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561 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 561-580, set./dez. 2007 Indicador nacional de alfabetismo funcional-2001: explorando as diferenças entre mulheres e homens Amélia Cristina Abreu Artes Universidade de São Paulo Resumo Este trabalho se insere em um conjunto de estudos na área educa- cional que investigam as diferenças nos resultados que homens e mulheres apresentam em pesquisas educacionais. O Indicador Naci- onal de Alfabetismo Funcional é composto por um teste com 20 questões de dificuldade variada, que mensura como as pessoas uti- lizam-se da escrita e da leitura em seus espaços cotidianos, tendo sido desenvolvido pelo Instituto Paulo Montenegro (IBOPE) e Ação Educativa e aplicado a uma amostra estratificada da população bra- sileira, composta de 2.000 pessoas (15 a 64 anos). Os resultados indicam que as mulheres apresentam um resultado melhor em to- das as questões do teste na comparação com os homens. Utilizando o conceito de gênero e afastando-se da dicotomia homem-mulher, trabalhou-se com três grupos ocupacionais: homens que traba- lham; mulheres que trabalham fora e donas-de-casa. A análise inferencial realizada indica que as diferenças entre as proporções mé- dias de acertos nos três grupos ocupacionais são significativas, uma vez controladas as cinco variáveis preditoras (escolaridade, idade, cor, Critério Brasil e gosto por leitura). Isso sugere que as diferenças encon- tradas entre os grupos independem dessas variáveis preditoras. Na aná- lise questão a questão, observa-se que, para nove destas, as mulheres que trabalham apresentam um desempenho médio superior aos ho- mens que trabalham ou donas-de-casa. O que mais surpreende é que em três questões as donas-de-casa apresentam um desempenho signi- ficativamente superior aos homens que trabalham. Palavras-chave Letramento – Alfabetismo – Sexo e gênero. Correspondência: Amélia Cristina Abreu Artes Rua Sepetiba, 224 05052-000 – São Paulo – SP e-mail: [email protected] *Este artigo é produto da dissertação de mestrado, defendida em dezem- bro de 2004, na Faculdade de Edu- cação da Universidade de São Pau- lo, sob orientação da Profa. Dra. Marília Pinto de Carvalho.

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Indicador nacional de alfabetismo funcional-2001:explorando as diferenças entre mulheres e homens

Amélia Cristina Abreu ArtesUniversidade de São Paulo

Resumo

Este trabalho se insere em um conjunto de estudos na área educa-cional que investigam as diferenças nos resultados que homens emulheres apresentam em pesquisas educacionais. O Indicador Naci-onal de Alfabetismo Funcional é composto por um teste com 20questões de dificuldade variada, que mensura como as pessoas uti-lizam-se da escrita e da leitura em seus espaços cotidianos, tendosido desenvolvido pelo Instituto Paulo Montenegro (IBOPE) e AçãoEducativa e aplicado a uma amostra estratificada da população bra-sileira, composta de 2.000 pessoas (15 a 64 anos). Os resultadosindicam que as mulheres apresentam um resultado melhor em to-das as questões do teste na comparação com os homens. Utilizandoo conceito de gênero e afastando-se da dicotomia homem-mulher,trabalhou-se com três grupos ocupacionais: homens que traba-lham; mulheres que trabalham fora e donas-de-casa. A análiseinferencial realizada indica que as diferenças entre as proporções mé-dias de acertos nos três grupos ocupacionais são significativas, umavez controladas as cinco variáveis preditoras (escolaridade, idade, cor,Critério Brasil e gosto por leitura). Isso sugere que as diferenças encon-tradas entre os grupos independem dessas variáveis preditoras. Na aná-lise questão a questão, observa-se que, para nove destas, as mulheresque trabalham apresentam um desempenho médio superior aos ho-mens que trabalham ou donas-de-casa. O que mais surpreende é queem três questões as donas-de-casa apresentam um desempenho signi-ficativamente superior aos homens que trabalham.

Palavras-chave

Letramento – Alfabetismo – Sexo e gênero.

Correspondência:Amélia Cristina Abreu ArtesRua Sepetiba, 22405052-000 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

*Este artigo é produto da dissertaçãode mestrado, defendida em dezem-bro de 2004, na Faculdade de Edu-cação da Universidade de São Pau-lo, sob orientação da Profa. Dra.Marília Pinto de Carvalho.

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The National Index of Functional Literacy – 2001:examining the differences between men and women*

Amélia Cristina Abreu ArtesUniversidade de São Paulo

Abstract

This work is part of a group of studies in the educational field thatinvestigate the differences in the results obtained by men and womenin educational researches. The National Index of Functional Literacy iscomposed from a test of 20 questions of varying difficulty that measurehow people make use of reading and writing in their daily activities. Itwas developed by the Paulo Montenegro Institute (IBOPE) andEducative Action (Ação Educativa), and applied to a stratified sample ofthe Brazilian population comprised of 2000 people (from 15 to 64 yearsof age). The results indicate that women perform better in everyquestion of the test. Making use of the concept of gender and movingaway from the man-woman dichotomy, we have worked with threeoccupational groups: working men, working women, and housewives.The inferential analysis carried out indicates that the differences in theaverage rate of right answers between the three occupational groupsare significant, after accounting for the five predictive variables(schooling, age, color, Criterion Brazil, and reading habit). This suggeststhat the differences encountered between the groups are notdependent on the predictive variables. In a question by questionanalysis, it was observed that in nine of the questions the averageperformance of working women was superior to both working men andhousewives. More surprisingly, in three of the questions housewivesachieved significantly better results than working men.

Keywords

Literacy – Sex and gender.Contact:Amélia Cristina Abreu ArtesRua Sepetiba, 22405052-000 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

* This article results from the author’sMaster Dissertation, presented inDecember 2004 to the Faculty ofEducation of the University of São Paulo,and developed under the supervision ofProfessor Marília Pinto de Carvalho.

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O material analisado neste artigo são osresultados do Indicador Nacional de AlfabetismoFuncional (INAF), formado por um questionáriode caracterização dos respondentes e um testecom 20 questões. O INAF, uma iniciativa doInstituto Paulo Montenegro (IBOPE) em parce-ria com a ONG Ação Educativa, tem como fina-lidade divulgar periodicamente informações arespeito do letramento de jovens e adultos.Avaliam-se as habilidades em escrita e leitura(anos ímpares) e matemática (anos pares), pro-curando analisar, nos anos pares, a inserção dapopulação na cultura letrada, isto é, avaliar suashabilidades de alfabetismo/letramento. A base dedados aqui analisada refere-se ao ano de 2001.

O objetivo é trazer subsídios para a com-preensão dos diferentes resultados obtidos porhomens e mulheres em uma pesquisa amostral,entendendo essa diferença como um produtocultural construído socialmente, já que homens emulheres ocupam espaços sociais diversificados.

