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ROBERTA VICENTE MONTANHA TEIXEIRA IMIGRAÇÃO NA DÉCADA DE 1830: DEBATES NO SENADO Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica.como requisito parcial à conclusão do curso de História Licenciatura e Bacharelado, do Setor de Ciência Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Joseli Maria Mendonça CURITIBA 2010

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ROBERTA VICENTE MONTANHA TEIXEIRA

IMIGRAÇÃO NA DÉCADA DE 1830: DEBATES NO SENADO

Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica.como requisito parcial à conclusão do curso de História Licenciatura e Bacharelado, do Setor de Ciência Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Joseli Maria Mendonça

CURITIBA 2010

2

RESUMO O presente estudo centra-se na análise das propostas e expectativas que os senadores do império brasileiro, na década de 1830, tinham com relação à imigração e ao tipo de imigrante a ser introduzido no país. Para tanto, a fonte privilegiada foram as atas do Senado imperial brasileiro dos anos de 1829 a 1840 – período pouco analisado nos estudos historiográficos referentes á imigração. A partir do levantamento das sessões em que houve debates relacionados á imigração, chegou-se à conclusão de que o tema já ocupava um espaço considerável na pauta das discussões do Senado. Era praticamente unânime a idéia da conveniência de se atrair estrangeiros para o país, sendo muitas leis criadas com esse objetivo. Porém, a mesma unanimidade não ocorria com relação ao tipo e à função do imigrante a ser introduzido. Alguns senadores pretendiam atrair imigrantes que só possuíssem a sua força de trabalho, defendendo leis que dificultavam a apropriação de terras pelos estrangeiros e medidas para mantê-los nas lavouras. Outros senadores viam na imigração a oportunidade de “civilizar” o país. Nesse caso, os imigrantes deveriam tornar-se pequenos proprietários, ajudando no desenvolvimento do Brasil. Palavras-chave: imigração, trabalho, Senado.

3

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................4

2 O SENADO IMPERIAL BRASILEIRO E SEUS MEMBROS..................................7

2.1 O SENADO: ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO..........................................7

2.2 O SENADO NO PERÍODO REGENCIAL: FORTALECIMENTO

LEGISLATIVO..............................................................................................................9

2.3 SENADO: LONGEVIDADE DO CONSERVADORISMO COIMBRÃO................13

3 OS DEBATES SOBRE IMIGRAÇÃO NO SENADO E AS CONCEPÇÕES SOBRE

O IMIGRANTE IDEAL................................................................................................20

3.1 O TEMA DA IMIGRAÇÃO NO SENADO.............................................................20

3.2 UM IMIGRANTE PARA TRABALHAR PARA OUTREM: AS LEIS DE LOCAÇÃO

DE SERVIÇOS...........................................................................................................25

3.3 OS IMIGRANTES E A PROPRIEDADE DA TERRA: OS PROJETOS DE LEI DE

COLONIZAÇÃO E DE SESMARIAS..........................................................................32

3.4 IMIGRANTES CIVILIZADOS E INDUSTRIOSOS...............................................37

3.5 IMIGRANTE IDEAL: CONCEPÇÕES DISTINTAS.............................................42

4 IMIGRAÇÃO NO SECULO XIX BRASILEIRO: DEBATES COM A

HISTORIOGRAFIA....................................................................................................44

4.1 A INFLUENCIA DO “PARADIGMA DA TRANSIÇÃO”........................................44

4.2 OUTRAS POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO.........................................54

5 CONCLUSÃO........................................................................................................60

REFERÊNCIAS.........................................................................................................62

4

1 INTRODUÇÃO

Esse estudo monográfico objetiva analisar as concepções e expectativas de

parte da elite política imperial frente à imigração e ao tipo de imigrante que se

pretendia introduzir no país na primeira metade do século XIX.

Para tanto, a fonte utilizada foram os debates ocorridos no Senado imperial

brasileiro – cujos membros representam parte da elite política imperial – dos anos de

1829 a 1840. A partir dessa fonte, procurou-se analisar os projetos de imigração

discutidos na primeira metade do século XIX no Senado. Importante ressaltar que o

termo projeto não é utilizado aqui somente no sentido estrito – relacionado a um

projeto de lei formalmente estabelecido –, mas em seu sentido mais amplo, que o

relaciona às expectativas e propostas dos senadores em relação à vinda de

imigrantes, e que podem estar presentes em diversas discussões ocorridas no

Senado.

A escolha da década de 1830 para estudar a imigração não foi aleatória. As

primeiras décadas do século XIX não foram muito enfatizadas por estudos

historiográficos sobre imigração. Esses estudos dão mais ênfase ao período

posterior a 1850, quando a proibição do tráfico de escravos se tornou eficaz e houve

grande afluxo de imigrantes para o Brasil. Além disso, a historiografia sobre

imigração trata principalmente de duas regiões: o Centro Sul do Brasil (Vale do

Paraíba e Oeste Paulista) e a região meridional. No Centro Sul, a vinda de

imigrantes teria a função de substituir o braço escravo nas fazendas de café, no

período do surto cafeeiro. Já na região meridional, teriam sido atendidos os

interesses do governo imperial, que visava à criação de núcleos coloniais para

ocupar espaços da fronteira sul, além de ter o objetivo de “civilizar” a população

brasileira através dos imigrantes europeus. Dessa forma, a maioria dos estudos

sobre imigração privilegia o período posterior a 1850, e ressalta diferentes projetos

de imigração, que colocavam em oposição os interesses do governo imperial e dos

fazendeiros do Oeste Paulista.

Porém, as discussões sobre a introdução de estrangeiros já ocorriam na

primeira metade do século XIX, sendo o objetivo desta pesquisa analisar os debates

travados pelos senadores com relação à imigração nesse período pouco

contemplado pela historiografia.

5

Tendo em vista a instituição geradora das fontes pesquisadas, no primeiro

capítulo foram sistematizadas algumas informações sobre o Senado imperial

brasileiro: sua organização, suas atribuições e aspectos referentes aos seus

integrantes. Um ponto que deve ser levado em conta é a relevância do Senado

imperial na década de 1830. Nesse contexto – o do período regencial –, o país

passava por um processo de descentralização administrativa: o Poder Moderador

não foi exercido, predominando o Poder Legislativo – Senado e Câmara dos

Deputados – sobre o Executivo. Dessa forma, no período regencial abriu-se espaço

para novos debates políticos entre as elites provinciais1. Essas elites possuíam

divergências entre si, apesar do interesse comum em fortalecer o Estado e as

instituições políticas imperiais, para manter a unidade da ex-colônia no contexto pós-

independência. Para José Murilo de Carvalho2 e Mirian Dolhnikoff3, o Senado – em

conjunto com a Câmara dos Deputados – cumpria o papel de conciliar os interesses

divergentes das elites no campo institucional. O Senado representou, assim, um

importante local de negociação do interesse das elites na década de 1830.

Após o capítulo dedicado à instituição que foi o palco dos debates

parlamentares pesquisados, procedeu-se à análise das atas das sessões do Senado

imperial, na década de 1830, buscando compreender o posicionamento da elite

política da época frente a questões referentes à imigração.

O tema da imigração apareceu em muitos debates, não sendo tratado apenas

nas sessões em que se apresentaram formalmente projetos de lei sobre a questão.

Algumas sessões, como se verá adiante, debateram projetos de lei relativos aos

seguintes assuntos direta ou indiretamente ligados à imigração: naturalização,

direitos dos estrangeiros no Brasil, colonização de estrangeiros, regulamentação de

contratos entre empregadores e trabalhadores (nacionais e estrangeiros) e

concessão de privilégios às empresas que se utilizassem somente de trabalhadores

livres europeus.

A partir da análise do posicionamento dos membros do Senado, vê-se que

era unânime entre os senadores que se pronunciaram a defesa da conveniência de

se atrair estrangeiros para o Brasil. Além disso, estavam se delineando duas

posições antagônicas com relação ao tipo e à função do imigrante a ser introduzido

1 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 11. 2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 64. 3 DOLHNICOFF, Mirian. O pacto imperial. Origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo,

2005, p. 227.

6

no país: uma delas defendia que o imigrante ideal seria o que trabalhasse nas

lavouras, empregado por grandes fazendeiros; outra preconizava a introdução de

estrangeiros que se tornariam pequenos produtores.

No último capítulo, foram recuperados alguns estudos historiográficos

referentes à imigração, confrontando-os com as conclusões feitas a partir da leitura

dos debates no Senado. A maioria dos estudos historiográficos sobre o tema, como

já comentado, enfoca o período posterior a 1850. É evidente que a ênfase dos

estudos na segunda metade do século XIX está associada ao fato de ter havido um

aumento muito grande no número de imigrantes introduzidos no Brasil a partir

daquele período. A ênfase também se explica pelo fato de a imigração ter sido

considerada uma alternativa para a substituição do trabalho escravo na produção

agrícola, sobretudo a de café. As propostas de introdução de imigrantes e o

confronto de projetos distintos sobre a imigração, porém, já estavam configurados

em período anterior. A originalidade desta pesquisa, portanto, consiste em tratar do

tema da imigração num período pouco privilegiado pela historiografia que aborda as

questões de trabalho no Brasil do século XIX.

7

2 O SENADO IMPERIAL BRASILEIRO E SEUS MEMBROS

O Senado, cenário dos debates estudados nesta monografia, era, nas

décadas de 1830 e 1840, uma instituição nova no quadro institucional do país. Sua

formação e composição foram definidas pela Constituição de 1824, e suas

atividades iniciaram em 1826.

Neste capítulo, será feita uma breve descrição sobre o surgimento e as

principais atribuições do Senado imperial brasileiro, com a recuperação de alguns

aspectos relativos a seus integrantes.

2.1 O SENADO: ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO

De acordo com a primeira Constituição Política do Brasil imperial, outorgada

em 1824, o Brasil passaria a ser uma monarquia constitucional e hereditária.

Ficavam estabelecidos os Poderes Legislativo, exercido por deputados e senadores;

Executivo, a cargo do imperador e seus ministros; Judiciário, atribuído a juízes e

jurados; e Moderador, privativo do imperador. As duas casas do Legislativo eram a

Câmara dos Deputados, cujos ocupantes tinham mandato temporário de 4 anos, e o

Senado, cujos componentes tinham cargos vitalícios.

O Senado – bem como a Câmara dos Deputados – só começou a funcionar

com regularidade a partir de 6 de maio de 1826, devido a agitações políticas do

período, quando a monarquia recém-confirmada após a independência enfrentava

hostilidade das repúblicas vizinhas, sendo o caso mais agudo a Guerra Cisplatina.4

As principais atribuições do Poder Legislativo eram a proposição, a

interpretação, a aprovação ou a rejeição de projetos de lei, discutidos

separadamente na Câmara dos Deputados e no Senado. Para que esses projetos

se transformassem em leis, deveriam ser primeiramente discutidos e aprovados

pelas duas câmaras, e, depois, remetidos ao imperador, que sancionaria ou não a

proposta. O Senado possuía, ainda, algumas atribuições específicas, tais como:

eleger a Regência e marcar os limites de sua autoridade; resolver dúvidas sobre a

sucessão da Coroa; fixar, anualmente, as despesas públicas e repassar as verbas

4 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 11.

8

para as províncias; autorizar o governo a contrair empréstimos; criar ou suprimir

empregos públicos; e dirigir os trabalhos da Assembléia-Geral (Senado e Câmara

dos Deputados reunidos), entre outros.5

A eleição dos senadores – cujo cargo, como sobredito, era vitalício,

diferentemente do que se dava com os deputados – era provincial e por listas

tríplices: cada província, por votação indireta, elegia três candidatos, entre os quais

o imperador escolhia um para exercer o cargo. O número de senadores que

representaria cada província seria correspondente à metade do número dos seus

respectivos deputados. O critério para determinar o número de deputados por

província, por sua vez, era o de proporcionalidade populacional.6 Durante a década

de 1830 – foco desta pesquisa –, o número de senadores foi de 50, chegando a 60

ao final do Império.7

Para concorrer ao cargo de senador, o candidato deveria possuir cidadania

brasileira e estar em pleno gozo dos direitos políticos, além de dispor de

rendimentos anuais de, no mínimo, oitocentos mil réis. Portanto, um dos critérios

para a candidatura ao Senado era o sócio-econômico. Dessa forma, os senadores

eram, em maioria, membros da elite intelectual e econômica brasileira, sendo que

entre seus representantes havia principalmente magistrados, militares, advogados,

proprietários, médicos e funcionários imperiais.8

José Murilo de Carvalho9 elabora análises mais detalhadas a respeito da

composição social da elite imperial brasileira. Para o autor, quem tomava as

principais decisões dentro do governo central – ou seja, quem era a elite política do

período imperial – eram os indivíduos que ocupavam cargos no Executivo e no

Legislativo: imperador, conselheiros de Estado, ministros, senadores e deputados.10

Esse era, portanto, o topo da burocracia imperial.

Carvalho analisa poucos os membros da elite política que eram, por exemplo,

simplesmente proprietários rurais ou comerciantes. A maioria teria sido oriunda do

setor terciário, principalmente da administração e de profissões liberais, além de

possuir formação superior. Nesse sentido, o autor afirma que, entre os membros da

5 www.senado.gov.br (página oficial do Senado - acesso: 4/10/2010). 6 DOLHNICOFF, Mirian. O pacto imperial. Origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo,

2005, p. 227. 7 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 49. 8 TAUNAY, Afonso de E. O Senado no império. Brasília : Senado Federal, 1978, p. 20. 9 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Op.cit. 10 Idem, p. 43.

9

elite política imperial, havia juízes, procuradores, padres, médicos, cirurgiões,

professores, homens de letras, oficiais militares, altos funcionários públicos, além de

uma parte reduzida de capitalistas e proprietários.11

2.2 O SENADO NO PERÍODO REGENCIAL: FORTALECIMENTO LEGISLATIVO

Uma das características da Constituição de 1824 foi a grande amplitude de

poder alocado na figura do monarca, por meio do Poder Moderador. O Poder

Moderador permitia forte ingerência do imperador na Câmara dos Deputados – a

legislatura poderia ser dissolvida pelo monarca – e também no Senado, cujos

membros eram nomeados pelo soberano.

No período regencial – sobre o qual esta pesquisa se debruça –, entretanto,

ocorreram alterações significativas em relação a esse aspecto. Para recuperá-las,

são importantes as colocações de José Murilo de Carvalho12 e Marco Morel,13

autores que estudam o chamado período regencial. Carvalho tem como foco de

análise os debates recorrentes no Brasil pós-independente relacionados à

centralização e descentralização político-administrativa. O autor procura mostrar a

transformação dessas duas tendências e suas predominâncias em diferentes

períodos. Já Marco Morel enfatiza aspectos políticos referentes ao mesmo período.

Para ele, tal período caracterizou-se por embates políticos envolvendo a construção

do Estado nacional brasileiro, tendo sido um “grande laboratório de formulações e de

práticas políticas e sociais”.14

Ambos os autores afirmam que, na década de 1830, após a opção anterior

por um governo centralizador para manter a nação unida no período pós-

independência, se iniciaram fortes reivindicações localistas, principalmente a partir

de 1831, com a abdicação de D. Pedro I. Para eles, no período regencial houve a

perda da força simbólica da figura real, sendo que isso favoreceu o surgimento de

novos debates políticos. Nas palavras de Morel:

11 Idem, p 85. 12 CARVALHO, José Murilo de. (1998), Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento, in ______, Pontos e bordados: escritos de história e política, Belo Horizonte, Editora da UFMG.

13 MOREL, Marco. O período das regências. Op.cit. 14 Idem, p 9.

10

A estrutura política – que pretendia consolidar-se como estado nacional – abalava-se pela ausência de poder centralizado na figura do monarca e pela emergência de atores históricos variados com suas demandas sociais.15

Tanto Carvalho quanto Morel analisam os debates políticos que estavam em

jogo naquele momento de transformação do país. Morel comenta que nesse período

houve a emergência de três partidos políticos: os Moderados, os Exaltados e os

Restauradores.

O partido dos Exaltados defendia a participação das camadas populares na

vida pública, ou seja, a valorização da soberania popular. Tal partido valorizava o

federalismo e a descentralização administrativa. Por esse motivo, englobava alguns

membros de oligarquias regionais voltadas ao mercado interno, além de

profissionais liberais, militares, padres e funcionários públicos. O autor comenta que

o partido dos Exaltados não chegou a ter participação no poder central. Alguns de

seus membros fizeram uso da luta armada, participando, por exemplo, de revoltas

regenciais, tais como as ocorridas no Pará, na Bahia e no Rio Grande do Sul.16

Já o partido dos Moderados era a expressão política dos interesses

econômicos dos plantadores de café ou comerciantes brasileiros das províncias do

Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Nas palavras de Morel:

As forças políticas que predominavam nessas três províncias (mas não apenas nelas) identificavam-se aos moderados, sobretudo durante as Regências, constituindo um núcleo de poder geograficamente situado em torno da Corte.17

Os Moderados eram defensores de um Estado forte e centralizador, e tiveram

ramificações por várias províncias. Morel comenta que eles não propunham que as

camadas pobres da população se incorporassem ao jogo político, e não foram

protagonistas de revoltas. O autor destaca, ainda, que a moderação era vista como

sinônimo de razão. Dessa forma, os Moderados defendiam o liberalismo –

“soberania da razão” –, o equilíbrio, a liberdade limitada, a monarquia constitucional,

a soberania nacional, além da recusa do absolutismo e do despotismo.18 Segundo

Morel, foram os Moderados que teriam dado o tom do poder político durante as

15 Idem, p 10. 16 Idem, p. 30. 17 Idem, p 35. 18 Idem, p. 36.

11

Regências, sendo que entre seus integrantes havia ferrenhos defensores do tráfico

de escravos e da agricultura de exportação.19

Já o grupo dos Restauradores defendia o fortalecimento de um Estado

centralizador, nos moldes da modernidade absolutista, ou, então, apontava para o

reforço do poder dos antigos corpos sociais, como senhores locais, oligarquias, clero

e suas clientelas.

