imagens retóricas em o ensaiador de galileu
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Trabalho no qual estão elencadas algumas imagens retórica usadas por Galileu Galilei em seu texto "O Ensaiador"TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Tópicos de Literatura e Cultura Italianas II: do Barroco ao Séc. XIX
1º semestre/2015
Profª Drª Doris Cavallari
Aluno: Nelson Alexandre Brolese
Nº USP 1360279
As Imagens Retóricas no Discurso Científico
de O Ensaiador, de Galileu Galilei.
1. As imagens retóricas do Novo Mundo e o convite ao desconhecido.
Nosso objetivo nesse trabalho é comentar a respeito das imagens e construções metafóricas
utilizadas com o intuito de tornar mais claro o discurso científico e sua alusão aos fenômenos
concernentes à “filosofia natural”, que é como a ciência era conhecida na época do chamado
Iluminismo.
Embora o nosso foco seja sobre a obra O Ensaiador, texto escrito em gênero epistolar por
Galileu Galilei em 1623 e no qual rebate acusações feitas a sua teoria e publicadas pelo padre
jesuíta Oratio Grassi que escreve em 1619, Libra astronomica ac philosophica, sob o pseudônimo
de Lotario Sarsi, gostatríamos de iniciar trazendo algumas imagens colhidas do trabalho de Leonel
Ribeiro dos Santos, da Universidade de Lisboa, intitulado Os Descobrimentos e a Retórica da
Razão Moderna, de onde podemos tirar alguns exemplos do imaginário ciêntifico do Renascimento,
produto do impacto social e cultural que representou as Navegações e a descoberta do assim
chamado “Novo Mundo”.
Nosso primeiro fragmento trata-se de um elogio publicado na Antuérpia em 1531 pelo
humanista valenciano Juan Luis Vives numa carta endereçada ao rei Don João III de Portugal:
“Os teus progenitores tiveram a magnífica ousadia de sair de Portugal e aventurar-se a mares novos,
a terras novas, a estrelas novas nunca antes contempladas.”1
1Juan Luis Vives, De causis corruptarun artium [De disciplinis, cap. 1-7], ed. Bilingue latim-alemão, de Emilio Hidalgo-Serna, W. Fink, München, 1990, pp. 110-112.
Dessa forma, se destaca o empreendimento das Descobertas como um grande passo rumo ao
desconhecido feito de forma não temerária, mas “científica”, ampliando os horizontes do
conhecimento humano e filosófico, como podemos verificar nesse exerto da obra de Giordano
Bruno em La Cena de le Ceneri:
“Se a' nostri tempi vien magnificato il Colombo... che de' farsi di questo, che há ritrovato il modo di
montare al cielo, discorrere la circonferenza de le stelle, lasciarsi a le spalli la convessa superficie del
firmamento?... cossì... co' la chiave de solertissima inquisizione aperti que' chiostri de la verità, che
da noi aprir se posseano, nudata la ricoperta e velata natura, há donati gli occhi a le talpe, illuminati i
ciechi che non possean fissar gli occhi e mirar l'imagin sua in tanti specchi che da ogni lato gli
s'opponero...” 2
Assim, nos explica Santos:
“Para a consciência moderna, Colombo e Bruno estão de facto associados na obra de libertação dos
limites espaciais, na ampliação ilimitada dos horizontes capazes de conter todo o potencial do desejo
e da liberdade que o homem em si reconhece. O que Colombo começou no plano geográfico
completa-o Bruno no plano cosmológico.”3
Santos cita ainda o filósofo inglês Francis Bacon que exalta as navegações e vê nelas o
espírito necessário para se ampliar as fronteiras da razão e do espírito científico:
“Não devem ser tidas em pouca conta as múltiplas coisas que as navegações e peregrinações
longínquas (realizadas nos nossos séculos) revelaram existir na natureza e que podem projectar nova
luz na filosofia. E seria vergonhoso para os homens se a travessia do globo material nos nossos
tempos tivesse aberto e esclarecido imensamente acerca das terras, dos mares, dos astros e no entanto
os limites do globo intelectual se mantivessem circunscritos aos inventos dos antigos.”4
Outra imagem bastante emblemática lembrada por Santos e extráda da obra de Bacon mostra
a analogia entre a navegação orientada pela inovação da agulha náutica (bússola), “que permite
navegar no mar alto e descobrir novos continentes” e que “está para o novo método científico
proposto para assegurar o progresso das ciências, o qual, para isso, deve não apenas, como o
2Giordano Bruno, La Cena de le Ceneri, ed. G. Gentile, Laterza, Bari, 1925, pp. 24ss. Apud SANTOS Op. Cit.
