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Page 1:  · Web viewEm todas as ordens jurídicas referidas, o percurso histórico do poder tradicional sofreu os fluxos e influxos resultantes dos momentos históricos de ruptura, continuidade

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

ANO LECTIVO 2014/2015

CURSO DE MESTRADO

DIREITOS AFRICANOS

Introdução

:: A actualidade e a relevância dogmática do estudo universitário do Pluralismo jurídico e o dos Direitos africanos

:: Importância do Direito tradicional em Africa

:: Razão de ordem

Contributos para uma dogmática do Pluralismo e Direito Africanos : Programa, conteúdos e métodos

:: Programa

:: Conteúdos

:: Métodos

.Perspectiva comparada do Direito em Africa

Carlos Feijó

Doutor em Direito Publico

Professor Catedrático /Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto

Professor Catedrático convidado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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:: Introdução

:: A actualidade e a relevância dogmática do estudo universitário do Direito consuetudinário

Varias Constitucionais Africanas , como por exemplo a Constituição da República de

Angola1 ou Constituição de 2010 conferem ao institucionalismo tradicional – à sua fonte

normativa, o Costume e às suas instituições de poder, as autoridades tradicionais – um lugar

de dignidade dentro de um pluralismo normativo já vigente ao nível da lei ordinária de forma

assistemática e esparsa. Ou seja, a nosso ver, os Estados africanos , através da Constituição

confirmaram e conferiram estabilidade normativa à realidade normativo-antropo-sociológica

das comunidades tradicionais, das suas fontes de Direito, das suas lideranças e demais

instituições.

Enquanto uma área do Direito , o Direito Tradicional tem merecido pouca atenção de uma

perspectiva de generalização e abstracção, i.e., do labor científico-jurídico, merecendo aqui e

ali abordagens sectoriais. O que não quer dizer que as questões que o mesmo suscita não

mereçam a atenção na teorização, interpretação e própria aplicação do Direito de origem

estadual, como foram exemplos, no caso de Angola, os casos criminais julgados pelo

Supremo Tribunal de Justiça em 2008 (v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Procs.

n.º 64 e 79).

Ora, se o Costume e o Direito Tradicional conseguiram encontrar o seu lugar no pináculo da

“pirâmide jurídica” do Estado (passe o positivismo da expressão), i.e., nas Constituições, não

podem as Escolas de Direito deixar de indagar o lugar do Costume nos curricula, na

formação, ou ainda que seja, na mera informação e incitamento ao estudo pelo jurista, do

futuro intérprete e aplicador do Direito.

1 Aprovada pela Assembleia Nacional aos 21 de Janeiro de 2010 e publicada no Diário da República n.º 23, de 2 de Fevereiro de 2010.

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Aliás, mesmo com a consagração ou confirmação constitucional, ainda há ilustres juristas

africanos e ocidentais com dúvida quanto ao legítimo lugar do Costume na teoria das fontes

de Direito. Acrescente-se: como se fosse mesmo necessária a confirmação da Constituição

para que o jurista atenda à relevância do Direito consuetudinário.

Com efeito, ainda subsiste um ensino das Fontes do Direito muito moldado nos resquícios do

positivismo jurídico e no equívoco da identificação do Direito com o Estado, ou melhor

dizendo, o mito de que o monopólio da produção jurídica pertence ao Estado.

A determinação do espaço de intervenção do direito consuetudinário deve convocar a

comunidade jurídica como um todo e, em particular, às Escolas de Direito africanas, a uma

reflexão sobre os modos e os efeitos práticos do Costume, bem como sobre os modos de

integração do direito consuetudinário no sistema de normas, já não falamos apenas da

produção e manifestação, mas também na relevância, o âmbito, o fundamento, o limite de

aplicação, e também na interpretação e integração de normas consuetudinárias. Trata-se pois

de uma verdadeira dogmática em torno do costume.

