inflaÇÃo guerra e paz brasil, reeleiÇÃo

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Nossa Revista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$9,00 InflaÇÃO E DÍVIDA públIcA GUERRa E PaZ BRaSIl, uM pAÍs DOADOR pORtInARI nO MEMORIAl REElEIÇÃO DE cRIstInA KIRcHnER

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Nossa Revista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$9,00

InflaÇÃOE DÍVIDA públIcA

GUERRa E PaZ

BRaSIl, uM pAÍs DOADOR

pORtInARI nO MEMORIAl

REElEIÇÃO DE cRIstInA KIRcHnER

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Faça aqui seu evento!www.memorial.sp.gov.br Informações: 3823-4618

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NossaRevista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$8,00

Número 44ISSN 0103-6777

ECONOMIA 46Maria Lucia Fattorelli

POLÍTICA 40Rubens Barbosa

ELEIÇÕES 52Luis Fernando Ayerbe

LIVRO 56Reynaldo Damazio

COMENTÁRIO 62Dario Pignotti

POESIA 66Xavier Villarrutia Gonzáles

AGENDA 65Da Redação

REFLEXÃO 43Ibis Hernández Abascal

EDITORIAL 04Antonio Carlos Pannunzio

EDUCAÇÃO 06Helgio Trindade

ANÁLISE 10Everaldo de Oliveira Andrade

OPINIÃO 14Enrique Amayo Zevallos

ENSAIO 18Sergio Guerra

ARTE 24Eduardo Rascov

CRÍTICA 32Julia P. Herzberg

CULTURA 37Leonor Amarante

DEBATE 59Bruno Peron Loureiro

GOVERNADORGERALDO ALCKIMIN

SECRETÁRIO DA CULTURAANDREA MATARAZZO

FUNDAÇÃO MEMORIALDA AMÉRICA LATINA

CONSELHO CURADOR

PRESIDENTEALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO

SECRETÁRIO DA CULTURAANDREA MATARAZZO

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E TECNOLOGIAPAULO ALEXANDRE BARBOSA

REITOR DA USPJOãO GRANDINO RODAS

REITOR DA UNICAMPFERNANDO FERREIRA COSTA

REITOR DA UNESP (em exercício)JÚLIO CEZAR DURIGAN

PRESIDENTE DA FAPESPCELSO LAFER

REITOR DA FACULDADE ZUMBI DOS PALMARESJOSÉ VICENTE

PRESIDENTE DO CIEERUI ALTENFELDER SILVA

DIRETORIA EXECUTIVA

DIRETOR PRESIDENTEANTONIO CARLOS PANNUNZIO

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINAADOLPHO JOSÉ MELFI

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAISFERNANDO CALVOZO

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO (em exercício)ANGELO DE JESUS FERREIRA LOPES

CHEFE DE GABINETEIRINEU FERRAZ

DIRETOR PRESIDENTEMARCOS ANTONIO MONTEIRO

DIRETOR INDUSTRIALTEIJI TOMIOKA

DIRETOR FINANCEIROMARIA FELISA MORENO GALLEGO

DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOS JOSÉ ALEXANDRE PEREIRA DE ARAÚJO

REVISTA NOSSA AMÉRICA

DIRETORANTONIO CARLOS PANNUNZIO

EDITORA EXECUTIVA/DIREÇãO DE ARTELEONOR AMARANTE

EDITORA ADJUNTAANA CANDIDA VESPUCCI

ASSISTENTE DE REDAÇãOMÁRCIA FERRAZ

DIAGRAMAÇãO (ESTAGIÁRIO)FELIPE DE PAULA LOPES

REVISãO (ESTAGIÁRIO)ELIAS CASTRO

DIAGRAMAÇãO E ARTEESTAÇãO DAS ARTES/SILVIA SATO

TRADUÇãO E REVISãOESTAÇãO DAS ARTES/DEISE ANNE RODRIGUES/ FERNANDA LIMA

COLABORARAM NESTE NÚMEROHelgio Trindade, Everaldo de Oliveira Andrade, Enrique Amayo Zevallos, Sergio Guerra, Eduardo Rascov, Julia P. Herzberg, Leonor Amarante, Rubens Barbosa, Ibis Hernández Abascal, Maria Lucia Fattorelli, Luis Fernando Ayerbe, Reynaldo Damazio, Bruno Perón Loureiro, Dario Pignotti.

CONSELHO EDITORIALAníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected].

Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.

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Neste número inaugural de 2012, a revista Nossa América registra o passo significativo que o Brasil está dando para a integração latino-ameri-cana. Trata-se da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Ameri-cana), em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira. A instituição já está em ati-vidade, em sede provisória, e quem ex-plica os propósitos da iniciativa é seu reitor Helgio Trindade. No outro ex-tremo do Continente corre a seguinte questão: o que o presidente boliviano Evo Morales pode fazer pelas comuni-dades indígenas. Na opinião do histo-riador Everaldo de Oliveira Andrade, pode fazer muito, com sua política de promoção de um Estado plurinacional. Por sua vez, Ollanta Humala, presi-dente do Peru, também ganha avalia-ção positiva com seu governo de ações

conciliadoras, segundo o historiador Enrique Amayo Zevallos.

Na esfera das artes plásticas, qua-tro temas. Um deles, Nossa América foi buscar na Colômbia: convidou a crítica norte-americana Júlia P. Herzberg para escolher quatro talentos do país e regis-trar sua opinião sobre a importância de-les no cenário contemporâneo. Outro é a exposição de obras de Portinari, que o Memorial realiza entre fevereiro e abril, com uma seleção dos mais importantes momentos do autor. Já o ensaio foto-gráfico desta edição reúne imagens de Sérgio Guerra, “baiano” que mora em Angola, com o intuito de lembrar a re-levância dos afrodescendentes, cujo ani-versário foi comemorado no ano pas-sado. Por fim, um panorama da Bienal Vento Sul de Curitiba, traçado por Leo-nor Amarante, editora de Nossa América,

EDITORIAL

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Antonio Carlos Pannunzio Presidente do Memorial da América Latina

EDITORIALpara quem o evento carrega o mérito da persistência.

Um assunto bastante atual: gradu-almente o Brasil aumenta sua presença no exterior, ao se tornar um dos maio-res doadores de assistência técnica e fi-nanceira a países menos desenvolvidos, artigo de Rubens Barbosa, ex-embaixa-dor do Brasil em Washington. Também pertinente é a questão da geoestética da visualidade caribenha, que Ibis Hernán-dez Abascal desenvolve a partir do nexo com a área etnocultural.

Como a inflação afeta o “sistema da dívida” brasileira? Quem responde é Maria Lucia Fattoreli, colaboradora do Le Monde Diplomatique, que defende a redução das taxas de juros e a adoção de outros mecanismos de controle infla-cionário. No país vizinho, a Argentina, a questão é o fenômeno Cristina Kirsh-

ner, “provada” e aprovada pelo eleitor com uma quantidade de votos insus-peitada. A análise é do especialista Luís Fernando Ayerbe.

Para encerrar, uma resenha do li-vro Responsabilidade do Estado, de Sô-nia Sterman, dissertação de mestrado da autora, já em segunda edição. E um ar-tigo do jornalista Bruno Perón Loureiro sobre a reserva de lítio de Uyuni, conhe-cida como a Pérola dos Andes. Além da agenda, sobre eventos realizados pelo Memorial, e a tradicional poesia que fe-cha a edição, neste número assinada por Xavier Villarrutia Gonzáles.

Boa leitura!

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Para promover a integração, o desenvolvimen-to e a cooperação solidária entre os países da América Latina, a partir do conhecimento e da formação de recursos humanos de alto nível, o Ministério da Educação do Brasil (MEC) enviou ao presidente Luiz Inácio Lula

da Silva, em dezembro de 2007, o Projeto de Lei de Criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) que foi sancionado por meio da Lei 12.189, de 12 de janeiro de 2010.Trata-se de uma proposta inédita, que pela primeira vez no contexto latino-americano previu a criação de uma uni-versidade nacional dirigida à integração do Continente, com o princípio de trabalhar de forma programada a vocação integra-cionista das instituições de educação superior. Presidida pelo professor Hélgio Trindade, ex-reitor da Universidade Federal do

EDUCAÇÃO

Universidade federal da integração latino-americana

UnilaHelgio Trindade

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Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-mem-bro do Conselho Nacional de Educa-ção (CNE), a Comissão de Implantação (CI) da Unila, formada e investida pelo MEC, com 13 especialistas em educa-ção superior e integração, trabalhou por dois anos no desenvolvimento e na es-truturação do plano político- pedagógi-co da Universidade.

Apesar de a Unila ser uma univer-sidade do sistema federal de educação superior do Brasil, sua especificidade decorre de sua missão própria: a inte-gração latino-americana. Nesta pers-pectiva está a sua vocação institucional original. Financiada pelo MEC, como as demais universidades federais, seu olhar esta voltado de forma prioritária para a América Latina, com o objetivo de desenvolver uma cooperação solidária com os países na região. O seu campus deverá ser um local de experiência da integração em termos acadêmicos, cien-tíficos e culturais, por meio do convívio entre professores e alunos.

O Anteprojeto estipula que a me-tade dos 10.000 alunos previstos e dos 500 professores seja selecionada nos diversos países latino-americanos e a outra metade no Brasil. Para promover esta integração, a Unila será bilíngue

(português e espanhol). Alem disso, tem como objetivo a formação de redes de cooperação com universidades de toda a América Latina.

A localização da cidade de Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira, foi fator determinante por dois aspectos. De um lado correspondente à política do atu-al governo, de expansão superior e in-teriorização até as regiões de fronteira. Também por ser fronteira trinacional, o que sem dúvida enriquece o projeto e o caráter multiétnico da formação histó-rica da região. A hidrelétrica de Itaipu Binacional apoiou a criação da Unila, doando uma área de 40 hectares para a construção do futuro campus e coo-perou na elaboração do projeto arquite-tônico de Oscar Niemayer. Atualmente o PTI abriga a sede provisória da Unila até a conclusão do Campus, que está em fase de construção.

O fato de que Niemayer tenha desenhado o projeto do campus foi uma grata surpresa, pois a ideia inicial era ter do arquiteto somente o prédio da biblioteca. Seu projeto para a Uni-la é majestoso, como são todas as suas obras, e os seus traços simbolizam a integração latino-americana. No total, serão cerca de 150 mil metros quadra-

A universidade já funciona em prédio

provisório e deve ser transferida para um complexo projetado

por Oscar Niemeyer.

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dos, divididos em seis edifícios: prédio central, biblioteca, anfiteatro, restau-rante universitário e dois edifícios para aulas e laboratórios. Foi decidida pela Comissão de Implantação a utilização múltipla dos espaços, e procurou-se adaptar o projeto para uma maior con-vivência entre alunos e professores.

O projeto de uma Biblioteca de referência na América Latina (Biunila) sobre integração regional e compara-da prevê um moderno centro de do-cumentação e informação virtual, com capacidade para 300 mil volumes. A biblioteca estará integrada com o Ins-tituto Mercosul de Estudos Avançados (Imea). Este é um centro interdiscipli-nar de pesquisa e pós-graduação que atualmente atua por meio de Cátedras Latino-Americanas nos diferentes campos do saber. Já com o apoio da Associação de Universidade do Grupo de Montevidéu (AUGM), pretende-se formar uma rede de pesquisas avança-das que se organize a partir da integra-ção do Imea. A proposta da Biunila e do Imea tem o apoio do governo brasi-leiro por meio do Focem (Fundo para a Convergência Estrutural e Fortaleci-mento Institucional do Mercosul). A Biunila e o Imea deverão atender a re-gião e ser referência em pesquisa sobre a América Latina.