Carvalho também analisa esses grupos que possuíam diferentes perspectivas

referentes ao sistema político ideal para o país. Um ponto ressaltado pelo autor é

que ainda havia a predominância da tendência monárquica, sendo que os novos

debates estavam mais focados “na eliminação dos resíduos absolutistas da

Constituição e do reforço dos aspectos federalistas nela presentes”.20 Em outras

palavras, estaria em jogo naquele momento, segundo Carvalho, a questão do

federalismo.

Os autores registram que, no início do período regencial, foi aprovada uma lei

que determinava atribuições e limites ao poder dos regentes, com nítida supremacia

do Legislativo – Senado e Câmara dos Deputados –, ao qual cabia aprovar (ou

reprovar) os ministros. Já os chefes do Executivo exerceriam um Poder Moderador

esvaziado de suas principais atribuições, como a de declarar guerra ou estado de

sítio, nomear conselheiros ou dissolver a Assembléia.21 Pode-se dizer que no

período regencial houve a preponderância de atuação dos senadores e deputados

sobre o Executivo, além do esvaziamento do Poder Moderador.

Carvalho e Morel sustentam que, em 1831, a Câmara aprovou um projeto de

reforma da Constituição, que tinha como pautas a extinção do Conselho de Estado,

do Poder Moderador e da vitaliciedade do Senado, “os principais baluartes da

centralização política”,22 segundo Carvalho. Tal projeto, entretanto, não foi aceito

pelo Senado, onde rondava o receio de fragmentação do país caso todas as

reformas fossem implementadas. Morel também compartilha dessa opinião:

O federalismo, como se sabe, aparecia como contraponto a uma organização centralizadora que, herdada do Estado português, permanecia e se rearticulava após a independência. O Poder Moderador, exercido pelo monarca, funcionava, na prática, como extensão do Executivo. O Senado

19 Idem, ibidem. 20 CARVALHO, José Murilo de. (1998), Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento. Op.cit, p. 164.

21 MOREL, Marco. O período das regências. Op.cit., p. 26. 22 CARVALHO, José Murilo de. (1998), Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento. Op.cit, p.165.

12

vitalício e os conselheiros, por sua vez, eram uma das bases políticas do exercício do poder imperial.23

Em 1834, chegou-se a um ato constitucional “conciliatório”, com a adoção de

alguns elementos federais, tais como a criação de Assembléias Legislativas

provinciais com maior grau de autonomia e deliberação, contemplando, assim,

poderes regionais, e a instalação do cargo de juiz de paz, com poder em âmbito

local. Além disso, foi criada a Guarda Nacional, que contribuiu para o fortalecimento

dos proprietários e senhores locais e do poder central.

Tanto Carvalho quanto Morel ressaltam que no ato adicional de 1834 houve a

manutenção do Senado vitalício e do Poder Moderador. Apesar disso, para

Carvalho, a partir de 1834, o Brasil passava por uma experiência republicana de

Império, dada, sobretudo, pelo fato de haver eleições para o cargo regencial. Nesse

contexto, ocorreram muitas manifestações e revoltas encabeçadas pelas elites

locais, em disputa com o poder provincial, que colocavam em risco a unidade

nacional. Foram os casos das revoltas ocorridas no Pará, na Bahia e no Rio Grande

do Sul, nas quais as províncias chegaram a proclamar suas independências.

Na opinião de Carvalho, os resultados da experiência regencial, com

características descentralizadoras, causaram um profundo impacto nas elites

políticas. Havia a impressão de que todo o Império se desintegrava, sendo que uma

reação não tardou a ocorrer. Assim, em 1837 o regente liberal foi substituído por um

conservador, e a nova Câmara passou a reformular as leis descentralizantes. Para

Morel, nesse momento inicia-se o chamado Regresso:

A mão de ferro do Estado centralizador e autoritário vai retendo o controle da situação abalada, o poder político dos grandes proprietários de terras e escravos se acentua. Os aspectos considerados mais democráticos ou descentralizadores do Código de Processo Criminal e do Ato Adicional são reinterpretados (eufemismos para sua anulação) por leis mais conservadoras.24

Além disso, houve a restauração da autoridade monárquica. Analisando o

mesmo contexto, Carvalho ressalta que, apesar das divergências entre os partidos

políticos, nenhum contestava a forma de governo monárquica, vista como garantia

de unidade e ordem após um período regencial turbulento. Tal fato é exemplificado

pelo autor quando da proclamação da maioridade do imperador por parte dos

23 MOREL, Marco. O período das regências. Op.cit., p 28. 24 Idem, p. 31.

13

liberais como tentativa de frear a centralização excessiva. Nesse sentido, recorria-se

à própria monarquia como forma de interromper a centralização.

Carvalho aponta ainda para um fator econômico que teria favorecido a opção

centralista do período: a expansão do comércio exportador de café, que inicialmente

se concentrou no Rio de Janeiro. Assim, “a centralização política da cidade do Rio

de Janeiro coincidiu com grande centralização de riqueza na província do Rio de

Janeiro”.25 Dessa forma, pode-se compreender o grande apoio dos setores

vinculados ao comércio externo, que formavam a base do Partido Conservador, à

centralização.

2.3 SENADO: LONGEVIDADE DO CONSERVADORISMO COIMBRÃO

José Murilo de Carvalho26, analisando aspectos da independência política

brasileira, e contrapondo-a à verificada nas antigas colônias espanholas, explica a

peculiaridade do caso brasileiro pelas características da elite política existente no

país. Para o autor, a adoção de uma solução monárquica no Brasil, a manutenção

da unidade da ex-colônia e a construção de um governo civil estável foram opções

políticas desta elite e das suas características específicas. Nas suas palavras:

O Brasil dispunha, ao tornar-se independente, de uma elite ideologicamente homogênea devido a sua formação jurídica em Portugal, a seu treinamento no funcionalismo público e ao isolamento ideológico em relação a doutrinas revolucionárias. Essa elite se reproduziu em condições muito semelhantes após a Independência, ao concentrar a formação de seus futuros membros em duas escolas de direito, ao fazê-los passar pela magistratura, ao circulá-los por vários cargos políticos e por varias províncias.27

Carvalho defende a tese de que a elite brasileira desse período era coesa e

homogênea, unida em torno do interesse comum de fortalecer o Estado e as

instituições políticas imperiais, para manter a unidade da ex-colônia. Tal fator, por

sua vez, reduzia as possibilidades ou a gravidade de conflitos mais amplos na

sociedade e no interior da própria elite. O autor afirma que, mesmo quando houve

divergências entre as elites – que tendiam, por exemplo, a medidas mais ou menos

25 CARVALHO, José Murilo de. (1998), Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento. Op.cit, p.168.

26 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Campus, 1980. 27 Idem, p. 34.

14

centralizadoras e monárquicas –, tais divergências não iam além dos limites

estabelecidos pela manutenção da unidade nacional. Além disso, tratava-se de

conflitos resolvidos dentro da ordem institucional. Nesse sentido:

A capacidade de processar conflitos entre grupos dominantes dentro de normas constitucionais aceitas por todos constituía o fulcro da estabilidade do sistema imperial. Ela significava, de um lado, um conservadorismo básico na medida em que o preço da legitimidade era a garantia de interesses fundamentais da grande propriedade e a redução do âmbito da participação política legítima. Mas, de outro lado, permitia uma dinâmica de coalizões políticas capaz de realizar reformas que seriam inviáveis em situação de pleno domínio dos proprietários rurais.28

Um dos aspectos que contribuiu para a homogeneidade da elite, para

Carvalho, foi a educação superior, marca distintiva da elite intelectual brasileira.

Nesse ponto, encontra-se a política portuguesa de não proliferação de universidades

na colônia, ao contrário da política espanhola, em que universidades foram criadas

na colônia já no século XVI. A elite brasileira tinha que sair do Brasil para realizar os

estudos, sendo que a quase totalidade se dirigia à universidade de Coimbra –

situação que, segundo o autor, perdurou até aproximadamente 1850.29 Essa

universidade, no período da independência, centrava-se na formação jurídica,

possuindo grande peso político por desenvolver o treinamento específico para

funções públicas. A universidade caracterizava-se, ainda, pelo conservadorismo,

sendo isolada do restante da Europa, onde se difundiam ideias relacionadas ao

iluminismo francês – como, por exemplo, a crítica ao sistema monárquico. A elite

brasileira formou-se em Coimbra com uma visão ideológica conservadora e

homogênea, sendo que tal elite representava a quase totalidade dos homens que

tomavam as decisões no governo central.

A educação em Coimbra deu à elite política da primeira metade do século XIX

a “homogeneidade ideológica e de treinamento” necessária para “as tarefas de

construção do poder nas circunstâncias históricas em que o Brasil se encontrava”,30

considerando-se que a geração dos estudantes de Coimbra predominou durante a

fase de consolidação política do sistema imperial.

Carvalho enxerga certas especificidades entre os senadores, mesmo entre os

que se formaram na universidade de Coimbra. Uma delas se refere à “vida mais

longa” da geração de Coimbra no Senado, justificada pela exigência de idade

28 Idem, p. 38. 29 Idem, p. 57. 30 Idem, p. 84.

15

mínima de 40 anos para se chegar a esse cargo. O autor afirma que o fim do

Primeiro Reinado significou o afastamento de muitos políticos ligados a D. Pedro I e

a entrada em cena de uma nova geração de líderes. Ao final da Regência, a nova

geração, formada em Coimbra, chegava ao Estado e ao Conselho de Estado, já

dividida entre conservadores e liberais.31 Assim :

A geração que começou a sair das escolas brasileiras no inicio da década de 1830 só teve acesso ao Senado a partir da metade dos anos 40, depois de já dominar os postos ministeriais onde alguns chegaram com menos de 30 anos.32

Tendo em vista esse aspecto, pode-se dizer que os membros do Senado na

década de 1830 não possuíam tanta homogeneidade ideológica tal como a

verificada, por exemplo, na Câmara dos Deputados.

Ao tratar de um outro aspecto visto por ele como fundamental para a

homogeneidade da elite política – a profissão –, Carvalho destaca mais razões para

explicar algumas peculiaridades encontradas entre os seus membros no Senado.

Para o autor, a profissão foi outro aspecto que contribuiu para dar unidade

ideológica e de interesses à elite política imperial. Nas suas palavras :

A ocupação, principalmente se organizada em profissão, pode constituir importante elemento unificador mediante a transmissão de valores, de treinamento e dos interesses materiais em que se baseia. Na medida em que o recrutamento de uma determinada elite política se limite aos membros de algumas poucas ocupações, aumentarão os índices de homogeneidade ideológica e de habilidades e interesses.33

Grande parte dos elementos com possibilidade de acesso à posições na elite

política estava de alguma maneira vinculada à máquina estatal, pois o Estado era o

maior empregador dos letrados que ele próprio formava. A elite política, portanto,

teria refletido essa característica, tendo como conseqüência a tendência de fundir-se

com a burocracia.34

Para Carvalho, o grupo dos magistrados foi o que mais combinou elementos

intelectuais, ideológicos e práticos favoráveis ao estatismo – sobretudo os formados

na Universidade de Coimbra. Os magistrados possuíam experiência de aplicação

cotidiana da lei e sua carreira lhes fornecia elementos adicionais de treinamento

31 Idem, p. 50. 32 Idem, p. 71. 33 Idem, p. 83. 34 Idem, p., 85.

16

para o exercício do poder público, estando ideologicamente voltados aos interesses

do Estado.35

Segundo o autor, nesses anos cruciais para a formação do Estado brasileiro,

houve a predominância quase absoluta de burocratas no governo – sobretudo

magistrados e funcionários públicos. Entre os conselheiros de Estado e ministros,

por exemplo, havia inicialmente somente magistrados e funcionários públicos, não

constando nenhum fazendeiro. Nas suas palavras :

O domínio de funcionários públicos na elite política significava na verdade que os representantes da sociedade eram ao mesmo tempo representantes do Estado. Exatamente por isso tiveram êxito na tarefa de construção do poder nacional [...]36

Para Carvalho, porém, teria havido uma elite política não-burocrática: aquela

ligada à propriedade da terra, ao comércio e à mineração. Ele ressalta que

principalmente a elite política dos proprietários de terra tendia a dividir-se, sendo que

muitas vezes defendia os interesses provinciais em detrimento dos interesses

nacionais. Assim :

Representantes de setores ligados à grande agricultura de exportação e dependentes da mão-de-obra escrava tendiam a divergir em pontos específicos de representantes das áreas produtoras para o mercado interno sem grande dependência do escravo.37

É exatamente neste ponto que Carvalho identifica as especificidades do

Senado: uma instituição que possuía a maior presença de proprietários de terra sem

instrução e menor número de profissionais liberais, em comparação com os demais

membros da elite política. Assim, havia menos membros no Senado com instrução

superior do que na Câmara dos Deputados e nos Conselhos de Estado. De acordo

com os dados apresentados pelo autor, 85% dos senadores possuíam nível

superior, enquanto que entre os membros do Conselho de Estado, por exemplo,

esse número chegava a 100%.

Segundo Carvalho, a composição diversa dos membros do Senado foi outro

ponto que contribuiu para o caráter menos homogêneo dessa instituição :

Pode-se dizer que os senadores tomados englobadamente possuíam em grau menor do que os conselheiros e ministros aquelas características de treinamento e socialização que viemos apontando como favoráveis à atividade de construção do poder. E, de fato, o Senado caracterizou-se por

35 Idem, p., 87. 36 Idem, p. 104. 37 Idem, p. 211.

17

um comportamento político mais rígido e mais conservador do que o Conselho e o Ministério.38

Outro ponto interessante abordado por Carvalho é a relação do Estado

imperial com a agricultura de base escravista – de onde vinham muitos membros da

elite política não-burocrática presente no Senado. O autor comenta que,

independentemente da elite política, o Estado não poderia sustentar-se sem a

agricultura de exportação, que gerava cerca de 70% das rendas do governo, via

impostos de exportação e importação. Igualmente, a manutenção da ordem no

interior não poderia ter sido conseguida sem a colaboração dos senhores de terra,

tendo em vista o controle local exercido por eles. Dessa forma:

Gostando ou não, e muitos não gostavam, a elite política, sobretudo os magistrados, tinha que compactuar com os proprietários a fim de chegar a um arranjo, senão satisfatório, que pelo menos possibilitasse uma aparência de ordem, embora profundamente injusta. O Brasil [...] era uma economia de produtores agrícolas com mão-de-obra escrava e de criadores de gado com ou sem escravos.39

Carvalho analisa que os proprietários de terra, em vários momentos, não

possuíam nem mesmo tempo para atuar diretamente na política. Somente nos raros

momentos em que eram postos em jogo alguns de seus interesses básicos, como a

propriedade da terra e de escravos, é que eles se uniam em frente única para

defender-se. E conclui que:

Da conjunção desses fatores resultava que o Estado e a elite que o dirigia não podiam, de um lado, prescindir do apoio político e das rendas propiciadas pela grande agricultura de exportação, mas, de outro, viam-se relativamente livres para contrariar os interesses dessa mesma agricultura quando se tornasse possível algumas coalizão com outros setores agrários.40

Miriam Dolhnikoff41 analisa alguns aspectos importantes do papel exercido

pelo Poder Legislativo a partir da Constituição de 1824. A autora também atenta

para aspectos peculiares do Senado com relação à Câmara dos Deputados. Para

ela, houve a participação das elites locais na formação do Estado nacional, a partir

das reformas liberais implementadas na década de 1830, especialmente o ato

adicional de 1834.42

38 Idem, p., 92. 39 Idem, p. 212. 40 Idem, p., 214. 41 DOLHNICOFF, Mirian. Op. cit. 42 Idem, p. 14.

18

Esse ato, como sobredito, implementou medidas descentralizadoras e

federativas no Brasil, tais como, no campo judicial, a instalação do cargo de juiz de

paz, com poder em âmbito local, e a instalação de assembléias provinciais. Para

Dolhnikoff, a partir dessas medidas as elites locais se transformaram em elites

políticas, sendo que a participação e o debate em torno dos seus interesses foram

situados no âmbito do Legislativo.

As elites provinciais, então, ter-se-iam transformado em elites políticas

através de um arranjo institucional pelo qual as Câmaras se tornaram espaço de

negociação dos interesses provinciais e de interferência na política nacional. Ao

mesmo tempo, como elites políticas, estavam comprometidas com o novo Estado

brasileiro em formação. Dessa forma, alguns interesses eram comuns a todas as

elites provinciais, como o de manter a unidade e preservação do Brasil pós-

independente.