Uma vez que os resultados preliminaresdivulgados pelos organizadores indicavam ummelhor desempenho das mulheres no teste, pre-tendemos neste estudo responder às seguintesquestões:

• Quando se analisa cada questão do teste deletramento separadamente, há diferenças nosresultados, isto é, há questões em que asmulheres se saem melhor do que os homens?• Há diferença nos resultados quando se sepa-ra o grupo de mulheres em trabalhadoras edonas-de-casa?

O INAF se insere em uma tendênciamundial de avaliação educacional, cujos estu-dos podem ser divididos em três blocos: cen-sos demográficos; contextos escolares; e estu-dos amostrais.

Os censos demográficos apresentam da-dos macrorregionais que podem ser analisadosem diferentes recortes. No Brasil, autores comoAlceu Ferraro (2002) e Fúlvia Rosemberg (2001)trabalham esses dados analisando a situaçãoeducacional brasileira.

Os estudos em contexto escolar caracte-rizam-se por avaliações de sistema, uma ten-dência mundial nos últimos anos conhecida poravaliar estudantes em suas habilidades deletramento associadas à escolarização. No Brasil,o SAEB (Sistema de Avaliação da EducaçãoBásica), aplicado pelo Ministério da Educação,tem como objetivo apresentar informações so-bre a qualidade, a equidade e a eficiência denosso Ensino Básico. Internacionalmente, oPISA (Programa Internacional de Avaliação deEstudantes), organizado pela OCDE (Organiza-ção para Cooperação e Desenvolvimento Eco-nômico), pretende verificar, em seus países-membros, até que ponto alunos próximos dotérmino da Educação obrigatória adquiriramconhecimentos e habilidades essenciais para aparticipação social.

O INAF se insere na categoria de estudospor amostragem. Em alguns países, a preocu-pação em testar o nível de letramento da po-pulação é uma realidade há décadas (nos Esta-dos Unidos, por exemplo, esses estudos datamdos anos 1970), tendo como preocupação nãosó verificar se as pessoas sabem ou não ler eescrever, mas o quanto elas se utilizam de suashabilidades de leitura e escrita para inserir-sesocialmente, já que o problema do analfabetismoabsoluto concentra-se hoje nos países mais po-bres do mundo. No Brasil, são raros estudos poramostragem com esse perfil, o que apenas ressaltaa importância dos dados obtidos pelo INAF.

Letramento e gênero

Para desenvolver a análise, utilizamosdois conceitos centrais: letramento e gênero.Podemos dizer que são conceitos recentes, poisdatam de meados do século passado e queforam construídos de acordo com diferentesáreas do conhecimento.

Em um relevante trabalho, publicado em2002, com o título Letramento: um tema em trêsgêneros, Magda Soares discute o surgimentodos conceitos, associado à percepção de novosfenômenos na sociedade:

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[...] na língua sempre aparecem palavrasnovas quando fenômenos novos ocorrem,quando uma nova idéia, um novo fato, umnovo objeto surgem, são inventados, e en-tão é necessário ter um nome para aquilo.(Soares, 2002a, p. 34)

A autora ressalta ainda que durante mui-to tempo utilizou-se o termo analfabetismo, umsubstantivo que indica negação, falta (a[n] +alfabetismo=privação de alfabetismo). O mesmoacontece na língua inglesa, cujo termo illiteracy(ausência de letramento) está dicionarizado des-de 1660, no Oxford English Dictionary (1979), aopasso que o termo afirmativo, literacy, só apare-ce registrado no século XIX (Soares, 2002a).

A palavra letramento foi dicionarizada noBrasil apenas em 2001, pelo Dicionário Houaiss, narubrica de pedagogia, e definida como o “mesmoque alfabetização (processo), conjunto de práticasque denotam a capacidade de uso de diferentestipos de material escrito” (Houaiss, 2001). Apesardessa demora, o termo já era utilizado havia algumtempo em escritos na área da Educação (Kato,1986; Tfouni,1988; Soares, 2002b).

Para Soares, o letramento se caracterizacomo uma prática social multifacetada, isto é, podedesenvolver-se em vários espaços, inclusive no es-colar, e das mais variadas maneiras: uma criança estáfazendo o “uso social da leitura” ao brincar de lerum livro infantil; um adulto pouco escolarizadopode ser considerado letrado ao recitar partes daBíblia em uma cerimônia religiosa. Sua definição deletramento, apresentada em 2002, passou a serreferência nos estudos que tratam do tema:

Letramento é, pois, o resultado da ação deensinar ou de aprender a ler e escrever: oestado ou a condição que adquire um gru-po social ou um indivíduo como conseqü-ência de ter-se apropriado da escrita. (Soa-res, 2002a, p. 18)

Neste artigo, ainda de acordo com Soa-res (2004), utilizamos alfabetismo em sua pers-pectiva sociológica, que compreende as práticas

de leitura e escrita como produtos culturais, osquais sofrem influências diretas das diferentescaracterísticas demográficas como escolaridade,profissão e sexo. Nesse sentido, é importantenão só explorar os resultados obtidos em umteste de letramento, como também levantar hi-póteses a respeito das motivações que as pesso-as possuem para a leitura, o valor simbólico queo ler ocupa nos diferentes contextos sociais eseu lugar na hierarquia dos bens culturais.

Portanto, o letramento não será conside-rado neutro, destituído de poder, e será contex-tualizado como conjunto de práticas socialmenteconstruídas – que envolvem a leitura e a escri-ta –, geradas por processos sociohistóricosamplos e também responsáveis por referendar ouquestionar valores, tradições e formas de distri-buição de poder em nossa estrutura social. Den-tre essas relações de poder, neste estudo, terãodestaque as relações de gênero.

Na área educacional, não há muitos es-tudos que analisam as diferenças nos resultadosde meninas/mulheres e meninos/homens emtestes escolares, o que torna inédita a análiseaqui proposta em um estudo amostral.

O conceito de gênero surgiu no âmbito dosestudos feministas em busca de um deslocamen-to da explicação da diferença e da desigualdadeentre homens e mulheres do campo da naturezapara uma visão sociológica, segundo a qual oslugares do masculino e do feminino na sociedadesão produzidos por relações sociais e históricas.

Assim como o par letramento/alfabetismo, o conceito de gênero é recente,ainda em construção, e apresenta diferentesenfoques. Joan Scott (1995) enfatiza a neces-sidade de atenção às linguagens e aos signifi-cados das diferenças percebidas entre os sexosna elaboração de todo sistema simbólico, quepermeia as relações de poder na sociedade. Noartigo Gênero, uma categoria útil de análisehistórica, a autora afirma que

[...] o uso de ‘gênero’ enfatiza todo um sis-tema de relações que pode incluir o sexo,mas não é diretamente determinado pelo

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sexo, nem determina diretamente a sexuali-dade. (p. 7)

Essa separação entre gênero e sexo écentral para a compreensão do próprio concei-to de gênero, no qual os elementos sociais,políticos e culturais passam a ser determinantesda interpretação que se faz do que é ser homemou ser mulher. Segundo a pesquisadora france-sa Christine Delphy, gênero deve ser entendidocomo um produto social que constrói o sexo:

Se as relações de gênero não existissem, oque conhecemos como sexo seria destituí-do de significado e não seria percebidocomo importante. Poderia ser apenas umadiferença física entre outras. (Delphy apudAuad, 2004, p. 28)

Para os fins deste artigo, o gênero seráentendido

[...] não apenas como um conceito que des-creve as relações entre homens e mulheres,mas como uma categoria teórica referida aum conjunto de significados e símbolosconstruídos sobre a base da percepção dadiferença sexual. (Carvalho, 1999a, p. 34)

Nesse sentido, o conceito de gênero po-derá ser útil para explicar as diferenças perce-bidas estatisticamente por meio da variávelsexo, ao permitir levantar hipóteses sobre ossignificados culturais envolvidos no processode letramento para as mulheres.

