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9 ÍNDICE PRÓLOGO .............................................................................. 13 I O FANTASMA ............................................................... 19 II O FAMILIAR .................................................................. 33 III O CAMPO ...................................................................... 233 IV A CAVERNA.................................................................. 273 V A VIA DO PETRÓLEO ................................................. 327 VI O INSURGENTE ........................................................... 397 VII O FORA DA LEI ............................................................ 453 VIII A CRIANÇA TROCADA .............................................. 541 IX A CHEGADA ................................................................. 585 X O ASSASSINO ................................................................ 603 XI A NOITE MAIS ESCURA DO ANO............................. 635 XII O BEIJO ......................................................................... 685 EPÍLOGO – A HORA DOURADA ........................................ 709 DRAMATIS PERSONAE ........................................................ 723 AGRADECIMENTOS ............................................................. 727

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9

ÍNDICE

PRÓLOGO .............................................................................. 13

I O FANTASMA ............................................................... 19

II O FAMILIAR .................................................................. 33

III O CAMPO ...................................................................... 233

IV A CAVERNA.................................................................. 273

V A VIA DO PETRÓLEO ................................................. 327

VI O INSURGENTE ........................................................... 397

VII O FORA DA LEI ............................................................ 453

VIII A CRIANÇA TROCADA .............................................. 541

IX A CHEGADA ................................................................. 585

X O ASSASSINO ................................................................ 603

XI A NOITE MAIS ESCURA DO ANO ............................. 635

XII O BEIJO ......................................................................... 685

EPÍLOGO – A HORA DOURADA ........................................ 709

DRAMATIS PERSONAE ........................................................ 723

AGRADECIMENTOS ............................................................. 727

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Ela esteve a meu lado durante anos, ou terá sido apenas por um momento? Não consigo recordar ‑me. Talvez eu a tenha amado ou talvez não. Havia uma casa, que depois desapareceu. Havia árvores, mas nenhuma resta. Quando ninguém se recorda, o que fica? Tu, cujos momentos desapareceram, que pairas como fumo no além, diz ‑me alguma coisa, diz ‑me seja o que for.

MARK STRAND, «In the Afterlife1»

1 «No Além.» (NT)

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PRÓLOGO

Dos Escritos do Primeiro Cronista («O Livro dos Dozes»)Apresentado na Terceira Conferência Mundial sobre o Período de

Quarentena da América do NorteCentro de Estudo das Culturas e Conflitos HumanosUniversidade da Nova Gales do Sul, República Indo ‑Australiana16 a 21 de abril, 1003 D.V.

[Início do excerto.]

CapÍtulo um

1. Aconteceu que o mundo se tinha tornado malvado, e os homens tinham a guerra nos seus corações, e cometeram tremendos ultra‑jes sobre todas as coisas vivas, de tal maneira que o mundo se transformou num sonho de morte;

2. E, lá do alto, Deus contemplou a sua criação com grande tristeza, pois o seu espírito já não tolerava a raça dos homens.

3. E o SENHOR disse: Tal como aconteceu nos dias de Noé, um grande dilúvio submergirá toda a Terra; e esse será um dilúvio de sangue. Os monstros nos corações dos homens far ‑se ‑ão de carne e osso e devorarão tudo à sua passagem. E chamar ‑se ‑ão Virais.

4. O primeiro caminhará pelo meio de vós disfarçado de homem virtuoso e escondendo o mal que traz dentro de si; e então acon‑tecerá que ele se verá atacado de uma doença que o tornará pare‑

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cido com um demónio, deixando ‑o terrível de se contemplar. Será ele o pai da destruição e chamar ‑lhe ‑ão o Zero.

5. E os homens dirão: Tal ser não daria o mais forte dos soldados? Só de o ver, não iriam os exércitos dos nossos inimigos pousar as armas, apenas para cobrirem os olhos?

6. E dos mais poderosos gabinetes sairá um decreto ordenando que doze criminosos sejam escolhidos para receberem o sangue do Zero, tornando ‑se também demónios; e os seus nomes serão como um só nome, Babcock ‑Morrison ‑Chávez ‑Baffes ‑Turrell ‑Winston‑‑Sosa ‑Echols ‑Lambright ‑Martínez ‑Reinhardt ‑Carter, e chamar‑‑lhes ‑ão os Doze.

7. Mas eu também escolherei um de entre vós que seja puro de coração e de espírito, uma criança que os possa enfrentar; e envia‑rei um sinal para que todos o possam saber, e esse sinal será uma grande agitação de animais.

8. E essa foi Amy, cujo nome é Amor: Amy das Almas, a Rapariga de Nenhures.

9. E o sinal aconteceu no lugar que é Memphis, e os animais uiva‑ram, guincharam e bramiram; e um dos que viram foi Lacey, uma irmã aos olhos de Deus. E o SENHOR disse a Lacey:

10. Também tu foste escolhida, para seres como uma ajudante para Amy, para lhe mostrares o caminho. Onde ela for, também tu irás; e a vossa viagem será muito difícil e durará várias gerações.

11. Serás como uma mãe para a criança, a quem eu escolhi para curar o mundo ferido; pois no íntimo dela eu construirei uma arca para levar os espíritos dos justos.

12. E assim fez Lacey, obedecendo a tudo o que Deus lhe ordenara.

CapÍtulo doIs

1. E aconteceu que Amy foi levada para o lugar que é o Colorado, para ser prisioneira de homens maus; pois nesse lugar, acorrenta‑dos à espera dela, estavam o Zero e os Doze, e os captores de Amy tencionavam torná ‑la uma deles, uni ‑la a eles pela mente.

2. E então ela recebeu o sangue do Zero, e caiu num sono que pare‑cia a morte; mas não morreu nem ganhou a forma de um mons‑tro. Pois não era desígnio de Deus que tal acontecesse.

3. E Amy ficou nesse estado por um período de dias, até que acon‑teceu uma grande calamidade, uma calamidade tal que passou a

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haver um Tempo Anterior e um Tempo Posterior; pois os Doze escaparam e também o Zero, lançando a morte sobre toda a Terra.

4. Mas um homem tornou ‑se amigo de Amy e apiedou ‑se dela, e levou ‑a daquele lugar. E ele era Wolgast, um homem justo entre os da sua geração, um homem amado por Deus.

5. E, juntos, Amy e Wolgast foram para o lugar que é o Oregon, no coração das montanhas; e ali ficaram à espera, no tempo a que se chama o Ano do Zero.