Dolhnikoff considera que a Câmara e o Senado foram um importante espaço

de negociação das elites locais com o governo central do Rio de Janeiro:

Na Câmara e no Senado eram decididos em última instância os temas referentes ao exercício da autonomia e ao atendimento das demandas provinciais, de modo que os deputados e senadores se tornaram peças centrais na negociação entre províncias e o centro.43

Porém, é interessante notar que a autora enxerga uma diferença no grau de

interferência das elites provinciais no âmbito do Senado e da Câmara dos

Deputados. Essa diferença, para ela, se relaciona ao fato de o primeiro ser ocupado

por membros cujos cargos eram vitalícios, enquanto que os deputados deveriam ser

eleitos, pelo menos, a cada quatro anos. Por tal motivo, os membros da Câmara dos

Deputados estariam, de alguma forma, mais preocupados em atender às demandas

das províncias que representavam, já que havia o interesse na reeleição – o que não

ocorria no Senado. Nas palavras da autora:

O Senado não era propriamente organizado para funcionar como espaço de representação das unidades regionais. Os senadores eram nomeados pelo governo central e seu cargo era vitalício. O fato de serem nomeados não era necessariamente um problema para que os senadores funcionassem como representantes da província, já que a escolha estava restrita aos três nomes mais votados em eleições realizadas de acordo com as regras que presidiam as eleições para deputado. Mas o fato de o cargo ser vitalício podia – uma vez que o senador não precisava, para se manter no cargo, se submeter à escolha dos eleitores – afastá-lo das demandas da sua região.44

43 Idem, p. 22. 44 Idem, p., 289.

19

A vitaliciedade do Senado, portanto, era considerada um aspecto que remetia

à centralização administrativa e ao impedimento à implementação de um pacto

federativo pleno, idéia ressaltada por Dolhnikoff. 45

A partir dos estudos feitos até aqui, é possível recuperar alguns aspectos que

ajudam a entender a instituição analisada nesta monografia. O Senado, como dito,

foi uma instituição política que ganhou relevância durante o período regencial,

quando houve a perda da força simbólica da figura real, além do esvaziamento do

Poder Moderador. A tendência foi de preponderância do Poder Legislativo – Senado

e Câmara dos Deputados – sobre o Executivo, já que o próprio regente tinha seu

poder limitado pela atuação de senadores e deputados.

Nota-se, ainda, que os membros do Senado, enquanto representantes da elite

política brasileira – interpretada por Carvalho como coesa e homogênea –,

possuíam, até certo ponto, interesses comuns, tais como o fortalecimento do Estado

e das instituições políticas imperiais, para manter a unidade da ex-colônia no

contexto pós-independência. Porém, havia certas peculiaridades entre os membros

do Senado, quando comparados com os representantes de outras instituições, como

a Câmara dos Deputados e o Conselho de Estado. Para Carvalho, as diferenças dos

membros do Senado são derivadas da composição social dos senadores, que

contava com menos membros com formação superior e mais proprietários de terra, e

que, consequentemente, era uma elite menos homogênea e menos preocupada em

atender aos interesses do Estado. Já Dolhnikoff enfatiza o fato de o Senado possuir

cargo vitalício para explicar a diferença desta instituição com a Câmara dos

Deputados.

Porém, a “homogeneidade” da elite política não impedia a existência de

conflitos de interesses entre as elites locais, já que, como visto, o contexto

descentralizador do período regencial abriu espaço para novos debates políticos

entre as elites provinciais. Essas divergências, como afirmaram Carvalho e

Dolhnikoff, foram resolvidas no campo institucional, sendo a Câmara dos Deputados

e o Senado, portanto, importante local de negociação do interesse das elites na

década de 1830, período que será privilegiado nesta pesquisa.

45 Idem, p. 97.

20

3 OS DEBATES SOBRE IMIGRAÇÃO NO SENADO E AS CONCEPÇÕES SOBRE

O IMIGRANTE IDEAL

Neste capítulo, serão analisados os debates sobre imigração ocorridos no

Senado na década de 1830, buscando compreender o posicionamento da elite

política imperial frente a questões referentes à imigração, ou mais especificamente,

as expectativas que os senadores apresentavam em relação à imigração e ao tipo

de imigrante que se pretendia introduzir no país.

3.1 O TEMA DA IMIGRAÇÃO NO SENADO

As sessões do Senado, no período analisado, iniciavam-se normalmente no

começo de maio e se encerravam em outubro. Para que pudesse haver sessão, era

necessário um número mínimo de senadores: metade mais um dos respectivos

membros. As discussões entre os senadores eram motivadas por projetos de lei,

propostos por algum membro da casa ou vindo da Câmara dos Deputados;

discutiam-se, também, resoluções e pareceres encaminhados por alguma comissão.

Os projetos de lei passavam por três discussões, durante as quais os senadores

podiam propor emendas ou requerer o adiamento dos debates. Os requerimentos e

as emendas eram discutidos e votados. Após as três discussões, o projeto de lei era

encaminhado à Comissão de Redação, e posteriormente enviado à Câmara dos

Deputados. Se a Câmara dos Deputados não aprovasse as emendas ou adições do

Senado, ou vice-versa, e todavia a Câmara julgasse que o projeto era vantajoso,

poderia requerer, mediante uma deputação de três membros, a reunião das duas

câmaras, que se efetuaria no Senado, a fim de se deliberar sobre o tema.46

Alguns dos debates travados no Senado que mais referências fizeram, de

forma direta ou não, aos trabalhadores imigrantes envolveram os seguintes projetos

de lei: sobre naturalização, debatido em 1829; referente aos direitos dos

estrangeiros no Brasil, também de 1829; sobre contrato entre empregados e

trabalhadores, tanto nacionais quanto estrangeiros, em 1830 (de certa forma, esse

debate teve uma “continuação” em 1837, nas discussões em torno do projeto do

46 TAUNAY, Affonso de E. O senado no império. Brasília: Senado Federal, 1978, p. 16.

21

qual resultou a lei de locação de serviços); e sobre colonização dos estrangeiros,

proposto em 1827 e discutido em 1830. No período que vai de 1831 a 1836, as

discussões referentes ao trabalho centraram-se mais na questão da abolição do

tráfico e em como evitar o contrabando, o que é um reflexo da ineficiência da

proibição do tráfico de escravos, que deveria cessar em 1831.47 Em 1836, houve

debates no Senado com relação à validade da concessão de sesmarias. Nos anos

finais da década de 1830, sobretudo em 1839 e 1840, as discussões sobre o

trabalho imigrante se concentraram, principalmente, na concessão de privilégios a

empresas que se utilizassem exclusivamente de trabalhadores livres europeus.

A partir da leitura do posicionamento e dos argumentos apresentados pelos

senadores nesses debates, como se procurará demonstrar, foi possível identificar

duas visões distintas em relação ao tipo de imigrante que se desejava introduzir no

país: indivíduos que só possuíssem a força de trabalho, a ser utilizada nas lavouras

de café; ou estrangeiros europeus que pudessem estabelecer-se por conta própria,

ajudando, nessa perspectiva, a desenvolver e modernizar a agricultura do país.

Da análise das discussões em torno da criação de uma lei de naturalização,

bem como dos debates referentes aos direitos dos estrangeiros no Brasil – ambos

discutidos em 1829 –, pode-se ter uma ideia dessas concepções distintas com

relação ao tipo de imigrante ideal. Os debates envolvendo a necessidade ou não de

uma lei de naturalização no Brasil, e quais seriam as finalidades de uma legislação

dessa natureza, iniciaram-se em julho de 1829.

Alguns senadores, como Almeida e Albuquerque, defendiam a necessidade

de criação dessa lei, que teria como objetivo a atração de estrangeiros, necessários

para se aumentar a população do Brasil. Nas palavras do senador:

Os lugares que têm população demais até facilitam a emigração; e nós pelo contrário devemos facilitar a entrada dos estrangeiros, e naturalizar aqueles que nos convêm, e querem estabelecer-se em nosso país. Estados há ao norte da América, onde basta um ano de residência para se naturalizar o estrangeiro; e nós devemos ao seu exemplo facilitar essa graça, porque precisamos de população, e de fixar por este modo os homens industriosos, que sendo cidadãos nossos tomaram interesses pelas nossas coisas.48

47 Para mais informações sobre esse tema, ver RODRIGUES, Jaime. O infame comércio - propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas (SP): Editora da Unicamp/Cecult, 2000. .

48 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877 Tomo II, p. 124. (sessão de 17 de julho de 1829).

22

Nota-se que Almeida e Albuquerque relaciona a lei de naturalização com o

estímulo à vinda de “homens industriosos”, vista por ele como indispensáveis ao

crescimento da população brasileira. Tal argumento é refutado por outros

senadores, como Caravelas e Borges. Para eles, a criação de uma lei de

naturalização não favoreceria necessariamente a vinda de estrangeiros e tampouco

sua permanência no Brasil. Tais objetivos seriam alcançados com o bom

cumprimento da Constituição. Porém, apesar das discordâncias, a ideia da

necessidade de atração de imigrantes ao país é unânime entre os senadores que se

manifestaram nessa discussão – e, como será visto, também nos demais debates

analisados –, sendo que as divergências giravam em torno das medidas a serem

tomadas para se alcançar esse objetivo.

Os debates envolvendo a redação de um projeto de lei a respeito dos direitos

de que gozavam os estrangeiros no Brasil também ocorreram em 1829. O tema foi

muito discutido entre as sessões de 4 de junho e 9 de julho de 1829, dia em que o

projeto de lei foi encaminhado à Câmara dos Deputados. Nesse momento, o projeto

de lei contava com 21 artigos, que tratavam de aspectos como: as leis a que os

estrangeiros deveriam estar sujeitos; se os estrangeiros poderiam ou não exercer

todos os tipos de indústria; se os estrangeiros teriam ou não o direito à propriedade

e à liberdade de imprensa, entre outros.

Na sessão de 12 de junho de 1829, o artigo 11 – “é livre a todo o estrangeiro

o exercício da sua indústria, qualquer ela que seja”49 – gerou fortes discussões, visto

que era considerado muito amplo. Alguns senadores sugeriram que certos tipos de

indústria – comércio de cabotagem, pólvora e diamantes – não pudessem ser

realizados por estrangeiros. Eles argumentavam que tais restrições deveriam estar

presentes na lei, enquanto que outros preferiam a supressão do artigo, já que as

restrições poderiam prejudicar a vinda de imigrantes. Tal é o caso, por exemplo, do

senador Carneiro de Campos, que afirmou que “para atrair a indústria estrangeira é

preciso convidar aqueles que a podem trazer ao nosso pais”.50 Apesar dessas

divergências, novamente prevalecia entre os senadores a ideia de que a finalidade

dessa lei seria a atração de estrangeiros.

Outro dispositivo que gerou controvérsia, ainda referente à lei dos direitos dos

estrangeiros, na sessão do dia 15 de junho de 1829, foi o artigo 15, segundo o qual

49 Idem, p.333. (sessão de 12 de junho de 1829). 50 Idem, p.335. (sessão de 15 de junho de 1829).

23

“qualquer estrangeiro pode no Império adquirir a propriedade de bens móveis ou

imóveis por doação, compra e venda, testamento, herança, ou por qualquer modo,

pelo qual se adquire o domínio pleno ou útil”.51 O senador Nicolau Pereira de

Campos Vergueiro, personagem cuja participação nos debates analisados é muito

relevante, era proprietário de terras e fazendeiro do Oeste Paulista, representando,

em grande medida, os interesses desse grupo. Além disso, foi o pioneiro na

implementação do sistema de parcerias, que será analisado adiante.52 Vergueiro

posicionou-se contrário a esse artigo, visto que, para ele, só o estrangeiro residente

no Império é que poderia adquirir bens imóveis, uma vez que “a utilidade pública

exige que os estrangeiros não sejam senhores do nosso território”. Nessa linha de

raciocínio, Vergueiro propôs uma emenda, pela qual os “estrangeiros que adquirirem

bens de raiz são obrigados, em caso de ausência, a restituí-los em um prazo de 5

anos”.53

O Visconde de Cayru foi um dos muitos senadores que se colocou contrário à

emenda, por considerar que ela “desfaria o propósito da liberal lei em discussão”,

que é o de “atrair industriais e capitalistas estrangeiros a virem fazer no Brasil

sólidos estabelecimentos de agricultura e de outras indústrias úteis’”. Isso à medida

que, segundo ele:

Só a esperança de melhorarem de condição, ou amplificarem as suas fortunas com a certeza da perpetuidade, ou de livre disposição dos adquiridos bens de raiz, é que pode incitar os estrangeiros a se expatriarem, aventurando-se em especulações dispendiosas e arriscadas.54

Além disso, Cayru afirmou que era por “interesse”, e não por favor, que o

Brasil queria a vinda dos estrangeiros. Tal interesse relacionava-se à incontestável

falta de braços, engenhos e capitais no Brasil. Para ele, “o nosso interesse não é

atrair vagabundos, [...] mas sim muita gente laboriosa, hábil e rica, que se proponha

adquirir fortuna, ou aumentar a que tem, fazendo estabelecimentos permanentes”.55

Na sessão de 16 de junho de 1829, ainda com relação à proposta do artigo

15, o senador Oliveira estabeleceu uma relação entre europeus e africanos:

51 Idem, p. 351. (sessão de 15 de junho de 1829). 52 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república - momentos decisivos. São Paulo: Editora

Brasiliense, p. 172. 53 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877 Tomo

II, p. 351. (sessão de 15 de junho de 1829). 54 Idem, p.356. (sessão de 15 de junho de 1829). 55 Idem, ibidem.

24

Com que meio convidaremos nós os homens da Europa para virem para aqui? Anualmente se introduzem no Brasil mais de 40.000 negros, e ninguém lhes impõe restrições; se eles se libertam, transpassam seus bens a outros pretos, e fazem o que querem; entretanto, aos homens cultos da Europa, põe-se restrições tais que antes de os convidarem, afugentarão de nossas praias. Logo, é melhor que se rejeite essa lei.56

O senador posicionou-se contrário à emenda de Vergueiro que propunha que

houvesse restrições à possibilidade de manutenção de propriedade por estrangeiros.

Visconde de Cayru, na mesma direção, argumentou novamente sobre a

necessidade de substituir braços livres das nações civilizadas em lugar da

escravatura africana. Outros senadores se colocaram da mesma forma, dizendo que

deveriam ser asseguradas vantagens legais aos estrangeiros, tendo-se em vista a

falta de mão-de-obra e a suposta superioridade dos imigrantes europeus, que

ajudariam a civilizar o Brasil.

Outro aspecto contemplado pelo projeto estava expresso no seu artigo 8º, que

definia que:

O estrangeiro não poderá ser obrigado a prestar serviço, de qualquer qualidade que seja, contra sua vontade, e não pagará maiores imposições, que as que pagam, ou as que houverem de pagar todos os cidadãos brasileiros.57

A esse artigo, o senador Nicolau Vergueiro propôs uma emenda para que à

palavra “serviço” fosse acrescentado o termo “militar”. Isso, segundo ele, porque os

estrangeiros não deveriam ser “protegidos” da imposição de serviços de outra

natureza que não a militar. Os imigrantes, considerou, “gozam dos cômodos, é

necessário que tenham parte nos incômodos; concedamos-lhes muitos favores, mas

não os façamos nossos amos”.58 Com essa emenda, o senador pretendia, de

alguma maneira, que os estrangeiros fossem obrigados a prestar outras formas de

serviço, inclusive na grande lavoura.

Importante ressaltar que essas discussões ocorreram em um contexto no qual

a aquisição de escravos tornar-se-ia mais cara devido à eminente proibição do

tráfico, prevista para 1831. Tal previsão decorria de um tratado assinado em 1826

entre Brasil e Inglaterra que promovia medidas de extinção dessa prática. O tratado

previa a proibição do tráfico de escravos para dali a 5 anos, sendo que, a partir

56 Idem, p.357. (sessão de 16 de junho de 1829). 57 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877, Tomo

I, p. 326. (sessão de 11 de junho de 1829). 58 Idem, p. 327. (sessão de 11 de junho de 1829).

25

desse período, o comércio de negros seria equiparado à pirataria.59 Nesse sentido,

no momento em que discussões a respeito dos imigrantes ocorriam no Senado, em

1829, havia a possibilidade latente do fim do tráfico no ano seguinte.

Percebem-se, na discussão envolvendo o projeto de lei referente aos direitos

dos estrangeiros no Brasil, entendimentos distintos dos senadores, relacionados ao

acesso à propriedade e às formas de serviço a serem realizadas pelos estrangeiros

– apesar de todos os parlamentares concordarem com a conveniência de se atrair

imigrantes ao país. Como revela esta pesquisa, formaram-se duas concepções

distintas, que começaram a ser formuladas já na década de 1830, com relação ao

tipo de imigrante ideal. Tais concepções são ainda mais identificáveis nos debates a

respeito da criação de leis de contrato de trabalho, com a defesa da vinda de

imigrantes lavradores em substituição aos escravos nas fazendas de café, e sobre a

doação de terras a estrangeiros, como forma de atrair imigrantes e fazer com que se

estabelecessem por conta própria e desenvolvessem a indústria brasileira.

3.2 UM IMIGRANTE PARA TRABALHAR PARA OUTREM: AS LEIS DE LOCAÇÃO

DE SERVIÇOS

A evidência da tentativa de Vergueiro de criar medidas visando à utilização e

permanência do trabalhador estrangeiro nas lavouras é reforçada pelo fato de o

mesmo senador ter proposto um projeto de lei para regular contratos entre

empregadores e trabalhadores. Tal projeto, proposto ainda em 1829, impunha

medidas que visavam a obter garantias de permanência do estrangeiro no trabalho

na lavoura.60

Esse projeto de lei referia-se ao contrato entre empregadores e trabalhadores

– tanto brasileiros quanto estrangeiros – e obrigava o trabalhador a prestar serviços

por um tempo que não estava especificado no contrato. Em seus seis artigos,

tratava das consequências do não-cumprimento do contrato, tanto para empresários

quanto para trabalhadores. De acordo com o projeto de lei, era permitido aos

empresários (locatários) transferir o contrato a outrem, com a condição de não piorar

59 COSTA, Emília Viotti da.Op. cit, p. 12. 60 O projeto está publicado na íntegra em: BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de

Janeiro : Tipografia Nacional, 1877, Tomo II, p. 187 (sessão de 6 de agosto de 1829).

