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IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR 1391 ETOLOGIA E ICONOLOGIA DO PALHAÇO: Imagens tecnológicas e grotescas para a constituição de rituais e ambientes mágico-míticos Guilherme Henrique de Oliveira Cestari 1 Por meio das reflexões etológicas acerca da hominização, estabelecem-se relações entre Antropologia dos jogos e da religião e fundamentos da Biologia para investigar a utilização da imagem de um palhaço durante uma festa de música eletrônica. Conduta e pensamento humanos são influenciados pela contradição, receio, medo, característicos de um ser inconstante, emocional, profano e colonizado pelo imaginário: o Homo Sapiens Demens. A figura do palhaço, ambivalente, efêmera, anárquica, simultaneamente inocente e maliciosa, ao mostrar-se imperita às últimas instâncias, eleva as características humanas ao improvável. Quando este personagem grotesco se apresenta aos participantes de uma celebração ritualística contribui para o caráter mágico, mítico e emocional do acontecimento. Palavras-chave: The Chemical Brothers; Ludens; Demens. Through reflections on the ethological hominization, settle relations between anthropology, religion and fundamentals of biology to investigate the use of the image of a clown during a festival of electronic music. Human thought and behavior are influenced by contradiction and fear, characteristics of a fickle, emotional, profane and colonized by the imaginary being: Homo Sapiens Demens. The figure of the clown, ambivalent, ephemeral, anarchic, simultaneously innocent and mischievous, elevates human characteristics to unlikely. When this grotesque persona is presented to participants in a ritualistic celebration contributes to the magical, mythical and emotional character of the event. Key-words: The Chemical Brothers; Ludens; Demens. 1 Bacharel em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina, mestrando em Comunicação pela mesma instituição. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR

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ETOLOGIA E ICONOLOGIA DO PALHAÇO :

Imagens tecnológicas e grotescas para a constituição de rituais e

ambientes mágico-míticos

Guilherme Henrique de Oliveira Cestari1

Por meio das reflexões etológicas acerca da hominização, estabelecem-se relações entre Antropologia dos jogos e da religião e fundamentos da Biologia para investigar a utilização da imagem de um palhaço durante uma festa de música eletrônica. Conduta e pensamento humanos são influenciados pela contradição, receio, medo, característicos de um ser inconstante, emocional, profano e colonizado pelo imaginário: o Homo Sapiens Demens. A figura do palhaço, ambivalente, efêmera, anárquica, simultaneamente inocente e maliciosa, ao mostrar-se imperita às últimas instâncias, eleva as características humanas ao improvável. Quando este personagem grotesco se apresenta aos participantes de uma celebração ritualística contribui para o caráter mágico, mítico e emocional do acontecimento.

Palavras-chave: The Chemical Brothers; Ludens; Demens.

Through reflections on the ethological hominization, settle relations between anthropology, religion and fundamentals of biology to investigate the use of the image of a clown during a festival of electronic music. Human thought and behavior are influenced by contradiction and fear, characteristics of a fickle, emotional, profane and colonized by the imaginary being: Homo Sapiens Demens. The figure of the clown, ambivalent, ephemeral, anarchic, simultaneously innocent and mischievous, elevates human characteristics to unlikely. When this grotesque persona is presented to participants in a ritualistic celebration contributes to the magical, mythical and emotional character of the event.

Key-words: The Chemical Brothers; Ludens; Demens.

1 Bacharel em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina, mestrando em Comunicação pela

mesma instituição. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Investigações acerca de projeções da tecnologia no imaginário biopsicossocial

contribuem para uma problematização das relações entre magia, ritualização,

antropologia, sensorialidade e fisiologia. O palhaço, personagem frequentemente

relacionado à entropia e ao pensamento criativo, utiliza sua peculiaridade e exotismo

para fundamentar críticas e reflexões culturais. Os espetáculos e ambientes produzidos

pela performance deste tipo de personagem têm potencial para repensar, de maneira

predominantemente empírica e subjetiva, as divisões entre natureza e artificialidade,

real e virtual, público e privado, razão e emoção e loucura e lucidez. Para o presente

estudo, aplicar-se-ão conhecimentos relacionados à etologia humana, antropologia da

religião e iconologia a fim de analisar a imagem de um palhaço exibida durante uma

apresentação de música eletrônica. O corpus constitui-se de dois momentos da

apresentação da dupla de DJs britânica The Chemical Brothers, cuja performance,

datada de dezembro de 2010, foi registrada e editada, originando um documentário

intitulado “Don’t think”, lançado no início de 2012. Em grandes festas e espetáculos

audiovisuais, luz, som, imagem, tecnologia, corporeidade e, por vezes, substâncias

alucinógenas combinam-se para originar vertiginosas estruturas complexas e

generativas. Exemplos da expressão e intervenção sociocultural urbana, estes esquemas

semióticos e comunicacionais estão em constante transformação e adaptação. O estudo

dividir-se-á em três etapas que envolvem revisão bibliográfica, evidenciação e descrição

do corpus e resultados/discussão.

