indústria e atraso económico em portugal (1800-25)....

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Jorge Miguel Pedreira* Análise Social, vol. XXIII (97), 1987-3.°, 563-596 Indústria e atraso económico em Portugal (1800-25). Uma perspectiva estrutural ** i Que a economia portuguesa, quando confrontada com as dos países mais industrializados, é uma economia atrasada, eis uma realidade que ninguém se atreve a contestar. Este retardamento e a relativa pobreza que o acompanha surgem mesmo, em discursos das mais variadas naturezas, como um dos maiores desafios com que os Portugueses, colectivamente, enquanto nação, estão confrontados. Situação que não é apenas de hoje, esta: muito se apagaram já as luzes da epopeia dos Descobrimentos. O seu enraizamento e as dificuldades em vencê-la são testemunhados, em tempos diversos e de diferentes manei- ras, por vezes dramaticamente, pelos depoimentos de alguns dos mais lúci- dos pensadores das coisas portuguesas. Acúrsio das Neves, por exemplo, escrevendo em 1820, pronunciava-se já acerca do «atraso na situação rela- tiva em que nos achamos para com as outras nações industriosas» 1 . Outros hão-de acompanhá-lo nestas reflexões, consolidando uma tomada de cons- ciência que é, assim, quase tão antiga como o próprio problema. A evidência deste atraso socieconómico não tem dado, contudo, lugar a um esforço sério e continuado no sentido da compreensão dos seus meca- nismos e das suas circunstâncias. Depois de obras que rasgaram perspecti- vas e abriram vias de investigação 2 preferiram-se sínteses mais ou menos precipitadas que procuravam, à partida, construir da sociedade portuguesa a contra-imagem das sociedades que conseguiram iniciar com êxito a mar- cha do crescimento económico. O procedimento da comparação e o conhecimento das transformações por que passaram outros países são essenciais. Devem guiar, iluminar os nossos estudos: ninguém ousará afirmar que a industrialização das potên- * Departamento de Sociologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. ** Este artigo constitui a versão abreviada, dando particular ênfase à análise das flutua- ções conjunturais, do trabalho com o mesmo nome apresentado como dissertação de mes- trado em Sociologia e Economia Históricas e defendido em 24 de Abril de 1987. Este estudo será oportunamente publicado sob o título Memória do Atraso. A Industrialização Blo- queada. Portugal (1800-1825). 1 José Acúrsio das Neves, Memória sobre os Meios de Melhorar a Industria Portuguesa Considerada nos Seus Diferentes Ramos, Lisboa, 1820, p. 48. 2 Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monnaies au Portugal. 1750-1850, Paris, 1955, e Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, Lisboa, 2. a ed., 1975; Jorge Borges de Macedo, Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII, Lisboa, 1963. 563

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Jorge Miguel Pedreira* Análise Social, vol. XXIII (97), 1987-3.°, 563-596

Indústria e atraso económicoem Portugal (1800-25).Uma perspectiva estrutural**

i

Que a economia portuguesa, quando confrontada com as dos paísesmais industrializados, é uma economia atrasada, eis uma realidade queninguém se atreve a contestar. Este retardamento e a relativa pobreza queo acompanha surgem mesmo, em discursos das mais variadas naturezas,como um dos maiores desafios com que os Portugueses, colectivamente,enquanto nação, estão confrontados.

Situação que não é apenas de hoje, esta: há muito se apagaram já asluzes da epopeia dos Descobrimentos. O seu enraizamento e as dificuldadesem vencê-la são testemunhados, em tempos diversos e de diferentes manei-ras, por vezes dramaticamente, pelos depoimentos de alguns dos mais lúci-dos pensadores das coisas portuguesas. Acúrsio das Neves, por exemplo,escrevendo em 1820, pronunciava-se já acerca do «atraso na situação rela-tiva em que nos achamos para com as outras nações industriosas»1. Outroshão-de acompanhá-lo nestas reflexões, consolidando uma tomada de cons-ciência que é, assim, quase tão antiga como o próprio problema.

A evidência deste atraso socieconómico não tem dado, contudo, lugara um esforço sério e continuado no sentido da compreensão dos seus meca-nismos e das suas circunstâncias. Depois de obras que rasgaram perspecti-vas e abriram vias de investigação2 preferiram-se sínteses mais ou menosprecipitadas que procuravam, à partida, construir da sociedade portuguesaa contra-imagem das sociedades que conseguiram iniciar com êxito a mar-cha do crescimento económico.

O procedimento da comparação e o conhecimento das transformaçõespor que passaram outros países são essenciais. Devem guiar, iluminar osnossos estudos: ninguém ousará afirmar que a industrialização das potên-

* Departamento de Sociologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UniversidadeNova de Lisboa.

** Este artigo constitui a versão abreviada, dando particular ênfase à análise das flutua-ções conjunturais, do trabalho com o mesmo nome apresentado como dissertação de mes-trado em Sociologia e Economia Históricas e defendido em 24 de Abril de 1987. Este estudoserá oportunamente publicado sob o título Memória do Atraso. A Industrialização Blo-queada. Portugal (1800-1825).

1 José Acúrsio das Neves, Memória sobre os Meios de Melhorar a Industria PortuguesaConsiderada nos Seus Diferentes Ramos, Lisboa, 1820, p. 48.

2Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monnaies au Portugal. 1750-1850, Paris, 1955,e Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, Lisboa, 2.a ed., 1975; Jorge Borges de Macedo,

Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII, Lisboa, 1963. 563

cias europeias deixou Portugal incólume. Mas não pode ceder-se à tentaçãode raciocinar em termos finalistas, inferindo, de forma falaciosa e simplifi-cadora, a partir dos resultados antecipadamente conhecidos, as condiçõesfavoráveis ao desenvolvimento económico. Deste modo, acabaríamos sem-pre por retratar a economia portuguesa como o negativo daquelas que seindustrializaram. Trabalhos recentes têm sublinhado, aliás, os insolúveisequívocos que assim se geram e têm também chamado a atenção para amultiplicidade dos caminhos da mudança3.

Os bloqueamentos da sociedade portuguesa têm, por isso, de ser consi-derados no emaranhado de raízes de que brotam e na densidade, na pro-funda espessura temporal que os suporta. Problema histórico na sua essên-cia, o atraso, para ser interpretado, exige o conhecimento profundo dasrealidades e dos seus trajectos4, marcando-se também seguramente os pon-tos de referência cronológicos sem os quais se há-de cair na generalizaçãopara períodos longos do que é talvez apenas verdadeiro para algumas fases.

Posicionemo-nos, por isso, no tempo. Mesmo se recentemente tem sidoestatisticamente contestada a ideia de bruscos saltos no crescimento econó-mico, se a própria noção de revolução industrial é questionada, para desig-nar até a experiência britânica5, a verdade é que são diferenciados os rit-mos do desenvolvimento: os atrasos têm uma história que merece sercontada. Enquanto as sociedades conhecem uma lenta e difícil evolução téc-nica, se debatem para conseguir elevar duradouramente a sua capacidadeprodutiva6, manter-se-ão num plano ainda modesto. Em meados de Sete-centos parecem portanto ligeiros, são estreitas as distâncias entre os níveisde desenvolvimento e de bem-estar dos diversos países ou regiões da Europa.

Existem obviamente potencialidades diferenciadas, desigualdades quese expressam, por exemplo, pela relativa penúria dos camponeses eslavosou mediterrânicos frente ao desafogo dos agricultores do Noroeste. Aspolarizações e as hierarquias no interior da economia-mundo e dos pró-prios espaços nacionais eram já antigas, como demonstram as obras semi-nais de Wallerstein e de Braudel7. Mas nada há que se assemelhe ao quecaracterizará, deste ponto de vista, épocas posteriores: essa é, pelo menos,a lição de alguns estudos de Paul Bairoch8.

3 Vejam-se, por exemplo, os seguintes textos: P. K. 0'Brien e Ch. Keyder, EconomicGrowth in Britain and France (1780-1914), Londres, 1978; P. K. O'Brien, «Do we have atypology for the study of the European industrialization in the XIXth century?, in Journalof European Economic History, vol. xv, n.° 2, 1986; N.F.R. Crafts, «Industrial Revolutionin England and France: some thoughts on the question, 'Why was England first?'», in Econo-mic History Review, vol. xxx, n.° 3, 1977.

4 Para isso muito podem contribuir trabalhos com uma sólida base documental e estatís-tica, como os de David Justino, A Formação do Espaço Económico Nacional Portugal 1810-1913, Lisboa, 1986 (tese de doutoramento, dactilografada), ou de Jaime Reis, «A produçãoindustrial portuguesa, 1870-1914: estimativa de um índice» in, Análise Social, vol. xxxii,1986-5.°

5 P. K. CTBrien, «Do we have a typology [...]»; Rondo Cameron, «A new view of Euro-pean industrialization», in Economic History Review, vol. xxxviii, n.° 1, 1985.

6Emmanuel Le Roy Ladurie, Les Paysans de Languedoc, Paris, 1966, t. i, pp. 639-640;Pierre Vilar, Crecimiento y desarrollo, 4.a ed., Barcelona, 1980, pp. 23-24.

7Immanuel Wallerstein, The Modern World-System, 2 vols., Nova Iorque, 1976-78;Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme. XVe-XVIIIe siècles, 3vols., Paris, 1979.

8Paul Bairoch, Revolution Industrielle et Sous-Développement, 4.a ed., Paris, 1974, e«Europeus gross national product 1800-1975», in Journal of European Economic History,1976, vol. v, «Estimations du revenu national dans les sociétés occidentales pré-industrielles

564 et au dix-neuvième siècle», in Revue Économique, n.° 2, 1977.

As diferenças resultam sobretudo de desiguais desenvolvimentos daindústria, decorrem dos desfasamentos com que se encetam as caminhadasda industrialização moderna. No último terço do século xviii adiantam-seos Britânicos, que serão acompanhados, desde os primeiros decénios doséculo seguinte, pelos mais precoces continentais. Neste quadro europeu,como se comportou Portugal?

A imagem que a historiografia portuguesa construiu do último quarteldo século de Pombal é a de uma considerável vitalidade económica, que serevela principalmente na esfera mercantil. Jorge Borges de Macedo nãohesita em referir-se a uma euforia e o mais cauteloso Albert Silbert fala,apesar de tudo, de uma «prosperidade indiscutível»9. Ora, passada ametade de Oitocentos, o produto nacional por habitante era já inferior ametade do da nação mais desenvolvida, a Grã-Bretanha, e, nas vésperas daGrande Guerra, essa razão tinha passado a menos de 30%, vincando-seclaramente o atraso económico português10. De um estudo de Jaime Reispode inclusivamente deduzir-se que eram frágeis as possibilidades de êxitode estratégias de desenvolvimento que não contassem com uma profundamodificação das estruturas económicas e sociais, evidentemente irrealizávela curto prazo11.

Entre o declinar do século xviii, de anunciada pujança, e os meadosdo século xix, em que os mecanismos do atraso estão já nitidamente noterreno, fica a conturbada primeira metade de Oitocentos, que, à primeiravista e a vários títulos, emerge como período da maior relevância para acompreensão dessa perda de fulgor da economia portuguesa.

Na versão mais tradicional, a explicação da decadência, do encerra-mento do ciclo de prosperidade, deveria procurar-se em primeiro lugar naexplosiva conjuntura que envolveu a Guerra Peninsular, a ruptura doPacto Colonial, a dependência em relação à Grã-Bretanha, e só depois, emmuito menor escala, na era posterior das lutas liberais.

Esta explicação, aliás polémica, passa fundamentalmente, pois, pelaobservação dos movimentos conjunturais. É um procedimento compreensí-vel: a indústria portuguesa revela uma precoce sensibilidade aos ciclos dosnegócios, estruturando-se em boa parte através de expansões e crises bemmarcadas. Mas é necessário e possível ir mais longe. Uma nova análise dasflutuações, construindo outros dados, múltiplas séries, mais compactas,designadamente ao nível sectorial, permitirá, ao remeter para problemasmais profundos e duradouros, pôr em relevo a insuficiência das aborda-gens que não desçam ao plano das estruturas.

II

Principiemos ainda, contudo, por uma reavaliação desses percursosconjunturais. Em períodos de crise comercial assiste-se a um reforço daindústria, aparente sobretudo pelo adiantamento das suas formas mais

9 J. B. Macedo, Problemas /.../, intitulou o cap. ii da ii parte «Euforia e equipamento»;A. Silbert, Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oitocentista, 2.a ed., Lisboa, 1977,p. 78.

10P. Bairoch, «Europeus gross [...]».11 Jaime Reis, «O atraso económico português em perspectiva histórica (1860-1913)», in

Análise Social, vol. xx, 1984, n.° 1, pp. 7-28. 565

concentradas. As políticas atribuídas ao conde de Ericeira e ao marquês deFronteira e a situação a que procuram dar resposta, no último terço doséculo XVII, guardam notáveis semelhanças, mutatis mutandis, com asque, virada a metade de Setecentos, os Portugueses vão conhecer atravésda quebra acentuada das remessas do ouro e das orientações da governa-ção pombalina para a recomposição económica. O paralelismo é, aliás,irresistível.

A escassez de meios de pagamento internacionais, originada pelo defi-nhamento dos tráficos mais ricos, e a inviabilidade da contracção dasimportações de bens alimentares impunham uma austera restrição dasoutras aquisições ao estrangeiro. Era muito difícil, por outro lado, privarcertos agrupamentos sociais —a aristocracia, em particular— de algunsprodutos de consumo ostentatório. E o próprio Estado, apesar das afliçõesdas finanças públicas, não estava em condições de prescindir de génerosindustriais de relevância estratégica.

