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7/25/2019 imp36art09 http://slidepdf.com/reader/full/imp36art09 1/12 Im pu lso, P iracicaba, 1 5 (3 6 ): 1 1 7 -1 2 8 , 2 0 0 4  117 CaminhosdaCrítica Literária Brasileira: Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima THE PATHSOF BRAZ ILIAN LITERARY CRITICISM: ROBERTO SCHWARZ AND LUIZ COSTA LIM A Resumo A mola crítica de Roberto Schwarz pensa a relação entre o crítico e a obra di- cotomicamente: racionalidade versus irracionalidade. Luiz C osta Lima, contemporâneo de Schwarz, pensa o lugar da obra literária e do crítico tomando por base um mesmo contexto. O fenômeno da mímesis tanto explica o modo de recepção da obra literária quanto o seu modo de intelecção, pois ela não supõe exatamente a diferença , e sim a semelhança . Enfim, a concepção crítica de Roberto Schwarz e a de Luiz C osta Lima se opõem drasticamente. Contudo, tentaremos mostrar, neste artigo, que a atividade crítica de cada um deles está inserida numa mesma tradição crítica. Assim, faremos um breve questionamento sobre a existência ou não de um sistema  de crítica literária que se consolida no Brasil e, em seguida, trataremos separadamente de Roberto Schwarz e de Luiz C osta Lima, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, a dívida que esses críticos têm em relação ao nosso passado crítico. Palavras-chave CRÍTICA LITERÁRIA  BRASILEIRA – ROBERTO  SCHWARZ – LUIZ COS- TA LIMA – HISTÓRIA LITERÁRIA  BRASILEIRA. Abstract  Roberto Schwarz’s critical activity conceives the relationship between the critic and the work dichotomously: rationality vs . irrationality. Luiz Costa Lima, contemporaneous with Schwarz, conceives the place of the literary work and the place of the critic from the same context. The phenomenon of mimesis explains both the manner the literary work is received and its mode of intellection, because it does not suppose the diffé rance / difference  but the similarity  (homoiosis ). After all, the critical conception of Roberto Schwarz and Luiz C osta Lima are opposed drastically. However, in this article, we attempt to show that their critical activity belongs to the same critical tradition. Thus, we briefly question whether there is a system  of literary criticism that consolidates in Brazil and, after that, we deal with Roberto Schwarz and Luiz Costa Lima separately, trying to show, almost always, the debt which these critics have to our critical past. Keyw ords BRAZILIAN LITERARY CRITICISM – ROBERTO  SCHWARZ – LUIZ COSTA LIMA – BRAZILIAN LITERARY HISTORY. SEBASTIÃO MARQUES CARDOSO Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)/ PR sebastiaomarques@ uol.com.br 

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Caminhos da CríticaLiterária Brasileira: Roberto

Schwarz e Luiz Costa Lima

THE PATHS OF BRAZILIAN LITERARYCRITICISM: ROBERTO SCHWARZ AND

LUIZ COSTA LIMAResumo A mola crítica de Roberto Schwarz pensa a relação entre o crítico e a obra di-cotomicamente: racionalidadeversus irracionalidade. Luiz C osta Lima, contemporâneo

de Schwarz, pensa o lugar da obra literária e do crítico tomando por base um mesmocontexto. O fenômeno da mímesis tanto explica o modo de recepção da obra literária

quanto o seu modo de intelecção, pois ela não supõe exatamente a diferença , e sim a

semelhança . Enfim, a concepção crítica de Roberto Schwarz e a de Luiz C osta Lima

se opõem drasticamente. Contudo, tentaremos mostrar, neste artigo, que a atividadecrítica de cada um deles está inserida numa mesma tradição crítica. Assim, faremos

um breve questionamento sobre a existência ou não de um sistema  de crítica literária

que se consolida no Brasil e, em seguida, trataremos separadamente de RobertoSchwarz e de Luiz C osta Lima, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, a dívida que esses críticos têm em relação ao nosso passado crítico.

Palavras-chave CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA – ROBERTO  SCHWARZ –LUIZ COS-

TA LIMA – HISTÓRIA LITERÁRIA BRASILEIRA.

Abstract  Roberto Schwarz’s critical activity conceives the relationship between the

critic and the work dichotomously: rationality vs . irrationality. Luiz Costa Lima,contemporaneous with Schwarz, conceives the place of the literary work and the

place of the critic from the same context. The phenomenon of mimesis explains both

the manner the literary work is received and its mode of intellection, because it doesnot suppose the différance /difference   but the similarity   (homoiosis ). After all, thecritical conception of Roberto Schwarz and Luiz C osta Lima are opposed drastically.

H owever, in this article, we attempt to show that their critical activity belongs to thesame critical tradition. Thus, we briefly question whether there is a system  of literary

criticism that consolidates in Brazil and, after that, we deal with Roberto Schwarz andLuiz C osta Lima separately, trying to show, almost always, the debt which these

critics have to our critical past.

Keyw ords BRAZILIAN LITERARY CRITICISM – ROBERTO  SCHWARZ – LUIZ COSTA

LIMA – BRAZILIAN LITERARY HISTORY.

