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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X INCLUSÃO PELA CIÊNCIA: O CASO DO PROJETO MENINAS NO MUSEU DE ASTRONOMIA E CIÊNCIAS AFINS (MAST) Sandra Benitez Herrera 1 Patrícia Figueiró Spinelli & Ana Paula Germano 2 Resumo: Sabe-se que o número de mulheres presentes nas carreiras científicas é significativamente menor que o número de homens, especialmente nas Ciências Exatas e Engenharias. Um levantamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que permite consultar o percentual de mulheres empregadas em áreas científicas mostra que a média mundial é de 28% de mulheres compondo os quadros de pesquisadores ativos. Considerando que a ciência deva ser usada em benefício de todos, ao excluirmos as mulheres do processo de produção do conhecimento científico, não só estamos abrindo mão de 50% da capacidade intelectual para o campo da ciência, como também estamos dando a chance para que soluções científicas e tecnológicas voltadas ao bem-estar social de uma parte da população sejam possivelmente desconsideradas. Assim sendo, o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), que tem como missão ampliar o acesso da sociedade ao conhecimento científico e tecnológico, desenvolve o projeto Meninas no Museu de Astronomia e Ciências Afins, voltado para a formação continuada de meninas do Ensino Médio em astronomia e outras áreas para estimulá-las a se interessarem pela ciência. Neste congresso, apresentaremos os primeiros resultados da pesquisa de avaliação do projeto a partir do ponto de vista das participantes, além de discutirmos o papel deste tipo de projetos na desconstrução das premissas sócio-culturais sobre a presença feminina nas carreiras científicas. Keywords: Gênero e ciência; inclusão de mulheres na ciência; ações educativas em museus de ciência. Introdução A ciência é uma instituição social que não é unívoca e nem neutra, mas histórica e geograficamente situada. E susceptível, portanto, de reproduzir os mesmos conflitos sociais que permeiam a sociedade da época e do local em que é produzida, podendo ser utilizada com fins políticos e como justificativa para a dominação (BOURDIEU, 1999). Um desses conflitos sociais é a segregação de gênero na ciência que causa dois efeitos bem diferenciados (OLINTO, 2011): 1) Segregação horizontal ou gender tracking, que faz com que o número de mulheres presentes nas ciências exatas e da terra seja significativamente inferior que o número de homens, ao mesmo tempo que produz a feminização excessiva de outras carreias, como por exemplo as áreas da saúde (medicina, biologia, farmácia...); 2) Segregação vertical ou teto de cristal, que faz com que as mulheres que começam uma carreira científica não consigam avançar com a mesma velocidade pela escala acadêmica, até posições de alto nível e tomadas de decisões, que seus companheiros do sexo masculino. Uma consequência disto é a significativa diminuição do número de mulheres em níveis mais altos da carreira. A segregação vertical opera também em campos predominantemente 1 Museu de Astronomia e Ciências Afins MAST, Rua General Bruce, 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Museu de Astronomia e Ciências Afins MAST, Rua General Bruce, 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, Brasil.

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

INCLUSÃO PELA CIÊNCIA: O CASO DO PROJETO MENINAS NO MUSEU DE

ASTRONOMIA E CIÊNCIAS AFINS (MAST)

Sandra Benitez Herrera1

Patrícia Figueiró Spinelli & Ana Paula Germano2

Resumo: Sabe-se que o número de mulheres presentes nas carreiras científicas é significativamente menor que o

número de homens, especialmente nas Ciências Exatas e Engenharias. Um levantamento da Organização das Nações

Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que permite consultar o percentual de mulheres empregadas em

áreas científicas mostra que a média mundial é de 28% de mulheres compondo os quadros de pesquisadores ativos.

