inferninho - rodrigo araujo -...

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2

Sumário

3. Inferninho

4. Espetáculos

13. Só

22. Pequenos

31. Bolinando a morte

46. Nós

54. Coraçãozinho no espeto

66. Doente

74. B

85. Migalhas

95. Silêncio crítico

3

Inferninho

– Ai, meu deus! O que você fez.

– Isso é só o começo... Você não viu nada.

4

5

1

Eu, o atirador de facas, anuncio “– Respei-

tável público, preciso de alguém disposto a tudo

para ter seus cinco minutos de glória”.

6

2

Eu, o corajoso da platéia, “– Disposto a

tudo, não é?” entro no picadeiro agarro as facas

e mostro minha indignação por não me fazerem

rir.

7

3

Eu, o velho palhaço, com o sorriso de

guache no rosto, mostro a verdadeira face ao

sentir a lâmina rasgar minhas costas.

8

4

Eu, o pai de família, sorrio, tento disfarçar,

minha esposa vê. Nunca mais o casamento é o

mesmo.

9

5

Eu, o leão carcomido, rujo em êxtase.

10

6

Eu, o mágico ilusionista, corro para salvar

minha vida. Uma fisgada abaixo do joelho.

Conheço meu destino.

11

7

Eu, a criança espectadora, me impressiono

ao ver os corpos no chão anunciando o fim do

espetáculo “– Gostei desse tal circo, mãe”.

12

8

Eu, o repórter policial, registro tudo “– O

show tem que continuar”, e acrescento ao jornal:

“O psicopata, louco de amor, ficou em fúria ao

saber do casamento da trapezista com o mágico”.

13

14

Deixe recado após o sinal

Ligou para casa para avisar que chegaria

mais tarde. Goles solitários, No fun. Ficou

surpreso com o rouco da própria voz do outro

lado da linha. – Deixe recado após o sinal – Para

quem? Lembrou que agora estava sozinho.

15

O amante que passa

Sussurrou no ouvido, despenteou os

cabelos, soprou na nuca. Pronto, toda arrepiada.

Delícia, tocou sutil o umbiguinho. Levantou a

barra da saia – Ai –. Não esperava mais que isso,

era o vento.

16

Boneca

– Preciso dela, não suporto mais viver

sozinho. Ela é perfeita, é tudo que quero. Eu a

amo.

– Espera aí, mas é só uma manequim, cara,

é uma boneca de plástico.

– Como se eu não soubesse.

17

Olhar penetrante

Beijo e mordo sua boca. Corro a mão

cintura abaixo, já sobe por dentro da blusinha.

Levanto o cabelo, beijo a nuca. Puxo a cabeça

para trás, pelos cabelos, e mordo a orelhinha,

sussurro qualquer bobagem. Com a língua no

pescoço já deixo louca. Já levanto a blusa, toda

despenteada no tirar. Deixo o sutiã, primeiro

quero ver sua pele arrepiada. A sinto aqui,

juntinho. Grudo seu corpo no meu, dá até para

sentir o coração. O óculos, todo embaçado, nem

vi para onde foi. Corre zíper da calça. A calcinha

de algodão, se faz de santa o último segundo.

Pensa que me engana mulher? Agora sim, o

sutiã pendurado no braço do sofá. Cada peitinho

pedindo um beijo. Ah, duas bocas nessa hora! Já

é a língua que corre o corpo todo, brincando ali

no umbiguinho, que sentir cócegas, que nada.

Com os dentes a deixo toda nua. Mais um

beijinho. E vai dizer que não pisou no céu? Eu,

impávido, nego. Só ofereço o brinquedo quando,

já desvairada, me pede. Implora.

– Que isso, fica me olhando desse jeito, tá

maluco?

18

Na cama

– Você aqui? Não pensei que viesse.

– Deu saudade.

Um e outro beijinho furtivo. Ali no canto,

ninguém conhecido.

– Ai, se alguém vê.

Virou, olhou, apalpou: estava sozinho

debaixo do cobertor.

19

Sorriso

Ela lhe abriu um sorriso lindo. Ele não

hesitou, como se nem a visse. O melhor sorriso é

daquela que nunca olha para você.

20

Vibra call

Ali no ônibus, ela dorme. Rotina difícil. Eu

de pé, bem na frente dela. Cabelo curtinho quase

preto, esvoaçante com o ventinho da janela.

