imagens retóricas em o ensaiador de galileu

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Tópicos de Literatura e Cultura Italianas II: do Barroco ao Séc. XIX 1º semestre/2015 Profª Drª Doris Cavallari Aluno: Nelson Alexandre Brolese Nº USP 1360279 As Imagens Retóricas no Discurso Científico de O Ensaiador , de Galileu Galilei. 1. As imagens retóricas do Novo Mundo e o convite ao desconhecido. Nosso objetivo nesse trabalho é comentar a respeito das imagens e construções metafóricas utilizadas com o intuito de tornar mais claro o discurso científico e sua alusão aos fenômenos concernentes à “filosofia natural”, que é como a ciência era conhecida na época do chamado Iluminismo. Embora o nosso foco seja sobre a obra O Ensaiador , texto escrito em gênero epistolar por Galileu Galilei em 1623 e no qual rebate acusações feitas a sua teoria e publicadas pelo padre jesuíta Oratio Grassi que escreve em 1619, Libra astronomica ac philosophica, sob o pseudônimo de Lotario Sarsi, gostatríamos de iniciar trazendo algumas imagens colhidas do trabalho de Leonel Ribeiro dos Santos, da Universidade de Lisboa, intitulado Os Descobrimentos e a Retórica da Razão Moderna, de onde podemos tirar alguns exemplos do imaginário ciêntifico do Renascimento, produto do impacto social e cultural que representou as Navegações e a descoberta do assim chamado “Novo Mundo”. Nosso primeiro fragmento trata-se de um elogio publicado na Antuérpia em 1531 pelo humanista valenciano Juan Luis Vives numa carta endereçada ao rei Don João III de Portugal: “Os teus progenitores tiveram a magnífica ousadia de sair de Portugal e aventurar-se a mares novos, a terras novas, a estrelas novas nunca antes contempladas.” 1 1Juan Luis Vives, De causis corruptarun artium [De disciplinis, cap. 1-7], ed. Bilingue latim-alemão, de Emilio Hidalgo-Serna, W. Fink, München, 1990, pp. 110-112.

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Trabalho no qual estão elencadas algumas imagens retórica usadas por Galileu Galilei em seu texto "O Ensaiador"

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Page 1: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Tópicos de Literatura e Cultura Italianas II: do Barroco ao Séc. XIX

1º semestre/2015

Profª Drª Doris Cavallari

Aluno: Nelson Alexandre Brolese

Nº USP 1360279

As Imagens Retóricas no Discurso Científico

de O Ensaiador, de Galileu Galilei.

1. As imagens retóricas do Novo Mundo e o convite ao desconhecido.

Nosso objetivo nesse trabalho é comentar a respeito das imagens e construções metafóricas

utilizadas com o intuito de tornar mais claro o discurso científico e sua alusão aos fenômenos

concernentes à “filosofia natural”, que é como a ciência era conhecida na época do chamado

Iluminismo.

Embora o nosso foco seja sobre a obra O Ensaiador, texto escrito em gênero epistolar por

Galileu Galilei em 1623 e no qual rebate acusações feitas a sua teoria e publicadas pelo padre

jesuíta Oratio Grassi que escreve em 1619, Libra astronomica ac philosophica, sob o pseudônimo

de Lotario Sarsi, gostatríamos de iniciar trazendo algumas imagens colhidas do trabalho de Leonel

Ribeiro dos Santos, da Universidade de Lisboa, intitulado Os Descobrimentos e a Retórica da

Razão Moderna, de onde podemos tirar alguns exemplos do imaginário ciêntifico do Renascimento,

produto do impacto social e cultural que representou as Navegações e a descoberta do assim

chamado “Novo Mundo”.

Nosso primeiro fragmento trata-se de um elogio publicado na Antuérpia em 1531 pelo

humanista valenciano Juan Luis Vives numa carta endereçada ao rei Don João III de Portugal:

“Os teus progenitores tiveram a magnífica ousadia de sair de Portugal e aventurar-se a mares novos,

a terras novas, a estrelas novas nunca antes contempladas.”1

1Juan Luis Vives, De causis corruptarun artium [De disciplinis, cap. 1-7], ed. Bilingue latim-alemão, de Emilio Hidalgo-Serna, W. Fink, München, 1990, pp. 110-112.

