO

    Antes de examinar as questes de cunho material, tarefa que ser

    desenvolvida a seguir, fundamental pontuar que a recente Lei 12.971/14 pecou na

    forma ao desrespeitar as prescries da correta tcnica legislativa. Tais regras esto

    catalogadas na Lei Complementar 95/98, que trata da elaborao, redao, alterao e

    consolidao das leis. Dispe o art. 8 do referido diploma legislativo:

    Art. 8 A vigncia da lei ser indicada de forma expressa e de modo acontemplar prazo razovel para que dela se tenha amplo conhecimento,reservada a clusula "entra em vigor na data de sua publicao" para as leis depequena repercusso.(...) 2 As leis que estabeleam perodo de vacncia devero utilizar a clusulaesta lei entra em vigor aps decorridos (o nmero de) dias de sua publicaooficial. (Includo pela Lei Complementar n 107, de 26.4.2001)

    A vacatio legis prevista no artigo 2 da Lei 12.971/14 foi inusitada ao

    estabelecer que a Lei entraria em vigor no 1 dia til do 6 ms aps a sua publicao.

    Nota-se o evidente descompasso dessa prescrio com as orientaes emolduradas na

    Lei Complementar 95/98.

    Noutro giro, convm destacar que a Lei alterou o CTB inovando com

    mudanas benficas ao agente. E, nesse ponto, sabe-se que a lei penal posterior

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    benfica retroage para beneficiar o ru, segundo o princpio da retroatividade da lex

    mitior(art. 2, pargrafo nico do CP).

    Pois bem. no debate sobre a lei penal no tempo, discute-se se a lei

    aplica-se antes mesmo de entrar em vigor, isto , se incide a lex mitior durante a vacatio

    legis.

    Parte dos estudiosos entendem que se aplica a lei benfica mesmo

    durante a vacatio legis,pois no deixa de ser lei posterior, devendo, pois, ser aplicada

    desde logo, alm do fato de a vacatio legisexistir para favorecer pessoas, no podendo

    o instituto ocasionar efeito oposto, ou seja, gerar prejuzo7.

    De outro lado, percentual dos juristas sustentam que no se aplica a lei

    benfica durante a vacatio legis, pois a lei nova ainda no vige nesse perodo, estando

    as relaes sociais sob a regncia da lei antiga8. O Supremo Tribunal Federal9 j se

    debruou sobre o tema, prevalecendo essa corrente que nega vigncia norma

    durante sua vacatio legis, mesmo que benfica ao ru. Acertada essa posio, a nosso

    ver, pois permitir vigncia a uma norma que no existe no mundo jurdico consistiria em

    excrescncia que fere as regras bsicas de introduo ao estudo do direito.

    3. ALTERAES LEGISLATIVAS

    3.1. HOMICDIO CULPOSO DE TRNSITO

    No tocante ao delito de homicdio culposo praticado na direo de

    veculo automotor, inexistiu modificao na forma simples do delito, hospedada no

    caput do artigo 302 do CTB, tendo sido mantidos a conduta tpica e a sano penal

    correspondente. Ou seja, continuaram iguais os preceitos primrio e secundrio.

    Confira o texto legal:Art. 302. Praticar homicdio culposo na direo de veculo automotor:

    7 COSTA JNIOR, Paulo Jos da. Comentrios ao Cdigo Penal. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 6;HUNGRIA, Nelson. Comentrios ao Cdigo Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1980;CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Vacatio Legis: lei penal inconstitucional. Boletim do Instituto Brasileirode Cincias Criminais. So Paulo, n. 35, p. 16, nov. 1995.8BARROS, Francisco Dirceu de. Direito Penalparte geral. Rio de Janeiro: Campus Jurdico. 2014, p.9.9STF, Inq. 1.879-DF e RTJ 190/851.

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    Penas - deteno, de dois a quatro anos, e suspenso ou proibio de se obtera permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor.

    O legislador perdeu mais uma oportunidade de adequar a redao do

    tipo penal, que viola o princpio da taxatividade10 ao se valer da frmula praticar

    homicdio culposo. Isso remete o intrprete necessariamente ao art. 121 do CP para

    identificar a conduta vedada (matar algum, de forma culposa), criando verdadeiro tipo

    penal remetido.

    As causas de aumento de pena tampouco foram alteradas, tendo sido

    deslocadas do antigo pargrafo nico para o 1, a fim de abrir espao para a inovao

    contida no 2. Veja que a redao persiste a mesma:

    Art. 302. (...)1. No homicdio culposo cometido na direo de veculo automotor, a pena aumentada de 1/3 (um tero) metade, se o agente:I - no possuir Permisso para Dirigir ou Carteira de Habilitao;II - pratic-lo em faixa de pedestres ou na calada;III - deixar de prestar socorro, quando possvel faz-lo sem risco pessoal, vtima do acidente;IV - no exerccio de sua profisso ou atividade, estiver conduzindo veculo detransporte de passageiros.

    A Lei 12.971/14 criou uma modalidade qualificada no 2 para os casos

    em que o agente conduz veculo automotor com capacidade psicomotora alterada em

    razo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa que determine

    dependncia, ou participa, em via, de corrida, disputa ou competio automobilstica ou

    ainda de exibio ou demonstrao de percia em manobra de veculo automotor, no

    autorizada pela autoridade competente. Perceba:

    Art. 302. (...) 2 Se o agente conduz veculo automotor com capacidade psicomotoraalterada em razo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa quedetermine dependncia ou participa, em via, de corrida, disputa ou competioautomobilstica ou ainda de exibio ou demonstrao de percia em manobra

    de veculo automotor, no autorizada pela autoridade competente:Penas - recluso, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspenso ou proibio de seobter apermisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor.