1. Etologia humana

Conforme Ropartz (1983), a Etologia (literalmente, “ciência dos costumes”)

dedica-se à observação do comportamento dos seres em seus respectivos ambientes

nativos. Longe de estabelecerem padrões e diagramas meramente silogísticos, de

simples causa e efeito, os estudos etológicos mostram-se fundamentais para

compreender, principalmente no reino animal, noções de significação, informação e

codificação. Intervindo o mínimo possível na rotina do grupo estudado, o etólogo

identifica hábitos e costumes, além de componentes sociais, fisiológicos e ambientais

que influam no comportamento e nos interesses daqueles integrantes. A ritualização se

faz presente na conduta da maioria dos coletivos. A constituição de repertórios

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comportamentais permite o estabelecimento de convenções e linguagens primitivas. No

caráter instintivo, aparentemente automático e espontâneo, de determinadas

manifestações corporais, ligadas majoritariamente, à emotividade, podem fundamentar-

se linguagens expressivas universais.

Espacialidade e noção de território influenciam convivência e organização

grupais. Parte da identidade e das memórias de cada indivíduo tem origem no plano

espacial. Preocupações ligadas à Ecologia (junção das partículas gregas “oikos”, casa, e

“ logos”, estudo), ciência natural que lida com as relações entre os organismos no meio

em eles vivem, permeiam ambientes comunicacionais. A constituição de códigos,

hierarquias, sistemas e convenções mostra-se essencial para a efetivação de relações

interindividuais e de comportamentos sociais. Liderança, submissão, eleição,

demonstrações emocionais, iniciativa, são atitudes por vezes contraditórias, que partem

do indivíduo ao relacionar-se coletivamente. O ser, ao mesmo tempo sistema complexo

e componente da ambivalência social, não se alimenta apenas energia, mas também de

organização (entropia negativa, ou neguentropia). Observações promovidas pela

Etologia permitem aproximar o ser humano daquilo que ele mesmo convencionou como

“Natureza” ou “seres naturais”. Em oposição a visões simplistas, constata-se que as

relações entre grupos não humanos não têm caráter meramente sexual, reprodutor,

alimentício ou de força bruta. Em meios aos animais, constituem-se potencialidades,

condutas, comportamentos, hábitos, costumes, protoculturas e inovações que originam

redes de pensamento complexas e mais semelhantes às do homem do que uma ciência

predominantemente purista e hermética poderia hipotizar.

2. O homem no mundo

Morin (1975) problematiza o conhecimento e os modelos de compreensão do

mundo real. Lógicas científicas, ritualísticas e religiosas representam estratégias para

lidar com os espaços público e individual. Estudos que supõem divisões estritas entre

Natureza, tida como caótica, entrópica, animal, e Cultura, humana, social e racional,

acabam por simplificar demasiadamente as origens e fronteiras pelas as quais a vida,

pensamento e a existência são conduzidos. A Antropologia clássica, fundada em noções

rígidas de costume, hábito e cultura, mostra-se suscetível a vícios de pesquisa, que

podem distorcer percepções e resultados. Do mesmo modo, conceitos e pressupostos da

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Biologia quando levados em conta de modo hermético e isolado não podem conceder ao

pesquisador panoramas consistentes a respeito do corpus. Os olhares, quando orientados

pela complexidade e transdisciplinaridade, conduzem a panoramas distintos, dinâmicos

e ambivalentes. Em sistemas orgânicos a existência de imprevisibilidade, entropia ou a

falha de um dos componentes abre espaços para aprendizados e adaptações. As

fronteiras entre indivíduo, sociedade, natureza, convenção, ritual e cultura veem-se

gradativamente dissolvidas.

Momentos lúdicos demonstram reapropriações de códigos utilizados na

comunicação cotidiana, durante jogos e brincadeiras os significados podem ser

diferentes dos convencionais. Manifestações e expressões emocionais destinados a

grupos ou indivíduos específicos configuram uma das bases para o raciocínio crítico e

lógico. A tríade dinâmica Espécie-Indivíduo-Sociedade origina relações complexas de

ordem fisiológica, psicológica/individual e antropológica/social. Desta forma, sistemas

de vida desconstroem-se e reconstroem-se contínua e simultaneamente, adaptando-se a

cada geração. O pensamento complexo, ao presumir contradições e mutabilidade,

permite ao homem que reaprenda sobre suas origens, revisitando-as. Assim, busca-se

compreender de uma forma não simplista ou excessivamente sintética a multiplicidade

de manifestações assumida pela natureza humana.

É importante que uma sistematização sociocultural, ecológica, econômica,

biológica, psicológica e antropológica do indivíduo e do ambiente humano leve em

conta múltiplas dimensões e predisposições históricas, adaptativas e genéticas, as quais,

por vezes, se relacionam sob lógicas entrópicas e não funcionais. Desta forma,

criatividade, fisiologia, espiritualidade e sociabilidade constituem estruturas

inseparáveis para o pensamento social. A complexificação de regras e valores faz-se

importante para atender necessidades biológicas e de convivência, o que, por sua vez,

demanda sofisticação dos recursos e codificações linguísticos.