Page 2: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

Dessa forma, se destaca o empreendimento das Descobertas como um grande passo rumo ao

desconhecido feito de forma não temerária, mas “científica”, ampliando os horizontes do

conhecimento humano e filosófico, como podemos verificar nesse exerto da obra de Giordano

Bruno em La Cena de le Ceneri:

“Se a' nostri tempi vien magnificato il Colombo... che de' farsi di questo, che há ritrovato il modo di

montare al cielo, discorrere la circonferenza de le stelle, lasciarsi a le spalli la convessa superficie del

firmamento?... cossì... co' la chiave de solertissima inquisizione aperti que' chiostri de la verità, che

da noi aprir se posseano, nudata la ricoperta e velata natura, há donati gli occhi a le talpe, illuminati i

ciechi che non possean fissar gli occhi e mirar l'imagin sua in tanti specchi che da ogni lato gli

s'opponero...” 2

Assim, nos explica Santos:

“Para a consciência moderna, Colombo e Bruno estão de facto associados na obra de libertação dos

limites espaciais, na ampliação ilimitada dos horizontes capazes de conter todo o potencial do desejo

e da liberdade que o homem em si reconhece. O que Colombo começou no plano geográfico

completa-o Bruno no plano cosmológico.”3

Santos cita ainda o filósofo inglês Francis Bacon que exalta as navegações e vê nelas o

espírito necessário para se ampliar as fronteiras da razão e do espírito científico:

“Não devem ser tidas em pouca conta as múltiplas coisas que as navegações e peregrinações

longínquas (realizadas nos nossos séculos) revelaram existir na natureza e que podem projectar nova

luz na filosofia. E seria vergonhoso para os homens se a travessia do globo material nos nossos

tempos tivesse aberto e esclarecido imensamente acerca das terras, dos mares, dos astros e no entanto

os limites do globo intelectual se mantivessem circunscritos aos inventos dos antigos.”4

Outra imagem bastante emblemática lembrada por Santos e extráda da obra de Bacon mostra

a analogia entre a navegação orientada pela inovação da agulha náutica (bússola), “que permite

navegar no mar alto e descobrir novos continentes” e que “está para o novo método científico

proposto para assegurar o progresso das ciências, o qual, para isso, deve não apenas, como o

2Giordano Bruno, La Cena de le Ceneri, ed. G. Gentile, Laterza, Bari, 1925, pp. 24ss. Apud SANTOS Op. Cit.

3 SANTOS, Leonel Ribeiro. Os Descobrimentos e a Retórica da Razão Moderna in Philosophica 15, Lisboa,

2000, pp. 183-184.

4 Novum Organum I, 84, The Works of F. Bacon, ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, vol. I, p. 191. apud

SANTOS Op. Cit.

Page 3: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

silogismo aristotélico, provar o que já se sabe, mas permitir a descoberta e invensão de novos

conhecimentos.” (SANTOS, p. 185)

O ensaísta português propõe, assim, uma “fenomenologia da descoberta científica” e uma

“fenomenologia da invensão”, uma vez que “A imaginação esclarecida e a conjectura ousada

comandam a invensão e a descoberta, desde que guiadas pela 'luz da natureza', que Bacon contrapõe

ao saber dos Antigos: não se trata de apenas saber coisas novas mas de sabê-las de outro modo. Esta

mudança qualitativa na natureza do conhecimento é dita também com o exemplo da descoberta do

Novo Mundo.” (SANTOS, p. 188)

Para completar o nosso raciocínio, citemos novamente Bacon apud SANTOS:

“Tão pouco parece digno de preocupação dos homens o saber-se se o Novo Mundo é aquela ilha

Atlântida, conhecida dos Antigos, ou se foi descoberto agora pelo primeira vez. A descoberta das coisas deve

ser feita com recurso à luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade.” 5

Acreditamos ter ilustrado minimamente a atmosfera reinante no Séc. XVI de ampliação dos

domínios do homem, proporcionada pelo advento do descobrimento do Novo Mundo e sua

influência no pensamento e na consequente demanda por um método científico que abarcasse, ao

mesmo tempo, o desconhecido e que pudesse objetivá-lo e justificá-lo “à luz da natureza”, ou seja,

em conformidade com os fenômenos físicos não mais intermediados por pré-concepções e deduções

de caráter filosófico especulativo, mas sim uma sistematização que não dependa da mediação

apenas dos sentidos, mas que dê conta de fenômenos distantes e ocultos na natureza, necessitanto de

uma nova racionalidade para sejam verificadas e constatadas. Não se trata de ignorar as conjecturas,

pelo contrário: é dar voz às suspeitas e às especulações, mas sob a luz de uma racionalidade que, no

caso, é proposta por Galileu Galilei atravéz de seu método indutivo-matemático, seja na

investigação dos corpos celestes, seja para explicar fenômenos que sempre induziram uma

apreensão equivocada pelos sentidos, que os apreciava de forma distorcida, como é o caso da

problematização da queda dos corpos, cuja realidade física é oposta àquela preconizada por