6. Pois, durante esse tempo, os Doze assolaram a face do mundo com a sua fome voraz, matando todas as espécies; e aqueles que não lhes serviram de alimento foram levados, a eles se unindo pela mente. E, dessa forma, os Doze multiplicaram ‑se por um milhão, formando as Doze Tribos Virais, cada qual com os seus Muitos, que percorreram a Terra sem nome nem memória, des‑truindo todas as coisas vivas.

7. E assim passaram as estações; e Wolgast tornou ‑se como um pai para Amy, que não tinha ninguém, tal como ele tão ‑pouco tinha um filho do seu sangue; foi dessa forma que ele a amou, e ela a ele.

8. E ele também viu que Amy não era como ele ou como qualquer outra pessoa viva à face da Terra; pois ela não envelhecia nem sentia dor, e não precisava de alimento nem de descanso. E Wol‑gast temeu pelo que iria ser dela quando ele deixasse de viver.

9. E aconteceu que um homem, vindo do lugar que é Seattle, os encontrou, e Wolgast matou ‑o antes que o homem se transfor‑masse num demónio entre eles. Pois o mundo tinha ‑se tornado num lugar de monstros, sem mais ninguém vivo senão eles os dois.

10. E os dois continuaram desta forma, como pai e filha, cada um cuidando do outro, até uma noite em que uma luz ofuscante, demasiado intensa para se poder contemplar, encheu o céu; e, pela manhã, o ar enchera ‑se de um odor pestilento e as cinzas tinham recoberto todas as superfícies.

11. Aquela luz era a luz da morte, e fez Wolgast adoecer com uma doença fatal. E Amy foi obrigada a vaguear sozinha pela terra devastada, sem outros que não os Virais por companhia.

12. E, dessa maneira, o tempo foi passando, perfazendo quatro vezes vinte mais doze anos.

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CapÍtulo trÊs

1. E aconteceu que no nonagésimo oitavo ano da vida dela, no lugar que é a Califórnia, Amy chegou a uma cidade; e aquela era a Pri meira Colónia, e quatro vezes vinte mais dez almas viviam dentro da muralha, os descendentes das crianças que tinham dei‑xado o lugar que é a Filadélfia no Tempo Anterior.

2. Mas, ao verem Amy, as gentes ficaram assustadas, pois nada conheciam do mundo, e muitas palavras foram ditas contra ela, e aprisionaram ‑na; e houve muita agitação, uma agitação tal que ela se viu obrigada a fugir na companhia de outros.

3. E esses outros eram Peter, Alicia, Sara, Michael, Hollis, Theo, Mausami e o Botas, oito ao todo; e cada um trazia a justiça no coração, e também o desejo de ver o mundo no exterior da cidade onde viviam.

4. E, entre eles, era Peter o favorito de Deus, sendo Alicia a segunda, Sara a terceira e Michael o quarto; e também os outros eram, tal como eles, abençoados aos olhos de Deus.

5. E juntos deixaram aquele lugar a coberto do escuro, para irem em busca do segredo da ruína do mundo, no lugar que é o Colo‑rado, uma viagem de meio ano por terras inóspitas e suportando muitas tribulações; e a maior de todas elas foi o Refúgio.

6. E no lugar que é Las Vegas foram feitos cativos para serem apre‑sentados perante Babcock, o Primeiro dos Doze; pois os habi‑tantes daquela cidade eram como escravos para Babcock e os seus Muitos, e sacrificavam dois dos seus por cada lua nova, para pode rem viver.

7. E Amy e os outros foram atirados para o lugar do sacrifício, e luta ram contra Babcock, que era terrível de se contemplar, e mui‑tas vidas se perderam. E, juntos, fugiram daquele lugar, receando morrer também.

8. E um de entre eles foi vitimado, e tratou ‑se do rapaz, o Botas; e Amy e os seus companheiros enterraram ‑no, marcando aquele como um lugar de memória.

9. E um profundo desgosto tomou conta deles, pois o Botas era aquele do grupo a quem todos os outros mais queriam; mas não podiam demorar ‑se ali, pois Babcock e os Muitos vinham em perseguição deles.

10. E, depois de ter passado mais tempo, Amy e os seus compa‑nheiros encontraram uma casa sobre a qual o tempo não produ‑

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zira efeito, pois Deus abençoara ‑a, transformando ‑a em terreno sagrado. E esse lugar era conhecido como a Herdade. E ali pude‑ram descansar em segurança, sete dias ao todo.

11. Mas dois de entre eles escolheram ficar naquele lugar, pois a mulher estava de esperanças. E a criança que nasceu chamou ‑se Caleb e foi uma predileta de Deus.

12. E assim os restantes seguiram viagem, enquanto aqueles dois ficaram para trás.

CapÍtulo Quatro

1. E aconteceu que Amy e os seus companheiros seguiram caminho por muitos dias e muitas noites até ao lugar que é o Colorado, onde se juntaram a soldados, cinco vezes vinte ao todo. E estes chamavam ‑se a Força Expedicionária e vinham do lugar que é o Texas.

2. Pois o Texas era, nesse tempo, um lugar de refúgio na Terra; e os soldados tinham partido de lá para lutarem contra os Virais, depois de cada um se jurar disposto a morrer pelos compa‑nheiros.

3. E um dos companheiros de Amy optou por se juntar aos solda ‑dos, tornando ‑se num soldado da Força Expedicionária; tratou ‑se de Alicia, a quem deveriam agora chamar Alicia das Facas. E, por sua vez, um dos soldados escolheu juntar ‑se ao grupo dos com‑panheiros de Amy; tratou ‑se de Lucius, o Fiel.

4. E ali teriam permanecido, mas veio o inverno; e, embora quatro de entre eles desejassem seguir viagem com os soldados até ao lugar que é o Texas, Amy e Peter escolheram continuar a sós.

5. E aconteceu que o par chegou ao lugar onde Amy se tinha feito o que era, e ali, no alto da mais alta colina, depararam com um anjo do SENHOR. E o anjo disse a Amy:

6. Não receies, pois eu sou a mesma Lacey de quem tu te lembras. Esperei aqui por muitas gerações para te mostrar o caminho, e também a Peter, pois ele é o Homem dos Dias, escolhido para te acompanhar.

7. Pois, tal como no tempo de Noé, ao conceber o seu desígnio, Deus fez uma grande arca para navegar as águas da destruição; e essa arca é Amy. E Peter será aquele que irá conduzir os seus semelhantes a um lugar em terra firme.