3 SANTOS, Leonel Ribeiro. Os Descobrimentos e a Retórica da Razão Moderna in Philosophica 15, Lisboa,
2000, pp. 183-184.
4 Novum Organum I, 84, The Works of F. Bacon, ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, vol. I, p. 191. apud
SANTOS Op. Cit.
silogismo aristotélico, provar o que já se sabe, mas permitir a descoberta e invensão de novos
conhecimentos.” (SANTOS, p. 185)
O ensaísta português propõe, assim, uma “fenomenologia da descoberta científica” e uma
“fenomenologia da invensão”, uma vez que “A imaginação esclarecida e a conjectura ousada
comandam a invensão e a descoberta, desde que guiadas pela 'luz da natureza', que Bacon contrapõe
ao saber dos Antigos: não se trata de apenas saber coisas novas mas de sabê-las de outro modo. Esta
mudança qualitativa na natureza do conhecimento é dita também com o exemplo da descoberta do
Novo Mundo.” (SANTOS, p. 188)
Para completar o nosso raciocínio, citemos novamente Bacon apud SANTOS:
“Tão pouco parece digno de preocupação dos homens o saber-se se o Novo Mundo é aquela ilha
Atlântida, conhecida dos Antigos, ou se foi descoberto agora pelo primeira vez. A descoberta das coisas deve
ser feita com recurso à luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade.” 5
Acreditamos ter ilustrado minimamente a atmosfera reinante no Séc. XVI de ampliação dos
domínios do homem, proporcionada pelo advento do descobrimento do Novo Mundo e sua
influência no pensamento e na consequente demanda por um método científico que abarcasse, ao
mesmo tempo, o desconhecido e que pudesse objetivá-lo e justificá-lo “à luz da natureza”, ou seja,
em conformidade com os fenômenos físicos não mais intermediados por pré-concepções e deduções
de caráter filosófico especulativo, mas sim uma sistematização que não dependa da mediação
apenas dos sentidos, mas que dê conta de fenômenos distantes e ocultos na natureza, necessitanto de
uma nova racionalidade para sejam verificadas e constatadas. Não se trata de ignorar as conjecturas,
pelo contrário: é dar voz às suspeitas e às especulações, mas sob a luz de uma racionalidade que, no
caso, é proposta por Galileu Galilei atravéz de seu método indutivo-matemático, seja na
investigação dos corpos celestes, seja para explicar fenômenos que sempre induziram uma
apreensão equivocada pelos sentidos, que os apreciava de forma distorcida, como é o caso da
problematização da queda dos corpos, cuja realidade física é oposta àquela preconizada por
Aristóteles. Dessa forma, surge a necessidade de um estudo experimental e sistemático dos
fenômenos, uma vez que as antigas concepções sobre a natureza e a realidade física são
paulatinamente desmistificadas pelas evidências e torna-se assim objeto de conhecimento científico,
engendrando novas formas de abordagem e apreensão. Essa nova abordagem dos problemas físicos
leva necessariamente a implicações filosóficas e explicitam conflitos profundos na ordem espiritual,
social e econômica, uma vez que o advento das Descobertas Marítimas, principalmente, e a
5 Novum Organum I.122.
sistematização do fazer científico levam à constatação de evidências que tornaram válidas novas
concepções do mundo físico e do universo – contrárias às concepções teológicas obtidas
dogmaticamente e por meio de operações silogísticas – passam a ser patentes.