    A disposio topogrfica das majorantes em relao qualificadora

    recebeu crticas doutrinrias:

    10NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. So Paulo: Revistados Tribunais, 2010, p. 1243

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    Se no bastasse tal absurdo, alm disso, a situao topogrfica das causas de aumentode pena, que esto previstas no 1, somente tero aplicao ao caput do art. 302 doCdigo de Trnsito Brasileiro, tal como acontece, por exemplo, com o raciocniocorrespondente majorante relativa ao repouso norturno, elencada no 1 do art. 155 doCdigo Penal, que somente se aplica ao furto simples, previsto no caput do mesmoartigo. Dessa forma, se um motorista que dirigia com capacidade psicomotora alterada

    em razo da influncia de lcool ou outra substncia psicoativa que determinedependncia, vier a atropelar algum quando estava na conduo de veculo detransporte de passageiros, por exemplo, somente responder pelo 2 do mencionadoartigo, sem a aplicao da majorante apontada na parte final do inciso IV, do 1 do art.302 j referido. Portanto, um comportamento mais reprovvel, sofrer um juzo menor dereprovao, j que o 1 no poder ser aplicado s hipteses do 211.

    Registre-se, desde logo, que a lamentvel redao do dispositivo no

    mencionou o resultado morte. O legislador deveria ter iniciado a escrita da norma penal

    com a forma simples do delito, acrescentando em seguida a circunstncia qualificadora.

    Poderia ter pensado em algo como matar algum culposamente na direo de veculoautomotor, estando o agente com capacidade psicomotora alterada ou participando de

    disputa ou competio automobilstica. Todavia, limitou-se a citar a particularidade que

    qualifica o crime.

    A correo do equvoco legislativo deve ser feito pelo operador do

    Direito, que precisa interpretar a qualificadora em conjunto com a forma simples, sob

    pena de aceitarmos o absurdo de termos um delito autnomo no 2 do art. 302 do

    CTB, independente do caput, e ainda por cima crime de perigo, contrapondo-se ao

    crime de dano da cabea do artigo.

    De fato o condutor homicida que se encontra sob efeito de lcool ou

    outra substncia entorpecente, ou que esteja disputando racha, merece uma

    reprimenda mais severa em razo do elevado desvalor de sua conduta e do resultado

    gerado, desprezando a necessidade de um mnimo de segurana viria e ignorando a

    exigncia de paz no trnsito.

    Todavia, em vez de estabelecer um patamar de pena superior ao crime

    em sua forma simples (2 a 4 anos), o legislador limitou-se a alterar a modalidade depena privativa de liberdade de deteno para recluso. dizer, trata-se de forma

    11 GRECO, Rogrio. Os absurdos da Lei n 12.971, de 9 de maio de 2014. 2014. Disponvel em:. Acesso em:17 out. 2014.

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    qualificada de qualidade de pena, e no de quantidade de pena, em verdadeira

    inovao na seara penal12.

    Ora, apenar o homicdio culposo de trnsito qualificado com a mesma

    sano penal da modalidade simples fere as mais comezinhas regras de bom senso.Fcil reconhecer que, nesse particular, houve uma flagrante violao ao postulado da

    proporcionalidade, no seu aspecto de proibio de proteo deficiente:

    Como decorrncia lgica da funo de imperativo de tutela que colore osdireitos fundamentais, avulta a necessidade de que uma tal proteo h de serealizar de modo a satisfazer exigncias mnimas de tutela.Afinal, como pontuaCanaris, um dever de tomar medidas ineficazes no teria qualquer sentido.Entra em questo, aqui, a proibio de proteo deficiente (Untermassverbot),categoria que encerra uma aptido operacional que permite ao intrpretedeterminar se um ato estatal eventualmente retratado em uma omisso, totalou parcialvulnera um direito fundamental13.

    Parece claro que a mudana no atingiu a finalidade declarada dos

    autores do projeto. Como se sabe, a teor do art. 33 do CP, a diferena entre a deteno

    e recluso limita-se determinao do regime inicial do cumprimento de pena. Esse

    detalhe perde relevncia ao considerarmos que o condenado no reincidente cuja pena

    seja igual ou inferior a 4 anos poder desde o incio cumpri-la em regime aberto (art. 33,

    2, c do CP). O homicida culposo de trnsito s seria condenado a regime diferente do

    aberto no caso de ser reincidente, o que bastante incomum em crimes de trnsito,considerando que se trata de uma espcie de criminalidade episdica na vida das

    pessoas14.

    Ademais, a previso de pena de recluso no impede que o juiz

    promova a substituio por penas restritivas de direitos, que pode ocorrer

    independentemente da quantidade da pena nos crimes culposos (art. 44, I, do CP).

    Esse laxismo penal pontual s contribuir para acirrar ainda mais a

    discusso sobre o dolo eventual e culpa consciente no homicdio culposo de trnsito

    12 SILVA, Marcelo Rodrigues da. Comentrios s inovaes relativas aos crimes de trnsito - Lei12.971/14. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4010. Disponvel em: .

    Acesso em: 18 out.. 2014.13FELDENS, Luciano. Deveres de proteo penal na perspectiva dos tribunais internacionais dedireitos humanos.Direitos fundamentais e Justia, n. 1, out./dez. 2007, p. 222.14 CAVALCANTE, Mrcio Andr Lopes. Comentrios Lei 12.971/2014, que alterou o Cdigo deTrnsito Brasileiro. Dizer o Direito. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 16out. 2014.

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    praticado por condutor embriagado ou participante de racha. J h quem diga que o

    recm-nascido 2 do art. 302 do CTB afasta a aplicao do dolo eventual e permite a

    reviso criminal daqueles condenados por homicdio com dolo alternativo15. Ou seja,

    produzir efeito contrrio ao apregoado pelos parlamentares nas discusses legislativase anunciado populao em geral.

    Para alvio da comunidade jurdica, a Lei no incluiu dispositivo

    semelhante no crime de leso corporal culposa (art. 303 do CTB), que permanece com

    as majorantes do homicdio culposo de trnsito, conforme preconiza o pargrafo nico

    do dispositivo.