Aristóteles. Dessa forma, surge a necessidade de um estudo experimental e sistemático dos

fenômenos, uma vez que as antigas concepções sobre a natureza e a realidade física são

paulatinamente desmistificadas pelas evidências e torna-se assim objeto de conhecimento científico,

engendrando novas formas de abordagem e apreensão. Essa nova abordagem dos problemas físicos

leva necessariamente a implicações filosóficas e explicitam conflitos profundos na ordem espiritual,

social e econômica, uma vez que o advento das Descobertas Marítimas, principalmente, e a

5 Novum Organum I.122.

Page 4: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

sistematização do fazer científico levam à constatação de evidências que tornaram válidas novas

concepções do mundo físico e do universo – contrárias às concepções teológicas obtidas

dogmaticamente e por meio de operações silogísticas – passam a ser patentes.

2. Galilei e as imagens retóricas de O Ensaiador

Daremos agora atenção à sofisticação literária e à clareza de estilo empregadas por Galilei

na escolha de suas imagens retóricas, cuja analogia das metáforas remete muitas vezes ao seu

método ciêntico, quando, por exemplo, diz a respeito das opiniões de Sarsi que “... experimentarei

todas elas; anotarei e numerarei todas aquelas experiências...” (alusão ao método matemático-

indutivo). Ainda nesse trecho, Galileu se utiliza da imagem da balança de precisão para invocar a

sua correção quanto ao equívoco de Sarsi, que atribuiu à constelação de Libra a aparição dos

cometas:

“Porém, continua minha resolução de falar com V. E. Ilustríssima e de escrever-lhe, qualquer que

seja a forma dessa minha resposta, a qual eu quis intitular O Ensaiador, usando a mesma metáfora

empregada por Sarsi. Porém, como me pareceu que, examinando as opiniões do Sr. Guiducci, ele

tenha usado uma balança grande demais, eu quis utilizar-me de uma balança de experimentadores,

tão exata que pesa menos de um sescentésimo de grão. Como ela, usando todo o cuidado possível,

não deixando nenhuma opinião de lado apresentada por ele, experimentarei todas elas; anotarei e

numerarei todas aquelas experiências de tal modo que, se por acaso, forem vistas por Sarsi e queira

ele responder, possa fazê-lo com facilidade, sem deixar para trás coisa alguma.”6

Num outro fragmento, na qual podemos interpretar alguma alusão às ciências naturais e aos

procedimentos taxionômicos próprios da farmacopéia e da medicina, Galileu ataca com ironia

ferina seu antagonista, lançando mão de imagens e termos cuja força expressiva e coerência

semântica impressionam pela precisão e continência de sentido, uma vez que expõe uma falha

conceitual do texto de Sarsi corringindo-o quanto à localização sideral onde foram localizados os

três cometas no ano de 1518, isto é, a constelação de Escorpião, e, utilizando-se desse animal em

múltiplas imagens, irá invocar o poeta Dante Alighieri, legitimando, dessa forma, seu estilo

literário:

“Então teria sido muito mais justo e mais verdadeiro, em relação à sua própria publicação, tê-la

intitulado Astronômico e Filosófico Escorpião, constelação chamada pelo nosso soberano poeta

Dante: figura do frio animal 'que chicoteia as pessoas com a cauda'. Verdadeiramente não lhe faltam

pontadas dirigidas contra mim muito mais graves que aquelas dos escorpiões, pois estes, como

6 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) Pág. 12

Page 5: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

amigos do homem, não ferem a não ser quando atacados e provocados, mas sarsi me morde apesar

de eu nunca, nem em pensamento, tê-lo molestado. Sorte minha que conheço o antídoto e o remédio

imediato para tais pontadas! Despedaçarei então e esfregarei o mesmo escorpião sobre as feridas

onde o veneno absorvido novamente pelo próprio cadáver me deixe livre e são”7

Como podemos verificar, Galileu demonstra pleno domínio do discurso e das imagens,

constituindo sua homogeneidade em estrita coerência ao esmiuçar o texto de Sarsi e utilizá-lo como

o próprio instrumento de sua análise crítica.

