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IMAGENS DA DIPLOMACIA DE NZINGA MBANDI NGOLA, EM LUANDA, NO ANO DE 1621: HISTÓRIA, GRAVURAS, E NARRATIVA (PEPETELA). IMAGES OF NZINGA MBANDI NGOLA’S DIPLOMACY, IN LUANDA, IN 1621: HISTORY, EMBOSSINGS, AND NARRATIVE (PEPETELA). Denise Rocha- Fundação Universidade do Tocantins- UNITINS, Palmas. Resumo: Contemporânea de Zumbi dos Palmares, a princesa Nzinga apresenta-se como embaixadora de seu irmão, o Ngola Ngola Mbande, para discutir um tratado de paz com o governador português, João Correia de Sousa, em 1621, na cidade de Luanda. Segundo a obra Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, escrita pelo capuchinho italiano, Padre João Antonio Cavazzi de Montecuccolo, que conheceu Nzinga, pessoalmente, Sousa não a tratou com reverência, oferecendo-lhe duas almofadas, ao invés de uma cadeira. Humilhada, a jovem sentou-se nas costas de uma escrava, demonstrando altivez diante do invasor luso. Será apresentado esse episódio do encontro de dois mundos, no qual uma mulher se impõe, conforme as memórias de Cavazzi, e seu reflexo em duas gravuras, bem como no romance A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos, do escritor angolano Pepetela, publicado em 1997. Palavras-chave: História de Angola; gravuras; narrativa; Burke; Hutcheon. Abstract: Contemporary with Zumbi dos Palmares, Princess Nzinga presents herself as embassadress of her brother, Ngola Ngola Mbande, to discuss a peace treaty with the Portuguese governor, João Correira de Sousa, em 1621, in the city of Luanda. According to the work Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, written by the Italian Capuchin, Father João Antonio Cavazzi de Montecuccolo, who was personally acquainted to Nzinga, Sousa did not treat her with reverence, offering her two pillows, instead of a chair. The Princess, fetched down, sat on a female slave’s back, showing pride before the Portuguese invader. That episode will be presented showing the collision of two worlds, in which a woman tries to impose herself, according to Cavazzi’s memoirs, and her reflected image in two embossings, as well as in the novel A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos, the Angolan writer Pepetela, published in 1997. Keywords: Angolan History; embossings; narrative; Burke; Hutcheon. Introdução Seiva vital na raiz identitária angolana, Jinga-Mbandi-Ngola (1582 (?) -1663), 1 conhecida como D. Ana de Sousa, foi contemporânea de Zumbi dos Palmares (c. 1655- 1695), e, intensificou, desde o início do seu reinado, em 1623, o tráfico de escravos, utilizados nas lavouras e nos engenhos de cana-de-açúcar no nordeste brasileiro, governado por portugueses e holandeses. Disposta a aceitar, inicialmente, somente, relações comerciais com os lusos, ela resistiu, como seu pai, e seu irmão, Mband-Ngola, com um bem engendrado sistema de diplomacia e de espionagem, às tentativas dos estrangeiros no processo de imposição da política colonial (ocupação e infiltração no tráfico negreiro). 1 Ortografia utilizada pelo Padre Cavazzi em sua obra Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola situados na Etiópia inferior ocidental e das missões apostólicas estabelecidas por religiosos Capuchinhos. Cavazzi narra sobre as irmãs da princesa, Cambo (Bárbara) e Funji (Grácia), entre outros, cujos nomes na obra de Pepetela são: Mocambo, e Engrácia. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 847

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IMAGENS DA DIPLOMACIA DE NZINGA MBANDI NGOLA, EM LUANDA, NO ANO DE 1621:

HISTÓRIA, GRAVURAS, E NARRATIVA (PEPETELA).

IMAGES OF NZINGA MBANDI NGOLA’S DIPLOMACY, IN LUANDA, IN 1621:

HISTORY, EMBOSSINGS, AND NARRATIVE (PEPETELA).

Denise Rocha- Fundação Universidade do Tocantins- UNITINS, Palmas.

Resumo: Contemporânea de Zumbi dos Palmares, a princesa Nzinga apresenta-se como embaixadora de seu irmão, o Ngola Ngola Mbande, para discutir um tratado de paz com o governador português, João Correia de Sousa, em 1621, na cidade de Luanda. Segundo a obra Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, escrita pelo capuchinho italiano, Padre João Antonio Cavazzi de Montecuccolo, que conheceu Nzinga, pessoalmente, Sousa não a tratou com reverência, oferecendo-lhe duas almofadas, ao invés de uma cadeira. Humilhada, a jovem sentou-se nas costas de uma escrava, demonstrando altivez diante do invasor luso. Será apresentado esse episódio do encontro de dois mundos, no qual uma mulher se impõe, conforme as memórias de Cavazzi, e seu reflexo em duas gravuras, bem como no romance A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos, do escritor angolano Pepetela, publicado em 1997.

Palavras-chave: História de Angola; gravuras; narrativa; Burke; Hutcheon.