    Outro problema surge ao se cotejar o art. 302, 2 com o art. 308, 2

    do CTB, tambm novidade legislativa promovida pela Lei 12.971/14. A dificuldadeaparece porque tanto a qualificadora do homicdio culposo de trnsito quanto a

    qualificadora da disputa automobilstica no autorizada tratam da mesma situao

    ftica, qual seja, racha doloso gerador de morte culposa. O fato de o legislador ter

    catalogado duplamente o mesmo fato, com consequncias jurdicas distintas, fez

    nascer estranha antinomia que ser destrinchada na parte deste artigo destinada a

    analisar o delito de disputa automobilstica no autorizada.

    No que concerne qualificadora decorrente de o condutor se

    apresentar embriagado ou sob efeito de outra droga, tal previso tpica acarreta

    reflexos na discusso acerca do concurso de crimes entre homicdio culposo de trnsito

    (art. 302 do CTB) e embriaguez ao volante (art. 306 do CTB).

    Antes dessa alterao legislativa, a conduta do motorista brio que

    causava morte culposa poderia ser encaixada no concurso material ou formal entre

    homicdio culposo de trnsito e embriaguez ao volante. Essa possibilidade foi aberta

    quando a Lei 11.705/08 revogou a majorante de homicdio praticado por condutor

    embriagado (art. 302, 1, V), permitindo o concurso de crimes ante a inexistncia decausa de aumento de pena especfica. Entretanto, parcela considervel da doutrina e

    jurisprudncia repelia o concurso de crimes, em razo da absoro do crime de perigo

    pelo crime de dano. Segundo esse entendimento, em razo do princpio da

    15 GRECO, Rogrio. Os absurdos da Lei n 12.971, de 9 de maio de 2014. 2014. Disponvel em:. Acesso em:17 out. 2014.

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    subsidiariedade, no se admite a punio de crime de perigo, existente para evitar a

    concretizao do delito de dano, quando o dano j se efetivou16.

    Essa contenda perdeu fora agora que novamente o legislador torna

    absolutamente invivel a incidncia do concurso de crimes, uma vez que a embriaguezqualifica o delito de homicdio culposo de trnsito e impede a incidncia de concurso de

    crimes entre os arts. 302 e 306 do CTB, sob pena de bis in idem. Considerar a

    ebriedade para qualificar o homicdio culposo de trnsito e ao mesmo tempo para

    caracterizar a embriaguez ao volante equivaleria a punir o agente 2 vezes pelo mesmo

    fato, o que no se admite nas Cincias Criminais.

    Diga-se, por oportuno, que nada foi alterado quanto hiptese de

    liberdade provisria sem fiana estampada no art. 301 da Lei 9.503/97. Logo, aocondutor de veculo, nos casos de acidentes de trnsito de que resulte vtima, continua

    no se impondo a priso em flagrante, nem se exigindo fiana, se prestar pronto e

    integral socorro quela. Detido o motorista em situao flagrancial do art. 302 do CPP,

    o delegado de polcia deve liber-lo, deixando de submet-lo ao crcere.

    3.2. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE

    O delito de embriaguez ao volante tem sido objeto, num passado

    recente, de inmeras transformaes legislativas, tendo sido sua ao nuclear alterada

    inicialmente pela Lei 11.705/08 e em seguida pela Lei 12.760/12 (Lei Seca). Profunda

    celeuma foi gerada na doutrina e jurisprudncia acerca da classificao do referido

    injusto penal como crime de perigo concreto ou de perigo abstrato, bem como sobre os

    meios de prova aptos a comprovar a ocorrncia da infrao penal.

    A figura tpica demanda que o motorista conduza veculo automotor

    com capacidade psicomotora alterada em razo da influncia de lcool ou de outrasubstncia psicoativa que determine dependncia (art. 306 do CTB). Atente-se novo ao

    texto legal, ligeiramente modificado pela Lei 12.760/12:

    16Por todos: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. So Paulo:Revista dos Tribunais, 2010, p. 1253.

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    Art. 306. Conduzir veculo automotor com capacidade psicomotora alterada emrazo da influncia de lcool ou de outra substncia psicoativa que determinedependncia:Penas - deteno, de seis meses a trs anos, multa e suspenso ou proibiode se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculo automotor.

    1. As condutas previstas no caput sero constatadas por:I - concentrao igual ou superior a 6 decigramas de lcool por litro de sangueou igual ou superior a 0,3 miligrama de lcool por litro de ar alveolar; ouII - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alterao dacapacidade psicomotora.

    Nenhuma alterao foi realizada no tipo objetivo, persistindo o delito

    como crime de perigo abstrato, uma vez que o ncleo do tipo no traz nenhuma

    expresso indicativa da necessidade de perigo concreto para que o crime se

    aperfeioe, como por exemplo expor a dano potencial a incolumidade alheia. Portanto,

    continua a celeuma acerca da constitucionalidade dessa modalidade delitiva.

    Conquanto parcela dos juristas sustentem que para a tipificao de algum crime

    indispensvel o perigo concreto de dano a bem jurdico penalmente protegido 17, a

    doutrina majoritria18e o prprio Supremo Tribunal Federal19 j cimentaram a questo

    admitindo tal espcie de crime, como legtima e excepcional estratgia de defesa do

    bem jurdico contra agresses em seu estgio ainda embrionrio. Baseado em dados

    empricos, o legislador seleciona grupos ou classes de aes que geralmente levam

    consigo o indesejado perigo ao bem jurdico. A tipificao de condutas que geramperigo em abstrato acaba sendo a medida mais eficaz para a proteo de bens jurdico-

    penais supraindividuais. Logo, pode o Parlamento definir quais as medidas mais

    adequadas e necessrias para a efetiva proteo de determinado bem jurdico,

    permitindo-lhe escolher espcies de tipificao prprias de um direito penal preventivo.

    Apenas a atividade legislativa que transborde os limites da proporcionalidade poder

    ser tachada de inconstitucional.

    No que concerne prova da materialidade, a ebriedade pode ser

    evidenciada por meio da concentrao de lcool no organismo. Essa demonstrao

    mais comumente feita com o uso do etilmetro (conhecido como bafmetro), aparelho

    17Por todos: BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 27-28.18Representando todos: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. v. 1. So Paulo: Saraiva, 2009, p.24.19STF, HC 104410, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 27/03/2012.