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8. E assim irá o SENHOR consertar aquilo que está desarranjado e trazer consolo ao espírito dos justos. E isso ficará conhecido como A Passagem.

9. E o anjo Lacey chamou Babcock, o Primeiro dos Doze, fazendo ‑o sair da escuridão; e deu ‑se uma grande batalha. E, com uma explosão de luz, Lacey matou ‑o, ao mesmo tempo que enviava o seu próprio espírito para junto do SENHOR.

10. E, assim, os Muitos de Babcock ficaram livres dele; e lembra ram‑‑se das pessoas que tinham sido no Tempo Anterior: homens e mulheres, maridos e esposas, pais e filhos.

11. E Amy caminhou pelo meio deles, abençoando ‑os um por um; pois era o desígnio de Deus que ela fosse a arca que transportaria as almas de todos eles através da longa noite do seu esqueci‑mento. E, após aquilo, os espíritos deles deixaram a terra e eles morreram.

12. E foi assim que Amy e os seus companheiros ficaram a saber o que os esperava; tinham pela frente um caminho muito íngreme e apenas tinham começado a subi ‑lo.

I

O FANTASMA

VERÃO, 97 D.V.CINCO ANOS APÓS O FIM DA PRIMEIRA COLÓNIA

Lembra ‑te de mim depois de eu partirE de desaparecer no coração da terra silenciosa

CHRISTINA ROSSETTI,

«Remember1»

1 «Lembra ‑te.» (NT)

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1

orfanato da ordem das Irmãs,kerrvIlle, texas

Já muito tarde, depois do jantar e da oração da noite, do banho — caso fosse noite de tomar banho — e das últimas negociações com que o dia era concluído (Por favor, Irmã, não podemos ficar acor‑dados só mais um bocadinho? Só mais uma história, pode ser...?), depois de as crianças terem finalmente adormecido e de tudo estar muito sossegado, Amy ficou a observá ‑las. Não havia regra alguma a impe‑dir isto; todas as irmãs já se tinham habituado a que ela passasse a noite acordada a deambular por ali. Como uma aparição, foi andando de quarto silencioso em quarto silencioso, passando furtivamente por entre as filei ras de camas onde as crianças estavam deitadas, de rostos adormecidos e corpos em tranquilo repouso. Os mais velhos tinham treze anos e estavam no limiar da idade adulta, enquanto os mais pequenos eram ainda bebés. Cada um chegara ali com a sua histó‑ria, que era sempre triste. Muitos eram terceiros filhos, deixados no orfanato por pais que não tinham como pagar o imposto, enquanto outros eram vítimas de circunstâncias ainda mais cruéis: mães que tinham morrido durante o parto, ou então que não eram casadas e não tinham conseguido suportar a vergonha; pais que tinham desa‑parecido no escuro submundo da cidade ou que tinham sido con‑duzidos ao exterior da mura lha. Ainda que as crianças fossem de origem variada, o seu destino seria idêntico: as raparigas ingressariam na Ordem, devotando os seus dias à oração, à meditação e a cuidar de crianças iguais às que elas próprias tinham sido, enquanto os

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rapazes se tornariam soldados, mem bros da Força Expedicionária — fazendo um juramento que, sendo de outra natureza, não era menos vincu lativo.

Mas, enquanto sonhavam, eram crianças — ainda eram crianças, pensou Amy. A sua própria infância era a mais longínqua das memó‑rias, uma história abstrata, e contudo, ao observar as crianças adorme‑cidas, com os sonhos a dançarem ‑lhes fugazmente sob as pálpebras fechadas, sentia ‑se mais próxima da mesma — de um tempo em que ela própria fora apenas um pequeno ser no mundo, inocente quanto a tudo o que aí vinha, quanto à demasiado longa jornada que seria a sua vida. No íntimo de Amy, o tempo era uma vastidão, demasiados anos para que fosse possível diferenciá ‑los. Talvez fosse então por isso que ela vagueava pelo meio das crianças: fazia ‑o para se recordar.

Deixou para último a cama de Caleb, porque ele estaria à espera dela. O bebé Caleb — embora já não fosse um bebé, mas um menino com cinco anos —, alerta e enérgico, como todas as outras crianças, cheio de surpresa, de humor e de uma honestidade quase alarmante. Da sua mãe herdara as maçãs do rosto subidas e bem moldadas, e tam bém a tez azeitonada de todos os do clã dela; do pai herdara o olhar firme, a disposição soturna e o cabelo escuro e crespo, cortado muito curto, e que, na gíria da Colónia, ficara conhecido como «cabelo dos Jaxons». Era um amalgamento físico, como um quebra‑‑cabeças feito de partes dos da sua tribo. Nos olhos do menino, Amy via ‑os: ele era Mausami; ele era Theo; ele era apenas ele mesmo.

— Fala ‑me deles.Sempre, todas as noites, o mesmo ritual. Era como se Caleb não fos‑

se capaz de dormir sem antes revisitar um passado do qual não tinha memória alguma. Como de costume, Amy sentou ‑se na beira da cama dele. O contorno do seu corpo delgado de menino pequeno mal se distinguia por debaixo das mantas; em volta deles os dois, vinte crian‑ças adormecidas formavam um coro de silêncio.

— Ora bem... — principiou Amy. — Vejamos... A tua mãe era muito bonita.

— Uma guerreira.— Sim — respondeu Amy com um sorriso —, uma guerreira

muito bonita. De cabelos pretos e compridos, presos numa trança de guerreira.

— Para poder usar o arco.— Correto. Mas, acima de tudo, ela era obstinada. Sabes o que isso

significa, ser ‑se obstinado? Já te expliquei uma vez.

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— Teimoso...?— Sim. Mas de uma maneira boa. Se eu te disser para lavares as

mãos antes do jantar e tu te recusares, isso não é lá muito bom; é o tipo errado de teimosia. O que eu quero dizer é que a tua mãe fazia sempre aquilo que acreditava estar certo.

— E foi por isso que ela me teve. — Caleb concentrou ‑se no que estava a dizer. — Porque era... a coisa certa trazer uma luz ao mundo.

— Que bom, ainda te lembras. Lembra ‑te sempre de que és uma luz brilhante, Caleb.