Considerando que a ciência deva ser usada em benefício de todos, ao excluirmos as mulheres do processo de produção

do conhecimento científico, não só estamos abrindo mão de 50% da capacidade intelectual para o campo da ciência,

como também estamos dando a chance para que soluções científicas e tecnológicas voltadas ao bem-estar social de uma

parte da população sejam possivelmente desconsideradas. Assim sendo, o Museu de Astronomia e Ciências Afins

(MAST), que tem como missão ampliar o acesso da sociedade ao conhecimento científico e tecnológico, desenvolve o

projeto Meninas no Museu de Astronomia e Ciências Afins, voltado para a formação continuada de meninas do Ensino

Médio em astronomia e outras áreas para estimulá-las a se interessarem pela ciência. Neste congresso, apresentaremos

os primeiros resultados da pesquisa de avaliação do projeto a partir do ponto de vista das participantes, além de

discutirmos o papel deste tipo de projetos na desconstrução das premissas sócio-culturais sobre a presença feminina nas

carreiras científicas.

Keywords: Gênero e ciência; inclusão de mulheres na ciência; ações educativas em museus de ciência.

Introdução

A ciência é uma instituição social que não é unívoca e nem neutra, mas histórica e

geograficamente situada. E susceptível, portanto, de reproduzir os mesmos conflitos sociais que

permeiam a sociedade da época e do local em que é produzida, podendo ser utilizada com fins

políticos e como justificativa para a dominação (BOURDIEU, 1999). Um desses conflitos sociais é

a segregação de gênero na ciência que causa dois efeitos bem diferenciados (OLINTO, 2011): 1)

Segregação horizontal ou gender tracking, que faz com que o número de mulheres presentes nas

ciências exatas e da terra seja significativamente inferior que o número de homens, ao mesmo

tempo que produz a feminização excessiva de outras carreias, como por exemplo as áreas da saúde

(medicina, biologia, farmácia...); 2) Segregação vertical ou teto de cristal, que faz com que as

mulheres que começam uma carreira científica não consigam avançar com a mesma velocidade pela

escala acadêmica, até posições de alto nível e tomadas de decisões, que seus companheiros do sexo

masculino. Uma consequência disto é a significativa diminuição do número de mulheres em níveis

mais altos da carreira. A segregação vertical opera também em campos predominantemente

1 Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST, Rua General Bruce, 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, Brasil.

2 Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST, Rua General Bruce, 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, Brasil.

2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

femininos, onde os postos de maior prestígio e poder são, também, normalmente ocupados por

homens.

Neste trabalho vamos abordar a questão da segregação horizontal de gênero, que se origina

pela diferença de expectativas e atitudes para com os meninos e as meninas por parte da família, dos

professores e da sociedade em geral (VASCONCELLOS & BRISOLLA, 2009) no âmbito das

ciências exatas. Especificamente, pretende-se analisar o projeto de divulgação da ciência Meninas

no Museu de Astronomia e Ciências Afins voltado para estudantes de Ensino Médio do sexo

feminino.

Situação atual das mulheres na ciência

No quadro internacional, um levantamento da Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)3 feito em 2015, oferece a oportunidade de consultar as

porcentagens de mulheres com emprego em alguma área científica (especificamente nas áreas

conhecidas na literatura internacional como STEM – Science, Technology, Engineering and

Mathematics), e como elas variam de país a país. É notável que a disparidade entre homens e

mulheres nas ciências ditas “duras” é um fenômeno que afeta a maioria dos países. Neste contexto,

a América Latina tem as maiores porcentagens de mulheres na ciência do mundo, enquanto que os

países anglo-saxões – supostamente mais avançados no que diz respeito às condições de igualdade

dos direitos dos cidadãos – ficam atrás na contagem.