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    que mede o teor alcolico no ar alveolar. Porm, a prova no precisa ser feita

    exclusivamente dessa forma, aceitando-se tambm a constatao de sinais indicadores

    da embriaguez, como exame clnico, percia (no sangue e na urina), vdeo e prova

    testemunhal (art. 306, 2 e 3 do CTB e Resoluo CONTRAN 432/13).Como o crime se perfaz no apenas pelo uso de lcool associado

    direo, mas tambm pela conduo de veculo automotor sob efeito de drogas, o

    exame toxicolgico possui igual relevncia como fonte de prova para essa espcie

    delitiva. Para espancar eventuais dvidas de que se trata de prova admissvel, foi

    includo o termo toxicolgicono 2 do dispositivo legal. O legislador deixou claro os

    meios de prova caso o investigado consinta em participar ativamente da produo

    probatria, sem que isso signifique desprezo pela garantia contra a autoincriminao(nemo tenetur se detegere). Inclusive pois so vrios os meios de prova aptos a

    comprovar a materialidade delitiva, que independem de participao do suspeito. Isto ,

    o exame pericial no o nico hbil a comprovar a materialidade delitiva.

    Alm disso, convm negritar que a discusso sobre a suposta

    insuficincia do teste de bafmetro20perdeu sentido quando a ao nuclear deixou de

    exigir necessariamente certa quantidade de lcool por litro de sangue para que o crime

    se consumasse. A exigncia legal atual que o motorista esteja com a capacidade

    psicomotora alterada, seja qual for o grau etlico que apresente, inclusive porque o

    organismo de cada ser humano responde de forma distinta intoxicao pelo lcool, a

    depender de fatores como gentica, sexo, idade, altura e peso.

    3.3. DISPUTA AUTOMOBILSTICA NO AUTORIZADA

    Quanto ao crime de disputa no autorizada em via pblica, mais

    conhecido como racha ou pega, houve alterao no elemento objetivo estampado noart. 308 do Cdigo de Trnsito Brasileiro.

    O crime consiste em participar, na direo de veculo automotor, em via

    pblica, de corrida, disputa ou competio automobilstica no autorizada pela

    20JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; FULLER, Paulo Henrique Aranda. Legislao penal especial.v. 1. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 228.

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    autoridade competente. O restante do tipo penal, que continha a expresso reveladora

    da necessidade de perigo desde que resulte dano potencial incolumidade pblica ou

    privada, foi substituda por frase diferente, porm de contedo jurdico semelhante

    gerando situao de risco incolumidade pblica ou privada.Analisemos:Art. 308. Participar, na direo de veculo automotor, em via pblica, de corrida,disputa ou competio automobilstica no autorizada pela autoridadecompetente, gerando situao de risco incolumidade pblica ou privada:Penas - deteno, de 6 (seis) meses a 3 (trs) anos, multa e suspenso ouproibio de se obter a permisso ou a habilitao para dirigir veculoautomotor.

    Ora, risco nada mais do que um dano potencial. Vale dizer, as

    expresses so sinnimas. Dano potencial incolumidade pblica e privada e risco

    incolumidade pblica ou privada significam a mesma coisa. O tipo objetivo continuaexigindo que o condutor, ao participar de racha, gere perigo coletividade, rebaixando

    o nvel da segurana viria. A corrente majoritria segue esse entendimento de que o

    art. 308 traduz crime de perigo concreto, exigindo a demonstrao da potencialidade

    lesiva21. Nessa mesma linha o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de

    Justia22.

    Mesmo que remota, essa ameaa contra terceiros deve ser

    comprovada23, o que no significa que se deva indicar que uma vtima perfeitamente

    identificada tenha suportado algum risco, sob pena de impunidade, j que essa estirpe

    de crime marcada quase sempre pela clandestinidade ou cumplicidade dos

    expectadores24. Alis, da prpria natureza dos pegas que haja possibilidade de

    atentado segurana das pessoas, porquanto envolvem necessariamente alta

    velocidade, na maioria das vezes acompanhada de lcool e desrespeito s normas

    bsicas de circulao e conduta. Esse tipo de delito cria risco para terceiros

    indeterminados, j que a direo anormal do motorista capaz de atingir o interesse

    21PIRES, Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trnsito na Lei 9.503/97.Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 234; LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Crimes de Trnsito. So Paulo:Revista dos Tribunais, 1998, p. 231. MARCO, Renato. Crimes de Trnsito. So Paulo: Saraiva, 2011,p. 198; CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. v. 4. So Paulo: Saraiva, 2012, p. 350.22STF, HC 101698, Rel. Min. Luiz Fux, DP 30/11/2011; STJ, Resp 585.345, Rel. Min. Felix Fischer, DJU16/02/2004.23 PINTO, Lucia Bocardo Batista; PINTO, Ronaldo Batista. Trnsito. In: CUNHA, Rogrio CUNHA,Rogrio Sanches; GOMES, Luiz Flvio (Org). Legislao criminal especial. So Paulo: Revista dosTribunais, 2009, p. 1106.24JESUS, Damsio de. Crimes de trnsito. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 199.

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    jurdico de qualquer membro da coletividade que eventualmente esteja no raio de

    alcance do risco proibido.

    Outra parte dos estudiosos sustenta que o crime de perigo abstrato,

    no se demandando a comprovao do risco produzido, sendo dispensvel a prova daprobabilidade de ocorrncia do dano.

    A mudana de redao do tipo penal no obriga nenhuma das

    correntes a mudar de posicionamento, pois consistem em termos com equivalncia

    semntica. No entanto, a alterao pode ter alguma serventia para jogar uma p de cal

    sobre a alegao de alguns autores que afirmavam que o crime era de dano25.