2. Galilei e as imagens retóricas de O Ensaiador
Daremos agora atenção à sofisticação literária e à clareza de estilo empregadas por Galilei
na escolha de suas imagens retóricas, cuja analogia das metáforas remete muitas vezes ao seu
método ciêntico, quando, por exemplo, diz a respeito das opiniões de Sarsi que “... experimentarei
todas elas; anotarei e numerarei todas aquelas experiências...” (alusão ao método matemático-
indutivo). Ainda nesse trecho, Galileu se utiliza da imagem da balança de precisão para invocar a
sua correção quanto ao equívoco de Sarsi, que atribuiu à constelação de Libra a aparição dos
cometas:
“Porém, continua minha resolução de falar com V. E. Ilustríssima e de escrever-lhe, qualquer que
seja a forma dessa minha resposta, a qual eu quis intitular O Ensaiador, usando a mesma metáfora
empregada por Sarsi. Porém, como me pareceu que, examinando as opiniões do Sr. Guiducci, ele
tenha usado uma balança grande demais, eu quis utilizar-me de uma balança de experimentadores,
tão exata que pesa menos de um sescentésimo de grão. Como ela, usando todo o cuidado possível,
não deixando nenhuma opinião de lado apresentada por ele, experimentarei todas elas; anotarei e
numerarei todas aquelas experiências de tal modo que, se por acaso, forem vistas por Sarsi e queira
ele responder, possa fazê-lo com facilidade, sem deixar para trás coisa alguma.”6
Num outro fragmento, na qual podemos interpretar alguma alusão às ciências naturais e aos
procedimentos taxionômicos próprios da farmacopéia e da medicina, Galileu ataca com ironia
ferina seu antagonista, lançando mão de imagens e termos cuja força expressiva e coerência
semântica impressionam pela precisão e continência de sentido, uma vez que expõe uma falha
conceitual do texto de Sarsi corringindo-o quanto à localização sideral onde foram localizados os
três cometas no ano de 1518, isto é, a constelação de Escorpião, e, utilizando-se desse animal em
múltiplas imagens, irá invocar o poeta Dante Alighieri, legitimando, dessa forma, seu estilo
literário:
“Então teria sido muito mais justo e mais verdadeiro, em relação à sua própria publicação, tê-la
intitulado Astronômico e Filosófico Escorpião, constelação chamada pelo nosso soberano poeta
Dante: figura do frio animal 'que chicoteia as pessoas com a cauda'. Verdadeiramente não lhe faltam
pontadas dirigidas contra mim muito mais graves que aquelas dos escorpiões, pois estes, como
6 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) Pág. 12
amigos do homem, não ferem a não ser quando atacados e provocados, mas sarsi me morde apesar
de eu nunca, nem em pensamento, tê-lo molestado. Sorte minha que conheço o antídoto e o remédio
imediato para tais pontadas! Despedaçarei então e esfregarei o mesmo escorpião sobre as feridas
onde o veneno absorvido novamente pelo próprio cadáver me deixe livre e são”7
Como podemos verificar, Galileu demonstra pleno domínio do discurso e das imagens,
constituindo sua homogeneidade em estrita coerência ao esmiuçar o texto de Sarsi e utilizá-lo como
o próprio instrumento de sua análise crítica.