Abstract: Contemporary with Zumbi dos Palmares, Princess Nzinga presents herself as embassadress of her brother, Ngola Ngola Mbande, to discuss a peace treaty with the Portuguese governor, João Correira de Sousa, em 1621, in the city of Luanda. According to the work Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, written by the Italian Capuchin, Father João Antonio Cavazzi de Montecuccolo, who was personally acquainted to Nzinga, Sousa did not treat her with reverence, offering her two pillows, instead of a chair. The Princess, fetched down, sat on a female slave’s back, showing pride before the Portuguese invader. That episode will be presented showing the collision of two worlds, in which a woman tries to impose herself, according to Cavazzi’s memoirs, and her reflected image in two embossings, as well as in the novel A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos, the Angolan writer Pepetela, published in 1997.

Keywords: Angolan History; embossings; narrative; Burke; Hutcheon.

Introdução Seiva vital na raiz identitária angolana, Jinga-Mbandi-Ngola (1582 (?) -1663),1

conhecida como D. Ana de Sousa, foi contemporânea de Zumbi dos Palmares (c. 1655-1695), e, intensificou, desde o início do seu reinado, em 1623, o tráfico de escravos, utilizados nas lavouras e nos engenhos de cana-de-açúcar no nordeste brasileiro, governado por portugueses e holandeses. Disposta a aceitar, inicialmente, somente, relações comerciais com os lusos, ela resistiu, como seu pai, e seu irmão, Mband-Ngola, com um bem engendrado sistema de diplomacia e de espionagem, às tentativas dos estrangeiros no processo de imposição da política colonial (ocupação e infiltração no tráfico negreiro). 1 Ortografia utilizada pelo Padre Cavazzi em sua obra Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola situados na Etiópia inferior ocidental e das missões apostólicas estabelecidas por religiosos Capuchinhos. Cavazzi narra sobre as irmãs da princesa, Cambo (Bárbara) e Funji (Grácia), entre outros, cujos nomes na obra de Pepetela são: Mocambo, e Engrácia.

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Em coligação com os holandeses, com o rei Garcia II do Congo, com o Mani- Luanda (governador da Ilha de Luanda, sob jurisdição congolesa) e com alguns sobas (chefes de tribos), Jinga, que não aprendeu português, enfrentou, nos anos 1640, os lusos com seu exército disciplinado e bem equipado com armas de fogo. Batizada em 1622, e reconvertida no ano de 1656, assinou um Tratado de Paz (1657) com Portugal, e morreu, lúcida, aos 81 anos (?), assistida pelo capuchinho Cavazzi, tornando-se parte integral do imaginário cultural e mito fundador da nação moderna angolana.

Envolta em lendas e histórias, transmitidas por narrativas orais e por textos baseados em fontes testemunhais, Jinga, que governou por 40 anos (1623-1663), foi descrita por dois contemporâneos, com olhares eurocêntricos cristãos, admirados pela sua altivez assombrosa nas relações diplomáticas, administrativas e militares, mas espantados com seus rituais de antropofagia e o tratamento desumano dispensado aos diversos amantes: pelo oficial luso António de Oliveira Cadornega (1639-1690) na obra História Geral das Guerras Angolanas; e pelo padre italiano Gio-Antonio Cavazzi (1621-1678) em Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola situados na Etiópia inferior ocidental e das missões apostólicas estabelecidas por religiosos Capuchinhos. Nessa obra, o autor descreve dois aspectos do início da sociedade colonial: as condições naturais do sudoeste africano, os costumes e tradições dos nativos; e o trabalho missionário dos capuchinhos italianos.

Rainha presente em treinamentos militares e nos campos de batalha e hábil diplomata, em uma época patriarcal, a vida de Jinga suscitou profundo interesse, refletido na escrita de diversas obras nos séculos XVII a XIX: La Maravigliosa Conversione alla Santa Fede di Cristo della Regina Singa e del suo Regno di Matamba nell’ Africa Meridionale descritta com historio stille (1669, Nápoles), do padre Francisco Maria Gioia; Notícia Memorável da Vida e Acçoens da Rainha Ginga, Ginga Amena, de Domingos Gonçalves (1749, Lisboa); Zingha, reine d'Angola: histoire africaine (1769, Paris), de Jean-Louis Castilhon; Zingha, Koningin van Angola-Treurspel (1791, Holanda), de J. Nomsz (In: De Nederlansche dichtkundige schouwburg); e Koningin van Matamba en Angola (1841, Holanda), (In: Nieuwe Keur van muttige em aangename mengelingen). 2

Como personagem literária, ela ressurge, em Angola, a partir da metade do século XX, época marcada por reflexões sobre a identidade cultural, em cinco romances: Jinga, rainha de Matamba (1949, Braga), de João Mário Azevedo; Nzinga Mbandi (1975, Luanda), de Manuel Pedro Pacavira; A gloriosa família: o tempo dos flamengos (1997, Luanda), de Pepetela; O trono da rainha Jinga: romance, de Alberto Mussa (1999, Rio de Janeiro); e Ginga: Rainha de Angola, de Manuel Ricardo Miranda (São Paulo, 2007).

Jinga teve sua trajetória de resistência e de coligação com estrangeiros e nativos, registrada por Cavazzi, que a assistiu no final da vida, inclusive, oficiando suas exéquias. O religioso, sob uma perspectiva religiosa e masculina, a descreveu como astuta embaixadora, que ocultou o ressentimento com o seu irmão, que a mandou esterilizar, planejando o seu futuro como rainha:

A manhosa mulher prometeu que cuidaria dos interesses dele [de seu irmão Ngola-Mbandi] da melhor maneira, mascarando o ódio no coração até outra oportunidade melhor. Foi então preparada a embaixada, que permitiu a Jinga acrescentar ao seu nome o título “Ngambele”, ou embaixatriz. (Cavazzi, 1965: p. 66, v. 2, livro VI).

