Índice - presenca.pt · eram onze horas de uma noite fria de dezembro em dublin quando dei por mim...

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9 ÍNDICE 1 Como dissuadir um homem ................................................... 13 2 Como separar‑se do seu marido (sem o magoar) ..................... 16 3 Como reconhecer um milagre e o que fazer quando tal acontece .................................................................................. 25 4 Como se agarrar à tão preciosa vida ........................................ 31 5 Como encaminhar a sua relação para o passo seguinte ............ 42 6 Como sossegar a cabeça e dormir um pouco ........................... 52 7 Como construir amizades e desenvolver a confiança ............... 60 8 Como fazer um pedido de desculpas sincero quando nos apercebemos de que magoámos alguém .................................. 69 9 Como apreciar a vida em trinta maneiras simples .................. 85 10 Como fazer uma omeleta sem partir ovos ............................... 99 11 Como desaparecer por completo e nunca ser encontrado ........ 105 12 Como resolver um problema como a Maria ............................ 125 13 Como reconhecer e dar valor às pessoas da sua vida atual ......... 134 14 Como cozinhar o seu bolo e comê‑lo ...................................... 148 15 Como colher aquilo que se planta .......................................... 163

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ÍNDICE

1 Como dissuadir um homem ................................................... 13

2 Como separar ‑se do seu marido (sem o magoar) ..................... 16

3 Como reconhecer um milagre e o que fazer quando tal

acontece .................................................................................. 25 4 Como se agarrar à tão preciosa vida ........................................ 31

5 Como encaminhar a sua relação para o passo seguinte ............ 42

6 Como sossegar a cabeça e dormir um pouco ........................... 52

7 Como construir amizades e desenvolver a confiança ............... 60

8 Como fazer um pedido de desculpas sincero quando nos

apercebemos de que magoámos alguém .................................. 69

9 Como apreciar a vida em trinta maneiras simples .................. 85

10 Como fazer uma omeleta sem partir ovos ............................... 99

11 Como desaparecer por completo e nunca ser encontrado ........ 105

12 Como resolver um problema como a Maria ............................ 125

13 Como reconhecer e dar valor às pessoas da sua vida atual ......... 134

14 Como cozinhar o seu bolo e comê ‑lo ...................................... 148

15 Como colher aquilo que se planta .......................................... 163

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16 Como organizar e simplificar a sua vida ................................. 169

17 Como nos destacamos da multidão ......................................... 180

18 Como tornar tudo ótimo outra vez ......................................... 194

19 Como se recompor e seguir em frente .................................... 203

20 Como se defender e ser levado a sério ..................................... 216

21 Como escavar um buraco para o outro lado do mundo ........... 224

22 Oito formas fáceis de resolver problemas de testamentos e

heranças .................................................................................. 229

23 Como se preparar para uma despedida .................................... 236

24 Como chafurdar na tristeza numa única forma simples .......... 245

25 Como pedir ajuda sem perder a postura ................................. 252

26 Como encontrar o lado positivo numa situação de pescadinha

de rabo na boca ...................................................................... 260

27 Como celebrar as suas conquistas ........................................... 273

agradecimentos ........................................................................ 277

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COMO DISSUADIR UM HOMEM

É costume dizer ‑se que um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. Não é verdade. Bem, é verdade que as pessoas o dizem, mas não é verdade enquanto facto.