No Brasil, estima-se que o número de doutoras em ciências exatas e da terra seja de 31%,

segundo estatísticas do Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq de 2015. Este dado parece positivo

num primeiro momento, pois se encontra acima da média mundial de 28%. Não obstante, em

algumas disciplinas como por exemplo Astronomia, não se tem observado um aumento

significativo do número de mulheres pesquisadoras nas últimas duas décadas, tal como aponta o

estudo realizado por Cesarsky & Walker (2010), que contabiliza os números absolutos de mulheres

pertencentes à União Internacional de Astronomia (IAU) de países com mais de 40 membros, tal

como é o caso do Brasil. O estudo mostra que em 2009, no Brasil, apenas 22,7% dos astrônomos

eram mulheres. Essa porcentagem atualmente é de 28%, considerando estatísticas mais recentes da

3 Disponível em: http://uis.unesco.org/apps/visualisations/women-in-science/. Acesso em: maio de 2017.

3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Sociedade Astronômica Brasileira4.

Desde os primeiros anos de escolarização, as meninas são direcionadas para as áreas de

cuidados e humanas, e são pouco encorajadas a gostarem das disciplinas de ciências, o que causa a

menor concentração posterior de mulheres em carreiras e trabalhos na área científica (OLINTO,

2011). O preconceito sobre a falta de capacidades cognitivas para o desempenho científico é um dos

argumentos mais comuns para justificar o afastamento das mulheres das carreiras científicas. A

escassez de modelos apropriados a serem emulados pelas meninas nas ciências e nas engenharias,

se destaca como um dos problemas fundamentais na perpetuação desta segregação (VIEGAS,

2013).

Pesquisas recentes mostram que o preconceito sobre as capacidades intelectuais das

mulheres aparece desde cedo na infância. A revista Science publicou um artigo no início do ano de

2017 que apontou que as meninas aprendem a subestimar o próprio gênero a partir da idade de 6

anos, quando começam a associar pessoas descritas como “especialmente inteligentes” ou

“brilhantes” ao sexo masculino (BIAN et al., 2017). Outros estudos apontam que o estereotipo

social de que os homens são melhores em matemática do que as mulheres, de fato prejudica a

performance e mina o interesse destas pela área e outras afins (SPENCER et al., 1999).

Essas ideias acompanham as meninas durante todo o Ensino Fundamental e Médio, fazendo

com que na fase crucial de decisão da carreira, muitas acabem optando por cursos tradicionalmente

associadas a vocação feminina socialmente construída (de cuidar e ensinar), por ainda vigorar a

ideia de que mulheres não são aptas para carreiras nas ciências exatas e da terra. Isto traz

consequências negativas fomentando a desvalorização sistemática das profissões marcadamente

femininas no mercado de trabalho (OLINTO, 2011).

Um outro aspecto importante é a influência do entorno mais próximo, em particular dos

pais, na escolha da carreira das filhas. Para uma menina acabar optando por uma carreira em

ciências exatas, é determinante ter ambos pais com nível superior, sendo a influência da mãe

universitária considerada crucial (VASCONCELLOS & BRISOLLA, 2009).

Os Museus de Ciência como pilar da igualdade de gênero

4 Confira no site da Sociedade Astronômica Brasileira http://www.sab-astro.org.br/socios. Acesso em: maio de 2017.

4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Os museus de ciência são espaços onde o visitante não só conhece o patrimônio nacional em

ciência e tecnologia e realiza atividades de divulgação da ciência. São também lugares para o

debate, a troca de experiência e o fomento do exercício da cidadania. Na atualidade, os museus de

ciência podem atuar como uma ferramenta para a promoção da inclusão social, atingindo diversos

públicos, especialmente, aqueles desacostumados ou impossibilitados de frequentá-lo por

encontrarem-se em condições mais desfavoráveis economicamente ou com menor acesso à bens

culturais (FALCÃO et al., 2010). Essas instituições, não podem mais ser espaços de perpetuação da

opressão e invisibilização da mulher nas diferentes áreas. Pelo contrário, devem ser os locais de

provocação e desafio dos preconceitos e injustiças, incentivando o cidadão a se questionar sobre o

senso comum que privilegia o saber e a produção do conhecimento científico exclusivamente para

parte da população. O ambiente museal deve servir de ferramenta para a inclusão social e promoção

da participação de todos os indivíduos.