Fica claro que gênero não é sinônimo desexo: uma coisa são os sujeitos, homens e mulhe-res; outra são os diferentes significados e símbolosque masculino e feminino ocupam histórica e soci-almente, implicando relações de poder e hierarqui-as nos diferentes níveis. Os respondentes do INAFsão homens e mulheres e serão tomados segundoessas categorias, sem questionar, porém, o lugarmasculino ou feminino que possam hipoteticamenteocupar, procedimento esse que não se ajustaria auma pesquisa quantitativa desta envergadura.

Nas últimas décadas, a questão da apro-priação diferenciada da leitura por homens emulheres vem sendo abordada por diversasáreas de pesquisa. No caso dos meninos e dasmeninas, principalmente dentro do espaço es-colar, há inúmeros autores que indicam essasdiscrepâncias (Corrêa, 2004; Gilbert; Gilbert,1998), sempre na direção de que as meninastêm maior afinidade com as práticas de leiturae melhor desempenho nos testes que avaliamletramento. Por outro lado, não foram encon-trados estudos de gênero que explorem a ques-tão do letramento na vida adulta.

Elaine Millard (1998), em artigo publica-do no periódico Gender and Education, afirmaque meninos apropriam-se da prática de leitu-ra a partir de suas identidades de gênero. Paraela, essas diferenças estão diretamente associ-adas a uma identidade feminina marcada pelapassividade, próxima da postura exigida paraum leitor mais assíduo.

Resultados semelhantes a esses foramdescritos na década de 1990 por Luke (1993) eGilbert e Gilbert (1998). Esses últimos trataramda questão dos testes de letramento realizadosna Austrália, ressaltando os diferentes resultadosencontrados entre meninos e meninas. Os auto-res levantam dúvidas a respeito da forma comoesses testes foram elaborados, assim como dosconteúdos cobrados e valorizados, o que indi-caria uma possível incompatibilidade entre amasculinidade valorizada por esses jovens e asáreas curriculares valorizadas pela escola. Nessainterpretação, quando a leitura é vista como umcomportamento femi-nilizado, os meninos ten-deriam a rejeitá-la (Gilbert; Gilbert, 1998).

Há poucas pesquisas no Brasil que explo-ram a apropriação da leitura a partir da variávelsexo. Pesquisa qualitativa, realizada por MariaCeleste Arantes Corrêa (2004), na qual se procu-rou verificar a preferência de leitura em meninose meninas em idade escolar, indica que, compa-rativamente aos meninos, as meninas lêem maislivros e de diferentes gêneros literários.

Se partimos da concepção de que a lei-tura é uma prática cultural e histórica ou, como

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afirma Roger Chartier (1996), que ela “possui oestatuto de uma prática criadora, inventiva eprodutiva, influenciada pelo espírito de seusleitores” (p. 78), devemos considerar na análi-se das práticas de letramento, entre outras re-lações sociais, as relações de gênero.

O Indicador Nacional deAlfabetismo Funcional – INAF

O INAF está inscrito no contexto de umasociedade grafocêntrica, em que o domínio daescrita e da leitura se apresenta como determinanteda inclusão e exclusão social. O objetivo desselevantamento é:

[...] criar um indicador nacional de alfabetismofuncional cujos resultados pudessem ser peri-odicamente divulgados à população em geral,servindo como referência para o debate sobreo que deveria ser um dos principais resultadosda escolarização básica: a capacitação dos in-divíduos para inserir-se na cultura letrada demaneira autônoma, flexível e criativa. (Ribeiro,2003, p. 50)

Até o segundo semestre do ano de 2005,já foram realizados cinco levantamentos: oINAF 2001, que avaliou as habilidades de leitu-ra e é objeto de análise deste trabalho; os INAF2002 e 2004, que versam sobre conhecimentosde matemática; e os INAF 2003 e 2005, quevoltaram a avaliar habilidades de leitura.

Grande parte do relato do INAF 2001aqui apresentado está baseado no artigo deVera Masagão Ribeiro (2001), assim como emRibeiro, Vóvio e Moura (2003) e que descrevecom precisão o caminho trilhado na construçãodo indicador.

Para fomentar o debate público sobre atemática e auxiliar na construção do indicador,a ONG Ação Educativa e o Instituto PauloMontenegro organizaram um seminário, reali-zado em setembro de 2001. Esse seminário reu-niu especialistas no tema, gestores de programaseducacionais e profissionais de jornalismo que

discutiram o interesse social e a relevância dacriação de um indicador dessa natureza.

Para orientar a construção dos instrumen-tos de coleta de dados, foram elaboradas matri-zes relativas às esferas de práticas de letramento.

Para cada esfera, foram arrolados os su-portes de escrita, os gêneros textuais, as fun-ções que caracterizam as práticas de leitura eescrita e as competências gerais e específicasrelacionadas a essas diferentes práticas. Dessaanálise, resultaram dois instrumentos: um ques-tionário e um teste de leitura.

A definição operacional de letramentoutilizada na pesquisa é a mesma apresentadapor Magda Soares (2002a).

A pesquisa foi operacionalizada peloIBOPE em setembro de 2001. Utilizou-se umaamostra nacional de 2.000 pessoas de 15 a 64anos. A equipe técnica do IBOPE definiu essaamostra a partir de um amplo conjunto de in-formações de que o Instituto dispunha a res-peito da população-alvo, considerando ainda aespecificidade do estudo.

O questionário é constituído de 68 per-guntas que procuram abarcar as diferentes esfe-ras de práticas de letramento. Investigam-se há-bitos de leitura de livros, jornais e revistas nosmais diferentes espaços sociais, procurandoidentificar que usos da escrita, gêneros e supor-tes de textos estão presentes em cada um des-ses espaços. O acompanhamento de tarefas es-colares de crianças e os hábitos de leitura sãoavaliados, assim como a importância que ostextos escritos ocupam na vida dos responden-tes, tanto para a obtenção e manutenção doemprego como nos espaços de lazer, recreaçãoe participação política. Há itens que recolheminformações sobre a família de origem do entre-vistado, cuja finalidade é compreender como ascondições de letramento se reproduzem ou sealteram entre as gerações. Requisitam-se aindainformações sobre que estratégias as pessoasadotam, por exemplo, para localizar um núme-ro de telefone, ler uma placa ou sinalização,escrever ou ler uma carta pessoal. Avaliam-setambém o acesso e o uso de computadores.