Quanto à seleção de alunos brasi-leiros e estrangeiros, esta é realizada de forma diferenciada. Os brasileiros são selecionados por meio do Enem (Exa-me Nacional do Ensino Médio) enquan-to os estrangeiros são selecionados em seus países de origem de acordo com critérios definidos pela Unila em acordo com os seus Ministérios da Educação.

O corpo docente brasileiro (250 professores) é selecionado por meio de concurso público, como se faz em qualquer outra universidade federal bra-sileira, mas com banca internacional. Entretanto, foram criadas modalidades

distintas de contratação para professo-res doutores seniores e jovens doutores. Os docentes são contratados por seu perfil como professores visitantes tem-porários, recrutados de acordo com sua capacidade nos outros países da Améri-ca Latina. Este formato permite maior flexibilidade na contratação e na per-manência dos especialistas estrangeiros, provendo uma maior circulação destes professores, o que cremos ser benéfico para a instituição. Deve-se destacar que haverá um desenvolvimento progressi-vo do tamanho da Universidade até que alcance a meta de 500 professores e 10 mil alunos. A concretização do projeto deverá ser alcançada até o ano de 2017.

A Unila já oferece cursos inter e transdisciplinares, áreas inovadoras, afastando-se das carreiras clássicas. Ini-

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ciou com uma oferta de 12 cursos de graduação, e está implementando pro-gramas de pós-graduação. A ênfase é dada aos cursos considerados estratégi-cos para a integração, como formação de professores, recursos naturais, rela-ções internacionais, processos culturais e outros. A proposta é dirigida a estabe-lecer ciclos de formação: o ciclo básico, o ciclo profissional e o ciclo de integra-ção latino-americana. Porém, deve-se destacar que a questão da integração regional deverá permear toda a forma-ção do aluno, constituindo o princípio da instituição. Esta proposta é resultado do trabalho da Comissão de implanta-ção da Unila, que realizou um diagnósti-co da oferta de cursos de graduação na América Latina para evitar a reprodução dos mesmos cursos e também se apoiou

no resultado de uma consulta interna-cional realizada com mais de uma cente-na de especialistas.

Há uma grande receptividade do projeto da Unila, em âmbito nacional e internacional. No Congresso Nacional a criação da Unila recebeu aprovação unânime e conta atualmente com alu-nos de vários países da América Latina (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Para-guai, Peru e Uruguai). Em 2012, a Uni-la receberá alunos de toda a América do Sul e de alguns países da América Central e do Caribe.

Helgio Trindade é cientista político e atual presidente da Comissão para a Instalação da Universidade Federal da Integração Latino- Americana (Unila).

O conjunto terá prédio central, bi-

blioteca, anfiteatro, restaurante e dois

edifícios para aulas e laboratórios.

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Há uma história ancestral no mundo andi-no que a ascensão de Evo Morales pare-ce ter projetado novamente para a luz. O mundo andino foi marcado pela sobrevi-vência ao longo de séculos de resistência das comunidades indígenas aymarás e

qhéchuas, entre outras, que sobreviveram à colonização es-panhola e aos anos conturbados que se seguiram às indepen-dências no século XIX. O genial e precoce pensador peruano José Carlos Mariátegui já havia notado uma profunda socie-dade indígena remanescente e entranhada na própria terra, um elo de ligação entre a solidariedade comunitária e um fu-turo libertário para a América Latina com que sonhava. Na Bolívia, nem sempre esse laço de solidariedade previsto por Marátegui entre os de baixo foi claro. Mesmo os proletários

ANÁLISE

e as comUnidades indÍgenas

EVO MORALES

Everaldo de Oliveira Andrade

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mineiros que se enfrentaram nas dé-cadas de 1940 e 1950 com os mine-radores, sob as bandeiras socialistas, pouca atenção deram ao mundo in-dígena. Uma fragilidade que a His-tória não deixou de cobrar seu pre-ço. A revolução de 1952 e sua quase esquecida e pálida reforma agrária buscaram, sob a liderança dos nacio-nalistas reformistas, desestruturar as comunidades indígenas em nome da

cidadania liberal, da propriedade in-dividual e da liberdade. Isso cravou novas feridas na sociedade boliviana, ainda mal curadas. O sociólogo boli-viano René Zavaleta Mercado chegou a forjar o conceito de “sociedade abi-garrada”, para tentar entender uma nação junta, mas não unida, em que conviviam em um mesmo quadro so-cial setores sociais quase incomunicá-veis. Isso está mudando?

Os líderes indígenas esperam um diálogo

que Evo Morales acena conduzir.

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cosmético, pode fortalecer o regionalis-mo e a fragmentação social dos setores populares e do tradicional e combativo movimento operário do país. E, dessa forma, favorece a antiga Bolívia dividida e submissa à ingerência externa, aquela que sempre foi obstáculo no caminho que levou Evo Morales ao poder. O choque entre etnias e grupos da própria base social de Evo é também parte da dinâmica em desenvolvimento de frag-mentação étnica, regionalista e auto-nomista que ameaça destruir a grande conquista política do seu governo, a unidade política em torno da soberania nacional traduzida nas ações contrárias ao separatismo regional.

O mundo das comunidades in-dígenas só tem sentido e vigor, ga-nhando uma dimensão política maior na arena de uma nação boliviana ple-namente soberana e independente. A fragmentação enfraquece as próprias comunidades. O regionalismo e o au-tonomismo, expressos recentemente nos choques relacionados à constru-ção da estrada para ligar os depar-tamentos de Pando e Cochabamba, mostram uma dinâmica preocupante, se prevalecer uma dinâmica política isolacionista e não nacional. A posi-ção do governo Evo de dialogar e ne-gociar com as comunidades indígenas da região é positiva, mas está longe de resolver as questões. As cicatrizes que separaram e contiveram a Bolívia du-rante séculos ainda estão abertas.

Everaldo de Oliveira Andrade é historiador, pós-doutorando na Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Guarulhos (UNG). Acaba de lançar o livro Bolívia: democracia e revolução – a Comuna de La Paz de 1971.

Durante os anos 1970, quan-do vigorava uma ditadura militar no poder desde 1964, um vigoroso mo-vimento indigenista buscou recons-truir, ou trazer para a superfície, uma Bolívia silenciada ou apartada. Era o movimento katarista, que em sua face mais radical beirou o fanatismo racis-ta dos índios contra os brancos. Esse movimento indigenista crescia na es-teira do silenciamento do combativo movimento operário pelos militares. De fato, parecia haver um constante ressurgir histórico do mundo andino ancestral, dos laços sociais e econômi-cos das comunidades indígenas, mar-cados pela quase impermeabilidade da modernidade ocidental, expressando muitas vezes quase um mundo à parte, ou uma história vivida em outro ritmo paralelo, em outra camada da história silenciosa. Em momentos de grande tensão social e econômica, esses tem-pos históricos vividos em outro ritmo, essas camadas mais profundas da so-ciedade parecem se reencontrar para buscar acertar seus ritmos, como se uma história caudalosa e profunda se tornasse repentinamente visível à su-perfície, como protagonista das con-junturas e dos eventos mais corriquei-ros. Evo Morales certamente unificou, ou expressou, um movimento social profundo e unificado de defesa da so-berania e autodeterminação da nação boliviana como nunca houve no país. Estamos vivendo um novo ressurgir, um reencontro da nação boliviana?

A tão celebrada Nova Constitui-ção Política do Estado Boliviano, apro-vada em janeiro de 2009, foi exaustiva-mente negociada com os setores que defenderam abertamente o separatismo do país. Foi celebrada a formulação de um Estado plurinacional, intercultural, descentralizado e com autonomias re-gionais. Porém, essa suposta conquista do estado plurinacional, longe de ser um

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O mundo indígena só tem vigor se ganhar dimensão política

dentro da nação.

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OPINIÃO

e amÉrica latinaHUMALA

Enrique Amayo Zevallos

contexto: No dia 5 de junho de 2011, Ollanta Humala, no segundo turno, foi eleito Presiden-te do Peru: obteve 53% dos votos, contra 47% de Keiko Fujimori. Esta, é filha do ex-presi-dente (1990-2000) Alberto Fujimori, que aca-bou governando de forma ditatorial. O men-

tor e braço direito de Fujimori foi Vladimiro Montesinos - chefe do Sistema de Inteligência Nacional (SIN). Ambos estão presos em Lima, submetidos a julgamentos por haverem cometido cri-mes políticos juntos. Até hoje, Fujimori foi condenado a 25 anos e Montesinos a quase 10. Analistas sérios, como Mario Vargas Llosa (que apoiou Humala por considerar que a vitória de Keiko signifi-caria que seu pai, representante de um novo fascismo, retornaria ao poder), concordam que a “presidente” Keiko libertaria pai e associados. Ações de Fujimori realizadas no ano 2000 levaram

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o Peru a uma situação caótica: os abusos de Fujimori para reeleger-se pela terceira vez, contra o que a Constituição manda-va, desencadearam, apesar da brutal re-pressão do SIN, protestos massivos que terminaram obrigando-o a fugir para o Japão; o Peru entrou em caos.

Algo semelhante teria ocorrido se Keiko libertasse seu pai, já que ela não decide nada sem consultá-lo, além de seu círculo decisório ser constituído pelos membros do governo de Fujimo-ri que não foram presos. A vitória de Keiko significaria, assim, o retorno de Fujimori ao poder com seu corolário: protestos, repressão e caos.

Desde que Ollanta Humala assu-miu o poder, em 28 de julho de 2011, passou-se pouco tempo. Assim, ain-da não é possível julgar seu governo; é possível, sim, descrever algumas de suas decisões tomadas nesse período, o que permitiria perceber tendências.

Em 2006, quando Humala foi can-didato a Presidente e perdeu para Alan García, era pró-Chávez. Mas nas elei-ções de 2011, Humala se distanciou do Presidente da Venezuela. Provavelmen-te, Humala entendeu que Chávez não é um bom exemplo, e que sua proximida-de não ajuda. Em treze anos como pre-sidente (desde 1998), Chávez foi incapaz de resolver os principais problemas eco-nômicos e sociais de seu país. Venezue-la, gigante petroleiro, com grande renda provinda desse combustível (renda que nos anos de Chávez aumentou enorme-mente pela alta dos preços do petróleo), deveria ter os mais altos níveis econômi-cos e sociais da América Latina, mas não os tem; e seu crescimento econômico está entre os mais baixos do continente. A imprensa peruana sugere que foi por realismo que Humala substituiu o cha-vismo pela aproximação com o Brasil, do Partido dos Trabalhadores (PT).

Mas Humala não se limitou ao Brasil: continuou aproximando-se de

outros governos, rumo ao Uruguai e a todos os países do Mercosul. Depois, aos países andinos vizinhos do Peru. E também aos Estados Unidos (sendo recebido por Barack Obama e Hillary Clinton), Venezuela (reunindo-se com Chávez), México e Cuba (dialogando com Raul Castro e Fidel). Isso parece ser parte essencial da política exterior do governo de Humala. O Ministro das Re-lações Exteriores que ele escolheu, Ra-fael Roncagliogo, continua fiel à decla-ração que fez ao saber de sua nomeação: a política externa “vai ser uma política de integração com todos os países da re-gião, sem distinção nem preconceitos de tipo ideológico”. O governo de Humala quer manter relações com os países da América do Sul (abrangendo a América Latina e o Mundo), “sem distinções” e com fins de ”igualdade”.

A nomeação de Roncagliogo foi um êxito de Humala, evidenciado em seu bom recebimento por quase todas as forças econômicas, sociais e políticas do Peru. Bem recebida porque Ronca-gliogo desempenhou papéis-chave na história política peruana recente. Miguel Castilla, Ministro da Economia e Finanças, escolhido por Humala, ao contrário de Roncagliogo, gerou discórdia: críticas dos progressistas e esquerdistas que tornaram possíveis seu triunfo e apoio do mundo empresarial e dos mercados. Castilla, com mestrado em Harvard e Ph.D. na Univer-sidade John Hopkins, economista ortodo-xo com sólida experiência, até o dia de sua nomeação por Humala, era vice-ministro da Fazenda de Alan García. Igual discór-dia gerou a ação de Humala que aceitou manter Julio Velarde no cargo de presi-dente do Banco Central.