A imagem da diplomata Jinga – africana, negra, pagã, mulher- foi forjada pelo olhar europeu, branco, cristão, e masculino- do capuchinho italiano Cavazzi, seu confessor, em sua obra Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola ..., publicada em Bologna, no ano de 1687, a qual contém várias ilustrações, com destaque para a cena do

2 Cavazzi; Faria, 1965: p. XXX-XXXI.

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encontro da princesa com o governador português João Correia de Sousa e a do seu batismo (1622), a partir do qual recebeu o nome de Anna de Sousa.

Baseado no relato de Cavazzi, o escritor angolano contemporâneo Pepetela inclui a famosa cena da cadeira em A gloriosa família: o tempo dos flamengos (1997). Essas narrativas, por meio de palavras e imagens, mostram as relações do “eu”, o colonizador, com o “outro”, o colonizado. Para interpretação das imagens, como elemento de compreensão de outras épocas, serão utilizadas as reflexões de Peter Burke, em Testemunha ocular.

A respeito da narrativa histórica, mesclada com aspectos ficcionais, será utilizada a terminologia de Linda Hutcheon: a “metaficção historiográfica”, gênero revisitador crítico da historiografia oficial portuguesa, com elementos paródicos, irônicos, intertextual, e ênfase no discurso do oprimido.

1-História, imagem e literatura. Para compreensão do registro histórico verbal e visual, que estão estruturados em

formas de narrativas, faz-se necessário refletir sobre as circunstâncias, nas quais os textos foram produzidos, e sobre os objetivos do autor. A chamada “Nova História”, propagou a ideia da importância do estudo das mentalidades, identidades, cultura e micro-história, por meio de verificação de fontes históricas e iconográficas, no âmbito da História cultural das imagens (História social da arte).

Na obra Testemunha ocular: história e imagem, o autor inglês Peter Burke enfatiza, que as imagens devem ser usadas para compreensão de outras épocas, e que elas não devem ser consideradas somente reflexões de períodos e locais, mas sim extensões dos contextos sociais nos quais foram produzidos. Para Burke, as imagens, como evidência do passado, são “indícios”, os quais se comunicam, e que podem ser novas testemunhas na reconstrução de tempos antigos: “[...] as imagens, assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular”. (Burke, 2004: p. 17)

As imagens podem ter caráter sagrado e laico: as representações mundanas de poder podem expressar ideologias como nacionalismo, socialismo, liberdade, entre outros aspectos. O uso das representações permite uma reconstrução visual do passado nos aspectos mais triviais, como vestuário e tecnologia, os quais podem ser inatingíveis pela descrição textual. Em relação à imagem do “outro” - questão da alteridade-, verifica-se que o encontro entre duas culturas, gêneros e grupos sociais provoca reações variadas: de surpresa, fascínio e encantamento, a repulsa, rejeição e fortalecimento do sentimento de superioridade.

A historiografia oficial, que celebrava os grandes feitos de reis, governadores, generais, entre outros membros da elite colonial, passa a ser contestada, de forma reflexiva, paródica, didática, irônica e intertextual. a partir dos anos 1980, em narrativas chamadas de “novo romance histórico”. Esses textos, também nomeados de “metaficção historiográfica”, tem caráter metadiscursivo. O discurso do oprimido, do “ex-cêntrico”, presente nessas obras, reflete a contestação diante dos mecanismos do poder. (Hutcheon, 1991: p. 13-14; 250).

2-Jinga descrita pelo contemporâneo Padre Cavazzi (1621-1678): a cena da cadeira

e o batismo. Nos anos finais de sua vida, até o falecimento, no dia 17 de dezembro de 1663, em

Matamba, Jinga foi assistida pelo capuchinho italiano Gio-Antonio Cavazzi (1621-1678), natural de Montecuccolo, Itália. Enviado como prefeito para a nova missão de Matamba, em 1654, o padre permaneceu até 1667 na região, e no dia 13 de setembro embarcou para o Brasil, e permaneceu um ano em Pernambuco. Em viagem rumo a Portugal, iniciada no dia 10 de outubro de 1668, Cavazzi perdeu parte de seus manuscritos, devido a tempestades. Ao chegar em Roma, foi incumbido pela Congregação Propaganda Fide a escrever a história da

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missão dos capuchinhos, para a qual utilizou, sua memórias, obras de outros autores, e fatos das narrativas orais angolanas.3 O geógrafo e naturalista relatou a respeito de suas impressões sobre a vida particular, administrativa e militar da rainha de Ndongo e de Matamba, que foram publicadas no Livro Quinto e Sexto na obra finalizada em 1671, e publicada, no ano de 1687, em Bolonha: Istorica Descrizione de’tre’Regi Congo, Matamba et Angola, situati nell’Etiopia Inferiore Occidentale, e delle Missioni Apostoliche esercitatevi da Religiosi Capuccini. 4

O oitavo Ngola do Dongo, Jinga-Mbandi-Ngola-Quiluanji teve de uma de suas esposas, Guenguela-Cacombe, três filhas -Jinga, Funji e Cambo- e dois filhos, Seu pai deu à filha querida o seu próprio nome. Após o assassinato do rei (1617), o filho Ngola-Mbandi usurpou o trono, após mandar exterminar o príncipe herdeiro, bem como o sobrinho, o filhinho de Jinga, nascido bastardo, mas pretendente ao trono. Para acabar com a linhagem das irmãs, mandou realizar a esterilização delas por meio de ferros em brasa ou água quente. (Cavazzi, 1965, p. 64-65, 106, v. 2, livro V).