Havia, portanto, que substituir importações, que impulsionar a capaci-dade produtiva nacional. O fomento vai naturalmente visar as produçõesde luxo (sedas, vidros), as de maior importância para o poder (construçãonaval, cordoaria, ferraria, fardamentos) ou aquelas que mais oneravam abalança comercial (lanifícios)12.

A indústria avança então principalmente pelo estímulo e pela iniciativadestas políticas públicas. Em mercados apertados e espartilhados, o Estadopesa na procura —pelo consumo que directamente exerce—, mas igual-mente na oferta, pelas fábricas que estabelece, pelos subsídios que con-cede, pelas isenções, privilégios, exclusivos que atribui; interditando,enfim, com as pragmáticas, o uso dos artigos importados.

Esta associação entre surtos industriais e depressões comerciais encon-tra confirmação no seu próprio reverso: no abrandamento da protecção àsmanufacturas em fases de maior fluidez mercantil, que se caracterizam poruma relativa recessão industrial. Esta regularidade, detectada por VitorinoMagalhães Godinho13, ver-se-á, porém, interrompida no último vinténiodo século xviii.

A expansão que então conquistou a economia imperial portuguesa nãoserá de nenhum modo nociva às ocupações manufactureiras; pelo contrá-rio, há-de incentivá-las apreciavelmente. A riqueza dos negócios da rota doCabo e do primacial comércio brasileiro —beneficiando da retracção colo-nial de países como a França, a Holanda e, depois, a própria Espanha—e a prosperidade dos tráfegos de reexportação das produções ultramarinaspara os entrepostos europeus (Génova e Hamburgo) propiciaram um cres-cimento industrial em novos moldes, orientando-se para o ampliado mer-cado dos domínios. Ainda que a persistência da utilização de mão-de-obraescrava de certa forma inibisse uma mais directa tradução desse enriqueci-mento no consumo, as relações coloniais constituíram, indiscutivelmente,a alavanca de um progresso.

Ao longo do século xviii, o trabalho caseiro dos linhos, dispersando--se pelo Noroeste, tinha medrado discreta, mas assinalavelmente. Agora,as sedas transmontanas, os lanifícios da Beira Interior e do Alentejo —que

12Jorge Borges de Macedo, Problemas [...], pp. 26-41, e A Situação Económica noTempo de Pombal, Porto, 1951, cap. v; Vitorino Magalhães Godinho, «Portugal and herEmpire 1680-1720», in The New Cambridge Modern History, vol. vi, Cambridge, 1970.

566 13 v. M. Godinho, Prix et Monnaies [...], pp. 243-280.

combinavam a mais antiga tradição fabril com o labor doméstico— e osnúcleos oficinais de Lisboa, Porto, Braga e Guimarães também se fortale-ciam.

A regra continuava a ser a pequena produção, pouco penetrada aindapelo elemento mercantil, constituindo a fábrica uma raridade. Perante oaumento da procura, adoptam-se, contudo, algumas inovações técnicas esurgem formas mais concentradas de organização do trabalho, na regiãoda Estremadura e Ribatejo, bem como nas principais aglomerações indus-triais e urbanas. O recurso a máquinas de fiação inglesas, o estabeleci-mento de novas estamparias e a adopção da energia hidráulica para ofabrico de têxteis (Tomar) e de papel (Alenquer) são casos emblemáticosque devem ser retidos14.

O impulso industrial de finais de Setecentos não está portanto isento derepercussões estruturais. Os padrões de localização serão de certa formaalterados, sublinhando-se a tendência para a implantação no litoral dasnovas unidades produtivas. O abastecimento de matérias-primas importa-das (couros e algodão do Brasil, por exemplo), a procura de uma mão-de--obra mais abundante e de mercados mais populosos e a facilidade de saídapara as colónias estão entre as condições que favoreceram este desloca-mento para a costa. Com efeito, os sectores que protagonizam o cresci-mento dirigem-se a um consumo mais alargado, suportado pelas fortunasultramarinas. O Estado, por isso mesmo, deixou de ser o agente primor-dial, cedendo o seu lugar a alguns dos mais destacados negociantes nacio-nais que, quantas vezes associados a técnicos estrangeiros imigrados, seinteressavam cada vez mais pela produção industrial.

Prolongando-se pelo primeiro lustro do século xix, este ímpeto dasactividades industriais cedo exibe, porém, a sua fragilidade. O movimentode inovação técnica e de fundação de fábricas, timorato, aliás, esgota-sedesde 1803. As exportações nacionais, de resto, nunca conseguiram desalo-jar os artigos manufacturados europeus (ingleses, sobretudo) dos carrega-

Exportações e reexportações de têxteis. 1798-1807(Em percentagem do total de saídas)

[QUADRO N.° 1]

Anos

1798179918001801180218031804180518061807

Linhos

Exportação

43,3

54,842,138,140,538,729,232,9

Reexportação

56,6

45,257,961,959,561,360,867,1

Sedas

Exportação

78,073,369,459,048,443,546,643,935,141,3

Reexportação

22,026,730,641,051,656,553,466,164,958,7

Lanifícios

Exportação

24,2

22,116,714,316,89,4

12,614,5

Reexportação

75,8

77,983,385,783,290,687,485,5

Fonte: Biblioteca do Instituto Nacional de Estatística; Balanças do Comércio, anos respectivos.

14 J. B. Macedo, Problemas [...], pp. 223-229; Jorge Custódio, «Considerações sobreAcúrsio das Neves, os melhoramentos económicos e a indústria portuguesa», introdução aJosé Acúrsio das Neves, Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa, Lis-boa, 1983; cf. cap. iv da nossa dissertação de mestrado. 567

mentos dirigidos ao ultramar. Continuava a preferir-se o mais fácil e àsvezes mais rendoso comércio transitário, preservando a função de entre-posto atribuída ao Porto e a Lisboa.

Assim, as exportações de lanifícios não representavam mais do que28 % das reexportações. Os panos nacionais constituíam metade de todasas saídas de linhos até 1801 e não mais de 40 °/o nos anos seguintes. Paraas sedas, a proporção é de 70 °/o antes de 1800, registando-se a partir deentão uma quebra, já que os valores de 1802-05 se situam entre os 44 %e os 48 %15 (cf. quadro n.° 1).

Entre todos os sectores, são os algodões, protegidos pela interdição dasimportações (só excepcionalmente licenciadas), que exibem um crescimentomais ambicioso, mas que, simultaneamente, melhor põem a nu as limita-ções deste surto da viragem para o século xix.

Importações de tecidos. 1796-1825(Em contos de réis)

[QUADRO N.° 2]

Anos

179617971798179918001801180218031804180518061807180818091810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

Algodão

(d)

———

————

——

504,63298,13 587,15437,33 785,83 586,43251,72696,22447,62754,63085,33 704,63676,32689,43 154,92799,9

Lã (a)

2542,12542,3

—4490,04044,52302,83286,82336,61692,52172,22377,82322,5

493,21169,61 839,63 160,33228,63973,13708,32729,72047,22325,81 586,41 558,81684,01626,91 504,71616,51861,71479,8

Linho (b)

2301,8

—2819,52083,51726,82142,21 289,7

999,51706,71404,01123,2

29,4326,0729,2

1044,0889,5

1237,81018,5

860,2888,3840,5531,3288,8408,0465,9451,8230,8329,9323,4

Seda(c)

372,0250,0310,1247,1467,8208,1367,6489,0237,8219,2229,4137,7

3,826,515,4

107,1145,1329,1350,0171,469,157,225,835,113,721,618,513,47,3

60,2

Total

5 215,9

7 556,66595,84237,75 796,64115,32929,84098,14011,23 583,4

526,41522,13088,87609,57 850,3

10977,38862,67 347,76256,35919,74591,14637,35191,05 819,05651,34550,15 353,84663,3

Percentagemdas importações

totais

41,5

38,332,921,932,327,316,420,824,425,819,217,218,119,722,835,439,129,835,037,423,331,240,641,146,337,939,437,6

{a) Importações totais de lanifícios a que foram deduzidas as provenientes de Castela, quase integralmente compostaspor lã em rama destinada à reexportação.

(b) Importações totais de lanifícios a que foram deduzidas as respeitantes ao linho em rama.(c) Importações de sedas manufacturadas, excluindo portanto as de seda em rama, pêlo e trama.(d) As importações de tecidos e outras manufacturas de algodão estrangeiras achavam-se proibidas até ao Tratado de

Comércio com a Inglaterra em 1810.

568 l5Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP), SGC 3.

A dependência das articulações imperiais é aqui particularmente elo-quente. O florescimento da indústria algodoeira realizou-se, antes de mais,pela proliferação de estamparias que trabalhavam sobre panos crus india-nos. A fiação e a tecelagem —ramos estratégicos de qualquer processo deindustrialização, nesta fase-—, depois de um efémero desenvolvimento,não progridem, desaparecendo inclusivamente alguns estabelecimentos16.Autorizam-se, por diversas vezes, aquisições de fio inglês, normalmenteproibidas, que chegam a inundar alguns mercados, dificultando a venda dofio nacional. Disso se queixavam, já em 1799, os proprietários da Fábricade Tomar17. Revelava-se assim a pequena importância que os poderesatribuíam a este ramo algodoeiro.

As chitas, essas sim, tornar-se-ão, com os linhos, a principal exporta-ção manufactureira. Tais vendas, porém, nenhum estímulo hão-de exercerjunto de outras faixas do tecido industrial. É no redil de uma expansãocolonial, de que aliás não se tira completo proveito, que funciona o adian-tamento da indústria.

Com efeito, o mercado interno — à luz do que se conhece, por exem-plo, da evolução da agricultura18— parece ter participado muito timi-damente na prosperidade. A redução da entrada de têxteis estrangeiros(quadro n.° 2), podendo sugerir uma substituição de importações, é acom-panhada de um avolumar de queixas acerca dos contrabandos19. No rela-tório que abre a Balança do Commercio de 1806 reclama-se contra o «rui-nozo princípio da introdução clandestina das Fazendas prohibidas» emencionam-se as «grandes tomadias, que se fizerão fora da Barra, sendosó huma delias de valor de mais de 500 mil cruzados»20.

Devem, por isso, moderar-se certas apreciações mais entusiásticas destaconjuntura. Os ritmos de introdução ou de difusão de novas tecnologias denenhum modo permitem pensar na iminência de um salto no caminho daindustrialização moderna. Para além dos bloqueios estruturais que impe-diam esse desenvolvimento, e de que adiante nos havemos de ocupar,começaram a fazer-se sentir dificuldades circunstanciais: a crise das finan-ças públicas fez subir os custos pela pressão fiscal (novo imposto de 3 %)e causou consideráveis perturbações com a entrada em circulação do papel--moeda; por outro lado, grassava o contrabando e a própria concorrêncialegal aumentava. Assim, logo em 1805 baixam os preços da maioria dosartigos exportados e no ano seguinte reduz-se o próprio volume das saídas(quadros n.os 3, 7, 8, 9, 10 e 11).

16 Numa carta de Timotheo Lecussan Verdier, proprietário da Fábrica de Tomar, diri-gida em 16 de Março de 1802 a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, dava-se conta do encerra-mento de seis fiações de algodão: Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), Reservados (Res.),Códice 610, fl. 79.

17T. Lecussan Verdier, «Memória sobre as fiações de algodão actualmente estabelecidasem Portugal» (1979), in Manuel da Silva Guimarães, História de Uma Fábrica, Santarém,1976, pp. 220-235.

18 Domingos Vandelli, «Memória sobre a agricultura deste Reino, e das suas conquis-tas», in Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, t. i, Lisboa,1789; Albert Silbert, Le Portugal Méditerranéen à la fin de l'Ancien Regime, 2.a ed., Lisboa,1978; David Justino, «Crises e 'decadência' da economia cerealífera alentejana no séculoxvin, in Revista de História Económica e Social, 1981, n.° 7.

19 No declinar do século, e sobretudo depois de 1804, parece haver um recrudescimentodas reclamações.

20 Biblioteca do Instituto Nacional de Estatística (BINE), Balança do Commercio dePortugal com as Nações Estrangeiras, 1806. 569

Exportações das manufacturas nacionais para o Brasil e domínios portugueses. 1796-1825

(Valores totais)

[QUADRO N.° 3]

Anos

179617971798179918001801180218031804180518061807180818091810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

(a)

Valor(contos de réis)

2442,72864,34131,65 632,33 842,54012,33 470,62774,63 379,72524,81 919,81 174,6

227,3451,7431,9389,6398,3555,6742,3939,5

1 158,21 139,91340,11 242,81 035,91 147,6

867,6570,1681,3

1 070,7

índice(1805=100)

96,7113,4163,6223,1152,2158,9137,5109,9133,9100,076,046,59,0

17,917,115,415,822,029,437,245,944,853,149,241,045,534,422,627,042,4

(b)

Valor(contos de réis)

2442,72869,34131,65 632,33 842,54012,33 470,62774,63 379,72549,41 936,81 609,3

—938,3795,4

1099,8760,1926,5

1 125,71381,61642,81623,72135,71 652,61410,11512,61 147,7

922,61009,51 347,7

índice(1805=100)

95,8112,4162,1220,1150,7157,4136,1108,8132,6100,076,063,1—36,831,243,129,836,344,254,264,463,783,864,8

" 55,359,345,036,239,652,9

Percentagemdas exportações

totais

32,429,733,327,528,430,627,121,822,720,817,115,613,4(c)24,020,931,624,321,716,112,611,414,420,120,321,727,424,024,927,430,0

(a) Valores apontados nas estatísticas da Superintendência-Geral dos Contrabandos (AHMOP, SGC, liv. 3).(b) Valores corrigidos com a adição das exportações de linhos nacionais.(c) As Balanças do Comércio não permitem a correcção para 1808.