Humala aproxima sua administra-ção à do governo PT de Lula: pretende continuar a política econômica de Gar-cía (assim como Lula fez em seu primei-ro mandato, ao assumir, sem admitir, a política econômica de seu antecessor).

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Mas, simultaneamente, há uma diferen-ça: Humala jamais falou em “herança maldita” e, ao contrário, “pratica aberta-mente a continuação”, o que se eviden-cia nas figuras-chave que escolheu para a direção econômica de seu governo (fi-guras importantes de seu antecessor).

Como o Peru inteiro, Humala não quer pôr em risco o alto crescimento econômico de seu país, um dos maio-res da América Latina na última década. Isso explicaria a manutenção de Castilla e Velarde como seus gestores econômi-cos. Mas Humala quer que esse cresci-mento seja distribuído, sobretudo entre os mais pobres, para diminuir as dife-renças sociais.

Aqui só é possível mencionar ra-pidamente algumas decisões tomadas por Humala:

Lei da Consulta Prévia: o Acordo n°.169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribaisconcede a esses povos o direito de consulta e aceitação prévias por eles (usando suas formas de consulta tradi-cionais) sobre qualquer obra que pos-sa causar impacto em seus territórios históricos. Em setembro de 2011, Hu-mala transformou esse acordo em lei, promulgando-a em Bagua. Esta cidade amazônica peruana tem poder simbó-lico: ali ocorreram, em junho de 2009, violentos confrontos entre a polícia e a população, sobretudo nativa, que causa-ram a morte de 34 pessoas. Os indíge-nas protestaram contra o então gover-no de García, que negava a Consulta Prévia. Humala, ao promulgar essa lei, obteve apoio quase consensual da po-pulação indígena nacional e do país in-teiro, o qual se refletiu em altas taxas de aprovação de seu governo(hoje cerca de 65%). Também foi muito bem recebido pelos meios internacionais preocupados com a causa indígena e a preservação. Isso porque, uma das consequências imediatas dessa lei foi a paralisação de

projetos, especialmente na Amazônia peruana, que estavam sendo realizados sem consulta prévia.

Altos Lucros de Minerais: o Peru é um grande produtor e expor-tador mundial de minerais, dentre os quais, os preciosos. Em função da crise mundial, os preços dos metais aumen-taram muito. Por exemplo, o preço da onça troy de ouro, na última década, passou de mais ou menos 300 dólares a quase 2.000 dólares. Os altos lucros não dependem de inovações tecnológi-cas ou de investimentos maiores, mas simplesmente de inflexões de mercado. Os altos lucros favoreciam os donos das empresas mineradoras, mas não o Estado peruano, porque a maioria dos contratos de exploração foi firmada com o corrupto governo de Fujimori, que lhes deu vantagens, pois a crise, até então, não havia elevado os preços às alturas. Como candidato, Alan García prometeu renegociar esses contratos, mas como presidente disse que era im-possível fazê-lo; assim, solicitou a essas empresas uma doação voluntária (óbo-lo) que foi de 500 milhões de soles (mo-eda nacional peruana que, pelo câmbio atual de 2.75 por dólar, daria aproxi-madamente 180 milhões de dólares). Quando Humala assumiu o poder, de imediato, iniciou a renegociação; as em-presas, sem muita dificuldade, aceitaram pagar três milhões de soles, ou seja, seis vezes mais. Dinheiro que será utilizado para cumprir promessas de campanha, como o Programa Social Renda 65, que significa: salário mínimo (aproximada-mente 100 dólares mensais) para a po-pulação com idade mínima de 65 anos, sem renda fixa.

Lei contra a Corrupção: o gover-no de Humala enviou ao Congresso um projeto de lei para declarar imprescrití-veis os delitos graves de corrupção de funcionários públicos, impondo san-ções aos corruptos; foi aprovada.

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Concluindo: Humala está to-mando decisões conservadoras na eco-nomia, progressistas no social, e inde-pendentes na política exterior. Políticas de centro-esquerda que têm gerado, até agora, respostas positivas das maiorias peruanas e do exterior, até dos Estados Unidos. E o impacto da lei de Consulta Prévia poderia acabar transformando

Humala, por força das circunstâncias, no líder das causas indígenas do con-tinente com bases poderosas em sua população nativa.

Enrique Amayo Zevallos é professor de História Econômica e Estudos Internacionais Latino-Americanos - Universidade Estadual Paulista.

A lei de Consulta Prévia pode transfor-

mar Ollanta Humala em líder das causas

indígenas.

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o impacto da escravidão não conseguiu conter as manifestações culturais dos escravos tra-zidos de diversos pontos da África. A sim-biose das várias vertentes etnológicas deu origem a novos simbolismos e formatos, enriquecendo substancialmente o modo de

ser dos brasileiros. Internacionalmente, o ano de 2011 foi dedica-do aos afrodescendentes, e a revista Nossa América estende ainda neste ano as homenagens a esse povo, que tanto adensou a cultura brasileira. O ensaio do fotógrafo pernambucano Sergio Guerra, que se auto-intitula baiano e vive em Luanda, capital de Ango-la, remete-nos a imagens poéticas, dramáticas, singelas e raras de comunidades distantes da região. A forte presença dos africanos no Brasil pode ser avaliada no censo de 1810, quando eles eram mais de 30% da população do Brasil, porcentagem que decresceu a partir de 1931. A população afrodescendente nos provou que, sem seu universo, o mundo seria monótono, triste e sem a trilha sonora do rock, do jazz, do hip hop, do reaggae e de tantos outros ritmos fundamentais da contemporaneidade.

ENSAIO

ENSAIO DO FOTÓGRAFO BAIANO SERGIO GUERRA EM TERRAS AFRICANAS

raÍZes do Brasil

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gUerraEduardo Rascov

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e PaZ

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Acima, PlantandoBananeira, 1955 - Candido Portinari. Desenho a lápis de cor/ cartolina 9.5 x 8.5cm

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Após seis anos de guerra total, o mundo descansou. Em 1945, o sur-gimento da Organização das Nações Unidas enchia de esperança os crédu-los. Esqueciam o fracasso da Liga das Nações, anos antes. Surgida dos escom-bros da Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações havia sido incapaz de impedir outra conflagração planetária. Mas agora a paz precisava ser celebrada. Uma comissão internacional de arquite-tos seria formada para construir a sede da ONU, em Nova York. O projeto do mestre franco-suíço Le Corbusier seria o escolhido, com a colaboração de Os-car Niemeyer.

O conjunto arquitetônico da ONU foi inaugurado em 1952. Era preciso em-belezá-lo com obras de arte de grandes artistas. O Brasil ganha o privilégio de se ocupar do hall de entrada da Assembleia Geral das Nações Unidas. Getúlio Vargas escolhe Cândido Portinari (1903-1962) para a tarefa e este põe mãos à obra. Entre 1952 e 1956, Portinari trabalha sofrega-mente para atender o pedido do governo brasileiro. Apesar da recomendação médi-ca que evitasse o uso de tinta a óleo, cujo chumbo o intoxicava, o artista encara a encomenda como missão. Com os olhos e as pinceladas voltadas para a eternidade, ele passa a pintar os painéis Guerra e Paz, cuja superfície total de 280 metros qua-drados ultrapassa a do Juízo Final (Capela Sistina), de Miguel Ângelo.

O resultado é um dos mais belos e impactantes testemunhos da loucura humana e resume como nada o dilema da ONU até hoje: É possível se livrar da guerra? Há guerra justa? A paz tem pre-ço? O que é preciso para conquistá-la? Portinari retrata a guerra não por meio de soldados ou equipamento bélico, mas por meio de suas vítimas, especialmen-te aquela que sofre a dor maior - a mãe que perde o filho, imolado à (i)raciona-lidade dos poderosos. Guerra, painel de 14X10m, toma a visão de quem entra

na ONU. Paz, do mesmo tamanho, olha e é olhado por quem sai. A mensagem é inequívoca: é possível ao engenho hu-mano resolver seus problemas.

Como Di Cavalcanti, Jorge Amado, Mário Schemberg, Carlos Drummond de Andrade, enfim, boa parte da intelectuali-dade e artistas da sua geração, Portinari era comunista filiado ao PCB, por quem con-correu a deputado constituinte em 1945 e a senador em 1947. Sua insistência em presentear o mundo com a sua arte pun-gente, como que clamando por um tempo utópico em que não houvesse a explora-

Menino com Diabolô, 1955 Candido Portinari Desenho a grafite e lápis de cor/papel 21 x 15.5cm

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ção do homem pelo homem, custou-lhe caro. Portinari praticamente se auto-emu-lou , tornando-se, mais que um artista, um herói trágico da humanidade. Guerra e Paz foram os últimos grandes painéis pintados por ele. Depois disso, adoeceu pouco a pouco até morrer em 1962, vítima das tin-tas que para ele eram arma.

Os quadros foram finalmente ins-talados na ONU, em 1957. Por ser comu-nista, Portinari não obteve autorização do governo americano para ir à inaugu-ração da sua obra. Niemeyer também já não tinha acesso ao prédio que ajudou a criar. O “Comitê de Atividades Antiame-ricanas”, criado pelo senador Joseph Mc-Carthy, estava ativíssimo. Nos primeiros anos, o público tinha acesso ao hall da ONU onde estão os painéis Guerra e Paz. Mas, com o tempo, por motivo de segu-rança, o acesso a ele ficou restrito aos de-legados oficiais. Segundo João Cândido Portinari, filho do pintor, 95% da obra de seu pai está fechada em coleções par-ticulares. Por isso, quando soube que as instalações da ONU passariam por refor-ma entre 2010 e 2013, tanto fez que con-seguiu a guarda da obra por esse período. Era a oportunidade dos painéis Guerra e Paz percorrerem o mundo e - finalmente - serem conhecidos pelo povo. Em con-trapartida, eles deveriam voltar devida-mente restaurados, como previa o con-trato entre a ONU e o governo brasileiro dos anos 50. Para essa empreitada, João Candido Portinari obteve o apoio do go-verno brasileiro, por meio do BNDES, e de outras entidades públicas e privadas.

Os painéis foram restaurados no Rio de Janeiro, em ateliê aberto ao pú-blico, montado no Palácio Gustavo Ca-panema, por iniciativa do Projeto Porti-nari, no início de 2011. Antes disso, eles tinham ficado expostos por alguns dias no palco do Teatro Municipal carioca. Mais de 40 mil pessoas foram visitá-lo.

A mostra no Memorial inclui cer-ca de cem esboços originais de Guerra e

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Desmontagem dos painéis Guerra e Paz de Portinari, na ONU, em Nova York.

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Paz, que nunca foram expostos conjunta-mente e audiovisuais contando a aventu-ra de remover obras de arte gigantescas, transportá-las para o Brasil e restaurá-las, bem como documentários sobre a vida e a obra do pintor. Para o Memorial, é significativo ter os famosos painéis, que há 54 anos estão em Nova York, com-partilhando temporariamente o espaço com outra obra de Portinari não menos importante, o painel Tiradentes que, con-forme explica João Candido, “foi pintado

por meu pai um pouco antes, em 1949, com quem Guerra e Paz dialogam muito bem.” E, complementa o filho que faz da sua vida uma espécie de sacerdócio pela memória, preservação e divulgação da obra de seu pai, “o Memorial é o lugar ideal para o público ver as cores intensas dessas pinturas de meu pai, pois ambos têm um significado irmanado. O que é o painel Tiradentes, já instalado no Salão de Atos, senão um grito de repúdio à violên-cia similar aos painéis Guerra e Paz?”

Estudos para Guerra e Paz. Mãos Entrelaçadas, 1955.