Passemos agora à citação da imagem que consideramos a mais emblemática de O Ensaiador,

seja pelo seu poder retórico, ao aludir o livro, a leitura e a decifração da natureza, seja pela

pertinência junto à principal obra de Galileu até então, seu Nunzio Sidereo. Nesse trecho, segundo

nosso entendimento, o ciêntista pisano promove a oposição entre a cultura livresca e aristotélica dos

doutos e teólogos, e a nova concepção de investigação científica, na qual Galileu estabelece as

bases para o pensamento e o método científico Tais imagens, que remetem ao dogmatismo e à

inadequação do silogismo aristotélico para uma abordagem precisa dos fenômenos, contrapõem-se

fortemente à “filosofia natural” praticada tanto por Galileu Galilei quanto por seu contemporâneo

Francis Bacon, que se baseia na investigação e na experiência sistematizada, alheia aos dogmas e

antecipações dedutivas calcadas em premissas não verificadas, as quais se norteiam na autonomia e

na libertdade de pensamento, exaltando o valor da pesquisa e da curiosidade como motores do

verdadeiro conhecimento, e desprezando o qualquer descrição da natureza que possa ser fruto da

fantasia humana. Destaca também a importância da quantificação e do rigor matemático como

sendo a única forma de apreender os fenômenos e sistematizá-los:

“Parmi, oltre a ciò, di scolgere nel Sarsi ferma credenza, che nel filosofare sia necessario appoggiarsi

all'opinione di qualche celebre autore, sì che la mente nostra, quando non si maritasse col discorso

d'un altro, ne dovesse in tutto rimanere sterile ed infeconda, e forse stima che la filosofia sia un libro

e una fantasia d'un uomo, come l'Iliade e l'Orlando furioso, libri ne' quali la meno importante cosa è

che quello che vi è scritto sia vero. Signor Sarsi, la cosa non istà così. La filosofia è scritta in questo

grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli ochi (io dico l'universo), ma non si

può intendere se prima non s'impara a intender la língua, e conoscer i caratteri, ne' quali è scritto.

Egli è scritto in língua matematica, e i caratteri son triangoli, cerchi, ed altri figuri geometriche,

senza i quali mezi è impossibile a intenderne umanamente parola; senza questi è un aggirarsi

vanamente per un oscuro laberinto”8

7 GALILEI, Op. Cit. pp. 12-138 GALILEI, Galileo. Il Saggiatore. In Opere, Edizione nazionale direta da A. Favero, Barbera, Firenze, 1890-1909,

ristampata soto gli auspici del Ministero della Pubblica Istruzione, Barbera, Firenze, 1968.

Page 6: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

No fragmento que se segue, encontramos uma exposição didática do método científico de

Galileu e novamente a contraposição entre o silogismo aristotélico e à sua nova forma de abordar o

estudo da natureza:

“Assim que, para relatar aquilo que eu deduzi, ocupando-me da ciência que através de

demonstrações e de discurso humano se pode conseguir dos homens, eu acredito firmemente que

quanto mais ela participar da perfeição tanto menor número de conclusões prometerá ensinar, tanto

menor número delas demonstrará e, consequentemente, tanto menos agradará, e tanto menor será o

número de seus seguidores. Pelo contrário, porém, a magnificência de títulos, a grandiosidade e a

abundância de promessas, atraindo a natural curiosidade dos homens, mantendo-os entretidos

perpetuamente com mentiras e quimeras, sem nunca proporcionar-les o prazer da profundidade de

uma demonstração, onde o gosto uma vez apurado saiba reconhecer a falta de sal nos alimentos

costumeiros, conseguirão dessa forma manter ocupado grande número deles.”9

Aqui novamente encontramos a descrição do método científico e a consideração acerca do

fato de que este está calcado na experimentação sistemática e na observação, sendo a busca e

constatação da verdade ciêntifica um empreendimento trabalhoso e que exige uma dedicação nem

sempre celebrada.