Passemos agora à citação da imagem que consideramos a mais emblemática de O Ensaiador,
seja pelo seu poder retórico, ao aludir o livro, a leitura e a decifração da natureza, seja pela
pertinência junto à principal obra de Galileu até então, seu Nunzio Sidereo. Nesse trecho, segundo
nosso entendimento, o ciêntista pisano promove a oposição entre a cultura livresca e aristotélica dos
doutos e teólogos, e a nova concepção de investigação científica, na qual Galileu estabelece as
bases para o pensamento e o método científico Tais imagens, que remetem ao dogmatismo e à
inadequação do silogismo aristotélico para uma abordagem precisa dos fenômenos, contrapõem-se
fortemente à “filosofia natural” praticada tanto por Galileu Galilei quanto por seu contemporâneo
Francis Bacon, que se baseia na investigação e na experiência sistematizada, alheia aos dogmas e
antecipações dedutivas calcadas em premissas não verificadas, as quais se norteiam na autonomia e
na libertdade de pensamento, exaltando o valor da pesquisa e da curiosidade como motores do
verdadeiro conhecimento, e desprezando o qualquer descrição da natureza que possa ser fruto da
fantasia humana. Destaca também a importância da quantificação e do rigor matemático como
sendo a única forma de apreender os fenômenos e sistematizá-los:
“Parmi, oltre a ciò, di scolgere nel Sarsi ferma credenza, che nel filosofare sia necessario appoggiarsi
all'opinione di qualche celebre autore, sì che la mente nostra, quando non si maritasse col discorso
d'un altro, ne dovesse in tutto rimanere sterile ed infeconda, e forse stima che la filosofia sia un libro
e una fantasia d'un uomo, come l'Iliade e l'Orlando furioso, libri ne' quali la meno importante cosa è
che quello che vi è scritto sia vero. Signor Sarsi, la cosa non istà così. La filosofia è scritta in questo
grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli ochi (io dico l'universo), ma non si
può intendere se prima non s'impara a intender la língua, e conoscer i caratteri, ne' quali è scritto.
Egli è scritto in língua matematica, e i caratteri son triangoli, cerchi, ed altri figuri geometriche,
senza i quali mezi è impossibile a intenderne umanamente parola; senza questi è un aggirarsi
vanamente per un oscuro laberinto”8
7 GALILEI, Op. Cit. pp. 12-138 GALILEI, Galileo. Il Saggiatore. In Opere, Edizione nazionale direta da A. Favero, Barbera, Firenze, 1890-1909,
ristampata soto gli auspici del Ministero della Pubblica Istruzione, Barbera, Firenze, 1968.
No fragmento que se segue, encontramos uma exposição didática do método científico de
Galileu e novamente a contraposição entre o silogismo aristotélico e à sua nova forma de abordar o
estudo da natureza:
“Assim que, para relatar aquilo que eu deduzi, ocupando-me da ciência que através de
demonstrações e de discurso humano se pode conseguir dos homens, eu acredito firmemente que
quanto mais ela participar da perfeição tanto menor número de conclusões prometerá ensinar, tanto
menor número delas demonstrará e, consequentemente, tanto menos agradará, e tanto menor será o
número de seus seguidores. Pelo contrário, porém, a magnificência de títulos, a grandiosidade e a
abundância de promessas, atraindo a natural curiosidade dos homens, mantendo-os entretidos
perpetuamente com mentiras e quimeras, sem nunca proporcionar-les o prazer da profundidade de
uma demonstração, onde o gosto uma vez apurado saiba reconhecer a falta de sal nos alimentos
costumeiros, conseguirão dessa forma manter ocupado grande número deles.”9
Aqui novamente encontramos a descrição do método científico e a consideração acerca do
fato de que este está calcado na experimentação sistemática e na observação, sendo a busca e
constatação da verdade ciêntifica um empreendimento trabalhoso e que exige uma dedicação nem
sempre celebrada.