Desenho a grafite e crayon colorido/papel 10 x 10cm. Cabeça

de Mulher, 1955. Desenho a grafite e

crayon colorido/papel. 16 x 16cm.

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Visionário, sonhador, maluco (algo a ver com seu pai?), João Candi-do Portinari afirma que, depois de São Paulo, Guerra e Paz devem percorrer o mundo. Com o esperado apoio do Ita-maraty, os painéis de Candido Portina-ri, espera o filho, vão levar sua mensa-gem dramática e de esperança a cidades emblemáticas, como Hiroshima e Oslo, por ocasião da entrega do Prêmio No-bel da Paz em dezembro de 2012. E, por que não, às potências emergentes

do Brics, Rússia, China, Índia e Áfri-ca do Sul. Até agosto de 2013, quando eles voltam para o hall da ONU, iman-tados pelo olhar compreensivo de mi-lhões de pessoas.

Eduardo Rascov é jornalista e editor do site do Memorial da América Latina

Exposição Guerra e Paz, de Portinari. A partir de fevereiro no Memorial da América Latina. Para mais informações, consulte nosso site: www.memorial.sp.gov.br Tel.: (11) 3823 4600

Meninos no Balanço, 1955. Desenho a grafite e lápis de cor papel. 25 x 24.5cm. Fotos de Portinari no ateliê e com o filho João Candido.

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CRÍTICA

QUatro artistas

Uma introdUção

COLOMBIANOS:

Julia Hertzberg

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Antes de partir para Bogotá, Co-lômbia, para ver a Feira ArtBo e as ati-vidades de arte estendidas ao redor do evento, pediram-me para escrever sobre quatro artistas colombianos emergentes. Contemplando a arte e refletindo sobre ela, conversando com artistas em mu-seus de exposições e nos estúdios do Es-pacios Las Nieves, ficou claro para mim que três dos quatro artistas que escolhi não eram emergentes, mas sim maduros talentos, cujos trabalhos extremamente convincentes mereciam ser mais conhe-cidos para além da Colômbia. A seleção inclui: Juan Manuel Echavarría, cujo tra-balho eu tenho acompanhado e escrito a respeito, Miler Lagos, Miguel Ángel Rojas e Catalina Mejía, cuja obra é nova para mim. Em linguagens diversas, seus trabalhos abordam questões comuns e pessoais, o político e o poético.

Por mais de quinze anos, Juan Ma-nuel Echavarría viajou por aldeias rurais (veredas) e cidades da Colômbia, foto-grafando os traços da guerra civil em an-damento, travada por narco-traficantes, paramilitares de direita e guerrilheiros de

esquerda. Em 11 de março de 2010, o artista foi convidado para ir à cidade ru-ral Mampujan, na região montanhosa de Montes de Maria, para a comemoração do décimo aniversário do dia em que os mo-radores foram forçados a deixar suas casas e terra pelas forças paramilitares, “Heroes de los Montes de Maria”. Tal aldeia nunca foi reocupada. No decorrer do dia, Echa-varría encontrou uma escola deteriorada na qual as vogais a, e, i e u estavam escritas em uma parede ao lado do quadro-negro. O tempo havia gasto o o, a letra que se tornaria o título da série La O.

Echavarría voltaria quinze vezes às cidades e às aldeias abandonadas em Montes de María, em suas contínuas jor-nadas antropológicas. Uma descoberta surpreendente levou a outra. Uma série de quadros-negros silenciosos, como me refiro a eles, inclui Silencio con frutas e Silencio 1,2,3,4. Silencio con frutas foi fil-mado através de uma abertura para uma janela na parede externa, em consequên-cia emoldurando a lousa (a qual é ver-de agora) ao mesmo tempo capturando o apagamento de duas paredes em pé

À esquerda, Juan Manuel Echavarría,

Silencio con frutas (série La O). C-print, 40 x 60 in. Cortesia

do artista e da Galeria Sextante, Bogotá.

Nesta página, Miler Lagos, Red-Blue, (série Inukshuk), 2011. Giclée print, 55 x 81 cm (21 ¾ x 32 in.). Cortesia do artista e da AB

Projects, Toronto.

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(ilustração). Os cinco quadros-negros silenciosos compartilham característi-cas pictóricas e temáticas. Formalmente, eles recordam pinturas abstratas, telas gestuais nas quais diferentes camaradas de pigmentos foram sobrepostas. Clima e tempo alteraram as suas cores e mate-riais originais, transmitindo uma espécie de pertubadora beleza romantizada.

Precisamos nos lembrar, todavia, que esses quadros-negros, com ou sem le-tras e números, não são usados para edu-car crianças. As crianças, juntamente com seus pais, foram deslocadas à força de ci-dade a cidade; enquanto algumas fugiram e se salvaram, outras encontraram seu silêncio final. A questão do artista é: es-sas fotografias de lousas vão avivar a me-mória acerca da violência prolongada que vitimou tantas pessoas por tanto tempo?

Miler Lagos fez uma peque-na série de belas fotografias e vídeos com som, durante uma viagem ao Red Rock Lake (65.31 graus de latitude N

e 114.13 graus de longitude), nos ter-ritórios do Nordeste do Canadá. A jornada era na verdade uma residência orgznizada por Astrid Bastin, uma co-lombiana que dirige a AB Projects em Toronto. Durante a primeira residên-cia de Lagos, no AB Projects (2010), seu trabalho foi baseado na exploração ambiental. Considerando seu interesse pela natureza e pelas relações da huma-nidade para com ela, Bastin propôs a Lagos que fosse a uma área remota do Ártico canadense, onde exploradores polares navegaram no século XIX.

Lagos e Bastin voaram para Yellow Knife, onde o pequeno hidropla-no os levou a Red Rock Lake, perto de Coppermine River, lugar da expedição de Sir John Franklin (1819-1822). Por 12 dias, durante o final de julho e o iní-cio de agosto de 2011, Lagos fotografou e filmou entre 11:30 pm e 2h30 am, as horas entre o pôr e o nascer do sol. As fotografias entituladas Red, Blue, and Red-

Miguel Ángel Rojas, Economía intervenida, 2011. Pó de folha de coca, camada de ouro e alumínio, 110 x 163 cm (43 5/16 x 62 in.); vídeo e som, 15 min. 30 seg. Cortesia do artista e da Sicardi Gallery, Houston.

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Blue e o vídeo Lat 65.31 N Long 114.13 W são da série Inukshuk, uma palavra inuíta que se refere a um marco de pe-dra, construído por mãos humanas, que funciona como um ponto de referência para rotas de viagem, lugares de venera-ção e de caça, dentre outros usos. Na li-nha de árvore em um cenário de marcos de pedra (assemelhando-se a esculturas), Lagos colocou chifres de veado em uma das pedras e depois suspendeu pequenas pedras nos chifres (ilustração). O artista fotografou e filmou apenas a luz solar e as condições climáticas do lugar. A bele-za desolada de uma paisagem do Ártico, com seus dias de 24 horas e ventos que variam, fez com que Lagos se lembrasse das pinturas românticas de paisagem do

século XIX, que registravam o sublime. Seus trabalhos são como meditações na cor, luz, e tranquilidade antes do frio do Ártico transformar a região em gelo branco, escuridão e vento.

Miguel Ángel se aproxima da eco-nomia, da política, e das realidades sociais de seu país, de uma perspectiva diferente em relação à de Juan Manuel Echavarría. Economía intervenida, de Roja, é uma confi-guação da tempestade de padrões, visual-mente definidos por pequenos quadrados dourados, cercados por um campo de quadrados levemente maiores de folhas de coca. O efeito geral é um padrão de superfície abstrata de linhas douradas on-dulantes, aparecendo em pequeno relevo contra o chão cinzento em uma superfície

Catalina Mejía, You you you you, 2010. Grafite no papel, 38

x 56 cm (12 x 14 in). Cortesia do artista.

Fotógrafo: Oscar Monsalve.

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retilínea. O vídeo, inserido na montagem, destaca folhas de coca voando fora das páginas de listas telefônicas.

Rojas fala da realidade da Co-lômbia, que por anos tem enriquecido com o dinheiro do narcotráfico e mais recentemente com a mineração ilegal de ouro, ambos produzindo “uma eco-nomia mediada”. Para a montagem, o artista empregou tanto altas quanto baixas tecnologias, uma total maestria de vocabulários figurativos e abstratos, um apelo visual e significativo de dois produtos para o discurso econômico e social de seu país.

O processo artístico, trabalho intenso e repetitivo, exigiu grande des-treza em colocar centenas de pequenos quadrados de folhas de coca cortados a laser, e ouro em um apoio acrílico. O artista primeiro secou as folhas de coca, triturou-as até obter uma consistência de pó, misturou-as com um agente de serigrafia à base de água , e usou o pó (folha de coca) como se fosse tinta em serigrafia. O satélite da tempestade de padrões, baixado da Internet, foi im-presso em papel do tamanho do traba-lho final. Rojas usou o impresso como uma referência para a montagem final, que ele fez desenhando uma grade so-bre o acrílico, colocando pontos para indicar a tempestade de padrões, e fi-nalmente aplicando as folhas de coca e os quadrados de ouro, um por um, em um padrão de mosaico. A riqueza esma-gadora da cocaína e da mineração ilegal de ouro está causando uma preocupa-ção renovada na sociedade colombiana. De forma hábil, Rojas fez alusão a essas complexas realidades nas quais os mate-riais têm contribuído para uma econo-mia mediadora.

Desastres del Corazón, de Catalina Mejía, elucida a dor sentida em um re-lacionamento amoroso que deu errado. Mejía referiu-se ao título de Goya, Disas-ters of War, assim como uso do Espanhol

em textos para inscrever suas pinturas e desenhos com palavras que empregam a primeira e a segunda pessoas (“eu” e “você”) para transmitir tristeza, desilusão e raiva. As superfícies de pintura das telas, juntamente com os desenhos magistral-mente compostos de grafite revelam os estados emocionais da artista por meio de palavras, a maioria delas apagada.

A escrita gestual expressionista anima as superfícies desses trabalhos abstratos em sua maioria, ao declarar a especificidade dos estados emocionais da artista. A pintura Carta de Amor, de-clara obsessivamente momentos, atos, e sentimentos íntimos por meio de pala-vras como queimar, ligar, chorar, negar, apreciar, excitar, sentir, esquecer, perdo-ar, foder, beijar. Outra tela inclui lam-ber, perder, possuir, prometer, lembrar, tocar, confiar, desejar. You you you you é configurada como um esboço no qual a maior parte da prosa está apagada (ilus-tração). No queda nada é uma das poucas pinturas nas quais elementos da natu-reza estão esquematicamente definidos em uma superfície ricamente colorida. “N a d a” é o que está escrito na parte inferior direita, evocando o vazio, a so-lidão, o nada.

O apreço de Mejia por Cy Twom-bly e por Jean Michel Basquiat é evidente na qualidade gráfica das linhas pintadas e desenhadas, na organização pictórica do espaço e na fusão das fronteiras entre a pintura e o desenho. Olhando para trás, para dois importantes artistas e professo-res, ela se lembra que Miguel Ángel Rojas lhe ensinou a importância de expressar a catarse, enquanto Luís Camnitzer lhe en-sinou a importância de ordenar a emoção.

Julia P. Herzberg, Ph.D, é curadora, especialista sênior da Fulbright, e também ministra palestras e publica constantemente sobre artistas contemporâneos nos Estados Unidos e no exterior.

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cUritiBafirma sUa Bienal

Leonor Amarante

ARTE

Adonis Flores, Incubación, 2009.