570

III

Houve, apesar destas restrições, um crescimento industrial insofismá-vel, que contou, em primeiro lugar, com a privilegiada inscrição do comér-cio imperial português numa economia-mundo ameaçada de desagregaçãopelos violentos conflitos que a atravessavam.

Aproveitou-se o entorpecimento de outras potências e a conjunturapolítico-militar revelou-se, por isso, temporariamente benéfica para osnegócios imperiais e, daí, para a indústria. Mas este clima favorável assen-tava em equilíbrios precários que dificilmente podiam perdurar. Desde quea política francesa de isolamento comercial da Grã-Bretanha adquiriu umanova força e capacidade de realização, ficou inelutavelmente determinadoo desabamento da estrutura a que vinham dando corpo os principais eixosdo comércio português. O território nacional era, de facto, imprescindívelà eficácia do Bloqueio Continental e, por outro lado, um país que vivia em

grande parte da navegação transoceânica não podia, sem graves riscos,afastar-se das pretensões da principal potência naval, a Grã-Bretanha21.

A Guerra das Laranjas (1801) constituiu o primeiro aviso sério dosperigos que a economia portuguesa defrontava. Além de ter provocadodanos materiais e perturbações nos fluxos mercantis, poderia ter tido gra-víssimas consequências para a indústria nacional. Com efeito, se a PazEuropeia de Amiens não tem tornado caduco o Tratado de Madrid, peloqual se tinham encerrado as hostilidades, Portugal, além do pagamento deuma vultosa indemnização, teria sido forçado a admitir, com as mais bai-xas tarifas, os artigos manufacturados franceses até então proibidos.Retomaram-se, assim mesmo, as relações comerciais com a França ealcançaram-se, nos anos seguintes, volumosas exportações de géneros bra-sileiros. A ruptura ficou então adiada.

A real impossibilidade de optar entre as reclamações francesas e britâ-nicas conduziu, aliás, ao sistemático protelamento de uma decisão que,qualquer que fosse, teria sempre repercussões negativas. Nesta perspectiva,compreende-se igualmente a defesa a todo o custo de uma falsa neutrali-dade que escamoteava mal o alinhamento pelas posições dos velhos aliadosde além-Mancha. Quando chegou, a inevitável cedência aos decretos deNapoleão não evitou a ocupação militar e os seus corolários.

Ao bloqueio francês, a armada inglesa respondeu, aliás como se espe-rava, com o contrabloqueio marítimo. Durante quase um ano, o Paísachou-se praticamente isolado, transaccionando sobretudo por terra. Nãorecebia matérias-primas, as ligações com os domínios estavam interrompi-das e as exportações reduziam-se a uma ínfima fracção do que eram antes(quadro n.° 3).

Reexportações para as colónias(Médias anuais. Em contos de réis)

[QUADRO N.° 4]

Produtos

SedasL i n h o sLanif íc ios . . .G é n e r o s d a Ás ia

i

1801-7

258,11255,81019,21 498,9

2

1809-20

71,0221,353,9

346,8

Percentagem2/1

32,517,65,3

23,1

Fonte: Balanças do Comércio, anos respectivos.

A ocupação impusera de forma indiscutível, para mais, a ruptura doPacto Colonial. A ida da corte para o Brasil e os impedimentos nas comu-nicações entre a metrópole e os domínios conduziam inexoravelmente nessesentido, não consentiam outra solução. O comércio transitário viu-se arrui-nado (quadro n.° 4) e muitos dos negociantes mais avisados retiraram avul-tados capitais, que encontraram o caminho da Inglaterra e do Brasil22.

21J. B. Macedo, O Bloqueio Continental. Economia e Guerra Peninsular, Lisboa, 1962.22BINE, Balança do Commercio [...], 1813, e J. Acúrsio das Neves, Noções Históricas,

Económicas e Administrativas sobre a Produção e Manufactura das Sedas em Portugal, Lis-boa, 1827, p. 385. 571

Sobreviria depois a guerra, com o seu rosário de destroços e convul-sões. Inúmeras fábricas e oficinas foram incendiadas, reduzidas a escom-bros pelos exércitos e pelos populares, sendo as regiões da Estremadura edo Ribatejo —onde nada menos de quinze oficinas de curtumes foramarrasadas— as mais afectadas.

Mas, além das destruições, há todo um enredo de perturbações que ras-garam o tecido económico português. Empresários, técnicos e operários—mormente os estrangeiros— abandonaram as suas ocupações, a quemuitos não regressariam. A crise industrial era portanto irresistível e osembaraços de outros sectores haveriam ainda de ampliá-la.

O comércio interno —vivendo em grande medida das deslocações dopequeno mercador às feiras— quase paralisou, tanto mais que o equipa-mento de transporte, já de si escasso, era inteiramente mobilizado pelasnecessidades militares.

A própria agricultura sofreu duramente as devastações da guerra.Desordenadas migrações, culturas destruídas, searas queimadas, vastasáreas que ficaram por semear enegrecem as cores deste quadro. Por isso,em 1811-12 entram nos portos nacionais excepcionais quantidades de man-timentos (quadro n.° 5). A crise agrícola, traduzindo-se numa descida dosrendimentos, contraía o consumo de bens manufacturados e, apesar dosauxílios23, apertava os orçamentos familiares, prejudicando ao mesmotempo —pelo défice comercial que implicava— a aquisição de matérias--primas ao exterior.

Importações de mantimentos

(Em contos de réis)

[QUADRO N.° 5]

1796.1797.1798.1799.1800.1801.1802.1803.1804.1805.1806.1807.1808.1809.1810.1811.1812.1813.1814.1815.

32005699614962646868

1126667445977

10334104747 3946377181454758795

2664921730137977 586

11487

Fonte: AHMOP, SGC, liv. 3.

572

23 O Governo Britânico custeou uma parte das importações de mantimentos, designada-mente provenientes dos Estados Unidos da América (BINE, Balança do Commercio /.../,1813); socorreu igualmente mais de 75 000 portugueses através de um subsidio concedido pordeliberação do Parlamento Britânico {Conta Publicada pela Commissão Encarregada deDirigir a Distribuição do Donativo Votado pelo Parlamento do Reino Unido /.../, Lisboa,1813); Jorge Custódio, «Considerações [...]», pp. 62-63.

O mercado ultramarino e o mercado interno afundavam-se, portanto,conjuntamente. Esta variação num mesmo sentido era pouco habitual e,por isso mesmo, particularmente grave. O aparelho industrial estava par-cialmente destroçado e os parcos recursos eram prioritariamente destina-dos à reedificação de pontes, habitações, etc. A crise adquiria deste modoa dimensão de um colapso24. E não é de todo surpreendente que dureainda na segunda década de Oitocentos, exprimindo-se pelo enfraqueci-mento das exportações de manufacturas: depois do desastre de 1808, em1810, como em 1812, são inferiores a metade das de 1807, ano já marcadopor alguns contratempos (quadro n.° 3). É-nos impossível calcular as per-das no mercado interno —porventura igualmente espectaculares25— quea brutal subida das importações de manufacturas inglesas só incompleta-mente espelha (quadro n.° 2).

Chegada a paz, o atraso português tinha-se alargado manifestamente.O florescimento da indústria britânica durante o bloqueio, alicerçadonuma tecnologia superior e na produção, livre de concorrência, paraamplos mercados, assim nacional como ultramarino, não encontrava aindaparalelo na Europa continental. Algumas regiões privilegiadas —como aFlandres, a Renânia-Vestefália e até a Saxónia e a Silésia— puderam, ape-sar de tudo, beneficiar da sua integração, mesmo provisória, num vastoespaço económico protegido pelo sistema continental. Em geral, porém,depois do Congresso de Viena, era menor a competitividade da indústriacontinental, era mais custosa a industrialização. E, até que os governostomassem consciência das desigualdades e elevassem as tarifas protectoras,vagas de têxteis ingleses de lã e de algodão iam submergindo os mercadoseuropeus.

Portugal, que conheceu esta conjuntura com alguns anos de avanço,não se achava em melhores condições do que os seus parceiros continen-tais. Pelo contrário, do ponto de vista tecnológico, o esforço de acompa-nhamento das novas realizações e a adopção de inovações tinham-se inter-rompido já antes da guerra. A distância crescera e eram superiores osobstáculos em ultrapassá-la, tanto mais que as novas modalidades daAliança Inglesa não consentiam quaisquer veleidades de proteccionismoalfandegário.

Efectivamente, a dependência, apontada desde finais do século xviiipela impossibilidade de Portugal resistir às mais elementares pretensõesbritânicas, mesmo as que frontalmente contrariavam a defesa da preciosaneutralidade, afirma-se com toda a clareza durante a guerra, não só mili-tarmente, mas também no plano comercial: no auge dos conflitos, os géne-ros alimentares e algumas matérias-primas (como o linho) chegam quaseexclusivamente em embarcações inglesas.

A dependência surge mesmo em letra de forma nos tratados de 1810.A sujeição político-militar —que se dá a conhecer, por exemplo, pela par-ticipação do representante diplomático britânico no Governo Português,com direito a voto nas questões da Defesa e da Fazenda, ou pelas alargadascompetências de Beresford— era acompanhada por uma submissão econó-

24 Tal é a designação que lhe confere justamente Valentim Alexandre em «Um momentocrucial do subdesenvolvimento português: efeitos económicos da perda do Império Brasi-leiro», in Ler História, 1986, n.° 7, pp. 22 e segs.

25 Computadas em 2 milhões de cruzados pelo contador-mor das balanças do comércio(BINE, Balança do Commercio [...], 1810). J7J

mica, configurada pela falta de reciprocidade nos acordos relativos à nave-gação e pela admissão, com tarifas reduzidas, das manufacturas inglesas,mesmo daquelas que, como os algodões, se encontravam proibidas atéentão. Os lanifícios, excluídos até 1814 deste desarmamento pautai, serãotambém incluídos na categoria dos artigos que apenas pagavam 15 % advalorem, cobrados na base das facturas inglesas26.

Depressa se assistiu, nestas circunstâncias, a uma autêntica inundaçãodos mercados metropolitanos e ultramarinos pelos produtos de fabrico bri-tânico. No caso dos panos de algodão, as entradas chegam a ser excessivas,registando-se dificuldades de escoamento que impõem o recurso à reexpor-tação para Espanha, tanto legal como por contrabando, e obrigam inclu-sivamente, desde 1814, à própria contracção das importações (quadrosn.os 2 e 6).

Reexportações de tecidos de algodão ingleses. 1810-25

(Milhares de réis)[QUADRO N.° 6]

Anos

1810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

Brasil

_

2294,733600,052729,567 544,366090,973 776,343461,147 959,721 542,223 186,44797,88127,1

31 178,438 709,0 (b)9760,4

África

_

39,0818,9

1457,22530,89713,1 (a)

16779,29523,0

11455,514233,211 422,712936,05 457,29747,5

30942,165280,7

Ilhas

_

7046,342125,826831,431641,934537,431334,143 389,353 897,333975,223 929,915 596,825406,436931,737 575,228798,0

Castela

3 202,125462,967 145,7

217700,3156480,6184656,0101 765,3179409,0500998,1423435,5487616,0643 847,1652699,2811051,4968 507,8798688,1

Outros países

_

23963,730990,242242,5

127 597,716031,516418,02920,5

13 392,3730,0

Total

3 202,134842,8

167654,0329708,5300440,1419480,1239686,4292195,3617231,0506578,4546885,0676997,7691 689,8888789,1

1075734,2902527,7

(a) A partir de 1815 contam-se também as reexportações para a África oriental.(b) Incluindo os tecidos supostamente destinados a Buenos Aires.

A tibieza do Estado português —que, a bem dizer, nesta época, poucomais era do que uma ficção— e a sua incapacidade para defender a econo-mia e, em particular, a indústria nacional acresciam ao elenco de proble-mas antes apontado. O alvará de 28 de Abril de 1809, facilitando as expor-tações para o Brasil, protegendo a marinha nacional e isentando de direitosas matérias-primas que vinham para as fábricas, constituiria uma magracompensação pelas previsíveis perdas na extracção, tanto na metrópolecomo nos domínios. Aliás, a sua aplicação não deixou de encontrar resis-tências, dada a redução de receitas que implicava27. Apesar de tudo, for-necia um balão de oxigénio à indústria, sem o qual ela certamente teriaasfixiado.

26 Resolução de 5 de Maio de 1814 e T r a t a d o de Comércio e Navegação de 19 de Feve-reiro de 1810.

27 O Conselho da Fazenda moveu um combate encarniçado contra os privilégios fiscais574 das fábricas; cf. J. Acúrsio das Neves, Memória sobre os Meios [...], pp. 68-83.

Eis portanto a crise nos seus contornos. Revela-se pela quebra geral daprodução, pelas inibições à comercialização, pelo encerramento temporá-rio ou definitivo de fábricas e oficinas, pela subocupação de mão-de-obrae de instalações. Mas, em toda a sua envergadura e profundidade, nãopode dizer-se que tenha gerado um processo de desindustrialização genera-lizado ou sequer extensivo a vastas regiões, como certas imagens maiscatastróficas da depressão poderiam insinuar.