26

a situação de quem prestava o serviço (locador). Este, por sua vez, só poderia

rescindir o contrato caso pagasse ao locador os serviços prestados e mais a metade

do preço contratado.61

O projeto de lei para regular contratos entre empresários e trabalhadores foi

discutido em 1830, a partir do dia 22 de maio. Um ponto interessante é que todos os

senadores que se manifestaram concordaram com a utilidade dessa lei. O Marquez

de Barbacena, por exemplo, afirmou que o furor de emigrar era muito grande na

Europa, sendo necessário se proporcionar meios de transporte adequados para que

chegassem muitos imigrantes nos portos brasileiros. O senador considerou ainda

necessário que, “assim como os empenhadores de homens escravos tinham seguro

o lucro do seu trabalho, também estes, que transportam homens livres, tenham certo

o pagamento das despesas e dinheiro que adiantam”.62 Essa lei, para o senador,

cumpriria com essas finalidades, pois o estrangeiro que se desviasse do seu

contrato seria levado à cadeia. Vergueiro – como já visto, o propositor do projeto –

também ressaltava a importância da criação dessa lei. Tratando do artigo quarto,

que estipulava a pena de prisão ao trabalhador que não cumprisse o contrato,

Vergueiro afirmava:

Que recursos haverá para fazer o homem trabalhar, e cumprir o contrato? Sabemos que não tem dinheiro para pagar, porque então ele não se sujeitava a isso; logo, paga com a sua pessoa; e depois de se lhe aplicar os meios correcionais, resta obrigá-lo a pagar em uma prisão. Ainda que isto não tenha inteira aplicação, há de tê-la em alguma parte.63

Ele ainda argumentava que, na maioria das prisões, havia meios para se

trabalhar. Assim, o projeto de Vergueiro pretendia dar uma garantia aos

empregadores que contratavam trabalhadores, estipulando a pena de prisão para o

seu descumprimento. O projeto, aprovado com duas emendas, foi remetido à

sanção imperial em 31 de agosto de 1831.

Lamounier,64 Mendonça65 e Gebara66 comentam sobre o conteúdo,

significado e implicações das leis de prestação de serviços para as relações de

trabalho do século XIX.

61 Idem, ibidem. 62 Idem, p. 278. (sessão de 17 de junho de 1829) 63 Idem, ibidem. 64 LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre – a lei de locação de serviços de 1879. Campinas (SP): Papirus, 1988.

65 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Liberdade em tempos de escravidão. In: Território, Conflito e Identidade. Belo Horizonte: Argumentum, 2007.

66 GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo : Editora Brasiliense, 1986.

27

Lamounier enfatiza a sobredita ameaça de supressão do tráfico de escravos

africano devido ao acordo realizado entre Brasil e Inglaterra. Para ela, a partir desse

momento, a questão da necessidade de “braços para a lavoura” tornou-se frequente

nos debates parlamentares. Porém, a autora ressalta que a mencionada “falta de

braços” – também muito presente nos debates aqui analisados – não era uma

questão exclusivamente demográfica. Isso tendo em vista que:

As referências sobre a oferta ou escassez de braços vêm quase sempre acompanhadas de exigências que do ponto de vista legal, isto é, da legislação, poderiam ‘remediar’ a situação. As ‘leis’ com respeito às relações de trabalho eram convenientes, seja por legitimarem uma situação, seja por instaurarem outra ou por prevenirem um conjunto qualquer de circunstâncias que estavam por vir. Ora, se os nacionais eram ociosos ou não-afeitos ao trabalho, ou se na região de lavoura a população disponível para o trabalho era escassa ou se, então, se deveria promover a imigração estrangeira, não resta dúvida de que concomitante a isto, e acreditamos que até com mais vigor, a discussão trazia consigo a necessidade de se fixarem novas regras, normas para as relações diversas que se estabeleciam entre os agentes.67

Lamounier ressalta que uma das questões que se impunha nesse momento

era a organização e o controle efetivo dos braços disponíveis para a grande lavoura.

E considera que não foi um acaso a lei de locação de serviços ter sido aprovada

poucos meses depois da tentativa de extinção do tráfico de escravos, no mesmo

ano. A lei de locação de serviços de 1830 representa, para a autora, a “primeira

medida concernente às relações de trabalho livre, nacional e estrangeiro no Brasil”.68

Joseli Maria Nunes Mendonça também estuda os significados da lei de

locação de serviços de 1830, através da análise dos debates envolvendo a criação

dessa lei na Câmara dos Deputados. Assim como Lamounier, Mendonça demonstra

que o principal objetivo da lei era “estabelecer mecanismos legais que

assegurassem a permanência do trabalhador nas tarefas para cuja realização tinha

sido contratado”,69 tais como multas e penas de prisão. Além disso, a autora ressalta

que os mecanismos de segurança para os empregadores eram baseados na

experiência de relação entre os senhores e seus escravos.

Gebara também comenta sobre a lei de locação de serviços de 1830, com

uma interpretação diversa da apresentada por Lamounier e Mendonça. Para

Gebara, essa lei não teve a importância apresentada pelas autoras. No contexto

67 LAMOUNIER, Maria Lúcia. Op.cit., p. 20. 68 Idem, ibidem. 69 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op.cit., p. 5.

28

pós-independência, segundo afirma, a principal preocupação do Brasil estaria na

organização da vida institucional. Além disso, não haveria ainda pressões para o fim

do tráfico de escravos, inexistindo, portanto, problemas com relação ao

abastecimento de mão-de-obra. Nas suas palavras, a lei de 1830:

Não pode ser considerada como tendo sido adequada à atração de imigrantes, ou mesmo capaz de organizar, minimamente, o mercado de trabalho livre. Como se sabe, durante a primeira metade do século passado, o país estava, antes de tudo, organizando a sua vida institucional e formando a sua própria administração.70

Porém, a presente análise dos debates ocorridos no Senado parece estar

mais coerente com a interpretação de Lamounier e Mendonça, já que a questão do

problema da mão-de-obra decorrente do possível fim do tráfico de escravos é

bastante discutida desde o início da década de 1830. O senador Borges, em um

debate sobre a Lei de Contratação de Serviços, vista por ele como tendo a finalidade

principal de atrair mão-de-obra imigrante, afirmou:

Cuidemos em suprir a falta dos braços Africanos. [...] convém uma lei de colonização que chame esses braços: é esta uma lei que, aparecendo fora do Império, já há de assegurar ao estrangeiro, que quiser vir ao Imperio na qualidade de simples trabalhador, os socorros que achará no Governo; e aplica aos proprietários brasileiros o modo de os mandar procurar.71

Assim, a lei de 1830 apesar de:

Promulgada depois da Independência e num período em que a principal preocupação era a organização da vida institucional do país e a formação da administração, não deve, contudo, ser considerada como mais uma das medidas puramente administrativas então aprovadas. Apesar da simplicidade de suas disposições, certamente, já dizia respeito a uma organização das relações de trabalho.72

A importância que a regulação dos contratos de trabalho adquiriu na época se

evidenciou pelo fato de ter sido aprovada, em 1837, outra lei relativa à questão, o

contrato de locação de serviços.73 O projeto acerca da matéria foi encaminhado pela

Câmara dos Deputados em 7 de junho de 1837, e, após algumas alterações e

emendas realizadas nas três discussões entre os senadores, foi sancionado em 7 de

70 GEBARA, Ademir. Op.cit, p. 76. 71 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877, Tomo

II, p. 12. (sessão de 22 de maio de 1829.) 72 LAMOUNIER, Maria Lúcia. Op. cit, p. 62. 73 As disposições iniciais desse projeto podem ser encontradas em: BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877, Tomo I, p. 114-118. (sessão de 7 de junho de 1837)

29

outubro, tendo vigência até 1879.74 Era mais específico e complexo, tratando

somente dos trabalhadores estrangeiros e enumerando, em 17 artigos, as justas

causas para o não-cumprimento do contrato, tanto para o locador quanto para o

locatário. Com a aprovação desse diploma legal, a lei de 1830 ficou restrita a um

pequeno número de trabalhadores nacionais.

Com a lei de 1837, estabeleciam-se as condições para a celebração do

contrato de trabalho: teria que ser por escrito, podendo ser formalizado no Império

ou fora dele; apenas poderia ser realizado por maiores de 21 anos ou curadores; da

mesma forma que em 1830, não tinha duração especificada. Considerava-se justa

causa para o locador despedir-se: se o locatário faltasse ao cumprimento das

condições estipuladas no contrato ou exigisse serviços que não estavam previstos

no contrato, ou ainda se fizesse algum ferimento na pessoa do locador ou injuriasse

a honra de sua família. Caso o locador se despedisse por alguma dessas justas

causas, não seria obrigado a pagar ao locatário nenhuma quantia que pudesse estar

devendo. Era considerada justa causa para a despedida do locador: doença,

condenação à pena de prisão ou outra que o impedisse de prestar serviços,

embriaguez habitual, injúria feita ao locatário e à sua família, além de imperícia. O

locatário que sem justa causa despedisse o locador antes de findar o tempo

estipulado no contrato deveria pagar-lhe o total correspondente ao tempo de

contrato. O locador despedido por justa causa deveria indenizar o locatário da

quantia que lhe devesse. Caso não o fizesse, seria imediatamente preso e

condenado a trabalhar nas obras públicas o tempo necessário para pagar tudo

quanto devesse ao locatário. Se não houvesse obras públicas, o locador seria

condenado à prisão com trabalho por no máximo dois anos. Se o locador se

despedisse sem justa causa ou se ausentasse antes de estar completo o tempo de

contrato, seria preso e não seria solto enquanto não pagasse em dobro tudo quanto

devesse ao locatário; se não tivesse como pagar, trabalharia de graça até completar

o contrato.75

Segundo Lamounier, a lei de 1837 foi mais específica, embora preservasse os

mesmos objetivos da de 1830: promover a imigração como alternativa para o

trabalho escravo, tendo em vista a possível extinção do tráfico de escravos.76

74 LAMOUNIER, Maria Lúcia. Op. cit, p. 27. 75 Idem, p. 65. 76 Idem, p. 62.

30

Para Gebara, a lei de 1837 teria sido menos restritiva que a de 1830, já que,

na sua interpretação, a primeira não tinha o propósito de atrair estrangeiros.

Segundo ele, a lei de 1837 teria sido o ponto de partida para o estabelecimento de

uma política voltada para a criação de alternativas para o trabalho escravo:

A lei de 1837 teve uma significação diferente. [...] a imigração, no século XVII, foi promovida com o propósito geopolítico de colonizar as fronteiras meridionais, via crescimento populacional. [...] posto que esta estratégia não se realizou, o problema da ocupação do Sul do país permaneceu. Manteve-se então uma contínua discussão sobre as implicações da imigração e da colonização. Com isso, firmou-se o terreno para o debate das estratégias para implementar políticas naquela direção. Como resultado dessas discussões, e também com a ameaça de pressões inglesas e de medidas iniciais tomadas pelo governo brasileiro para combater o tráfico africano de escravos, formulou-se a lei de 1837. Essa lei foi, portanto, mais integrada à elaboração de uma política de atração de imigrantes.77

Além disso, Gebara comenta que a lei de locação de serviços de 1837 serviu

como base para a regulamentação dos diferentes sistemas de trabalho utilizados no

período posterior: meação, parceria e colonato.78

Tanto Lamounier quanto Gebara analisam o papel ativo da lei,

compreendendo o contexto social como fator fundamental no processo de

elaboração e reformulação das leis e estudando-as através da experiência da

resistência, pressão, e rebelião. Nesse sentido, os autores concordam que a lei de

locação de serviços de 1837 sofreu experiências práticas que culminariam para a

sua substituição, em 1879. A Lei de 1837 tinha a função, para os proprietários, de

manter os estrangeiros nos trabalhos na lavoura, obter garantias de recuperação

segura do investimento feito com imigrantes e atingir um nível razoável de

produtividade.

Porém, como salienta Lamounier, nem mesmo a prisão mostrou, na prática,

resolver o problema da dívida do colono e tampouco do investimento inicial do

fazendeiro, sendo que havia queixas contra a lei tanto por parte dos proprietários

quanto dos colonos. Para Lamounier, a aplicação da lei de 1837 mostrou-se ineficaz

sobretudo a partir da década de 1850, quando começaram a prevalecer os contratos

sob o regime de parceria, aos os quais não era usualmente aplicada a lei:

Os anos 50 marcam as primeiras experiências com o trabalho livre na Província de São Paulo e entram em cena os contratos de parceria mediando as relações entre os fazendeiros e os colonos europeus. O

77 GEBARA, Ademir. Op.cit, p. 78. 78 Idem, p. 81.

31

dinamismo dessas primeiras experiências, os movimentos de greves e rebeliões, descontentamentos generalizados entre colonos, fazendeiros e governo, representantes estrangeiros e outros, suscitariam da parte dos envolvidos um vivo interesse por uma legislação adequada e eficiente, que providenciasse sobre os contratos de prestação de serviços. Neste momento a preocupação maior é com uma legislação conveniente para os contratos efetivados com os trabalhadores estrangeiros, principalmente os europeus. Contudo, o fracasso das primeiras experiências com o sistema de parceria, o arrefecimento da imigração nos primeiros anos da década de 60, as discussões para a implementação da Lei do Ventre Livre no final da mesma década, comporiam o novo conteúdo das discussões de uma legislação para a locação de serviços.79

O sistema de parcerias começou a ser implantado inicialmente por Vergueiro

em 1847, com imigrantes portugueses e alemães, na fazenda de Ibicaba. De acordo

com esse sistema de contrato de trabalhadores livres, os colonos eram contratados

na Europa e trazidos para as fazendas de café. Tinham sua viagem paga, assim

como o transporte até as fazendas, pelos proprietários brasileiros. Essas despesas,

entretanto, entravam como adiantamento feito ao colono pelo proprietário, assim

como, igualmente, lhe era adiantado o necessário à sua manutenção, até que ele

pudesse se sustentar pelo próprio trabalho. Os juros sobre a dívida que adquiria o

colono antes mesmo de embarcar ao Brasil eram de 6% ao ano. Cada família

deveria receber uma porção de cafeeiros, na sua proporção de capacidade de

cultivar, colher e beneficiar.80

Para Emília Viotti da Costa, o sistema de parcerias visou a conciliar fórmulas

usadas nos núcleos coloniais com as necessidades do latifúndio cafeeiro, na região

do Oeste Paulista,81 até serem substituídos devido a conflitos e reclamações tanto

por parte dos fazendeiros quanto dos colonos.82

O senador Vergueiro, já na década de 1830, pretendia criar leis que dessem

garantias aos proprietários de permanência do trabalho imigrante nas tarefas da

grande lavoura, principal setor a demandar mão-de-obra. Com o mesmo objetivo,

era contrário à aquisição de terras por imigrante – o que pôde ser notado no seu

posicionamento na lei em favor do direito dos estrangeiros e ficará mais evidente

nas discussões do projeto de lei referente à colonização.

79 LAMOUNIER, Maria Lúcia. Op. cit., p. 15. 80 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república - momentos decisivos. São Paulo: Editora

Brasiliense, p. 172. 81 Idem, p. 144. 82 Para mais informações sobre as críticas advindas do sistema de parcerias, ler STOLCKE, Verena e

HALL, Michael Hall. “À introdução do trabalho livre nas fazendas de café de São Paulo.” IN: À lucta, trabalhadores. Revista Brasileira de História, volume 3 nº. 6. São Paulo: Editora Marco Zero/ANPUH, 1984, pp. 80-120.

32

3.3 OS IMIGRANTES E A PROPRIEDADE DA TERRA: OS PROJETOS DE LEI DE

COLONIZAÇÃO E DE SESMARIAS

O projeto de lei de colonização havia sido proposto em 1827 e foi discutido

em 1830. Marquez de Caravelas foi um dos principais senadores que defendeu a

ideia de criação de um sistema regular de colonização, que incluía a concessão de

terras a imigrantes. A primeira discussão sobre o projeto ocorreu na sessão de 22 de

junho de 1830.83 Já nessa primeira discussão, houve discordância entre os

senadores. Vergueiro foi um dos que se posicionaram contrários ao projeto,

afirmando que a doação de terras aos estrangeiros “causa mais danos que

proveito”.84 Isso porque, segundo ele, todos aceitariam a doação de terras, mesmo

sem possuírem meios para cultivá-las. O melhor, para ele, seria vender as terras aos

imigrantes, pois só quem as comprasse teria disposição para cultivá-las. Além disso,

Vergueiro constantemente argumentava que a doação de terras aos colonos

estrangeiros seria um privilégio que os deixaria em melhores condições que os

nacionais. Defendia que, se fosse necessária a doação de terras, que estas fossem

cedidas aos nacionais e vendidas aos estrangeiros. Nas suas palavras:

Convém povoar um lugar; concedam-se aos colonos as graças e favores pelas circunstancias do lugar, mas sempre que se houver de dar alguma diferença, seja aos nacionais. Nós não precisamos convidar os estrangeiros, precisamos mais de braços para os nossos proprietários poderem trabalhar e não é por este modo que eles se adquirem [...]. Os capitalistas que quiserem vir, uma vez que saibam a franqueza do nosso Governo, e que as nossas leis estabelecidas lhes asseguram as suas propriedades, virão com os seus fundos.85

A maioria dos senadores, todavia, votou a favor do projeto de colonização

apresentado. Os argumentos em defesa desse projeto remetiam à necessidade de

se atrair braços devido ao progressivo fim do tráfico de escravos africanos. O projeto

teria como objetivo, nessa perspectiva, o aumento da população e do trabalho, visto

como fonte de riqueza e grandeza do Brasil. Essas ideias são ressaltadas, dentre

outros, pelo Marquez de Palma e pelo Marquez de Caravelas. De acordo com este

último, o Brasil deveria promover a admissão de braços de povos já civilizados,

sendo que o país precisaria, inclusive, ceder mais favores para atrair os

83 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1877, Tomo

I, p. 293. (sessão de 22 de junho de 1830) 84 Idem, p. 301. (sessão de 22 de junho de 1830) 85 Idem, ibidem.