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O teste que compõe o INAF é a parte doestudo que procura mensurar o nível de alfabetismoda população brasileira. O questionário é um com-plemento de suma importância, pois permite ampliaras informações que auxiliam na compreensão des-se fenômeno bastante complexo. Podemos dizerque o questionário auxilia na construção do pano-rama do letramento, pois permite conhecer as prá-ticas sociais de uso da leitura e da escrita. O teste,por sua vez, mensura os níveis de alfabetismo apre-sentados pela população, com referência aos níveisde habilidades nele demonstrados. Portanto, ao tra-tar do teste, uso o termo alfabetismo, como fizeramos organizadores do indicador.

Composto por 20 itens, o teste abarcaum número reduzido de práticas sociais deletramento, entre as diversas existentes, quepodem, assim, ser transformadas em questões.De acordo com os organizadores, foi necessá-rio ajustar a duração do teste e a sua comple-xidade às condições de aplicação a uma amos-tra grande de indivíduos. Vale ressaltar que oteste é aplicado na residência dos indivíduos,nem sempre em condições ideais ou com adisponibilidade de tempo necessária.

Na construção do teste, os organizadoresoptaram pela verificação das habilidades maisrecorrentes nas diferentes práticas de letramento,procurando aproximar ao máximo os textos e astarefas àquelas mais freqüentes no cotidiano. Asvinte tarefas propostas aos respondentes foramorganizadas em uma revista de variedades, ela-borada especialmente para a pesquisa. Apenasno item 7 requereu-se a consulta a outros ma-teriais: um envelope para endereçamento e umacópia de cédula de identidade.

Os 20 itens do teste foram apresentadosaos entrevistados de quatro formas distintas:

• nos itens mais simples – de 1 a 6 –, o en-trevistador lia a pergunta e as duas opções deresposta por questão, anotando as respostasdadas oralmente pelo entrevistado;• no item 7, o entrevistado completava umformulário de endereçamento a partir de in-formações de uma cédula de identidade;

• nos itens de 8 a 10, as instruções eram lidasem voz alta pelo entrevistador, mas preenchi-das pelo entrevistado;• nos itens de 11 a 20, o próprio entrevistadolia as instruções e escrevia as respostas nosespaços correspondentes.

Em todos os itens, o entrevistador pode-ria auxiliar na localização do texto correspon-dente a cada questão dentro da revista.

Homens e mulheres no INAF

Conforme presente no relatório final doINAF 2001, há diferenças do desempenho dasmulheres comparado ao dos homens. Carvalhoe Moura (2003) ressaltam que a escolaridade ea situação atual de trabalho (doméstico para asdonas-de-casa e externo para homens e mulhe-res) interferem nas práticas de leitura. No entan-to, indicam desde logo que essas variáveis nãoexplicam as diferenças encontradas nos resul-tados, pois a diferença persiste mesmo quandocontroladas, no modelo de análise estatística, ainfluência da escolaridade e situação de traba-lho. As autoras ressaltam ainda que homens emulheres possuem práticas de leitura divergen-tes: enquanto os homens preferem a leitura dejornais, as mulheres preferem ler revistas.

Partimos, portanto, da constatação já apre-sentada também no relatório INAF 2001 da dife-rença no desempenho de mulheres e homens, paraprocurar caracterizar essas diferenciações.

Para a análise dos resultados, os organi-zadores do Indicador atribuíram a cada um dos2.000 sujeitos um escore, de acordo com o nú-mero de itens respondidos corretamente. A Ta-bela 1 indica o número total de acertos no testepor sexo.

A distribuição do total de acertos indicaque as mulheres apresentam um desempenhomelhor do que os homens. Considerando o pa-tamar até 10 acertos (metade da prova), temos48,9% do total de homens e 41% do total demulheres. A partir de 16 acertos (4o quartil),temos 24,4% de homens e 27,9% de mulheres.

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Apesar de o desempenho no teste seruma variável contínua, fez-se necessário o es-tabelecimento de faixas de desempenho, para acaracterização dos tipos de tarefas que cadagrupo de pessoas é capaz de realizar. A cons-trução dessas faixas de desempenho é um traba-lho complexo, pois as habilidades manifestas noteste não são lineares, isto é, uma pessoa podeerrar alguns itens considerados fáceis e acertar osmais difíceis, por diversos motivos, como a mai-or familiaridade com este ou aquele tema.

A definição das faixas de desempenhotem por base a análise dos itens que a maioriadas pessoas com um determinado escore acer-ta. Os organizadores do INAF estabeleceram umpatamar de 70% de acertos para considerarque determinado grupo acerta um determinadoitem com muita freqüência e decidiram queseriam considerados analfabetos apenas osentrevistados que não acertaram nenhum ou atédois itens, lembrando que alguns itens solicita-vam apenas o reconhecimento de partes escri-tas e não a decodificação de letras. A escolhadesse termo pelos responsáveis pelo indicadorvisa chamar a atenção para uma parcela da po-pulação que, por não saber lidar minimamente

com textos escritos, encontra-se em uma con-dição grave de exclusão social. Os três níveis dealfabetismo estão assim descritos no livroLetramento no Brasil:

§ Nível 1 de alfabetismo – corresponde àcapacidade de localizar informações explí-citas em textos muito curtos. Acertaram de3 a 9 questões.§ Nível 2 de alfabetismo – correspondeàquelas pessoas que conseguem localizarinformações em textos curtos e localizar in-formações em textos de extensão média.Acertaram de 10 a 15 questões.§ Nível 3 de alfabetismo – corresponde àcapacidade de ler textos mais longos, po-dendo orientar-se por subtítulos, localizarmais de uma informação, de acordo comcondições estabelecidas. Acertaram de 16 a20 questões. (Ribeiro, 2003, p. 18-19)

A Tabela1 e a Tabela 2 apresentam asfaixas de desempenho no teste, por sexo.

Observamos que as mulheres apresentamum melhor desempenho no teste com uma con-centração maior nos níveis 2 e 3 de alfabetismo.

Trabalhadoras e donas-de-casa

Já a partir das primeiras análises realiza-das, observamos que o grupo das mulheres nãopoderia ser tratado como homogêneo. Parte doesforço recente e dos debates no âmbito dosestudos de gênero tem sido exatamente na di-reção de indicar a pluralidade de lugares sociaisque diferentes grupos de homens e mulheresocupam, buscando evitar abordagens bipolaresque opõem homens contra mulheres (Carvalho,1999a; Bruschini, 1992).

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Segundo raciocínio apresentado por Ri-beiro (1999), no caso dos estudos de letramento,o grupo de mulheres poderia ser dividido empelo menos duas unidades menores: as mulhe-res que trabalham fora e as donas-de-casa.Dessa forma, decidimos dividir o grupo de mu-lheres em donas-de-casa (27% da amostra dasmulheres) e aquelas que trabalham fora (50% daamostra de mulheres) e comparar seus resulta-dos com o grupo de homens que trabalham fora(77% da amostra de homens). Ficaram de fora osdesempregados, estudantes, aposentados e outros,de ambos os sexos, pela pluralidade de ocupações.