O rosto do menino enchera ‑se de uma calorosa felicidade.— E agora fala ‑me do Theo. Do meu pai.— O teu pai?— Vá lááááá.Ela riu ‑se.— Está bem. O teu pai. Antes de mais, era muito corajoso. Era

um homem corajoso. E amava muito a tua mãe.— Mas era triste.— Isso é verdade; ele era triste. Mas era isso o que o tornava tão

corajoso, compreendes? Porque ele teve a atitude mais corajosa de todas. E sabes que atitude é essa?

— Ter esperança.— Sim. Ter esperança quando parece não haver esperança alguma.

Também nunca te deves esquecer disso. — Amy inclinou ‑se e beijou‑‑lhe a testa, húmida do calor que é habitual nas crianças. — E agora já é tarde. É altura de dormires. Amanhã é outro dia.

— Eles... gostavam de mim?Aquilo apanhou Amy de surpresa. Não a pergunta em si — Caleb

já perguntara o mesmo em várias ocasiões, para se tranquilizar —, mas o tom inseguro dele.

— Claro, Caleb. Já to disse muitas vezes. Eles gostavam muito de ti. E ainda gostam.

— Porque estão no Céu.— Isso mesmo.— Onde todos nós ficamos juntos para sempre. O lugar para

onde vai a alma. — Com estas palavras, olhou para longe. E depois: — Dizem que tu és muito velha.

— Quem é que diz isso, Caleb?— Não sei. — Embrulhado no seu casulo feito de mantas, enco‑

lheu os ombros pequeninos. — Toda a gente. As outras irmãs. Ouvi‑‑as a falarem.

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Aquele assunto nunca tinha sido abordado. Tanto quanto Amy sabia, só a irmã Peg estava a par da sua história.

— Bem — respondeu ela, recompondo ‑se —, sou mais velha do que tu, disso tenho a certeza. Mais velha o suficiente para te dizer que são horas de dormires.

— Às vezes eu vejo ‑os.Aquela observação deixou ‑a outra vez surpreendida.— Caleb...? Como é que os vês?Mas o menino não estava a olhar para ela; o seu olhar voltara ‑se

para dentro dele.— À noite. Quando estou a dormir.— Quando estás a sonhar, é o que queres dizer.Ele não lhe respondeu. Amy afagou ‑lhe o braço por cima das mantas.— Está tudo bem, Caleb. Logo me dizes quando estiveres prepa‑

rado.— Não é a mesma coisa. Não é como um sonho. — Tornou a fitá‑

‑la. — Também te vejo, Amy.— A mim?— Mas estás diferente. Não apareces como estás agora.Ela esperou que ele acrescentasse mais alguma coisa, mas Caleb

ficou em silêncio. Qual seria a diferença nela?— Tenho saudades deles — disse então o menino.Amy anuiu, aceitando, por agora, que a conversa ficasse por ali.— Eu sei que tens. E vais tornar a vê ‑los. Mas, por agora, tens ‑me

a mim. E tens o teu tio Peter. Ele está quase a voltar a casa, sabes?— Com a... expeduciática. — Uma expressão determinada iluminou

o rosto de Caleb. — Quando eu crescer, quero ser soldado como o tio Peter.

Amy tornou a beijá ‑lo na testa e levantou ‑se para se ir embora. — Se é isso o que queres ser, então é isso o que vais ser. E agora

dorme.— Amy...?— Sim, Caleb...?— Alguém alguma vez gostou de ti dessa maneira?Parada junto à cama do menino, Amy sentiu ‑se acometida pelas

suas memórias. Recordou uma noite de primavera, um carrossel a girar e o gosto do açúcar em pó; recordou um lago, uma cabana na flo‑resta e a sensação de uma mão grande a segurar a sua. Sentiu a voz estrangulada pelas lágrimas.

— Acho que sim. Espero que sim.

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— O tio Peter gosta de ti assim?Ela franziu o rosto, sobressaltada.— Porque é que perguntas isso, Caleb?— Não sei. — Novo encolher de ombros, agora com ligeiro emba‑

raço. — Por causa da maneira como ele olha para ti. Está sempre a sorrir.

— Ora... — Amy esforçou ‑se ao máximo por parecer indiferente. Mas seria mesmo indiferente? — Acho que ele sorri porque fica con‑tente por te ver. E agora dorme. Prometes que vais dormir?

Ele revirou os olhos, contrariado.— Prometo.

Lá fora, as luzes brilhavam com força. Não era uma claridade tão intensa como na Colónia — Kerrville era demasiado grande para isso —, mas antes uma espécie de lusco ‑fusco permanente, com luzes acesas a toda a volta e uma coroa de estrelas por cima. Amy afastou ‑se do pátio sem fazer ruído, seguindo pelas sombras. Localizou a escada na base da muralha. Não se preocupou em subir às escondidas; lá no alto foi recebida pela sentinela, um homem de peito largo, que anda‑ria pela meia ‑idade e que segurava uma espingarda ao peito.

— O que é que pensa que está a fazer?Mas isto foi tudo o que ele disse. Quando o sono o dominou, Amy

deitou ‑o suavemente sobre o passadiço, encostando ‑o à muralha e colocando ‑lhe a espingarda no colo. Quando acordasse, o vigia teria apenas uma recordação fragmentada e alucinatória da presença dela. Uma rapariga? Uma das irmãs, usando a áspera túnica de tecido pardo da Ordem? Talvez não acordasse por si mesmo, mas fosse encontrado por um dos seus colegas e levado dali para fora por estar a dormir no posto de vigia. Passaria alguns dias na prisão, nada de muito grave; fosse como fosse, ninguém acreditaria nele.

Amy avançou pelo passadiço até à plataforma de observação vazia. As patrulhas passavam a cada dez minutos; esse era todo o tempo de que dispunha. Os feixes de luz projetados no chão lá em baixo pare‑ciam feitos de líquido brilhante. Fechando os olhos, Amy limpou a mente e projetou o pensamento na distância, fazendo ‑o atravessar os campos.

Venham a mim.Venham a mim venham a mim venham a mim.Eles aproximaram ‑se, deslizando para fora da escuridão. Primeiro

um, depois outro e outro, formando uma falange resplandecente ao

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ajoelharem ‑se na orla das sombras. E, na sua mente, Amy escutou as vozes, sempre as vozes, e a pergunta:

Quem sou eu?Ela aguardou.Quem sou eu quem sou eu quem sou eu?Como ela tinha saudades dele... Wolgast, aquele que a amara. Onde

estás?, pensou Amy, com o coração dorido de solidão, porque, noite após noite, desde que aquele novo fenómeno começara a acontecer dentro dela, sentia mais agudamente a ausência dele. Porque foi que me deixaste sozinha? Mas Wolgast não estava em parte nenhuma, fosse no vento, no céu ou no som da Terra a girar lentamente. O homem que ele antes fora tinha desaparecido.