No ano seguinte, o governador de Angola, Luis Mendes de Vasconcelos, fundou o presídio de Ambaca, no território do Ngola-Mbandi, que revidou, mas foi derrotado, e perdeu, dois anos mais tarde, a esposa para os portugueses. O novo governador, João Correia de Sousa, procurou contornar a situação, enviando embaixadores ao rei, o qual fez a seguinte proposta: restituição de Ambaca e ajuda para expulsar Cassanje dos territórios invadidos. As pretensões foram consideradas justas por uma junta em Luanda. Apesar de ter sido ultrajada de maneira profunda pelo irmão, Jinga estava segura de seu futuro papel político e militar na dinastia do Dongo e de Matamba, e por isso, aceitou ser a enviada de seu irmão para negociar um acordo de paz, no ano de 1622, em Luanda. (Cavazzi, 1965, p. 106, e 66 v. 2, livro V).

Padre Cavazzi narra, conforme relato de testemunhas e da própria rainha, sobre a sua chegada triunfal, em 1622, para atuar como embaixatriz do rei Mband-Ngola, depois de uma marcha de cerca de 100 léguas de Cabasso, capital do Dongo, carregada por escravos, segundo a tradição. A deferência prestada pelo governador João Correia de Sousa, com recepção na fronteira urbana da cidade litorânea, refletiu o respeito à princesa e representante diplomática real, e significou o encontro de dois mundos, de dois “outros”: o europeu-cristão-estrangeiro-invasor e o africano-dongo-não-cristão-nativo, que suscitou sentimentos diversos, mas marcados pelo fascínio exercido pelos trajes de Jinga, e admiração pela sua postura profissional. O requinte da comitiva lusa e o barulho da artilharia provocaram, também, certo receio e encanto na princesa.

As impressões dos portugueses, testemunhas do encontro, foram, também, relatadas ao padre Cavazzi, o qual narra que, Jinga, hospedada no palácio de Rui Araújo, com despesas custeadas pela Fazenda Régia, recebeu presentes caros e muitas provisões e apareceu, à audiência com o governador: “[...] carregada de gemas preciosas, bizarramente enfeitada de penas de várias cores, majestosa no porte e rodeada por grande número de donzelas, de escravas e de oficiais da sua corte”. (Cavazzi, 1965: p. 67, v. 2, livro V).

Ao entrar na sala de audiências, a princesa-diplomata percebeu uma escolha de assentos, que não lhe agradou: “[...] uma cadeira de veludo com enfeites de ouro para o governador e em frente duas almofadas de veludo douradas obre o tapete, conforme o costume dos príncipes da Etiópia”. Os portugueses organizaram a sua recepção em consideração aos costumes locais, mas a princesa sentiu-se inferiorizada e tomou uma decisão inesperada: “[...]

3 Cavazzi teve a ajuda do Padre Bonaventura de Montecuccolo. (Levi, 1999: p. 32) 4 Esse livro tem dois volumes: o primeiro está estruturado em quatro livros que relatam: a vida dos três reinos (a geografia; a fauna; a flora; a homeopatia; a agricultura; o sistema militar e judicial; os habitantes; a escravidão; artes; danças; músicas; idiomas; e a presença dos europeus (portugueses, capuchinhos italianos, e holandeses). No segundo volume, são apresentados os vários momentos de evangelização realizados pelos capuchinhos; a vida de Jinga; e a repatriação do autor. 

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parou e, sem mostras de embaraço e sem proferir palavra, acenou só com um olhar a uma das donzelas, que imediatamente se deitou no chão atrás da sua senhora, servindo-lhe de cadeira durante todo o tempo da audiência”. Tal atitude de redução de um ser humano a objeto, que parecia ser “natural” para Jinga no contexto de seu relacionamento com uma subalterna, espantou os portugueses, os quais ficaram ainda mais boquiabertos com sua eloqüência na discussão dos termos do acordo:

Os presentes admiraram, todos pasmados, esta presteza em sair-se bem e a vivacidade de tal prudência, falando do seu irmão, pedindo paz, oferecendo a aliança e tratando com natural embaraço todo o negócio pelo qual se apresentara, que os magistrados e os conselheiros ficaram sem palavra. (Cavazzi, 1965: p. 68, v. 2, livro V). No momento da exigência portuguesa - o pagamento de tributo anual-, Jinga

posicionou-se, como uma destemida representante do Dongo e de Matamba, consciente de ser representante de uma nação livre que visitava um território vizinho invadido, com o qual tencionava, de forma cordial, estabelecer regras sobre deslocamento geográfico e acordos militares e comerciais: “E quando lhe foi dito que Ngola-Mbandi teria de reconhecer a Coroa de Portugal com ânuo tributo, respondeu que tal condição só se podia exigir duma nação submetida, mas não duma nação que espontaneamente oferecia uma mútua amizade”. (Cavazzi, 1965: p. 68, v. 2, livro V).