Um grupo de cientistas financiado pela NASA descobriu que os relâmpagos nuvem ‑solo atingem frequentemente o solo em dois pon‑tos ou mais, e que a probabilidade de se ser atingido pelo mesmo é cerca de quarenta e cinco por cento mais elevada do que as pessoas cos‑tumam pensar. Mas aquilo que as pessoas querem dizer é que um raio nunca atinge o mesmo local em mais do que uma ocasião, o que é tam‑bém um facto incorreto. Embora a probabilidade de se ser atingido por um raio seja de um para três mil, entre 1942 e 1977 Roy Cleveland Sullivan, um guarda ‑florestal do estado da Virgínia, nos Estados Uni‑dos da América, foi atingido por raios em sete ocasiões distintas. Roy sobreviveu a todos estes acidentes, mas suicidou ‑se aos setenta e um anos, disparando um tiro no estômago devido ao que na altura se disse ser um caso de amor não correspondido. Se as pessoas dispensassem a metáfora do relâmpago e fossem diretas ao assunto, diriam que uma coisa altamente improvável nunca acontece duas vezes à mesma pessoa. Não é verdade. Se os motivos por detrás da morte de Roy foram realmente estes, há que ter em conta que o desgosto amoroso acarreta um tipo de sofrimento muito próprio, e que Roy saberia melhor que ninguém que era altamente provável que aquele infortúnio altamente improvável pudesse ocorrer de novo. O que me leva ao cerne da minha história; o primeiro dos meus dois acontecimentos altamente improváveis.

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Eram onze horas de uma noite fria de dezembro em Dublin quando dei por mim num lugar onde nunca estivera. Não se trata de uma metáfora para o meu estado psicológico, embora fosse adequada; aquilo que quero dizer literalmente é que nunca me tinha encontrado ali. Um vento gelado soprava naquela urbanização abandonada do Southside, formando uma melodia sobrenatural que se fazia ouvir por entre janelas partidas e andaimes soltos. Havia enormes buracos negros onde deviam existir janelas, superfícies por terminar com vasos ameaçadores, lajes viradas ao contrário, varandas atravancadas de canalizações, escadas de emergência, fios e tubagens que começa‑vam de qualquer maneira e não terminavam em parte alguma. Todo aquele lugar era um verdadeiro cenário para a tragédia. Só olhar para aquilo fazia estremecer, já para não falar das temperaturas negativas. A propriedade devia estar repleta de famílias a dormir, luzes apagadas e cortinas corridas. Mas não. A urbanização estava sem vida, evacuada pelos proprietários que se tinham visto em autênticas bombas ‑relógio, casas com tantos problemas de segurança quantas as mentiras que os construtores lhes haviam pregado, ao vender ‑lhes a promessa de luxo a preços fantásticos.

Eu não devia estar ali. Estava a invadir propriedade privada, mas não era isso que me devia ter preocupado. Era perigoso. Qualquer pessoa normal e convencional teria considerado aquele lugar desagra‑dável; eu devia ter virado costas e voltado para trás. Sabia tudo isto, mas ainda assim mergulhei em frente, debatendo ‑me contra as minhas entranhas. Entrei.

Quarenta e cinco minutos depois estava cá fora outra vez, a tiritar, a tremer e à espera do polícia, tal como me tinham instruído pelo 112. Vi os faróis da ambulância ao longe, seguidos de perto pelo carro da polícia à paisana. De lá de dentro saiu o detetive Maguire, desgrenhado, barba por fazer, roupa amarrotada mas sem cair no desmazelo. A partir desse momento, percebi o imbróglio emocional que era aquele homem; um turbilhão de emoções retraídas, prontas a explodir a qualquer momento. Embora a sua aparência geral pudesse ser apropriada para o membro de uma banda rock, ele era um detetive de quarenta e sete anos, o que fazia com que o ar estiloso se esfumasse, sublinhando a seriedade da situação em que me encontrava. Depois de os encaminhar para o apartamento de Simon, voltei lá para fora, para contar a minha história.

Já tinha falado ao detetive Maguire de Simon Conway, o homem de trinta e seis anos que conhecera no interior do edifício e que,

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juntamente com outras cinquenta famílias, tinha sido evacuado da propriedade por motivos de segurança. Simon abordara acima de tudo a questão do dinheiro, a pressão de ter de pagar o empréstimo do apar‑tamento no qual não tinha autorização para morar, a Câmara, que lhe pusera um processo para deixar de pagar pelo seu alojamento alternativo, e o facto de ter perdido o emprego recentemente. Relatei a minha conversa com Simon ao detetive Maguire, mas já não me lembrava ao certo do que tinha dito, pelo que saltitei entre aquilo que achei que disse e aquilo que achava que devia ter dito.