Já no próximo trecho citado, temos novamente uma construção metafórica rica e muito

coesa, além de constituir uma verdadeira aula de instrumentação musical. Atentemos, também, para

o universo semântico invocado por Galileu, ao se referir ao “intervalo” entre as lentes, criando a

correspondência perfeita entre os instrumentos musicais e seu instrumento óptico. Temos assim,

neste exerto, abordados dois aspéctos: primeiro, a defesa de seu aparato como meio de observação e

compreensão dos fenômenos naturais; segundo, seu conhecimento acerca das relações de

semelhanças físicas entre a óptica e a acústica, dando solidez à sua metáfora:

“Eu pergunto a Sarsi por que os tubos do órgão não tocam todos em uníssono, mas alguns produzem

um tom mais grave e outros menos. Afirmará talvez que isso se verifica porque eles são de materiais

diversos? Certo que não, sendo todos de chumbo; mas tocam notas diversas porque são de grandezas

diversas, e, naquilo que diz respeito ao material, este não tem influência alguma sobre o tipo de som

pois os tubos construídos alguns de madeira, outros de estanho, outros de chumbo, outros de prata,

outros de papel tocarão todos em uníssono, o que se verificará quando todos os comprimentos e

larguras deles sejam iguais; e, pelo contrário, com o mesmo material em número, isto é, com as

mesmas quatro libras de chumbo, colocando-o em maior ou menor recipiente, formarei diversas

9 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) Pág. 26

Page 7: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

notas. Assim, no que diz respeito a produção de som, diversos são os instrumentos que possuem

grandeza diversa, e não aqueles que possuem material diverso. Agora, se desmanchando um tubo

formar-se com o mesmo chumbo um outro tubo mais comprido, e consequentemente de tonalidade

mais grave, hesitará Sarsi em afirmar que este seja um tubo diverso do primeiro? Quero acreditar que

não. Porém, se outros encontrassem um jeito de formar o segundo cano mais comprido sem

desmanchar o primeiro, não seria o mesmo? Certamente que sim. Porém, o jeito será fazê-lo de dois

pedaços assim que um entre no outro, porque assim se poderá compridar e diminuir, em suma,

segundo o nosso arbítrio fazer devir diferentes canos, procurando formar diversas notas; e esta é a

natureza do trombone. As cordas da harpa, mesmo sendo do mesmo material, dão sons diversos

porque são todas de comprimentos diferentes; porém aquilo que produzem muitas delas o produzem

uma única corda do alaúde, enquanto que com o movimento dos dedos se produz o som ora de uma

ora de outra parte, que é o mesmo que compridar e diminuir o instrumento, por aquilo que diz

respeito à produção do som, com cordas diferentes. A mesma coisa pode-se afirmar do tubo da

garganta, o qual, variando em comprimento e em largura, aparelhando-se a formar várias

vozes, pode-se sem erro afirmar que se torna tubos diversos. Assim e não de outra forma (porque o

maior e o menor aumentos não consistem na matéria do telescópio, mas na figura, pois o mais

comprido prarece maior), quando, conservando a mesma matéria, mudar-se-á o intervalo entre vidro

e vidro, constituir-se-ão instrumentos diversos.”10

Para finalizar nosso breve trabalho acerca das imagens retóricas utilizadas por Galileu,

pedimos a contemporização do leitor para a apreciação de um fragmento um pouco longo, mas que

é elucidativo no que diz respeito à própria consciência de Galileu frente à miríade de causas que faz

com que um fenômeno se manifeste. Repare o leitor na progressão didática exemplar que realiza

nosso Mestre pisano engendrando, como elos de uma corrente na qual mostra que a percepção

humana é falha na apreensão dos fenômenos e, por isso mesmo, se faz necessária uma metodologia

da experimentação sistemática, e, mesmo assim, ainda não garante que abarque totalmente a

manifestação física:

“Depois de observado por muitas experiências, parece-me ser esta a condição humana em relação às

coisas intelectuais: quanto menos entende-se e sabe-se, com tanta mais força quer-se discutir; e, pelo

contrário, mais coisas são conecidas menor é a tendência de discutir resolutamente sobre qualquer

novitade. Nasceu em lugar muito solitário um homem dotado por natureza de grande inteligência e

de extraordinária curiosidade. Criando por prazer grande diversidade de aves, gostava enormemente

do seu canto, e com muita admiração observava de que modo, por meio do próprio ar que

respiravam, conseguiam formar ao seu arbítrio cantos diferentes e todos suavíssimos. Acontece que