Com maior ou menor dificuldade, as ocupações industriais puderamsobreviver e foram lentamente ressurgindo: o conhecimento que temos daestrutura industrial portuguesa posterior à Guerra Peninsular é disso elo-quente testemunha28. Os linhos do Minho e da Beira Litoral, as lãs daBeira Interior e do Alentejo, os curtumes de Trás-os-Montes, do Ribatejoe da Estremadura, a cerâmica de Mafra e de Coimbra, a chapelaria deBraga, as sedas transmontanas, a cutelaria e os atoalhados de Guimarães,as ferrarias da região de Aveiro continuam a dar trabalho às populações,configurando a vivaz tradição da pequena produção dispersa. As fábricase as oficinas —de lanifícios na Covilhã e Portalegre, de vidros na MarinhaGrande, de algodões em Tomar e Alcobaça, de estamparia em Lisboa, detecelagem no Porto— vão-se refazendo também dos severos golpessofridos.

IV

A preservação da maioria das unidades industriais, apesar dos inegá-veis estorvos que enfrentavam agora no seu funcionamento, veio permitirum reatamento, mais ou menos moroso, mais ou menos incompleto, dasactividades fundamentais. Tal como a crise não marcara do mesmo modotodos os sectores e todas as regiões, também esta recomposição não foiuniforme, havendo algumas diferenciações que não devem passar sem refe-rência.

Em alguns casos, quando a concorrência britânica não se fazia sentirde forma tão directa ou tão asfixiante, dado o próprio padrão de especiali-zação que a caracterizava, conseguiram-se resultados que chegam a ser sur-preendentes, perante o alcance do colapso anterior.

A tecelagem das sedas de Lisboa conserva segmentos importantes dosseus mercados ultramarinos: em 1809, as exportações estão apenas cerca de20 % abaixo das de 1805; e de 1813 a 1821 conheceram um incremento queas levou perto dos níveis atingidos na época de maior prosperidade (qua-dros n.os 7 e 8). No Porto, a crise foi mais prolongada, mas poderá falar--se de um novo vigor desde 1816, apesar de tudo mais fraco e mais curtodo que o da capital. A tradicional produção transmontana ressentiu-semais da depressão, até porque eram mais antigos os seus problemas: afome e a peste de 1804 marcaram a sua decadência profunda29. De qual-quer modo, na falta de comunicações directas entre o Brasil e os principaiscentros europeus da indústria das sedas (França e Itália), as manufacturas

28 Vejam-se os levantamentos realizados pela Junta do Comércio e só parcialmentepublicados por Acúrsio das Neves nas Variedades sobre Objectos Relativos ás Artes, Com-mercio e Manufacturas [...], t. i, Lisboa, 1814, pp. 175-219. Na nossa dissertação de mes-trado reunimos os dados referentes aos anos de 1815 a 1825.

29Fernando de Sousa, «A indústria das sedas em Trás-os-Montes (1790-1813)», inRevista de História Económica e Social, 1979, n.° 2, pp. 59-73. 575

nacionais podiam manter, com ligeiras reduções, a sua participação nopreenchimento do consumo brasileiro, dilatado até pela presença da corte.

A chapelaria refez-se também melhor das dificuldades da guerra. NoNorte, os problemas na comercialização dos chapéus grossos de lã —prete-ridos pelos compradores em favor de artigos mais finos— tinham come-çado a fazer-se sentir com maior acuidade desde 1805, com grandes baixas

Importações de seda em rama, exportações e reexportações de tecidos de sedapara o Brasil e domínios portugueses. 1796-1825

[QUADRO N.° 7]

Anos

179617971798179918001801180218031804180518061807180818091810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

Importação de matéria-prima

Quantidades(arráteis)

1121428091354806

1006215807919739

109853124676137 1225695961 53468618

771810505580125747842979694519429078530615214686873 543

1343107404948184350074656831046

Valores(10* cruzados)

1181853657925609208

108412841569

561587685

98168

1152689530590986973617576733273672468467588287

índice(1805 = 100)

196,9142,196,2

176,7102,034,7

192,9218,9240,7100,0108,0120,5

13,618,4

101,8100,975,5

121,9165,5137,9108,082,3

129,1235,8130,084,661,581,854,5

Exportações e reexportações de manufacturas

Reexportações

3%33337160947844669993787659361734794

32621918415110523435916111511095622225

51118

(valores: 10 cruzados)

Exportações dasfábricas nacionais

Valor

952993

132216701086

643655721764463334244103224239288211407378451646528571626647777364183304459

Percentagemdo total

70,674,978,073,369,459,048,443,546,643,935,141,352,240,752,160,958,379,561,755,780.082,983,886,791,697,293,497,196,496,1

Total

1349132616942280156510891354165816201057

952591197551459472362512613810807644682721710799389188315478

576

de preços, seguindo-se uma compressão do volume das exportações, que severia naturalmente agravada pela conjuntura crítica posterior. Encetou-se,em 1811, uma recuperação, imperfeita, é certo, que culmina em 1815-16,quando as saídas se aproximam das de 1801 e 1803, por exemplo. Mas foiefémero este entusiasmo, na medida em que há de imediato outra quebra.

Em Lisboa, o percurso é diferente. Mais tardio, o declive chega em1812 ao seu ponto mais baixo. Retomar-se-á, depois, um caudal de produ-ção capaz de alimentar embarques perfeitamente inéditos, como os de 1820e 1821. Neste ramo de fabrico, ainda pouco investido pela mecanização, a

produção nacional podia, com vantagem, competir nos domínios e atédefender os seus preços (quadro n.° 9).

A batalha da concorrência travava-se, em primeiro lugar, no sectoralgodoeiro, pólo das grandes transformações que vinha atravessando aindústria britânica. A fiação nacional por pouco não desaparecera, confi-nando-se à fábrica de Tomar, que continuava, aliás, a laborar abaixo da

Exportações de sedas lisas e lavradas das fábricas nacionaispara o Rio de Janeiro, Baía e Pernambuco

[QUADRO N.° 8]

Anos

1798179918001801180218031804180518061807180818091810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

Lisboa

Volumes(côvados)

179678

12618996917107 279158074210486125 8439287480607

102737967027225668 5471187611039149708199794103 635145437160862128 8751903087931827 7093981473 297

índice(1805=100)

142,8

100,377,085,2125,6167,3100,073,864,1

81,676,857,454,594,482,677,179,382,4115,6127,8102,4119,463,022,031,658,2

Preço médio(réis)

658

1079747679732689597604484

508482725503646656707736

499459526543498460464542

Porto

Volumes(côvados)

263 505

5109571507

93 98087012105 99758048

33 74824863

5255149423

80606

13919134473

índice(1805 = 100)

302,8

58,782,2

108,0100,0121,866,7

38,828,6

60,456,8

92,6

160,039,6

Preço médio(réis)

308

1317609

633444286393

423515

536- 455

524

412438

capacidade instalada30. A tecelagem sofria também um abatimento: eramdiversos os estabelecimentos encerrados e a rede de oficinas portuensesdebatia-se com grandes contrariedades.

Os estampados, tradicional artigo de exportação nacional, resistemmelhor à competição. Algumas estamparias reduzirão o seu ritmo de traba-lho, outras suspendê-lo-ão ou fecharão mesmo definitivamente as suasportas, mas hão-de surgir novas unidades em seu lugar. Após o colapso(em 1811-12 caem a 5 % do volume alcançado em 1805), as remessas dechitas para o Brasil retomam decididamente: em 1816 são equivalentes àsde 1800; e as de cortes de saias (que com as chitas perfaziam cerca de 90 %

30AHMOP, Junta do Comércio, 12, 1820. 577

das vendas de algodões) são mesmo as mais altas de sempre (quadron.° 10).

Este impulso parece traduzir, portanto, uma espectacular recuperação.E assim é, de facto, no que diz respeito às quantidades expedidas para oultramar. Mas é uma evolução que esconde a realidade de uma acentuadadescida dos preços. Entre 1813 e 1818, o valor das chitas reduz-se em

Exportações de chapéus das fábricas nacionais para o Brasile domínios portugueses. 1798-1825

[QUADRO N.° 9]

Anos

17981799180018011802180318041805180618071808180918101811181218131814181518161817181818191820182118221823182418251826

Lisboa

Número

56352624816336768342521174199454603647457440551037

3247847364445322469232083406683777047030469315351661568708168462862963630187182110265182722

Valor(103 réis)

943621234461218601216721056838326811733611968112061180470

613326178372186569188128511203496212117885—

131890154280159863209768158924158183191091268620209308

Preçomédio(réis)

1674197519171780202719822148184816211576

18881304162123052533275425472506

246425052257247825242510266026162530

Porto

Número

236425330809242903213790398712232980272087254642190734168343

73320103946173033165996129891120913186434201424154385148439118399148972173792108497481546690310424868328

Valor(103 réis)

147480270287186039175173338487146903220193782606119054069

4399262642105044

767967571812758814194877250742505924481625883884576623710338754812132368

Preçomédio(réis)

623817765819849630809307320321

680602607

591626684704500500500547508421492506461473

Viana

Número

494

8441880490280756

356200

197258644

50141286097980

96133526820

9612

Figueira,

Valor(103 réis)

299

6751952550224756

213120

197258644

5084764877980

57672115699

7689

rtc.

Preçomédio(réis)

606

10381122800

1000

600600

10001000

1000600800

1000600600852800

Total

Número

293271393290307314284012451319275254327446319387265 139219380

106154151510217565210413170618161581224254262582207413202935189580223314259240181072111172138724206899151050

Valor(IO3 réis)

242142393734308574298797444720230396338286197941181801134539

105537124545177231

166726187753223850268309

207120219292243604298856212380181072224967316741241676

10,6 % ao ano (quadro n.° 10). Pondo de parte a possibilidade de umavenda ao desbarato (seria demasiado prolongada e, caso a situação não sealterasse, levaria a curto prazo à falência de muitos dos estabelecimentos,o que não aconteceu), há que ter em conta toda uma série de expedientesque permitiram às estamparias manter-se em funcionamento perante a con-corrência. O recurso a produtos semimanufacturados mais baratos (panoscrus ingleses em vez de indianos) e a uma mão-de-obra menos qualificada(aprendizes e serventes, em lugar de mestres e oficiais)31 e a quebra geral

578

31 Míriam Halpern Pereira, «O Estado vintista e os conflitos no meio industrial», inO Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do Século XIX, 2.° vol., Lisboa,1982, p. 45.

de remunerações no sector terão possibilitado a sua sobrevivência e até areconquista de algumas posições comerciais.

As outras produções têxteis ficam ainda mais longe da sua anteriorcapacidade. No caso dos linhos, a redução das exportações foi muito pro-nunciada, sobretudo até 1812. As saídas por Lisboa simplesmente cessam.No Porto readquirem algum alento, mas os fardos embarcados raramente

Exportação de tecidos de algodão das fábricas nacionais para o Brasil. 1798-1825(Saídas por Lisboa)

[QUADRO N.° 10]

Anos

1798179918001801180218031804180518061807180818091810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

Chitas

Côvados(103)

3044,3

1737,52101,32 585,72467,43319,12822,82251,62011,9

583,6435,2120,3103,8465,7&55,6

1009,41718,62334,53 373,72116,61 569,52096,12171,51406,21 398,42087,7

índice(1805 = 100)

107,8

61,674,491,687,4

117,6100,079,871,3

20,715,44,33,7

16,530,335,860,982,7

119,675,055,674,376,949,849,573,9

Valor(103 réis)

1219141

636 127615 587886053783072

1040946791 577545 259476287

141147104584298Ò124922

109785179296205088308982

—455039299145220686299685294 127181393188449289608

Preçomédio(réis)

400

366293343317314280242237

242240248240236210203180—135141141143135129135139

Saias (a)

Cortes

22797—

3295021228172871468535229470093658847074

16151828524985 767

1426742749727898985355 82460009

102266684718266588903468313302225157

índice(1805 = 100)

48,5—70,145,236,831,274,9

100,077,8

100,1

34,417,65,3

12,330,390,9

154,8191,1118,8127,7226,5145,7175,8189,199,670,253,5

Valor(103 réis)

74735—

9193253103464583975691644759775954475106

2796513 30936188443

19401595519844499435

——

7277953 74764594544972829918 38516731

Preçomédio(réis)

3 278—

27902501268727072601161616271595

17311606144814641359139313521106

—687(6)684785781612604556665

(cr) Só para o Rio de Janeiro, Baía e Pernambuco. Para as outras capitanias, as exportações são muito reduzidas.(b) Preço referente apenas às exportações para o Rio de Janeiro.

vão ultrapassar metade dos que antes da guerra dali rumavam ao Brasil(quadro n.° 11).