Assim sendo, o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), que tem como missão

ampliar o acesso da sociedade ao conhecimento científico e tecnológico, desenvolve o projeto

Meninas no Museu de Astronomia e Ciências Afins (a partir de agora referenciado como Meninas

no Museu), voltado para a formação continuada de meninas do ensino médio em astronomia e

outras áreas para estimulá-las a se interessarem pela ciência.

O Projeto Meninas no Museu

Perante a necessidade de fomentar modelos para as jovens, com a premissa de reverter

hábitos culturais socialmente construídos e usualmente reforçados na escola, a Coordenação de

Educação em Ciências (COEDU) do MAST, vem organizando desde 2015 o Dia das Meninas,

inspirado em experiências europeias (VÁMOS, 2012), mas contextualizado na realidade brasileira.

Essa ação educativa teve excelentes resultados de participação de público tanto escolar quanto

espontâneo nas edições de 2015, 2016 e 2017, e foi precursora do projeto Meninas no Museu.

Assim, surgiu a oportunidade de promover atividades continuadas para as meninas participantes

daquela comemoração indo além da ação isolada, já que muitas delas manifestaram “querer mais”.

O projeto Meninas no Museu, iniciado em 2016, é uma ação de divulgação da ciência voltada para

estudantes do Ensino Médio do sexo feminino – sete, nesta primeira edição – com o intuito de

motivá-las a se interessarem pela ciência e prepará-las para serem mediadoras em museus de

ciência. O projeto faz uso a Astronomia, como ferramenta inspiradora, visando engajar as

estudantes em diferentes disciplinas científicas. Além de promover o interesse das estudantes na

5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

ciência, o projeto Meninas no Museu, pretende oferecer formação específica na mediação em

museus de ciência, para que elas possam atuar na área profissionalmente. É por isso que vários

encontros de formação abordaram temas relacionados com a educação em museus, pedagogia

museal e a prática de mediação em exposições e atividades de divulgação do MAST.

Para levar a cabo essas metas, se definiram três momentos diferenciados para o Projeto (ver

o Quadro I). Os primeiros seis meses, de julho a dezembro de 2016, consistiu em uma formação

continuada em diferentes temas de Astronomia e divulgação em ciência, com participação

quinzenal das estudantes. Esta etapa do projeto já foi concluída e constituiu a base da pesquisa

apresentada neste artigo. A partir de fevereiro de 2017, as estudantes começaram atuar como

mediadoras nas ações regulares de divulgação do MAST, que acontecem nos fins de semana, e nos

eventos temáticos no decorrer do ano. Durante esta segunda etapa as estudantes também estão

trabalhando no desenho e desenvolvimento de experimentos e atividades de divulgação da ciência

baseados nos conhecimentos científicos e pedagógicos adquiridos durante a primeira etapa. A

terceira fase do projeto acontecerá em outubro de 2017, quando as estudantes exibirão os

experimentos e atividades desenvolvidos ao longo do ano no polo do MAST durante a Semana

Nacional de Ciência e Tecnologia 2017.

Quadro I: Etapas do projeto Meninas no Museu de Astronomia e Ciências Afins.

Etapa Período Estado

1. Formação teórico-prática Julho a dezembro 2016 Concluído

2. Desenho de experimentos e mediação Fevereiro a setembro de 2017 Em andamento

3. Apresentação de atividades e

encerramento do projeto

Outubro a dezembro 2017 Não iniciado

Fonte: Pesquisa Inclusão de Gênero pela Ciência: o caso do projeto “Meninas no Museu de Astronomia e Ciências

Afins”. Sandra Benitez-Herrera, 2017.