Quem sou eu quem sou eu quem sou eu quem sou eu quem sou eu quem sou eu?Ela esperou por tanto tempo quanto se atreveu. Os minutos foram

passando. Então escutou passos no passadiço, aproximando ‑se: a sen‑tinela.

Todos vocês são eu, respondeu ‑lhes então. Vocês são eu. E agora vão.Eles dispersaram ‑se pela escuridão.

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2

120 QuIlÓmetros a sul de rosWell, novo mÉxICo

Num cálido anoitecer de setembro, a muitos quilómetros e a mui‑tas semanas de casa, a tenente Alicia Donadio — Alicia das Facas, o Novo Ser, filha adotiva do grande Niles Coffee, batedora ‑franco‑‑atiradora da Segunda Força Expedicionária do Exército da República do Texas, batizada e com juramento prestado — acordou ao sentir o aroma do sangue no vento.

Tinha vinte e sete anos, um metro e setenta, era sólida de ombros e de ancas e usava o cabelo ruivo quase rapado. Os seus olhos, outrora apenas azuis, tinham agora um brilho alaranjado, como dois peda‑ços de carvão em brasa. Viajava com muito pouca coisa, não levando nada de que não precisasse. Calçava sandálias feitas de lona e tiras de borracha vulcanizada; vestia umas calças de ganga já muito gastas nos joelhos e no rabo, e uma camisola de algodão com as mangas corta das para não lhe impedirem os movimentos. Trazia, cruzadas sobre o peito, duas faixas de couro com seis facas de aço embainhadas — a sua imagem de marca; nas costas, pendurada de um resistente cor dão de cânhamo, trazia a besta. Num coldre preso à coxa trazia uma Browning semiautomática de calibre 45, com um carregador de nove tiros — a sua arma de último recurso.

«Oito mais uma», era o que se costumava dizer. Oito balas para os virais, uma para o atirador. Oito mais uma, e assunto arrumado.

A cidade chamava ‑se Carlsbad. Qual vassoura gigante, os anos tinham exercido o seu efeito, limpando ‑a por completo. Mas ainda havia umas quantas estruturas de pé: casas reduzidas a paredes, sem

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nada por dentro, e barracões enferrujados — ruínas silenciosas que provavam a passagem do tempo. Durante todo o dia, Alicia ficara a descansar à sombra de uma estação de serviço cuja cobertura de metal continuava no lugar, nem se sabia como; chegando o anoitecer, acor‑dou para caçar. Apanhou a lebre com a besta, atingindo ‑a na garganta, depois esfolou ‑a e assou ‑a numa fogueira feita com algarobos, arran‑cando ‑lhe a carne rija enquanto o fogo ia crepitando por baixo.

Não estava com pressa.Alicia era uma mulher de regras, de rituais. Recusava ‑se a matar

os virais enquanto estes estivessem a dormir. Só usava uma arma de fogo se não o pudesse mesmo evitar; as armas de fogo eram barulhen‑tas, faziam muita porcaria e eram indignas daquele serviço. Preferia matá ‑los com as suas facas, de forma rápida, ou com a sua besta, de forma limpa e sem remorsos, e sempre com uma bênção misericor‑diosa no coração. Dizia: «Envio ‑vos para casa, meus irmãos e irmãs, liberto ‑vos da prisão da vossa existência.» E, depois de consumada a morte, e de ela ter arrancado a sua arma do seu leito de morte, tocava com o cabo primeiro na testa e depois no peito — a mente e o cora‑ção —, consagrando a libertação de cada uma daquelas criaturas com a esperança de, caso esse dia chegasse, não lhe faltar a coragem para se libertar a si mesma.

Esperou que a noite caísse, apagou a sua fogueira e pôs ‑se a cami‑nho.

Há dias que avançava por uma vasta planície coberta de vegetação mirrada. A sul e a oeste erguiam ‑se os vultos ensombrados das mon‑tanhas, uma cumeada levantando ‑se do chão do vale. Se Alicia alguma vez tivesse visto o mar, talvez tivesse pensado: É isso o que este lugar é, o mar. O fundo de um vasto mar interior, e as montanhas, crivadas de grutas e paradas no tempo, são o que resta de um gigantesco recife, de um tempo em que monstros inimagináveis vagueavam pela terra e pelas ondas.

Onde estão vocês esta noite?, pensou. Onde se esconderam, meus irmãos e irmãs de sangue?

Alicia era uma mulher de três vidas, duas anteriores e uma posterior. Na primeira vida anterior, fora apenas uma menina pequena. Nessa altura, o mundo reduzia ‑se a vultos aos tombos e a clarões de luz; atravessava ‑a, tal como a brisa lhe revolvia os cabelos, sem nada lhe dizer. Tinha oito anos na noite em que o Coronel a levara ao exterior da Muralha da Colónia, abandonando ‑a ali sem nada, nem tão ‑pouco uma faca. Ela sentara ‑se debaixo de uma árvore e passara a noite inteira a chorar, e, quando o sol da manhã a iluminou, ela estava diferente,

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transformada; a menina que tinha sido já não existia. «Vês?», per‑guntou ‑lhe o Coronel, encontrando ‑a sentada na terra e ajoe lhando ‑se à sua frente. Não a segurou nos braços para a consolar; olhou ‑a sem vacilar, como um soldado. «Compreendes agora?» E Ali cia compreen‑dia; compreendia mesmo. A sua vida, o irrisório acidente que era a sua existência, nada significava; ela abdicara da sua vida. Foi nesse dia que fez o seu juramento.

Mas tudo isso fora há muito tempo. Nessa altura ela era uma criança; depois, fizera ‑se mulher; e a seguir, fizera ‑se o quê? A terceira Alicia, o Novo Ser — que não era viral nem humano, mas, de alguma forma, ambos. Um amalgamento, um compósito, uma criatura à parte. Deslocava ‑se pelo meio dos virais como um espírito invisível, igual a eles, mas também diferente, um fantasma para os fantasmas que eles eram. Nas suas veias corria o vírus, só que compensado por um segundo vírus, extraído de Amy, a Rapariga de Nenhures; esse vírus estava guardado numa de doze ampolas, num laboratório no Colorado, tendo as restantes sido destruídas pela própria Amy, lança‑das às chamas. O sangue de Amy salvara ‑lhe a vida — só que, de certa forma, não o fizera. Transformara a tenente Alicia Donadio na batedora ‑franco ‑atiradora da Força Expedicionária, no único ser da sua espécie em todo o mundo dos vivos.