A substituição dos panos de linho nacionais pelos tecidos de algodãoque iam directamente de Inglaterra estará na origem desta grande diminui-ção dos carregamentos. No mercado interno, a situação não terá sido,porém, tão negativa. As importações de matéria-prima caíram muitomenos do que as vendas de panos ao exterior (quadro n.° 11) e o enraiza-mento da produção dos linhos no modo de vida das populações, assim noMinho como na Beira, a importância do autoconsumo e a interdependên-cia da agricultura e da indústria rural amortecem o impacte da concorrên-cia estrangeira em algumas faixas, longe aliás de serem inexpressivas, dosmercados metropolitanos. 579

Os lanifícios nacionais encontram também maiores dificuldades nafrente externa, quase desaparecendo de entre as mercadorias enviadas parao ultramar. A crise, particularmente virulenta, feriu a pequena produção,mas também as fábricas. Algumas, inclusivamente, depois de terem sus-pendido a laboração, só com relutância a retomam, como aconteceu comas Reais Fábricas da Covilhã e Portalegre32. Assim mesmo, na duríssima

Importações de linho em rama e exportações dos panos de linho nacionaispelo Porto para o Brasil. 1796-1825

[QUADRO N.°

179617971798179918001801180218031804180518061807180818091810181118121813181418151816181718181819182018211822182318241825

li]

Lisboa

22137

21248199131941227 9961842934910279891478711526

5 5022625427637127823880834 8083631240092282881415130017339054438722237242755177430310

Importações de linho em rama(quintais)

Porto

56774

3052251434403237018876493416985278710998313 885—221320415294081428343 70263299606255210015 9971591432981612769329649552200824063783 042

Figueira

14113

8 33010060943893251543517 49318486148107224——1536—852

17161367834

51105 90815173 9334272625148892302972—

Total (a)

93024

6010081514693721076961103579498010057014121034223—98714981358 38728771845021026029942497700501933229268284100400144554771824704693445114189

Exportações de panosde linho pelo Porto

Varas

2793 727274718620542823 787 5692038435153163816024141 898 36617169701417098

—588217545948

1323053663 956856481836882975244961 870

10079471567 325884198885 901955 258745 176991 222648782555 934

índice(1805 = 100)

147,2144,7108,2199,5107,480,784,4100,090,474,6

31,028,869,735,045,144,149,350,753,182,646,646,750,339,352,234,229,3

(a) O total, uma vez que estão incluídas pequenas importações por outras praças, não corresponde necessariamente àsoma das parcelas anteriores.

disputa pelo mercado interno, obtiveram-se alguns êxitos. Foram possibili-tados pelas habituais vantagens do trabalho doméstico —ainda que agoramuito mitigadas— e pelo esforço de modernização técnica que, em res-posta à reconstituição de um mercado reservado (o dos fardamentos dastropas), foi empreendido, desde 1818, em alguns estabelecimentos doPorto, da Covilhã e de Portalegre.

32 L. F. Carvalho Dias, História dos Lanifícios (1750-1834). Documentos, vol. n, Lis-580 boa, 1962, pp. 439-453.

Embora com algumas variações e tonalidades, pode apreciar-se, emtraços muito gerais, um comportamento comum aos mais importantesramos industriais. Depois de um período em que as manufacturas britâni-cas parecem positivamente afogar a indústria nacional, após um afunda-mento das exportações, terá lugar uma recomposição que é já manifestaem 1816 e se fortalece dois anos mais tarde.

Quando é menor a concorrência —como nas sedas, nos chapéus e tam-bém nos curtumes—, os preços podem ser conservados, ou o seu decrés-cimo não se afigura superior à geral tendência deflacionária. Mas, quandoé mais encarniçada a luta comercial —como nos algodões—, o ressurgi-mento faz-se à custa da depreciação das mercadorias e das remunerações.Os linhos e os lanifícios não serão capazes de voltar a abastecer as coló-nias, mas, de modos diferentes, mantêm uma presença importante juntodos consumidores do Portugal europeu.

A indústria recobrava ânimo. A maior parte dos índices, é certo, ficaainda abaixo do plano ganho antes das invasões francesas, mas o que é sur-preendente, mesmo para alguns observadores coevos, é que tenham che-gado tão longe. O contador-mor das balanças do comércio exprimia-seassim: «[...] he para admirar, que as nossas poucas, e destruídas Fabricas[...], tenhão podido conservar esses restos de vigor, que apenas lhe deixoua invasão Franceza; exportando huma somma de perto de 3 Milhões, alemdos mais productos seus, que se consomem neste Reino.»33

A dimensão autêntica deste restabelecimento tem iludido a maioria dosestudiosos. O recurso a fontes inapropriadas34, a utilização pouco crite-riosa das estatísticas do comércio externo35 e a simples manipulação dosvalores, e não dos volumes, das exportações acabam por empolar e prolon-gar artificialmente a depressão36 —que é, no entanto, profunda e indes-mentível— e por esconder o alcance da restauração industrial.

Este clima de relativa bonança —em parte apenas aparente, comoveremos— será de certo modo perturbado pela separação política do Bra-sil, que, apesar de vir consagrar um previsível afastamento, não deixou deprovocar alguns sobressaltos.

As suas repercussões foram, no entanto, bem diferenciadas, consoanteos sectores de actividade ou os ramos industriais. A chapelaria, por exem-plo, em nada padece com as alterações, continuando em plena prosperi-dade (quadro n.° 9). A estamparia, por seu lado, conhece aflições apenastransitórias. Se bem que as entradas de tecidos de algodão ingleses sejammuito elevadas, suportando uma reexportação para Espanha que chega aultrapassar 10 % de todas as saídas para o estrangeiro (quadros n.os 2e 6), o escoamento dos estampados nacionais é reposto desde 1825 (quadron.° 10).

Algumas produções, porém, como os linhos e as sedas, foram de factoprejudicadas. No primeiro caso, as exportações voltam a cair desde 1824

33 Arquivo Nacional da Torre d o T o m b o (ANTT) , Balança do Commercio [...], 1821.34 Nomeadamente as listas de fábricas e os relatórios ministeriais que ou não são compa-

ráveis, ou veiculam desígnios políticos imediatos.35 N ã o rectificando as mudanças de critério que surgem nas balanças de comércio e repe-

t indo sistematicamente a série publicada por A . Balbi, Essai Statistique sur le Royaume duPortugal et de l'Algarve, Paris, 1822, t. i, p . 445.

3 6 Valent im Alexandre, « U m momento crucial [...]», que pela primeira vez rectificou asmais flagrantes mudanças de critério das balanças de comércio, não utiliza assim mesmo asquantidades.

(quadro n.° 11). E, para as sedas, as perdas são nitidamente mais graves,sendo plausível considerar uma desagregação do sector. Começada emTrás-os-Montes, atingiu o Porto em 1820 —quando são numerosas as ofi-cinas inactivas—, para vibrar o derradeiro golpe na pequena tecelagem lis-boeta, que paralisa em grande parte já em 1822.

Mais do que os novos rumos políticos, a que o grito do Ipiranga veiodar voz, o que parece estar em causa é a ruína do frágil edifício constituídopelas relações comerciais luso-brasileiras, tal como se configurava depoisdo rompimento do Pacto Colonial. O comércio transitário afundara-se eera visível o decréscimo das reexportações de géneros tropicais e dematérias-primas para a Europa e de manufacturas para o Brasil. O enfra-quecimento das importações coloniais tornava-se notório desde 1819,muito antes da independência. Assim mesmo, a metrópole ia registandouma acumulação de défices nas suas trocas com o Brasil, que, minoradaembora pelos volumosos embarques de vinhos37, era a prazo insustentável(gráfico).

Valores

(IO3

contosde réis)

17

16

15

14

13

12

11

10

9

8

7

6

5

4

3 "

2

1

Importações de géneros' coloniais

Reexportações de produtosv brasileiros para a Europa

,•'Exportações de manufacturas para as colóniasReexportações de têxteis e de produtosda Ásia para as colónias

O fim do sistema colonial produzia os seus efeitos. Novas concorrên-cias faziam-se sentir desde 1815, quando se abriu o contacto directo atodos os países. Um inexorável afastamento comercial entre Portugal e oBrasil, que a separação política não fez mais do que confirmar e acelerar,ia prosseguindo. Este distanciamento, para além das nefastas consequên-cias que teve para os meios dos negócios —comprimindo os rendimentos

582 37V. Alexandre, art. cit., quadro in, p. 45.

gerados no seu seio—, contrariou as possibilidades de penetração das mer-cadorias propriamente nacionais, designadamente das manufacturas, nomercado brasileiro, onde habitualmente compensavam, apenas em parte, écerto, as aquisições dos géneros coloniais. Os outros domínios não estavamem condições de responder a este entorpecimento das relações mercantis enão podiam minimamente colmatar esta perda, que pesava com severidadesobre a economia portuguesa.

A reapreciação das flutuações que marcam a vida económica de finaisdo século xviii e do primeiro quartel do século xix, alicerçada em sériesestatísticas corrigidas ou mesmo de novo construídas, sugere imediata-mente algumas observações. Perante esta reavaliação, as interpretaçõesque a propósito dos movimentos conjunturais têm vindo a ser formuladaspodem e devem ser questionadas e merecem, efectivamente, algumasreservas.

No âmago da questão está justamente um problema de medida: qual averdadeira amplitude das oscilações, qual o seu significado real? O fre-quente empolamento das suas proporções tem servido de ponto de apoioàs opiniões e considerações mais catastrofistas acerca do impacte econó-mico da Guerra Peninsular.

Não está nem poderia estar em causa a realidade do colapso que resul-tou das hostilidades. Há uma pletora de ponderosos embaraços que, inegá-veis e evidentes, tivemos já ocasião de enunciar. É necessário, porém,reconduzir o desastre às suas dimensões efectivas e, principalmente, ter ocuidado de não sobrestimar as expansões a montante e a jusante que, à suaimagem, facilmente podem sobressair.

Deve contestar-se, assim, por inaceitável à face das estatísticas e dasinformações qualitativas disponíveis, a ideia de que, na viragem para Oito-centos, uma irresistível vaga de optimismo atravessava o País, conduzindo-oao limiar do crescimento económico moderno, e de que esse umbral sónão foi franqueado porque, súbita e brutalmente, as invasões francesasinterromperam uma caminhada vertiginosa. Não pode pensar-se que, porsi só, tais acontecimentos —por severos que tenham sido os seus efeitos—tenham deitado a perder uma oportunidade histórica para o progresso eco-nómico e social, para o acompanhamento das mudanças que empurravamos outros países europeus e que, ipso facto, as possibilidades de moderni-zação da sociedade portuguesa ficaram adiadas por décadas, ou talvez porséculos. Estas noções não têm em conta as circunstâncias reais do Portugalem transição para o século xix.

À luz dos dados que recolhemos e construímos —confrontando, desig-nadamente, exportações e reexportações de artigos manufacturados—, àluz, também, do enquistamento das inovações, que, muitas vezes precoce-mente introduzidas, não se difundem no tecido produtivo38, o brilhodessa prosperidade, que durava ainda no primeiro lustro oitocentista, niti-damente empalidece.

38 São numerosos os exemplos de máquinas prematuramente introduzidas e que vêemdepois a sua divulgação bloqueada, cf. cap. iv da nossa dissertação de mestrado. 583

Por outro lado, a surpreendente reposição de alguns índices de exporta-ção —depois de uma crise tão pronunciada como aquela que dilacerou oPaís durante os conflitos napoleónicos—, mais do que uma espectacularrecuperação industrial, do que um novo arranque no caminho da industria-lização, parece indicar que, mesmo antes do colapso, a situação das manu-facturas nacionais não era assim tão risonha, nem tão grande a sua impor-tância para a globalidade da economia. Um aparelho produtivo mutiladosó seria capaz de reconquistar, mesmo parcialmente, posições de relativafraqueza.

O exagerado entusiasmo posto nas apreciações do fulgor industriallevou, como contrapartida, a uma enfatização dos nefastos corolários dacrise e daria agora lugar, também, a uma nova valorização da reconstruçãoda indústria e dos seus mercados que se afigura completamente injustifi-cada.

Sob estas oscilações, de algum modo superficiais —de cuja realidade einfluência não temos o direito de suspeitar, contudo—, há que procurar ascorrentes de fundo. Os mecanismos e os bloqueios que desencadeiam ouinibem a industrialização não devem unicamente ser considerados em favo-res ocasionais ou em dificuldades de natureza circunstancial, por mais rele-vantes que sejam. A própria análise das conjunturas, que, em rigor, ate-nuou o alcance das flutuações, acaba por, ela própria, solicitar a descidaao plano das estruturas.

É, no entanto, uma caminhada difícil e tortuosa. Conhecemos aindamuito pouco da sociedade do Antigo Regime, a história social não conse-gue firmar uma tradição entre nós. Depois de algumas contribuiçõesmagistrais39, as investigações têm ainda hoje um cunho essencialmenteexploratório ou avisadamente parcial40. O que se sabe, por pouco queseja, basta, contudo, para delinear um quadro que, em todas as suas tona-lidades, parece pouco propício ao desenvolvimento da indústria, muitomenos capaz de impulsioná-lo.

Cerne de grande parte das transformações que na Europa se vão pro-cessando, ao mesmo tempo que seu reflexo também, a extensão e acentua-ção da procura e a sua expressão nos mercados são extremamente tímidasem Portugal. A estrutura geeconómica e social dos mercados, preservandoembora, depois da crise, a malha industrial de uma completa desagrega-ção, constitui um impedimento para a proliferação ou actualização técnicadas unidades produtivas.

Do ponto de vista geográfico, os mercados continuam vincadamentedivididos, espartilhados, raramente ultrapassando a dimensão da regiãoou, até, da vizinhança. A inexistência de uma rede de estradas, a absolutaaspereza dos caminhos e a falta de vias navegáveis —que beneficiam ape-nas algumas áreas privilegiadas— muito contribuem para a persistentefragmentação do espaço económico.

Devem, porém, ser considerados vários níveis de integração mercantil,consoante os produtos transaccionados; e são exactamente as manufactu-

39 Designadamente as obras de Magalhães Godinho e Borges de Macedo.^Joaquim Romero de Magalhães, «Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e

a sociedade colonial brasileira», in Revista de História Económica e Social, 1985, n.° 16;Nuno Gonçalo Monteiro, «Notas sobre a nobreza, fidalguia e titulares nos finais do Antigo

584 Regime», in Ler História, 1987, n.° 10, por exemplo.

ras que melhor parecem aguentar o custo da distância41. A teia das feirascontinua a configurar a arquitectura fundamental do comércio interno.Deste modo se revela, como já na época sublinhava Vila-Nova Portugal42,a sua fraqueza e a sua volubilidade.