Diante de tal postura indômita, os portugueses conseguiram, somente, regularizar a questão da restituição de seus escravos e estabelecer um acordo de mútua assistência em caso de ataque de inimigos mútuos. Terminado o colóquio surpreendente, e em parte, fracassado para os lusos, pois não conseguiram expandir a conquista, concretizada por meio de pagamento de taxas obrigatórias, o governador e os demais tiveram outra surpresa causada pela desenvolta Jinga. Ao acompanhá-la para fora do recinto, João Correia de Sousa:

[...] cortesmente a avisou de que a dita donzela ficara ainda no seu lugar e que, portanto, lhe desse licença de se levantar. Mas Jinga respondeu que ali a deixava, não por esquecimento, mas porque não era conveniente que a embaixatriz do seu reino se sentasse pela segunda vez no mesmo assento, e que, não lhe faltando outras semelhantes cadeiras, não se importava dela nem a queria mais. (Cavazzi, 1965: p. 68, v. 2, livro V). Nessa memorável audiência, na qual Jinga se mostrou destemida e consciente da

importância de seu papel e de seu poder na demarcação de territórios geográficos e políticos com os portugueses, o seu gesto de assentar-se em cadeira improvisada sinalizou que não aceitava nenhum tipo de assimetria na relação com os lusos.

Na estadia de Jinga, em Luanda, que se prolongou no ano de 1622, o governador instruiu a princesa mbundu no cristianismo, conforme relato do Padre Cavazzi:

[...] sentindo ela que Nosso Senhor batia à porta de seu coração mediante a Sua graça, abraçou a nossa santa fé e no mesmo ano de 1622, com 40 anos de idade, foi solenemente batizada na Sé de Luanda e, tendo como padrinho o governador [...]. (Cavazzi, 1965: p. 69, v. 2, livro V). As duas gravuras (cor preta e branca), de autoria anônima, a seguir – Jinga e o

governador, e o batismo dela – foram publicadas na 1. edição da obra de caráter histórico e etnográfico Istorica Descrizione de’tre’Regi Congo, Matamba et Angola, situati nell’Etiopia Inferiore Occidentale, e delle Missioni Apostoliche esercitatevi da Religiosi Capuccini . O texto original de Cavazzi, conhecido como Manuscrito Araldi, por ter sido conservado pela família de Carlo Araldi, tem 1568 páginas. Conforme o gosto da época, ele foi ilustrado com 47 gravuras: 39 foram encomendadas por Cavazzi, algumas de animais na missão de Angola;

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e as demais foram executadas a pedido de Fortunato Alamandini, responsável final pela edição, e uniformização do texto.

Gravura 1: Audiência do governador João Correia de Sousa com a diplomata Jinga-Mbandi-Ngola, no palácio das autoridades portuguesas, em Luanda, no ano de 1622, para conversação de um acordo de paz. Fonte: CAVAZZI, Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola 1965: p. 67, v. 2, livro VI. Nessa ilustração, Jinga ocupa o meio da cena, apoiada nas costas de uma escrava,

ajoelhada de cabeça para baixo, sobre um tapete: na lateral esquerda, encontram-se o governador, sentado em uma cadeira luxuosa, e três funcionários portugueses estão em pé; e na direita, situam-se duas acompanhantes da princesa, também, sem assentos. No extenso fundo claro central, se avista bem ao longe quatro construções: uma igreja e três habitações típicas (forma cilíndrica com uma porta, sem janelas); e no horizonte, destacam-se uma cadeia de três montanhas e três nuvens imensas no céu.

O único móvel é a cadeira do governador. João Correia de Sousa usa chapéu adornado, e porta elegantes trajes da época, que cobrem todo o corpo, conforme moda e situação socioeconômica. Jinga traja saia curta, semelhante às de suas companheiras, que se apresentam com os seios desnudos, segundo a tradição mbundu. A embaixadora usa uma espécie de lenço longo, ao lado direito, que lhe oculta o peito. Os cabelos delas são

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semelhantes, curtos, e adornados com uma tiara estreita. Como Jinga não sabia português, havia um intérprete (um língua) de cada lado. A criada, em destaque, segura uma espécie de cetro, parecido com o da realeza européia. Jinga e João estão com os braços abertos, de forma parecida, como sinal de conversa dinâmica.

A imagem comunica uma estranha situação: uma mulher sentada nas costas de outra, animalizada e reduzida a objeto, por ser escrava. Jinga não ostenta nenhuma insígnia da realeza, apesar de ser princesa e diplomata. Conforme Cavazzi, ela apresentou-se enfeitada com “[...] gemas preciosas, bizarramente enfeitada de penas de várias cores”. Supõe-se que o desenhista, não leu o manuscrito, e somente foi informado sobre o episódio da “estranha cadeira”, que mostra a existência do sistema de escravidão na sociedade mbundu. Não sabia que Jinga ainda não era rainha, portanto, não poderia usar o cetro, que é símbolo europeu de supremo poder e dignidade real.

Gravura 2: Batismo de Jinga, na Sé de Luanda, em 1622, com o padrinho João Correia de Sousa, e a madrinha Anna da Silva. Fonte: CAVAZZI, Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola 1965: p. 68, v. 2, livro VI.