Por vezes — muitas vezes; constantemente —, a própria Alicia não teria sido capaz de se definir de forma exata.

Chegou junto de um barracão — uma estrutura toda manchada e esburacada, meio enterrada na areia, com um telhado de chapa incli‑nado.

Alicia... sentiu alguma coisa.O que era estranho, nada que lhe tivesse acontecido antes. O vírus

não lhe conferira esse poder, que era exclusivo de Amy. Alicia era o yang e Amy era o yin; Alicia possuía a força física e a velocidade dos virais, mas estava desligada da rede invisível que os interligava a todos, pensamento a pensamento.

Ainda assim, não estava a acontecer exatamente isso agora? Não estava a sentir qualquer coisa? A senti ‑los? Um formigueiro na nuca, e um ligeiro sussurrar na sua mente, formando palavras que mal se ouviam:

Quem sou eu? Quem sou eu quem sou eu quem sou eu quem sou eu...?Eram três. Todos tinham sido mulheres no passado. E mais: Alicia

sentia — como era isso possível? — que cada uma das virais albergava o seu próprio núcleo de memórias. Uma mão a fechar uma janela e o

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som da chuva. Um pássaro de cores brilhantes a cantar numa gaiola. Um quarto às escuras observado de um vão de porta, e, lá dentro, duas crianças pequenas, um menino e uma menina, cada um dormindo na sua cama. Alicia captou cada uma destas visões como se fossem suas — as suas imagens, sons, odores e emoções; uma mistura de existên‑cia pura, como três fogos minúsculos que se tivessem acendido dentro dela. Por instantes, ficou cativa daquelas sensações, contemplando, com mudo assombro, aquelas memórias de um mundo que se perdera. O mundo do Tempo Anterior.

Mas havia mais qualquer coisa. Cada uma dessas memórias chegou ‑lhe envolvida num manto de escuridão vasta e impiedosa, que a fez estremecer até ao mais fundo de si mesma. Alicia perguntou ‑se o que seria aquilo, mas soube ‑o logo de seguida: era o sonho do que se chamava Martínez. Julio Martínez, de El Paso, no Texas, o Décimo dos Doze, condenado à morte pelo homicídio de um agente da lei. Aquele de que Alicia viera à procura.

No sonho de Martínez, ele estava eternamente a violar uma mulher chamada Louise — o nome estava escrito num pedaço de papel encar‑quilhado no bolso da blusa da mulher —, ao mesmo tempo que a estrangulava com um fio elétrico.

A porta do barracão estava descaída nas dobradiças enferrujadas. Tratava ‑se de um espaço reduzido; Alicia teria preferido uma divisão mais ampla, sobretudo porque eram três os virais. Avançando sem fazer ruído, a sua besta em riste, entrou sorrateiramente no barracão.

Duas das virais estavam suspensas de cabeça para baixo nas vigas do teto e a terceira estava agachada a um canto, chupando um pedaço de carne. Tinham acabado de se alimentar de um antílope; os restos secos estavam dispersos pelo chão — amontoados de pelo, ossos e pele. No aturdimento que se seguia à refeição, as virais não se aperceberam da sua entrada.

— Boa noite, minhas senhoras.Abateu a primeira nas vigas, usando a besta. Um ruído surdo, um

guincho abruptamente sufocado, e o corpo caiu ao chão. Agora as outras duas estavam a despertar do seu torpor; a segunda soltou ‑se da viga, recolheu os joelhos junto ao peito e enrolou o corpo na descida, aterrando sobre os pés terminados em garras, de costas para Alicia. Largando a besta, ela puxou uma das suas facas, e, num movimento contínuo, lançou ‑a; rodopiando pelo ar, a faca foi cravar ‑se na terceira viral, que se erguera para a enfrentar.

Duas já estavam despachadas; faltava uma.

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Deveria ter sido fácil. Mas, de súbito, deixou de o ser. Quando Alicia puxou uma segunda faca, a viral que continuava viva voltou ‑se e golpeou ‑lhe a mão com tal força que a arma desapareceu no escuro a rodopiar. Antes que a criatura pudesse atingi ‑la novamente, Alicia atirou ‑se ao chão e rebolou para longe; quando se pôs de pé, já com outra faca na mão, a viral desaparecera.

Merda.Agarrou na besta que deixara cair ao chão, carregou ‑a com um

dardo e correu lá para fora. Onde raio é que a bicha estava?! Com dois passos rápidos, Alicia saltou para o telhado do barracão, aterrando com um baque metálico. Inspecionou rapidamente a paisagem. Nada, nem um sinal.

E então a viral surgiu por trás dela. Era uma armadilha, apercebeu‑‑se Alicia; possivelmente, a criatura ficara escondida, deitando ‑se no extremo mais afastado do telhado. Duas coisas aconteceram em simul‑tâneo: Alicia rodou nos calcanhares, apontando a besta de forma instintiva; e, com um estrépito de madeira a rachar e de metal a ras‑gar ‑se, o telhado cedeu sob os seus pés.

Caiu de costas no chão do barracão e a viral caiu sobre ela. A sua besta desaparecera. Alicia teria puxado uma faca, só que agora as suas mãos estavam ocupadas com um impasse: manter a viral afastada. A cria tura ia sacudindo o rosto de um lado para o outro, de mandí‑bulas a baterem em seco, procurando a curva da garganta de Alicia. Uma força irresistível contra um corpo imóvel: por quanto tempo iria aquilo durar? As crianças nas suas camas, pensou Alicia. Essa recordação pertencia a esta viral. Fora ela a mulher parada à porta a observar os seus filhos adormecidos. Lembra ‑te das crianças, pensou Alicia, e depois disse ‑o alto:

— Lembra ‑te das crianças.A viral deteve ‑se. Uma expressão melancólica surgiu ‑lhe no rosto.