Já no próximo trecho citado, temos novamente uma construção metafórica rica e muito
coesa, além de constituir uma verdadeira aula de instrumentação musical. Atentemos, também, para
o universo semântico invocado por Galileu, ao se referir ao “intervalo” entre as lentes, criando a
correspondência perfeita entre os instrumentos musicais e seu instrumento óptico. Temos assim,
neste exerto, abordados dois aspéctos: primeiro, a defesa de seu aparato como meio de observação e
compreensão dos fenômenos naturais; segundo, seu conhecimento acerca das relações de
semelhanças físicas entre a óptica e a acústica, dando solidez à sua metáfora:
“Eu pergunto a Sarsi por que os tubos do órgão não tocam todos em uníssono, mas alguns produzem
um tom mais grave e outros menos. Afirmará talvez que isso se verifica porque eles são de materiais
diversos? Certo que não, sendo todos de chumbo; mas tocam notas diversas porque são de grandezas
diversas, e, naquilo que diz respeito ao material, este não tem influência alguma sobre o tipo de som
pois os tubos construídos alguns de madeira, outros de estanho, outros de chumbo, outros de prata,
outros de papel tocarão todos em uníssono, o que se verificará quando todos os comprimentos e
larguras deles sejam iguais; e, pelo contrário, com o mesmo material em número, isto é, com as
mesmas quatro libras de chumbo, colocando-o em maior ou menor recipiente, formarei diversas
9 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) Pág. 26
notas. Assim, no que diz respeito a produção de som, diversos são os instrumentos que possuem
grandeza diversa, e não aqueles que possuem material diverso. Agora, se desmanchando um tubo
formar-se com o mesmo chumbo um outro tubo mais comprido, e consequentemente de tonalidade
mais grave, hesitará Sarsi em afirmar que este seja um tubo diverso do primeiro? Quero acreditar que
não. Porém, se outros encontrassem um jeito de formar o segundo cano mais comprido sem
desmanchar o primeiro, não seria o mesmo? Certamente que sim. Porém, o jeito será fazê-lo de dois
pedaços assim que um entre no outro, porque assim se poderá compridar e diminuir, em suma,
segundo o nosso arbítrio fazer devir diferentes canos, procurando formar diversas notas; e esta é a
natureza do trombone. As cordas da harpa, mesmo sendo do mesmo material, dão sons diversos
porque são todas de comprimentos diferentes; porém aquilo que produzem muitas delas o produzem
uma única corda do alaúde, enquanto que com o movimento dos dedos se produz o som ora de uma
ora de outra parte, que é o mesmo que compridar e diminuir o instrumento, por aquilo que diz
respeito à produção do som, com cordas diferentes. A mesma coisa pode-se afirmar do tubo da
garganta, o qual, variando em comprimento e em largura, aparelhando-se a formar várias
vozes, pode-se sem erro afirmar que se torna tubos diversos. Assim e não de outra forma (porque o
maior e o menor aumentos não consistem na matéria do telescópio, mas na figura, pois o mais
comprido prarece maior), quando, conservando a mesma matéria, mudar-se-á o intervalo entre vidro
e vidro, constituir-se-ão instrumentos diversos.”10
Para finalizar nosso breve trabalho acerca das imagens retóricas utilizadas por Galileu,
pedimos a contemporização do leitor para a apreciação de um fragmento um pouco longo, mas que
é elucidativo no que diz respeito à própria consciência de Galileu frente à miríade de causas que faz
com que um fenômeno se manifeste. Repare o leitor na progressão didática exemplar que realiza
nosso Mestre pisano engendrando, como elos de uma corrente na qual mostra que a percepção
humana é falha na apreensão dos fenômenos e, por isso mesmo, se faz necessária uma metodologia
da experimentação sistemática, e, mesmo assim, ainda não garante que abarque totalmente a
manifestação física:
“Depois de observado por muitas experiências, parece-me ser esta a condição humana em relação às
coisas intelectuais: quanto menos entende-se e sabe-se, com tanta mais força quer-se discutir; e, pelo
contrário, mais coisas são conecidas menor é a tendência de discutir resolutamente sobre qualquer
novitade. Nasceu em lugar muito solitário um homem dotado por natureza de grande inteligência e
de extraordinária curiosidade. Criando por prazer grande diversidade de aves, gostava enormemente
do seu canto, e com muita admiração observava de que modo, por meio do próprio ar que
respiravam, conseguiam formar ao seu arbítrio cantos diferentes e todos suavíssimos. Acontece que
10 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) pp. 51-52
uma noite perto de casa escutou um som delicado e, nem podendo imaginar que fosse outra coisa a