Após essa escolha, os resultados foramdesagregados nos três grupos ocupacionais. Pas-samos então a analisar os resultados obtidos porgrupo, tanto em relação ao total de acertos noteste como questão a questão. Percebemos que,no teste, as mulheres apresentavam um resultadosuperior ao dos homens de forma geral. Ao se se-parar as informações por grupo ocupacional, a di-ferença entre homens e mulheres que trabalhamfora aumenta favoravelmente a estas. Por outrolado, quando se analisaram os resultados questãoa questão, em grande parte delas, as mulheres quetrabalham apresentaram um resultado significati-vamente superior ao dos dois outros gruposocupacionais. Em alguns itens, as donas-de-casaapresentavam um resultado superior ao dos ho-mens que trabalham.

Para compreender essas diferenças, op-tou-se pela construção de um modelo estatís-tico, realizada por um profissional da área1. Oobjetivo na construção do modelo era verificarse as diferenças observadas entre as proporçõesmédias de acertos nos três grupos ocupacionaiseram estatisticamente significativas, isto é, se asdiferenças observadas não eram apenas um errode amostragem. Não bastava comparar as mé-dias dos resultados dos grupos, pois há umasérie de variáveis, tais como escolaridade, ida-de, renda ou cor, que podem influenciar os re-sultados encontrados. No modelo estatístico, épossível comparar os diferentes grupos contro-lando a influência do conjunto de variáveisselecionadas e, assim, a diferença, quando

observada, dever-se-á a características internasdesses grupos.

A escolha do trabalho como critério dedistinção no grupo de mulheres, há muito estápresente nas discussões da sociologia do trabalho.Várias autoras, entre elas, Daniele Kergoat (1986),Helena Hirata e Daniele Kergoat (1994) e, no Bra-sil, Elizabeth Souza Lobo (1991) e CristinaBruschini (1990; 1992; 1994; 1998), têm se pre-ocupado com o lugar que a mulher trabalhadoraocupa na sociedade capitalista. Em linhas gerais,elas ressaltam que a diferença entre os sexos notrabalho é, muitas vezes, negada, para ocultar a ex-ploração que as mulheres sofrem, por exemplo, aose deixar de lado as ocupações precárias e desva-lorizadas que se somam ao trabalho doméstico.

É importante ressaltar que a separaçãonos grupos ocupacionais: homens que traba-lham, mulheres que trabalham e donas de casa,ocorreu a partir de um item do questionárioque perguntava ao entrevistado “Qual destas éa sua situação atual de trabalho?” Sendo pos-sível apenas a escolha de uma opção:

(1) Está trabalhando(2) Está desempregado(3) Está aposentado(4) Está procurando emprego pela primeira vez(5) Nunca trabalhou e não está procurandoemprego(6) É dona-de-casa(7) Outra situação (vive de renda, recebe pen-são, inválido etc.)(8) Não sabe/ não respondeu

Pode-se argumentar da fragilidade em seconstruir a análise a partir da resposta a um únicoitem do questionário, uma vez que algumas des-sas escolhas poderiam ser sobrepostas: a pessoavive de renda e é dona-de-casa ou está aposen-tada e é dona-de-casa etc. Nos dois exemploscitados, é possível pensar que as mulheres quedeclararam ser donas-de-casa, apesar da hipoté-

1. Rinaldo Artes, doutor em Estatística pela Universidade de São Paulo, traba-lhou voluntariamente no apoio à pesquisa ao construir o modelo estatístico.

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tica possibilidade de outra escolha, estão descre-vendo o lugar social em que se colocam. E é paradar visibilidade a este lugar social das donas-de-casa que se privilegiou este grupo ocupacional.

A Tabela 3 apresenta o desempenho noteste segundo o grupo ocupacional e demons-tra, também, que as mulheres que trabalham têmum desempenho melhor do que os homens quetrabalham. A análise inferencial apresentada aseguir confirma essa informação. No caso dasdonas-de-casa, o desempenho concentra-se nosníveis 1 (3 a 9 acertos) e 2 de alfabetismo (10a 15 acertos).

A verificação da existência de diferençasignificativa quando os indivíduos são iguais emtodas as variáveis selecionadas, exceto nosgrupos ocupacionais, foi feita por meio doajuste de um modelo estatístico. A escolha dasvariáveis explicativas baseou-se em pesquisasquantitativas já realizadas na área educacional(Ribeiro, 1999), as quais indicam que uma par-cela do desempenho em um teste de proficiên-cia pode ser explicada por esse conjunto decaracterísticas da população, assim como nosresultados das análises já realizadas a partir doINAF e descritas no livro Letramento no Brasil.

Variáveis demográficas

As variáveis descritas a seguir tiveramseus possíveis efeitos controlados na constru-ção do modelo estatístico.

Idade

Esse preditor de desempenho também

está presente em outras pesquisas (IALS, 2000).Parte dos respondentes do INAF está em umafaixa etária em que a freqüência escolar aindaé uma realidade, principalmente entre os 15 e24 anos. É possível que o uso que esses jovensfaçam de leituras e materiais escritos no espa-ço escolar possa facilitar a participação no testee no manuseio dos materiais utilizados.

As faixas etárias escolhidas foram: de 15a 24 anos; de 25 a 34 anos; de 35 a 49 anos;e de 50 a 64 anos.

A Tabela 4 apresenta as diferenças poridade e ocupação.

A maior parte das donas-de-casa encon-tra-se na faixa de 25 a 34 anos, período em quemuitas mulheres deixam de trabalhar no merca-do formal para cuidar de seus filhos pequenos.Esse dado é complementado com a freqüênciade mulheres na faixa de 35 a 49 anos que es-tão trabalhando. Vale ressaltar a proporção demoças entre 15 e 24 anos que se declaramdonas-de-casa: próximo a 20%.

Cor

A questão da raça/cor foi apresentada aoentrevistado segundo as categorias utilizadas peloIBGE (branca, preta/negra, parda, amarela e indí-gena). O acréscimo do termo negra, que costumaser usado nos estudos sociológicos para indicarraça e não cor, provavelmente visava facilitar acompreensão ou escolha do entrevistado. Asmesmas categorias são freqüentemente utilizadasnos trabalhos de coleta de dados (Telles, 2002)2.

Os dados foram organizados como: 1.

2. Devemos lembrar que, nos meios acadêmicos, discute-se sobre asdificuldades e incorreções em se trabalhar com as categorias do IBGE(Telles, 2003).

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brancos e 2. negros (incluindo os pretos e par-dos). Desconsideramos nessas análises os gru-pos amarelo (70 entrevistados, correspondendoa 3,5% da amostra) e indígena (68 entrevista-dos, correspondendo a 3,4% da amostra), porsua baixa representatividade. A denominaçãonegros, agregando os dados quantitativos refe-rentes a pretos e pardos, também é utilizadapor Hasenbalg (1979) e Silva (1980).