Esse é o desafio do jurista e do ensino do Direito: como transmitir ao jurista as ferramentas

analíticas que o permitam pré-compreender o costume como parte integrante do Direito em

Africa. Ou, em outras palavras: a nosso ver, a compreensão integral dos ordenamentos

jurídicos africanos pressupõe um primeiro momento a compreensão de todas as suas

dimensões, incluindo o direito tradicional como parte da ordem jurídica plural.

:: Importância do Pluralismo e Direito Tradicional em Africa

Enquanto manifestação social, o Direito tradicional perpassa todo o território nacional,

abrangendo e fazendo-se sentir mais nas populações rurais (e nómadas). A nosso ver, a

importância do Direito Tradicional é clara e evidente; se assim não fosse, não teria merecido

o reconhecimento constitucional, a dignidade e os efeitos que dele decorrem.

Ainda assim, cumprindo o ónus da alegação, diremos que o Costume releva por duas razões

essenciais:

a) Por um lado, é um fenómeno social geograficamente difuso no país e do qual

decorrem efeitos que merecem a tutela jurídica;

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b) Por outro lado, manifesta-se em áreas do Direito ou materializa-se em institutos

jurídicos que organizam e reflectem-se em bens essenciais. Estamos a falar de

institutos civis como o casamento, a filiação, o património, a herança; ou em

áreas do Direito como o direito punitivo (com especial ênfase no Direito a que

geralmente denominámos Direito Penal); a administração, gestão e prestação de

bens e serviços comunitários, nomeadamente e com grande relevância social, a

gestão das terras comunitárias.

Ora, se o costume é o direito vivo, criado e aplicado nas comunidades, no novo quadro

constitucional das fontes de Direito deixou de assistir ao jurista a faculdade de negar

conhecer, interpretar e aplicar o Costume. O costume enquanto integrante da ordem jurídica

angolana e como fonte de relações e não asiste ao jurista justificação para negar a aplicação

da norma consuetudinária, seja esta invocada ou não pelas partes em causa.

Trata-se, pois de assegurar que o primado do Estado de Direito seja vivido e sentido em toda

a sua plenitude por todos os cidadãos angolanos de forma a permitir a sua plena realização

enquanto pessoa humana, titular de todos os direitos

:: Razão de ordem

Ao jurista importa, por isso, não só conhecer as manifestações do direito tradicional mas

sobretudo compreender os seus fundamentos, conceitos e funcionamento. Importa ajustar os

quadros dogmáticos clássicos a uma realidade normativa inevitável à construção de uma

sociedade plural e inclusiva.

O jurista já não deve ignorar a realidade tradicional escudando-se na ignorância ou nas

balizas nos cânones do pensamento clássico de origem romano-germânica que aprendemos

nos “bancos” da Faculdade de Direito ou que, no dia-a-dia nos confrontamos ao ler as

dezenas de diplomas que manifestam o Direito de cunho estadual.

A preparação do jurista para lidar com realidades novas pressupõe uma revolução

metodológica fundada no reconhecimento da necessidade de conhecimento aprofundado de

realidades jurídica e socialmente relevantes e que merecem a tutela do Direito. Negar esse

conhecimento é no fundo negar o Direito e amputar ao jurista o acesso a instrumentos

verdadeiramente essenciais para realizar o pleno das suas funções.

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Não nos arrogamos a pretensão de esgotar o pensamento sobre o direito tradicional.

Ansiamos apenas partilhar os conhecimentos que fomos adquirindo ao longo da nossa

pesquisa académica pós-licenciada que aflorou o tema em sede de tese de mestrado,

continuou através de artigos e conferências proferidas sobre o tema, tendo merecido um

aprofundamento mais dedicado na nossa tese de Doutoramento em Direito e culminou com a

lição em sede de provas para professor titular.

Esboço, por isso, alguns contributos para o estudo e ensino académico do direito tradicional,

na esperança de que também dessa forma depois de reconhecido o seu lugar normativo, o

costume venha a ter assento renovado na formação da dogmática das escolas de Escola de

Direito.