Cobre os olhos, até mais linda, estão fechados

mesmo. Que cor seriam, azuis, verdes, ai não!

vesga? Lábios puro mel, desenhados por Deus

no oitavo dia. No rosto duas pintinhas do lado

direito, charme perdido no tempo. Cada orelha

uma fadinha, isso é uma piada comigo. O

casaquinho fechado até em cima, nem sinal do

decote, escondido o caminho para Eldorado. Se

acorda, olha para mim, sorri: um mês sonhando

com ela.

De repente desperta, são castanhos os

olhos. Sorri, nem me vê. Apressada, abre a

bolsinha, no colo. Pega o celular. Atende.

– Oi, meu amor.

21

Um casal

Aos beijos, trocando carícias no parque,

felizes, sem dúvida. Sorrisos e ternuras.

Ela, uma gota de orvalho na grama,

cerejeira em flor, gata manhosa no cio, cheirinho

de pão assando, maciez de pétala, sussurro no

ouvido, bolha de sabão.

Ele, ele não sou eu.

22

23

De perto

Ganhou uma lupa do pai.

– Isso aqui serve pra ver as coisas

pequenininhas, deixa elas maiores.

Estava um sol escaldante. Não é que foi ver

as formigas?

24

Experiência

Na escola a professora disse que se pegar

borboleta ela perde aquele pozinho da asa – é o

pó que dá equilíbrio pra ela – e o bichinho nunca

mais voa.

No jardim de casa, pegou um vidro de

maionese vazio e ficou esperando o inseto

aparecer. Capturou-o. Delícia, a sensação das

asas entre os dedos, durou pouco mais de um

segundo. Soltou na grama, apenas se debateu.

Ficou olhando as formigas a devorarem.

25

Alice

Soube do problema de Lewis Carroll e não

voltou a sonhar. Não sabia mais quem era no

reflexo do espelho.

26

Sangue podre

– Teu filho judiou da minha menina. Em

casa, só lagrima, tadinha.

– Coitada.

– Bem que desconfiei, vagabundo igual o

pai.

– E não é a vagabunda que vem aqui atrás

dele?

27

Por dentro do ser

Viu no desenho animado um bicho branco,

fazia barulho de madeirinha batendo. "– É gente

que foi pro céu, meu filho." Na aula de Ciências

descobriu, um esqueleto. Aquele monstro, dentro

das pessoas, se morresse ele saía.

Todo mundo pensava, os egípcios faziam

múmias para o faraó ressuscitar. Que nada,

tinham medo da caveira. Amarravam com

esparadrapo. O sarcófago? Uma prisão bem

fechada, só tem como sair no filme.

Ele sabia – Atrás de cada sorriso uma

caveira –, não falava para ninguém. Não são os

dentes a pontinha do iceberg? Quebrou o

pezinho. No raio-x viu, lá dentro, bem quietinho,

esperando a hora certa.

Acordou no meio da noite, cabeça doendo,

peito coçando. Era o bicho saindo.

28

Ejaculação precoce

A garota encarregada de cuidar do primo

menor. Uma coisinha que nega, pronto, manhoso,

ele faz grande alarde, grita, esperneia. Já ela

acode.

– Tá bom, tá bom, eu deixo ver minha

calcinha de novo.

29

Primeira aula

Na escola a professora pergunta às

crianças suas ambições futuras.

– E você, lindinho, o que vai ser quando

crescer?

– Seu namorado, profe.

30

Professora

– Profe, você casa comigo?

– Ai, que gracinha. Quando você crescer eu

caso.

– Daí a gente faz igual o mano e a babá, lá

no banheiro.

31

32

Extrema unção

Sempre sonhou com aquilo. Desde criança

o enxoval pronto. Na hora, muita emoção,

hesitou.

– Se alguém tem alguma coisa contra, que

fale agora...

Teve uma parada cardíaca.

–... ou cale-se para sempre.

33

Beijando o cadáver

Foi dar um último beijo na ex-noiva já no

caixão. Ganhou uma cuspida no olho direito.

Pronto, mortinha de novo. O legista diz para não

se preocupar, é como um ato-reflexo.

34

Sopa

Comprei um terno, a ocasião pedia uma roupa especial. Cortei o cabelo, passei o perfume adequado, até tirei as cutículas das unhas, escovei muito bem os dentes, usei fio-dental e anti-séptico. E, é claro, uma boa capa de chuva, para não me sujar muito.

Declarei todo meu amor a ela. Desprezou. Tentei novamente e ouvi gargalhadas de feiticeira. Fui a principal diversão dela, mas não como eu queria. Sempre aguentei isso sozinho, mas agora preciso de ajuda.