Por um brevíssimo instante — não mais do que meio segundo —, os seus olhares encontraram ‑se e fitaram ‑se no escuro. Mary, pensou Alicia. Tu chamavas ‑te Mary. Jogou a mão a uma das suas facas. Vou enviar ‑te para casa, minha irmã Mary, pensou. Vou libertar ‑te da prisão da tua existência. E, com um golpe ascendente, enterrou a sua faca, até ao cabo, no ponto fraco da viral.

Fez o corpo rebolar de cima de si. As outras estavam exatamente onde tinham caído sem vida. Foi arrancar a faca e o dardo de uma e de outra, limpou ‑os e depois ajoelhou ‑se junto ao corpo da última que morrera. Geralmente, no rescaldo da luta, Alicia não sentia nada para

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além de uma vaga sensação de vazio; foi portanto uma surpresa aperceber ‑se de que as mãos lhe tremiam. Como soubera? Porque ela soubera ‑o, era um facto; com absoluta clareza, soubera que aquela mulher se tinha chamado Mary.

Arrancou ‑lhe a faca do corpo e tocou com o cabo na cabeça e no coração. Obrigada, Mary, por não me teres matado antes de o meu trabalho estar terminado. Espero que agora estejas com os teus pequenotes.

Mary tinha os olhos abertos e fitava o vazio. Alicia fechou ‑lhos com as pontas dos dedos. Não podia deixá ‑la ali onde estava. Ergueu o corpo nos braços e levou ‑o lá para fora. A face da lua surgira no céu, inundando a paisagem com o seu brilho, criando uma escuridão visí‑vel. Mas não era do luar que Mary precisava. Um século de céu noturno era suficiente, pensou Alicia, deitando a mulher a céu aberto — onde, quando a manhã chegasse, o sol a descobriria, dispersando então as suas cinzas no vento.

Alicia começara a subir.Tinham passado um dia e uma noite. Agora ela estava nas monta‑

nhas, subindo pelo leito de um riacho seco, ao longo de um desfila‑deiro estreito. Ali, a sensação da presença dos virais era mais forte; ia avançando ao encontro de alguma coisa. Mary, pensou, o que estavas tu a tentar dizer ‑me?

Já era quase de madrugada quando alcançou o cume da montanha, deparando então com o horizonte na distância. Lá mais em baixo, na escuridão varrida pelo vento, estendia ‑se o chão do vale, com as estre‑las por única companhia. Alicia sabia que era possível encontrar discretas figuras na sua configuração aparentemente arbitrária — con‑tornos de pessoas e de animais —, mas ela nunca aprendera a fazer isso. Aos seus olhos, as estrelas pareciam simplesmente espalhadas ao acaso, como se, a cada noite, fossem novamente atiradas contra o céu.

E então viu aquilo: uma escuridão semelhante a uma goela aberta, situada numa depressão com a forma de uma tigela gigante. A entrada tinha trinta metros de altura, ou mais. Bancos curvos, como num anfiteatro, entalhados na superfície rochosa da montanha, rodeavam a abertura da caverna. Morcegos voavam pelo ar.

Aquilo era uma porta para o Inferno.Estás aí em baixo, não estás?, pensou Alicia, sorrindo em seguida.

Encontrei ‑te, meu filho da puta.

II

O FAMILIAR

PRIMAVERAANO ZERO

Estamos naquela hora embruxada da noiteEm que os cemitérios bocejam e o próprio Inferno

Exala a sua peste sobre este mundo.

SHAKESPEARE,

Hamlet

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3

Departamento de Polícia de DenverProcesso Nº 193874Distrito 6Transcrição de interrogatório a Lila Beatrice KyleResponsável: Inspetora Rita Chernow3 de maio, 04h17

RC: Que conste que a interrogada foi integralmente informada dos seus direitos e que renunciou ao seu direito de ter um advogado presente neste interrogatório. O interrogatório foi conduzido pela inspetora Rita Chernow, do Departamento de Polícia de Denver, distrito 6. São quatro horas e dezassete minutos da manhã. Dra. Kyle, pode indicar o seu nome completo?

LK: Lila Beatrice Kyle.RC: E é cirurgiã ortopédica no Hospital de Denver, correto?LK: Sim.RC: E sabe por que razão está aqui?LK: Aconteceu qualquer coisa no hospital. Vocês querem fazer‑

‑me mais algumas perguntas. Que sala é esta? Não a conheço.RC: Estamos na esquadra, Dra. Kyle.LK: Estou metida em sarilhos?RC: Já falámos sobre isso, não se recorda? Estamos apenas a

tentar perceber o que é que aconteceu no serviço de urgência esta noite. Sei que está enervada. Tenho apenas algumas perguntas para lhe fazer.

LK: Estou suja de sangue. Porque é que estou suja de sangue?

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RC: Lembra ‑se do que aconteceu no serviço de urgência, Dra. Kyle?LK: Estou tão cansada... Porque é que estou tão cansada?RC: Posso mandar que lhe tragam alguma coisa? Um café,

talvez...?LK: Não posso beber café. Estou grávida.RC: Água, então...? Não quer um pouco de água?LK: OK.(Pausa.)RC: Vamos então começar pelo princípio. Esta noite estava de

serviço nas urgências, correto?LK: Não, estava lá em cima.RC: Mas desceu ao serviço de urgência?LK: Sim.RC: A que horas?LK: Não sei bem. Por volta da uma da manhã. Mandaram ‑me

um «bipe». RC: E porque é que a contactaram?LK: Eu era a ortopedista de serviço. Tinham um paciente com

um pulso partido.RC: E esse paciente era o Mr. Letourneau?LK: Acho que sim. Era.RC: E o que mais lhe disseram a respeito dele?LK: Antes de eu descer, é o que quer dizer?RC: Sim.LK: Tinha sido mordido por um animal qualquer.RC: Por um cão?LK: Suponho que sim. Não me disseram.RC: Mais alguma coisa?LK: Tinha febre alta. Tinha vomitado.RC: E isso foi tudo o que lhe disseram?LK: Sim.RC: E, quando chegou ao serviço de urgência, o que foi que viu?LK: Ele estava na terceira cama. Só havia mais dois pacientes.

Costuma haver pouco movimento aos domingos.RC: E que horas seriam nessa altura?LK: Uma e quinze ou uma e meia.RC: E examinou o Mr. Letourneau?LK: Não.RC: Permita ‑me reformular a pergunta. Viu o paciente?(Pausa.)