Sabem, é que Simon Conway empunhava uma arma quando me encontrei com ele. Creio que fiquei mais surpreendida por vê ‑lo do que ele ficou com a minha súbita aparição na sua casa abandonada. Pelo que percebi, partiu do princípio de que eu havia sido enviada ali pela polícia para falar com ele, e eu não lhe disse que não era esse o caso. Quis que pensasse que tinha um exército de gente a acompanhar ‑me na sala ao lado, enquanto ele segurava naquela arma preta, sacudindo ‑a à medida que falava, enquanto eu me esforçava por não me desviar, esgueirar ‑me, ou até mesmo fugir daquela sala. Enquanto o pânico e o medo se instalavam em mim, tentava acalmá‑‑lo, persuadi ‑lo a pousar a arma. Conversámos sobre os seus filhos, tentei ao máximo mostrar ‑lhe alguma luz ao fundo do túnel, e lá consegui convencê ‑lo a pousar a arma no balcão da cozinha para poder chamar a polícia e pedir ajuda, coisa que fiz. Quando desliguei, algo aconteceu. As minhas palavras, embora inocentes (e que agora sei que não deviam ter sido proferidas naquele momento) espoletaram algo.

Simon olhou para mim, e percebi que não me via. O seu rosto mudara. Um alarme soou na minha cabeça, mas antes de ter oportuni‑dade de dizer ou fazer o que fosse, Simon pegou na arma e encostou ‑a à cabeça. A arma disparou.

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COMO SEPARAR ‑SE DO SEU MARIDO(SEM O MAGOAR)

Por vezes, quando vemos ou vivenciamos algo verdadeiramente real, isso faz com que queiramos deixar de fingir. Sentimo ‑nos uns idiotas, uns charlatões. Queremos afastar ‑nos de tudo o que é falso, mesmo que seja inocente, inofensivo ou menos sério; como o nosso casamento. Foi o que me aconteceu.

Quando uma pessoa percebe que sente inveja de casamentos que estão a acabar, essa pessoa deve compreender que algo de errado se passa com o seu. Foi assim que percebi como me encontrava ao longo dos últimos meses; naquele estado peculiar em que sabemos algo mas ao mesmo tempo não o sabemos na verdade. Quando por fim terminou, compreendi que sempre vira que o casamento não estava certo. Enquanto me encontrava no meio dele, experimentara momen‑tos de felicidade e uma sensação geral de esperança. Ora, apesar de o otimismo ser a semente de muitas coisas, a fé e a boa ‑vontade só por si não constituem uma base sólida para o casamento. Mas o aconte‑cimento, a experiência Simon Conway, como lhe costumava chamar, ajudou ‑me a abrir os olhos. Testemunhara uma das coisas mais reais da minha vida, o que me deu vontade de parar de fingir; deu ‑me vontade de ser real, verdadeira e honesta em tudo.

A minha irmã Brenda acreditava que o desmoronamento do meu casamento se devera a um transtorno de stresse pós ‑traumático e suplicou ‑me que falasse com alguém sobre o problema. Informei ‑a de que já o estava a fazer; a conversa íntima começara há bastante tempo. Era verdade, de certa forma; Simon apenas acelerara a eventual

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epifania. Claro que esta não era a resposta de que a Brenda estava à espera; ela referia ‑se a uma conversa com uma pessoa profissional‑mente especializada, não a um devaneio embriagado regado com uma garrafa de vinho na sua cozinha, à meia ‑noite, num qualquer dia da semana.