Olho para baixo e vejo o corpo que sempre quis, se desfazendo em sangue e merda. Não devia ter cortado a barriga, fede muito. Preciso mesmo de ajuda, não dá para sumir com um corpo sozinho.

Posso esquartejá-la em dezenas de pedaços e jogar em diferentes pontos do rio. Desfigurar o rosto e arrancar os dentes, torrá-los, moê-los, colocar o pó num envelope e enviar ao Presidente do Clube dos Corações Solitários. Não, sempre tem o DNA.

Ah, claro. Esquartejo o corpo do mesmo jeito, e coloco dentro de cal e água. Posso até imaginar esse lindo corpo em pedaços, borbulhando em cal, as bolhinhas estourando uma a uma. Cal, merda e sangue. Acho que vai ficar com uma tonalidade marrom, como sopa eslava. Acho que meus olhos vão começar a arder com a fumaça. O que sobrar dou um jeito depois. Mas sem enviar nada pelo correio, apesar de ser tentador. Bem, tenho muito trabalho pela frente.

35

Amor à arte

Ela só queria saber dos artistas de

vanguarda.

Ele pegou a arma e pintou uma tela, com o

próprio cérebro.

36

Notícia metafórica

Comprou um par de alianças. Ao entregá-

las, foi surpreendido. O coração lhe explodiu no

peito. O jornal publicou: latrocínio seguido de

homicídio doloso.

37

A tampa do caixão

Um mês casados, tudo nele a irrita. O ronco,

a meia usada, o modo de mastigar, a gargalhada,

os horários de comer.

Ela entra no banheiro, ele na privada.

– Meu deus, que nojo, não foi com você

que casei. Tranca essa porta, porco! Se isso

acontecer de novo eu te largo. Juro que te largo!

– Eu tranco, mas não a porta. Fecho a

tampa do caixão.

Não fez a barba, mas usou a navalha.

38

Mau presságio

Sonhou com morte. Ao acordar, não era o

arauto ali ao lado?

39

O corpo dela

Quando morreu, fiz o que queria com o

corpo: a tatuagem do coração flechado no

peitinho esquerdo, com meu nome dentro.

40

Criado mudo

Ela sempre ciumenta, obcecada, é bem

capaz de uma loucura. Fui tomar umas com o

pessoal do trabalho. Cheguei mais tarde,

cheirando cigarro. Fez um escarcéu disse que se

acontecer de novo pega a arma no criado, ao

lado da cama, e dá dois tiros: um no bebê, outro

nela. Hoje, fui trabalhar e esqueci de esconder

arma, se tiro de lá na frente dela, já viu o

escândalo. O dia inteiro preocupado. À tardinha,

fico preso no trânsito, atraso uns minutos. Chego

nervoso. Ufa, a casa trancada, melhor assim.

Abro. Entro no quarto e vejo a gaveta aberta.

41

Vôo

A borboleta negra entrou pelo vidro

quebrado da janela. Pronto, era a morte.

42

Suicídio

Tomou uma cartela de comprimidos e três

frascos de perfume. Ficou uma semana com o

estômago ruim e a boca amarga.

43

Segunda tentativa

Desistiu de viver. Passou a faca no pulso,

uma gota de sangue no lençol branco.

Apavorado, não mais tentou. Ainda hoje a faca

debaixo do colchão.

44

O demônio no quarto

De cima mesa eu pego a faca, ainda suja

de gordura, vou de mansinho ao quarto. Ela

cochila, puxo de leve o cobertor, e com um só

golpe transformo a utilidade doméstica na arma

que me liberta.

Acordo de sobressalto, e ela:

– Que foi, amor?

– Nada não, aquele meu sonho de sempre,

sonhei que caía.

Ela vira e dorme, eu fico na vigília. Olhos

abertos, cuidando dos demônios do escuro.

45

Saideira

– É a última, nunca mais.

E virou a dose de cianureto.

46

nós

47

Palco só para mim

Por ela me pintei de palhaço, entrei no

picadeiro, me equilibrei, me contorci, fiz show de

ilusão, engoli espada, cuspi fogo, andei na corda

bamba, domei o leão e atirei faca para cima, que

caiu direto no meu coração.

48

Romantismo friamente calculado

Deitados na grama contavam as estrelinhas.

– Ali, o Cruzeiro do Sul.

– Não aponta com o dedo, senão nasce

verruga.