O primeiro período de formação consistiu em uma série de palestras e oficinas, de cunho

teórico e prático, procurando tratar temas relevantes de forma dinâmica e descontraída, de maneira a

estimular o interesse das estudantes. Estas, por sua vez, foram encorajadas a fazer perguntas e

interagir com os (as) palestrantes e condutores (as) das oficinas em todo momento. Os encontros de

capacitação aconteceram nas sextas-feiras a cada duas semanas, entre às 14 e 17 horas. Além desse

período, durante um fim de semana por mês, as estudantes assistiam às atividades de divulgação do

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MAST, para se familiarizar com as mesmas e observar a prática dos mediadores. O tempo total

desta primeira etapa de formação foi de 50 horas.

O embasamento teórico para o planejamento do Projeto tomou elementos do modelo de

Free choice learning (Aprendizado por livre escolha, na tradução em português) proposto por Falk

& Dierking (2002), onde o aprendizado tem origem no próprio interesse do indivíduo e não é

imposto por agentes externos, como acontece, por exemplo, no ensino formal. Com o intuito de

promover mudanças importantes na vida e na identidade das participantes, se idealizou o projeto

como um conjunto de atividades fora da norma, de experiências transformadoras, para conseguir

uma experiência de aprendizado memorável (DIERKING, 2016). Promoveu-se especialmente

durante todo o período de formação a percepção de pertencimento (“o direito a estar presente”) das

participantes para incentivar a confiança em si mesmas e o sentimento de orgulho por ser menina.

Para compartilhar as experiências vividas foi criado um “diário de a bordo” do período de

formação, em formato de blog intitulado Cientistas de Primeira Viagem - Elas Explorando o

mundo5, onde as estudantes escreveram sobre a experiência ocorrida em cada encontro e outros

temas de interesse delas.

Quem são elas

O grupo integrante do projeto Meninas no Museu é formado por sete meninas, estudantes de

Ensino Médio, com idades entre 15-17 anos. Trata-se de uma amostra de conveniência, já que as

estudantes foram selecionadas para a realização da formação em função do gênero e da faixa etária.

Em relação ao local de moradia observamos que quatro delas moram na zona Norte da cidade de

Rio de Janeiro; duas moram na zona Oeste e uma reside na zona Sul. As quatro estudantes da zona

Norte são estudantes do Colégio Estadual Julia Kubitschek localizada na zona central do Rio de

Janeiro. Todas elas estudam em horário integral e fazem parte do programa de formação de

professores. Esta escola é parceira do MAST e suas turmas participam com frequência dos eventos

organizados pelo Museu. As quatro estudantes pertencentes a esta escola se candidataram à bolsa, e

consequentemente, a participar do projeto, após o incentivo dado por um professor colaborador do

Museu, que foi informado pelas coordenadoras do projeto sobre a oportunidade. As duas

5 Disponível em: https://cientistasdeprimeiraviagemblog.wordpress.com/. Acesso em: agosto de 2017.

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participantes que moram na zona Oeste são estudantes do Colégio Técnico da Universidade Federal

Rural de Rio de Janeiro em Seropédica. Uma delas soube do projeto por ter participado no evento

do Dia das Meninas no MAST 2016 (junto com sua mãe) e ter conhecido uma das coordenadoras,

quem passou a informação diretamente. A outra estudante já havia realizado um breve estágio no

MAST durante suas férias escolares de verão, nos meses de janeiro e fevereiro de 2016. A estudante

residente na zona Sul, estuda em uma escola particular, o Colégio São Vicente de Paulo, em Cosme

Velho, Rio de Janeiro, e conheceu o projeto no próprio Museu quando visitava, também junto com

sua mãe, a Luneta histórica 21 cm, durante o Programa de Observação de Céu (POC) oferecido para

o público do MAST todas quartas e sábados à noite (BASALLO, 2016).

Cinco estudantes integrantes do projeto Meninas no Museu, foram contempladas com uma

bolsa Jovens Talentos de pré-iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do

Rio de Janeiro-FAPERJ. As outras duas meninas fazem parte do projeto de forma voluntária por

estarem cursando o 3º ano do Ensino Médio no momento de seleção das bolsas e,

consequentemente, não serem elegíveis para o auxílio econômico.