33

estrangeiros. Além disso, o senador retomava o exemplo da colônia de S. Leopoldo

e de S. Pedro de Alcântara, defendendo, como outros parlamentares, que a

“experiência” aconselharia a criação dessa lei.86

O projeto foi aprovado, e passou à segunda discussão, iniciada em 6 de julho

de 1830. Nessa sessão, o senador Saturdino apresentou uma emenda que

propunha o aforamento das terras aos estrangeiros, ou seja, a concessão da

propriedade mediante o pagamento de um foro, e não a doação. A posição da

maioria dos senadores, entretanto, foi a de aceitar que fosse feita a doação de terras

aos estrangeiros. O Marquez de Palma, por exemplo, afirmou que o objetivo do

projeto “é chamar não só braços, mas também indústria e capitais para vir ao país”,

além de destacar que, caso os estrangeiros tivessem que pagar foro, não viriam ao

Brasil. Isso porque as terras a serem doadas eram de difícil acesso e inférteis,

localizadas no sertão e habitadas por “feras”, sendo necessário um grande trabalho

para cultivá-las. Na defesa da doação de terras aos estrangeiros, esse senador

afirmava: “É necessário facilitar o que já é custoso, e não fazer ainda mais pesado

aquilo que de si mesmo já é difícil”.87

Foram realizados vários debates sobre como seria a distribuição de terras às

famílias imigrantes. Na última discussão do projeto,88 percebeu-se uma mudança de

posição de alguns senadores, decorrente dos debates sobre a demarcação das

terras. O próprio Marquez de Palma, defensor da discussão da proposta, fez um

requerimento em favor do adiamento do debate, até que se criasse uma lei de

sesmarias. Assim, a questão das sesmarias e da demarcação de terras pesou para

que os senadores concordassem em adiar o projeto, na sessão de 7 de agosto de

1830. Caravelas, um dos que votou pelo adiamento, argumentou que “vivemos em

um país que ainda não conhecemos, e por consequência como é que nos havemos

de dar o que não conhecemos?”89.Ele possivelmente se referia ao desconhecimento

sobre as terras devolutas, aquelas que pertenciam ao Estado.

Vergueiro, por sua vez, manteve sua posição durante todo o debate,

colocando-se a favor do adiamento da lei e reafirmando a necessidade de se tratar

primeiro dos interesses nacionais. Além disso, rebateu o argumento, utilizado

86 Idem, p. 365. (sessão de 6 de junho de 1830) 87 Idem, p. 367. ( sessão de 6 de junho de 1830). 88 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877,Tomo

II, p. 94. (sessão de 5 de agosto de 1830) 89 Idem, ibidem.

34

frequentemente entre os demais senadores, de que seria necessária a vinda dos

estrangeiros para aumentar a população do Brasil. O senador citou o caso dos

Estados Unidos, afirmando que não foram os estrangeiros que lá aumentaram a

população do país, mas sim “as boas leis, e a abundância dos meios de

subsistência, de que o Brasil também muito abunda”.90 O Marquez de Palma,

divergindo de Vergueiro acerca da ligação entre os estrangeiros e o aumento da

população, considerou que a colonização estrangeira traria não só indivíduos, mas

também “indústria”, termo para designar a atividade produtiva, englobando a

lavoura, portanto. Os estrangeiros, para esse senador, seriam lavradores mais

industriosos. Para ele, “é a colonização estrangeira o único meio de aumentar a

população, aumentando-se a agricultura”.91

Pode-se dizer que, nesse período, começavam a se delinear visões distintas

a respeito da colonização. Como afirma Viotti,

A política governamental de estímulo à colonização nem sempre era vista com bons olhos. O próprio senador Vergueiro, que se destacara mais tarde como pioneiro na criação de colônias de parceria, assim como pelo dinamismo desenvolvido no sentido de se promover a vinda de colonos sob esse tipo de contrato para as fazendas de café, manifestou-se mais de uma vez contrário a esse tipo de iniciativa, desaprovando as medidas tomadas pelo Estado no sentido de promover a formação de núcleos coloniais autônomos.92

Nesses debates, portanto, Vergueiro já expressava uma opinião,

compartilhada por muitos fazendeiros do seu tempo, que via incompatibilidade entre

o interesse dos grandes proprietários, que almejavam trabalhadores imigrantes para

substituir a mão-de-obra escrava, e os imigrantes, que buscavam alcançar a posição

de pequenos proprietários.

Viotti93 trata de questões referentes à política de terras implementada no

Brasil a partir do século XIX. A autora ressalta que, no século XIX, houve a

expansão de mercados através do desenvolvimento da cultura cafeeira em Minas,

Rio e São Paulo. Tal expansão da economia tornou urgente a solução de dois

problemas interdependentes: o da mão-de-obra e o da propriedade da terra. Nesse

sentido, nas palavras da autora:

90 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877, Tomo

II, p. 94. (sessão de 5 de agosto de 1830). 91 Idem, p. 96. (sessão de 5 de agosto de 1830). 92 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia... Op.cit, p. 165. 93 Idem, pp. 139-162.

35

Os fazendeiros das áreas novas, preocupados com a iminência da abolição do tráfico de escravos e esperando encontrar na imigração a solução para o problema da força de trabalho, propuseram uma legislação com o objetivo de impedir o acesso fácil a terra e de forçar os imigrantes ao trabalho nas fazendas.94

Nesse caso, pode enquadrar-se a já comentada legislação referente ao

trabalho, como as leis de locação de serviços de 1830 e 1837. O outro aspecto

apontado por Viotti, utilizado para “forçar” o imigrante a trabalhar nas fazendas, foi

dificultar o acesso a terra, reduzindo as alternativas de desenvolver a pequena

propriedade. Com o surto cafeeiro, houve a expansão das terras cultivadas para fins

comerciais e uma redução da agricultura de subsistência. Consequentemente:

“nde a terra virgem era disponível, houve uma expansão das fronteiras e novas áreas passaram a ser utilizadas, aumentando a demanda de trabalho agrícola. [...] Como resultado deste processo, os significados atribuídos à propriedade da terra mudaram.95

O marco da adequação da regularização da propriedade da terra de acordo

com as novas necessidades econômicas teria sido, para Viotti, a Lei de Terras, de

1850. Tal lei proibia a aquisição de terras públicas através de outro meio que não

fosse a compra, colocando fim às formas tradicionais de adquirir terras através de

posses e através de doação da Coroa – como era o caso das sesmarias, que

também foram foco de discussão na década de 1830.

As sesmarias existiram no Brasil desde o período colonial até a

independência, e consistiam em terras que eram anteriormente de domínio da

Coroa, doadas a particulares como uma dádiva concedida pelo rei segundo as

qualidades pessoais do indivíduo.96 Assim, o domínio sobre a terra, no período

colonial, era concebido mais como prestígio social do que como fonte de poder

econômico, não havendo, necessariamente, uma preocupação dos donos das terras

em cultivá-las.

As discussões entre os senadores no tocante às sesmarias ocorreram

sobretudo, no ano de 1836, tendo como ponto central a validade ou não das

sesmarias anteriormente concedidas. O início das discussões se deu na sessão de

30 de maio de 1836, motivado por uma resolução referente às sesmarias

desaproveitadas. O objetivo era definir se a prática de doação de terras no Brasil

deveria continuar. Vergueiro, como era de se esperar nesses debates, buscou

94 Idem, p.12. 95 Idem, p. 140. 96 Idem, p. 146.

36

demonstrar a não validade das cartas de confirmação de sesmarias, o que,

entretanto, não foi aceito pelos demais parlamentares.97 A questão em pauta nesse

período parecia relacionar-se mais ao cultivo e ao aproveitamento das terras: as

sesmarias que não estivessem cultivadas nem demarcadas seriam invalidadas, e as

que estivessem demarcadas, por sua vez, teriam o prazo de dois anos para iniciar o

cultivo. Além disso, posseiros que tivessem cultivo não seriam desapropriados. A

última discussão do projeto ocorreu no dia 30 de agosto de 1836.98

Outro aspecto presente no período colonial com relação às terras era a sua

grande disponibilidade, estando acessível aos colonos que não participavam da

economia comercial e praticavam economia de subsistência:

Como a terra virgem era disponível em grande quantidade, todas as pessoas que penetravam nas regiões do interior – áreas sem qualquer valor comercial – podiam controlar um pedaço de terra, desde que fossem capazes de enfrentar os índios e de sobreviver na selva. Assim, durante o período colonial, a terra podia ser adquirida tanto através da ocupação como por doação real.99

Segundo Viotti, no período anterior à criação da Lei de Terras de 1850, houve

conflitos entre duas diferentes concepções de propriedade da terra, e,

conseqüentemente, entre a elite política brasileira. Alguns parlamentares,

principalmente os ligados à economia exportadora do café, almejavam criar

obstáculos à propriedade rural, de modo que o trabalhador livre, sem ter acesso a

terra, tivesse que trabalhar nas fazendas. O autor sustenta que, para os defensores

desse projeto, experiência havia demonstrado que os imigrantes deixavam de

trabalhar nas fazendas, seduzidos pela possibilidade de virarem pequenos

proprietários.

Ideias semelhantes, como já apresentado, foram expostas pelo senador

Vergueiro em outros debates. Além disso, muitos defensores desse ponto de vista

argumentavam que o dinheiro adquirido pela venda das terras poderia ser aplicado

pelo governo em colonização. Os representantes desse projeto colocavam-se

contrários ao sistema de sesmarias, afirmando que aqueles que obtiveram a doação

de sesmarias desejavam ostentar a terra, e não cultivá-las.

97 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877, Tomo

II, p. 87 (Sessão de 3 de junho de 1836). 98 Idem, p. 227. ( sessão de 20 de agosto de 1836). 99 Idem, p. 144.

37

Segundo Viotti, representantes de diversos setores da economia – tais como

algumas oligarquias regionais – colocavam-se contrários a essa posição,

considerando necessária a doação de terras aos estrangeiros:

Os oponentes consideravam absurdo dificultar o acesso à terra num país onde a maioria da terra ainda devia ser ocupada. Alguns deles, realmente, recomendaram a adoção de uma política oposta: doação de terra para imigrantes como um meio de atraí-los. [...] Suas perspectivas em relação ao problema da imigração diferiam das perspectivas dos defensores do projeto. Para os oponentes, a questão não era suprir os fazendeiros de trabalho, mas colonizar o país. Eles viam os imigrantes como agentes da civilização.100

Tal opinião também está presente nos argumentos apresentados por alguns

senadores da década de 1830, que defendiam a criação de uma lei de colonização.

Além disso, despontam, nesse debate, duas visões diferentes em torno da relação

entre estrangeiros e do desenvolvimento da indústria e do trabalho no Brasil.

Vergueiro, como visto antes, afirmava a necessidade de braços para o trabalho nas

lavouras, não importando se esse trabalho seria exercido por estrangeiros ou não.

Nesse sentido, não acreditava ser necessário ceder privilégios aos imigrantes, tais

como a doação de terras, já que eles trabalhariam nos grandes latifúndios.

Em sentido oposto, alguns senadores consideravam oportuna a imigração de

indivíduos considerados aptos a se tornar proprietários e desenvolver a agricultura

moderna. Compreende-se, portanto, a posição de muitos deles na defesa de

medidas para favorecer os estrangeiros, através, por exemplo, da doação de terras,

cogitada na discussão sobre a colonização. Esses senadores estavam pautados na

ideia de que os imigrantes seriam responsáveis pelo desenvolvimento da indústria e

pela civilização do país.

3.4 IMIGRANTES CIVILIZADOS E INDUSTRIOSOS

Andrade101 comenta algumas das questões referentes à promoção do

desenvolvimento e indústria do país através da imigração. Um primeiro ponto que

deve ser ressaltado é o próprio significado que o conceito de indústria possuía nesse

100 Idem, p. 149. 101ANDRADE, André Luiz Alípio de. Variações sobre um tema : a sociedade auxiliadora da industria nacional e o debate sobre o fim do trafico de escravos (1845-1850). Dissertação de Mestrado, Instituto de Economia da Unicamp, 2002.

38

contexto histórico. Segundo Andrade, o termo indústria não teve um sentido unívoco

ao longo do século XIX, período caracterizado pela diversificação das atividades

econômicas no Brasil. O termo foi, aos poucos, adquirindo um significado mais

preciso. Na primeira metade do século XIX, “indústria” referia-se ora a qualquer

forma de trabalho produtivo, ora aos principais setores da atividade econômica

(agricultura, comércio, manufatura).102

O autor analisa a criação e os objetivos da Sociedade Auxiliadora da Indústria

Nacional, criada em 1825, sob influência das pressões inglesas pelo fim do tráfico de

escravos. O objetivo maior dessa sociedade era promover a indústria e desenvolver

ideias para a substituição do trabalho escravo pelo livre, no qual a imigração

ocupava um espaço central.

A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional pautava-se em ideias

influenciadas pelo Reformismo Ilustrado português, tais como a noção de

pragmatismo e progresso material. Nesse sentido, para incentivar o

desenvolvimento da indústria nacional, essa Sociedade valorizava o conhecimento e

a inteligência no processo de trabalho, incentivando, por exemplo, a educação e a

criação de novas máquinas. Além disso, a questão do trabalho “implicava

necessariamente a questão da mão-de-obra; ou seja, o problema da substituição da

mão-de-obra escrava”.103 Seguindo este raciocínio, surge pela primeira vez na

Sociedade uma proposta relacionada à colonização, compreendida como forma de

implementação de projetos civilizatórios. Segundo Andrade, tais projetos:

Procuravam dar conta também da questão da construção da nação e a constituição de uma nacionalidade condizente com o projeto civilizatório dessas elites intelectuais. Daí a apresentação de projetos de imigração e a sugestão de políticas imigratórias.104

Os sócios membros da Sociedade Auxiliadora, portanto, deveriam ajudar na

promoção da colonização com fins civilizatórios, contribuindo financeiramente com a

aquisição de instrumentos agrários e de fábrica e com as despesas de passagens

dos colonos. Nesse modelo, os colonos – somente europeus, por serem os mais

civilizados – seriam livres e proprietários dos seus lucros, sempre proporcionados ao

seu trabalho, e seriam escolhidos entre famílias honradas e laboriosas. Importante

lembrar que, como afirma Andrade, o termo civilização, na primeira metade do

102Idem, p. 34. 103 Idem, p. 119. 104 Idem, p. 52.

39

século XIX, relacionava-se diretamente à inteligência e ao progresso material, tendo

como modelos os países da Europa mais “adiantados”. Assim, a vinda de imigrantes

europeus, para os membros da elite econômica e política que compartilhavam dessa

perspectiva, estaria relacionada ao desenvolvimento econômico e social do Brasil.105

É importante ressaltar que a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional

tinha como membros os representantes do governo, como conselheiros de Estado, e

senadores. Portanto:

A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional se constituiu, [...] como entidade que congregava parcela expressiva dessa elite e se empenhava na promoção de iniciativas e na formulação de políticas voltadas para a modernização econômica do país. Pela sua ligação íntima e profunda com o Estado, ela permite perceber, tanto a influência das ideias liberais sobre a ‘elite letrada’, como as tentativas de sua implementação numa sociedade escravista.106

Nesse sentido, havia o intercâmbio de medidas tomadas pela Sociedade

Auxiliadora e pelo Governo imperial. Muitas das ideias descritas pelo autor a

respeito do vínculo entre imigração, desenvolvimento da indústria e civilização

apareceram constantemente nos debates do Senado.

Um tema que esteve em pauta – principalmente nos trabalhos realizados no

final da década de 1830 – foi a concessão de privilégios a companhias que fizessem

uso somente do trabalho livre, com imigrantes europeus. Em 1839, por exemplo,

estiveram em pauta concessões de privilégios a companhias de mineração,

navegação e construção de estradas.

Uma dessas discussões, que ocupou grande espaço nas sessões do Senado,

abordou a isenção de impostos sobre o quinto do ouro e a concessão de sesmarias

a uma companhia de mineração específica, de Gustavo Adolfo Reye, que atuaria na

província de Minas Gerais. Os primeiros debates sobre o tema iniciaram-se em 13

de julho de 1839, sendo os privilégios concedidos à Companhia em 4 de setembro

de 1840, após a matéria passar pela sanção imperial.107

Na primeira discussão sobre o projeto, o senador Saturdino foi um dos que se

posicionou a favor da isenção de impostos a essa companhia, afirmando inclusive

que a concessão deveria ser estendida a todas as companhias de mineração que

estivessem nas mesmas condições. Nas palavras desse senador:

105 Idem, p. 49. 106 Idem, p. 57. 107 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877,

Tomo VI, p. 8. (sessão de 4 de setembro de 1840.)