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Nessa pintura, o padrinho, o governador João Correia de Sousa, e o padre ocupam o centro na cerimônia realizada no batistério da Igreja; no lado direito, encontram-se uma freira e a madrinha; e no direito, atrás, posicionam-se o sacristão e três mulheres acompanhantes da princesa, que estão ajoelhadas; e na frente, está Jinga, de joelhos, no tapete, com os cotovelos apoiados na borda da pia batismal, de mãos unidas, em forma de oração, a cabeça abaixada e os olhos cerrados. O padre entorna, com a mão direita, a água benta, vertida de um pequeno frasco, na fronte dela, que é tocada com a mão esquerda do religioso. O sacristão segura um archote. Todos os brancos cristãos, da mesma altura, estão em pé, e as mulheres nativas encontram-se ajoelhadas. Um delas segura uma coroa. O batistério tem uma pia batismal e um tapete.

A imagem comunica uma cena de batismo, que é uma prática ritual, geralmente, realizada com criança pequena, com a finalidade de consagrá-la a Deus. A cerimônia é realizada com água consagrada na pia batismal, por um padre e as testemunhas: familiares, colegas, o padrinho e a madrinha, que assumem o papel de pais na educação infantil no cotidiano, e em caso de falecimento dos genitores. Trata-se de um rito de admissão na comunidade cristã, mas no caso de Jinga, torna-se o ritual de uma passagem para outro estágio de vida: de pagã antropófaga a crente no Deus único.

Ao retornar dessa estadia em Luanda, na qual estabeleceu um sistema de igualdade política, e militar com os portugueses, e foi batizada, Jinga persuadiu o rei Mband-Ngola, seu irmão, a solicitar um sacerdote. Por ser negro, o enviado, Padre Dionísio de Faria Barreto, natural de Matamba, foi rejeitado pelo rei, pois: “[...] não queria se batizado por um padre que nascera duma escrava, qualificativo usado para indicar os súbditos”. (Cavazzi, 1965: p. 69, v. 2, livro V).

Depois desse episódio, Ngola-Mbandi recomeçou a guerra com os lusos, pois eles não concretizaram uma das partes do acordo de paz, - a expulsão de Cassanje-. Derrotado, o irmão de Jinga retirou-se para as ilhas do Cuanza, onde foi envenenado por ela, no ano de 1623. Declarada rainha, ela abjurou sua fé cristã, se convertendo, em 1656, depois de receber um crucifixo, encontrado por seus soldados no saque na guerra contra Pombo-Samba. Começou a venerar o símbolo da fé cristão, ao mesmo tempo, que cultuava o esqueleto do irmão. Decidida a se reconverter ao catolicismo, Jinga retornou a Matamba, onde tinha sido construída uma igreja dedicada à Nossa Senhora. Doente, a rainha resolveu, no dia 21 de outubro de 1663, se inscrever na Confraria do Carmo, e proibiu que depois de sua morte fosse celebrado o tambo: o funeral com sacrifícios humanos. Faleceu no dia 12 de dezembro do mesmo ano, junto ao Padre Cavazzi, e foi enterrada com o burel dos capuchinhos. (Cavazzi, 1965: p. 68, 108 e 109; 111, v. 2, livro VI).

3- A rainha Jinga no “novo romance histórico”: A gloriosa Família (1998), de

Pepetela. A reflexão de Pepetela (Artur Carlos Pestana dos Santos), escritor angolano

contemporâneo, sobre o conhecimento do passado para melhor compreensão do presente o levou a pesquisar as raízes da História de Angola e a escrever, de maneira crítica, romances históricos com subjetivação, transcendência e auto-reflexão sobre a história: A revolta da casa dos ídolos (1980), Yaka (1984), Lueji: o nascimentode um império (1989) e A gloriosa família: o tempo dos flamengos (1997).

Agraciado com o Prêmio Camões 1997, o romance A gloriosa família 5 mostra uma fase da história angolana (1641-1648), na qual as disputas de Salvador e Recife pela mão-de-obra

5 Dividida em 12 capítulos, os quais contém informações, em parênteses, sobre mês e ano do ocorrido a ser narrado, por exemplo, Capítulo Primeiro (Fevereiro de 1642), o romance tem um prólogo sobre um episódio histórico envolvendo Van Dum, narrado por António de Oliveira Cadornega em História Geral das Guerras

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refletiram em conflitos sangrentos num cenário transatlântico e periférico. O escravo-narrador, um excluído do processo colonial, narra o cotidiano da vida de Baltazar Van Dum, nos anos 1641 a 1648, não de maneira bombástica e exaltadora, mas sim de uma perspectiva pessoal e humana, mostrando as contradições e fraquezas dos membros da família de Baltazar: 8 filhos legítimos com Inocência (Gertrudes, Matilde, Rosário, Ana, Rodrigo, Ambrósio, Benvindo e Hermenegildo), 3 reconhecidos (Nicolau, Catarina e Diogo) e inúmeros anônimos, na Europa e na sua sanzala.