Objetivos da Pesquisa e Metodologia

O objetivo geral deste trabalho de pesquisa foi avaliar a primeira etapa do projeto Meninas

no Museu, tomando como ponto de análise a opinião das participantes sobre sua participação. O

estudo visou proporcionar um diagnóstico do Projeto e propor novas estratégias para futuras

edições. Como objetivo específico da pesquisa, verificou-se a possível mudança de atitudes, pontos

de vista e a própria percepção das estudantes diante da ciência e a tecnologia após os encontros

dessa primeira etapa. Além disso, este trabalho procurou analisar o papel desta iniciativa na

alteração de pontos de vista das participantes preestabelecidas sobre a contribuição e a situação da

mulher na ciência.

A metodologia empregada no estudo foi quali-quantitativa e baseada no acompanhamento

das atitudes e do discurso articulado pelas participantes ao longo dos encontros. No primeiro caso,

se adotou uma postura de observador participante, de maneira a registrar os acontecimentos e

momentos vividos mais relevantes. No segundo caso, foram realizadas duas entrevistas (uma antes

do início do projeto e outra depois de completar o período de formação) bem como um grupo focal,

cuja análise foi feita utilizando o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) como metodologia

(LEFÈVRE & LEFÈVRE, 2003). Portanto, usaram-se nesta pesquisa três instrumentos de coleta de

dados, metodologia também conhecida na literatura como triangulação de métodos (MINAYO,

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2005). Notamos que contando com apenas sete casos, o estudo aqui apresentado tem uma natureza

claramente qualitativa, no entanto, o DSC trata o discurso também de maneira quantitativa através

do operador intensidade, que permite ponderar as ideias centrais identificadas nos discursos.

Complementarmente, para situar melhor as estudantes na complexa geografia sócio-

demográfica da cidade de Rio de Janeiro, se investigou as chances objetivas de promoção cultural

segundo a localização da escola e da casa familiar das participantes, seguindo a metodologia

proposta por Cazelli (2005).

Resultados

Neste artigo apresentaremos os primeiros resultados da pesquisa de avaliação do projeto a

partir da ótica das participantes, e discutimos o papel deste tipo de projetos na desconstrução das

premissas sócio-culturais sobre a presença feminina nas carreiras científicas.

Em primeiro lugar, foi delineado o perfil demográfico das estudantes, com o intuito de

conhecer a sua realidade social e as condições que possibilitam ou dificultam o acesso das jovens a

um horizonte de oportunidades mais ou menos abrangente. Em outras palavras, quis-se conhecer o

capital cultural (BOURDIEU, 1998) instalado nas famílias das estudantes e na escola que elas

frequentam. Neste contexto foi interessante constatar que os pais apoiam a participação das

estudantes no projeto e, em geral, nas suas escolhas cotidianas. Três das estudantes destacaram o

papel da mãe no apoio de suas iniciativas, em especial, no que se refere a continuação da sua

formação. Deve-se mencionar que outras duas estudantes chegaram ao Museu, e, portanto,

conheceram a oportunidade do projeto, também junto com suas mães. Isto quer dizer que, de sete

estudantes, cinco delas estão no projeto Menina no Museu por influência direta de suas mães.

Encontramos em nosso estudo, novamente, a evidência da importância dos modelos para encorajar

as meninas a avançar na sua carreira profissional e o potencial fundamental das mães de empoderar

a suas filhas.

Uma motivação fundamental da pesquisa foi conhecer as expectativas das integrantes sobre

o projeto, de forma a avaliar a adequação do mesmo e compreender se essas expectativas se

cumpriram, ao menos parcialmente, depois dos primeiros seis meses de formação. Analisando os

discursos construídos a partir da primeira entrevista, aparecia como expectativa principal aprender

coisas novas sobre assuntos científicos dos quais não conheciam muito ou não tanto quanto

gostariam. Destacaram igualmente a oportunidade de vivenciar essa experiência numa instituição

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como o MAST, o que, eventualmente, abriria portas no futuro e influenciaria de maneira positiva na

vida delas.