A gênese social do homem contempla um conjunto de indivíduos

biologicamente distintos que atuam em grupos e papéis variados em prol de um

interesse comum. A juventude, destituída de classe formal, ainda em contato com

ambiente materno, mas já introduzida ao contexto da caça, encontra em atividades

lúdicas a força motriz para inovações, experimentações e preparação para a vida adulta.

A convivência ambígua e simultânea dos jovens respalda o pensamento criativo, e

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inovador, celebrado em jogos, festas e rituais. Exercer e exercitar a expressão dos

sentidos e dos sentimentos contribui para o desenvolvimento de articulações

tecnológicas e sociais.

Variáveis sociobiológicas e psicossociais levaram à interação e à integração

entre espécie-indivíduo-sociedade de maneira a constituir protoculturas e,

posteriormente, culturas. Antes mesmo do desenvolvimento cultural pleno existiam

hábitos, costumes, modelos e procedimentos. A gênese cultural é percebida quando as

relações entre tais assuntos evoluem para sistemas generativos de alta complexidade, em

cuja coexistência ambivalente de forças e discursos faz com que sociedade e indivíduos

perpetuem relações de ensino, aprendizado e inovação. Daí o centro do processo de

humanização: mecanismos culturais e biológicos atuam complementarmente de forma a

tornar complexos cérebro, corpo e organização social.

As vivências emocional e experimental, atividades comumente ligadas à infância

e juventude, contribuem para o fenômeno da cerebralização, processo em que o cérebro,

nó górdio da hominização, desenvolve-se em um relacionamento contínuo com o

contexto que o cerca, intercomunicando estruturas de modo a problematizá-las, tecendo

redes generativas de conhecimento e complexificando a si mesmo. Cultura, contexto e

comunicação são essenciais para que um cérebro avançado como o do homo sapiens

busque desenvolver suas plenas capacidades. Cultura e atividade cerebral

retroalimentam-se. Quando abolidas as fronteiras rígidas entre Natureza e Cultura,

admitindo que hábitos, costumes e estruturas que definem o comportamento humano

têm origem híbrida, não parece estranho afirmar que o estado dos conhecimentos há de

permanecer com certo grau de imperfeição, assimetria, entropia, dúvida e mistério. A

percepção e a explicação da realidade por parte do pensamento do homem são

permeadas por subjetividades, incertezas, ineficiência e inacabamento. Imagens, crenças

e personagens de origem mágica, mítica e simbólica traduzem, de diferentes maneiras,

sensações e anseios imersos no inconsciente da história da comunicação e evolução

biopsicossocial do ser humano.

A juvenilização, fenômeno em que, através de gerações, o pensamento jovem e

inovador se infiltra na conduta social, permite que crenças, mitos, jogos, celebrações,

entre outras atividade de natureza predominantemente emocional e complexificante,

constituam redes inacabadas e generativas de significações subjetivas e abrangentes. A

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magia é uma negociação com imagens e personagens; entidades sobrenaturais. O ritual

sazonal ou diário não só reforça a noção de tempo e espaço, mas também possui

preocupações ecológicas, de ressonância com outros seres e ambientes. Daí pode-se

identificar uma espécie de economia simbólica primitiva, em que se estabelecem

hierarquias, funções, regras e valores para que aconteça o, por assim dizer, comércio e

argumento ontológico.

Inquietude, questionamento e erro desdobram da contradição e incerteza

crepusculares característicos do imaginário. Surgem dúvidas sobre as fronteiras entre

corpo biológico e sensorial, mente e mundo sensível. Falha, receio, medo do incerto e

ilusão são parte do pensamento e da imperfeita existência humana. A emotividade acaba

por influir nas mais corriqueiras atividades, condutas e ideologias. Riso e choro, assim

como o prazer orgástico, são fenômenos misteriosos que se manifestam no homem

como em nenhum outro ser. Erro, frustração, magia, crença, instabilidade e insatisfação

estão intimamente relacionados ao transe, à vertigem e às apropriações mnésicas e

identitárias do ser humano. As estruturas criadas pelo homo sapiens tendem a ser mais

entrópicas que as da natureza biológica. O pensamento humano introduz perversão e

desordem generativas no mundo. Com o imaginário, o homem, loquens, socius, faber,

agora é demens, ou, em interpretação literal, fora de sua mente, de sua consciência.

Surge, então, a face do homem escondido pelo conceito tranqüilizador e emoliente de sapiens. Trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, embriagado, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um ser que segrega mito e magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, [...] que produz a desordem. (MORIN, 1975, p.116)

Já não se pode opor razão e loucura, ambas são complementares à inquietude

dos anseios humanos. A Verdade do homem comporta inconsequência e contradição.