Como sustentamos noutro lugar2, a grande diversidade cultural e étnica africana impede-nos

de afirmar categoricamente a uniformidade do Direito Tradicional. No entanto, atendendo às

características relativamente homogéneas quanto à formação e manifestação do costume, e

apesar de cada Direito Tradicional personificar a comunidade específica que o origina e,

logo, maneiras diversas de pensar, sentir e viver o jurídico, cremos ser possível criar-se uma

dogmática geral do Direito Tradicional em Africa .

:: Contributos para uma nova dogmática do costume: Programa, conteúdos e métodos

Se propomos uma nova dogmática do Costume e o seu lugar nas Escolas é porque estamos

conscientes da necessidade de um ensino dedicado ao Direito Tradicional. A nossa reflexão

não está acabada; pelo que não asseveramos peremptoriamente a autonomia científica do

ramo para que o mesmo fosse considerada ou criada uma cadeira específica nos curricula.

No entanto, afirmamos sem hesitação que as Escolas de Direito, sobretudo africanas, devem

abrir lugar ao ensino do Direito tradicional enquanto parte da ordem jurídica e como

elemento fundamental para a compreensão de parte importante da vida jurídica nacional.

:: Programa

Assim, quanto ao Programa, parece-nos elementar transmitir noções claras sobre os seguintes

assuntos:2 A nossa tese de Doutoramento A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana, colecção Teses, Almedina, Coimbra, 2012.

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1.ª Parte – Noções Introdutórias

:: Noção de Costume

:: O conceito de Costume: “escola” ocidental vs. “escola” africana

2.ª Parte – História normativa do institucionalismo tradicional

:: Fonte de Direito (costume e tradição)

:: Instituições tradicionais (as instituições consuetudinárias e as instituições

inventadas)

3.ª Parte – A dogmática do direito tradicional em Africa

:: A fórmula de reconhecimento constitucional do Costume

:: A natureza do reconhecimento do Costume

:: Recolocação da teoria das fontes de Direito à luz de uma teoria pluralista do

Direito: proposta para um novo lugar do Costume na teoria das fontes de Direito

:: As características do Direito Tradicional em Africa

:: Relações do Costume com a Lei (relações verticais e horizontais)

:: Interpretação e aplicação do Costume

:: Conflitos e resolução de conflitos normativos

:: Caracterização do ordenamento jurídico plural africano

:: Conteúdos

O ensino do Direito Tradicional deve permitir ao profissional do Direito a aquisição de um

conhecimento teórico sólido. Assim, em primeira linha, o conhecimento de doutrina nacional

e estrangeira é essencial para a formação de conhecimento profundo e de um pensamento

crítico.

Apesar de não abundarem monografias e artigos jurídicos sobre o costume e o direito

tradicional em Africa, várias obras existentes permitem retirar conteúdos teóricos e analíticos

adequados ao labor pedagógico.

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Dada a natureza não escrita do Direito tradicional, parece igualmente interessante a recolha

de conteúdos não estritamente jurídicos mas que enformam o conhecimento e o

reconhecimento das fontes, manifestações e a própria terminologia dos diversos direitos

tradicionais nacionais.

Finalmente, e também não abundando, torna-se útil a análise da jurisprudência nacional, bem

como de casos ao nível do Direito comparado dos países com ordenamentos jus-

consuetudinários.

:: Métodos

Como ferramentas metodológicas, parece-nos recomendável a utilização do método do

pluralismo jurídico, visando abrir perspectivas de análise do Direito para além do

positivismo; i.e., o ensino e a compreensão do Direito Tradicional deve estar assente numa

concepção de pluralidade e relações de espaço de Direito numa ordem jurídica mais ampla.

Tal perspectiva, para além de – a nosso ver – explicar o fenómeno do Direito nas sociedades

modernas, permitem de igual modo superar as contradições de uma leitura monista, isto é,

estatista do Direito.

De igual modo, e como decorrência do abandono do paradigma positivista, a

pluridisciplinaridade será o pano de fundo de aquisição de material analítico. Consideramos

que, para além das várias disciplinas do Direito (Teoria Geral, Direito Constitucional, Direito

da Família, Direito das Coisas, Direito Penal, Direito Administrativo, etc), o conhecimento

do Direito Tradicional deverá subsídios da História à Etnografia; da Antropologia à

Sociologia; passando também pela Ciência Política.