SEBASTIÃO MARQUES

CARDOSOUniversidade Estadual do

Centro-Oeste (Unicentro)/PR

sebastiaomarques@ uol.com.br 

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jeitos fraturados: a experiência estéticanos faz sentir nosso próprio estado (Zus- tand ).2

Para Luiz C osta Lima, a atividade críticaconsiste em, a partir da experiência estética, ten-tar dizer analiticamente aquilo que nos foi mos- trado   e reconhecido   no discurso ficcional comoprodução  de uma nova verossimilhança .

Diante do exposto, podemos dizer que aconcepção crítica de Roberto Schwarz e a de LuizCosta Lima se opõem drasticamente. Contudo,tentaremos mostrar, neste ensaio, que a atividadecrítica de cada um deles está inserida numa mes-ma tradição crítica. No caso de Luiz C osta Lima,

talvez sua experimentação em outras paragenscríticas se explique por não confi ar plenamente  no punhado de cera e no emaranhado de correntesdenossa tradição crítica. Pensando nisso, faremosum breve questionamento sobre a existência ounão de um sistema  de crítica literária que se con-solida no Brasil e, em seguida, trataremos separa-damente de Roberto Schwarz e de Luiz C osta Li-ma, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, adívida  que esses críticos têm em relação ao nosso

passado crítico.

I. O BRASIL POSSUI UM SISTEMA CONSOLIDADO DE CRÍTICA LITERÁRIA?

No Brasil, a atividade intelectual, além deescassa, sempre encontrou fortes resistências.Não nos assustemos com o termo empregadofortes resistências , pois não fazemos alusão aos pe-ríodos negros experimentados pela intelectuali-dade ao longo da H istória, como perseguição po-

lítica, deportação, exílio, tortura e outras formasde repressão utilizadas pelos Estados modernospara calar a voz crítica e insatisfeita daqueles queos denunciavam. No Brasil, com raras exceções,as fortes resistências ao pensamento crítico fo-ram tranqüilas como um amanhecer preguiçosoem época de férias. São fortes resistências porqueo pensamento crítico brasileiro foi mantido, pormuito tempo, em um estado embrionário, aban-

donado à própria sorte. Portanto, um períodocinzento marca a nossa formação intelectual, semnenhuma gota de sangue derramada. Éramosórfãos de nós mesmos, tivemos de aprender a ca-

minhar tropeçando em teorias européias, catalo-gando escritores nacionais e lendo ou escrevendoartigos para um público seleto: ou era para nossospróprios amigos ou era para satisfazer nossaspróprias veleidades intelectuais.

Nossa atividade intelectual se resumiu agrupos ou indivíduos isolados entre si que bus-caram, com base na filtragem de modelos cultu-rais externos ao País (ou, em muitos casos, à as-similação irrefletida de correntes teóricas estran-

geiras), um olhar específico (ou, na segunda hi-pótese, estrangeiro) acerca de nossa vida materiale cultural. Ao que parece, os intelectuais, que es-tabeleceram um diálogo entre nossa herança po-lítico-cultural e a relação que essa mantinha coma conjectura político-cultural internacional, fo-ram justamente aqueles que melhor vislumbra-ram o Brasil contemporâneo, que melhor contri-buíram para uma re -leitura de nosso passado po-lítico, econômico, social e cultural. Para lembrarapenas alguns desses intelectuais da linha de fren-

te, basta consultar os trabalhos de Sérgio Buarquede H olanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freire,C elso Furtado e, na crítica literária, de AntonioCandido.

Em face da premente necessidade de auto-afirmação ou de distinção  intelectual perante ou-tras culturas, espécie de complexo de Édipo dacultura brasileira, a atividade intelectual permane-ceu no País, por um longo período, discutindotemas como originalidade , nacionalidade  ou bra- 

silidade , sem, muitas vezes, dar passos maioresem outros campos teóricos. Recentemente, noterreno da teoria da literatura, muito se falou, porexemplo, em li teratura nacional , influências  e em- préstimos lingüísticos   etc. C omo uma leve brisa,essas discussões, estimuladas por correntes teóri-cas estrangeiras, mais uma vez se mostraram frá-geis e insuficientes para dar conta de nossa com-plexidade cultural. O hábito extremamente dano-so de continuamente virar o pescoço para seapropriar de teorias alheias provoca, além de irre-2 LIMA, 2000, p. 394.

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cuperáveis torcicolos, o vício intelectual de sem-pre estar com uma teoria nova, o remédio defini-tivo para os piores males de nossa má formaçãocultural.

Portanto, as resistências ao pensamento crí-tico no Brasil não devem ser entendidas comoposturas ideológicas contrárias de origem especi-ficamente políticas. Nem por isso queremos di-zer que eventos políticos dessa ordem não inter-ferem sub-repticiamente na formação ou de-for- 

mação   de um povo. C ontudo, não será essa aprincipal questão a ser abordada por nós, haja vis-ta que nosso maior interesse concentra-se sobre-tudo no terreno da crítica literária brasileira.

C omo entraves à progressão do pensamento crí-tico em nossa gleba, consideraremos, pois, ques-tões mais elementares, como o nosso atraso ma-terial em relação às nações mais desenvolvidas, onosso passado colonial e a precariedade de nossomeio cultural.