Surdo-mudo, o rapaz relata, também, fatos, comprovados e/ou transmitidos de forma oral, da vida de Jinga, esperta, detentora do tráfico de escravos e comandante de um exército temível. Seu relato -do século XVII para o futuro- abrange diversas perspectivas: as suas pessoais; as dos europeus e as dos nativos. As impressões sobre Jinga são reflexos de reminiscências particulares no seu exílio em Luanda, pois ele fora criado, com todo carinho por sua irmã Cambo, mas era maltratado por Funji. Outro elo afetivo é a relação do local de seu nascimento com a proximidade geográfica de uma antiga capital do reino Dongo: “Posso dizer que sou um filho do Kuanza, pois nasci no meio dele, nas ilhas perto de Maopungo, onde foi a capital de Jinga em épocas de defesa, Pungo Andongo, a terra dos enormes pedregulhos negros que pareciam escalar até o céu”. (Pepetela, 1999: p. 259).

Suas perspectivas sobre a rainha são mescladas com respeito e admiração, mas também, com mágoa, pois Jinga acabou com a vida de seu pai, um missionário napolitano: “[...] louco pelo mato e pelas negras, que ela mandou matar, dizem sem prova nenhuma, talvez por me ter gerado, pois provocou grande escândalo na corte um padre que dizia uma coisa e fazia outra”. (Pepetela, 1999: p. 34). Por acreditar ser motivo de orgulho do patrão por tê-lo ganhado da soberana, o narrador, às vezes, refletia sobre a sua existência como ser humano para o seu amo: “Mas existia mesmo? Só pelo orgulho do meu dono, que fazia questão em me apresentar a novos conhecimentos, um escravo que a Jinga me deu. Não era qualquer um que tinha um escravo como oferta da poderosa e lendária rainha Jinga Mbandi, talvez ele fosse o primeiro europeu a poder se gabar disso”.

Em suas reflexões existenciais sobre sua condição de escravo, recorda-se de que não era o único a ser presenteado para europeus, pois havia aquele lendário episódio da cadeira-escrava. O narrador o comenta, de forma irônica e paródica: a atitude desprezível e arrogante do governador, que apesar de sentir da princesa, ficou feliz com o lucro pessoal financeiro

Se não contarmos aquela escrava que ficou esquecida no salão nobre do governador, quando Jinga veio a Luanda, ainda não era rainha, negociar um acordo em nome do rei seu irmão, e o chefe português, confortavelmente sentado num cadeirão de veludo carmesim, segurando um bastão com punho de ouro, desprezivelmente lhe deixou de pé. O meu rei fez um gesto para a comitiva e uma escrava aproximou e se pôs de quatro, para ela poder sentar nas costas. Terminada a audiência, Jinga ia se retirar, quando o governador disse e então essa mulher fica aí? O meu rei fez um gesto de desdém e replicou, nunca levo as cadeiras em que me sento. O português só não sufocou de raiva porque levou certo tempo a entender. E depois fez as contas para saber quantos cruzados poderia valer a escrava. Mentalmente agradeceu a generosidade do meu rei, que ele apostrofou no entanto de arrogante. (Pepetela, 1999: p. 124 e 125).

Com poder de vida e morte sobre os escravos, Jinga os respeitava quando escapavam

dos portugueses e entravam em suas terras. Sua palavra sobre a liberdade adquirida era definitiva: “Mas Jinga não tinha querido vender os escapados do arraial do Gango, pela fuga se tinham tornado livres e não era ela que os entregaria para as grilhetas”. (Pepetela, 1999: p. 97). O cronista recorda a opinião da rainha sobre a loucura dos brancos por metais preciosos:

Angolanas (1680), bem como um glossário, anexado ao final, que contém 42 palavras, em sua maioria no idioma kimbundi, relativas à fauna, flora, cultura e religião nativa.  

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Quem não se interessa por notícias de ouro e prata? São palavras que fazem os olhos dos brancos brilhar e as bocas se humedecerem, já notei há muito tempo. Lembro, o meu rei, que é a rainha Jinga, sempre dizia, era eu muito pequeno mas já percebendo algumas coisas, os brancos têm muita fome de ouro e de prata, chegam a um sítio e perguntam logo, não por comida, mas por ouro. Um dia vou obrigar um a comer isso em grande quantidade. Para ver se fica mais feliz. Ou se come até morrer. (Pepetela, 1999: p. 37).

O escravo-narrador condena a criação de uma imagem negativa de Jinga no processo de legitimação da conquista: “Os portugueses dizem ela é canibal, uma víbora em que se não pode confiar, mas eu tenho outra versão. Aliás, ainda não vi inimigo desconsiderado demônio”. Revela que ela quer ser chamada de rei: “[...] porque só rei manda, e ela não tem nenhum marido que mande nela, ela é que manda nos muitos homens que tem no seu harém e que chama de minhas esposas. É Rei Jinga Mbandi e acabou”. (Pepetela, 1999: p. 23).

Conclusão.

A assimétrica relação de alteridade entre o “eu”, o colonizador europeu, e o “outro”, o colonizado angolano, presentes no encontro entre a princesa-diplomata Jinga e o governador português no ano 1622, são apresentadas, por meio de distintas linguagens em narrativas verbais e imagéticas. Duas são as narrativas escritas: a primeira, sob o olhar de um historiador renascentista, Padre João Antonio Cavazzi, em sua obra ilustrada, Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola, publicada em 1687, e a segunda, na perspectiva de um escritor contemporâneo Pepetela, em A gloriosa família: o tempo dos flamengos, “novo romance histórico”, de 1998.