    Ademais, h quem diga que o crime era de perigo abstrato e passou a ser de perigo

    concreto

    26

    .Vale destacar que foi ofertada durante o processo legislativo a Emenda

    02-CCJ com o desiderato de deixar claro que se tratava de crime de perigo abstrato,

    tendo sido rejeitada a proposio, o que reforaria a concluso de que a natureza do

    delito persiste sendo de crime de perigo concreto at mesmo por opo do legislador27.

    Tambm merece ser sublinhado que se cuida de crime culposo que, se

    convolado em leso corporal ou homicdio, gera crimes dos artigos 129 ou 121 do

    Cdigo Penal, em sua forma dolosa, porquanto seria um contrassenso transmudar um

    delito doloso em culposo, em razo do advento de um resultado mais grave 28.

    Outra alterao legislativa consistiu na majorao da pena em abstrato

    mxima, que saltou de 2 para 3 anos. Isso significa dizer que o crime de racha no mais

    se enquadra como infrao de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95), o que

    afasta sua apurao do Juizado Especial Criminal, repelindo-se os institutos

    despenalizadores correspondentes. A iniciativa merece aplauso, j que a disputa

    25 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.971/14 e suas alteraes na parte penal do Cdigo deTrnsito Brasileiro: o pice da insanidade na legislao ptria. Jus Navigandi. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 27 nov. 2014.26 GRECO, Rogrio. Os absurdos da Lei n 12.971, de 9 de maio de 2014. 2014. Disponvel em:. Acesso em:17 out. 2014.27 CAVALCANTE, Mrcio Andr Lopes. Comentrios Lei 12.971/2014, que alterou o Cdigo deTrnsito Brasileiro. Dizer o Direito. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 16out. 2014.28MARRONE, Jos Marcos. Delitos de trnsito. So Paulo: Atlas, 1998, p. 76.

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    veicular em via pblica traduz comportamento de considervel reprovabilidade, que no

    raras vezes provoca leses e mortes de inocentes, e por isso possui vultoso potencial

    ofensivo.

    A Lei 12.971/14 prosseguiu com mudanas no art. 308 ao incluir 2modalidades qualificadas de racha, consistentes em situaes nas quais ocorre o

    resultado leso corporal grave ou morte:

    Art. 308. (,,,) 1o Se da prtica do crime previsto no caput resultar leso corporal denatureza grave, e as circunstncias demonstrarem que o agente no quis oresultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade derecluso, de 3 (trs) a 6 (seis) anos, sem prejuzo das outras penas previstasneste artigo. 2o Se da prtica do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstnciasdemonstrarem que o agente no quis o resultado nem assumiu o risco de

    produzi-lo, a pena privativa de liberdade de recluso de 5 (cinco) a 10 (dez)anos, sem prejuzo das outras penas previstas neste artigo.

    Quando empregou a redao as circunstncias demonstrarem que o

    agente no quis o resultado (dolo direto) e nem assumiu o risco de produzi-lo (dolo

    eventual), o legislador deixou claro que esses resultados mais graves advm somente

    de culpa (inconsciente ou consciente). O que bvio, na medida em que todo crime de

    perigo, com resultado qualificador danoso, encaixa-se na figura preterdolosa (dolo de

    perigo na primeira conduta, seguido de culpa no evento danoso).No custa lembrar que enquanto na culpa consciente o agente, embora

    prevendo o resultado como possvel, no o aceita nem consente, no dolo eventual o

    autor prev o resultado como provvel e aceita ou consente sua supervenincia29. J

    no dolo eventual existe um conjunto de motivos que leva o agente a preferir

    egoisticamente a realizao do crime, na culpa consciente o autor confia que o

    resultado no se materializar.

    Com isso, obviamente no pretendeu (e nem poderia) a nova lei impedir

    de forma absoluta a incidncia de dolo eventual em situaes envolvendo racha,

    possibilidade j sedimentada pela Corte Superior30. A diferena entre o dolo eventual e

    a culpa consciente reside no elemento volitivo, a ser constatado pelas circunstncias

    objetivas do caso concreto, ante a impossibilidade de penetrar-se na mente do agente.

    29FRAGOSO, Heleno Claudio. Lies de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 173.30STF, HC 101.698, Rel. Min. Luiz Fux, DP 18/10/2011.

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    Nessa esteira, ao lanar-se em prticas de expressiva periculosidade, em via pblica,

    mediante alta velocidade, perfeitamente possvel que o agente tenha consentido que

    o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual (art. 18, I do CP). Por isso que a

    maioria da doutrina admite tranquilamente a incidncia do dolo eventual em crimes detrnsito31.

    As inmeras campanhas educativas realizadas, mostrando o perigo da

    direo perigosa e manifestamente ousada, so suficientes para esclarecer os

    motoristas da vedao legal de certas condutas, tais como o racha e a direo em alta

    velocidade sob embriaguez. Se, apesar disso, continua condutor a agir dessa maneira

    manifestamente arriscada, demonstra seu desapego incolumidade alheia, podendo

    perfeitamente responder por delito doloso. O trfego configura atividade rotineira derisco permitido. O racha e a embriaguez ao volante, todavia, consubstanciam-se em

    anomalias extremas que escapam dos limites prprios da atividade regulamentada32.

    Entretanto, o simples fato de a Lei 12.971/14 colocar combustvel nessa

    discusso j representa um retrocesso:

    Desse modo, o 2 inserido no art. 308 do CTB no representa um avano realna punio do condutor que causa a morte de algum durante um racha. Issoporque a jurisprudncia estava caminhando para considerar, na grande maioriados casos, a conduta como sendo homicdio doloso (dolo eventual).

    Agora, o novo 2 far reacender a discusso ao dizer que o homicdio ocorrido

    durante um racha pode ser praticado com dolo ou com culpa. Essa inovaorecrudesce os argumentos de quem defende se tratar de hiptese de culpaconsciente33.

    Dessarte, h possibilidade de concurso de crimes entre o art. 308,

    caput do CTB e o art. 121 ou art. 129 do CP, quando o motorista atuar com dolo direto

    ou eventual quanto ao resultado leso corporal ou morte.