40

Estou tão convencido da sua utilidade, que se fora deputado generalizaria esta disposição a todo o mineiro que trabalhasse com braços de homens livres, brancos, porque realmente o pagamento desta imposição é ilusório. [...] para dar um incentivo ao emprego de braços livres, emprego do qual nós sabemos que grande utilidade há de resultar ao país, convém que concedamos essa isenção àqueles mineiros que trabalharem com braços livres.108

Além disso, o senador afirmava que a isenção de impostos seria muito mais

vantajosa e menos dispendiosa do que a tentativa do governo de promover a

colonização.109 Todos os senadores que se posicionaram na primeira discussão

mostraram-se a favor do projeto, afirmando que a sua principal função seria a

atração de estrangeiros.

Em outros debates sobre a mesma concessão, o senador Saturdino utilizou

diversos argumentos, sempre em defesa do projeto. No dia 15 de julho,110 por

exemplo, ele afirmou que:

A introdução de braços livres no país é de utilidade incontestável e reconhecida por todos os homens de juízo, desde que a experiência tem mostrado que a lei repressiva da introdução dos africanos tem se mostrado inteiramente ineficaz. Eu estou persuadido que o Corpo Legislativo crê na possibilidade de se trabalhar no Brasil com braços livres, porque, se assim não fosse, não proibiria a introdução de africanos 111

O senador ainda considerou que grande parte da população mineira e

agrícola ainda não estava acostumada com a ideia da utilização de braços livres, e

que somente a experiência poderia adequá-la a essa nova situação:

E como poderemos nós fazer com que eles se ponham de acordo com a opinião do Corpo Legislativo, senão demonstrando-lhes pela experiência essa possibilidade? Logo, tudo quanto tender a produzir neles essa convicção é do maior interesse para o país.112

Nessa discussão, o senador Saturdino chamou atenção sobre a importância

da introdução de braços livres e do mal que a importação de africanos causava ao

país.113 Tratando mesmo tema, o senador Vasconcelos considerou que:

Abolido o trafico de escravatura, é de absoluta necessidade que os legisladores se esforcem em oferecer todos os meios que facilitem o ingresso de braços livres, proibindo o acesso aos braços cativos, e a falta de se proporcionarem os meios para o acesso de braços livres equivale a matar a indústria e aniquilar o país. Até o presente, todas as tentativas que

108 BRASIL. Congresso Nacional. Anais do Senado. Rio de Janeiro : Tipografia Nacional, 1877,

Tomo II, p. 177 (sessão de 12 de julho de 1839). 109 Idem, p. 189 (sessão de 13 de julho de 1839). 110 Idem, p. 201. 111 Idem, p.202. 112 Idem, ibidem. 113 Idem, p. 220. (sessão de 16 de julho de 1839).

41

se têm feito para conseguir a colonização têm sido infrutíferas, e os mesmos apóstolos da liberdade que se estabelecem no Brasil empregam os escravos com preferência aos braços livres nos serviços que não demandem aprendimentos e muito exercício da inteligência. Atendendo, pois, a essa razão, julguei que, havendo quem se obrigasse a importar braços livres, capitais e inteligência ao país, era do maior interesse para o mesmo país favorecer e promover esta e outras empresas semelhantes.114

Saturdino e outros senadores ressaltaram a utilidade da concessão de

privilégios à companhia, já que ela importaria trabalho imigrante europeu, que traria

consigo “capitais e inteligências muito desenvolvidas, porque os serviços nas minas

demandam conhecimento, prática e ciência”.115 Dessa forma, a maioria dos

senadores colocava-se a favor do projeto, já que a importação de trabalhadores

europeus ajudaria a desenvolver a indústria e a civilizar o país. A indústria seria

promovida, nessa perspectiva, através da utilização da mão-de-obra e do

povoamento de sesmarias com imigrantes. As concessões a empresas individuais

seriam úteis na medida em que “basta a introdução de braços livres, de capitais e de

inteligências desenvolvidas para que o país muito se interesse”, sendo a isenção de

impostos e a concessão de sesmarias pequenas frente ao benefício trazido pelos

estrangeiros.116

Vergueiro afirmava concordar quanto à utilidade das companhias de

mineração para promover a mão-de-obra estrangeira e o desenvolvimento da

indústria. Porém, o senador manteve-se contrário ao projeto durante toda a

discussão. Para ele, a companhia ficaria muito favorecida, principalmente devido à

concessão de sesmarias, além de que não traria grandes vantagens ao governo. O

senador, como já visto na discussão a respeito da colonização, colocava-se

contrário à doação de terras a estrangeiros:

A comissão, querendo favorecer a companhia, somente exige que a sesmaria esteja povoada por vinte casais de homens livres, não africanos; e assim me parece que a companhia fica bem favorecida. [...] Enfim, senhores, o que eu vejo no projeto são concessões muito vantajosas para a companhia, e ela a nada se obriga, pode faltar quando quiser ao contrato que faz; o Estado, porém, não pode faltar 117

O senador afirmava que só seria a favor da concessão de privilégios a

empresas individuais caso houvesse inovação. Nesse sentido, ele não considerava

uma inovação o fato de uma empresa de mineração utilizar-se somente de braços

114 Idem, ibidem. 115 Idem, p. 227.(sessão de 16 de julho de 1839). 116 Idem, p. 226.(sessão de 16 de julho de 1839). 117 Idem, p.223. (sessão de 16 de julho de 1839).

42

livres, nem estabelecia uma relação direta entre os imigrantes europeus e a

civilização e o desenvolvimento da indústria brasileira – diferentemente de muitos

outros senadores.

3.5 IMIGRANTE IDEAL: CONCEPÇÕES DISTINTAS

Após a análise dos debates e das considerações apresentadas por diversos

autores, fica evidente que a questão do trabalho imigrante vinha sendo bastante

discutida no período anterior a 1850, ocupando espaço considerável nos trabalhos

do Senado.

O senador Nicolau Vergueiro, personagem cuja participação nos debates

analisados foi relevante, era proprietário de terras e fazendeiro do Oeste Paulista,

representando, em grande medida, os interesses desse grupo. Vergueiro pretendia

utilizar a mão-de-obra imigrante nas lavouras de café, por conta da possibilidade

latente de extinção do tráfico – como já visto, decorrente de acordo realizado entre

Brasil e Inglaterra, em 1826, que previa a extinção do tráfico para 1830. Assim, o

tipo de imigrante almejado pelo senador era aquele que só possuía a força do seu

trabalho. O objetivo era evitar que os estrangeiros se estabelecessem por conta

própria ou adquirissem propriedade. Pode-se compreender, portanto, a posição de

Vergueiro, no sentido de que os imigrantes não deveriam poder adquirir bens

imóveis caso deixassem o país, ou não deveriam poder receber doação de terras.

Vergueiro queria dificultar a apropriação de terras por estrangeiros, como meio de,

de alguma forma, mantê-los nas fazendas e obrigá-los ao trabalho. Nesse mesmo

sentido, pode-se enquadrar o projeto de lei referente ao contrato entre

empregadores e trabalhadores, que pretendia criar garantias legais aos fazendeiros

de permanência dos estrangeiros no trabalho na grande lavoura.

Enquanto isso, outros senadores se posicionavam de maneira diversa,

afirmando a necessidade de atração de imigrantes para “civilizar” o país. Nesse

caso, os imigrantes deveriam ser pessoas com certa capacidade financeira, que

pudessem estabelecer suas indústrias e ajudar no desenvolvimento do Brasil. Além

disso, deveria, sob esse ponto de vista, ser estimulada a pequena propriedade, para

se obter o desenvolvimento da agricultura. O posicionamento dos senadores

favoráveis à doação de terras ficou evidente na tramitação do projeto de colonização

43

de estrangeiros e de doação de sesmarias. Ainda nessa perspectiva, deveriam ser

concedidos privilégios a empresas que estimulassem a utilização do trabalho livre

imigrante e a colonização. Esse tipo de imigração era visto como o único com efeitos

realmente civilizadores, capaz de desenvolver a indústria brasileira.

Pode-se afirmar que não havia entre os senadores – e outros representantes

da elite política imperial – uma unanimidade com relação ao tipo de imigrante a ser

introduzido no país. Nesse sentido, já se delineavam posições antagônicas a

respeito do tipo de imigrante ideal: o que trabalharia nas lavouras ou o que se

estabeleceria por conta própria. Posições que, de acordo com a historiografia

corrente sobre imigração, se tornariam cada vez mais evidentes e representariam

dois projetos distintos de imigração – um na região Centro Oeste do Brasil, e outro

na região meridional, aplicados na segunda metade do século XIX.

Porém, o que se torna evidente é que, dentre os senadores que se

manifestaram nos debates, nenhum foi contrário à introdução de imigrantes. Muitas

leis propostas – como a referente ao direito dos estrangeiros, a reguladora dos

contratos de trabalho, a de colonização e as concessões de privilégios a empresas

particulares – e muitos argumentos utilizados pelos senadores para justificar suas

posições recaíam na necessidade de se atrair braços imigrantes para o Brasil, tendo

em vista a possibilidade de abolição do tráfico de escravos e a necessidade de

“civilização” da nação. Além disso, já eram pensadas medidas para garantir o

trabalho dos estrangeiros nas lavouras e impedir o acesso a terra. Tais medidas,

como a legislação que regulava os contratos de trabalho e dificultava o acesso dos

estrangeiros à propriedade, já começavam a ser delineadas, por iniciativa de

Vergueiro, em convergência com o interesse de muitos outros proprietários.

44

4 IMIGRAÇÃO NO SECULO XIX BRASILEIRO: DEBATES COM A

HISTORIOGRAFIA

A maioria dos estudos historiográficos que trata do tema da imigração no

Brasil se debruça sobre o período posterior a 1850, quando a proibição do tráfico de

escravos tornou-se eficaz e ocorreu grande afluxo de imigrantes para o país. Além

disso, tornou-se comum os estudiosos enfocarem duas regiões: o Centro Sul do

Brasil (Vale do Paraíba e Oeste Paulista) e a região meridional, cada qual

considerada em suas especificidades. Com relação ao Centro Sul, prevalece a ideia

de que a vinda de estrangeiros tinha a função de substituir o braço escravo pelo

imigrante nas fazendas de café. Na região meridional, ter-se-ia buscado atender aos

interesses do governo imperial, através da criação de núcleos coloniais.

4.1 A INFLUENCIA DO “PARADIGMA DA TRANSIÇÃO”

A historiografia referente ao trabalho no Brasil foi bastante influenciada pela

produção historiográfica predominante nos anos compreendidos entre 1960 e 1970,

cuja referência teórica era fundamentada no que passou a ser conhecido como

“paradigma da transição”.118 Alguns dos principais representantes dessa vertente

historiográfica foram Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio

Ianni – estes com formação na sociologia – e Emília Viotti da Costa, historiadora.

De acordo com a interpretação de tais autores – que se utilizavam de

modelos econômicos como referenciais teóricos, enfatizando os aspectos estruturais

da sociedade –, teria havido uma paulatina substituição de mão-de-obra escrava

pela do imigrante livre, a partir de meados do século XIX. Segundo Márcia Regina

Lupion,119 o “paradigma da transição” é pautado na ideia de que, para que o Brasil

118 Para uma análise crítica deste tipo de abordagem, que adota esta terminologia, ver LARA, Sílvia

Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto História. São Paulo, 16:25-38, fev. 1998.

119 LUPION, Márcia Regina Oliveira. A gênese da história do trabalho e dos trabalhadores no Brasil e os paradigmas da “transição e da substituição”, In: Revista Tema Livre, Ano V - Edição nº11 - Niterói, Rio de Janeiro, 25 de abril de 2006. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com/trabalho11.html

45

pudesse começar a desenvolver o modo de produção capitalista, foi necessária a

substituição não apenas da forma de trabalho, mas do próprio indivíduo: o escravo

foi substituído pelo trabalhador estrangeiro europeu. O imigrante europeu, portanto,

teria formado o grupo precursor do trabalho livre e assalariado no Brasil. Como

afirma Silvia Lara :

Em sua modalidade mais radical, a historiografia da transição postula a tese da ‘substituição’ do escravo pelo trabalho livre; com o negro escravo desaparecendo da história, sendo substituído pelo imigrante europeu.120

A teoria da necessidade histórica da substituição da mão-de-obra, segundo

Lupion, foi utilizada tendo em vista uma interpretação específica das consequências

do sistema escravista para os indivíduos – essa interpretação, por sua vez, foi criada

a partir da constatação, feita na década de 1960, da marginalização do negro na

sociedade brasileira. Esses autores enfatizavam, sobretudo, o aspecto violento e

repressivo da escravidão, que teria transformado o escravo em “coisa” – ou seja, um

ser incapaz de agir autonomamente – e que, como consequência, teria incapacitado

os libertos de desenvolverem formas de comportamento que os habilitassem a se

inserir no mercado de trabalho, acompanhando o avanço do sistema capitalista.

Como afirma Lupion, “o negro era tido como incapaz de praticar atividades de ordem

capitalista por ter introjetado a condição de ‘coisa’ que o sistema escravista

impunha”,121 não tendo como concorrer no mercado de trabalho livre com a mão-

de-obra imigrante.

Octavio Ianni,122 por exemplo, em Metamorfoses do escravo. Apogeu e crise da

escravatura no Brasil Meridional, publicado em 1962, é um dos autores que ajudou a

formular este paradigma, o da “transição”. O autor, que nessa obra tem como foco a

região de Curitiba, discorre sobre as mudanças no cenário das relações de trabalho

no final do século XIX, privilegiando a análise das relações de produção e das forças

produtivas, constituintes da “base econômica de uma sociedade”.123 Ao tratar do

trabalho escravo e do trabalho livre no final do século XIX, Ianni defende ter ocorrido

a substituição de um modelo de organização de trabalho para outro, cujo ponto de

mudança teria sido a abolição da escravatura e a vinda dos imigrantes.

120 Idem, p. 17. 121 Idem, p. 29. 122 IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo. Apogeu e crise da escravatura no Brasil

Meridional. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962. 123 Esta interpretação tem como texto fundador o prefácio do livro: MARX, Karl. Contribuição à

crítica da economia política. São Paulo:Martins Fontes, 1977.

46

O autor olha a escravidão para compreender a sociedade, por entender que as

relações escravistas a teriam marcado profundamente. É perceptível no texto de

Ianni o peso da determinação econômica, já que, para ele, as novas configurações

das relações de trabalho resultaram de modificações ocorridas nas forças produtivas

– no caso estudado, que é a região de Curitiba, essa transformação seria decorrente

da mecanização na produção do mate.124 Esse processo de mecanização seria

característico do desenvolvimento do capitalismo na região de Curitiba, que teria

ocasionado o declínio do modo de produção escravista, e, conseqüentemente, a

ascensão do trabalho livre imigrante. Nessa perspectiva, que delimita como marco a

década de 1850 – quando a escravidão, outrora em apogeu, começou a entrar em

declínio, sendo paulatinamente substituída pelo trabalho de imigrantes –, a

escravidão aparece como obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas,

sendo que um dos pressupostos seria o da própria incapacidade dos escravos de

operar com as novas máquinas e, portanto, de inserir-se no sistema capitalista em

desenvolvimento. Tem-se, a partir dessa leitura, que trabalho escravo e trabalho

livre são compreendidos como uma necessidade histórica, resultante de

transformações na esfera econômica.

Emília Viotti da Costa, na obra Da senzala à colônia, publicada em 1966,

também realizou contribuições no tocante a questões de trabalho no século XIX,

porém tendo como foco a região Centro Sul do Brasil. Para interpretar a formação

do trabalho livre no Brasil, ou o que considerou a transição do trabalho escravo ao

trabalho livre, a autora também se utiliza de modelos econômicos como referenciais

teóricos, e considera que foi necessária a entrada de um elemento novo – o

imigrante estrangeiro – para que tal processo ocorresse. Dessa forma, delimita,

para a análise, um recorte temporal que privilegia as relações escravistas na

primeira metade do século XIX, sendo o trabalho livre imigrante estudado com mais

ênfase no período posterior a 1850. Para Viotti, a metade do século XIX é um marco

à medida que, entre outras razões, houve, nesse período, o fim do tráfico de

escravos, a mecanização dos processos de beneficiamento do café e a melhoria dos

sistemas de transporte,125 fatores considerados determinantes para a ocorrência da

transição do trabalho escravo para o livre. De acordo com o paradigma interpretativo

124 IANNI, Octavio. Op. cit., p. 56. 125 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 16.

47

adotado por Viotti, essas ocorrências modificaram as forças produtivas, propiciando

as transformações das relações de trabalho.