Barry, o meu marido, tinha sido compreensivo e um bom apoio nos momentos em que eu mais precisara. Também ele achava aquela súbita decisão uma espécie de efeito colateral do tiro. Porém, quando se apercebeu de que eu estava a falar a sério (enquanto eu arrumava as minhas coisas e saía de nossa casa) não tardou em chamar ‑me os nomes mais vis. Não o levei a mal, embora não fosse gorda nem nunca o tenha sido, e fiquei intrigada por constatar que gostava muito mais da sua mãe do que o que ele pensava. Compreendia a confusão de todos e a sua incapacidade de acreditar em mim. Tinha muito que ver com a destreza com que escondera a minha infelicidade e com o meu sentido de oportunidade.

Na noite da experiência Simon Conway, depois de perceber que o grito lancinante saíra da minha própria boca, depois de chamar a polícia pela segunda vez, de os depoimentos terem sido recolhidos para que os relatórios fossem arquivados, depois da caneca de chá do supermercado EuroSpar, fui para casa de carro e fiz quatro coisas. Primeiro, tomei um duche, na esperança de me limpar daquela cena; segundo, folheei o meu exemplar lido e relido de Como Deixar o Seu Marido (Sem o Magoar); terceiro, acordei ‑o com um café e uma tor‑rada para lhe dizer que o nosso casamento chegara ao fim; e, quarto, depois de confrontada, contei ‑lhe que tinha visto um homem matar‑‑se. Olhando para trás, recordo que o Barry colocou perguntas mais detalhadas acerca do suicida do que sobre o fim do nosso casamento.

O seu comportamento desde então tem ‑me surpreendido, e o meu próprio espanto choca ‑me igualmente, pois pensei que tivesse lido o suficiente sobre estas matérias. Tinha estudado previamente para este grande teste da vida, tinha lido sobre como ambos iríamos sentir‑‑nos, como nos poderíamos sentir, se alguma vez decidisse terminar o casamento — só para me preparar, para me manter alerta, para perceber se era essa a decisão correta. Tenho amigos cujos casamentos termina ram, passei muitas noites infindáveis a escutar ambos os lados. No entanto, nunca me ocorreu que o meu marido pudesse revelar ‑se o género de homem em que se tornou, que sofresse um autêntico transplante de personalidade, que se tornasse tão frio e cruel, amargo e maldoso. O apartamento, que era nosso, passou a ser dele; não me

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deixava sequer por um pé lá dentro. O carro, que era nosso, passou a ser dele, não me deixava partilhá ‑lo. E quanto a tudo o resto que fosse nosso, ele faria o que fosse preciso para monopolizar. Até mesmo as coisas que não queria. Ele disse ‑mo, com estas mesmas palavras. Se tivéssemos filhos, ele ficaria com eles e nunca me deixaria vê ‑los. Tinha regras específicas quanto à máquina de café, era possessivo em relação às chávenas de café, descontrolado quanto à torradeira e dra‑mático no que dizia respeito à chaleira. Deixei ‑o passar ‑se na cozinha, tal como na sala de estar, no quarto, e até quando me seguiu até à casa de banho e gritou comigo enquanto eu urinava. Tentei manter ‑me tão paciente e compreensiva quanto pude. Sempre fui uma boa ouvinte, podia escutá ‑lo, só não tinha tanto jeito para explicar, e fiquei sur‑preendida por descobrir que precisava de o fazer, tanto quanto ele exi‑gia que o fizesse. Tinha a certeza de que, no fundo, ele sentia o mesmo em relação ao nosso casamento, mas estava tão magoado com o facto de aquilo lhe estar a acontecer a ele que se esqueceu dos momentos em que ambos nos sentimos encurralados em algo que estava errado desde o início. Mas o Barry estava zangado, e a ira muitas vezes torna ‑nos surdos e incapazes de escutar a realidade; pelos menos, foi o que aconteceu com a sua ira. De maneira que resolvi esperar que os seus ataques de raiva passassem, na esperança de que, a dada altura, pudéssemos conversar sobre o assunto honestamente.

Sabia que os meus motivos eram certos, mas não conseguia viver com a dor que sentia no coração por causa daquilo que lhe fizera. De modo que tinha de lidar com isso; com isso e com o facto de não ter conseguido impedir que um homem se matasse. Eram coisas que me pesavam muitíssimo nos ombros. Há meses que não dormia bem, e agora parecia que nas últimas semanas não dormira de todo.