    No que se refere primeira qualificadora, situao na qual do racha

    decorre leso corporal grave, a doutrina alerta:

    31 MARRONE, Jos Marcos. Delitos de trnsito. So Paulo: Atlas, 1998, p. 76; SANTOS, AntnioBenedicto dos. Delitos de trnsito: culpa consciente ou dolo eventual? RT, 715/409; CAVALCANTE,Mrcio Andr Lopes. Comentrios Lei 12.971/2014, que alterou o Cdigo de Trnsito Brasileiro .Dizer o Direito. 2014. Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2014.32STF, Rel. Min. Celso de Mello, RT 733/478; STJ, Rel. Min. Felix Fischer, RT 810/573.33 CAVALCANTE, Mrcio Andr Lopes. Comentrios Lei 12.971/2014, que alterou o Cdigo deTrnsito Brasileiro. Dizer o Direito. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 16out. 2014

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    Quanto figura do art. 308, 1o, o erro igualmente lamentvel. O crime deperigo, com resultado leso grave, se aplicado, atingiria pena mais grave(recluso, de trs a seis anos) do que o prprio homicdio culposo, cometidodurante racha (recluso, de dois a quatro anos). Pelo princpio daproporcionalidade, visivelmente inconstitucional e inaplicvel o art. 308, 1o,

    desta Lei. Diante disso, quem praticar racha (crime de perigo) e lesionaralgum, responde pela figura do art. 303 (leso culposa)34.

    preciso destacar que quando a lei menciona a expresso leses

    graves est abrangendo as doutrinariamente chamadas leses graves e leses

    gravssimas, de acordo com o os crimes albergados no art. 129, 1 e 2 do CP.

    Tambm deve ser grifado que a leso corporal culposa causada pelo

    disputante no dever ser considerada 2 vezes em prejuzo do ru. dizer, o condutor

    que disputa o pega e fere gravemente uma vtima, por impercia, imprudncia ou

    negligncia, responder apenas pelo racha qualificado (art. 308, 1 do CTB), no

    havendo que se falar em concurso de crimes com a leso corporal culposa de trnsito

    (art. 303 do CTB). A nica possibilidade de concurso de crimes ser, como dito, com a

    leso corporal tipificada no art. 129 do CP, quando o agente atuar com dolo direto ou

    eventual quanto a esse resultado lesivo.

    Sobre a consequncia jurdica do participante de racha que provoca

    leso corporal culposa leve, 2 formas de pensar so possveis: responde o condutor por

    leso corporal culposa de trnsito (art. 302 do CTB) porque o crime de dano absorve o

    crime de perigo; ou responde por racha (art. 308 do CTB) pois tem a pena maior e no

    pode ser absorvido por delito menos grave, em respeito ao princpio da

    proporcionalidade.

    No caso do crime de leso corporal culposa de trnsito, persiste

    inexistindo diferena a respeito da gravidade da leso, o que no significa que o grau

    da ofensa ser desprezado, uma vez que ser considerado como circunstncia judicial

    na dosimetria da pena (art. 59 do CP).Nesse ponto, cabe ingressar numa contradio criada pelo legislador. O

    racha qualificado, estampado no art. 308, 2 do CTB, consiste na participao dolosa

    34NUCCI, Guilherme de Souza. A inaplicabilidade da nova Lei de Trnsito (Lei 12.971/2014) .2014.Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2014.

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    intensa da conduta de quem ocasiona morte, ainda que culposa, o que, alis, seria a

    mens legis.

    Outra parcela da doutrina alega que a melhor sada interpretar a lei

    favoravelmente ao ru. Assim, ao condutor participante de racha que causa a morte deoutrem deve ser imposta a penalidade do homicdio culposo de trnsito qualificado,

    considerando que a pena do art. 302, 2 mais branda que a do art. 308, 2 do

    CTB37.

    Parte dos estudiosos tambm advoga a incidncia do art. 302, 2 do

    Cdigo de Trnsito Brasileiro, embora sob argumento diverso do favor rei, qual seja, o

    de que o crime de dano sempre absorve o perigo 38.

    Ainda dentre os defensores da aplicao do art. 302, 2 do CTB, hque sugira uma alternativa para no tornar letra morta o art. 308, 2 da Lei:

    Considerando que no se pode negar vigncia (transformar em letra morta) o 2 do art. 308 do CTB e tendo em vista que a interpretao entre osdispositivos de uma mesma lei deve ser sistmica, ser possvel construir aseguinte distino: Se o condutor, durante o racha, causou a morte de algum agindo com culpaINCONSCIENTE: aplica-se o 2 do art. 302 do CTB; Se o condutor, durante o racha, causou a morte de algum agindo com culpaCONSCIENTE: aplica-se o 2 do art. 308 do CTB39.

    Pareceu razovel a interpretao sugerida, medida que ela buscapreservar o texto de lei, e em certa medida manter a integridade do sistema jurdico

    como um todo.

    3.4. QUADRO COMPARATIVO

    Expostas e examinadas as mudanas que a Lei 12.971/14 provocou no

    Cdigo de Trnsito Brasileiro, oportuno traar um quadro comparativo entre a antiga e a

    37 GOMES, Luiz Flvio. Nova lei de trnsito: barbeiragem e derrapagem do legislador (?). Atualidades do Direito. 2014. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2014.38NUCCI, Guilherme de Souza. A inaplicabilidade da nova Lei de Trnsito (Lei 12.971/2014) . 2014.Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2014.39 CAVALCANTE, Mrcio Andr Lopes. Comentrios Lei 12.971/2014, que alterou o Cdigo deTrnsito Brasileiro. Dizer o Direito. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 16out. 2014.

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    nova redao da Lei 9.503/97, a fim de se ter um panorama geral dessa legislao

    penal especial:

    Lei 9.503/97 (CTB) Lei 12.971/14Art. 302. Praticar homicdio culposo nadireo de veculo automotor:

    Art. 302. Praticar homicdio culposo nadireo de veculo automotor:

    Penas - deteno, de dois a quatro anos,e suspenso ou proibio de se obter apermisso ou a habilitao para dirigirveculo automotor.