Com efeito, o jurista do séc. XXI não deve mais ser um jurista do mero silogismo jurídico

mas um profissional que consiga apreender o pré-texto e o contexto para a apreensão e

aplicação da norma seja ela a estadual ou consuetudinária. Ou seja, a aplicação do Direito

convoca mais um verdadeiro processo judicativo-decisório, i.e., eminentemente valorativo e

não um mero processo lógico do tipo “pesquisa google” onde de um lado se colocam os

dados e do outro aparecem resultados.

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Dada a variedade cultural do Direito tradicional e às origens do nosso universo académico,

seria também de considerar a possibilidade do estudo de campo, o que a nosso ver enriquece

de sobremaneira a apreensão teórica do ensino.

O Pluralismo jurídico sera aqui chamado numa perspectiva pragmática.

A vantagem da perspectiva pragmática é que ela é auto-limitadora: ao invés de intermináveis cogitações em torno do conceito, a perspectiva pragmática elege como centro de análise a própria realidade social plural. Não se interessa pela abstracção conceptual porque dotado de uma ferramenta praxiológica3, o estudo do Direito não será tanto a avaliação normativa dos “graus de desvio” das práticas legais de um modelo ideal de Direito ou sistema hipotético, mas sim o estudo das modalidades de produção, reprodução, inteligibilidade e compreensão, bem como os mecanismos, relações, estruturação e caracterização que resultam da comunicação do Direito estatal, no caso específico o Direito administrativo, com as outras realidades jurídicas sociais que, na verdade, existem e são adoptadas pelas pessoas.

Trata-se, portanto, de uma abordagem descritiva (contextual, processual e relacional) e processual das relações pluri-normativas das ordens jurídicas em presença num contexto espacio-temporalmente circunscrito. Em síntese, o que se pretende verificar é como é que essas ordens podem relacionar-se e que tipo de relações pode haver entre elas.

A pluralidade jurídica, colocada neste prisma descritivo e processual, pressupõe o afastamento da ideia de que o pluralismo é uma característica intrínseca de um sistema jurídico; pelo contrário, o pluralismo “aparece” em resultado de justaposições normativas numa mesma configuração espácio-temporal. Por um lado, sendo processual4, o conceito permite captar as dinâmicas relacionais, ao que nos interessa verticais – i.e., entre a ordem estatal e um espaço normativo infra-estatal –, habilitando-nos a elaborar uma aproximação não valorativa mas meramente descritiva e pragmática. Não valorativa porque não nos interessa tanto a análise ou validade axiológica da questão. Interessa-nos, sim, a utilização de uma ferramenta interpretativa da coexistência de modus vivendi normativos e das relações que possam existir entre eles5.

3 DUPRET, Baudourin, op. cit..

4 A construção de N’GUNU TINY, assente na ideia da acomodação mútua, claramente aponta para uma

concepção processualista, por isso mesmo dinâmica, do pluralismo. V. TINY, N’Gunu, «Regionalism and

WTO: Mutual Accommodation at the Global Trading System», in International Trade Law Review, Issue 4,

Sweet & Maxwell Limited, 2005 (126-145).

5 Claro que não menosprezamos o debate em torno do conceito. Apenas julgamos que este não é o lugar próprio

para fazê-lo. Para nós, basta-nos a ferramenta; não nos queremos substituir ao artesão, seja ele antropólogo,

sociólogo, politólogo ou filósofo do Direito. Aliás, não é unânime que o conceito seja “meramente” originário

da ciência jurídica, como nos dá conta Franz von BENDA-BECKMAN, retorquindo à alegação de Simon

ROBERTS de que o pluralismo jurídico é inequivocamente uma “criatura” das “law schools“, leia-se, da ciência

jurídica (BENDA-BECKMAN, Franz von «Who’s Afraid…»: 73).