10 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) pp. 51-52

Page 8: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

uma noite perto de casa escutou um som delicado e, nem podendo imaginar que fosse outra coisa a

não ser uma pequena ave, foi buscá-la. Chegando à estrada encontrou um pequeno pastor que,

assoprando num pedaço de madeira furada e movimentando os dedos sobre a madeira, uma vez

fechando e uma vez abrindo determinados buracos, conseguia produzir aquelas vozes diferentes,

semelhantes às de um pássaro, mas de forma bem diversa. Admirado e movido pela sua curiosidade

natural, deu de presente um bezerro ao pastor para obter aquela flauta. De regresso a sua casa e

percebendo que se não houvesse encontrado por acaso aquele pastor nunca haveria aprendido que

existiam na natureza duas formas diversas de criar vozes e cantos suaves, quis sair de casa

procurando encontrar outras aventuras. Aconteceu que no dia seguinte, passando perto de uma

pequena choça, escutou ressoar dentro dela uma voz semelhante. Para ter certeza se era uma flauta

ou um pássaro, entrou e encontrou um menino que estava serrando, com um pequeno arco segurado

na mão direita, alguns nervos estendidos sobre um lenho côncavo, enquanto sustentava com a mão

esquerda o instrumento com o qual, movimentando os dedos e sem sopro algum, extraía dele vozes

diversas e suaves. Qual foi seu espanto pode ser julgado facilmente por aquele que possuir a mesma

inteligência e a mesma curiosidade dele que, vendo aumentar, de duas novas formas, a maneira de

produzir uma voz e um canto tão inusitados, começou a acreditar poderem existir ainda outros na

natureza. Mas qual foi sua surpresa quando, entrando em um determinado templo, começou a olhar

atrás da porta para ver quem estava tocando e percebeu que o som havia saído dos ferros da porta ao

abrí-la? Em outra ocasião, empolgado pela curiosidade, entrou em um boteco e, acreditando

encontrar outra vez alguém que com o arco tocasse as cordas de um violino, viu uma pessoa que,

esfregando o dedo sobre a orla de um copo, conseguia produzir um som suavíssimo. Mas logo que

observou que as abelhas, os pernilongos e as moscas, com o rapidíssimo bater das asas, e não como

suas primeiras aves que respirando formavam vozes ininterruptas, produziam um som perpétuo,

tanto aumentou sua admiração que diminuiu sua confiança sobre o conhecimento da origem do som.

Nem todas as experiências já observadas haveriam sido suficiente para faze-lhe entender ou acreditar

que os grilos, não voando, conseguiam, não por meio do sopro mas com o movimento das asas,

produzir sons tão doces e sonoros. Mas quando acreditou não poderem existir outras formas

possíveis de produzir vozes, depois de haver observado, além das maneiras já relatadas, ainda tantos

órgãos, trompas, flautas e instrumentos de cordas de todos os tipos, até chegar a aquela pequena

lâmina de ferro que, suspensa entre os dentes, usava de forma muito esquisita a cavidade bucal para

dar corpo à amplificação do sopro permitindo a passagem do som, quando, repito, na hora que

acreditava haver conhecido tudo, encontrou-se ainda mais no escuro e na ignorância, quando,

havendo encontrado uma cigarra que nem fechando-lhe a boca e nem fechando-lhe as asas conseguia

diminuir seu altíssimo estridor, não percebeu movimento algum de escamas nem de outras partes.

Finalmente, levantando-lhe a caixa dos pulmões e observando embaixo dela algumas cartilagens

duras mas sutis, e acreditando que o som fosse originado do seus movimento, resolveu quebrá-las

para fazê-la parar, mas tudo foi em vão. Então, enfincando uma agulha mais funda no corpo da

cigarra, passando-a, tirou-lhe junto com a voz a vida e assim não pode mais pesquisar se o canto era

Page 9: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

originado verdadeiramente por aquelas menbranas. Tornou-se então descrente sobre seus possíveis

conhecimentos em relação aos sons que toda vez que alguém lhe perguntava sua opinião sobre a

origem dos sons, generosamente respondia não conhecer causa alguma, mas que estava resolvido a

acreditar que pudessem existir cem outras maneiras, ainda desconhecidas e impensáveis.