    Penas - deteno, de dois a quatro anos,e suspenso ou proibio de se obter apermisso ou a habilitao para dirigirveculo automotor.

    Pargrafo nico. No homicdio culposocometido na direo de veculo automotor,a pena aumentada de um tero

    metade, se o agente:

    1 No homicdio culposo cometido nadireo de veculo automotor, a pena aumentada de 1/3 (um tero) metade, se

    o agente:I - no possuir Permisso para Dirigir ouCarteira de Habilitao;

    I - no possuir Permisso para Dirigir ouCarteira de Habilitao;

    II - pratic-lo em faixa de pedestres ou nacalada;

    II - pratic-lo em faixa de pedestres ou nacalada;

    III - deixar de prestar socorro, quandopossvel faz-lo sem risco pessoal, vtima do acidente;

    III - deixar de prestar socorro, quandopossvel faz-lo sem risco pessoal, vtima do acidente;

    IV - no exerccio de sua profisso ouatividade, estiver conduzindo veculo detransporte de passageiros.

    IV - no exerccio de sua profisso ouatividade, estiver conduzindo veculo detransporte de passageiros. 2 Se o agente conduz veculoautomotor com capacidadepsicomotora alterada em razo dainfluncia de lcool ou de outrasubstncia psicoativa que determinedependncia ou participa, em via, decorrida, disputa ou competioautomobilstica ou ainda de exibio oudemonstrao de percia em manobrade veculo automotor, no autorizadapela autoridade competente:Penas - recluso, de 2 (dois) a 4(quatro) anos, e suspenso ouproibio de se obter a permisso ou ahabilitao para dirigir veculoautomotor.

    Art. 303. Praticar leso corporal culposana direo de veculo automotor:

    Art. 303. Praticar leso corporal culposana direo de veculo automotor:

    Penas - deteno, de seis meses a dois Penas - deteno, de seis meses a dois

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    Lei 9.503/97 (CTB) Lei 12.971/14anos e suspenso ou proibio de seobter a permisso ou a habilitao paradirigir veculo automotor.

    anos e suspenso ou proibio de seobter a permisso ou a habilitao paradirigir veculo automotor.

    Pargrafo nico. Aumenta-se a pena deum tero metade, se ocorrer qualquerdas hipteses do pargrafo nico do artigoanterior.

    Pargrafo nico. Aumenta-se a pena de1/3 (um tero) metade, se ocorrerqualquer das hipteses do 1 do art.302.

    Art. 306. Conduzir veculo automotor comcapacidade psicomotora alterada emrazo da influncia de lcool ou de outrasubstncia psicoativa que determinedependncia:Penas - deteno, de seis meses a trsanos, multa e suspenso ou proibio de

    se obter a permisso ou a habilitao paradirigir veculo automotor.

    Art. 306. Conduzir veculo automotor comcapacidade psicomotora alterada emrazo da influncia de lcool ou de outrasubstncia psicoativa que determinedependncia:Penas - deteno, de seis meses a trsanos, multa e suspenso ou proibio de

    se obter a permisso ou a habilitao paradirigir veculo automotor.

    2 A verificao do disposto neste artigopoder ser obtida mediante teste dealcoolemia, exame clnico, percia, vdeo,prova testemunhal ou outros meios deprova em direito admitidos, observado odireito contraprova.

    2 A verificao do disposto neste artigopoder ser obtida mediante teste dealcoolemia ou toxicolgico, exameclnico, percia, vdeo, prova testemunhalou outros meios de prova em direitoadmitidos, observado o direito contraprova.

    3 O Contran dispor sobre aequivalncia entre os distintos testes dealcoolemia para efeito de caracterizaodo crime tipificado neste artigo.

    3 O Contran dispor sobre aequivalncia entre os distintos testes dealcoolemia ou toxicolgicos para efeitode caracterizao do crime tipificado nesteartigo.

    Art. 308. Participar, na direo de veculoautomotor, em via pblica, de corrida,disputa ou competio automobilstica noautorizada pela autoridade competente,desde que resulte dano potencial incolumidade pblica ou privada:

    Art. 308. Participar, na direo de veculoautomotor, em via pblica, de corrida,disputa ou competio automobilstica noautorizada pela autoridade competente,gerando situao de risco incolumidade pblica ou privada:

    Penas - deteno, de seis meses a dois

    anos, multa e suspenso ou proibio dese obter a permisso ou a habilitao paradirigir veculo automotor.

    Penas - deteno, de 6 (seis) meses a 3

    (trs) anos, multa e suspenso ouproibio de se obter a permisso ou ahabilitao para dirigir veculo automotor. 1 Se da prtica do crime previsto nocaput resultar leso corporal denatureza grave, e as circunstnciasdemonstrarem que o agente no quis oresultado nem assumiu o risco deproduzi-lo, a pena privativa de

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    Lei 9.503/97 (CTB) Lei 12.971/14liberdade de recluso, de 3 (trs) a 6(seis) anos, sem prejuzo das outraspenas previstas neste artigo.

    2 Se da prtica do crime previsto nocaput resultar morte, e ascircunstncias demonstrarem que oagente no quis o resultado nemassumiu o risco de produzi-lo, a penaprivativa de liberdade de recluso de5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuzodas outras penas previstas nesteartigo.

    FONTE: elaborado pelo autor

    4. LINHAS CONCLUSIVAS

    Do exposto, fcil perceber que ingressou no ordenamento jurdico

    brasileiro mais uma lei mal elaborada, que, editada a pretexto de diminuir os ndices de

    criminalidade e amenizar a guerra no trnsito, tem todo o potencial para gerar efeito

    contrrio.

    O legislador trocou os ps pelas mos e cometeu uma srie de

    equvocos ao tratar dos delitos de trnsito, especialmente das qualificadoras do

    homicdio culposo de trnsito e da disputa automobilstica no autorizada.