Mas estes mercados episódicos, em número impressionante43, se teste-munham de um lento processamento das trocas, podem, no seu conjunto,pela sua multiplicação, pela sua sucessão no tempo, traçando itinerários eatraindo mercadores e pequenos produtores, suportar uma razoável fluidezdo comércio. A actividade mercantil persistirá no seu vagar e na sua com-partimentação, é certo, até porque as formas de fiscalidade local e a defesada autonomia pelas oligarquias concelhias44 agiam seguramente nesse sen-tido.

Mais do que esta dispersão, do que esta divisão espacial, no entanto,são a pobreza geral de um país —que provocou viva impressão em váriosviajantes estrangeiros, embora seja prudente matizar alguns dos seus exces-sos descritivos— e aquilo que poderemos designar por estratificação socialdos mercados que se afiguram mais aflitivas.

A agricultura pouco ou nada progrediu ao longo de Setecentos, con-tando a seu favor, principalmente, com a prodigiosa escultura das encos-tas da bacia do Douro. Algumas regiões terão conhecido mesmo um retro-cesso45 e à falta de modificações estruturais vinham juntar-se as crisescíclicas de escassez, que recrudescem na passagem para Oitocentos. Dequalquer modo, a produtividade agrícola, que se mantinha a níveis muitobaixos, era pouco susceptível de alimentar imponentes centros económicosonde crescesse um dinamismo de cariz essencialmente urbano.

As cidades, por isso, na configuração que assumiam geralmente naEuropa mais adiantada, eram praticamente desconhecidas em Portugal.Favorecidos pela morosidade e custo das comunicações, de que padecia,antes de mais, o interior, certos nódulos de actividade, onde se estabele-ciam alguns, poucos, recebedores de rendas —que a maioria viera paraperto da Coroa—, eram capazes de imprimir a sua influência sobre regiõesamplas, de que tiravam substância e a que prestavam serviços. Do pontode vista funcional, podiam estas localidades desempenhar papéis dealguma relevância, mas a sua falta de envergadura demográfica limitavadrasticamente a sua expressão no consumo, atribuindo-lhes fundamental-mente o lugar de encruzilhadas na redistribuição de réditos e produtos.

Na verdade, neste dealbar do século xix, Portugal tinha apenas duascidades de dimensão europeia. Lisboa, a capital, com mais de 160 000habitantes, lugar de residência dos mais ricos, sede da corte, drenandopara si os rendimentos do Império era, apesar da sua perda de fôlego, umvolumoso tumor no tecido populacional português. O Porto, com cerca de45 000 moradores, polarizava a economia de uma vasta região, a que ser-

41 David Justino e Mafalda Soares da Cunha, «As feiras de Estremoz — uma primeiracontribuição para o estudo dos mercados regionais no Antigo Regime», in Revista de HistóriaEconómica e Social, 1983, n.° 11, p. 109.

42Tomás António de Vila-Nova Portugal, «Memória sobre a preferência que entre nósmerece o estabelecimento dos mercados ao uso das feiras [...]», in Memórias Económicas daAcademia [...], vol. 2, Lisboa, 1792, p. 1.

43 J. B. Macedo, Problemas [...], pp. 142-143.44J. Romero de Magalhães «Reflexões [...]».4 5D. Justino, «Crises e 'decadência' [...]»; Aurélio de Oliveira, A Abadia de Tibães

1630/80-1813, dissertação de doutoramento, Faculdade de Letras do Porto, vol. H, p. 67. 585

via de escápula. Mas, além destas duas aglomerações, apenas outras seisalojavam mais de 10 000 pessoas46. Para que se tenha uma ideia do raqui-tismo da urbanização portuguesa, bastará lembrar que a vizinha Espanha,longe de ser, no entanto, um modelo de sociedade urbanizada, contava jácom quarenta povoações neste escalão47.

Ora, para esta época, o nível de urbanização constitui um instrumentoinestimável para aferir a capacidade dos mercados internos48. Nas cida-des, a divisão do trabalho aprofunda-se, o autoconsumo é cerceado,diversificam-se as estruturas socioprofissionais, crescem e afirmam-se osgrupos intermédios, que, na Europa, serão em larga medida responsáveispelo aumento da procura. Mas onde estão, em Portugal, tais agrupamen-tos? Faltam completamente as cidades médias, é gritante a tibieza da popu-lação urbana, pelo que a sua atrofia —e com ela a do consumo interno—parece inescapável.

Não era a multidão dos camponeses ou o desafogo de alguns lavrado-res — intérpretes, uns e outros, de uma agricultura por modernizar— queestavam em condições de ajudar a comercialização dos artigos da indústrianacional. Os seus rendimentos, geralmente modestos, sofriam ainda umapunção considerável, sob a forma de foros, rendas e impostos laicos oueclesiásticos49. Além de ter um fraco poder de aquisição, a populaçãorural não exprimia muitas vezes as suas necessidades nos mercados, a nãoser nas feiras, junto dos bufarinheiros ou num comércio de vizinhança,preferindo, quando possível, a produção para consumo próprio, queamiúde escapa à observação do historiador50.

As compras da aristocracia — e bem assim do Estado e da Igreja—,essas sim, pesavam decididamente na estrutura mercantil nacional. Reno-vada episodicamente, por um processo de capilaridade social que promoveessencialmente os negociantes mais ricos, sustentada e forjada mesmo emparte pelo Estado51, esta aristocracia açambarcava uma fracção importan-tíssima dos rendimentos nacionais. Formada por grandes proprietários,armazenistas de produtos agrícolas, monopolizando os mais altos cargosadministrativos, tanto no Reino como nas colónias, não enjeitando partici-par nos mais variados negócios52, gozava de chorudos réditos, que osten-sivamente dissipava, adquirindo nas lojas os géneros mais sofisticados, quetinham, em múltiplos casos, proveniência estrangeira. Na sua órbita gira-vam ainda autênticos batalhões de criados, que ela sustentava, adensando--se nas cidades, e muito particularmente em Lisboa.

Fragmentado e disperso, o consumo interno, além de muito constran-gido, achava-se socialmente enviezado, concentrando-se num estreitogrupo superior, em resultado de uma distribuição da população e de umarepartição dos rendimentos que em nada contribuíam para a sua homoge-neização e para o seu crescimento.

Esta estrutura geeconómica e social dos mercados auxiliou, contudo,durante algum tempo, como tivemos já ocasião de ver, um rudimentar

46 Fernando de Sousa, A População Portuguesa nos Inícios do Século XIX, dissertaçãode doutoramento, dactilografada, Porto, 1979, pp. 176-233.

47V. M. Godinho, A Estrutura da Antiga Sociedade [...], p. 35.4 8N. F. R. Crafts, «Industrial Revolutions [...]», pp. 438-440.49V. M. Godinho, «Portugal and her Empire [...]», p. 539.50Fernand Braudel, Civilisation matérielle [...], vol. n, p. 44.51Nuno G. Monteiro, «Notas sobre nobreza [...]», pp. 31 e 43.

586 52V. M. Godinho, «Portugal and her Empire [...]», pp. 537-538.

adiantamento da indústria, que se apoiou em grande parte nos gastos destaaristocracia e do Estado e, sobretudo, na procura gerada no ultramar,onde a actividade manufactureira continuou proibida até à suspensão doPacto Colonial.

VI

O padrão deste fruste desenvolvimento industrial continha, desde osprimeiros passos, uma ameaça de estrangulamento. Sem um sólido contin-gente de consumidores certos na metrópole, as flutuações dos mercadoscoloniais, sempre mais inseguros, eram muito mais perigosas e restritivas.A crise do Império e a transferência da corte para o Brasil foram, por isso,sentidas como gravames insuportáveis.

Apesar de tudo, algumas das circunstâncias estruturais que consenti-ram o progresso da pequena indústria —que é uma das facetas desseavanço das ocupações manufactureiras— mantêm-se depois da depressãoe vão ajudando à sua sobrevivência. A produção na ruralidade, perten-cendo ao modo de vida das populações, vincadamente incisa nos mercadoslocais, gozando da vantagem de uma mão-de-obra abundante e disposta aaceitar baixíssimas remunerações reais53, exibia uma invejável flexibili-dade, uma extraordinária capacidade de adaptação.

Esta mesma versatilidade, que fazia a força do sistema proto-indus-trial, só permitiria, contudo, uma mutação no sentido de formas maismodernas de trabalho quando da extensão do consumo resultasse uma ten-são insustentável no quadro da sua estrutura produtiva. De outro modo,as próprias condições que proporcionaram a proto-industrialização —eque defendem o tecido industrial de uma ruptura completa perante a crisee a concorrência estrangeira— constituem-se em bloqueamentos à indus-trialização nos novos moldes europeus.

Com efeito, o movimento de inovação técnica e organizacional, em queestão implícitas as grandes mudanças económicas e sociais, supunha umestímulo importante, uma poderosa pressão sobre as possibilidades de pro-dução, que justificassem os novos investimentos e a assunção dos riscospróprios da transformação dos processos de trabalho. Embora discreta-mente, primeiro a exigência da substituição de importações, com o encerra-mento do «ciclo» do ouro, e depois o renovado fulgor colonial empurra-ram a produção industrial portuguesa, que, receosamente, sempre foirespondendo pela adopção —por vezes precoce— de algumas inovações.

São, contudo, realizações elementares e as suas repercussões na estru-tura industrial serão também, naturalmente, contidas. A timidez desteesforço de assimilação de aparelhos e modos de trabalho que iam surgindono estrangeiro —mobilizando cerca de uma vintena de unidades— é impu-tável, em parte, à tacanhez dos mercados. Mas havia todo um conjunto deoutros obstáculos que se erguiam no caminho da modernização e que sócustosamente podiam ser suplantados.

Em princípio, a participação na mesma área civilizacional onde se cal-deavam as grandes novidades técnicas e a densidade de comunicações com

53Hans Medick, «The Proto-industrial Family Economy: the structural function of hou-sehold and family during the trarrsition from peasant society to industrial capitalism», inSocial History, Outubro de 1976, pp. 291-319. 587

esse próximo mundo europeu jogavam a favor do conhecimento e daincorporação —sem aflições de maior— dessas mudanças. Ora as guerrasda Revolução Francesa e os bloqueios entorpeceram a fluidez desses con-tactos e provocaram cesuras no que era um espaço relativamente aberto.Quando se retomou a normalidade, a superioridade britânica, muito maisameaçadora, tornara-se, principalmente para Portugal, uma dificuldadeacrescida na viagem da industrialização54.

A proximidade cultural entre Portugal e a Europa economicamentemais adiantada escondia, aliás, desigualdades assinaláveis. Não existia,pode dizer-se, uma capacidade de inovação original. As invenções reclama-das nas reivindicações de exclusivo —que quase todas respeitam à introdu-ção de melhoramentos importados—, se exceptuarmos alguns aperfeiçoa-mentos das máquinas de destilação, nenhumas consequências poderiam terpara o desenvolvimento da indústria nacional55.

A transmissão dos conhecimentos técnicos continuava a apoiar-se nasrelações familiares, na passagem de pais para filhos de um saber fazer tra-dicional e ainda no regime de aprendizado do artesanato urbano e dosnovos estabelecimentos fabris. A rotina, a mera repetição de práticas ossi-ficadas por séculos de hábitos ancestrais levantavam elevadas barreiras àmudança, eram um crivo apertado que só raras inovações podiam atra-vessar.

A única maneira de romper este ciclo vicioso, de sair deste circuitoque se auto-reproduzia, era a inserção de um elemento que lhe fosseessencialmente estranho: a aquisição de máquinas ou o recrutamento detécnicos no estrangeiro, expedientes que aliás se combinam, uma vez queos novos aparelhos quase sempre exigiam a formação de mão-de-obra quecom eles haveria de laborar, sendo por isso acompanhados por um profis-sional habilitado, que se encarregaria de ensinar os trabalhadores portu-gueses.

Numa estratégia de modernização dos estabelecimentos industriais,estes eram, na realidade, os únicos recursos que se apresentavam ao dis-por dos empresários e administradores nacionais. Por isso, sempre que seopta por fazer avançar a indústria de forma mais acelerada, acentuam-seestes procedimentos. Quando Ericeira planeia a reforma dos lanifícios,não contrata mestres ingleses?56 Sob o governo de Pombal, o Estado nãoapoia inúmeras iniciativas de franceses e italianos, que são chamados aPortugal ou espontaneamente vêm oferecer os seus préstimos?57 E aindaquando termina o século xviii, não se angariam vários especialistas britâ-nicos? 58

Este tipo de actuação, certamente insubstituível, só poderia ter algumaeficácia, porém, se fosse assumida como um paliativo transitório, isto é, sedesse lugar a um autêntico incremento da capacidade tecnológica propria-mente nacional, designadamente através da constituição de um corpo deartífices altamente qualificados que viessem a substituir as primeiras gera-ções de mestres estrangeiros. De outra maneira, a contínua importação de

54David Landes, The Unbound Prometheus. Technological change and industrial deve-lopment in Western Europe from 1750 to the present, Cambridge, 1969, p. 147; Sidney Pol-lard, European Economic Integration, 1815-1970, Londres, 1974, p. 12.

55AHMOP, JC 9.56J. B. Macedo, Problemas [...], pp. 30-39.57 J. B. Macedo, A Situação [...], cap. v.

588 58Veja-se, por exemplo, Verdier, «Memória sobre as fiações [...]».

máquinas e dos seus operários haveria de criar uma dependência que con-servaria a inferioridade da indústria nacional, para além de se revelar umcaminho semeado de contrariedades.