H á, hoje em dia, condições favoráveis parao desenvolvimento de diversas artes no País. Apintura, o teatro, o cinema, a escultura, a arquite-tura, a dança, bem como outras formas de ex-pressão em arte já podem ser produzidas no Bra-

sil por conta de políticas de incentivos financei-ros. U m bom exemplo disso foi o projeto Rou-anet, lei governamental que permite destinarparte das verbas do setor privado à produção ci-nematográfica. Mas a arte cultivada em momen-tos iniciais de nossa formação e que, ao longo dotempo, atingiu a maioridade, sendo ainda hojeresponsável por grande parte de nossa produçãocultural, é, sem dúvida, a arte literária.

A arte literária se expandiu pelo País pari 

passu  à nossa formação cultural, em decorrência

de nossa herança cultural e de nossa precariedadematerial, como bem atesta José Veríssimo:

O próprio aparelho técnico indispensávelà produção da obra de arte, seja em mú-sica, seja em pintura, seja em escultura,seja em arquitetura, é muito mais consi-derável e custoso que o preciso para aprodução da obra literária. U m conjuntode condições sociais, menos de rigor naprodução desta, é quase obrigatório na

daquela; a existência de uma cidade e nelade uma sociedade bastante culta e opulen-ta e amiga do grande luxo, que empre-guem o artista e lhe remunerem o traba-

lho, é a primeira e indispensável.3

 Além de a arte literária ter sobre as belas-ar-

tes a vantagem de dispensar as condições materiaisde produção indispensáveis a elas, o gosto do bra-sileiro pela literatura tem suas raízes na tradiçãoliterária portuguesa:

A causa desta nossa florescência poéticanão foi a terra, nem essa beleza exageradaque lhe emprestou o nosso nativismo, deque muitos poetas nossos foram os can-

tores conscientes e entusiastas, e que sesistematizaria, é quase um dever de patrio-tismo reconhecer, em Rocha Pita. Foi aherança portuguesa, a tradição literária epoética de um povo cuja poesia, no séculoda conquista, era das mais ilustres da Eu-ropa.4

O atraso material pode ter sido positivoquanto à produção literária até o momento de suaconsolidação no Brasil, mas não o foi igualmentepara o campo das idéias. A ausência de bibliotecasem nosso meio, dificultando a recepção de textosliterários e críticos, obrigava o leitor, quando dis-punha de condições materiais favoráveis, a recor-rer a bibliografias estrangeiras. Elas acabavam in-cidindo na formação teórica de um intelectual,cujas idéias acerca das condições de produçãoliterárias brasileiras pouco se diferençavam dasposições críticas estrangeiras, demonstrandoquase sempre desconhecimento e preconceitoquanto às atividades culturais nacionais. Cria-

vam-se lentamente um ódio e um desprezo inte-lectual sem precedentes às coisas do Brasil.

Para agravar ainda mais a situação, o BrasilC olônia deixou-nos uma herança cultural aindaforte em nosso meio: a crítica louvaminheira .Essa crítica da corte, para alegrar o paço, impreg-nada de efusivos adjetivos e erudição, que, maistarde passa a ocupar considerável espaço nos jor-

3 VERÍSSIMO, 1977, p. 46.4 Ibid ., p. 48-49.

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nais republicanos, foi uma tendência e continuasendo, infelizmente, o que reduziu o espaço dacrítica ao comentário elogioso ou, quando não,impregnado de sentimentalismos e idéias infun-

dadas. A bem dizer, a ausência de critérios e aprosa solta são sua marca maior, atestando o seualto grau de inobjetividade . Comentando a pro-dução literária e crítica do período modernista denossa literatura, Sérgio Milliet a define, ao mes-mo tempo em que levanta os perigos que nossasletras correm quando estão sob os auspícios des-ses críticos do paço :

A grande miséria de nosso romance nãoestá no romance mas na crítica. É a crítica

jornalística e radiofônica publicitária esem critério, a culpa de todo mal (...). É acrítica louvaminheira de quaisquer medio-cridades bem apadrinhada e ignorante dasobras mais sólidas. É a crítica noticiaristaempanturrada de adjetivos, sem pondera-ção nem convicções. Entre a plêiade debons ensaístas das levas intelectuais surgi-das em nosso mundo literário depois de1922, quantos ocupam os rodapés dosjornais? Não são estes entregues quase

sempre a gente mais ou menos desclassi-ficada no mundo das letras, ou por sua in-cultura ou pela sua incapacidade criado-ra?5

Podemos concluir, até então, que, no refe-rente à produção literária no Brasil, o atraso ma-terial contribuiu  para a formação de nossa litera-tura, cujas raízes têm a literatura portuguesacomo matriz. Entretanto, no que diz respeito àprodução crítica, esse atraso difi cultou a leitura e

a recepção de textos literários no País, provocan-do um desconhecimento generalizado acerca daprodução literária nacional, e obrigou esses leito-res críticos a importar teorias européias, sem maio-res reflexões. Assim, enquanto Machado de Assisdava o golpe de misericórdia na literatura de fei-ções ainda portuguesas, Silvio Romero, AraripeJúnior e José Veríssimo davam os passos iniciais,mas decisivos, para a formação de um pensamen-

to crítico sistematizado . C onseqüentemente, ape-sar de efervescente, surgiu no Brasil uma críticasuperficialmente teórica, que demonstrava pro-fundo desprezo à produção literária brasileira,

quando não caía simplesmente na moda nacional:a crítica louvaminheira , que perdurou até nossosdias.