— Oscar — disse ao cliente sentado na cadeira diante da minha secretária. — O condutor do autocarro não quer matá ‑lo.

— Quer, sim. Ele odeia ‑me. E você não pode saber, porque nunca o viu, nem sabe como é que ele olha para mim.

— E porque é que julga que o condutor do autocarro tem essa opinião a seu respeito?

O Oscar encolhe os ombros. — Assim que o autocarro para, ele abre a porta e olha fixamente para mim.

— Diz ‑lhe alguma coisa?— Quando entro, nada. Quando não entro, resmunga qualquer

coisa.— Às vezes você não entra?

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Ele revira os olhos e concentra ‑se nos dedos. — Às vezes, o meu lugar não está vago.

— O seu lugar? Esta é nova. Qual lugar?Ele suspira, ciente de que foi apanhado e que tem de confessar. — Olhe, toda a gente no autocarro fica a olhar, percebe? Eu sou

o único que entra naquela paragem, e toda a gente olha para mim. Então, como todos olham, eu sento ‑me no lugar atrás no condutor. Sabe aqueles que ficam de lado, a dar para a janela? É um lugar dife‑rente, como que escondido do resto do autocarro.

— Sente ‑se seguro, ali.— É perfeito. Podia fazer o trajeto inteiro até à cidade ali sentado.

Mas às vezes está ocupado por uma rapariga, uma rapariga com neces‑sidades especiais, que vai a ouvir o seu iPod e a cantar «Steps» em voz alta, de maneira que o autocarro inteiro possa ouvir. Quando ela lá está eu não posso entrar, não só porque as pessoas com necessidades especiais me põem nervoso mas também porque aquele é o meu lugar, percebe? E só consigo saber se ela lá está quando o autocarro para. Portanto, verifico o lugar, para ver se está livre, e saio, se ela estiver lá. O condutor odeia ‑me.

— Há quanto tempo é que isso vem a acontecer?— Não sei, de há umas semanas para cá, acho eu.— Oscar, você sabe o que isso significa. Vai ter de começar tudo

de novo.— Oh, não. — Enterra o rosto nas mãos e deixa ‑se afundar na

cadeira. — Mas eu já estava a chegar à cidade, ia a meio caminho.— Tenha cuidado para não projetar a sua verdadeira ansiedade

num outro medo futuro. Vamos derrubar já este. Portanto, amanhã você vai entrar no autocarro. Vai sentar ‑se onde houver um lugar livre, seja onde for, e vai permanecer nesse lugar até à paragem seguinte. Depois, abandona o autocarro e vai a pé para casa. No dia a seguir, na quarta ‑feira, vai apanhar o autocarro, vai sentar ‑se num lugar qual-quer, vai permanecer no autocarro durante duas paragens e depois vai a pé para casa. Na quinta ‑feira fica durante três paragens, e na sexta por quatro paragens, compreende? Vai ter de avançar aos poucos, passo a passo e, assim, verá que chegará lá.

Não sabia bem qual dos dois tentava convencer. Se a ele, se a mim.

O Oscar ergueu o rosto lentamente. Estava absolutamente lívido.— Você consegue fazer isso — garanti ‑lhe, num tom brando.— Dito por si, parece tão fácil.

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— Não é fácil para si, compreendo que não. Trabalhe as técnicas respiratórias. Vai ver que em breve não será tão difícil. Há de conse‑guir ficar no autocarro ao longo de toda a viagem, até chegar à cidade, e essa sensação de medo será substituída por euforia. Os seus piores momentos tornar ‑se ‑ão os mais felizes, pois terá ultrapassado desafios deveras relevantes.

Ele não parecia nada convicto.— Confie em mim.— Eu confio, só que não me sinto corajoso.— O corajoso não é aquele que não sente medo, mas aquele que

ultrapassa esse medo.— Isso vem de um dos seus livros? — E apontou com um aceno

de cabeça para as estantes pejadas de livros de autoajuda que forravam o meu escritório.