Nas entrevistas realizadas ao final da etapa de formação as estudantes manifestaram um alto

grau de satisfação com o projeto, justificando essa aprovação com base no aprendizado que estão

realizando em diversas áreas, o que estaria estimulando o interesse delas na pesquisa. Também foi

apontado que o Projeto “tem acrescentado na minha vida” e, novamente, destacaram os aspectos

positivos que pode trazer no futuro. Com base nos discursos analisados, constatamos que o formato

da etapa de formação foi adequado e satisfez as expectativas e desejos das estudantes. A diversidade

de temas abordados, a variedade de atividades (palestras, oficinas, debates) e a combinação da

dimensão científica com a ludicidade das oficinas de divulgação da ciência, foram apontados como

aspectos positivos do Projeto. Com base nos discursos analisados, constatamos que o formato da

etapa de formação foi adequado e satisfez as expectativas e desejos das estudantes. Como sugestão

de aperfeiçoamento as participantes sugeriram a realização de mais atividades práticas focadas na

educação em museus de ciência e outros temas de palestras. Essas respostas referentes aos

encontros e ao formato são de crucial importância para revisar o programa e sua próxima etapa.

Em relação à percepção que as estudantes tinham sobre a ciência e sua atitude perante a

mesma, antes e depois de começar o projeto, destaca-se a mudança nos discursos, especialmente, no

que se refere às próprias capacidades. Na primeira entrevista, todas as estudantes disseram achar a

ciência importante, argumentando que ela nos ajuda a entender e explicar o mundo, sendo, ademais,

uma necessidade intrínseca ao ser humano. Foi mencionada, também, a importância de dar a

conhecer as grandes descobertas da ciência à população, antecipando o que seria abordado nas

capacitações a respeito da divulgação da ciência. Nesse momento inicial, as estudantes também

consideravam o trabalho do cientista como interessante, justamente pelo fato de consistir na

investigação de coisas ainda não descobertas. No entanto, elas percebiam esse tipo de trabalho

como algo bem diferente do comum e o cientista, que foi pensado como um homem, trancado num

laboratório rodeado de aparelhos e fazendo cálculos. A partir dos discursos podemos interpretar que

as estudantes contemplavam a ciência com certa admiração, mas como se fosse algo distanciado

delas.

Na entrevista após o período de formação, todas as estudantes concordaram que o programa

tinha mudado a sua visão da ciência, trazendo-a para mais perto de sua realidade, e encorajando-as

ainda mais para seguir uma carreira científica. Com base nos discursos vemos que o Projeto tem

alterado positivamente os sentidos a respeito da ciência que existia antes de começar. Tem

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ampliado, igualmente, a imagem do cientista, que já não é considerado como um gênio, mas como

uma pessoa normal com um trabalho que todo mundo pode chegar a realizar.

Outro aspecto positivo que se destaca nos discursos foi o acesso à cientistas mulheres e

mostrar não só que elas realmente existem, mas que podem ser bem-sucedidas em suas vidas

profissionais e pessoais. Isto parece ter sido a razão da desconstrução da imagem heteronormativa

do cientista que quase todas as estudantes tinham antes de fazer parte do Projeto. Esse resultado é

de grande relevância, pois demonstra, mais uma vez, que o acesso a modelos de referência é

fundamental para reduzir a falta de mulheres na ciência, fazendo com que as meninas acreditem no

seu potencial de poder estudar e trabalhar nas áreas científicas ao ver outras mulheres que seguiram

esse caminho.