Contra a crítica louvaminheira , uma críticaempenhada e bastante consciente de seu papelcrítico, uma crítica de pressupostos teóricos maisfirmes, uma crítica que representa uma releiturade nossa incipiente tradição crítica e literária, en-fi m, uma crítica literária que se assume como dis-curso crítico sistematizado no Brasil. Esse mode-

lo de crítica consolida-se, no País, com a publica-ção da Formação da L iteratura Brasileira  (1959),6

de Antonio C andido. Podemos perceber que, nacrítica empreendida por Antonio C andido, con-vergem tanto nosso passado crítico (José Veríssi-mo e Sílvio Romero, por exemplo) quanto a pro-dução crítica posterior a ela (Roberto Schwarz,Luiz Costa Lima e outros).

Não é possível responder à pergunta “OBrasil tem um sistema intelectual?” por, pelo me-

nos, dois motivos. Primeiramente, porque ela éampla, o que faz cair numa generalização sem ta-manho. Mesmo que, como Luiz C osta Lima for-mula, em “ D a existência precária: o sistema inte-lectual no Brasil”,7 especifiquemos o conceito desistema   (termo emprestado de Antonio Candi-do), a intelectualidade brasileira parece bastantedispersa, não podendo, assim, ser considerada sis-têmica. Em segundo lugar, falta-nos dados preci-sos acerca do movimento intelectual, desde suasorigens até os dias de hoje, no Brasil. D esconhe-

cemos trabalhos que tratam o assunto de maneiraprofunda e exaustiva. Rotineiramente, temosespeculações e muitos questionamentos sobre ainexistência ou não de uma vida intelectual orgâ- nica  no País, não chegando a constituir uma mas-

5 MILLIET, 1944, p. 21.

6 C olocamos o ano de 1959 para fazer referência à primeira edição daobra crítica de Antonio Candido, servindo-nos apenas como balizatemporal. Para a demonstração crítica da obra, utilizaremos, nesteensaio, a oitava edição da Formação da L iteratura Brasileira , publicadapela Editora Itatiaia, em 1997.7 C f. LIMA, 1981.

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sa de conhecimento científico consistente, dignade ser apreciada.

 O ra, se não é possível responder à pergun-ta “O Brasil tem um sistema intelectual?”, então,

a reformulemos, dando-lhe as especificações ne-cessárias: o Brasil possui um sistema consolidadode crítica literária? Para Luiz C osta Lima, o sis-tema intelectual é incipientemente legitimadocom a independência e a unificação política doBrasil.8 Restringindo a assertiva do crítico mara-nhense, talvez pudéssemos melhor dizer que sur-ge, nessa mesma época, uma crítica literária em-penhada, diferente daquela praticada anterior-mente − voltada exclusivamente para fora. A mis-são agora é implantar uma crítica notadamentebrasileira, e diversa da crítica que se seguirá, por-que ainda não possui um centro decisório pró-prio (síntese das buscas críticas anteriores).C omo já salientamos, a força crítica de AntonioC andido resulta do esforço analítico dos primei-ros críticos literários, que procuraram fazer umacrítica de feições brasílicas.9

A brevidade deste ensaio não permite umaanálise detalhada do período formativo de nossacrítica literária, nem dedicar páginas e mais pági-

nas sobre a importância que a crítica empreendi-da por Antonio C andido exerce na crítica literá-ria nacional desenvolvida posteriormente, ora poruma assimilação quase direta, como aparece emRoberto Schwarz, ora por uma assimilação indi-reta ou disfarçada, como se vê em Luiz C osta Li-ma. Nosso intento, a partir de agora, é recuperare tentar descobrir, por meio dos trabalhos críti-cos desses dois últimos autores, os rumos da crí-tica literária brasileira contemporânea.

II. A TEORIA ENTRA PELA PORTA DOS FUNDOS: ROBERTO SCHWARZ E A ATIVIDADE CRÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

O caminho crítico adotado por RobertoSchwarz desvela uma leitura atenta e criteriosados textos críticos mais importantes de Antonio

C andido. Referimo-nos à leitura dos ensaios e,sobretudo, da Formação da L iteratura Brasileira :textos de Antonio C andido referentes ao perío-do formativo de nossa literatura. O mestre ime-

diato de Roberto Schwarz−

 Antonio Candido−

foi responsável pela exposição de uma tradiçãoliterária nacional cuja fi gura nevrálgica, tanto noquadro gerativo de nossa literatura quanto naconcepção teórica do autor, era, sem sombras dedúvida, Machado de Assis. A prosa machadianafoi tomada por Antonio Candido e, mais tarde,desenvolvida por Roberto Schwarz, nos seus cé-lebres estudos sobre Machado de Assis,10 comouma síntese de tendências universalistas e particu- 

laristas .