— Nelson Mandela — sorri.— É uma pena estar no recrutamento de pessoal; daria uma boa

psicóloga — disse ele, erguendo ‑se da cadeira.— Sim, mas olhe que estou a fazer isto por nós dois. Se conseguir

aguentar no autocarro por mais de quatro paragens, as suas oportu‑nidades de trabalho irão aumentar. — Tentei fazer com que a tensão que sentia não transparecesse na minha voz. O Oscar era um cientista prodigioso e altamente qualificado a quem facilmente poderia arranjar trabalho (na verdade, já o tinha feito, por três vezes). No entanto, devido às dificuldades em se deslocar, as suas oportunidades de emprego tornavam ‑se limitadas. Tentava ajudá ‑lo a ultrapassar os seus medos, de maneira a conseguir finalmente colocá ‑lo num emprego onde ele conseguisse apresentar‑se todos os dias. O Oscar tinha medo de aprender a conduzir, e eu não podia transformar ‑me numa instru‑tora de condução, mas ao menos ele concordara em vencer aquele seu medo dos transportes públicos. Deitou uma olhadela sobre o ombro para consultar o relógio.

— Muito bem, marque com a Gemma uma hora para a semana que vem. Espero que até lá tudo corra bem.

Assim que a porta se fechou atrás dele, deixei cair o sorriso e esqua‑drinhei a estante à procura de uma das minhas coleções «Como...». Os clientes ficavam maravilhados com a quantidade de livros que tinha, e eu acho até que a minha coleção manteve aberta a pequena livraria da minha amiga Amelia. Os livros eram as minhas bíblias, os meus auxiliares práticos para quando eu própria estava perdida ou a precisar de soluções para clientes problemáticos. Há dez anos que sonhava em

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escrever um, mas nunca fizera mais do que sentar ‑me à secretária, ligar o computador, a postos para contar a minha história, acabando apenas a olhar para o ecrã em branco e para o cursor a piscar, como se aquele vazio espelhasse o meu fluxo criativo.

A minha irmã Brenda dizia que eu estava mais interessada na ideia de escrever um livro do que propriamente em escrevê ‑lo; porque, se na verdade o quisesse escrever, simplesmente fá ‑lo ‑ia, todos os dias, para mim, por mim, quer o resultado fosse um livro, quer não. Ela dizia que um escritor se sentia compelido a escrever, tivesse ou não uma ideia, tivesse ou não um computador, tivesse ou não papel e caneta. O seu desejo não era condicionado por uma determinada marca ou cor de caneta, nem pelo facto de o seu café com leite ter açúcar suficiente; coisas que eram distrações e obstáculos ao meu processo criativo sempre que me sentava para escrever. A Brenda ofe‑recia muitas conclusões patéticas a meu respeito, mas eu temia que, desta vez, ela tivesse razão. Queria escrever, mas não sabia se sabia fazê ‑lo e, se começasse, tinha medo de descobrir que afinal não tinha jeito nenhum. Dormira com o Como Escrever Um Romance de Sucesso junto à cama durante meses, mas não me atrevera a ler uma única página, com medo de que, se não conseguisse seguir as dicas, isso significasse que nunca iria conse guir escrever um livro, de maneira que resolvi escondê ‑lo na mesinha de cabeceira, arrumando esse sonho em particular até que a altura certa chegasse.

Finalmente, encontrei aquilo que procurava na estante. Seis Dicas para Ajudá -lo a Despedir Um Empregado (Com Imagens).