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Do ponto de vista antropológico ou sociológico, as realidades sociais heterogéneas, compostas por “espaços sociais semi-autónomos”6, não encerram em si autoridades, instituições e processos de criação do Direito, legítimo e válido, absolutamente autónomos em relação ao Estado. Esses espaços sociais semi-autónomos não deixam de ser permeáveis às influências recíprocas entre si.

Como sustenta N’Gunu TINY7, uma tal ordem jurídica plural pode caracterizar-se pelos

seguintes elementos-chave (the tenets of a legal pluralism):

1.º) Existência de relações não hierárquicas entre as ordens coexistentes8.

2.º) A ordem plural é uma ordem de interacção das ordens coexistentes.

3.º) Em caso de conflito, a solução passa pela conjugação (i.e., um mútuo

ajustamento, através de um processo de acomodação) e não pela exclusão.

4.º) As ordens coexistentes devem convergir para dinâmicas de interacção.

5.º) O reconhecimento deve ser compatível com os valores democráticos e não um

“cheque em branco” (blank check)9.

6.º) A conformidade de um determinado facto com o seu sistema original não o

invalida em caso de desconformidade vis-à-vis outra ordem condómina, quando muito

poderá determinar o seu afastamento, não tutela ou inadmissibilidade.

6 MOORE, Sally, Law as Process: An Anthroplogical Approach, Lit Verlag, Hamburg, 1978 apud GRIFFITHS,

John, «What is …»: 29 et. ss.

7 TINY, N’Gunu, «The Politics of Accommodation …»: 79-81.

8 Neste domínio, a questão que se levanta é a da definição de fronteiras da relação não hierárquica.

9 Esta característica ajuda a explicar os limites da relação heterárquica: o Estado deve reconhecer, mas ao

mesmo tempo conformar, os termos da compatibilidade com a ordem jurídica mais ampla. Trata-se – a nosso

ver e sobretudo tratando-se do Estado – de não defraudar o quadro constitucional da sua própria legitimidade

democrática e jurídica.

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7.º) Os conflitos decorrentes da relação de coexistência pluralista são inevitáveis dado

que concorre uma multiplicidade de valores fundamentais que requerem soluções ou

tratamentos diferentes e, muitas vezes, em tensão conflitual10.

8.º) Trata-se de um processo aberto, que varia no tempo e em função da sociedade

que o origina11.

Perspectiva comparada do Direito tradicional em Africa

Na generalidade dos países africanos, a experiência colonial interferiu, por via directa ou indirecta, na ordem social e jurídica ditas costumeiras e, em especial, nas autoridades tradicionais e demais instituições de poder que integravam antes da instituição do colonialismo.

O grande desafio da actual fase de reorganização e consolidação do poder do Estado, do enquadramento dos poderes autónomos e da regulação do concurso da participação das diversas legitimidades sociais que vigoram no território de dado Estado, bem como das formas plurais de realização democrática, e em especial a compreensão do poder tradicional autónomo, consiste em compreender os conceitos, estruturas e modos de representação e os procedimentos tradicionais para adaptá-los aos conceitos e práticas e estruturas do Estado de Direito moderno e aos princípios constitucionais que pautam a sua actuação e que garantem o exercício do seu poder.

As tradições nas quais se baseiam as autoridades tradicionais foram estabelecidas em tempos ancestrais, “antes do início da história”12. As tradições são pertença dos “ancestrais dos ancestrais” e, na sua essência, mantêm-se inalteradas13. Donde, os modelos de organização política e administrativa tradicionais variam de comunidade para comunidade14.

10 Esta ideia é ancorada no facto de, neste modelo de reconhecimento declarativo, o Estado não se pronunciar

sobre a legitimidade, validade ou eficácia das normas do sistema reconhecido, mas apenas sobre a sua eficácia

perante o Direito do Estado: a tutela ou eficácia das instituições reconhecidas passa pela sua conformidade com

a Grundnorm ou com a rule of recognition estadual.

11 TINY não o afirma expressamente, mas a sua proposta de resolução de conflitos também ajuda a caracterizar o

pluralismo como um processo aberto: as respostas não são dadas a priori e resultam das dinâmicas do caso

concreto; estamos perante um processo de resolução do caso e não dos conflitos do sistema.