A Tabela 5 ilustra a distribuição dos gru-pos ocupacionais por raça. Observa-se uma maiorpredominância de mulheres brancas donas-de-casa, contrapondo-se a uma maior freqüência demulheres pretas no mercado de trabalho.

Variáveis culturais eeducacionais

Escolaridade

Várias pesquisas indicam que a escolarida-de é um forte preditor do desempenho em testesde proficiência (OECD-IALS, 2000; OECD-PISA2000; Brasil-SAEB 2001). Segundo relatório doIALS, cada ano de escolaridade aumenta em 10pontos o escore do desempenho naquele teste.

Para a organização dos dados de esco-laridade, trabalhamos com quatro faixas: 1) atéprimário completo, que corresponde ao EnsinoFundamental I; 2) até ginásio completo, quecorresponde ao Ensino Fundamental II; 3) até

colégio completo, que corresponde ao EnsinoMédio; e 4) até Superior Completo.

A Tabela 6 apresentam as faixas de es-colaridade por grupo ocupacional.

A escolaridade das mulheres trabalha-doras é superior na comparação com os ho-mens trabalhadores e com as donas-de-casa.Esse resultado pode ter influência no desem-penho geral no teste. As donas-de-casa apre-sentam uma escolaridade mais baixa compara-da com a dos homens que trabalham. Essesresultados coincidem com estudos na área degênero, que indicam uma maior escolaridadedas mulheres na comparação com os homens(Carvalho,1999b).

Gosto pela leitura

Segundo relatório do IALS, o escore deletramento no teste tem uma relação positivacom a prática de leitura cotidiana (OECD-IALS,2000). Também Carvalho e Moura (2003) res-saltam, ao analisarem os resultados do INAF2001, que as mulheres possuem uma relaçãomais positiva e freqüente com as práticas deleitura. Qual a influência dessa melhor relaçãocom a leitura no desempenho final no teste?

Para verificar essa hipótese, foi acrescen-tada ao modelo estatístico uma pergunta (ques-tão 17) do questionário de caracterização, pormeio da qual se indagava ao entrevistado se ele“gosta ou não gosta de ler para se distrair oupassar o tempo”. Caso o gosto pela leitura, con-troladas as demais variáveis, se mostrasse umavariável preditora mais poderosa que o sexo (ougrupo ocupacional) dos respondentes, podería-mos afirmar que os melhores resultados no tes-

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te não decorreriam do fato de ser homem oumulher, trabalhar fora ou ser dona-de-casa, masestariam associadas a diferentes formas de apro-priação da leitura. No modelo estatístico apre-sentado a seguir, observamos que o gosto porleitura é uma variável preditora do resultado fi-nal. No entanto, assim como o conjunto dasoutras variáveis elencadas, não explica a diferen-ça encontrada entre os grupos ocupacionais.

Para a análise, as respostas foram organiza-das em dois grupos: 1) gosta (englobando tantoos que declararam gostar muito e gostar pouco);e 2) não gosta (Tabela 7).

As mulheres trabalhadoras são as que

com maior freqüência declaram gostar de lercomo passatempo, seguidas das donas-de-casa.Variável situaçãosocioeconômica

Critério de Classificação Econômica Brasil

– Critério Brasil

O Critério Brasil inclui informações arespeito da posse de itens materiais e o grau deinstrução do chefe da família, o que permite amelhor representação das classes econômicas,independente de pequenas variações de renda.

As faixas utilizadas no modelo estatísticosão: Classe A/B; Classe C; Classe D/E (Tabela 8).

Observa-se que não há diferença nasdistribuições dos grupos.

Na construção do modelo estatístico, fez-se necessário a inclusão das possíveis interaçõesde primeira ordem entre os fatores (grupo, es-

colaridade, idade, gosto por leitura, Critério Bra-sil e cor) no modelo principal. Dizemos que existeuma interação de primeira ordem entre dois fato-res quando a diferença entre as médias de um dosfatores varia conforme o nível do segundo fator.Por exemplo: pode-se ter resultados semelhantesentre homens e mulheres considerando os anal-fabetos, mas resultados diferentes quando se con-sideram pessoas com escolaridade alta. Nessecaso, dizemos que existe interação entre sexo eescolaridade. Uma vez ajustado o modelo prin-cipal, os efeitos não significativos (adotando-seo nível de significância de 5%) foram sendoremovidos do modelo, gerando modelos reduzi-dos. Isso foi sendo feito até que não restassemefeitos de interação não significativos.

A construção do modelo permite con-cluir que, uma vez controlados os fatores, hádiferença estatisticamente significativa entre ostrês grupos ocupacionais analisados (P=0.009).

O próximo passo consistiu na compara-ção das médias dos três grupos entre si. Isso foifeito por meio do teste de comparações múlti-plas de Turkey (ver Neter et al., 1990), o qualnos permitiu concluir que a mulher que traba-lha tem um desempenho médio melhor do ho-mem que trabalha (P<0,001) e da dona-de-casa(P<0,001). Por outro lado, não se encontroudiferença significativa no desempenho médio(proporção média de acertos) de homens quetrabalham e dona-de-casa (P=0.342).

Outra informação relevante é que asinterações que envolvem os grupos não foramsignificativas. Isso sugere que as diferençasencontradas entre os três grupos ocupacionaisindependem do grau de escolaridade, da idade,do gosto por leitura, da classe econômica e dacor do participante.

Análise questão a questão

O interesse pela análise das questões doteste por grupo ocupacional deve-se à inexistênciade outros estudos que os analisem conforme essemodelo, separando o teste em unidades menores,no caso, questão a questão. Se há diferenças no

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conjunto do teste, quando se analisa o total deacertos ou os níveis de alfabetismo, em que pon-to específico, isso é, em que item da prova essadiferença pode ser encontrada? Segundo os pró-prios organizadores do INAF, o teste abarca um re-duzido número de práticas sociais de letramento,entre as diversas existentes, e que podem ser trans-formadas em questões. Juntando a isso a idéia deque as práticas sociais de leitura são apropria-das diferentemente por mulheres e homens,cabe indagar em que questões específicas asdiferenças são encontradas.

Uma análise interna das questões doteste exigiria um estudo lingüístico que explo-rasse a construção das questões e o conjuntode habilidades que cada uma delas mensura. Sóesse aspecto já poderia transformar-se em umnovo trabalho. Assim, o que pretendemos éuma exploração inicial do conjunto de questõesdo teste, procurando analisar aspectos geraisnos itens em que se observam diferenças entreos grupos ocupacionais.

Se no teste como um todo as mulheresque trabalham apresentam um resultado melhordo que os outros dois grupos, essa diferença semantém para todas as questões? Há questõesem que as donas-de-casa se saem melhor doque os homens que trabalham? Que caracterís-ticas possuem essas questões? A Tabela 9apresenta o índice de acertos por questão eocupação. Por exemplo, acertaram a primeira

questão 87% das mulheres que trabalham, 81%das donas-de-casa e 80% dos homens que tra-balham e assim sucessivamente. No conjunto, asmulheres que trabalham apresentam um maioríndice de acertos em todas as questões do queos homens que trabalham e as donas-de-casa.