Eu poderia dar muitos exemplos da variedade da natureza em produzir seus efeitos de

maneira inimaginável para nós, se o sentido e a experiência não nos explicitassem sem, muitas vezes,

suprir nossa incapacidade. Assim, se eu não souber, com exatidão, determinar a produção do cometa,

deverão ser aceitas minhas desculpas, especialmente porque nunca afirmei poder dar explicação

sabendo que ela poderia verificar-se de forma muito alheia a nossa imaginação. A dificuldade de

entender como se forma o canto da cigarra, enquanto ela canta na mão, desculpa de sopra não saber

como pode formar-se um cometa tão longe de nós. Para frisar, então, a primeira intenção do Sr.

Mário e minha, isto é, promover aquelas dúvidas que pareçam abalar as opiniões manifestadas até

agora e propor alguma nova teoria para examinar se existe alguma coisa que possa esclarecer e abrir

o caminho rumo à verdade, continuarei a raciocinar sobre as teorias manifestadas por Sarsi, que

considerou improváveis nossos argumentos.”11

Nesse ponto, e para terminarmos nossa exposição, faremos uma interpretação desse trecho

considerando uma salto no tempo e no espaço ao considerar que o fragmento acima pode ilustrar

uma acepção da ciência moderna. Acreditamos ser coerente tomarmos tal liberdade, haja vista que o

método de Galileu Galilei fundou as bases do pensamento científico e, dessa forma, sua percepção

contém o germem de todo o desenvolvimento científico posterior.

Trata-se de considerações sobre a natureza dos fenômenos que encrontramos na obra do

Professor Silvio Seno Chibeni, do Departamento de Filosofia da Unicamp, Universidade Estadual

de Campinas, intitulado Algumas observações sobre o “Método Científico”. Em seu trabalho,

encontramos a distinção entre as teorias fenomenológicas e as teorias explicativas ou construtivas.

Conforme nos ensina o filósofo da ciência e professor, “as propriedades e relações

empiricamente acessíveis entre os fenômenos são ditas fenomenológicas (fenômeno.: aquilo que aparece

aos sentidos). Teorias desse tipo têm como função descrever, por suas leis, as correlações entre os

fenômenos. Isso é o suficiente para permitir a previsão da ocorrência de um fenômeno a partir da

ocorrência de outros.”12 Ainda com relação à distinção feita pelo filósofo, temos que: “Porém a

capacidade de predição de fenômenos é apenas o primeiro dos dois grandes objetivos da ciência, no

sentido atual do termo. O outro objetivo é o de fornecer explicações para os fenômenos, quer

individualmente, quer já concatenados por leis de tipo fenomenológico. Numa visão tradicional (adotada

11 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) pp. 61-63.

12 CHIBENI, Silvio Seno. Algumas observações sobre o “método científico”Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp, Brasil. Web site: www.unicamp.br/~chibeni.

Page 10: Imagens Retóricas Em O Ensaiador de Galileu

daqui em diante), esse objetivo deve ser buscado apontando-se as causas dos fenômenos. Teorias que se

proponham a especificar tais causas, a partir das quais se compreenda as razões da ocorrência dos

fenômenos, são ditas teorias explicativas, ou construtivas. Esta última denominação foi sugerida por

Einstein, a partir da observação de que as teorias deste segundo tipo envolvem proposições referentes a

entidades e processos inacessíveis à observação direta, que são postulados com o objetivo de explicar os

fenômenos por sua .construção. a partir dessa suposta estrutura fundamental subjacente (Einstein 1954,

p. 228).”13

Esperamos, assim, ter realizado satisfatoriamente nossa exposição acerca da linguagem

científica, cujas bases foram lançadas há mais de cinco séculos pela intuição de Galileu Galilei e

sua percepção acerca dos fenômenos e sua causas, transcendendo o tempo e o espaço.

Bibliografia

CHIBENI, Silvio Seno. Algumas observações sobre o “método científico”Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp, Brasil. Web site: www.unicamp.br/~chibeni.

GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987.

GALILEI, Galileo. Il Saggiatore. In Opere, Edizione nazionale direta da A. Favero, Barbera,

Firenze, 1890-1909, ristampata soto gli auspici del Ministero della Pubblica Istruzione, Barbera,

Firenze, 1968.

SANTOS, Leonel Ribeiro. Os Descobrimentos e a Retórica da Razão Moderna in Philosophica 15,

Lisboa, 2000.

13 CHIBENI, Op. Cit.