12 Para a historiografia, a História tem início quando o ser humano começa a fazer uso da escrita.

13 HINZ, M. O., «The “Traditional” of Traditional Government …»: 4.

14 Ibidem: 5.

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A “tradicionalidade” das autoridades tradicionais é basicamente um predicado que só socialmente pode ser interpretado e “a nossa tradição” é aquilo que cada uma das comunidades deve aos seus ancestrais15. Daí que a tradição seja legítima porque, e na medida em que, possa ser ligada aos ancestrais que criaram e tornaram possível a vida da comunidade.

Escolhemos cinco países , nomeadamente , África do Sul, Botswana, Moçambique, Namíbia e Zâmbia que partilham todos uma herança de domínio estrangeiro sobre populações autóctones anteriores à chegada e colonização de forças estrangeiras; comungam ainda de uma proximidade geográfica e económica e social no grande espaço que compõe a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, vulgo SADC (a sigla inglesa de Southern Africa Development Comunity).

Não podemos deixar de notar ainda que para além dessas afinidades, estes países partilham também a herança ancestral dos povos bantos e seus descendentes, havendo até etnias transfronteiriças, resultantes da “régua e esquadro” da partilha e ocupação efectiva da Conferência de Berlim (1884-1985), como é, v.g., o caso dos herero que ocupam parte do norte da Namíbia e parte do Sul de Angola.

Assim, , apesar de uma “macro-afinidade” antropológica, histórica e geográfica, os modelos reguladores de cada sistema reflectem as vivências e os percursos histórico-políticos, incluindo as diferentes experiências e influências dos modelos de domínio, o que mostra que, em última instância, o Direito é posto de modo puro, em que as normas não defluem umas das outras por raciocínio dedutivo, mas pelos fluxos e refluxos das experiências e escolhas sociais, políticas e históricas.

15 Ibidem: 7.

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1.1. Contexto e processo históricos

As ordens jurídicas dos cinco países comungam ainda de uma proximidade geográfica e económica e social no grande espaço que compõe a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, vulgo SADC (a sigla inglesa de Southern Africa Development Comunity). Para além disso, o pluralismo jurídico dessas cinco ordens plurais resulta de uma herança histórica comum: em todas elas o processo histórico conduziu a uma partilha normativa entre o poder do Direito da potência colonial estrangeira e as organizações político-administrativas pré-existentes nas populações autóctones.

O percurso histórico de cada um dos países permite encontrar afinidades: todos foram objecto de ocupação por forças coloniais que na sua chegada se confrontaram com a existência de comunidades locais, autóctones, com as quais tiveram de conviver, acomodando os diversos modelos de governo a essas estruturas. No entanto, essas afinidades não esgotam a realidade histórica que passou pelas conjunturas próprias da construção da identidade nacional tanto no período colonial como – e sobretudo – no período pós-independência.

Ou seja, independentemente dos modelos coloniais de ocupação e de governo – tendo os territórios de ocupação inglesa (África do Sul, Botswana e Namíbia) seguido o modelo da indirect ruling e Moçambique o modelo colonial português caracterizado pelo governo através de governadores locais e de acordo com uma estrutura teleológica assimilacionista –, todas as ordens plurais resultam do “encontro da História” entre o modelo tradicional de governo, estribado nas tradições e no costume e os modelos coloniais, modernos, “racionais” e assentes na vontade legislativa dos órgãos do poder.

Em todas as ordens jurídicas referidas, o percurso histórico do poder tradicional sofreu os fluxos e influxos resultantes dos momentos históricos de ruptura, continuidade e reconciliação nacional, tendo sobrevivido à complacência dos poderes coloniais que, mais ou menos ostensivamente, as tentaram “domesticar” ou controlar, bem como aos excessos revolucionários que as tentaram eliminar.

Destaca-se nesse campo, em todas as ordens analisadas, a tentativa de conciliação política entre o tradicional e o moderno através da integração das autoridades tradicionais nos modos de administração estadual.