Espécie, indivíduo e sociedade não rumam em direção à racionalização beata e utópica,

mas vivem uma mistura entre afetivo e beligerante, sorte e máscara, mérito e vertigem.

Assim sendo, legítimas estruturas generativas, tais vetores e contradições desencadeiam

ciclos de hipercomplexidade, em que referenciação e abstração tecem novas relações

biopsicossociais.

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3. Sapiens, Demens, Ludens

Huizinga (1993) interpreta o jogo como função significante, ação produtora de

sentido. A atividade lúdica cativa, fascina, excita e socializa, opera em realidades

autônomas e abstratas sem aparentes preocupações objetivas imediatistas; imaginam-se,

a partir do existir terreno, ontologias diversas, alternativas simulatórias. Propõe-se ao

jogador uma evasão temporária da vida real. De livre adesão, desinteressado e limitado

espaço-temporalmente, o jogo organiza e mobiliza os envolvidos, ordena determinado

conjunto de preceitos. Tensão, incerteza, segredo e mistério são responsáveis pelo grau

de sedução e desafio do jogo. Há de se estabelecer, entre os jogadores, certa

cumplicidade, oriunda do entendimento e cumprimento das regras e códigos internos e

exclusivos daquele ambiente lúdico.

Tais princípios irracionais e imateriais, características do jogo, e, ao mesmo

tempo, tão cativantes ao homem, estimulam nova discussão acerca da sapiência e do

racionalismo humanos. Tamanha a influência e onipresença dos jogos na vida do

homem, que se sugere que o homo também possa ser considerado ludens. Este trabalho

considera, apesar de não ter sido encontrado diálogo formal entre os autores, que o

sufixo ludens, sugerido por Huizinga (1993) e adotado por Caillois (1990),

complementa a partícula demens, concebida por Morin (1975), uma vez que os jogos

integram e confundem-se com boa parte do imaginário antagônico e inconstante do ser

humano.

Caillois (1990), com olhar antropológico, categoriza os jogos de acordo com

estrutura social e imaginário mitológico. Em contextos em que religião e mito exercem

influência majoritária no cotidiano dos integrantes, jogos em geral têm como princípios

a máscara (simulacro, mimicry) e o transe (vertigem, ilinx). Em tais espaços lúdicos,

ritualização, hierarquia e cumplicidade respaldam o pensamento mágico por meio de

encontros, celebrações e cerimoniais. A máscara relaciona-se com a incorporação de

entidades e identidades; um indivíduo específico é selecionado para vestir a máscara e,

ao fazê-lo, de acordo com a crença de tribos africanas, por exemplo, concede seu corpo

a uma nova consciência, abdica de si mesmo em prol da negociação com entes

sobrenaturais. O uso da máscara está, na maioria das vezes, ligado à sintonia com a

natureza e ao uso de substâncias alucinógenas, substratos químicos que alteram a

percepção do real. A fabricação da máscara tem caráter predominantemente artesanal e

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misterioso; por ser objeto de comunicação e negociação com o sagrado, ela é única, não

é acessível a todos e fica escondida enquanto não é utilizada. Questionamentos acerca

dos fenômenos sobrenaturais e desenvolvimento científico alteram os fundamentos

sociais dos jogos, que passam a priorizar mérito (desejo de triunfar, ambição, agôn) e

sorte (igualdade, risco, acaso, álea).

Em ambos os casos, estrutura e mentalidade sociais vigentes conformam e

justificam a atuação lúdica, e vice versa. A mudança de mentalidade afeta os níveis

estético, ético e lógico da convivência biopsicossocial; aparecem novos espaços de

convivência, novos modelos de discussão, reflexão e produção do conhecimento.

Nenhum destes regimes tornar-se-á absoluto ou estático, a sociedade complexa é um

sistema adaptativo que tem seus mecanismos regulados por mimicry, ilinx, agôn e álea.

Tanto pensamento social contemporâneo quanto seus jogos e disputas têm caráter

prioritariamente racionalista, ainda assim, o pensamento mágico-mítico se faz presente,

ainda que de maneira degenerada, no convívio e nas relações culturais. Ambientes e

tecnologias comunicacionais alimentados pela indústria cultural, dentre eles, cinema,

televisão, além de shows e festas de música eletrônica, são exemplos da resistência da

máscara misteriosa, do transe instável e da alucinação esquizofrênica em um contexto

de valorização predominante do mérito ambicioso e da sorte igualitária.

Quando se busca entender os jogos sob uma perspectiva complexa e

multidisciplinar, Iconologia e Etologia tendem a uma mescla ambivalente. Órgãos

sensoriais estão intimamente relacionados à produção imagética e mítica; extensões

corporais (ferramentas e instrumentos) colaboram para a produção de linguagens

figurativas; o espaço territorial, local de convivência e de construção de memória e

identidade, serve de superfície para interferências, que possuem, também, caráter

lúdico, de registro e de simulação.