Não sei ao certo se as imagens ajudaram, mas experimentei pôr‑‑me diante do espelho a tentar copiar as expressões preocupadas do empregado. Estudei as notas que escrevera num post -it, colado na primeira página, sem saber ao certo se seria capaz de fazer aquilo. A minha empresa, a Recrutamento Rose, era um pequeno escritório de quatro pessoas que funcionava há quatro anos, e a nossa secre‑tária, Gemma, ajudava ‑nos bastante. Não queria dispensá ‑la, mas devido a pressões financeiras cada vez mais limitativas na área do pessoal, via ‑me obrigada a considerar essa possibilidade. Estava a ler as minhas notas quando alguém bateu à porta e, logo a seguir, a Gemma entrou.

— Gemma — guinchei, sentindo ‑me culpada e tentando desajeita‑damente esconder o livro. Ao tentar enfiá ‑lo numa estante a abarrotar, atrapalhei ‑me e acabei por lançá ‑lo pelo chão, por onde este saiu dis‑parado, aterrando em cheio nos pés da Gemma. Ao reparar no título,

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ela corou. Olhou para mim, e uma nota de surpresa, pavor, confusão e mágoa passou ‑lhe pelo rosto. Abri e fechei a boca, sem pronunciar qualquer palavra, tentando recordar qual a ordem que o livro me ensi‑nara para dar a notícia, a forma correta de formular a frase, as dicas, clareza, empatia, não seja demasiado emotivo, comunique com candura ou sem candura? Mas demorei demasiado tempo e, entretanto, ela percebera.

— Bem, finalmente um dos teus livros idiotas serviu para alguma coisa — comentou a Gemma. Com os olhos marejados de lágrimas, despejou ‑me o livro nos braços, voltou costas, agarrou na carteira e saiu intempestivamente do escritório.

Atormentada, não pude deixar de me sentir insultada pela ênfase na palavra finalmente. Eu vivia de acordo com aqueles livros. Eles resultavam.

— Maguire — rosnou uma voz desagradável pelo telefone.— Detetive Maguire, fala Christine Rose. — Premi o ouvido livre

com um dedo para bloquear o som do telefone a tocar na receção, do lado de lá da parede. A Gemma ainda não regressara depois da sua saída intempestiva, e como ainda não tinha conseguido reunir a equipa de forma a arranjar maneira de distribuir as tarefas da Gemma, os meus colegas Peter e Paul recusavam ‑se a fazer o trabalho de alguém que fora tão injustamente posto de parte. Toda a gente estava contra mim, por mais que lhes dissesse vezes sem conta que tudo não passara de um erro. «Não era minha intenção despedi ‑la... hoje» não constituía uma boa defesa.

Aquela tinha sido nitidamente uma manhã desastrosa. Mas apesar de ser óbvio que precisava de manter a Gemma connosco — algo que tinha a certeza de que a Gemma tentava provar — o meu saldo bancário discordava. Ainda tinha de pagar metade da hipoteca sobre a casa que Barry e eu possuíamos em conjunto, e a partir daquele mês em diante teria de arranjar mais seiscentos euros para arrendar um apartamento de uma assoalhada, enquanto esperava que perce‑bêssemos as coisas entre nós. Tendo em conta que teríamos de vender um apartamento que ninguém queria, por um preço eventual que não garantiria a sobrevivência de nenhum dos dois, imaginei que iria esgravatar as minhas poupanças durante muito tempo. E mesmo pensando que situações extremas exigem medidas extremas, a verdade é que o Barry já travara uma guerra contra a minha coleção de joias, tomando cada peça que me oferecera e guardando ‑a para si. Tinha sido com essa mensagem de voz que eu tinha acordado essa manhã.

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— Sim? — foi a resposta de Maguire, tudo menos em êxtase por me ouvir, embora me surpreendesse o facto de ele se lembrar do meu nome.

— Ando a tentar ligar ‑lhe há duas semanas. Tenho deixado men‑sagens.

— Eu recebi ‑as, pode crer que sim, entupiram ‑me a caixa de voz. Não há necessidade de entrar em pânico. Você não está metida em sarilhos.

Aquilo deixou ‑me desarmada. Não me tinha passado pela cabeça que podia estar metida em qualquer espécie de sarilhos.