Para fins de análise, recapitulemos um tre-cho da Formação da L iteratura Brasileira , de An-tonio Candido, considerando-o como metoní-mia do seu método crítico:

Se voltarmos porém as vistas para Macha-do de Assis, veremos que esse mestreadmirável se embebeu meticulosamenteda obra dos predecessores. A sua linhaevolutiva mostra o escritor altamenteconsciente, que compreendeu o que havia

de certo, de definitivo, na orientação deMachado para a descrição de costumes,no realismo sadio e colorido de ManuelAntônio, na vocação analítica de José deAlencar. Ele pressupõe a existência dospredecessores, e esta é uma das razões dasua grandeza: uma literatura em que, acada geração, os melhores recomeçam da 

capo  e só os medíocres continuam o pas-sado, ele aplicou o seu gênio em assimilar,aprofundar, fecundar o legado positivo

das experiências anteriores. Este é o se-gredo da sua independência em relaçãoaos contemporâneos europeus, do seualheamento às modas literárias de Portu-gal e França.11

O filósofo Paulo Eduardo Arantes não sóreconhece a presença de “Tradição e talento indi-vidual” , de T. S. Eliot, no conceito nutrido por

8 Ibid ., p. 12.9 ARAN TES, 1992, p. 236-238.

10 Cf . SC H WARZ, 1990 e 1977.11 CANDIDO, 1997, p. 104, vol. II.

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Antonio C andido em relação a Machado de As-sis, como também presume que, na própria for-mação teórica do crítico, a fórmula de Eliot tam-bém se aplica:

Vê-se (...) que mesmo com a fórmula deEliot muito presente, Antonio Candidoajustou-se antes de tudo pela lição de Síl-vio Romero e José Veríssimo, natural-mente revista e corrigida, como se depre-ende desta reconstituição da carreira deMachado de Assis, que finalmente cum-pria o programa de continuidade culturalpor canalização do influxo interno, e cor-respondente desprovincianização daconsciência literária, traçado pelos dois

críticos nas linhas tortas que se viu.12

A entrada de Antonio Candido na críticaliterária pela porta dos fundos− ao rever o métodocrítico de Sílvio Romero e as concepções literáriasde José Veríssimo, por exemplo − possibilitou-lheum olhar descurado e profundo acerca de nossafrágil produção literária e intelectual. Pela portados fundos, a crítica literária brasileira se conso-lidou. Contudo, Antonio Candido demonstrouuma singular desconfiança em relação à teoria (a

prata da casa) ou, dito de outra maneira, percebeue procurou purgar tudo aquilo que é acessório emliteratura, ou seja, tudo aquilo que se passava noPaís como teoria. Essa aversão à teoria, emborajustifi cável, não deixa de ser polêmica. C omo ve-remos a seguir, Luiz C osta Lima tocará o dedo naferida, não poupando nenhuma crítica que possagerar incômodo nos seguidores mais eloqüazesde Antonio Candido.

C omo já afi rmamos anteriormente, Rober-

to Schwarz é o discípulo mais imediato e bemcomportado de Antonio C andido, pois segue aslinhas do mestre com muita cautela. Machado deAssis, por exemplo, ponto chave da sua Forma- 

ção da L iteratura Brasileira , recebe dois cuidado-sos estudos por parte de Roberto Schwarz, o queatesta indiscutivelmente a continuidade do proje-to de Antonio Candido, agora sob o influxo deuma pena de outro autor. Em síntese, a concepção

de literatura como sistema , a entrada na críticaliterária pela porta dos fundos, uma forte tendên-cia pelo ensaísmo crítico e um deliberado desas-sossego em relação à teoria são as marcas de C an-

dido assimiladas por Schwarz, sem muita resis-tência. Isso decorre, talvez, da exagerada e íntimaproximidade intelectual entre um e outro, bemcomo da forte tendência sociológica de RobertoSchwarz, como bem o declara no prefácio de seuUm Mestre na Peri feri a do Capitalismo : “Devouma nota especial a Antonio C andido, de cujoslivros e pontos de vista me impregnei muito, oque as notas de pé-de-página não têm como re-fletir. Meu trabalho seria impensável igualmentesem a tradição −  contraditória −  formada porLukács, Benjamin, Brecht e Adorno, e sem a ins-piração de Marx”.13 

Isso posto, como Schwarz vai equacionar oproblema da teoria? A experiência de Schwarzcom a teoria não está tão distante da experiênciade Antonio C andido, em virtude da proximidadede ponto de vista. C andido nunca temeu a teoria,temia apenas o ridículo local de confundi-la comresenha bibliográfica e a habitual colcha de cita-ções a esmo, no conjunto, involuntariamente pa-

ródica.14

No curso de Letras, Roberto Schwarz as-siste ao passeio dessas teorias que passam pornossa academia sem deixar rastros ou quaisquervestígios de proveito em nossa tradição crítica:

Nos vinte anos em que tenho dado aulade literatura assisti ao trânsito da críticapor impressionismo, historiografia positi-vista, new cri ticism  americano, estilística,marxismo, fenomenologia, estruturalis-

mo, pós-estruturalismo e agora teorias darecepção. A lista é impressionante e atestao esforço de atualização e desprovinciani-zação em nossa universidade. Mas é fácilobservar que só raramente a passagem deuma escola a outra corresponde, como se-ria de esperar, ao esgot amento de um pro-jeto ; no geral ela se deve ao prestígio ame-ricano ou europeu da doutrina seguinte.