Em uma primeira análise, algumas ques-tões se sobressaem e merecem atenção. A ques-tão 5, por exemplo, solicitava que o entrevistado,a partir da reprodução de um cartaz de vacina-ção para idosos, informasse “Qual o dia e mês emque se inicia a vacinação?” Foi a questão queobteve o maior índice de acertos em todos osgrupos. Essa é uma pergunta cuja resposta éimediata e representa uma situação cotidiana: alocalização de uma informação explícita em umanúncio. O mesmo se pode dizer da questão 4,em que, perante o mesmo cartaz, solicitava-seque se dissesse “A partir de que idade as pesso-as podem tomar a vacina gratuitamente?”

Já o índice de acertos na questão 7, naqual o entrevistado deveria preencher um formu-lário, retirando as informações necessárias de umacarteira de identidade e de um envelope endere-çado, cai vertiginosamente, ficando abaixo de50% de acertos em todos os grupos, exceçãopara as mulheres que trabalham, com índice de51%. A tarefa de preencher um formulário nãoparece ser uma situação estranha ao cotidiano daspessoas, porém o nível de dificuldade que umaatividade como essa possui, ao exigir o manuseiode diferentes materiais e o correto preenchimen-to das informações solicitadas, pode ter influen-ciado seu baixo índice de acertos.

As questões 16 e 20 são as que apresen-taram piores índices de acertos para todos osgrupos, abaixo dos 30%. Na questão 16, após aleitura de um conto popular envolvendo um ca-boclo, um padre, um estudante e um bagageiro,no qual o caboclo mostra ser o mais esperto detodos, o entrevistado deve responder por escritoàs indagações: “Quem tem mais estudo sempre sedá melhor na vida? A história confirma essa fra-se? Por quê?” Ângela Kleiman (2003), em artigopublicado na coletânea Letramento no Brasil, cri-tica esse item do teste, que se contrapõe ao senso

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comum, no qual a educação é vista como possi-bilidade de ascensão social, uma vez que, noconto, a esperteza do caboclo, que possivelmentepossui menos escolaridade, é o determinante parasua conquista. Essa dupla mensagem provavel-mente dificultou o índice de acertos.

A questão 20 obteve o mais baixo índi-ce de acertos, provavelmente por ser a últimado teste e exigir que o entrevistado localizeuma informação não explícita em uma notíciaque trata dos direitos dos consumidores.

A Tabela 10 (nas páginas 575 e 576) apre-senta as conclusões obtidas a partir da regressãologística realizada separadamente nas questões doteste. A coluna 2 indica em que questões há dife-renças na chance de acertar uma questão estandoem um grupo ocupacional. Essa informação éapresentada por meio dos valores de nível designificância, quando a diferença for estatistica-mente significativa e tendo controlado a possívelinfluência das outras variáveis escolhidas como,por exemplo, compara-se hipoteticamente umamulher que trabalha e um homem que trabalhacom igual escolaridade, cor, idade, gosto por lei-tura e Critério Brasil. A única diferença entre os doisseria o grupo ocupacional a que pertencem. Já ascinco últimas colunas indicam as questões em quehá diferença significativa dependendo da variávelanalisada na referida questão.

Na análise de chance de acerto, observamosque em nove questões há diferença significativa naproporção média de acertos, controladas as demaisvariáveis, em todos os casos favorável às mulheresque trabalham em comparação aos homens quetrabalham ou donas-de-casa (questões: 8, 9, 10,11, 12, 14, 15, 16 e 18). O mais importante, en-tretanto, é verificar que, a partir da questão 8, orespondente tinha de escrever a resposta no ca-derno de questões do INAF, tarefa acrescida, apartir da questão 11, da leitura das instruçõespara cada questão. Como entender esse resulta-do? Até que ponto o melhor desempenho dasmulheres que trabalham pode ser creditado auma maior proficiência em cada questão ou, di-ferentemente, apenas a uma maior disposição eempatia em realizar o teste?

Quando se compara a proporção médiade acertos das donas-de-casa à dos homensque trabalham, controladas as demais variáveis,temos que para três questões (8, 9, 11) a dife-rença é significativa e favorável a elas. Vale ana-lisar separadamente cada uma.

Na questão 8, solicita-se, a partir da apre-sentação do sumário da revista, a definição de suautilidade: “para que serve esta parte da revista?”Segundo os organizadores da pesquisa, esse item:

Foi incluído no teste como um indicador dafamiliaridade do leitor com recursos para lo-calizar textos que se deseja ler ou para co-nhecer o conteúdo de uma publicação semfolheá-la toda. Ainda que sejam meios alter-nativos para buscar textos de interesse, esseé um recurso que facilita a organização edenota a familiaridade do respondente commateriais escritos diversos. (INAF, 2001, p. 9)

Conforme já descrito anteriormente, asmulheres lêem revistas com mais freqüênciaque os homens, os quais, por sua vez, preferema leitura de jornais (Carvalho; Moura, 2003). Aimportância do sumário em cada um dessesgêneros literários é diferente: enquanto na re-vista ele serve para a localização de reporta-gens de interesse, nos jornais, quando existen-te, é pouco relevante e pouco consultado. Atéque ponto esse resultado mais favorável àsdonas-de-casa deve-se ao material utilizado?

No item 9, solicitava-se ao respondenteque, após a leitura de uma notícia a respeitode como limpar a caixa d’água, indicasse “to-dos os materiais de que você precisa para lim-par a caixa d’água”. Segundo os organizadoresda pesquisa:

A maior dificuldade do item pode ser atri-buída ao fato de que solicitava-se a locali-zação de cinco itens de informação (os ma-teriais necessários para a limpeza da caixa).Como não é possível, após a primeira leitu-ra, memorizar os cinco itens, o leitor, pararesponder a pergunta, é obrigado a voltar

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ao texto e conferir se de fato citou todosos materiais necessários (INAF, 2001, p. 8).

Não há como analisar a influência doconteúdo da questão no resultado alcançado,porém se pode afirmar que a limpeza e mesmoa caixa d’água estão mais presentes no universodoméstico, de maior preocupação de donas-de-casa, do que no universo masculino. Por outrolado, qual a influência da necessária precisãode itens a serem citados para o correto preen-chimento da questão?

Por fim, na questão 11, pergunta-se, apartir de uma notícia sobre um deslizamento,“Quantas pessoas morreram por causa dodeslizamento?” Era necessária uma pequenainferência, já que a notícia trazia o nome dasvítimas. Nessa questão em especial, foi difícillevantar hipóteses que justifiquem o resultadodiferenciado, sendo necessários outros elemen-tos para sua compreensão.