Assim, em Da senzala à colônia, Viotti tem como objetivo o estudo da

escravidão em duas regiões de produção cafeeira: o Vale do Paraíba e Oeste

paulista no século XIX. A autora procura compreender como se deu a desarticulação

do trabalho escravo e sua “transição” para o trabalho livre. Para ela, foi fundamental,

nesse processo, a imigração estrangeira. A escravidão era predominante nessas

regiões, nas quais o cultivo do café ainda se realizava nos moldes coloniais, isto é,

na lavoura extensiva voltada à exportação. Além disso, outra força de trabalho,

representada pelos imigrantes, preferia locais como os Estados Unidos, onde eram

maiores as possibilidades de ascensão social e acesso á propriedade. Assim :

Era preciso provocar, organizar, conduzir a imigração. As dificuldades para utilização da mão-de-obra estrangeira desencorajavam, nessa época, tais iniciativas. A solução parecia clara e única: utilizar o escravo.126

A solução econômica encontrada no período de ascensão da cafeicultura,

para Viotti, foi o latifúndio exportador escravista. Entretanto, a obtenção de formas

alternativas de trabalho já era discutida nesse período, porque, como comenta a

autora, havia uma pressão externa exercida pela Inglaterra relativamente à extinção

do tráfico de escravos. Por essa razão – ou seja, pela possibilidade latente da

escassez de braços escravos –, uma possível solução precisava ser buscada, e se

aventava a possibilidade de aproveitar o trabalho dos estrangeiros, promovendo-se

a imigração.127

Tratando da região do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista, a autora procura

compreender as posições tomadas pelos grandes proprietários em face da

colonização estrangeira. Para ela, a preocupação com a imigração era maior em

São Paulo do que em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro, que eram zonas cafeeiras

mais abastecidas de escravos pelo tráfico interno de cativos das províncias do

Nordeste e do Sul. Assim, São Paulo tinha mais interesse na promoção de

experiências colonizadoras:

Abastecidos de numerosa escravaria, os fazendeiros do Vale do Paraíba não pareciam sentir a falta de braços tantas vezes alegada pelos agricultores paulistas. Por isso talvez estivessem também menos interessados em promover experiências com a colonização e o trabalho

126 Idem, p. 28. 127 Idem, p. 59.

48

livre, que nessa época empolgavam a fazendeiros do Centro e Oeste de São Paulo. 128

Viotti afirma que as tentativas de promoção da colonização haviam sido

realizadas já na época de D. João VI, com a criação de núcleos coloniais, cujos

objetivos eram, sobretudo, demográficos. Porém, a maioria dessas experiências não

obteve êxito, sendo constantemente comparadas ao sucesso da imigração nos

Estados Unidos e levando à questão: a imigração deveria ser espontânea ou dirigida

pelo Estado imperial? Nas palavras da autora:

Afirmava-se que o país necessitava de braços para a lavoura e não de núcleos de povoamento que consumiam verbas governamentais e revelavam-se, o mais das vezes, ineficazes e improdutivos. Essa opinião era manifestada principalmente por certos setores da lavoura, mais empenhados na obtenção de mão-de-obra para suas fazendas, do que numa política geral de povoamento, que só, remotamente, poderia vir a satisfazer seus interesses mais urgentes.129

Essas perspectivas divergentes com relação à política de imigração do

período imperial também são analisadas pela produção historiográfica mais recente.

Alencastro e Renaux, no texto Caras e modos dos migrantes e imigrantes,130

publicado na década de 1990, tratam dessa questão. Segundo os autores, na

segunda metade do século XIX estiveram em disputa dois projetos referentes á

imigração, cada um deles defendido por grupos que tinham interesses distintos na

vinda dos imigrantes: os fazendeiros e os que compunham a burocracia do Estado

imperial. Os primeiros desejavam imigrantes para trabalhar em suas propriedades,

de modo a obter mão-de-obra para substituir o trabalho de escravos. Nesse sentido,

tendo o claro objetivo de consolidação da grande propriedade e da agricultura de

exportação, pouco importava, por exemplo, a origem dos imigrantes, que podiam ser

tanto europeus e chineses quanto africanos.131

Parte da intelectualidade e os integrantes da burocracia imperial, por sua vez,

buscava atrair imigrantes que cultivassem as terras por conta própria, e

necessitavam possuir características étnicas e culturais específicas, sendo buscados

os europeus brancos. Para Alencastro e Renaux, tal especificidade estava

relacionada ao fato de esse grupo ter almejado fazer da imigração um instrumento

de “civilização” da sociedade brasileira, representado na época pelo

128 Idem, p. 64. 129 Idem, p. 65. 130 ALENCASTRO, L. F. e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: NOVAIS, F.

(orgs.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. v. 2: pp. 291-335. 131 Idem, p. 305.

49

embranquecimento da população. Assim, esse grupo apresentava uma preocupação

com o mapa social e cultural do país, relacionando a política migratória com a

própria constituição da sociedade brasileira.

Essas duas correntes de política migratória divergiam, ainda, quanto à

necessidade de atuação do Estado em relação aos imigrantes. O grupo ligado aos

fazendeiros afirmava que o Estado deveria restringir ao imigrante o acesso às terras

públicas, para que não tivessem a possibilidade de se estabelecer por conta própria.

O outro grupo tinha interesse de “atrair colonos para reestruturar a propriedade da

terra, as técnicas de produção, a zona rural e, ao fim e ao cabo, a sociedade

brasileira”132. Nesse caso, as verbas deveriam ser destinadas à abertura de um

cadastro de terras públicas, procurando-se que os compradores fossem, portanto,

imigrantes detentores de capital próprio, aptos a se tornar proprietários e a

desenvolver a agricultura moderna.

Emília Viotti da Costa também reconhece a existência desses dois projetos

distintos. Para a autora, a oposição entre a política conduzida pelo poder central e

os interesses dos fazendeiros paulistas manifestou-se várias vezes. Assim, nos

momentos em que os fazendeiros de café do Oeste paulista conseguiram fazer

prevalecer seus interesses, dominou a política que visava a fornecer braços para as

lavouras. Nesse sentido, pode-se citar o exemplo do senador Vergueiro – que, como

já dito em capítulo anterior, atuou no Senado desde 1826 e desaprovava as medidas

tomadas pelo Estado visando à formação de núcleos coloniais autônomos, vendo

uma incompatibilidade entre esse tipo de colonização e o interesse dos proprietários

–, que, em 1847, foi o pioneiro na introdução de trabalhadores imigrantes. Dessa

forma, segundo a autora:

Pode-se dizer que a política imperial variou entre as duas orientações, na medida em que nos quadros ministeriais prevaleceram, ou não, os interesses dos fazendeiros ligados ás zonas cafeeiras do Oeste Paulista - os mais empenhados em abastecer de mão-de-obra as lavouras em pleno desenvolvimento, numa época em que se tornava cada vez mais dispendiosa a aquisição de escravos.133

Para Emília Viotti da Costa, houve empecilhos à imigração espontânea nesse

período inicial, tais como a concorrência do braço escravo e o próprio tipo de

economia vigente, ainda baseado nos moldes coloniais, limitando as perspectivas de

trabalho livre. Outro ponto levantado pela autora é a difícil obtenção de terras para 132 Idem, p. 294. 133 Idem, p. 69.

50

os estrangeiros, já que a expansão cafeeira havia tornado ainda mais acirrada a

disputa por terras devolutas. As melhores terras eram monopolizadas por um

pequeno grupo de proprietários, sendo um impeditivo ao desenvolvimento da

pequena propriedade. A situação era mais agravante em São Paulo, sendo que em

Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde não houve o surto cafeeiro e havia

mais terras devolutas, algumas colônias prosperaram. Na região paulista, segundo a

autora, “o sistema de pequena propriedade era impraticável, o imigrante estava

fatalmente condenado à parceria, ou ao regime assalariado”.134

As regiões do Brasil meridional foram o outro foco de políticas imigratórias

ressaltadas pela historiografia. Nessas regiões, ter-se-ia buscado criar núcleos

coloniais, tendo em vista um plano mais amplo, de âmbito nacional. João Klug, no

artigo Imigração no sul do Brasil, de 2009, trata dos diversos aspectos da imigração

na região meridional, também no século XIX. O autor analisa os interesses por parte

do governo imperial e dos grandes latifundiários com relação à imigração,

defendendo a tese de que a posição de ambos os grupos entrou em congruência.

Para o autor, o Brasil apresentava diversos fatores de atração imigratória, tais

como a política de branqueamento da população, a necessidade de ocupação de

espaços na fronteira sul e a ideia de criação de um segmento médio rural com base

na pequena propriedade familiar.135

Klug ressalta que as primeiras tentativas de fixação de imigrantes europeus

não-portugueses ocorreram já no início do século XIX, como foi o caso da colônia

suíça de Nova Friburgo, em 1819, na região serrana do Rio de Janeiro, e as colônias

de Leopoldina (1818) e São Jorge dos Ilhéus (1822), na Bahia. Porém, para Klug “no

primeiro momento (1812-1830), a política de colonização não produziu resultados

significativos, e foi interrompida em 1830”.136 A política de imigração e colonização

do Primeiro Reinado, portanto, teria sido marcada pela irregularidade e pelo

abandono.

Segundo o autor, os debates em torno da imigração intensificaram-se na

década de 1840, sendo que, na região meridional do país, a atração de imigrantes

tornava-se um “problema nacional”.137 Isso na medida em que essa região era pouco

134 Idem, p. 73. 135 KLUG, João. Imigração no sul do Brasil. In: GRINBERG, Keila. SALLES, Ricardo (Orgs.) O Brasil

Imperial Volume III- 1870-1889. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009, p. 202. 136 Idem, ibidem. 137 Idem, p. 204.

51

povoada pelos “homens brancos”, estando sujeita a ataques de argentinos pelo sul e

de indígenas pelo interior. Assim, a imigração de europeus era vista como útil para

se manter a segurança nacional das fronteiras, garantindo a posse da terra. Além

disso, com a imigração haveria a valorização fundiária, transformando a terra em

mercadoria rentável, e ainda auxiliaria no branqueamento da população. Com

relação a esse último aspecto, Klug cita argumentos já apresentados no texto de

Alencastro e Renaux, sobretudo o de que o modelo de colonização defendido pelo

Estado era influenciado pelas teorias racialistas e buscava uma transformação social

através dos imigrantes europeus, que “civilizariam” o Brasil. Nesse sentido, pode-se

compreender por que as raças consideradas “inferiores” estavam descartadas do

projeto de pequena propriedade no Brasil meridional.138

João Klug, ao analisar os posicionamentos dos representantes do Império e

dos grandes latifundiários, afirma que houve a congruência de interesses entre os

dois grupos a partir de 1850. Para demonstrar como se deu esse processo, o autor

cita leis que versavam sobre imigração e colonização. Uma questão que se tornava

candente, principalmente a partir de 1840, dizia respeito a quem deveria ocupar as

áreas de densas florestas do Brasil meridional. Nesse ponto, pode-se notar a

pressão exercida pelos grandes latifundiários frente ao poder imperial. Em 1842,

através do Conselho de Estado, os latifundiários propuseram que se tornasse mais

custosa a aquisição de terras, e que todas elas fossem vendidas. Isso porque

“aumentando-se, assim, o valor das terras e dificultando-se, consequentemente, a

sua aquisição, é de se esperar que o imigrado pobre alugue seu trabalho por algum

tempo”.139

Segundo Klug, o assunto relativo à imigração tornava-se cada vez mais

importante, sendo que, em 1848, foi promulgada uma lei pela qual todas as

províncias tinham o direito de dispor de uma área de 36 léguas quadradas que seria

utilizada exclusivamente para a colonização. De acordo com essa lei, nas terras

devolutas destinadas à colonização não se poderia empregar trabalhadores

escravos. Além disso, a posse da terra só seria concedida aos imigrantes após

comprovação de efetivo cultivo do solo num prazo máximo de cinco anos. Essa lei,

segundo o autor, normatizou a criação das colônias e regeu o sistema fundiário até

1889.

138 Idem, p. 207. 139 Idem, p. 205.

52

Outra lei significativa analisada pelo autor é a Lei de Terras de 1850. Para ele,

essa lei reorganizou a oligarquia latifundiária pela via imobiliária. Klug afirma que, a

partir desse momento, verificou-se a “junção de interesses entre o poder público e

as empresas privadas”.140 Isso porque a fundação de novas colônias valorizava a

terra e aumentava o controle do Estado sobre novas áreas. Além do mais, as terras

devolutas passaram a ser mercadorias, o que, em algumas regiões meridionais,

significou a expropriação de antigos ocupantes, sobretudo os indígenas. Assim, “na

prática, a lei impedia que, através da apropriação da terra, se estabelecesse no

futuro uma eventual concorrência entre pequenos agricultores, que, multiplicando-

se, poderiam colocar em perigo a hegemonia dos latifundiários”.141 Na região Sul, a

pequena propriedade era a unidade básica das áreas de imigração, e tinha mão-de-

obra predominantemente familiar e agrícola. Tendo-se em vista esse contexto, o

autor afirma que “a pequena propriedade agrícola nessa região é herança do

imigrante europeu, mas é, também, uma concessão do latifúndio”.142

Pode-se dizer que, principalmente no Segundo Reinado, o debate sobre um

projeto de desenvolvimento para o país, pautado no fluxo espontâneo de imigração,

correspondia a um duplo propósito: de consolidar a pequena propriedade e de

atender às demandas dos grandes latifundiários.143 Porém, é importante notar que o

autor afirma que a produção cafeeira, que crescia em São Paulo, não tinha interesse

pela imigração espontânea, já que esses imigrantes possuíam um grau maior de

independência. Nesse sentido, pode-se dizer que a interpretação de Klug sobre a

posição tomada pelos fazendeiros do Oeste Paulista não difere da apresentada por

Viotti, Alencastro e Renaux. Como afirma o autor:

Para vários intelectuais, além da abolição da escravidão, não havia maior clareza ou projeto em torno do destino da população escrava e dos demais trabalhadores nacionais enquanto possíveis colonos, ocupantes de pequenas propriedades. A possibilidade não é nem sequer considerada. ‘Trabalho livre’ era mais uma desqualificação do trabalho escravo do que propriamente uma proposta de trabalho independente.144

A partir das considerações apresentadas nos textos de Emília Viotti da Costa,

Alencastro e Renaux e João Klug, pode-se notar que todos os autores ressaltam os

diferentes projetos de imigração que se foram constituindo no século XIX, e levam

140 Idem, ibidem. 141 Idem, ibidem. 142 Idem, p. 216. 143 Idem, p. 219. 144 Idem, p. 124.

53

em consideração os interesses do governo imperial e de grandes latifundiários, e

dos fazendeiros do Oeste Paulista. Viotti tem como foco de análise a região Centro

Sul do país, enquanto que Klug se concdentra na região do Brasil meridional, as

duas áreas mais estudadas devido o grande afluxo de imigração nelas empreendida.

Nota-se também que Viotti, assim como Ianni, privilegia o estudo do trabalho livre no

período posterior a 1850, influenciados pelo “paradigma da transição”. Klug afirma

que os debates e as políticas de imigração tornaram-se mais consistentes a partir da

década de 1840, sendo que o período anterior também é pouco destacado.

Assim, mesmo autores que têm uma produção mais recente que tratam sobre

imigração enfatizam o período posterior a 1850, sendo perceptível o espaço menor

reservado aos trabalhadores não escravos que viveram enquanto ainda vigorava a

escravidão. É evidente que tal ênfase está associada ao fato de ter havido um

aumento muito grande no número de imigrantes introduzidos no Brasil na segunda

metade do século XIX. Além disso, a ênfase também se explica pelo fato de a

imigração ter sido considerada uma alternativa para a substituição do trabalho

escravo na produção agrícola, sobretudo a de café. Mas isso também se associa à

força do “paradigma da transição”, bastante consolidado na historiografia: ao longo

do século XIX, a escravidão foi sendo paulatinamente substituída pelo trabalho livre

assalariado, mais adequado às novas condições econômicas.

Outro ponto que pode ser ressaltado no tocante aos estudos influenciados

pelo “paradigma da transição” é a consideração de que “trabalho escravo” e

“trabalho livre” tenham sido experiências opostas e excludentes.

Como afirmam Enrique Espada Lima145 e Joseli Mendonça146, a oposição

entre trabalho escravo e trabalho livre é uma construção teórica. Segundo

Mendonça, tal oposição, que coloca trabalho livre e escravo como diametralmente

opostos, foi criada, sobretudo, na década de 1880, pelos militantes do movimento

abolicionista. Foi, portanto, uma definição construída por indivíduos imbuídos de um

projeto político, servindo como argumento para, no discurso abolicionista, apontar os

malefícios causados pela escravidão. A autora cita que essa oposição entre os dois

tipos de trabalho foi muito adotada na historiografia brasileira, que acabou por

145 LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: Escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 6, nº 11, pp. 289-325, 2005.

146 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Liberdade em tempos de escravidão. In: Território, Conflito e Identidade. Belo Horizonte: Argumentum, 2007.

54

instituir como interpretação histórica as considerações dos abolicionistas.147 Tal

oposição é enfatizada especialmente nos estudos que analisaram a “transição” do

trabalho escravo para o trabalho livre, como os casos dos estudos de Viotti e Ianni já

analisados. Nas palavras da autora:

Nas abordagens que tomaram como espaço de análise a plantation cafeeira do centro-sul do Brasil, especialmente de São Paulo, a idéia de oposição foi ainda mais fortemente marcada, pois agregou à consideração da “transição” a da “substituição” do escravo pelo imigrante. Nesses estudos, a oposição entre as duas formas de trabalho é identificada, inclusive, na própria pessoa do trabalhador, contrapondo o escravo negro ao imigrante europeu.148

4.2 OUTRAS POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO

De acordo com Lupion, a partir da década de 1980 a produção historiográfica

referente à história do trabalho no Brasil passou a contestar e a relativizar alguns

dos pressupostos presentes no “paradigma da transição”.149 Essa corrente

historiográfica procurou salientar as experiências cotidianas dos sujeitos enquanto

trabalhadores, em detrimento das estruturas econômicas. Como afirma Lupion :

Na década de 80, a produção historiográfica estava mais voltada para compreender a passagem” ; do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil partindo de premissas que abandonaram o determinismo das fases transitórias’ do processo histórico tão caras aos intelectuais dos decênios anteriores e passou a trabalhar [...] a partir da contextualização e da interpretação das transformações sociais.150

A análise das discussões sobre a imigração recolhidas a partir da leitura dos

Anais do Senado da década de 1830, realizada no capítulo anterior, contribui, de

alguma forma, para a reavaliação de perspectivas influenciadas pelo “paradigma da

transição”.