12 ARANTES, 1992, p. 240.

13 SC H WARZ, 1990, p. 13.14 ARANTES, 1992, p. 245.

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Resulta a impressão − decepcionante − damudança sem necessidade interna, e porisso mesmo sem proveito.15

A mudança de uma teoria para outra sem ne- cessidade interna  é uma ideologia, no sentido mar-xista, que merece ser combatida. Essa prática, naconcepção de Schwarz, tem precedentes históricosque fazem conviver, no Brasil contemporâneo,princípios burgueses atrelados a comportamentossociais de nossa vida colonial. Anecessidade interna 

em Schwarz constitui uma teia de relações entre olocal e a tradição. Em outras palavras, é a força deum sistema local de problemas e contradiçõesque, exigindo mobilidade interna, filtra a oferta

internacional de teorias. C om isso, deixaríamosde ser provincianos, no entender de Schwarz, aomesmo tempo em que nossa vida cultural setransforma, rejeitando o caráter postiço , inautênti - co e imi tado  que nos dominou por longo tempo.A pungência da experiência local exerceria, então,um papel decisório nesse processo.

Em síntese, as teorias internacionais, à luzde Roberto Schwarz, serão bem-vindas e incor-poradas ao nosso meio a partir do momento emque, estimuladas por nossas necessidades inter-

nas, venham a contribuir significativamente paraa superação prática das arenas locais e nacionais.

III. A PRATA DA CASA: LUIZ COSTA LIMA E A DISSIDÊNCIA DA CRÍTICA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA

Para Luiz C osta Lima, há um certo incô-modo em ser intelectual no Brasil, pois seu ter-reno é vago e difuso, por uma série de fatores.16

Nossa cultura, diferentemente da dos países his-

panoamericanos, se impôs de cima para baixo,obrigando o intelectual a optar, desde cedo, pelapalavra teatralizada . Essa palavra teatral – retóricavazia ou restos de janta abaianada   – era muitobem-aceita pelas agências do paço. Em outras pa-lavras, trata-se da crítica louvaminheira , como vi-mos no estudo precedente. Contudo, quandoesse intelectual não se curvava aos interesses da

colônia, quando não renunciava à criticidade,dava-lhe a sensação de não pertencer a nenhumgrupo socialmente definido. G regório de Matos éo exemplo desse desconforto.

O Boca do Inferno, como assim o chama-vam, não se ligou fidedignamente nem aos rei-nóis e nem aos brancos de segunda-classe . Além daliteratura cuja expressão era a da classe dominan-te, o que prevaleceu, na produção cultural da eracolonial, foi um moralismo crítico simpático aoretoricismo e ao nativismo/nacionalismo semmaiores reflexões. Mesmo com a vinda da famíliareal ao Brasil e, posteriormente, com o adventodas Repúblicas, a situação do intelectual no País

não se alterou significativamente. Isso posto,Luiz C osta Lima aponta três características quemarcam indelevelmente nosso precário sistema 

intelectual : uma cultura predominantemente au-ditiva, uma cultura voltada para fora e um sistema 

intelectual  que não possui um centro próprio dedecisão.

C omo t raço da cultura auditiva, devemosentendê-lo como a migração do aspecto oral denossa cultura para o âmbito das letras, introduzi-

do entre nós pelo ensino jesuítico: “ O efeito deimpacto produzido (pelos sermões de Padre An-tônio Vieira, por exemplo) consistia em impres-sionar o auditório, em esmagar a sua capacidadedialogal, em deixá-lo pasmo e boquiaberto ante aperícia verbal e a teatralização gesticulatória, ma-neiras de rapidamente subjugar o auditório”.17

A cultura da persuasão instalou-se tambémem nossa produção intelectual. Ela corresponde aum entrelaçamento de intuicionismo e culto dapraticidade, que acaba desembocando, quasesempre, num autoritarismo crítico e numa de-pendência cultural in continenti .

Na produção intelectual domina a preocu-pação com a apresentação externa do trabalhocrítico, e não a atenção a suas relações internas.Isso, além de ser um traço de nosso precário sis- 

tema intelectual , tem conseqüências funestas emnossa cultura. A preocupação com a exteriorida-

15 SC H WARZ, 1987, p. 30.16 C f. LIMA, 1981, p. 3-29. 17 Ibid ., p. 16.

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de – o ostentatório – acaba gerando, em nossomeio, a ânsia cultural pela teoria sempre nova.

C om isso, não se produz teoria, importa-a.Entre uma importação e outra, esquece-se de eri-

gir uma teoria crítica bem fundamentada, obede-cendo aos imperativos de nossa cultura e prolon-gando-se lentamente por outros continuadores,exclusivamente brasileiros ou não. Porém, a cul-tura ostentatória, orientada por modelos exter-nos à nossa cultura, não permite e exclui qualquerpossibilidade, no Brasil, de teorizar sem medo.Sempre há, na agenda do crítico brasileiro, coisasmais urgentes a realizar!