não ser uma pequena ave, foi buscá-la. Chegando à estrada encontrou um pequeno pastor que,
assoprando num pedaço de madeira furada e movimentando os dedos sobre a madeira, uma vez
fechando e uma vez abrindo determinados buracos, conseguia produzir aquelas vozes diferentes,
semelhantes às de um pássaro, mas de forma bem diversa. Admirado e movido pela sua curiosidade
natural, deu de presente um bezerro ao pastor para obter aquela flauta. De regresso a sua casa e
percebendo que se não houvesse encontrado por acaso aquele pastor nunca haveria aprendido que
existiam na natureza duas formas diversas de criar vozes e cantos suaves, quis sair de casa
procurando encontrar outras aventuras. Aconteceu que no dia seguinte, passando perto de uma
pequena choça, escutou ressoar dentro dela uma voz semelhante. Para ter certeza se era uma flauta
ou um pássaro, entrou e encontrou um menino que estava serrando, com um pequeno arco segurado
na mão direita, alguns nervos estendidos sobre um lenho côncavo, enquanto sustentava com a mão
esquerda o instrumento com o qual, movimentando os dedos e sem sopro algum, extraía dele vozes
diversas e suaves. Qual foi seu espanto pode ser julgado facilmente por aquele que possuir a mesma
inteligência e a mesma curiosidade dele que, vendo aumentar, de duas novas formas, a maneira de
produzir uma voz e um canto tão inusitados, começou a acreditar poderem existir ainda outros na
natureza. Mas qual foi sua surpresa quando, entrando em um determinado templo, começou a olhar
atrás da porta para ver quem estava tocando e percebeu que o som havia saído dos ferros da porta ao
abrí-la? Em outra ocasião, empolgado pela curiosidade, entrou em um boteco e, acreditando
encontrar outra vez alguém que com o arco tocasse as cordas de um violino, viu uma pessoa que,
esfregando o dedo sobre a orla de um copo, conseguia produzir um som suavíssimo. Mas logo que
observou que as abelhas, os pernilongos e as moscas, com o rapidíssimo bater das asas, e não como
suas primeiras aves que respirando formavam vozes ininterruptas, produziam um som perpétuo,
tanto aumentou sua admiração que diminuiu sua confiança sobre o conhecimento da origem do som.
Nem todas as experiências já observadas haveriam sido suficiente para faze-lhe entender ou acreditar
que os grilos, não voando, conseguiam, não por meio do sopro mas com o movimento das asas,
produzir sons tão doces e sonoros. Mas quando acreditou não poderem existir outras formas
possíveis de produzir vozes, depois de haver observado, além das maneiras já relatadas, ainda tantos
órgãos, trompas, flautas e instrumentos de cordas de todos os tipos, até chegar a aquela pequena
lâmina de ferro que, suspensa entre os dentes, usava de forma muito esquisita a cavidade bucal para
dar corpo à amplificação do sopro permitindo a passagem do som, quando, repito, na hora que
acreditava haver conhecido tudo, encontrou-se ainda mais no escuro e na ignorância, quando,
havendo encontrado uma cigarra que nem fechando-lhe a boca e nem fechando-lhe as asas conseguia
diminuir seu altíssimo estridor, não percebeu movimento algum de escamas nem de outras partes.
Finalmente, levantando-lhe a caixa dos pulmões e observando embaixo dela algumas cartilagens
duras mas sutis, e acreditando que o som fosse originado do seus movimento, resolveu quebrá-las
para fazê-la parar, mas tudo foi em vão. Então, enfincando uma agulha mais funda no corpo da
cigarra, passando-a, tirou-lhe junto com a voz a vida e assim não pode mais pesquisar se o canto era
originado verdadeiramente por aquelas menbranas. Tornou-se então descrente sobre seus possíveis
conhecimentos em relação aos sons que toda vez que alguém lhe perguntava sua opinião sobre a
origem dos sons, generosamente respondia não conhecer causa alguma, mas que estava resolvido a
acreditar que pudessem existir cem outras maneiras, ainda desconhecidas e impensáveis.
Eu poderia dar muitos exemplos da variedade da natureza em produzir seus efeitos de
maneira inimaginável para nós, se o sentido e a experiência não nos explicitassem sem, muitas vezes,
suprir nossa incapacidade. Assim, se eu não souber, com exatidão, determinar a produção do cometa,
deverão ser aceitas minhas desculpas, especialmente porque nunca afirmei poder dar explicação
sabendo que ela poderia verificar-se de forma muito alheia a nossa imaginação. A dificuldade de
entender como se forma o canto da cigarra, enquanto ela canta na mão, desculpa de sopra não saber
como pode formar-se um cometa tão longe de nós. Para frisar, então, a primeira intenção do Sr.