Um outro ponto diagnosticado como positivo, foi o fato das meninas “sentirem-se mais

capazes” para entender temas referentes a ciência e tecnologia. As estudantes destacaram que a

insegurança diante a ciência e do trabalho científico havia diminuído significativamente,

comprovando que essas áreas não são tão difíceis quanto acreditavam. Inclusive, elas apontam um

sentimento de conforto em relação aos temas, pois disseram se sentir confiantes para explicar

conceitos sobre ciência que tinham aprendido nos encontros de formação a familiares e amigos.

Essa mudança na percepção das próprias capacidades foi confirmada também no grupo focal,

depois que várias meninas relataram uma experiência pessoal relacionada a uma prova para uma

instituição educativa de prestígio que elas gostariam de ter prestado, mas que, naquele momento, as

famílias não apoiaram. As protagonistas da situação manifestaram com firmeza uma mudança de

atitude, informando que se voltasse a ocorrer uma circunstância similar, elas realizariam a prova.

De fato, uma das estudantes realizou o ENEM no final do ano 2016 e passou para a faculdade de

Astronomia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Baseando-nos nos depoimentos,

percebemos que ela sentiu-se encorajada para colocar como primeiras escolhas diversas carreiras de

ciência depois de fazer parte do projeto.

Conclusões

Os resultados encontrados nesta pesquisa são relevantes para a avaliação do projeto

Meninas no Museu, pois mostram que os objetivos de apresentar a ciência como algo compreensível

e próximo, por meio de dos encontros de formação, e incentivar as estudantes a se apropriarem dos

conhecimentos científicos abordados foram cumpridos. Desta forma, nossos resultados apontam que

o Projeto influenciou o poder de decisão pessoal das participantes, levando-as a se sentirem

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empoderadas para lidar com assuntos de ciência, e o que resulta ainda mais importante, se tornando

elas mesmas, neste processo, modelos para outras pessoas, especialmente outras meninas, ao

conseguir mediar entre esses conhecimentos adquiridos e o público. Este trabalho foi um estudo

exploratório do projeto Meninas no Museu, cuja segunda e terceira etapas ainda acontecerão durante

o ano de 2017. Portanto, uma análise mais aprofundada, incorporando o material completo do grupo

focal, as falas do blog e novas entrevistas, será realizada após a finalização o Projeto.

Referências

BASALLO, T. “Ver o universo é uma coisa única" - o Programa de Observação do Céu segundo os

visitantes do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Rio de Janeiro. Monografia (especialização) –

Casa Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, Museu da Vida. 2016.

BOURDIEU, P. As desigualdades frente à escola e à cultura 1998. In: NOGUEIRA, M. A.;

CATANI, A. (Org). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 2001.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BIAN, L.; LESLIE, S. & CIMPIAN, A. Gender stereotypes about intellectual ability emerge early

and influence children’s interests. Science, vol. 355, num. 6323, p. 389-391. 2017.

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Inclusion by science: the case of the project Girls in the Museum of Astronomy and Related

Sciences (MAST)

Abstract: It is well-known that the number of women present in scientific careers is significantly

lower than the number of men, especially in STEM (Science, Technology, Engineering and

Mathematics). A survey of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

(UNESCO), which allows us to consult the percentage of women employed in scientific areas,

shows that the world average of active women researchers is about 28%. Considering that science

should be used for the benefit of all, by excluding women from the production process of scientific

knowledge, we are not only giving up 50% of the intellectual capacity in the different fields of

science, but also allowing for the scientific and technological solutions aimed at the social well-

being of a part of the population to be disregarded. Thus, the Museum of Astronomy and Related

Sciences (MAST), whose mission is to expand society's access to scientific and technological

knowledge, promotes the project "Girls in the Museum of Astronomy", aimed at the continuous

education of high-school female students in astronomy and other areas, with the goal of stimulating

them into liking science. At this conference we will present the first results of the evaluation

research from the perspective of the participants, as well as discuss the role of this type of projects

in the deconstruction of the socio-cultural assumptions on the female presence in scientific careers.

Keywords: Gender and Science. Education in science. Inclusion of women by science. Educational

actions in science museums.