Em decorrência de nossa auditividade  e os- 

tentação   culturais, somos impedidos de ter umpensamento original . Isso impossibilita escolherou mesmo avaliar a pertinência de certa obra, cor-rente ou teoria, pois somos incapazes de tomardecisões sozinhos: “D izemos que nos falta umpensamento original, não só por não termos asindispensáveis condições materiais (...), comoporque as instituições legalmente capacitadaspara julgar as produções intelectuais tendem anão acatar senão os produtos seguidores de uma

linhagem já suficientemente legitimada nos cen-tros que reconhecemos”.18

Apesar da crítica bastante aguda, Luiz C os-ta Lima não é ortodoxo no que se refere às rela-ções com os grandes centros. Para ele, é impor-tante estarmos a par do que se realiza fora do Pa-ís, porém, devemos agir com muita cautela nomomento de decidir acerca de uma metodologiaou de uma teoria. Para não incorrer nos mesmoserros que tradicionalmente a crítica comete quan-to ao uso da teoria ou do método, é mister relernosso passado crítico com as lentes raras de LuizCosta Lima.

Se fizermos um balanço da crítica literáriaproduzida no Brasil a partir do final século XIX ,com Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jú-nior, chegaremos à conclusão de que o problemadela está, exatamente, na incapacidade de apreen-der a especificidade do discurso fi ccional por meio

da teoria. O u dito de maneira grosseira: na incapa-cidade mesmo de teorizar o discurso ficcional.

Em Sílvio Romero, a utilização de concei-tos como fluência , naturalidade , emoção , comuni- cabilidade , entusiasmo , vida , capacidade de prose- litismo  própri a das almas combatentes   e naciona- 

lismo  obedece aos imperativos da sociologia sem,contudo, uma definição clara e precisa dos ter-mos. O último desses conceitos – nacionalismo  –é tido por Sílvio Romero como o critério primor-dial ao exame crítico. Machado de Assis seria,com certeza, a sua vítima predileta, pois não re-sumia a estreiteza das características nacionais 

impostas pelo critério sociológico.

Ao reler Sílvio Romero, Luiz C osta Limaobtém a seguinte conclusão:

Notamos primeiro uma marca afirmativa:a busca de entender a obra literária nãocomo espécie isolada, mas no conjuntodas transformações sociais. Perfilaram-sea seguir marcas negativas: a incapacidadede observar as conseqüências de umaanotação capital −  impossibilidade de atrindade taineana explicar as diferençasdas produções individuais − a incapacida-

de de refletir conceitos utilizados, que en-tão passavam ao estado de meras ferra-mentas. Poderíamos resumir o legado ne-gativo, declarando-o resultante da incapa-cidade de teorizar e da incapacidade deler.19

C om relação a José Veríssimo, nele perpas-sa a mesma preocupação com as condições sociaisque circulam a atividade do intelecto brasileiro, amesma preocupação com o caráter nacional da li-

teratura, a mesma afirmação anti-romântica emfavor da objetividade e do realismo, a mesma ca-racterização da crítica empenhada no esforço daconstrução nacional. C ontudo, o olhar de Verís-simo é mais penetrante, pois ele percebeu que asamarras de nosso pensamento crítico eram for-necidas pela sociedade burguesa européia. Em su-ma, os critérios de procedência sociológica e o deproveniência retórica são, guardadas as pro-

18 Ibid ., p. 24. 19 Ibid ., p. 39-40.

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porções, os traços da crítica literária produzidatanto por José Veríssimo quanto por Sílvio Ro-mero: “Se em Sílvio Romero a centralidade dapreocupação sociológica provoca a primazia do

critério nacionalista, em José Veríssimo este setorna pano de fundo, enquanto na cena trabalha-vam preocupação gramatical e retórica. Tais crité-rios, contudo, já são sobredeterminados pelo có-digo moralizante tanto de Sílvio quanto de Verís-simo”.20

D iferentemente de Sílvio Romero e JoséVeríssimo, Araripe Júnior sustentará um fortedesejo em sua crítica contra o sociologismo cien-tifi cista. Entre o objeto e o indivíduo haveria umamediação flutuante: a possibilidade de o objetoprovocar impressões. Impressões que se articula-riam a partir do gosto e do temperamento do in-térprete, tendo como pontos fixáveis as figurasde estilo. Assim, a crítica estilístico-psicológicade Araripe Júnior aparecia como o instrumentomais adequado para analisar a individualidade doartista, se não fosse, infelizmente, a precariedadedas metáforas conceituais empregadas.

Em síntese, podemos dizer que, ao refazersucintamente o percurso crítico traçado por Síl-

vio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior, arazão do discurso ficcional não se justifica apenaspor critérios (muito mal empregados, por suavez) apenas sociológicos, apenas retóricos oufundados na mera impressão. Isso posto, é preci-so dar cont inuidade a essa reflexão, e não evitá-la,mesmo que desagrade ao leitor, por meio de umquestionamento crítico que, inevitavelmente, co-locará a Formação da L iteratura Brasileira , de An-tonio Candido, no banco dos réus.