— Não foi por isso que liguei.— Não? — Ele fingiu um tom de surpresa. — É que ainda não me

explicou o que estava a fazer num bloco de apartamentos abandonado, numa propriedade privada, às onze da noite.

Fiquei calada enquanto ponderava no que ele acabara de dizer. Quase toda a gente que conhecia me tinha perguntado a mesma coisa, aqueles que não o tinham feito andavam claramente a pensar no assunto, e eu não dera uma resposta a ninguém. Precisava de mudar de assunto rapidamente, antes que ele tentasse encurralar ‑me de novo.

— Liguei para saber pormenores sobre o Simon Conway. Queria saber informações sobre o funeral. Não consegui encontrar nada nos jornais. Mas isso foi há duas semanas, de maneira que já não fui a tempo. — Tentei disfarçar a irritação que sentia. Ligara ‑lhe para saber mais informações; o Simon deixara ‑me um vazio enorme na vida e imensas questões na cabeça. Não conseguia descansar sem saber tudo o que se passara e tudo o que havia sido dito depois daquele dia, que‑ria saber pormenores sobre a família para poder contar ‑lhes as coisas lindas que ele me dissera sobre eles, que os amava tanto, e que as suas atitudes não tinham tido nada que ver com eles. Queria olhá ‑los nos olhos e dizer ‑lhes que tinha tentado tudo o que pude. Para lhes ame‑nizar a dor ou para amenizar a minha culpa? Qual era o mal de desejar ambas as coisas? Não queria parecer desesperada ao ponto de colocar essas mesmas perguntas ao Maguire, e sabia que, mesmo que o fizesse, ele não me responderia, mas não podia passar simplesmente apagar aquilo por que passara. Queria, precisava de mais.

— Duas coisas. Primeiro, não devia envolver ‑se tanto com nenhuma vítima. Ando neste jogo há muito tempo e...

— Jogo? Eu vi um homem dar um tiro na cabeça, mesmo à minha frente. Isto não é um jogo para mim. — A minha voz cedeu, o que entendi como um sinal para parar.

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Seguiu ‑se um silêncio. Fiz uma careta e tapei o rosto com as mãos. Tinha estragado tudo. Controlei ‑me e aclarei a garganta. — Está lá?

Esperei por uma resposta espertalhona, algo cínico e frio, mas ele não disse nada disso. Pelo contrário, a sua voz foi suave, o ambiente onde quer que ele estivesse tornara ‑se calmo, e eu quase temi que toda a gente tivesse parado para me escutar.

— Sabe que temos cá pessoas com quem pode conversar após uma situação como a que lhe aconteceu — disse ele, simpático, ao contrá‑rio do que era seu costume. — Disse ‑lhe isso mesmo naquela noite. Dei ‑lhe um cartão. Ainda o tem?

— Não preciso de conversar com ninguém — respondi, furiosa.— Claro. — Abandonou o tom simpático. — Ouça, como estava a

dizer antes de me interromper, não existem detalhes acerca do funeral. Não houve funeral. Não sei onde é que foi buscar essa informação, mas andaram a enfiar ‑lhe tangas.

— Como assim?— Tangas, tretas, mentiras.— Não, como assim, não houve funeral?O Maguire parecia exasperado por ter de explicar algo que lhe

parecia absolutamente óbvio. — Ele não morreu. Pelo menos, ainda. Está no hospital. Vou ver onde. Vou fazer umas chamadas para avisá‑‑los de que você irá lá visitá ‑lo. Mas olhe que ele está em coma, não vão poder conversar muito.

Fiquei gelada, sem conseguir dizer nada.Fez ‑se um silêncio interminável.— Mais alguma coisa? — Ele tinha voltado a andar de um lado

para o outro. Ouvi uma porta a bater, e ele voltou à sala das vozes aos berros.

Enquanto me deixava cair lentamente na cadeira, esforcei ‑me por articular uma ideia que fosse.

Às vezes, quando testemunhamos um milagre, isso faz com que acreditemos que tudo é possível.

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