Impressão 80x120 cm

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mor ele nos reporta aos desequilíbrios de nossa realidade permanente. E lembra do período em que combateu em An-gola, como soldado internacionalista, co-baia da complexidade humana.Normalmente as bienais são salas de espetáculos para encenar grandes obras, grande parte com caráter cênico. Um dos trunfos dessa edição é mos-trar que obras sutis como as de Lilian Porter podem ter alta potencialidade, capaz de dialogar com instalações po-tentes como as de Nelson Felix.A sexta edição segue as conquistas de outras edições, potencializa seu espaço expositivo com a ocupação do Museu de Arte Oscar Niemeyer MON. Os paradigmas estéticos emanados dos centros hegemônicos Europa e Esta-dos Unidos parecem ter perdido a for-ça. Os desenhos eróticos e sensuais do uruguaio Ricardo Lanzarini nos dão a sensação de que os artistas estão atentos na desconstrução de estereótipos sobre produção dos países latino-americanos.Interessante é que o encontro de críti-cos de formações tão diferentes chegou ao denominador comum de que a arte tem sua autonomia, mas sofre com as crises que atingem muitos países.A atualidade do tema, mais do que além da crise, se reforça em muitas obras na percepção crítica de Hughs, para quem há hoje uma mudança estética de para-digmas “Obras difíceis e invendáveis, fei-tas de material precário, que se esquivam à lógica do mercado, ganham cada vez mais terreno.” Esse é um dos vieses des-sa mostra, que no conjunto reforça como um dos polos de reverberação da produ-ção brasileira. Mesmo sem uma vitrina internacional, que deveria ser colocada como meta para as próximas edições, a Bienal Vento Sul é uma realidade.Angelo Luz, intervenção

urbana na praça tiradentes, 2011.

o crítico argentino Jorge Glusberg cos-tuma dizer que, se uma bienal tem pelo menos duas obras inesquecíveis, ela já é

um sucesso. A Bienal Vento Sul de Curi-tiba tem o mérito da persistência, da ten-tativa de superar-se e de conseguir desen-volver um discurso crítico consistente.O tema Além da Crise foi oportuno e Tí-cio Escolar, que divide a curadoria com Alfons Hughs, trabalha o conceito de que a arte contemporânea tem suas próprias crises e, uma delas é a da representação. Quem pode exemplificar o discurso é o cubano Adonis Flores, artista convoca-do para a “comissão de frente” que nos recebe no Museu Oscar Niemeyer com sua série de Caveiras. Com crítica e hu-

Leonor Amarante é editora da Revista Nossa América.

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ada como meta para as próximas edições, a Bienal Vento Sul é uma realidade.

Em um edifício arrojado, a marca é a internacionalização.

marca é a internacionalização.

Sem título, 2010. Instalação. Ferro, resina,

acrílico, 150x150x60 cm I Cortesia Boers Li Gallery,

Pequim

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a assistência técnica e fi-nanceira prestada pelo Brasil a dezenas de pa-íses, especialmente da África e da América La-tina, é um dos aspectos

da política externa que pouco tem mere-cido a atenção de analistas e estudiosos. Trata-se de um dos desdobramentos da política Sul-Sul, desenvolvida nos últimos oito anos pelo governo brasileiro.

Sem chamar muito a atenção, e gra-dualmente aumentando sua presença no exterior, o Brasil está se tornando um dos maiores doadores e prestadores de assis-tência técnica e financeira para os países com menor desenvolvimento relativo. Por meio de diversas formas de ajuda, o Brasil, somente em 2010, teria se comprometido com mais de US$4,5 bilhões.

Quais as motivações dessa ação governamental no exterior, o volume e

POLÍTICA

BrasilRubens Barbosa

Um dos maiores doadores e Prestadores

de assistência tÉcnica e financeira

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assento permanente no conselho de segu-rança da Organização das Nações Unidas (ONU) e interesses comerciais de abertu-ra de mercado para serviços de empresas brasileiras na competição com o governo e companhias, sobretudo da China.

Como ocorre com a China, o Bra-sil não impõe condições aos países que recebem a ajuda, mas também não leva em consideração valores que defende-mos internamente, como democracia e

as fontes dos recursos transferidos aos países mais pobres?

Reforçar a solidariedade com gestos políticos do Brasil no mundo é a explica-ção oferecida pelo Itamaraty. Na realidade, algumas das motivações que explicam a di-plomacia da generosidade na América La-tina e na África durante o governo passado foram: a busca de prestígio para o Brasil e para o presidente Lula; o esforço a fim de obter apoio para a nossa pretensão de um

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direitos humanos, deixando prevalecer a ideia de que “negócios são negócios”.

Segundo informações coligidas em 2011 pelo The Economist, os recur-sos utilizados nessa ação externa sobem a US$1,2 bilhões, superando o Canadá e a Suécia, tradicionais doadores e pres-tadores de ajudas aos países em desen-volvimento. Os recursos são oriundos da Agência Brasileira de Cooperação do Itamaraty, com cerca de US$52 mi-lhões em 2010. De outras instituições de cooperação técnica, como a Empre-sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), saem US$440 milhões; para ajuda humanitária a países afetados por desastres naturais, US$30 milhões; recursos para a United Nations Development Programme (UNDP) das Nações Unidas, US$25 milhões; para o programa de alimentação da Food and Agriculture Organization (FAO), US$300 milhões; de ajuda para a faixa de Gaza, US$10 milhões e para o Hai-ti, US$350 milhões. Implantamos escri-tório de pesquisas agrícolas em Gana; fazenda-modelo de algodão no Mali; fá-brica de medicamentos antirretrovirais em Moçambique e centros de formação profissional em cinco países africanos

Os empréstimos do Banco Na-cional do Desenvolvimento (BNDES) e agora do Banco do Brasil para os países em desenvolvimento, de 2008 ao pri-meiro trimestre de 2010, subiram para mais de US$3,5 bilhões, em projetos na América do Sul, no Haiti, em Guiné-Bissau, em Cabo Verde, na Palestina, no Camboja, em Burundi, no Laos e em Serra Leoa. De 2003 a 2010, o BNDES concedeu US$5,3 bilhões para projetos de infraestrutura na América Latina.

O Tesouro Nacional, por outro lado, aumentou sua exposição com o incremento da contribuição do Bra-sil na Corporação Andina de Fomento para US$300 milhões e no Fundo para

a Convergência Estrutural do Merco-sul, que sobe hoje a US$470 milhões, acrescido de US$100 milhões por ano, 70% representados por contribuições do Brasil.

Por outro lado, além de créditos de difícil recuperação concedidos a al-guns países africanos, a Cuba e a Ve-nezuela, o governo brasileiro, nos últi-mos anos, perdoou dívidas do Congo, de Angola, de Moçambique, da Bolívia, do Equador, do Paraguai, de Suriname e agora da Tanzânia.

Até dezembro de 2010, coincidin-do com o final do governo anterior, se-gundo se noticiou, o governo brasileiro vai doar US$300 milhões em alimentos (milho, feijão, arroz, leite em pó) para, entre outros, Sudão, Somália, Níger e nações africanas de língua portuguesa. Serão igualmente beneficiados a faixa de Gaza, El Salvador, Haiti e Cuba. Se-gundo a Coordenação Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome do governo federal, também receberam ajuda brasileira, África do Sul, Jamaica, Armênia, Mali, El Salvador, Quirguis-tão, Saara Ocidental, Mongólia, Iraque e Sri Lanka.

No tocante à assistência técnica e à abertura de créditos para obras públi-cas em países africanos e sul-americanos, a exemplo do que ocorre com os países desenvolvidos, as empresas brasileiras poderão vir a se beneficiar, ganhando concorrências para a prestação de servi-ços e exportando produtos brasileiros.

Essa vertente da política externa reforça o soft power do Brasil, a principal característica da crescente projeção ex-terna do país.

Rubens Barbosa, diplomata de longa trajetória, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Inglaterra, é considerado um dos maiores especialistas em comércio internacional do Itamaraty e é autor de América Latina e perspectiva: a integração regional da retórica à realidade, entre outros livros.

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Quando, há algum tempo, fui convidada a par-ticipar do segundo seminário Geoestéticas do Caribe, tive a preocupação que interpre-tei, no início, como uma sorte de causalida-de geográfica operando no terreno da arte. Tendo em conta o nível de complexidade

e caráter multifacetado dos fenômenos que incidem no com-portamento das práticas artísticas no Caribe, imaginei que seria difícil abordar essa produção desde que acreditei ser uma pers-pectiva reducionista. Mas quando recebi uma cópia dos textos apresentados na primeira edição desse seminário, vislumbrei a possibilidade de focar o tema manejando uma noção múltipla do território que, além do cenário que provê a geografia do Cari-be, permitisse compreender, desde a perspectiva da arte, à apro-priação do território caribenho, que empreenderam indivíduo

REFLEXÃO

GEOESTÉTICA

Ibis Hernandez

comPleXidade em discUssão

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e sociedade durante os últimos quinhen-tos anos. Seria esta uma noção de terri-tório que ultrapassa os limites impostos pela Geografia e adiciona um bem feno-menológico que compreende as inscri-ções deixadas pelo sujeito que o ocupa e faz história.

De igual modo, acreditei ser per-tinente mencionar a existência de vários critérios, tanto no referente à delimita-ção geográfica desta região, como a sua delimitação cultural. São diversos os au-tores que têm se referido a esta questão, mas a multiplicidade de argumentos ter-mina apontando, definitivamente, até o Caribe (lugar), e/ou Caribe como uma construção sócio-histórica e cultural que muda segundo o lugar de enunciação, o período histórico e a posição ideológica deste se define, dentre outros aspectos.

Dada a superposição de cartogra-fias existentes em relação com o Caribe, decidi circunscrever a análise da obra de artistas que vivem e/ou trabalham nos territórios do arco insular e do resto da-quela região, considerando também os países que integram a Extensão Centro-Americana, de acordo com o padrão in-clusivo aplicado já por alguns eventos que têm versado sobre a arte na zona. Em termos temporais, o recorte abarcaria as duas últimas décadas, recordando que, justo nos anos de 1990, emergiu no Cari-be uma vanguarda que, imersa na batalha pela conquista de uma identidade artística contemporânea, explorou novos cami-nhos formais e conceituais de tendência, ao modificar os clichês advindos dos em-blemas regionais, ativando, de um modo inédito, a cena artística de um bom nú-mero de países. Dentro deste panorama, foi possível detectar algumas orientações que se conectam ao tema da geoestética.

Digamos, por exemplo, que o mar, associado ao tema da paisagem, como motivo de pesquisa plástica ou em qua-lidade de metáfora, atravessa parte do imaginário visual da Região. Seu poten-

cial metafórico tem se convertido em recurso eficaz para adentrar-se aos do-mínios da psicogeografia especial e ex-plorar as sensações e estados de ânimo que provoca “a maldita circunstância da água por todas as partes”, a que se refe-ria o escritor cubano Virgilio Piñera em seu poema La isla en peso . Insularidade, fronteira e migração são temas que se transpassam e podem compartilhar um repertório comum de significantes. O mar, a embarcação e a cartografia têm sido três dos ícones mais recorrentes e é, na realidade, a ideia de que a viagem está indissoluvelmente ligada às condições geográficas e à história da região. Um exemplo são os passeios de canoa nos bairros nativos, as viagens de Colombo, o trânsito dos navios negreiros - de onde teve origem a aventura do “abismo”, a que se refere Glissant -; os movimen-tos de corsários e piratas, dentre outros. Agora no terreno da arte, a imagem da embarcação não só reproduz as viagens históricas, como abordam também mi-grações e traslados mais recentes, pois não se pode esquecer que navegam nes-sas águas azuis, luxuosos cruzeiros e pre-cárias balsas. De igual modo, os remos, pontes e portos têm revelado o desejo de buscar novos horizontes, a sensação de medo ou a insegurança experimenta-da na travessia. A arte edifica, assim, um território de constantes deslocamentos, de margens imprecisas e flutuantes que, não por renegar a norma imposta pelo mapa geográfico, consegue desmarcar-se das circunstâncias e a paisagem real na qual irremediavelmente se inscreve.