4. Imagens circenses, clownescas, biológicas e divinas

Bolognesi (2003) disserta em tom celebrativo acerca dos costumes e hábitos

circenses e clownescos. O circo é um ambiente social no qual coexistem pensamento

criativo e ilusão, além de críticas e reflexões estéticas, éticas e lógicas. Imagens,

máscaras e anúncios circenses transparecem exotismo, imperfeição, assimetria e

bipolaridade. Imaginam-se tipos e situações polêmicas, esquizofrênicas, anárquicas,

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espetaculares e efêmeras. A apresentação circense explora, em nome de um

entretenimento carnavalizante e generativo, as associações entre cultura, antropologia,

ecologia, magia, ritualização, emoção e fisiologia. O circo, efervescente de

experimentalismos, contribui para a inovação contrapondo misterioso e desconhecido a

formatos, cerimoniais e linguagens arraigados. Apresentam-se performances

sinestésicas que impressionam pela complexidade formal e conceitual. Há espaço para

todo o tipo de manifestação artística e tecnológica: atuação, pintura, música, escultura,

todas executadas hibridamente e com boa dose de improvisação. A ambivalência,

presença de discursos e vozes opostos e intensos, gera contrastes, tensões; espaços

comunicacionais e imaginários multidimensionais que provocam, problematizam,

confundem, e, simultaneamente, significam e esclarecem. Temas divinos e grotescos

coexistem complementarmente. As manifestações circenses subvertem tanto as noções

de propriedade como as barreiras entre público e privado. Jogos e esportes também

estão presentes no picadeiro, do transe à sorte, as narrativas são construídas de maneira

a conduzir os interlocutores a uma catarse mais ou menos colaborativa. Processos de

capitalização e midiatização da apresentação circense tornaram-na ainda mais impura.

Tanto a ressignificação de personagens e papeis quanto o avanço tecnológico

contribuíram para a reconfiguração de parte do imaginário circense na

contemporaneidade.

O palhaço não se reduz a um mero integrante do circo, desenvolve ali muitas de

suas habilidades e potencialidades, mas está presente em outros meios e contextos. Sua

imagem, oportunista e chamativa, se destaca diante do ordinário. O exagero

predominantemente estético nos trejeitos do palhaço fundamenta pensamentos de teor

ético e lógico. A maquiagem-máscara é elaborada de modo a realçar caráter e

comportamento grotescos do personagem; olhos, nariz e boca são destituídos de suas

formas convencionais, originando ilusões e hipérboles faciais. Os olhos, marcados pela

subjetividade, anunciam e antecipam as intenções e movimentos do protagonista. O

nariz, quase sempre avermelhado, relaciona-se com secreções e com o falo. Bochechas

rosadas denunciam a tendência do inocente palhaço à embriaguez. A pele esbranquiçada

tende a transmitir um desconforto, irônico, anêmico e desumanizante, que contribui para

o distanciamento do espectador e, consequentemente, o fenômeno do riso

ridicularizador. A boca, contrastantemente vermelha e grotescamente erotizada, símbolo

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de absorção e deglutição, é o centro da face cômica. A interação ambivalente entre os

órgãos sugere ao espectador uma aproximação sinestésica durante a performance. O

corpo, matéria para reflexões acerca de realidade e imaginários sociais, culturais e

psicológicos, é princípio da atuação circense:

A matriz do circo é o corpo, ora sublime ora grotesco. O corpo não é uma coisa, mas um organismo vivo que desafia seus próprios limites. [...] O corpo feito espetáculo deixa de lado a roupa cotidiana que o esconde para se mostrar em sua grandeza contraditória, no jogo incessante entre o sublime e o grotesco. Espetacularmente, ele se desnuda para revelar toda a sua potencialidade. (BOLOGNESI, 2003, p.189)

Apesar de possuírem aparência antropomórfica, deuses, homens, palhaços e

macacos têm diferenças fundamentais na constituição imaginária (Figura 1). Enquanto

deuses caracterizam-se pela existência superior, atemporal, além de perspicácia, clareza

e onipotência, palhaços e macacos são imagens de degeneração, confusão,

desorganização, impotência e imperícia. Resta ao homem uma existência dual e

ambivalente, entre a utópica sapiência imaterial divina e a corporeidade demente,

profana e animalesca do palhaço e do macaco.

Figura 1: Separações, declínios e decadências entre Deus, homem, palhaço e macaco.

Fonte: Elaborado pelo autor com base em Zücker (1954).