Noite chuvosa, frio na alma. Beberam vinho

e, com a língua, contaram suas cicatrizes.

49

Silêncio, por favor

– Cala essa boca, saco!

Esta manhã ele acordou atrasado. Sempre

o celular dela que despertava. No banheiro, o

espelho não estava embaçado. A cozinha sem o

cheirinho de café. Não conseguiu achar a geléia

de uva na geladeira. A falta do rádio a todo o

volume. Tomou café instantâneo, comeu pão

com maionese – o dia inteiro com um ranço na

língua – e trabalhou de cabeça baixa. Pensando

que só queria um pouco de silêncio.

50

Quem diria?

– Sério que você vai casar?

– Vamos morar juntos... ah, é um

casamento.

– Logo você. Como é aquele negócio que

você dizia do escorpião?

– “Dizer eu te amo é engolir um escorpião

vivo”.

– Que piada, bicho.

– Cara, sabia que ela é de escorpião? Não

que eu acredite nessas coisas.

– Puta merda, heim, cara. E você não tem

medo que não dê certo? Quantos casais você

conhece que continuaram juntos depois de um

tempo?

– Eu tenho medo é de não ficar com ela.

51

Toda manhã

Tocou o despertador e ela não quis acordar

o marido.

– Dorme mais um pouco, querido, vou fazer

café pra você.

Escolheu ela mesma a roupa dele, passou.

Preparou duas torradas, com geléia de uva, ele

adora.

Levantou, tomou banho, se vestiu.

– Hum, delícia de torrada.

A gravata torta, ela arrumou. Já no horário

de ir, beijinhos rápidos. Um carinho sutil.

Ele sai. Ela pega o telefone.

– Oi, já pode vir.

52

Ocupado?

Entediado, o dia inteiro vendo tevê. Odeio

férias. O telefone toca.

– Alô.

– Oi, sabe quem tá falando?

– Nossa, há quanto tempo... que saudade.

– Tá ocupado aí?

53

Por uma hora e quarenta e cinco

Roupas novas, perfume, cabelo cortado,

barba feita, sapato engraxado, palavras

ensaiadas, flores. Assim ele espera.

54

55

Amor cão

–... na alegria tristeza?

– Sim.

–... na saúde e na doença?

– Aceito.

Pronto, casal de cachorros grudadinhos ali

na esquina.

56

Com os olhos

– Foi tão bom saber que me espiavam

enquanto tomava banho.

–... era eu.

– Você é um porco mesmo.

57

Comunhão de bens

– Pode ficar com as crianças. Fico com a

casa e o carro.

58

Declaração de amor

- Nunca senti isso antes, acho que enfim...

- Que nojo, nem fale!

59

Fim da relação

– Olha, acho que não dá mais...

– Como assim, o que aconteceu?

– Você tá estressado, precisa de um tempo

mesmo...

– Não, o que eu preciso é de um orgasmo.

60

Necessidade

– Não posso viver sem você.

– Por que não? Nunca me teve.

61

Negócios sentimentais

Apaixonou-se. Comprou flores e vendeu a

alma.

62

No fim da carta

P. S.

E vê se deixa a porra da aliança em cima

da mesa. Sabe quanto custa esse negócio?

63

Apelo apaixonado

Encontrou a carta na mesa.

Me desculpe, mais você pensa que indo

embora me ajuda engano teu. Não esqueça que

mesmo sofrendo amo voce mais que tudo

Bjos

E corrigiu os erros.

64

Expectativas

Saía do trabalho direto ao bar, de frente

para a casa dela. Esperava que ela saísse para

que pudesse falar. Quantas ressacas não sofreu?

Mal sabia ele que, atrás da cortina, ela

observava. Na esperança que ele tomasse

coragem para tocar a campainha.

65

Peçonha

Com a sensação de ter um escorpião

dentro da boca. Desajeitado, tentou cuspi-lo...

– É, acho que te amo.

... mas acabou engolindo. Agora, sempre

esperando uma ferroada nas entranhas.

66

67

4

– Pai, o Toio tá babo.

Nem escolhemos um nome, o menino é

pequeno e não fala direito. Para ele, cachorro é

toio, fica por isso mesmo.

Vejo o coitadinho, meio filhote ainda, uma

espuma amarela escorrendo pelo queixo, rosna

para mim, se me morde também fico doente. As

fezes são um pudim de sangue. Fedor horrível.

Esse já era.