A imagem da altiva princesa diplomata, que se tornou rainha em 1623, um ano após seu batismo em Luanda, foi cristalizada, não somente nos textos literários acima mencionados, mas também em gravuras anônimas na obra de Cavazzi, com destaque para a famosa cena da cadeira, e a de sua conversão ao cristianismo (1622). Algumas gravuras são, segundo alguns autores, de punho do capuchinho italiano. (Almeida, s.d.: p. 3). A inclusão de ilustrações atendia à “cultura da curiosidade” européia sobre os “novos mundos” dos bárbaros antropófagos americanos e africanos, a serem evangelizados.

A iconografia, como simbologia e representação, possibilita o acesso a ideias, posturas e mentalidades do passado (Burke), pois as imagens são extensões dos contextos sociais em que elas foram produzidas. Às imagens são agregadas valores e significados.

A gravura 1- (imagem de caráter laico) representa as discussões para um acordo geopolítico: o encontro entre um homem estrangeiro (Sousa) e uma mulher nativa (Mbandi), para firmar um tratado de armistício. A Ngambele –diplomata- Jinga não aceitou as almofadas oferecidas como assento, segundo costume etíope (local), pois se sentiu inferiorizada, e sentou nas costas de uma escrava, para estar em situação de igualdade com o governador. Tampouco aceitou a proposta lusa de pagamento de tributo anual, pois a sua nação oferecia amizade, e não submissão. Com tais atitudes desenvoltas, ela mostrou conhecer seu poder como mulher, embaixatriz e membro da realeza, que estabelece uma situação de simetria com os portugueses.

A gravura 2- (imagem de caráter sacro), a do batismo, sinaliza, no contexto socioeconômico, cultural e colonial de Angola, na metade do século XVII, um processo de transformação simbólica e real, em que Jinga “renega sua crença” nas divindades de seu povo, e assume a religião monoteísta do invasor. A princesa mbundu, que nunca aprendeu o idioma português, recebeu, após a cerimônia, uma identidade lusa: o nome Anna de Sousa, Anna em homenagem à madrinha Anna da Silva, e Sousa, como uma espécie de filha adotiva do

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governador. O rito do batismo cristaliza a entrada da bárbara antropófaga no mundo civilizado cristão europeu.

A pintura tem uma dupla mensagem: o trabalho em conjunto de duas instituições no processo colonial: o poder real – a Coroa portuguesa- representado pelo governador, e o poder temporal – a Igreja católica, com participação do religioso e do sacristão. Na cena estão línguas, atuando na tradução de mundos e ideologias diferentes. A coroa, que é o símbolo de elevação espiritual, e de dignidade, era usada por soberanos europeus. A presença dela nas mãos de uma mulher, ao lado de Jinga, significa que ela já é rainha. Esse adorno real, inclusive, tem, no centro uma pequenina cruz, que é o símbolo do cristianismo. No ano de 1622, Jinga ainda não era rainha. Como no caso da primeira gravura, o ilustrador não leu os manuscritos de Cavazzi, e desenhou a cena, que deveria representar o batismo, sem informações mais detalhadas sobre a biografia de Jinga.

No romance histórico contemporâneo revisionista, A gloriosa família, (“metaficção historiográfica”, Hutcheon) o autor parodia a rainha Jinga e suas irmãs, Mocambo (Bárbara) e Fungi (Engrácia), ao retratar a saga da família Van Dum, em Luanda, na época da presença dos holandeses (1641-1648).

Na cena da cadeira-escrava, o sentimento de superioridade européia, presente na atitude do governador Sousa se faz presente, ao não colocar uma cadeira para a diplomata mbundu no encontro histórico de paz (1622). No entanto, segundo informações do narrador-escravo, ele assumiu a condição de explorador pré-capitalista e corrupto, ao aceitar a oferta de uma “peça”, e computar para si o lucro e não para a coroa portuguesa.

Jinga aparece, por meio das vivências do narrador, em discurso de duas facetas entrelaçadas: uma baseada em fatos transmitidos por vias orais e documentais, e, outra, por personagens envolvidas no comércio negreiro e nos combates. A rainha guerreira e comerciante surge como pessoa humanizada e contraditória: altiva na diplomacia; organizada com o seu exército; rigorosa no trato com os seus; justa com fugitivos dos portugueses; leal com os membros do pacto comercial e militar, e “vingativa” com os não-respeitadores da ética no tráfico negreiro e com os assassinos de sua irmã. Ou seja, uma mulher que lutou por justiça e para se impor no mundo patriarcal.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Carlos. A natureza africana na obra de Giovani António Cavazzi: Um discurso sobre o homem. Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/carlos_almeide.pdf. Acesso em março de 2011. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução de Vera Maria Xavier dos Santos e revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. Bauru, São Paulo: Edusc, 2004. CAVAZZI DE MONTECUCCOLO, João António. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução, notas e índices por Graciano M. de Leguzzano. Introdução bibliográfica por F. Leite de Faria. Lisboa: Junta de Investigações de Ultramar, 1965. 2 vs. Contém gravuras de autoria anônima.(Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga; 2, Secção de Lisboa). HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LEVI, Joseph Abrahan. Padre Giovanni Antonio Cavazzi (1621-1678) nos reinos do “Congo, Natamba et Angola”: primeiros contatos europeus com a África. Estudos Portugueses e Africanos, Campinas, 33- 34, p. 29-47, jan.dez. 1999. PEPETELA. A gloriosa família: o tempo dos flamengos. 2. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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