Em face do exposto acima, vejamos umacitação de Luiz C osta Lima muito esclarecedora,que diz respeito à nossa situação crítica e à con-fusão prolongada na atividade crítica entre méto-do e teoria:

A ampliação da base econômica e o ad-vento de um público diversifi cado permi-tiram, desde fins da década de 50, o sur-gimento de uma prosa e uma poesia di-

versificadas, desde a vertente literaria-mente mais revolucionária (G uimarãesRosa, a poesia concreta, a valorizaçãocrescente da poesia de Cabral) até a mais

epigônica e previsível (a continuação daprosa realista, o sentimento sonetizado).Na frente propriamente crítica, o saltotalvez tenha sido menor, pois, embora asobras de Afrânio Coutinho, AntonioC andido e H aroldo de C ampos −  comtodas as diferenças internas e de qualidade− apresentam resultados e preocupaçõesmetodológicas sem paralelo com a críticaque se desenvolvera de Sílvio Romero aÁlvaro Lins, a sua novidade está na frentemetodológica que abrem e não na discus-

são especificamente teórica. Para que seentenda o argumento necessitamos terbem presente que metodologia não seconfunde com teoria. Não há por certouma sem a outra, mas podemos desenvol-ver um argumento metodológico ou dei-xando implícito seu embasamento teórico− como é freqüente em Candido − ou oexplicitando por repetições do já escrito −

o caso de A. Coutinho − ou ainda por de-senvolvimentos assistemáticos − a exem-

plo do que sucede em H aroldo de Cam-pos. Não dizemos portanto que o pensa-mento crítico permaneceu parado, massim que, numa escala de ruptura, ele semanteve mais próximo da situação tradi-cional que o todo da criação literária.21

O ra, o ofuscamento teórico e o esforçometodológico de Candido o ligam sensivelmenteà tradição crítica iniciada, no final do século XIX,no Brasil. Esse ofuscamento teórico tem, contu-

do, razão de ser. As idéias de sistema  e de estru- tura , intimamente ligadas ao método crítico ado-tado por Antonio C andido, são, como na culturaauditiva, pouco explicitadas e questionadas diantedo que deveriam ser, já que constituem pilares deuma teoria críti ca  que procura reconstituir a his- tória dos brasileiros no seu desejo de ter uma l ite- 

ratura . Em resumo, o descritivismo , a idéia deuma literatura nacional, o método crítico empre-

20 Ibid ., p. 45. 21 Ibid ., p. 194.

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gado e a obnubilação teórica da Formação da L i- 

teratura Brasileira  atestam o alto grau de compro-metimento do seu autor com a cultura auditiva .22 

PASSADO, PRESENTE E FUTURO CRÍTICONossa reflexão partiu do questionamento

se havia ou não, no Brasil, um sistema críticoconsolidado, e como esse sistema teria se com-portado durante as nossas primeiras incursões noterreno crítico. Percebemos, então, que a críticalouvaminheira  foi a primeira manifestação críticano Brasil. Trata-se de uma vertente que, ainda ho-je, repercute na crítica diletante, com ecos, às ve-zes, em trabalhos de alguns renomados profissio-

nais da crítica. Contra a crítica da corte : a críticaséria , científi ca, acadêmica e empenhada . É esseúltimo modelo que abordamos ao falar da críticaliterária produzida no século XIX, da capacidadede síntese crítica da Formação da L iteratura Bra- 

sileira , de Candido, do desdobramento do proje-to desse autor, por força da pena de RobertoSchwarz, e da releitura de nosso passado crítico,porém não menos compromissada, sob o influxodo pensamento de Luiz C osta Lima.

H oje em dia, podemos afirmar que temosum pensamento crítico sistemático  e consolidadono Brasil. G uardadas as proporções, o papel denossos primeiros mestres (Sílvio Romero, José

Veríssimo, Araripe Júnior e demais críticos que seseguiram) foi decisivo para a formação de umcânone crítico notadamente brasileiro. Tal pensa-mento se firmou com a publicação da Formação 

da Literatura Brasileira , de Antonio Candido:essa obra crítica viria a ser o divisor de águas denossa ainda frágil, porém empenhada, crítica lite-rária brasileira. Por um lado, teríamos uma críticaao rés-do-chão, que procura desvendar no loca-lismo as frinchas mais atávicas do universalismo,

empreendida por Roberto Schwarz; por outro,uma crítica que exige não só o reconhecimentode nosso debilitado contexto intelectual, comotambém a sua superação por meio de uma tra-dição teórica tornada visível a olho nu, empreen-dida por Luiz C osta Lima. Assim, partindo domesmo punhado de cera e de correntes  (nossa tra-dição crítica), Schwarz e C osta Lima navegam em direção às sereias  (obra literária), esquadrinhando,com seus meiozinhosparticulares, a história da crí-

tica literária brasileira.

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22 LIMA, 1992, p. 153-169.

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Dados do autor

Professor no Depa rtamento de Letras daUniversidad e Estad ual d o Cent ro-Oeste

(Unicentro), Guarapuava/PR, atuando na área deliterat ura b rasileira e teo ria literária. Douto rando em

letras (teoria e história literária) pela Unicamp emestre em letras (teo ria literária e literat ura compa rada )

pela Unesp.

Recebimento artigo: 2/fev./04

Consultoria: 9/fev./04 a 5/mar./04

Aprovado: 18/mar./04