Pese embora a ineficiência dos Estados no controlo dos seus territóriose na imposição dos seus ditames, a verdade é que as políticas que visavamevitar, mormente em Inglaterra, a saída da maquinaria ou dos segredosque mais favoreciam o aumento da produtividade industrial não deixavamde se traduzir em alguns embaraços para os que tentavam ter acesso a essasnovidades. Se as proibições não impediram a disseminação de informaçõese equipamentos, desencorajaram certas iniciativas e aumentaram-lhes oscustos, já de si elevados pela concorrência entre os numerosos industriaiseuropeus e seus agentes que se apresentavam nos grandes centros de ino-vação.

A assimilação das técnicas alheias deveria, por isso, conduzir à sua imi-tação e reprodução, se se queria tirar todo o proveito desta via de moderni-zação: era, de resto, o que acontecia nos países que mais cedo começarama trilhar o rumo aberto pelos Britânicos. Ora, em Portugal, os artíficesimigrantes só muito raramente construíram as máquinas, limitando-se, emgeral, a trabalhar com as que primitivamente tinham vindo do exterior.Queixavam-se da falta de qualificações de base dos operários portugueses,da inexistência de especialistas de mecânica (relojoeiros, por exemplo),lutavam com a incipiência de uma metalurgia que, após alguns ensaios emMoncorvo e na Foz de Alge, permanecia à margem das novas modalidadesde trabalho59.

Alguns técnicos estrangeiros ainda conseguiram ensinar os mestres por-tugueses que lhes sucederam na direcção operacional das fábricas. Mas,não se renovando, os conhecimentos estiolavam e perdiam-se rapidamente.Deste inêxito, a própria disposição dos imigrantes é também responsável.Uns, como quase sempre acontece em casos semelhantes, eram simplesimpostores, e o Estado e os industriais davam tardiamente pelo embuste.Os outros, na sua maioria, tinham a pretensão de se tornarem empresáriosindependentes, reivindicando, para tanto, o auxílio da Coroa.

A mudança de política que sobreveio com a Viradeira, fazendo cessarsubsídios e comparticipações do Tesouro, frustrou a ambição de muitos.Mas para uma grande parte prevalecia o desígnio inicial, pelo que evitavamcomprometer-se decididamente com os estabelecimentos que serviam, prin-cipalmente quando não pertenciam ao Estado. Os conflitos que habitual-mente decorriam destas situações e de uma penosa falta de integraçãosocial —amiúde desembocando no alcoolismo e em problemas disciplina-res— sublinhavam a deficiência de uma estratégia que confiava em pri-meira instância, porventura excessivamente, no recrutamento pouco crite-rioso de profissionais estrangeiros.

Os próprios operários nacionais, aliás, não estavam nas melhores con-dições para plasmar o novo saber que, eventualmente, lhes haveria de sertransmitido. Não existem, para a época que estudamos, estatísticas mini-mamente satisfatórias no que diz respeito à educação, apenas alguns dadosesparsos coligidos por Balbi60. Mas, dessas informações —que expõem o

59 Informações do corregedor de Moncorvo, 1794, AHMOP, MR 41, Mc 1; Guilhermede Eschwege, «Memória sobre as dificuldades das fundições e refinações nas fábricas deferro», in Memórias Económicas da Academia /.../, vol. 4, Lisboa, 1812.

60 A . Balbi, Essai Statistique [...], t. II, pp. 35 e segs. 589

esboroamento da cobertura do território pela rede de escolas de «primeirasletras»— e do que se conhece relativamente a períodos posteriores, podere-mos inferir que o analfabetismo era quase generalizado.

Ora este problema —embora não fosse, a não ser excepcionalmente,sentido como tal— era verdadeiramente aflitivo, continuando a sê-lo atéaos nossos dias. Com efeito, um elevado nível de alfabetização tem sidoapontado, em investigações recentes, como um dos recursos que melhorpodem dotar as sociedades da capacidade de recuperar de situações deatraso económico61.

Para além da absoluta insuficiência da educação elementar, as escolasmédias e, entre elas, as que conferiam uma preparação técnica eram esta-belecimentos perfeitamente excepcionais e que na esfera industrial nãoexistiam. O esforço pombalino, de que a Aula do Comércio representa oinstrumento mais conhecido, mas que contou com uma ou outra escola nadependência da Real Fábrica das Sedas62, que depressa, é certo, definha-ram, não encontrou continuidade. O Colégio Real das Artes de Coimbra,preparando muitas vezes o ingresso na Universidade, e as Escolas de Retó-rica, Grego, Filosofia Moral e Racional não podiam também servir de pon-tos de apoio à criação de uma nova mentalidade técnica e científica.

A própria Universidade, permanecendo, apesar das reformas, afastadadas grandes correntes de renovação da maneira de pensar que faziammover a Europa ocidental, teria um contributo necessariamente pobre paraa geração de um ambiente cultural propício à inovação. A sua colaboraçãopara o desenvolvimento técnico-industrial resume-se à participação noaperfeiçoamento de alguns processos de fabrico da cerâmica63.

A Academia Real das Ciências, surgindo como uma instituição que sepretendia diferente, porventura complementar, da Universidade, projec-tava originalmente desenvolver uma larga actividade na difusão dos conhe-cimentos técnicos e científicos. Afirmando, no seu programa, a necessi-dade e o valor de um crescimento das manufacturas que transformassemas matérias-primas nacionais, privilegiava o recenseamento e a avaliaçãodesse tipo de recursos. Corporação de prestígio, mais à maneira da RoyalSociety de Londres e das suas congéneres italianas do que das mais profí-cuas academias francesas e escocesas, que se iam libertando do espartilhodo mecenato, mal dotada de equipamentos essenciais, as suas preocupa-ções acabaram por revelar-se em grande medida inconsequentes, e a obrade divulgação, que aflora nas suas numerosas publicações, não sendo esté-ril, teve uma escassa eficácia social.

Muito mais do que a Academia, foram, apesar de tudo, as escolas mili-tares, criadas no último quartel do século XVIII, que, proporcionando umainstrução de cunho mais prático e aplicado, puderam apoiar, modesta-mente embora, a ampliação dos dotes técnicos nacionais. É o caso, porexemplo, do motor da Real Fábrica de Papel de Alenquer, concebido porJosé Michelotti, lente de Hidráulica da Academia de Fortificações64. Osmilitares dominavam, aliás, na época, as disciplinas científicas, comopoderá confirmar-se pela sua presença nas classes da Academia das Ciên-cias.

61 Rondo Cameron, «A new view [...]», pp. 17-21.62 J. Acúrsio das Neves, Noções Históricas [...].63 Manuel Dias Baptista, «Ensaio de uma descrição física e económica de Coimbra e seus

arredores», in Memórias Económicas da Academia [...], vol. 1, pp. 293-297.590 «"Plano e projectos da Fábrica de Papel de Alenquer, BNL, Res., Cód. 610, fls. 49-58.

Condenadas a uma recatada participação no progresso tecnológico,todas estas instituições não encontravam, para mais, sucedâneos em outrasorganizações colectivas que emanassem de certos grupos sociais ou queviessem dar voz a círculos culturais. Em 1780, em Ponte de Lima, ainda sefundou, com o apoio da Junta da Administração das Fábricas do Reino,uma sociedade patriótica que se propunha, entre outros desideratos, con-tribuir para o fomento da indústria. Tratou-se, porém, de um empreendi-mento isolado que, como tal, não teve sequência.

Só depois da revolução liberal de 1820 se retomou a ideia da constitui-ção de uma associação para a divulgação das novidades técnicas e para oprogresso da economia. Assim apareceu a Sociedade Promotora da Indús-tria Nacional, mas, porque apenas contasse com 15 % de industriais entreos seus sócios ou porque enfrentasse poderosos obstáculos de ordem polí-tica no seu funcionamento, a prossecução dos seus objectivos programáti-cos ficou muito aquém das expectativas, acabando por desempenhar umpapel bastante apagado na promoção do adiantamento técnico, em parti-cular na esfera industrial propriamente dita65.

Este panorama, nada animador, justificava inteiramente o desabafo deum industrial: «Reduzida a indústria portuguesa a alguns mestres rotinei-ros sem escolas de Química, e Mecânica, sem sociedades promotoras, semprotecção, que mais pode esperar a Nação?»66.

VII

As estruturas da sociedade portuguesa convidavam mais à prudência,talvez mesmo à inércia, do que aos grandes esforços de modernização.A grosseira armadura dos mercados, geograficamente espartilhados esocialmente distorcidos, na sua pulsação irregular, não podia dar azo àsbruscas acelerações da vida mercantil, que tantas vezes criam o ensejo damudança, acordam energias criadoras e induzem a inovação. Mas, aindaque assim fosse, mesmo que, pela parte da procura, se libertassem os estí-mulos adequados, seria necessário contornar terríveis escolhos para quehouvesse uma resposta positiva em tempo útil.

A inexistência de um pujante movimento de criação cultural e técnicaoriginal, a falta de qualificações profissionais e científicas, e bem assim deinstituições habilitadas para as cultivar e desenvolver, prejudicavam a pró-pria assimilação das novidades por outros introduzidas. Erguia-se, assim,uma barreira de condicionalismos adversos, capazes de frustrar os maisarrojados e ambiciosos projectos. Mas existiriam esses projectos? De ondesurgiam eles?

Era pouco provável que proviessem da área de um Estado que, findoo consulado de Pombal, restringira manifestamente a sua participação naactividade industrial. Essa foi, aliás, com a circulação dos ocupantes dealguns dos mais altos cargos políticos, uma das mais visíveis alterações queacompanham a passagem de reinado.

65 Com efeito, a noção de indústria na designação desta associação recobria ainda todaa actividade económica, não se referindo especificamente às ocupações manufactureiras; daios industriais propriamente ditos estarem em minoria entre os seus membros.

66 Exposição Que como Membro da Commissão Encarregada de Propor o Melhora-mento do Commercio Faz Henrique Nunes Cardozo [...], Lisboa, 1822, p. 5. 591

Não se trata, aqui, ao contrário do que chegou a ser sugerido67, deum reconhecimento das virtualidades da concorrência e muito menos deuma preocupação liberalizadora. Prosseguirão diversas formas de protec-ção, possivelmente mais discretas: privilégios fiscais, tarifas aduaneiras,etc. Mas a transmissão para a propriedade ou gestão de particulares deuma grande parte dos estabelecimentos fundados pelo Estado e a virtualeliminação dos subsídios do Tesouro consubstanciam uma diferente ati-tude perante a indústria.

Aliás, distintas serão também as concepções ideológicas que informama política económica que desde então, com alguns cambiantes, é certo, pre-valecerá. Depois do fomento manufactureiro pombalino, de tonalidademercantilista, triunfante numa conjuntura recessiva, em que a substituiçãodas importações se impunha como a única maneira de prover ao consumode certos bens industriais, desenvolve-se, presumivelmente como reacção, umacorrente vincadamente agrarista, que se fortalece numa leitura —quantasvezes desfocada— da literatura fisiocrática e que se exprime, por exemplo,nas Memórias Económicas da Academia6*.

Mergulhando as suas raízes em algumas das mais vivazes representa-ções que, cristalizadas num profundo substrato, vão orientando silenciosa-mente eixos fundamentais do pensamento nacional, bebendo designada-mente na mitologia da original vocação agrária portuguesa, na vagaprosperidade da primeira dinastia e na temática sempre ressurgente dadecadência, este ideário pôde inclusivamente apropriar-se, mais tarde, denoções modernas em que o liberalismo nascente fazia profissão de fé.A Carta Régia de 7 de Março de 1810 vem justificar a assinatura do tra-tado de comércio com a Grã-Bretanha através dos «princípios maisdemonstrados da sãa Economia Política, quaes o da Liberdade, e fran-queza do Commercio [...]». Na divisão do trabalho caberia a Portugal opapel de produtor de géneros agrícolas.

Não há, em qualquer caso, entre os principais economistas, mormenteantes das invasões francesas, uma consciência da magnitude das transforma-ções que agitavam a Europa na esteira da revolução industrial. Haverá umaou outra excepção, como Manuel Luís da Veiga69, mas a sua audiência juntodo poder era muito limitada. Os académicos e os universitários, como Domin-gos Vandelli70 ou Rodrigues Brito71, cultivando uma fisiocracia mais oumenos ortodoxa, persistiam na absoluta preferência da agricultura.

Depois das invasões e da transferência da corte para o Rio de Janeiro,a governação valorizou prioritariamente os interesses brasileiros e sósecundariamente se ocupou das aflições metropolitanas. Só assim podeentender-se o percurso de uma figura como D. Rodrigo de Sousa Couti-

67 J. B. Macedo, Problemas [...], p. 223.68 Embora haja que ter em atenção que o tom fisiocrático se resume muitas vezes ao

agrarismo. Os postulados mais liberais e individualistas e a ideia de que através da prossecu-ção dos interesses individuais se alcançará o bem comum não são geralmente aceites, havendotambém uma acentuada preocupação com o produto total, nomeadamente dos cereais, semter em conta os custos.

69 Manuel Luís da Veiga, Escola Mercantil, Lisboa, 1803.7 0 Dos seus vários escritos, dispersos e muitos deles por publicar, citem-se as suas memó-

rias incluídas nas Memórias Económicas da Academia, e em particular a «Memória sobre aagricultura destes Reinos e das suas conquistas» e a «Memória sobre a preferência que emPortugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas», t. i, Lisboa, 1789.