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RC: Dra. Kyle...?LK: Desculpe, qual era a pergunta...?RC: Viu o Mr. Letourneau esta noite no serviço de urgência?LK: Sim. O Mark também lá estava.RC: Refere ‑se ao Dr. Mark Shin?LK: Era ele o chefe de equipa. Falaram com ele?RC: O Dr. Shin morreu, Dra. Kyle. Foi uma das vítimas.LK: (inaudível)RC: Pode falar mais alto, por favor?LK: Eu só... Eu não sei. Desculpe, o que é que quer saber?RC: O que me pode dizer a respeito do Mr. Letourneau? Como

lhe pareceu ele?LK: «Pareceu»...?RC: Sim. Ele estava acordado?LK: Sim, estava acordado.RC: O que mais observou?LK: Estava desorientado. Agitado. Tinha uma cor esquisita.RC: Como assim...?(Pausa.)LK: Tenho que ir à casa de banho.RC: Vamos só despachar algumas perguntas primeiro. Eu sei que

está cansada. Prometo ‑lhe que a deixo sair daqui o mais depressa possível.

LK: A senhora tem filhos, inspetora Chernow?RC: Desculpe...?LK: Tem filhos? Pergunto só por curiosidade.RC: Sim, tenho dois rapazes.LK: De que idades? Isto se não se importa que eu pergunte.RC: Cinco e sete. Tenho apenas mais algumas questões para lhe

colocar. Acha que está capaz de me responder?LK: Mas aposto que ainda está a tentar ter uma menina, não está?

Acredite no que lhe digo, não há nada como termos uma menina.RC: Por agora vamos focar ‑nos no Mr. Letourneau, pode ser?

Disse que ele estava agitado. Pode explicar melhor?LK: «Explicar melhor»...?RC: Sim. O que é que ele fez?LK: Estava a fazer um barulho esquisito.RC: Pode descrever esse barulho?LK: Era um estalido na garganta dele. E estava a gemer. Parecia

estar com muitas dores.

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RC: Tinham ‑lhe dado alguma coisa para as dores?LK: Tinham ‑lhe dado Tramadol. Julgo que era Tramadol.RC: Quem mais estava nas urgências, para além do Dr. Shin?(Pausa.)RC: Dra. Kyle...? Quem mais estava no serviço de urgência

quando examinou o Mr. Letourneau?LK: Uma das enfermeiras. Estava a tentar acalmá ‑lo. Ele estava

muito perturbado.RC: Mais alguém?LK: Não me lembro. Um auxiliar...? Não, eram dois.RC: O que aconteceu então?LK: Ele começou a ter um ataque.RC: O paciente teve uma convulsão, é o que quer dizer?LK: Sim.RC: E o que fez nessa altura?LK: Onde é que está o meu marido?RC: Está lá fora, no corredor. Veio consigo. Não se recorda?LK: O Brad está aqui?RC: Desculpe... Quem é o Brad?LK: O meu marido. Brad Wolgast. Ele pertence ao FBI. Se

calhar até o conhece...RC: Dra. Kyle, estou confusa. O homem que veio consigo

chama ‑se David Centre. Não é ele o seu marido?(Pausa.)RC: Dra. Kyle...? Compreende o que eu lhe estou a perguntar?LK: É claro que o David é o meu marido. Que coisa tão estranha

de se dizer. De onde é que saiu todo este sangue? Estive envolvida nalgum acidente?

RC: Não, Dra. Kyle. Estava no hospital. É disso que estamos a falar. Há três horas, nove pessoas foram mortas no serviço de urgência. Estamos a tentar perceber como foi que isso aconteceu.

(Pausa.)LK: Aquilo olhou para mim. Porque é que só olhou para mim?RC: O que é que olhou para si, Dra. Kyle?LK: Foi horrível.RC: O que é que foi horrível?LK: Primeiro matou a enfermeira. O sangue era tanto... Parecia

um oceano.RC: Está a falar do Mr. Letourneau? Foi ele quem matou a

enfermeira? Preciso que se explique melhor.

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LK: Tenho sede. Pode trazer ‑me mais água?RC: É só um minuto. Como foi que o Mr. Letourneau matou a

enfermeira?LK: Aconteceu tão depressa... Como pode alguém ser capaz de se

mover tão depressa?RC: Preciso que se concentre, Dra. Kyle. Que objeto usou o

Mr. Letourneau para matar a enfermeira? Ele tinha alguma arma?LK: Uma arma...? Não me lembro de arma nenhuma.RC: Então como foi que ele fez?(Pausa.)RC: Dra. Kyle...?LK: Eu não me conseguia mexer. Aquilo limitou ‑se... a olhar

para mim.RC: Alguma coisa olhou para si? Estava mais alguém na sala?LK: Ele usou a boca. Foi assim que fez aquilo.RC: Está a dizer que o Mr. Letourneau mordeu a enfermeira?(Pausa.)LK: Eu estou grávida, sabe? Vou ter um bebé.RC: Eu consigo ver isso, Dra. Kyle. Sei que isto é muito

stressante.LK: Tenho que descansar. Quero ir para casa.RC: Vamos tentar fazê ‑la sair daqui o mais depressa possível.

Apenas para clarificar, está a afirmar que o Mr. Letourneau mordeu a enfermeira?

LK: Ela está bem?RC: Ela foi decapitada, Dra. Kyle. A senhora estava a segurar o

corpo quando a encontrámos. Não se lembra...?LK: (inaudível)RC: Pode falar mais alto, por favor?LK: Não compreendo o que é que quer. Porque é que me está a

fazer estas perguntas?RC: Porque a senhora estava lá. É a nossa única testemunha. Viu

nove pessoas morrerem esta noite. Todas elas foram desmembradas, Dra. Kyle.

LK: (inaudível)RC: Dra. Kyle...?LK: Aqueles olhos... Foi como olhar para o Inferno. Foi como

ficar eternamente a cair na escuridão. Acredita no Inferno, inspetora?

RC: Os olhos de quem...?

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LK: Aquilo não era humano. Não podia ser humano.RC: Ainda está a falar do Mr. Letourneau?LK: Não posso pensar nisto. Tenho que pensar na bebé.RC: O que foi que viu? Diga ‑me o que viu.LK: Quero ir para casa. Não quero falar mais sobre este assunto.

Não me obrigue.RC: O que foi que matou aquelas pessoas, Dra. Kyle?(Pausa.)RC: Dra. Kyle, sente ‑se bem?(Pausa.)RC: Dra. Kyle...?(Pausa.)RC: Dra. Kyle...?