Em sua densidade metafórica, o mapa geográfico tem tido também uma presença destacada nas artes visuais do Caribe. Em Cuba, chegou a converter-se em um dos ícones mais versáteis da plástica dos anos 1990, dentre as poéticas que deram continuidade ao debate crítico iniciado na década anterior, agora, desde um hedonismo simulador que encontrou

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Ibis Hernández Abascal é pesquisadora e curadora do Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam, de Cuba.

nesta metáfora geográfica um código eficaz para prolongar, de forma astuta, a discussão sobre tópicos cadentes da re-alidade social. No solitário, multiplicado, desdesenhado ou sobredimensionado; transformando em balsa, cesta, jaula, ra-bisco, homem ou animal; ocupando seu lugar no mapa-múndi ou transladado a uma oficina de reparações, o mapa da ilha estendeu seu enorme potencial se-mântico ao se descobrir como território de aspirações, frustrações, utopias, me-mórias, migrações, batalhas, vicissitudes e identidades, em um dos momentos mais difíceis da história de Cuba.

Muitas outras linhas de trabalho dão conta da relação arte-território na

zona geocultural do Caribe; não menos importantes seriam aquelas que con-templam o nexo com o etnocultural, ou as práticas de inserção social nas comu-nidades fixas transterritoriais, no espa-ço das urbes modernas, e nas zonas de assentamento ilegal e dos bares. Expe-riências desse porte se estendem com alcance desigual por vários países da área e merecem igual atenção, ainda que tenhamos pretendido visualizar apenas um pequeno recorte de tudo quanto po-deria abarcar o tema.

Na página anterior, Mapas

(detalhe) de Ibrahim Miranda

(Cuba). Acima, Cinco Carosas

para la Historia, 1991, instalación

(técnica mixta), de Marcos Lora

Read (República Dominicana).

Foto David Damoison.

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inflaçãoo sistema da dÍvida e a

no Brasil

a atual crise financeira mundial teve início em 2008, localizada nas maiores instituições fi-nanceiras do mundo que corriam risco de quebra devido à utilização desenfreada de diversos produtos financeiros sem lastro, especialmente os derivativos. Apesar de nu-

merosas denúncias de fraudes, as nações mais ricas do mundo decidiram “salvar” tais instituições com a emissão de grandes volumes de dívida pública. Tal procedimento escancarou a uti-lização do endividamento público às avessas, ou seja, a dívida pública deveria servir para aportar recursos ao Estado e não o contrário. Dessa forma, a crise atual expôs as entranhas do que batizamos de “Sistema da Dívida”, isto é, a utilização do instrumento do endividamento público como um sistema de desvio de recursos públicos em direção so sistema financeiro.

Maria Lucia Fattorelli

ECONOMIA

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Para operar, esse sistema conta com ar-cabouço de privilégios de ordem legal, política, financeira e econômica, que visam a garantir prioridade absoluta aos pagamentos financeiros, em detri-mento de direitos humanos e sociais de toda a Nação.

No Brasil, apesar de a Constitui-ção Federal prever a realização da au-ditoria da dívida, tal dispositivo nunca foi cumprido. As recentes investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública revelaram a absoluta necessidade da realização da auditoria da dívida, tendo em vista a comprovação de numerosos indícios e evidências de ilegalidades, ilegitimidades e, especialmente, a utilização do endivi-damento público como instrumento de

transferência de recursos públicos ao setor financeiro.

Os trabalhos da CPI e da Audito-ria Cidadã da Dívida têm comprovado que também em nosso país o “Sistema da Dívida” conta com privilégios de toda ordem, especialmente com uma superes-trutura legal que parte da Constituição Federal: reafirma-se na Lei de Diretrizes Orçamentárias, na Lei de Responsabi-lidade Fiscal e na legislação que rege o chamado “Regime de Metas de Infla-ção”, dentre outras normas, afetando di-retamente a vida de toda a sociedade.

No presente artigo menciono de forma resumida como um conjunto de normas legais nacionais tem garantido prioridade absoluta à remuneração dos detentores de títulos da dívida brasilei-

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ra por meio de elevadas taxas de juros, favorecendo ainda o crescimento con-tínuo do estoque da própria dívida pú-blica, com a emissão continuada e até inconstitucional de dívida para pagar esses elevados juros.

O mais grave é que todo esse apa-rato “legal” que favorece o setor finan-ceiro surgiu no campo jurídico de forma tortuosa e demanda aprofundamento de estudos e investigações.

Paira sob o art. 166, § 3º., II “b” da Constituição Federal, robusta de-núncia de que tal dispositivo jamais chegou a ser votado pelos parlamen-tares constituintes, tendo sido incluído no texto final como um contrabando, segundo especialistas do Congresso Nacional à época – Anatomia de uma Fraude à Constituição.

Tal dispositivo excetua os gastos com a dívida pública da regra geral apli-cada aos demais gastos, isto é, qualquer proposta de gasto ou investimento que

represente ônus financeiro ao orçamen-to da União terá, obrigatoriamente, que indicar a fonte de recursos suficiente para tal gasto, exceto os gastos com a dívida pública. Dessa forma, se o Banco Central eleva as taxas de juros sob a jus-tificativa de conter a inflação, por exem-plo, e gera a necessidade de mais recur-sos para pagar tais juros, não ocorre a necessidade de indicar de onde sairão os recursos para tanto: o remédio aplicado tem sido emitir dívida para pagar dívida.

O referido remédio conflita com outro dispositivo constitucional – art. 167, III - que estabelece a proibição de emissão de dívida para pagar despesas correntes, rubrica que compreende os juros da dívida. As investigações reali-zadas durante a CPI da Dívida Pública revelaram a contabilização irregular de grande parte dos juros como se fos-sem amortizações, o que representa mais uma flagrante evidência de burla à Constituição e ilegalidade no tratamen-to dos gastos da dívida.

Além do indício de desobediên-cia ao dispositivo constitucional, tal fato revela o encobrimento do efetivo custo dos juros da dívida, aliviando seu peso quando comparado, por exemplo, com as despesas de Pessoal, Previdência e outras, que acabam sendo traduzidas em grandezas distintas. Enquanto os dispêndios com Pessoal ou Previdên-cia englobam a variação de preço neles embutidos (por exemplo, reajustes sala-riais decorrentes de inflação, atualização de tabelas dos serviços de saúde, atua-lização de benefícios previdenciários, reajuste do salário mínimo decorrente da inflação, dentre outros), o valor dos “Juros e Encargos da Dívida” considera somente a parcela dos juros que supera a inflação. Tal fato decorre da metodo-logia utilizada no Balanço Orçamentário da União, que tem considerado como “Juros” somente a parcela que supera a inflação indicada por índices (IGP-M), e

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computa a atualização monetária da dí-vida pública juntamente com a rubrica “Amortização”.

Evidencia-se, portanto, que a mesma “inflação” que serve de argu-mento terrorista para coibir e proibir reajustes automáticos para os salários, aposentadorias e outros direitos sociais com base em sua variação, não vale para os juros da dívida, que têm a parcela da inflação expurgada de seu custo e sequer computada nos juros, mas erradamente como amortização.

Desde 1999, com a edição do De-creto 3.088, foi instituído no Brasil o regime de “Metas de Inflação”, que ele-geu a Política Monetária - taxas de juros - como o principal instrumento de com-bate à inflação, dado que o art. 2º. do De-creto delegou ao Banco Central do Brasil

a execução das “políticas necessárias para cumprimento das metas fixadas”.

Cabe observar mais uma desor-dem legal, pois o citado decreto confli-tua com a Lei 4.595 (art. 3º., II), da qual decorre, já que a utilização preponde-rante das taxas de juros no controle da inflação significa o descarte das demais medidas mencionadas na referida lei, necessárias para o controle da inflação, tais como a prevenção ou a correção de depressões econômicas e outros dese-quilíbrios conjunturais. Além desse in-dício de ilegalidade, a eleição das taxas de juros como praticamente o único ins-trumento de combate à inflação contém uma série de inconsistências que provo-cam repercussões econômicas e sociais.

O Brasil já apresenta preocupan-tes índices de desindustrialização e dados

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oficiais comprovam que mais de 70% da inflação decorre dos grandes aumen-tos nos preços administrados (tarifas de energia, telefone, combustível, transpor-tes, entre outros) que influenciam forte-mente na formação dos preços.

As distorções que favorecem o Sis-tema da Dívida prosseguem nas chamadas “Operações de Mercado Aberto”, realiza-das em grande volume pelo Banco Central sob a justificativa de combate à inflação e na prática representam dívida feita sem autorização legislativa, em flagrante con-flito com a Lei Complementar 101/2000, que proibiu a emissão de títulos pelo Ban-co Central. Tais operações estão servindo para trocar dólares especulativos que in-gressam no país, sem controle, por títulos da dívida pública que pagam os juros mais elevados do mundo, sob a justificativa de controle da inflação mediante o enxuga-mento da base monetária.

Esse mecanismo tem provocado megaprejuízos operacionais ao Banco Cen-tral - R$ 147,7 bilhões em 2009 (http://www.bcb.gov.br/htms/inffina/be200912/dezembro2009.pdf) e R$ 48,5 bilhões em 2010 (http://www.bcb.gov.br/htms/in-ffina/be201012/dezembro2010.pdf) - o que representa significativo dano ao patri-mônio público, pois tal prejuízo é, por lei (11.803/2008, art. 6º.), coberto pelo Tesou-ro Nacional, ou seja, por todos nós.

A justificativa reiteradamente apresentada pelo governo para a acumu-lação de reservas internacionais (prote-ção do país de fugas de capital em crises financeiras globais) não se sustenta, dado que tal proteção seria feita de forma bem mais eficiente por meio do controle so-bre o fluxo de capitais financeiros, adota-do com sucesso por vários países.

O resultado tem sido o crescimento explosivo da dívida pública, cujo montan-

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te supera R$ 2,5 trilhões, e o pagamento de juros e amortizações consumiu 45% dos recursos do orçamento federal em 2010, conforme mostra o gráfico a seguir.

Neste ano de 2011 a taxa de juros Selic já subiu 5 vezes, saindo de 10,75% e alcançando 12,5%. Recentemente ocor-reram duas reduções de apenas 0,5% e a Selic está situada no elevado patamar de 11,5% ao ano, enquanto mais de 40 países praticam taxas de juros inferio-res a zero. A prática de elevadas taxas de juros não tem servido para combater o tipo de inflação que temos. Adicio-nalmente, perpetua a concentração de renda no Brasil , 7ª. economia mundial, que ocupa a vergonhosa posição de 8º. país mais injusto do mundo, segundo o Índice de Gini, e é o 73º. no ranking de respeito aos direitos humanos.

Alternativas para o efetivo com-bate à inflação existem e são muito mais

eficientes: redução da taxa de juros; controle e redução dos preços admi-nistrados; reforma agrária para garantir a produção de alimentos não sujeitos à variação internacional dos preços de commodities; controle de capitais para evitar o ingresso de “capitais abutres”, meramente especulativos, e as fugas no-civas à economia real; adoção de medi-das tributárias apropriadas ao controle de preços. Para tanto, é necessário de-sarmar o Sistema da Dívida e corrigir os rumos da política econômica.

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida desde 2001 e colaboradora do Le Monde Diplomatique.