Mário e minha, isto é, promover aquelas dúvidas que pareçam abalar as opiniões manifestadas até
agora e propor alguma nova teoria para examinar se existe alguma coisa que possa esclarecer e abrir
o caminho rumo à verdade, continuarei a raciocinar sobre as teorias manifestadas por Sarsi, que
considerou improváveis nossos argumentos.”11
Nesse ponto, e para terminarmos nossa exposição, faremos uma interpretação desse trecho
considerando uma salto no tempo e no espaço ao considerar que o fragmento acima pode ilustrar
uma acepção da ciência moderna. Acreditamos ser coerente tomarmos tal liberdade, haja vista que o
método de Galileu Galilei fundou as bases do pensamento científico e, dessa forma, sua percepção
contém o germem de todo o desenvolvimento científico posterior.
Trata-se de considerações sobre a natureza dos fenômenos que encrontramos na obra do
Professor Silvio Seno Chibeni, do Departamento de Filosofia da Unicamp, Universidade Estadual
de Campinas, intitulado Algumas observações sobre o “Método Científico”. Em seu trabalho,
encontramos a distinção entre as teorias fenomenológicas e as teorias explicativas ou construtivas.
Conforme nos ensina o filósofo da ciência e professor, “as propriedades e relações
empiricamente acessíveis entre os fenômenos são ditas fenomenológicas (fenômeno.: aquilo que aparece
aos sentidos). Teorias desse tipo têm como função descrever, por suas leis, as correlações entre os
fenômenos. Isso é o suficiente para permitir a previsão da ocorrência de um fenômeno a partir da
ocorrência de outros.”12 Ainda com relação à distinção feita pelo filósofo, temos que: “Porém a
capacidade de predição de fenômenos é apenas o primeiro dos dois grandes objetivos da ciência, no
sentido atual do termo. O outro objetivo é o de fornecer explicações para os fenômenos, quer
individualmente, quer já concatenados por leis de tipo fenomenológico. Numa visão tradicional (adotada
11 GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores) pp. 61-63.
12 CHIBENI, Silvio Seno. Algumas observações sobre o “método científico”Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp, Brasil. Web site: www.unicamp.br/~chibeni.
daqui em diante), esse objetivo deve ser buscado apontando-se as causas dos fenômenos. Teorias que se
proponham a especificar tais causas, a partir das quais se compreenda as razões da ocorrência dos
fenômenos, são ditas teorias explicativas, ou construtivas. Esta última denominação foi sugerida por
Einstein, a partir da observação de que as teorias deste segundo tipo envolvem proposições referentes a
entidades e processos inacessíveis à observação direta, que são postulados com o objetivo de explicar os
fenômenos por sua .construção. a partir dessa suposta estrutura fundamental subjacente (Einstein 1954,
p. 228).”13
Esperamos, assim, ter realizado satisfatoriamente nossa exposição acerca da linguagem
científica, cujas bases foram lançadas há mais de cinco séculos pela intuição de Galileu Galilei e
sua percepção acerca dos fenômenos e sua causas, transcendendo o tempo e o espaço.
Bibliografia
CHIBENI, Silvio Seno. Algumas observações sobre o “método científico”Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp, Brasil. Web site: www.unicamp.br/~chibeni.
GALILEI, Galileu. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco, São Paulo: Nova Cultural, 1987.
GALILEI, Galileo. Il Saggiatore. In Opere, Edizione nazionale direta da A. Favero, Barbera,
Firenze, 1890-1909, ristampata soto gli auspici del Ministero della Pubblica Istruzione, Barbera,
Firenze, 1968.
SANTOS, Leonel Ribeiro. Os Descobrimentos e a Retórica da Razão Moderna in Philosophica 15,
Lisboa, 2000.
13 CHIBENI, Op. Cit.