    O fato de a proposio ter tramitado na Cmara dos Deputados por

    cerca de 5 anos, todavia, no foi suficiente para que os parlamentares se atentassem

    s impropriedades nela contidas, aprovando uma espcie legislativa que causar

    enorme transtorno comunidade jurdica e populao em geral.

    incontestvel a importncia da legislao de trnsito no combate

    epidemia de mortes e leses causadas por agentes na direo de veculo automotor.Com propriedade ensina a doutrina que:

    O aumento da criminalidade no trnsito hoje um fato incontestvel. O veculotransformou-se em instrumento de vazo da agressividade, da prepotncia, dodesequilbrio emocional, que se extravasam na direo perigosa de veculos40.

    40BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 479.

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    No se discute a nobre inteno do legislador de manter determinado

    nvel de segurana no trnsito, municiando o operador do direito que lida com a

    persecuo penal, seja o delegado de polcia, o promotor de justia ou o juiz de direito,

    de instrumentos hbeis a preservar os bens jurdicos protegidos pelo Direito Penal. Aoprever crimes de dano e delitos de perigo, a legislao veda condutas lesivas

    segurana viria, que muitas vezes desembocam em agresses contra a incolumidade

    fsica e avida dos pedestres e condutores.

    Todavia, a forma como vem sendo reformada a legislao especial

    criminal de trnsito objeto de severas crticas da doutrina. O legislador tem agido com

    falta do imprescindvel rigor jurdico que se exige dos membros do Parlamento. A

    carncia de tcnica jurdica atingiu seu pice com a ora examinada Lei 12.971/14,criticada por praticamente todos os juristas que se debruaram sobre o tema:

    Parece que sua aprovao foi conduzida por um motorista embriagado einabilitado, que dirigia na contramo. (...) Como quer que seja, ainda h tempode acender os faris, retomar o volante, traar uma rota e corrigir a direo.Talvez dar marcha r. S ento veremos se a Lei do Racha pega41.

    Eis que, ento, no dia 1. de novembro de 2014 entra em vigor o texto completoda famigerada Lei 12.971/14, o que, infelizmente, nos obriga a tecer algunscomentrios acerca de seu teor, objetivando indicar suas monstruosidades etentando, de alguma forma (ainda que seja apelando para alguma magia) torn-la razoavelmente apreensvel e aplicvel. Desde logo se adverte que sua

    aplicabilidade e compreensibilidade somente sero possveis mediante orecorte de certas partes e seu solene arremesso de volta ao lixo das ideias,onde fuaram para trazer ao pblico essas disposies legais que seriam umaboa motivao para a abertura de um novo campo de estudo no Direito, qualseja, a Teratologia Jurdica42.

    Ns estamos loucos (eu talvez por causa do fuso horrio ou outra causa a serinvestigada) ou o legislador que fez uma tremenda barbeiragem? (...) Se abarbeiragem (e derrapagem) foi do legislador, vamos correr para corrigir o erro.O Brasil no merece mais uma polmica legislativa, geradora de enormeinsegurana43.

    41ARAS, Vladimir. A Lei do Racha e a rebimboca da parafuseta.Blog do Vlad. 2014. Disponvel em:. Acessoem: 15 out. 2014.42 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.971/14 e suas alteraes na parte penal do Cdigo deTrnsito Brasileiro: o pice da insanidade na legislao ptria.Jus Navigandi. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 27 nov. 2014.43GOMES, Luiz Flvio. Nova lei de trnsito: barbeiragem e derrapagem do legislador (?). Atualidadesdo Direito. 2014. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2014.

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    O que se est chamando ateno para o fato de que no se pode transmitirpara a sociedade a falsa mensagem de que a presente Lei n. 12.971/2014 veiocom o objetivo de aumentar a punio penal dos condutores que cometemcrimes de trnsito. Se essa foi a finalidade da Lei, ela se revelou frustrada44.

    Novamente o Cdigo de Trnsito Brasileiro alvo de outra trapalhadalegislativa. (...) Analisando reformas como a instituda pela Lei 12.971/2014,pergunto a mim mesmo: ser que existe algum que conhece Direito Penal noPoder Legislativo brasileiro? Com a resposta, o leitor (e, acima de tudo,eleitor)45.

    Conforme j exposto, salta aos olhos a existncia de erros grosseiros natcnica legislativa, os quais, alm de no suprirem antigas lacunas e pontosdivergentes, tais como a ausncia de reprimenda satisfatria para os delitos dehomicdio e de leso corporal culposos perpetrados por motoristasembriagados, criam mais imbrglios para serem dirimidos e contornados desdea etapa extrajudicial da persecuo penal, a partir dos atos e deliberaeslegais de polcia judiciria46.

    Destarte, mister se faz uma nova reforma na parte criminal do Cdigo

    de Trnsito Brasileiro para corrigir as falhas apontadas nesse estudo, de modo a evitar

    uma proteo deficiente dos bens jurdicos tutelados, tendo em vista o duplo aspecto do

    postulado da proporcionalidade, que se desmembra no apenas na proibio do

    excesso, como tambm na vedao da insuficincia47.

    Urge que o Poder Legislativo discuta novamente o tema para superar

    esta malfadada lei, que infelizmente j nasceu viciada em sua origem.

    44 CAVALCANTE, Mrcio Andr Lopes. Comentrios Lei 12.971/2014, que alterou o Cdigo deTrnsito Brasileiro. Dizer o Direito. 2014. Disponvel em:. Acesso em: 16out. 2014.45NUCCI, Guilherme de Souza. A inaplicabilidade da nova Lei de Trnsito (Lei 12.971/2014). 2014.Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2014.46MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; SANNINI NETO, Francisco. Lei Federal n 12.971/2014:mudanas e barbeiragens legislativas nos crimes de trnsito.Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n.3982, 2014. Disponvel em: . Acesso em: 17 out. 2014.47 STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princpio da proporcionalidade: da proibio de excesso(bermassverbot) proibio de proteo deficiente (untermassverbot) ou de como no h blindagemcontra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, v. 32, n. 97, marco/2005, p. 172-201.

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