7 1 J. J. Rodrigues de Brito, Memórias Políticas sobre as Verdadeiras Bases da Grandeza592 das Nações e Principalmente de Portugal, 3 vols., Lisboa, 1803-05.

nho, homem de vasta cultura, conhecedor, dos mais precoces entre nós,dos novos rumos da economia política, que, tendo-se destacado na promo-ção da indústria, era agora apontado como um dos principais arquitectosda política do Governo do Rio e do acordo luso-britânico. O seu conse-lheiro, José da Silva Lisboa, indefectível smithiano, aplaude o tratado,colocando-se na perspectiva das vantagens que o Brasil dele podia vir aretirar, e utiliza os argumentos mais radicalmente liberais para contrariara ideia da necessidade de uma protecção manufactureira. Se terça armascom Rodrigues de Brito, não é, pois, em defesa da indústria72.

Quando os efeitos da crise e a pressão da concorrência se fazem sentirna sua plenitude, novos olhares perscrutam a realidade industrial, outrosjuízos, mais atentos às experiências europeias e à situação crítica vivida emPortugal, serão emitidos sobre a necessidade de protecção e de fomento.Em geral, porém, a sua tradução em decisões de ordem política é muitoténue.

As posições de Francisco Solano Constâncio, de José Acúrsio dasNeves — que exprimem, de modos diferentes, uma lúcida percepção dasmudanças em marcha — e, bem assim, de alguns reputados vintistas reve-lam por inteiro a envergadura dos transtornos de que a indústria padecia.Mas, mesmo quando são homens próximos dos poderes, ou que têm atéassento nas suas estruturas, como Acúrsio das Neves, que praticamentedirigiu, durante algum tempo, a Junta do Comércio, não conseguem inver-ter as concepções dominantes, nem dotar o Estado dos instrumentos quefavoreçam a actividade industrial.

O Alvará de 28 de Abril de 1809 continuou a fornecer o enquadra-mento de protecção à indústria, mas algumas das facilidades que previa—entre as quais a atribuição de prémios e subsídios a custear pela lota-ria— não foram por diante. O recurso indiscriminado ao exclusivo, poroutro lado, contemplando não apenas os inventos propriamente ditos, mastambém a simples introdução em Portugal de aparelhos e métodos que hámuito podiam ser conhecidos no estrangeiro, não podia deixar de entravar,a longo prazo, a difusão das inovações que, circunscrevendo-se às fábricasonde eram inicialmente aplicadas, não se divulgavam. De resto, mais doque a primeira adopção das novas máquinas, era a sua disseminação notecido industrial — sem a qual permaneceriam economicamente inócuas —que se achava bloqueada.

Podemos concluir, portanto, que a governação nunca se deixou efecti-vamente permear pela noção do lugar estratégico que a indústria haveria deter no desenvolvimento económico. Distanciando-se de uma intervençãodirecta nos empreendimentos industriais, o que, na época, podia ser atéuma disposição favorável, o poder não providenciou, contudo, as condi-ções para que outros pudessem concorrer para o seu adiantamento. Inca-paz de gerir e controlar o território nacional, de chegar junto das popula-ções, vivendo das receitas do Império e das alfândegas, não tinha, porexemplo, nem os meios nem as motivações para construir estradas, abrirou reparar caminhos, rasgar no País as vias da circulação interior. O pro-blema dos transportes continuaria, assim, por muito tempo ainda, a afligira economia portuguesa.

72 José da Silva Lisboa, Princípios de Economia Política para Servir de Introdução àTentativa Económica, Lisboa, 1804, contestou as objecções de Rodrigues de Brito às posiçõesde Adam Smith. A réplica surgiria na «Apologia» que abre o vol. m da obra de Brito. 593

De qualquer modo, o Estado nunca poderia constituir-se em motor daindustrialização: não dispunha, nem poderia dispor na altura, dos instru-mentos necessários para planear a vida económica. As políticas de fomentomanufactureiro, quando marcadas pela acção tentacular das administra-ções, como várias vezes aconteceu durante o século xviii, revelaram-sequase sempre transitórias e inconsequentes, quando não comprometerammesmo antecipadamente o crescimento no futuro73.

Os actores primordiais seriam forçosamente, pois, os empresários pri-vados, que devemos procurar conhecer melhor. Uma elementar apreciaçãosociológica permitirá facilmente identificar os protagonistas da tímidaindustrialização portuguesa. Entre a miríade de mestres de oficinas sobre-puja um punhado de negociantes, isto é, de homens que pertencem aoescalão superior do mundo mercantil. Dominam, através dos jogos dosmercados, da sua invejável posição comercial, não só a pequena produçãode extensas áreas da ruralidade, mas também certas faixas do artesanatourbano. Isoladamente ou participando em sociedades, são eles os proprie-tários das maiores unidades e os concessionários dos estabelecimentos doEstado.

As manufacturas e, por maioria de razão, a fábrica moderna, os novosmodos de produção, supunham um dispêndio inicial em equipamentos einstalações que poucos, além dos comerciantes grossistas, podiam ou que-riam suportar. No auge do fomento pombalino, alguns artífices estrangei-ros de talento puderam ainda beneficiar de fundos do erário para estabele-cerem o seu negócio; outros foram depois contemplados pela transmissãoaos particulares das manufacturas da Coroa, decidida nos começos do rei-nado de D. Maria. Mas, suprimidos os subsídios, o grupo dos maioresempresários industriais ficou, desde então, mais estreitamente tributário dogrande comércio.

Os negociantes encontrar-se-ão, com efeito, na condução das iniciati-vas mais importantes, associando-se frequentemente, para tanto, a técnicosimigrantes e rendendo o Estado. O seu empenhamento na indústria inte-gra-se em estratégias de enriquecimento poliforme, numa prolixa diversifi-cação de interesses, em que se conjugam, ainda, a agricultura e distintasvariantes do comércio. Este procedimento, comum aliás às grandes dinas-tias burguesas da Europa74, mostrava-se particularmente aconselhávelnum ambiente que pouco tinha de propício aos projectos mais ambiciosos.Por vezes, são as próprias adversidades encontradas nos tráficos em quetinham acumulado as suas fortunas que os chamam às manufacturas.Outras vezes, são a sempre sedutora exploração dos contratos do Estadoou a possibilidade de desenvolverem actividades complementares ou afinsdos seus negócios habituais que os atraem para o investimento industrial.

Não se desligam, porém, senão excepcionalmente, das suas mais anti-gas ocupações — o mundo comercial continuava a ser tentador —, nem sedesvinculam da sua qualidade de negociantes matriculados, que orgulhosa-mente ostentam, o que não deixa de se reflectir nos padrões que imprimemà indústria. Habituados à mais rápida rotação dos capitais, dirigiam à dis-tância, na maioria dos casos, as unidades produtivas, proporcionandofraudes e conflitos, e não dispunham dos conhecimentos que iluminassem

73David Landes, The Unbound Prometheus [...], p. 136.74Yves Lequin, «As hierarquias da riqueza e do poder», in Pierre Léon (dir.), História

594 Económica e Social do Mundo, vol. iv, Lisboa, 1982, pp. 291-293.

as suas opções de ordem técnica. Enfim, tinham os meios, os cabedais,mas não estavam em condições de gerir com eficácia e de modernizar asfábricas. A seu crédito ficam, apesar de tudo, os principais esforços paraa introdução das novas máquinas ou para o recrutamento de especialistasestrangeiros, no que gastaram somas consideráveis. Mas quantas vezes nãoabandonam prematuramente, às primeiras contrariedades, empreendimen-tos que pareciam prometedores? A sua sorte não estava vitalmente asso-ciada ao destino das suas empresas industriais.

A proverbial inibição dos capitalistas nacionais — que não é, apesar detudo, nem tão flagrante nem tão generalizada quanto habitualmente sepensa — deve ser considerada à luz dos condicionalismos concretos quepautavam a actividade empresarial portuguesa no primeiro quartel deOitocentos. Não valerá a pena sublinhar de novo a falta de protecção e odesinteresse do Estado ou o insuficiente impulso do consumo. Na verdade,algumas oportunidades dos mercados ficaram sem resposta: a fiação e atecelagem do algodão, que contavam com fáceis fornecimentos de matéria--prima e com extracção certa na metrópole e no ultramar, não singraram,nem foram capazes de substituir a importação dos panos indianos. Aodesenvolvimento industrial preferia-se muitas vezes a mais cómoda reex-portação das manufacturas alheias.

Mesmo os mais activos e arrojados empresários que existiam, e dequem não pode negar-se o espírito de iniciativa75/ se debatiam, contudo,num mar de dificuldades, em que não devem ser subestimadas as própriasresistências sociais — sejam elas mais espontâneas ou mais organizadas —que se levantam aos novos rumos da indústria.

As mesmas circunstâncias sociais em que se firma a proto-industrializa-ção, nomeadamente a existência de uma densa malha de pequenas explora-ções agrícolas em certas regiões do País, tornam difícil a mobilização demão-de-obra pelas fábricas. Aos desenraizados apresentavam-se, por outrolado, pelo menos em fases decisivas do ciclo da sua vida activa, alternati-vas mais sedutoras do que o emprego industrial: a emigração para o Brasil,ainda modesta, e o serviço doméstico achavam-se seguramente entre elas.Para mais, afirmava-se uma cultura popular, uma mentalidade não aquisi-tiva de raiz camponesa, que valorizava positivamente o ócio e não enjei-tava o recurso à mendicidade e à assistência de hospitais e conventos.O trabalho nas fábricas, que, com a nova disciplina que impunham, chega-vam a ser assimiladas a prisões, não atraía os camponeses. Aliás, as recla-mações coevas chamam a atenção para a maior eficácia destes valores nasregiões onde a maioria da população andava desligada da propriedade daterra, mormente no Alentejo76.

Além desta espontânea oposição ao mundo fabril, que alimenta umaindisciplina latente e está por detrás das deserções de aprendizes e operá-rios, que se conservam apesar das severas punições previstas na lei77, osempresários defrontam a resistência organizada dos velhos corpos de ofí-cio. Pode mesmo afirmar-se que o principal conflito que atravessa o meio

75 Vejam-se os casos de José Ferreira Pinto Basto, de Francisco António Ferreira, dosbarões de Sobral e de Quintela, de Custódio José da Costa Braga, de Jácome Ratton ou deLecussan Verdier.

76 Informações do corregedor do Crato, A H M O P , JC 12, 1802; informações do juiz defora de Torrão, A H M O P , JC 12, 1815.

77 Alvará de 20 de Setembro de 1790. 595

industrial é o combate pelo acesso à produção. Desde finais do século xvii,e com maior insistência a partir da reconstituição da Junta do Comércio,em meados de Setecentos, foram instaladas numerosas manufacturas privi-legiadas à margem das corporações. Mas longe vinha ainda o tempo emque a livre iniciativa seria consagrada. Era necessária uma autorizaçãoadministrativa para o estabelecimento das fábricas e os projectos submeti-dos a apreciação eram julgados casuisticamente, segundo os seus méritospróprios. As provisões podiam ser negadas ou atribuídas, o que em qual-quer caso permitia contornar o longo percurso do aprendizado e a obriga-toriedade das provas de mestre.

As corporações não desarmam e vão desencadeando algumas ofensi-vas, sobretudo depois da crise, quanto toda a concorrência é insuportável,culminando na contestação frontal das prerrogativas da Junta do Comér-cio, em particular da sua possibilidade de licenciar as unidades indus-triais78. Nestes recontros, o Governo sustentou sempre a posição daJunta, mas, assim mesmo, a guerra que as agremiações dos ofícios move-ram a algumas fábricas e as denúncias que faziam de supostas actividadesilícitas79 terão sido bastantes para desencorajar os empresários menos per-severantes.

Em face deste conjunto de circunstâncias, a prudência de que muitosdos capitalistas nacionais davam provas torna-se mais compreensível emenos aceitável a imagem pouco lisonjeira que, é já um lugar-comum, lhestem sido atribuída. Do seu ponto de vista, a contenção nas iniciativas eraum comportamento perfeitamente racional, muito mais ajustado à reali-dade do País e à mais proveitosa gestão dos seus negócios. Só admitiamlançar-se no investimento industrial com garantias prévias — mercadosreservados ou monopólios —, tendo desenvolvido mesmo um excessivoapego aos privilégios e exclusivos, que gerou ocasionalmente acesas dispu-tas, como no caso da introdução da máquina de vapor, e prejudicou ageneralização das inovações.

O acanhamento dos industriais portugueses vem portanto inscrever-senuma plêiade de obstáculos que radicam nas formas mais permanentes dasociedade portuguesa. A proximidade dos níveis de desenvolvimento eco-nómico em relação aos mais adiantados países europeus — tal como asestimativas do produto interno podem avaliá-la — é em grande medida ilu-sória. Este instrumento estatístico, como sublinha Gershenkron80, é inca-paz de exprimir, sobretudo numa era de grandes transformações, as dife-rentes potencialidades para o desenvolvimento conferidas pela diversidadedas estruturas e dos recursos materiais e humanos.

Mais do que as flutuações da conjuntura, que configuram, no entanto,uma terrível crise na segunda década do século xix, são as condiçõesestruturais — que tivemos ocasião de recensear, estabelecendo a esfera deacção de cada uma e a tessitura de interconexões em que se inclui — quebloqueiam a industrialização de Portugal, que lhe detêm o passo no acom-panhamento dos ventos de mudança que começavam a soprar nas costasdo mar do Norte, acelerando o curso da história. Eram fundas as raízes doatraso económico português.

78AHMOP, JC 7, Mç 1, e Miriam Halpern Pereira, «O Estado vintista [...]», pp. 47-48.79AHMOP, JC 8, Tecidos de lã.80Alexander Gershenkron, Economic backwardness in historical perspective, Cam-

596 bridge, Mass., e Londres, 1962, p. 9.