A leitura de Zücker (1954) permite presumir que o principal sustentáculo

ontológico do palhaço está em sua audiência, com a qual possui uma relação de

cumplicidade, crítica e parasitismo. O palhaço não possui fé religiosa nem engajamento

político, científico ou filosófico aparentes, suas ações não inspiram coragem ou

confiança, ao contrário, denotam inaptidão, irresponsabilidade e instabilidade. O riso

demanda certa dose de impiedade e impessoalidade por parte do público; daí constitui-

se uma hierarquia virtual, mais ou menos ilusória, na qual o singelo personagem parece

ocupar uma posição inferior, já o interlocutor, por sua vez, coloca-se em condição de

superioridade ao assistir às peripécias aparentemente ingênuasi. Fruto de sua

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personalidade, a atuação do palhaço insiste no incerto, na falha e na frustração. O quão

humano é o palhaço? Sua aparência leva ao descompromisso e à não-compaixão

próprios do humor satírico, porém, suas atitudes, perseverantes no erro, revelam uma

espécie de humanização exacerbada. Teimosia, dúvida, medo, êxtase, sonho, devassidão

e inconsequência são próprios do homem e hiperbólicos no palhaço. O pensamento do

palhaço provoca, hominiza e humaniza:

In a world which tends toward an absolute functionalization of the human, where man, faced with the myth of an unchangeable mechanism, drops into stupor, while he is manipulated and directed by powers out of his reach and his understanding – in such a world the clown becomes necessary again, as the one who affirms by denying. (ZÜCKER, 1954, p. 317)

Nos âmbitos arquetípico, mitológico e religioso, o palhaço é o “senhor da

desordem”, o contraponto ao equilíbrio divino, cósmico, racionalista, sapiens. Sua

conexão com o diabo não é exatamente oposta à intelectualidade humanista, mas

complementar, no sentido de que se elaboram críticas emocionais a um positivismo

idealista. O ridículo pressupõe o sublime, o sublime permite a presença do ridículo; a

performance clownesca, de espírito predominantemente juvenilizante, despreocupado,

apaixonado, criativo, errante e anárquico, afeta a estabilidade identitária dos

espectadores e da sociedade. A influência da figura do palhaço no pensamento social

manifesta-se com toda potência quando a máscara, imagem da marginalidade, torna-se

desejo, anseio, ideal e, consecutivamente, o próprio rosto.

5. O palhaço mítico e tecnológico

O material analisado consiste em dois momentos distintos de uma apresentação

feita pela dupla de DJs The Chemical Brothers. Nos trechos em questão, um mais ao

início do show e outro perto do final, surge a imagem de um palhaço, que parece se

dirigir ao público por meio de expressões e frases ritmadas e repetidas à exaustão. A

performance dos DJs e as reações dos interlocutores foram registrados no documentário

intitulado “Don’t think”, lançado no início de 2012. O espetáculo que deu origem à obra

aconteceu no fim de 2010, em Tóquio, e contou com a presença de mais de cinquenta

mil fãs. Foram utilizadas vinte câmeras para o registro do momento. O longa-metragem

foi exibido nos cinemas e comercializado nos formatos CD (apenas áudio), DVD e Blu-

Ray. O trabalho do The Chemical Brothers é bastante influente no cenário internacional

da música eletrônicaii. O grupo é pioneiro no estabelecimento de identidades

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(audio)visuais multimidiáticas, as imagens vinculadas à dupla em diferentes meios

dialogam entre si, constituindo ambientes de significação intertextuais e gerando

expectativa nos fãs. O encontro destas manifestações expressivas tem seu ápice durante

a performance ao vivo. O britânico Adam Smithiii dirige as apresentações do duo e

também assina a direção do documentário. O designer gráfico e artista multimídia

Marcus Lyalliv, que já trabalhou em videoclipes e efeitos especiais e de iluminação para

outros espetáculos de rock e música eletrônica, é o responsável pelo visual de cada

música tocada no show. Utilizar tecnologia para vincular e sincronizar informações

visuais e auditivas, contemplando também outros estímulos sensoriais, como tato e

olfato, possibilita ao público uma experiência altamente imersiva e emocionante, quiçá

catártica. Um trabalho como este demanda investimentos generosos e pesquisas que

abranjam as congruências entre tecnologia, design, iluminação, mídia, recepção e

captação de imagens.

O conteúdo visualizado no DVD configura uma seleção duplamente parcial da

realidade. As imagens ali disponíveis não são “neutras” ou desinteressadas, filmagem e

edição conferem parcialidade e intencionalidade ao documentário final. Tais imagens

não são equivalentes à realidade em si, mas se referem a fragmentos do real. Por meio

do conteúdo disponibilizado no longa-metragem, não se tem acesso irrestrito ao

acontecido no show, mas a um recorte permeado de filtros, convenções e intenções.

Efeitos e recursos utilizados na edição, como movimentos rápidos de câmera,

pixelização, desfoque excessivo, distorção, alta exposição luminosa etc. seriam

considerados inconvenientes se aplicados em outros filmes, porém, em “Don’t think”

contribuem para transmitir as ideias de lisergia, vertigem, emotividade, euforia e

agitação.

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Figura 2: Mosaico com frames-chave da primeira aparição do palhaço na apresentação.

Fonte: Adaptado do DVD “Don’t think”.

Em sua primeira aparição (Figura 2), a imagem clownesca aparece e desaparece

em diferentes pontos da tela para reiterar a frase “Just get yourself high” v, que constitui

a letra da música que a acompanha. A imagem revela somente a cabeça do palhaço, que

parece emergir da escuridão; não há indício de corpo. Conforme denotam as imagens

das reações dos espectadores (Figura 4, nas páginas seguintes), a atenção do público

tende a voltar-se à expressão facial do personagem, grotesca, esquizofrênica e carregada

de ironia.