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a Argentina sai de um conflito interno de amplas proporções a partir do colapso fi-nanceiro de 2001, que levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa, da Unión Cívica Radical (UCR). Sob a presidência de Eduardo Duhalde, nomeado pelo congres-

so, cristalizando um processo de normalização institucional.Com Néstor e Cristina Kirchner com três mandatos sucessivos, a partir de 2003, consolida-se a supremacia do peronismo na política nacional, sob um quadro de forte crescimento da eco-nomia e melhoria dos indicadores sociais. O governo de Nés-tor Kirchner opera em um clima de relativa estabilidade eco-nômica, com uma recuperação favorecida pela suspensão dos pagamentos da dívida e sua posterior reestruturação, amplia-ção do consumo pela expansão dos gastos de uma população

KIRCHNERnÉstor e cristina

afirmação do Peronismo

Luis Fernando Ayerbe

ELEIÇÕES

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A quantidade de votos obtida por Cristina (na

foto com Néstor Kirchner falecido em 2010) foi uma

surpresa para todos.

desconfiada com o sistema bancário, e a desvalorização cambial, que impulsiona as exportações e a indústria dirigida ao mercado interno.

Com essa situação favorável, o grande desafio era desarmar o radicalis-mo que o conflito social havia alcança-do entre dezembro de 2001 e julho de 2002, o processo de mobilizações che-gou a levar à rua 4 milhões de pessoas,

em uma população economicamente ativa de 30 milhões.

A principal resposta será a ex-pansão das políticas de assistência para os setores mais afetados. Com a presidência de Duhalde, estabelece-se o Plan de Jefes y Jefas de Familias (PJJF), que outorga 150 pesos mensais (50 dólares aproximadamente, na época) para desempregados que são chefes de

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família. De 1.300,000, em outubro de 2002, a oferta de PJJF se amplia para 2.100,000, a partir de 2004.

Outra área de atuação que apro-xima as administrações dos Kirchner das reivindicações dos movimentos so-ciais é a política de direitos humanos, que obtém o apoio de organizações como Madres y Abuelas de la Plaza de Mayo. Em março de 2006, quando se cumprem 30 anos do golpe militar, o Poder Executivo coloca publicamen-te em discussão a anulação dos indul-tos concedidos por Carlos Menem, em 1990, aos principais dirigentes da Ditadura. No mês de abril de 2007, o Tribunal Penal e Federal considera in-constitucionais os decretos de anistia com base na tese da não prescrição dos crimes contra a humanidade.

A ampliação das políticas so-ciais, a retomada da ofensiva contra a impunidade na violação dos direitos humanos e a interlocução com os mo-vimentos populares fazem parte do esforço de Néstor e Cristina Kirch-ner para construir marcos de governo, apostando em uma nova correlação de forças de centro-esquerda. Partindo desta perspectiva, criam a Frente Para la Victoria (FPV), sigla que abrigará as candidaturas presidenciais de Cristina em outubro de 2007 e 2011, em que vence no primeiro turno com, respecti-vamente, 46% e 54% dos votos.

Apesar da diferença favorável obtida na reeleição, o caminho não esteve livre de obstáculos. Em 2007, a vitória se antecipava como conse-quência inevitável da recuperação do país sob a presidência de seu marido, que termina o mandato com índice de imagem positiva, próximo aos 60%. Em 2011, ainda que as entrevistas mostrassem uma tendência de maior apoio à Cristina, em parte influencia-das pela solidariedade gerada em boa parte da população pelo falecimento

de Néstor, em outubro de 2010, o nú-mero de votos obtidos nas eleições prévias de agosto, ampliados em outu-bro, foi uma surpresa para a oposição e boa parte dos analistas.

A explicação está em diversos problemas que afetaram desde o início a gestão de Cristina. A poucos dias de assumir, enfrenta a acusação de usos irregulares de recursos em sua campa-nha, que seriam originários do governo da Venezuela, denúncia que envolveu a setores próximos à Administração de George W. Bush, complicando a rela-ção com os Estados Unidos. O ano de 2008 está marcado por forte polariza-ção, com o campo envolvendo o volu-me de retenções, por parte do Estado de recursos provenientes de recursos agrícolas, levando a uma derrota da lei enviada ao parlamento, em que a atu-ação do vice-presidente Julio Cobos, originário da UCR, foi decisiva na vo-tação, levando a uma ruptura irreversí-vel na cabeça do Poder Executivo. Nas eleições de 2009, a oposição avança substancialmente, obtendo maioria no Congresso, com a simbologia expressa na vitória do dissidente peronista Fran-cisco de Narváez sobre Néstor Kir-chner na contenda de deputados pela província de Buenos Aires. A visibili-dade da oposição se faz mais explícita na crítica à oposição da economia, es-pecialmente no tema da inflação, com o questionamento da credibilidade das medições do Índice Nacional de Esta-dísticas y Censos (Indec).

As dificuldades enfrentadas pela administração de Cristina contribuíram para criar uma percepção na oposição e setores da opinião pública de que a ex-periência dos Kirchner na presidência se encerra em 2011. No entanto, três temas se opõem na hora de compre-ender a discrepância entre essas per-cepções e a realidade: 1- Independente das diferenças partidárias da maioria

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Luís Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (IEEI-Unesp).

Vários fatores explicam a reeleição de Cristina

com esmagadora maioria de votos.

da população, é palpável o contraste entre a crise de 2001-2002 e o período posterior, em termos de qualidade de vida. De acordo com a Comissão Eco-nômica para a América Latina, depois da queda do PIB, de 10,9%, em 2002, entre 2003 e 2010, o crescimento mé-dio anual será de 7,5%, incluindo nes-se cálculo o índice de 0,9%, de 2009, influenciado pela crise financeira in-ternacional. Paralelamente, entre 2002 e 2010, o desempenho urbano dimi-nui de 19,7% para 7,8%, e aumenta de 79,6% para 170,3% a média do salário real. 2- A oposição se mostra fragmen-tada e sem um projeto alternativo ca-paz de influenciar uma oposição por mudanças de condução. Contrariamen-

te ao período da Ditadura, a coesão em um bloco antagônico não se justifica pelo questionamento de um regime, as diferenças com o governo se expres-sam em um espectro ideológico, cuja polarização impossibilita a convergên-cia em uma candidatura. 3- A memória dos governos não peronistas prévios aos Kirchner, com a hiperinflação que levou à saída antecipada de Raúl Alfon-sín, em 1989, e a renúncia de De La Rúa, em 2001.

Por que arriscar mudar?

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apresentado como dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1989, o estudo de Sonia Sterman ganha agora uma segunda edição, revista, atu-alizada e ampliada (Editora Revista dos Tribu-nais). A autora se apoiou em rigorosa pesquisa

e farta documentação para realizar uma reflexão profunda e de-talhada sobre o complexo tema da responsabilidade do Estado diante dos movimentos sociais, especialmente quando há danos materiais ou prejuízos a terceiros. Tema atual e controverso, pois envolve conflitos entre estruturas políticas, interesses e grupos so-ciais, conjuntura econômica, legislação e atuação estatal, tanto na esfera pública interna de cada país como internacional, principal-mente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Esta-dos Unidos. A questão dramática que se coloca para governantes,

resPonsaBilidade do

estadoReynaldo Damazio

LIVRO

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juízes e cidadãos comuns é que cada movimento social, seja pacífico ou vio-lento, tem suas pautas e peculiaridades e não pode ser tratado de forma generali-zada a partir de princípios jurídicos enri-jecidos e indiscutíveis. Esse fato, apenas um detalhe entre muitos implicados na discussão, demonstra que o contexto histórico é sempre movediço, instável e exige uma compreensão também his-tórica de suas implicações, que pode refletir uma demanda legítima da socie-dade, um anseio de mudança, ou uma crítica aguda a determinada situação que se tornou insustentável, como ocorreu recentemente nas manifestações da cha-mada “Primavera Árabe”, no Egito, na Líbia e na Tunísia.

Segundo Sterman, “nas últimas décadas, o aparecimento de inúmeros movimentos sociais, alguns trazidos pela globalização ou antiglobalização, pela democratização de regimes polí-ticos, por novas ideologias no campo

social, pela ruptura de padrões cultu-rais tradicionais, pelo desenvolvimento econômico e tecnológico, pelo aumento da consciência sobre os direitos funda-mentais previstos nas Constituições, in-clusive sobre a cidadania, transformou a realidade social do planeta e trouxe con-sequências ao direito”.

Em sua análise, a autora inclui, além da legislação brasileira, referências ao direito italiano, português e norte-americano, este último tendo sido acres-cido à presente edição, com destaque para a lei de combate ao terrorismo – o USA Patriot Act, de 2001, cuja vigência foi rati-ficada pelo presidente Barack Obama até 2015. Faz uma comparação ponderada, levando em conta as particularidades cul-turais e históricas de que país, para enten-der como os movimentos sociais se tor-nam um elemento cotidiano fundamental na consolidação da democracia.

Para fundamentar a reflexão sobre como o direito se adapta ao contexto das

Democratização e globalização são apenas dois dos pontos que, segundo a autora, transformaram a realidade do planeta.

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lutas sociais, a autora apresenta a trajetó-ria dos movimentos multitudinários ao longo da História, desde a Antiguidade ao mundo contemporâneo, em suas for-mas variadas, que pode ser a de um pro-testo localizado, ou uma revolução.

Nos capítulos dedicados ao Brasil, Sterman aborda movimentos relevantes da política atual, como os dos sem-terra e dos sem-teto, mas também o dilema das torcidas organizadas de futebol, di-ferenciando a atuação criminosa da rei-vindicação coletiva.

Reynaldo Damazio é sociólogo e jornalista, autor de Horas perplexas, entre outros livros.

O livro oferece uma reflexão sobre como o

direito se adapta ao contexto de

movimentos sociais.

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É cada vez maior a atenção internacional deposi-tada no reservatório de Uyuni, de 10 mil km², 180 km de comprimento e 80 km de largura, que é uma das regiões com maior riqueza mi-neral no planeta. A “Pérola dos Andes”, que está a 3.670 metros acima do nível do mar,

contém as reservas de lítio mais importantes do mundo, e ain-da possui jazidas de boro, chumbo, magnésio, potássio, prata, zinco, bismuto e resguarda os maiores projetos de mineração da América do Sul. A reserva de Uyuni estima-se em 9 milhões de toneladas de lítio, um metal branco-prateado, macio, leve, pouco tóxico, que se encontra disperso em rochas. Argentina (6 milhões) e Chile (7,5 milhões) também possuem reservas con-sideráveis de lítio, embora em quantidade menor que Bolívia. Alguns chamam-no de “petróleo do novo século” em refe-

A GEOPOLÍTICA DO

lÍtioBruno Peron

DEBATE

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rência ao papel deste recurso energético na centúria passada.

Não é à toa que virou moda prognosticar o uso massivo de carros elétricos, que supostamente provocam menor agressão ao meio ambiente, e cresceu o uso de lítio em baterias de pro-dutos eletrônicos com os quais estamos habituados. O lítio é bastante emprega-do em computadores pessoais, laptops, ipods, tablets, aparelhos celulares e de MP3, equipamentos elétricos de higiene pessoal, indústria aeronáutica e aeroes-pacial, e até como agente terapêutico em psiquiatria. Alemanha e Estados Unidos preveem uma frota de um milhão de ve-ículos elétricos em cada um destes dois países até 2015. Baterias de íons de lítio são mais avançadas que as de chumbo-ácido e níquel-cádmio, que haviam sido utilizadas até então, apesar do grau eleva-do de toxicidade. É o insumo do futuro em tecnologia. Um dos desafios é o de como aumentar a capacidade de armaze-namento de energia nesse metal.

E como o lítio participa de um tabuleiro de geopolítica?

A conhecida divisão internacional do trabalho entra em jogo novamente. Conquanto os bolivianos resistam à ex-ploração nacional das jazidas de Uyuni, empresas privadas asiáticas e europeias (algumas das quais dominam o setor mi-neiro neste país andino) estão de olho em um potencial que poucos são capa-zes de transformar em um produto de alto valor agregado. Em três anos, a to-nelada de lítio valorizou-se de trezentos para três mil dólares estadunidenses. A nacionalização do setor de petróleo e gás natural indispôs os investidores, mas não saciou seu apetite. Restam à Bolí-via poucas saídas entre vender o lítio ou deixá-lo soterrado sem rendimento algum sob a tutela das turísticas “mo-mias” cavernícolas das ermas salinas.