Essas aproximações resultam tanto de uma necessidade da Administração chegar mais eficazmente e afirmar-se perante as populações (state building), como de uma necessidade de construção, de conciliação nacional e de afirmação de identidades comuns (nation building) e não somente de uma vontade de manipulação das autoridades tradicionais por parte dos agentes de um Estado falhado ou fraco.

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1.2. Princípios fundamentais de organização do Estado e do poder político

Quanto aos princípios fundamentais do Estado, o primeiro elemento comum ressalta da existência de constituições escritas em todas as ordens plurais referidas, que consagram Estados soberanos unitários, democráticos e republicanos. Ou seja:

a) Em cada um dos países, o Estado é configurado como unitário e representado

pelos respectivos órgãos de soberania definidos pela Constituição;

b) Cada uma das ordens é caracterizada pela sua própria constituição estadual como

um Estado assente na soberania popular, manifestada através do voto popular, regular e

representativo do todo nacional; e

c) As constituições elegem como forma de governo a república, ficando, por isso,

afastada a forma monárquica e/ou dinástica de acesso ao poder, visto que a ele só se

acede através de eleições universais plurais.

Apesar dessas semelhanças normativas ao nível da estrutura do Estado e da organização dos poderes soberanos, cada uma das ordens configura internamente os termos da partilha da coexistência normativa entre o Estado e as autoridades tradicionais.

1.3. Fórmulas de reconhecimento

Embora as fórmulas de reconhecimento variem de acordo com cada uma das ordens jurídicas, todas as ordens plurais resultam de um reconhecimento constitucional das instituições costumeiras, seja a título de Autoridades Tradicionais propriamente ditas (África do Sul, Moçambique) seja ainda, ou alternativamente, a título de reconhecimento da autoridade tradicional e de uma assembleia representativa das autoridades tradicionais (como no caso da Zâmbia), apenas de uma assembleia representativa das autoridades tradicionais (Botswana) ou ainda das instituições e do próprio costume (África do Sul, Namíbia).

A fórmula de reconhecimento de Moçambique é revelada pelo mero reconhecimento da autoridade tradicional como uma emanação de um produto social próprio, remetendo para a lei ordinária a definição do “estatuto coexistencial” da autoridade tradicional.

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1.4. Conceitos e organização estadual das instituições da Autoridade Tradicional

Todas as ordens definem a autoridade tradicional. A definição cura, as mais das vezes, de qualificar o titular do cargo tanto por referência ao reconhecimento estadual como por referência aos elementos sociológicos ou antropológico próprios das populações de onde provêem.

O elemento caracterizador tende a ser, ainda assim, o facto de esses titulares terem de ser reconhecidos oficialmente.

1.5. Competências e poderes das Autoridades Tradicionais

No capítulo das competências observamos situações de ausência de núcleo constitucional de competências mínimas. Efectivamente, no Botswana e na Zâmbia as respectivas Constituições prescrevem um núcleo de competências para as assembleias representativas das autoridades tradicionais. A tendência revelada por todas as constituições é a de não garantirem um estatuto funcional mínimo às próprias autoridades, legitimando a lei ordinária a definir o respectivo quadro de competências.

Quanto à tipologia das funções ordinárias, observa-se que, em comum, todas as ordens plurais acentuam as funções consultivas e de articulação, revelando um papel de “corpo intermédio” de natureza administrativa entre as populações rurais e as instituições do Estado ou mesmo as autarquias locais. No entanto, notamos que ao abrigo da Chiefs Act, na Zâmbia, são expressamente reconhecidas as funções das autoridades tradicionais consagradas pelo Direito tradicional.

É ao nível da legislação ordinária que se consagram as formas de articulação, de participação e as competências administrativas: são consagradas essencialmente funções consultivas. Em termos mais substantivos, e com verdadeiro impacto na vida das populações, é o papel desempenhado pelas autoridades tradicionais relativas à gestão fundiária, que, com maior ou menor latitude, todas as ordens estudadas contemplam.