68

1

Lembro que eu era pequeno. Meu cãozinho

sempre alegre, um dia tristinho, babava espuma.

Matou quatro, cinco galinhas, quase mordeu o

cavalo. O pai amarrou o bichinho, entrou no paiol,

e levou para a roça. Ouvi um foguete de São

João. Depois soube que era um tiro.

69

7

Dois destinos: defecar sangue até a morte,

ou eutanásia.

70

5

Vou à garagem pego a marreta e uma

corda. Aperto bem no pescoço e levo para o

parque. Atrás de um arbusto, tenta me morder,

piso na garganta, miro e faço. Pronto. É um ovo

que cai no chão.

71

3

Meu amigo devia ter sete anos, eu era um

pouco mais velho. A irmã dele me avisou do

velório, ele pegou uma peste de cachorro. No

caixão usava luvas, uma espuminha amarela no

canto da boca. Depois a menina me contou: os

dedos, ele mesmo mordeu. O pai preso.

Amarrado em uma viga da casa, o menino tentou

morder a mãe, o pai acertou-lhe um tiro no peito.

Homem de coragem.

72

2

Quando meu pai voltou da roça, guardou as

coisas no paiol. Pegou as galinhas mortas e

ateou fogo. Jogou creolina nas cinzas e enterrou.

Lembro até hoje do cheiro. Minha mãe achou um

desperdício, família grande, podia fazer um

ensopado. Ele se irritou, se pegasse a peste não

tinha cura. Brigaram aos berros. Um dia, ele me

viu brincando naquela terra e me surrou com

vara de amorinha.

73

6

Volto do parque, limpo o canil, desinfeto

com creolina e enxofre. Tomo um banho e penso

no que dizer pro pequeno. Ele vai sentir falta do

Toio. Criança se apega fácil aos bichos. Encontro

o menino no quarto, cochilando. A espuma

amarela escorre da boca.

74

75

1

Elvira ainda não tem dezoito anos, tão

pouco tem este nome, mas é assim que gosta de

ser chamada. Obcecada por velhos filmes

macabros. A garota conhece um rapaz,

charmoso como Bela Lugosi, ela não resiste à

dentada do Drácula. Como bom vampiro, depois

que suga o sangue da virgem, ele some na

neblina.

76

2

Mordida de vampiro transforma o corpo.

Perde a vida e a alma. Em alguns meses a

criatura se contorce dentro do ventre, o alien

rasga o hospedeiro e sai.

A mãe olha para o monstrinho, untado de

sangue, o cordão umbilical balança.

– Meu bebê de Rosemary.

77

3

A casa na beira do lago. O grupo de jovens

que sai de férias. O velho maluco que avisa do

perigo. O casal que faz amor na floresta. Seios

fartos à mostra. O vilão deformado. A sombra do

machado na parede. O close na pupila dilatada.

O sangue que para deleite do telespectador

espirra na tela. Assistindo a filmes, Elvira se

diverte com a criança no colo.

78

4

De tanto a mãe insistir, logo o filho diz a

primeira palavra.

– Vai monstrinho, fala como a mamãe

ensinou.

– Ah, fala vai.

– Dácula.

79

5

Filme que faz sucesso tem continuação. E o

enredo ainda é sempre parecido:

A mocinha semivirgem reencontra seu

Drácula, é vampirizida e gera novo monstrinho.

80

6

– Mãezinha, que isso na tua baíga?

– Um monstrinho, igual você.

– Você comeu o monsto?

– Não, querido, tá crescendo aqui dentro.

– Vai ficá gandão?

– Vai. Daí o médico pega uma faca, igual

do Jason, corta a barriga da mamãe e tira o

monstrinho.

– Uma faca?

– É, uma faca bem afiada.

– Mãezinha, você dexa eu tilá o monsto?

81

7

– O que você quer ganhar de aniversário,

querido?

– Um caixão.

82

8

A mãe sai um instante para comprar pão e

deixa o garoto cuidar da irmãzinha. Ao voltar,

ouve da porta uma sinfonia de horror. Entra na

sala e vê a menina sozinha no sofá. Se cai, bate

a cabeça? Na tv, o vampiro se torna dezenas de

ratos e desaparece.

Elvira procura o filho e encontra o garotinho

no banheiro, a tesoura na mão, os cabelos na pia,

uns poucos tufos na nuca. Ele queria ficar igual

ao ídolo, Nosferatu.

83

9

A irmãzinha dorme no quarto com o garoto.