As conclusões advindas da análise dascinco colunas que descrevem o resultado porquestão e variável reforçam o já descrito ante-riormente. A escolaridade e o gosto por leiturasão determinantes no resultado alcançado emtodas as questões do teste: quanto maior a es-colaridade, melhor o desempenho; e gostar deler auxilia na realização do teste. A variável Cri-tério Brasil também é determinante em dezenovequestões, com diferença favorável às classes maisaltas. Entretanto, para algumas questões, o nú-mero de respondentes por classe é insuficientepara que se diga que a diferença é estatistica-mente significativa. Nesse caso, são apresenta-das apenas as comparações estatisticamente sig-nificativas. A variável da idade passa a serdeterminante, à medida que as questões vãotendo um maior grau de dificuldade. A relaçãoé: quanto menor a idade, lembrando que o tes-te tem como faixa etária inicial os 15 anos,maior o índice de acertos. Já a variável raçaindica diferença apenas nas questões 6, 7, 10e 17, favorável aos brancos. Uma análise es-pecífica seria necessária para a compreensãodesses resultados.

Na verdade, para a compreensão de todasas diferenças anotadas acima, faz-se necessária,como já indicado, uma análise lingüística decada questão, para além das competências ava-liadas: quais as habilidades medidas em cadaquestão? O quanto o conteúdo de cada questãoestá mais associado ao universo masculino oufeminino? Enfim, uma série de perguntas quepoderiam ser construídas e que necessitariam depesquisas específicas para sua resolução.

Considerações finais: o enfoquede gênero em uma pesquisa deletramento

Antes de mais nada, cabe destacar arelevância de uma pesquisa como o INAF paraa mensuração dos níveis de alfabetismo dapopulação brasileira, o que possibilita a cons-trução de um quadro que retrata a forma comoa leitura é apropriada e utilizada pela popula-ção deste país. É importante também ressaltarque as conclusões apresentadas só foram pos-síveis pela realização de uma análise estatísti-ca mais aprofundada dos dados, realizada porprofissional capacitado na área. Parece-nosessencial que a área da Educação realize par-cerias que permitam a análise de dados paraalém da comparação de médias ou apresenta-ções descritivas das informações.

Em segundo lugar, por meio dos resul-tados diferenciados para mulheres e homens,buscamos destacar a importância de se consi-derar a perspectiva de gênero, como ferramen-ta na compreensão das diferentes práticas cul-turais, mais especificamente, na questão doletramento. O resultado inicial encontrado jáindicava que há diferença entre os desempe-nhos de homens e mulheres no INAF quando seconsideram as vinte questões do teste, comvantagem para as mulheres. Essa diferença,porém, não é propriamente uma novidade eestá descrita na literatura tanto na análise doIndicador, como em outras pesquisas educaci-onais (Millard, 1998; INAF 2001; Gilbert;Gilbert, 1998; Corrêa, 2004). O que esse estu-

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do permitiu trazer à tona foi, em primeiro lugar,a inexistência de uma homogeneidade no gru-po mulheres, rompendo a dicotomia mulher-homem tão freqüente nos estudos de gênero eem especial nos de caráter quantitativo, e colo-cando o trabalho como elemento diferenciador.Dessa forma, foi dado um passo para além dosexo do respondente ao se valorizar também olugar social ocupado pelas mulheres, separadasnos grupos de trabalhadoras e donas-de-casa.

Após essa desagregação, o resultado atécerto ponto ficou dentro do esperado: as mulhe-res que trabalham fora alcançaram um índice deacertos maior comparados aos homens que tra-balham e às donas-de-casa, mas chama a aten-ção a semelhança nos resultados entre homensque trabalham e donas-de-casa. A carência debibliografia que apresente informações a respei-to das donas-de-casa e a ausência desse grupode forma desagregada, nas estatísticas produzidaspelos principais institutos de pesquisa, nos forne-cem poucos elementos para analisar essa seme-lhança. Nossa insistência em destacar o grupo dedonas-de-casa e seu desempenho decorre, entreoutros motivos, dessa mesma carência, num es-forço por começar a preencher essa lacuna.

Além da análise do desempenho total noteste, pretendeu-se também explorar a fundo odesempenho por questão. Os resultados encon-trados indicam que em nove das vinte questõesos índices médios de acertos das mulheres quetrabalham fora são superiores a um ou aos doisoutros grupos. Não há diferenças nas questõesiniciais, consideradas hipoteticamente mais sim-ples, assim como nas últimas questões, consi-deradas as de mais difícil resolução.

Mesmo não realizando uma análise a-profundada dessas questões em seu aspecto deconstrução lingüística, podemos levantar hipótesessobre a influência que o conteúdo solicitado emcada questão pode ter no resultado alcançado pe-los diferentes grupos. O que tem como conseqü-ência fundamental a preocupação em considerar sehá elementos que possam estar mais próximos deconhecimentos prévios ou de interesses específicosde homens ou mulheres, que deveria estar presen-

te tanto na elaboração das questões de um testecomo na análise de seus resultados. Se o univer-so tratado em uma determinada questão for maisfamiliar a qualquer um dos sexos, isso implicaria,hipoteticamente, uma pequena vantagem para umdos lados na resolução da questão.

O objetivo da construção de um modeloestatístico era o de garantir uma maior seguran-ça nas conclusões obtidas e, dessa forma, veri-ficar a influência de um conjunto de preditores,já discutidos na bibliografia sobre a temática, osquais poderiam explicar os resultados encontra-dos. A literatura informa que a escolaridade é opreditor principal no resultado alcançado em umteste de letramento, e relata também a influên-cia da idade, renda ou classe. Acrescentamos aessa listagem a cor e o gosto pela leitura comovariáveis explicativas.

O resultado é, poderíamos dizer, desafia-dor: controladas as influências desse conjuntode variáveis, observamos que a diferença favo-rável às mulheres que trabalham fora permane-ce na comparação com os homens que traba-lham e as donas-de-casa. Há algo além da esco-laridade, idade, renda, cor ou gosto pela leituraque influencia o desempenho de homens emulheres no Indicador. Se as análises estatísticasnos permitem chegar a tal conclusão, pouco nosauxiliam na explicação desses resultados, tarefaque cabe às Ciências Sociais. A que se devem,então, as diferenças encontradas entre as mulhe-res que trabalham e os outros dois grupos?

Sabemos, a princípio, que é fundamental oapoio em uma análise de gênero. Homens e mulhe-res apropriam-se diferentemente da leitura comopráticas sociais e culturais que têm, entre outros,significados ligados ao gênero. Essa apropriaçãodiferenciada – que se inicia normalmente no espa-ço escolar, mas não se limita a ele, pois está presen-te também nas atividades comunitárias, sociais, re-ligiosas etc. – produz as diferenças observadas.Estudos qualitativos sobre as práticas de leitura esobre os processos de letramento, que consideremcom profundidade o gênero como categoria deanálise, talvez possam abrir caminhos para a expli-cação que aqui permanece como indagação.

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Recebido em 12.09.06

Aprovado em 13.08.07

Amélia Cristina Abreu Artes, doutoranda em Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de SãoPaulo, é docente da Universidade Bandeirante de São Paulo.