147 Idem, p. 1. 148 Idem, p. 11. 149 Alguns dos autores que passaram a questionar os pressupostos presentes no paradigma da

transição, sobretudo os referentes ao “escravo coisa”, ressaltando os escravos e libertos enquanto sujeitos ativos e inseridos na dinâmica do trabalho livre, são: SLENES, Robert W. Lares negros, olhares brancos; história da família escrava no século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, 8(16):189-203, mar./ago. 1998.; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.; LARA, Sílvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São Paulo, 16:25-38, fev. 1998.; REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista da USP Dossiê Brasil/África. São Paulo, 18:07-29, jun./jul./ago. 1993. , e KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

150 LUPION, Márcia Regina. Op. cit.

55

Em primeiro lugar, a leitura dos debates evidenciou que a questão do trabalho

imigrante já estava presente no período anterior a 1850, ocupando espaço

considerável nas discussões do Senado. Muitas leis foram debatidas tendo como

objetivo a atração de imigrantes ao Brasil, tais como a referente ao direito dos

estrangeiros, a reguladora dos contratos de trabalho, a de colonização e as

concessões de privilégios a empresas particulares. Pode-se dizer, ainda, que nos

debates parlamentares analisados nenhuma posição contrária à introdução de

imigrantes foi registrada. Grande parte das leis propostas e dos argumentos

utilizados pelos senadores para justificar suas posições recaíam na necessidade de

se atrair braços imigrantes para o Brasil, tendo em vista a possibilidade latente de

abolição do tráfico de escravos e a necessidade de desenvolvimento da nação.

Assim, a ideia da conveniência de atração de imigrantes era um ponto comum a

todos os parlamentares, apesar das discordâncias com relação ao tipo de imigrante

ideal.

Essas considerações, de alguma maneira, contribuem para a reavaliação de

que as questões referentes à imigração só foram significativas a partir da segunda

metade do século XIX. De acordo com essa interpretação, na primeira metade do

século XIX ainda não teria havido uma preocupação ou necessidade de substituição

da força de trabalho escrava pela imigrante, já que, entre outros aspectos, o tráfico

de escravos – apesar de legalmente proibido – ainda era suficiente para abastecer o

país e não teria havido o desenvolvimento das forças produtivas que determinariam

as transformações nas formas de trabalho.

Outro aspecto evidenciado pelos Anais do Senado da década de 1830 é que

não havia unanimidade entre os parlamentares com relação ao tipo de imigrante

ideal a ser introduzido no país e, como analisado, já se delineavam posições

antagônicas. Para alguns senadores, o imigrante deveria ser o que trabalharia nas

lavouras, na mesma posição dos escravos; enquanto que para outros os

estrangeiros deveriam ser pequenos proprietários de terra, que contribuiriam para o

desenvolvimento econômico do Brasil. Esta diversidade de posições, de acordo com

a historiografia corrente sobre imigração, só se teria configurado na segunda metade

do século XIX, passando então a representar dois projetos distintos de imigração –

um na região Centro Oeste do Brasil, e outro na região meridional.

Os senadores que almejavam atrair imigrantes para as lavouras de café –

caso de Nicolau Vergueiro – já pensavam em criar medidas legais para garantir o

56

trabalho dos estrangeiros nas lavouras. Algumas dessas medidas, como visto, foram

a criação de uma legislação que regulava os contratos de trabalho – as leis de

locação de serviços de 1830 e 1837 – e a tentativa de dificultar o acesso dos

estrangeiros à propriedade, através, por exemplo, do posicionamento contrário à

concessão de terras aos estrangeiros.

O fato de já haver, no início do século XIX, preocupações a respeito da

criação de medidas legais de garantia de permanência dos imigrantes no trabalho

das lavouras também contribui para a relativização do “paradigma da transição”, na

medida em que leva ao questionamento das fronteiras entre “trabalho escravo” e

“trabalho livre”, mostrando que havia diversas formas de trabalho compulsório entre

esses dois polos – tais como os instituídos pelos contratos de trabalho.

Joseli Maria Nunes Mendonça,151 ao indicar a confluência entre as

experiências de trabalho de escravos e trabalhadores contratados, relativiza as

fronteiras entre trabalho escravo e trabalho livre, questionando, dessa forma, o

próprio paradigma da transição. Como supracitado, a autora mostra que a oposição

diametral que se coloca trabalho livre e escravo foi construída na década de 1880,

pelos membros do movimento abolicionista.

Para Mendonça, “o trabalho livre nas últimas décadas da escravidão não foi

necessariamente experimentado como categoria apartada ou divergente da

escravidão, tampouco incompatível com as relações de trabalho escravista”,152

notando, ao contrário, uma estreita conexão entre experiências de trabalho livre e

escravo.

A autora defende seu ponto de vista através da análise de debates entre

deputados, em torno da proposta \que resultaria na lei de locação de serviços de

1830. Mendonça ressalta que os mecanismos de segurança para os empregadores

– que impunham medidas severas, tais como multas e penas de prisão aos

trabalhadores que não cumprissem o contrato – eram baseados na experiência de

relação entre os senhores e seus escravos. Dessa forma :

No ano de 1830, entre as tantas indeterminações referentes à utilização da mão-de-obra, incluía-se a própria definição de trabalho livre. Tal definição, naquele momento, estava longe de se constituir de forma acabada e definitiva; tampouco se apresentava como o reverso da escravidão. Ao

151 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Liberdade em tempos de escravidão. In: Território, Conflito e

Identidade. Belo Horizonte: Argumentum, 2007. 152 Idem, p. 3.

57

contrário, estava sendo feita num processo de disputa e em estreita confluência com as experiências das relações de trabalho escravistas.153

A autora demonstra, portanto, que a definição dos parâmetros de trabalho

livre que estava sendo construída naquele momento era pautada nas experiências

da escravidão. Para ela, não havia uma fronteira delimitada entre trabalho livre e

trabalho escravo, sendo, ao contrário, as experiências do trabalho livre constituídas

em estreita confluência com a escravidão.

Beatriz Galloti Mamigonian154 é outra historiadora que compartilha desses

novos referenciais teóricos, ajudando na relativização do “paradigma da transição”.

A autora descreve como eram as formas de trabalho realizadas no Brasil oitocentista

pelos chamados “africanos livres”, grupo de africanos resgatados de navios

apreendidos a partir do período de tráfico ilegal – décadas de 1820 a 1860 – que,

após o resgate, precisavam ficar por um período de 14 anos sob a tutela do governo

imperial. Tal processo tinha como justificativa a necessidade de um período de

adaptação desses africanos ao trabalho livre, que ficavam distribuídos entre

instituições públicas e concessionários particulares, para servi-los, juridicamente,

como “trabalhadores livres”. Porém, a autora defende a ideia de que, na prática,

esse sistema não procurava transformá-los em trabalhadores livres, sendo que a

condição jurídica de liberdade não correspondia às formas de trabalho pelas quais

esse grupo realizava. Os africanos livres representaram uma categoria fronteiriça

entre o trabalho escravo e o livre, cujas experiências esboçam os limites da

liberdade no Brasil do século XIX. Isso na medida em que os africanos livres

vivenciaram uma situação peculiar: eram trabalhadores juridicamente livres, embora

forçados ao trabalho involuntário.

A autora indica que, tanto no caso de serem entregues a concessionários quanto

nas instituições públicas, os africanos livres teriam sido empregados de forma similar

à de escravos. Nas instituições públicas, por exemplo, a coerção dos africanos livres

deveu-se em grande parte à necessidade do governo imperial por trabalho forçado

para as obras públicas, além da necessidade de manter os africanos sob controle.

Esse trabalho, no qual africanos estavam engajados, não demonstrava, por parte do

153 Idem, p. 4. 154 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. O direito de ser africano livre: os escravos e as interpretações da lei de 1831. In: Lara, Silvia Hunold e Mendonça, Joseli M. N.. (orgs.). Direitos e Justiças no Brasil: Ensaios de História Social. Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2006.

58

governo, nenhuma intenção de treiná-los e especializá-los no trabalho autônomo.

Além disso, havia grande concentração de africanos livres em setores de trabalho

em que predominava o trabalho escravo. Assim, mesmo juridicamente livres, os

africanos livres entravam no mercado de trabalho como novos escravos. Eram,

portanto, “limitados pelas mesmas obrigações que os escravos”. 155

Pode-se dizer que os africanos livres constituíam uma categoria fronteiriça de

trabalhadores, não incluída entre os escravos por ser juridicamente livre, nem entre

os trabalhadores livres, devido às reais condições e oportunidades de trabalho por

eles realizadas, semelhantes às dos escravos. Beatriz Mamigonian, ao tratar das

experiências de trabalho praticadas pelos africanos livres, relativiza as fronteiras

entre escravidão e liberdade, ao mostrar que havia formas de trabalho situadas entre

esses dois polos. A experiência dos africanos livres representou, portanto, uma

forma particular de trabalho involuntário no conjunto de trabalhos existentes no

Brasil daquele período. Tem-se, dessa forma, que a experiência do trabalho de

africanos livres insere-se num amplo e complexo quadro de relações de trabalho

compulsório que coexistiram com a escravidão no período. Para a autora, nesse

sentido, não houve a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, mas sim a

coexistência de diversas formas de trabalho compulsório entre esses dois polos.

Para finalizar, é interessante citar que recentemente vem se consolidando no

Brasil uma produção historiográfica que coloca no centro de suas preocupações de

investigação as leis referentes ao trabalho. A partir da perspectiva metodológica

iniciada por Thompson,156 abriu-se a possibilidade de estudar as leis como meio de

acesso para entender os conflitos sociais presentes num determinado contexto

histórico.

Uma das vertentes historiográficas sobre as leis referentes ao trabalho tem

como foco o processo de construção das leis, que trouxe para o campo de análise

dos historiadores os debates parlamentares, caso desta pesquisa. Nesses estudos,

o que se busca ressaltar é o processo de construção das leis no parlamento,

analisando os debates não como um local de produção de um consenso, mas sim

como característico de uma instituição na qual se operavam negociações de

interesses diversos. No caso analisado, pôde-se notar que havia disputas e conflitos

155 Idem, p. 400. 156 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a. origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1987.

59

entre os próprios senadores – membros da elite política – na formulação das leis

referentes à imigração, que diziam respeito a visões divergentes sobre quem seria o

imigrante ideal. Além disso, as posições tomadas pelos membros das elites políticas

também refletem questões mais amplas da sociedade, tais como tensões

experimentadas no âmbito da Justiça. Pode-se concluir, então, como afirmam Lara e

Mendonça, que:

Para os que lidam com a história do trabalho, o exame da legislação, do modo como os textos legais foram elaborados e de como foram utilizados pelos trabalhadores em suas reivindicações, tem aberto novas perspectivas analíticas, especialmente quanto à sua participação na esfera pública. Assim, a produção historiográfica que toma a legislação referente ao trabalho como fonte para o estudo da experiência de escravos e livres tem se desenvolvido bastante, tanto do ponto de vista dos temas inerentes a estas duas áreas de estudos quanto para verificar as conexões entre elas.157

Tais análises podem entrar em confluência com os estudos historiográficos

referentes ao trabalho no século XIX que relativizam alguns dos pressupostos

presentes no “paradigma da transição”. Como visto no caso deste estudo, pode

apontar as discussões e conflitos existentes dentro do próprio parlamento, entre os

membros da elite política, demonstrando que já havia uma preocupação com a vinda

de imigrantes e já se configuravam concepções e projetos divergentes de imigração

entre os senadores na década de 1830. Ou, ainda, em casos de estudos envolvendo

processos judiciais, que demonstram o recurso à Justiça por parte dos

trabalhadores, tanto escravos quanto “livres”, para reivindicar seus direitos,

apresentando-os, dessa forma, enquanto sujeitos da história, que com as suas

reivindicações influenciam o próprio processo de criação e transformação das leis.

157 LARA, Silvia Hunold. MENDONÇA, Joseli Maria. Leis e História do Trabalho no Brasil: uma

base de dados. Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional (4. : 2009 : Curitiba,PR) disponível em: http://www.labhstc.ufsc.br/ivencontro/pdfs/comunicacoes/SilviaLaraJoseliMendonca.pdf

60

5 CONCLUSÃO

Embora tenha adquirido maior importância no decorrer do século XIX, o tema

da imigração já estava presente nas discussões da elite política da primeira metade

do século XIX, como evidenciado neste estudo, acerca das sessões do Senado da

década de 1830.

O Senado foi, durante esse período, uma instituição política de grande

relevância, principalmente a partir do esvaziamento das atribuições do Poder

Moderador no período regencial. Além disso, representou um dos principais locais

de negociação dos interesses da elite no campo institucional.

Muitas leis foram discutidas entre os membros dessa instituição, na década

de 1830, tendo como objetivo a atração de imigrantes ao Brasil. Além disso,

nenhuma posição contrária à introdução de imigrantes foi registrada entre os

senadores que se pronunciaram. Assim, grande parte das leis propostas e dos

argumentos utilizados pelos senadores para justificar suas posições recaíam na

necessidade de se atrair imigrantes para o Brasil, tendo-se em vista a possibilidade

latente de abolição do tráfico de escravos e a necessidade de “civilização” e

desenvolvimento da nação. Outro ponto evidenciado pelas fontes foi que não havia

entre os representantes da elite política imperial uma unanimidade sobre o tipo de

imigrante a ser introduzido no país. Nesse sentido, já se delineavam posições

antagônicas com relação ao tipo de imigrante ideal: o que trabalharia nas lavouras

ou o que se estabeleceria por conta própria.

Como já comentado, nesse contexto da primeira metade do século XIX

brasileiro, a aquisição de escravos poderia se tornar mais cara, devido ao tratado

entre Brasil e Inglaterra que previa a proibição do tráfico para 1831. O tráfico e a

mão-de-obra escrava representavam peças fundamentais da economia da grande

lavoura, que tinha representantes na elite política imperial. Como afirma Andrade,158

a economia colonial, exportadora e escravista:

“Longe de ser superada, é até mesmo reforçada após a Independência com a expansão do café. Assim, toda a questão da mão-de-obra estava vinculada aos interesses da grande lavoura que, por sua vez, se ligava ao comércio de escravos.159

158 ANDRADE, André Luiz Alípio de. Variações sobre um tema : a sociedade auxiliadora da

industria nacional e o debate sobre o fim do trafico de escravos (1845-1850). Dissertação de Mestrado, Instituto de Economia da Unicamp, 2002.

159 Idem, p. 15.

61

Além disso, na primeira metade do século XIX, no período pós-

independência, havia uma forte preocupação com a criação de uma identidade

nacional e civilização do Brasil, questões nas quais a imigração europeia ocupava

espaço considerável.

Pôde-se notar a preocupação dos senadores com essas questões, tanto as

referentes à mão-de-obra quanto as vinculadas às necessidade de civilização da

população brasileira recém-independente. O senador Nicolau Vergueiro, como

representante dos interesses dos fazendeiros do Oeste Paulista, pretendia utilizar

mão-de-obra estrangeira nas lavouras de café, buscando atrair imigrantes que só

possuíssem sua força de trabalho e não adquirissem propriedade. Compreende-se,

portanto, a posição de Vergueiro nos debates analisados, nos quais propunha

medidas para garantir o trabalho dos estrangeiros nas lavouras – tais como a

legislação que regulava os contratos de trabalho –, e as tentativas de dificultar o

acesso dos estrangeiros à propriedade.

Enquanto isso, outros senadores se posicionavam de maneira diversa,

defendendo a atração de imigrantes como forma de “civilizar” o país. Nesse caso, os

imigrantes deveriam estabelecer suas indústrias e tornar-se pequenos proprietários.

Esse tipo de imigração era visto como o único com efeitos realmente civilizadores e

que desenvolveria a indústria brasileira.

Essas considerações, de alguma maneira, contribuem para reavaliar o

entendimento segundo o qual as questões referentes à imigração só foram

significativas a partir da segunda metade do século XIX. Como ressaltado no terceiro

capítulo, os estudos referentes à imigração analisam majoritariamente o período

posterior à década de 1850. Logicamente, uma das razões para esse recorte está na

circunstância de que o maior afluxo de imigrantes para o Brasil ocorreu na segunda

metade do século XIX. Porém, a tradição historiográfica pautada nos pressupostos

do “paradigma da transição” – segundo a qual, antes de 1850, ainda não haveria

uma preocupação de substituir a força de trabalho escrava pela imigrante, já que o

tráfico de escravos seria suficiente para abastecer o país, além de não ter havido o

desenvolvimento das forças produtivas que determinariam as transformações nas

formas de trabalho – também pode ter influenciado para que o recorte temporal

proposto no presente trabalho monográfico não fosse privilegiado na maioria dos

estudos historiográficos referentes à imigração.

62

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