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Figura 3: Mosaico com frames-chave da segunda aparição do palhaço na

apresentação (1º e 2º momentos).

Fonte: Adaptado do DVD “Don’t think”.

A segunda aparição de palhaços (Figura 3), mais ao final da apresentação,

acontece em dois momentos: primeiramente, a tela principal mostra imagens de crianças

maquiadas entoando suave, rítmica e repetidamente a frase “You’re all my children...”.

Apenas a cabeça das crianças aparece e, conforme as vozes tomam um tom mais agudo,

novos rostos infantis ajudam a compor o coral. Ao contrario dos palhaços adultos, as

crianças não possuem fisionomia grotesca e não parecem olhar diretamente para o

espectador. A transição para o segundo momento é realizada bruscamente, evidenciando

o contraste de tamanho e som presente entre as imagens: de forma repentina, a grande

imagem de um palhaço adulto substitui as pequenas e esparsas projeções na tela. O

personagem, com expressão autoritária, completa com um tom de voz grave a frase

iniciada pelas crianças: “You’re all my children NOW”. As reações registradas do

público presente exibem indivíduos estarrecidos. Alguns se mostram impressionados ou

assustados, a maioria está com o olhar cativado pela imagem, fixo na tela.

A iluminação das faces dos palhaços adultos é de grande importância para a

efetivação do efeito aterrorizante no público. A luz, que vem de baixo e “estoura” no

rosto do personagem, evidencia expressões exageradas, rugas e imperfeições no rosto

dos atores. O fundo permanece negro, não há referência de perspectiva ou ponto de

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fuga, a luz branca que emana da imagem é a única a iluminar o ambiente. A tecnologia

desempenha um papel fundamental neste processo essencialmente emocional. A tela em

alta resolução e o sistema de som permitem uma experiência imersiva e de aproximação

sinestésica, o tamanho físico da imagem e a voz gutural do palhaço fazem lembrar

entidades sobrenaturais, inumanas.

6. Efeitos, fisionomias e expressões

A apresentação do The Chemical Brothers pode ser considerada uma rede

complexa de significados, temporalidades e intencionalidades. As imagens ali

articuladas contribuem para a formação de um ambiente lúdico híbrido,

simultaneamente virtual/conceitual e material. Com ajuda da tecnologia, as festas de

música eletrônica evidenciam seu caráter ritualístico, mágico, mítico, lúdico e

degenerado. Sabe-se que o palhaço que dialoga com os espectadores não é real, é um

personagem ficcional, ainda assim, o modo como a imagem é apresentada faz com que

possua poder efetivo sobre as emoções do público. A interferência emocional respalda

posteriores reflexões nos âmbitos estético, ético e lógico.

[A “realização pela representação”, característica dos jogos] É executada no interior de um espaço circunscrito sob a forma de festa, isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. Em sua intenção é delimitado um universo próprio de valor temporário. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até à próxima época dos rituais sagrados. (HUIZINGA, 1993, p. 17)

Etologicamente, a gestualidade é interpretada como fundamental para a

comunicação social. Nos espaços lúdicos, imitação, mímica e troca temporária de

identidade relacionam-se com possível alteração dos valores e regras convencionados

por um grupo social. Na festa de música eletrônica, diante da imagem tecnológica

imponente, a dança pode ser entendida como uma resposta corporal, fisiológica, quase

automática, aos estímulos multissensoriais; é impossível manter-se indiferente durante

um ritual festivo conduzido por imagens. De fato, devido ao volume altíssimo da

música e dos efeitos sonoros, não raro torna-se inviável comunicar-se por meio da fala.

Devido a estas circunstâncias ambientais, temporariamente, gestualidade e leitura labial

são utilizadas para a comunicação interpessoal.

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Durante o show do The Chemical Brothers, como em outras festas e

apresentações e diferentemente, por exemplo, da linguagem cinematográfica, não se

exige do interlocutor uma postura passiva, de concentração e acompanhamento de

narrativas dispostas de forma linear. O ambiente festivo tende à diversidade, à recepção

fragmentada e subjetiva dos conteúdos. Enquanto ouve a música e observa as imagens,

o ocupante do espaço é livre para circular, beber, fechar os olhos, abraçar, agarrar,

pular, beijar etc. A atração sexual torna-se bastante evidente nos contextos em questão.

Ropartz (1983) relaciona o prazer proporcionado pelo beijo à amamentação, à

alimentação, à cumplicidade e ao afeto. Nos símios, domínio territorial, identidade,

espacialidade e hierarquia são indicados pelo órgão sexual. A promiscuidade pode

representar o anseio pela afirmação identitária. O simulacro lúdico, musical e imagético,

ode à liberdade, tende a catalisar tais impulsos fisiológicos, tornando excitação e flerte

constituintes importantes do ritual tecnológico celebrativo.