Sempre a luz apagada. Elvira reclama com o filho.

– Deixa a luz acesa, monstrinho. O escuro

é cheio de diabinhos.

– Não mãe, apaga. Eu quelo vê diabinho.

84

10

Na madrugada ele acorda.

– Mãezinha...

– Hum... monstrinho, é tarde, vai pra cama.

– Mãezinha, acoida.

– Que você quer, monstrinho?

– A neném vilo monsto, tava fazendo bauío.

– Ela tava roncando?

– Um bauío feio, igual lobisome.

– Eu já vou lá ver.

– Num pecisa, eu peguei o abajui...

– Que abajui?

– Aquele negocinho de luz.

– Ah, o abajur...

– Daí eu bati no monsto, ele fico bem

quietinho.

85

86

Tuberculose

Tossia e cuspia sangue.

– Daqui pra frente só piora, mais seis

meses no máximo.

Matou o cachorro da vizinha, a noite inteira

latindo. Gastou metade do salário no bordel. Uma

semana comendo em churrascaria, adeus ao

regime. Enviou flores, declarou seu amor à

atendente de telemarketing, vozinha mais linda.

Feliz um tempo.

O médico disse que era gengivite, tomasse

um xarope para tosse. Pronto, infeliz para

sempre.

87

Amante coletiva

Quase um mês que fico olhando para essa

mulher. Toda manhã pegamos o mesmo ônibus,

a sacana só fica olhando o meu reflexo no vidro.

Ah, ingrata. Mulher, quando sabe que é bonita, é

assim mesmo. Hoje entrei no ônibus, ela tava de

pé, fiquei bem na frente dela, impávido. Acho que

dava até para sentir meu hálito. Olhei bem no

fundo dos olhos, queria ver seus pensamentos –

vai que eram por mim –, mas eu não falei nada,

Não é ela a tal? Pois me disse até oi.

88

Alívio

Com um calor escaldante, vem uma brisa

no fim da tarde: alívio momentâneo. Pronto,

estava resfriado.

89

No dia dos pais

Minha mãe me deu um presente.

– Agora você é o homem da casa.

90

Amigo estimado

Acordei bem cedinho, um calor, fui abrir a

janela. Não é que tinha um beija-flor na laranjeira,

bem ali na frente. Dizem que ele come muito,

podia ficar ali, a laranjeira toda em flor. Dá até

para sentir o cheirinho do quarto.

91

Na veia

Pego a seringa, puxo. Enrolo o elástico no

braço. Dois tapinhas, a veia pula. A agulha entra,

nem sinto mais a ferroada. Agora é só alegria.

92

Ambições precoces

Nem trinta anos e já um velho. Todo

incomodado com o som do vizinho, o sucesso

das futilidades, o preço do pão, a conversa com

estranho, a multidão, o escarcéu de pombos na

rua, o maniqueísmo na notícia de jornal, o café

melado, o erro de pontuação. Fazia protestos

exaltados para ele mesmo, todos acostumados,

nem prestavam atenção mais. Calou-se, agora

aceita sozinho sua condição de ranzinza. Suas

únicas ambições: pegar um peixe grande e

descansar, sonhando com leões.

93

Fuga

- Não aguento mais viver, toda essa solidão.

Ela me deixou, não atende minhas ligações, não

existo para ela. Vou embora. Por favor, me leve

daqui.

- É um e noventa a passagem.

94

Fobia

Abriu a janela, olhou para fora, saiu. Foi até

a esquina, voltou. Mesmo debaixo de um sol

insuportável tinha medo do escuro.

95

silêncio crítico

96

Absolutamente todas as coisas

interessantes que aconteceram na vida – em

seus mais variados aspectos – de um

funcionário da Biblioteca Pública Estadual, ao

longo do período em que trabalhou atendendo

às solicitações dos empenhados na prática da

leitura

Pediram-lhe o livro “Doncas morra”, de

Quincas Borba. E o tempo passou.

97

Best seller

Sinto muito, não há nada escrito aqui.

98

Carta ao leitor

Venho, por meio desta, lhe informar que

você somente a leu devido seu título.

Grato.

99

Desafio

– Consegue escrever um conto com três

palavras?

– Só três? Hum… escrevo: “Inferno,

purgatório, paraíso”.

100

Desafio: Parte dois

– Consegue outro?

– Não.

101

© Copyright Rodrigo Araujo, 2008. Todos os direitos reservados. Ilustrações de Rodrigo Araujo. [email protected]

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