Porções territoriais de Argen-tina, Bolívia e Chile na região andina possuem 70% das reservas mundiais de lítio, o que não é nada dispensável em face do aumento do preço desta maté-ria-prima estes últimos anos. Por que o Japão, um país tão pequeno, formado praticamente por quatro ilhas maiores (Hokkaido, Honshu, Shikoku e Kyushu) no continente asiático, e dependente da importação de recursos naturais para suas indústrias de ponta está tão à frente das nossas “dádivas”, “pérolas” e “pre-ciosidades” latino-americanas?

O Japão, embora não disponha de riquezas minerais, é um dos países mais poderosos do mundo, enquanto a Bolívia é rica em recursos naturais, mas um país desigual, explorado, mal com-preendido e pobre. Não urge discutir se é mais um exemplo de ironia da nature-za ou de má administração das benesses com que se pretendem alguns rincões do planeta, porém, são incapazes de recom-pensar as mesmas terras de onde surgem.

A experiência da América Latina em mineração, com raras exceções, é de

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uma troca iníqua ou incapaz de materia-lizar-se em retorno na forma de políticas públicas à população, ainda que não só os Estados sejam responsáveis por recom-pensar as gotas do suor dos nossos povos. Os mineiros têm expectativa de vida abai-xo da média na Bolívia devido às condi-ções insalubres de trabalho, que culminam muitas vezes na “silicose” (petrificação dos pulmões) ou morte por soterramento (efeito das explosões por dinamite).

No entanto, não há motivo para ceticismo exacerbado diante da explora-ção do lítio por empresas estrangeiras – a sinalização do interesse provém sobre-tudo das automobilísticas – ou receio de perda de soberania, desde que se realize o desejo do presidente Evo Morales Ayma de formar parcerias com as mesmas, vi-sando a transferir tecnologia à defasada matriz científica do país andino, acompa-nhar as fases de prospecção, extração e

distribuição, e injetar os recursos finan-ceiros em políticas sociais para o desen-volvimento do povo boliviano.

Qual seria a vantagem boliviana de manter a reserva de lítio embaixo da salina? E se um dia alguma inven-ção científica descartar o uso do lítio em prol de outro elemento mais útil no armazenamento de energia para equipa-mentos eletrônicos? O dilema é menos econômico que geopolítico. A Bolívia solicita algo mais que simplesmente pro-ver aquilo que sempre lhes arrebataram com o fito de mudar a posição das peças no circuito capitalista internacional.

O reservatório de Uyuni é uma das regiões com maior

riqueza mineral do planeta.

Bruno Peron Loureiro é mestre em Estudos Latino-americanos pela Facultad de Filosofía y Letras da Universidad Nacional Autónoma de México (FFyL/UNAM).

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nem o direito à informação, nem a refor-ma da legislação sobre os meios eletrôni-cos de comunicação foram temas relevan-tes na campanha eleitoral de 2003, quando Néstor Kirchner chegou à presidência com apenas 22% dos votos. Tampouco a agen-

da midiática mereceu destaque no 1º. ano de gestão do líder peronista, que havia firmado um pacto de convivência en-tre os bastidores com o grupo Clarín. Paralelamente, além dos acordos cortesãos, no âmbito da sociedade civil, já es-tava em curso, um cada vez mais ativo movimento encabe-çado por intelectuais e jornalistas impulsores de uma nova lei de meios, inspirada na limitação da propriedade cruza-da dos oligopólios, sendo que o maior deles era, e continua sendo, precisamente o Clarín. Eis aqui um dado substancial

LIBERDADEde eXPressão

Darío Pignotti

COMENTÁRIO

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Questão complexa em um país em que o povo repudiou tanto a classe política quanto

a imprensa.

para compreender porque a problemá-tica argentina sobre comunicação de massas adquiriu uma envergadura extra-ordinária, e é o que podemos chamar de sociologia do conhecimento dos profis-sionais da imprensa. Ocorre que a maio-ria dos jornalistas que se empenham no mercado e na imprensa alternativa são egressos das grandes universidades pú-blicas, como são as de Buenos Aires, La Plata, Córdoba e Rosário, em cujos pla-nos de estudos se debatem as políticas de informação dos sistemas de meios, e as legislações comparadas, dentro de uma esfera teórico-epistemológica na qual prevalecem as correntes críticas, defensoras de reformas.

Autores como o venezuelano An-tonio Pasquali, o belga Armand Matte-lart, o brasileiro Renato Ortiz e os ar-gentinos Margarita Grazziano e, mais recentemente, Guillermo Mastrini, es-tudaram nas faculdades.

Fora do âmbito profissional-acadêmico, passando ao plano da re-cepção, observamos também outro fator importante no momento de en-saiar uma explicação aos processos observados na Argentina, e consiste no rompimento do contrato de ve-rossimilhança entre os meios predo-minantes e a audiência, resultado da memória comunicacional do grande público. Sobressaem-se, neste recorte analítico, três grandes relatos fraudu-lentos dos meios massivos, como se fossem a falsa história de que as tro-pas argentinas estavam em uma situ-ação vitoriosa durante a Guerra das Malvinas, o que se revelou falso na pronta rendição das tropas argentinas, a ocultação e o desvio de toda notícia sobre violações dos direitos huma-nos em um país onde, precisamente, registrou-se o genocídio mais atroz da América do Sul no século XX. Mais recentemente, o público melhor infor-mado, assim como partes crescentes

do grande público, expressou seu de-sengano frente ao discurso midiático relativo à crise de 2001, que derivou na bancarrota econômica e uma cri-se política sem precedentes. Assim, em dezembro de 2011, quando vários presidentes interinos assumiam e re-nunciavam dias mais tarde, as paredes portenhas mostravam grafites que re-pudiavam tanto a classe política, re-clamando “que se vão todos” como questionavam as “mentiras de Clarín”.

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AGENDAAGENDA

Darío Pignotti é doutor em Comunicação, especialista em Relações Internacionais e correspondente no Brasil da agência internacional italiana Ansa e do Le monde Diplomatique.

OITO ANOS DEPOISA presidente Cristina Fernández

foi reeleita em outubro de 2011, com 54% dos votos, oito anos depois da as-censão de seu marido, falecido em 2010.

Ainda que ela seja herdeira do le-gado de Kirchner (que em 2009 lançou uma declaração virtual de guerra contra o Clarín), o caráter de sua campanha eleitoral foi marcadamente diferente à de 2003 e a diferença substancial con-sistia em que, agora, o centro do deba-te foi ocupado, junto a outros assuntos tradicionais, como as políticas sociais e a economia, a defesa do direito à infor-mação por meio da reivindicação da lei nº. 26.522, de Meios Audiovisuais (san-cionada em 2009), e o enfrentamento aberto com o conglomerado Clarín.

Constitui um fato inédito na his-tória republicana argentina que o debate sobre conteúdos, propriedade e partici-pação social na esfera pública informa-tiva, conquiste o interesse das grandes maiorias em um processo selado pela radicalização dos antagonismos.

E os dois polos que tencionaram esse confronto foram de um lado a pre-sidente e candidata à reeleição, Cristina Fernández de Kirchner, e do outro os diversos veículos do conglomerado Cla-rín, transformado em pouco menos que um explícito partido opositor, ocupan-do o vazio deixado pelas inexpressivas forças que se opõem ao governo e obti-veram pouco respaldo nas urnas.

Nesse contexto de tensões políti-cas, eleitorais e midiáticas é que deveria ser abordado o fato de que o presidente venezuelano Hugo Chávez tenha sido premiado pela Faculdade de Jornalismo e Comunicação Social de La Plata, com o prêmio denominado Rodolfo Walsh, em memória de um dos mais de 100 jor-nalistas assassinados pela ditadura mili-tar (1976-1983).

Segundo explicaram as autori-dades dessa Casa de Estudos, uma das

mais identificadas com a gestão de Fer-nández de Kirchner, o prêmio foi o re-conhecimento à proliferação de meios comunitários na Venezuela, antes de Chávez. Possivelmente, mereceria outro artigo a análise das relações suscitadas por esse prêmio, entregue há somente sete meses dos comícios presidenciais.

De um lado, os principais canais e jornais privados dedicaram amplo espaço ao prêmio, questionando os méritos do líder venezuelano, o que definiram como um ameaça à liberdade de expressão.

Do outro, os meios estatais, as principais organizações defensoras dos direitos humanos do país e uma multi-dão de estudantes, não só de comunica-ção, ovacionou o governante na sede da faculdade de comunicação platense.

O antagonismo frente à perso-nalidade de Chávez é a tradução das controvérsias existentes na sociedade e, especialmente no âmbito profissio-nal, sobre o não modelo midiático que tem dado lugar à aparição de duas tribos jornalísticas: os autoproclamados “in-dependentes”, defensores dos veículos privados e questionadores da “soberba, intolerância e intimidações” do gover-no, e os assim denominados “militan-tes”, identificados com a comunicação “popular”, em geral, simpatizantes da gestão Cristina e questionadores da “li-berdade de imprensa empresarial e os monopólios privados que concentram o controle dos fluxos de informação”.

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O GESTO E AS CORES DE JUAN MUZZI

RECURSOS HÍDRICOS PARA AMÉRICA LATINA, TEMA DA CÁTEDRA

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AGENDA

Além de pinturas e esculturas, Juan Muzzi também cria máquinas e brinquedos. Acaba, por exemplo, de in-ventar uma bicicleta produzida com gar-rafas PET. É desse artista construtivista multifacetado que o Memorial reuniu uma série de trabalhos em retrospectiva para comemorar os 20 anos do Merco-sul. Desenhos, gravuras, pinturas e es-culturas ilustraram um longo período da carreira desse uruguaio radicado no Bra-sil há cerca de 40 anos, que teve como “mestre” Torres Garcia e trabalhou in-tensamente ao lado de Rubens Gerch-man, grande nome da arte brasileira.

Os recursos hídricos figuram como um dos grandes temas da atualidade. Dis-tribuição, contaminação e desabastecimen-to são algumas das questões que podem ameaçar a vida no planeta. Dada a relevân-cia do problema, será a área de interesse da próxima Cátedra Unesco Memorial da América Latina. O programa do curso que será realizado no primeiro semestre deste ano envolve inclusive os avanços tecnoló-gicos, conceituais e institucionais e as dife-renças entre os países da América Latina. Integram também a pauta, o panorama internacional e seus impactos nos conti-nentes americanos. Paralelamente, serão realizadas visitas técnicas a várias represas da região metropolitana de São Paulo e do interior do Estado. Gerenciamento Inte-grado de Recursos Hídricos para a Amé-

rica Latina será ministrado pelo professor doutor José Galizia Tundisi e contará ainda com a participação de especialistas convi-dados. Informações adicionais podem ser obtidas com Rosângela Moraes pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone (55 11) 3823-4602/03.

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POESIA

Eres la compañía con quien hablode pronto, a solas.

Te forman las palabrasque salen del silencio

y del tanque de sueño en que me ahogolibre hasta despertar.

Tu mano metálicaendurece la prisa de mi mano

y conduce la plumaque traza en el papel su litoral.

Tu voz, hoz de ecoes el rebote de mi voz en el muro,

y en tu piel de espejome estoy mirando mirarme por mil Argos,

por mí largos segundos.Pero el menor ruido te ahuyenta

y te veo salirpor la puerta del libroo por el atlas del techo,por el tablero del piso,o la página del espejo,

y me dejassin más pulso ni voz y sin más cara,

sin máscara como un hombre desnudoen medio de una calle de miradas.

PoesÍa

Xavier Villarrutia Gonzáles (1903-1950), escritor, poeta, dramaturgo e crítico literário mexicano, publicou Nocturnos(1933) e Nostalgia de la muerte (1938), entre outras obras.

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