Em momentos distintos, dois atores interpretam os palhaços adultos; presença e

influência do personagem não dependem do indivíduo que o incorpora, mas da

utilização da maquiagem-máscara. O nome do palhaço não é divulgado. O personagem

dispensa apresentação, invade repentina e autoritariamente o campo visual para dar

ordens ao espectador. O tempo em que o palhaço se torna visível se limita ao da

pronúncia de frases sintéticas e repetitivas, impossibilitando abordagens analíticas

densas in loco. A imagem misteriosa e fugaz subverte controle e expectativas do olhar,

que acaba confuso. Resta ao indivíduo, desorientado e impotente, encarar o telão em

busca de informação, numa espécie de contemplação, como mostram as filmagens

(Figura 4). A manifestação do “palhaço mau” causa estarrecimento na audiência porque,

ao contrário da performance do palhaço de picadeiro, não possui intenção humorística

ou de descontração. Devido às proporções físicas da imagem e à expressividade intensa

do personagem, a comunicação sofre uma espécie de inversão: a figura grotesca toma o

controle da apresentação e, em posição de visível superioridade, manipula e zomba do

público.

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Figura 4: Expressões do público em relação às imagens apresentadas.

Fonte: Adaptado do DVD “Don’t think”.

Na primeira aparição (Figura 4, #1.), próxima ao início do show, o palhaço,

aparentemente malicioso, irônico e nada confiável, insiste ao espectador que imerja na

realidade das imagens projetadas. A frase “Just get yourself high”, repetida

exaustivamente, tende a instigar e provocar o interlocutor. Perto do final do espetáculo,

o aspecto pueril das imagens (Figura 4, #2.1.), de crianças inocentes e ingênuas,

conduzem o espectador a um momento de cumplicidade e envolvimento. O palhaço

adulto, imponente e autoritário, surge pela segunda vez (Figura 4, #2.2.) para ressaltar

que a audiência está sob seu controle. “You’re all my children now” esclarece que, uma

vez entregue às projeções e ao espírito crepuscular e anárquico, não há mais volta. A

palavra “children” possui forte conotação emocional, ritualística e religiosa; caso

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tivessem sido usadas expressões como “slaves” ou “followers” a sentença não possuiria

o mesmo impacto. Não há escolha, agora todos são filhos de uma entidade

exacerbadamente ácida, inconstante, expressiva, emocional, grotesca e humana.

A utilização da figura do palhaço em um espetáculo ritualístico, celebrativo,

libertário e tecnológico respalda reflexões acerca da condição humana na

contemporaneidade. As bases emocionais da racionalidade evidenciam o caráter

ambivalente dos processos que envolvem apreensão e significação do mundo real.

Matrizes biológicas, antropológicas e psicológicas contribuem para que espécie,

indivíduo e sociedade constituam um sistema complexo, generativo e adaptativo de

negociação com a realidade, que configura a própria existência. Em geral, a indústria

cultural concebe, ressignifica e apropria-se de ideias, personagens e entidades cujo

estudo é contributivo para a compreensão das relações entre convívio social e

pensamento mágico. Uma análise comparativa complexa entre o palhaço da

apresentação em questão e outras figuras circenses grotescas pode identificar novos

padrões comunicacionais, fundamentos da humanização, presentes, sob as mais variadas

formas, em diferentes culturas e sociedades.

Referências

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições

Cotovia, 1990.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:

Perspectiva, 1993.

MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1975.

ROPARTZ, Philippe. A etologia humana. In: AKOUN, André. Dicionário de

antropologia: do homem primitivo às sociedades atuais. Lisboa: Verbo, 1983.

ZUCKER, Wolfgang M. The image of the clown. In: The Journal of Aesthetics and Art

Criticism. V. 12, N. 3, 1954, p.310-317.

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i “The clown, in spite of his monstrosity, is still human enough to serve as an object of comparison; but the gods and the mythological masters also have human features. Man feels painfully his separation from the unattainable Heights of those above him, but his pain is alleviated by the discovery that there still exists somebody as far removed from man as man is from God. The merry laughter about the clown is not different from the laughter of the children in front a monkey cage.” (ZÜCKER, 1954, p.314)

ii Os dados sobre os envolvidos na produção do show podem ser encontrados na página oficial do The Chemical Brothers: <http://www.thechemicalbrothers.com>. Acesso em: 31 jul. 2012.

iii Outros trabalhos de Smith podem ser encontrados em <http://www.flatnosegeorge.com/>. Acesso em: 31 jul 2012.

iv Outros trabalhos de Lyall podem ser visualizados em <http://marcuslyall.co.uk/>. Acesso em: 31 jul 2012.

v Em tradução livre do inglês, “Apenas fique alto”. A gíria “ficar alto” se refere à alteração de consciência, que pode acontecer por meio do uso de substâncias alucinógenas e/ou da vertigem provocada pelas luzes estroboscópicas e lasers de alta potência.