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IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS: NOVOS HORIZONTES NA INTERAÇÃO COM A IMAGEM DIGITAL JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Profª . Drª . Maria do Carmo de Siqueira Nino. RECIFE 2012

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Page 1: IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS...IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS: NOVOS HORIZONTES NA INTERAÇÃO COM A IMAGEM DIGITAL JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES Dissertação

IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS:

NOVOS HORIZONTES NA INTERAÇÃO COM A IMAGEM DIGITAL

JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do títulode Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco,

sob a orientação da Profª . Drª . Maria do Carmo de Siqueira Nino.

RECIFE

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES

IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS:

novos horizontes na interação com a imagem digital

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Profª. Drª. Maria do Carmo de Siqueira Nino.

Recife

2012

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Catalogação na fonte

Andréa Marinho, CRB4-1667

R696i Rodrigues, Joana Francisca Pires Imagens contemporâneas e outros sentidos: novos horizontes na interação com a imagem digital / Joana Francisca Pires Rodrigues. – Recife: O Autor, 2012.

102p.: il.; 30 cm.

Orientador: Maria do Carmo de Siqueira Nino. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco,

CAC.Comunicação, 2012. Inclui bibliografia.

1. Comunicação. 2. Fotografia. 3. Fotografia – técnicas digitais. I. Nino, Maria do Carmo de Siqueira (Orientador). II. Titulo. 302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2012-87)

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora do Trabalho: JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES

Título: Imagens Contemporâneas e Outros Sentidos: novos horizontes na interação com

a imagem digital

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Professora Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino.

Banca Examinadora:

____________________________________Maria do Carmo de Siqueira Nino

____________________________________Gentil Alfredo Magalhães Duque Porto Filho

____________________________________José Afonso da Silva Junior

____/____/____Data da aprovação

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A Bel,

que me ensinou o que eu sei e o que eu não sei mais

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Agradecimentos

Sentar e agradecer, repetindo os clichês mais embaraçosos, é um dos momentos mais especiais de um trabalho conquistado. Não por se cumprir qualquer compromisso programático, mas pelo sentimento de redenção mesmo. De dizer finalmente as questões que se tornaram compreensíveis durante o processo, após todo o esforço que não foi à toa.

Antes de mais nada, é fundamental agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM da UFPE) por ter me dado a oportunidade e completo apoio para a realização dessa pesquisa. Agradeço igualmente à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE), pelo incentivo financeiro que tornou a pesquisa viável.

Uma vez escrevi que existem três coisas que me interessam. A língua, a fotografia e o amor. Não necessariamente nessa mesma ordem e menos ainda com papeis pré-definidos.

Dessa tríade, duas me despertaram a atenção quase que simultaneamente, e vivem em conjunto como que unidas por casamento desde então. Foi ainda com olhar de adolescente que eu redescobri a língua e o amor. A linguagem como o lugar da constituição da subjetividade, como diria Bakhtin - o espaço do eu. O amor como o lugar de teste dessa subjetividade - o confronto com o outro.

"Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro" e não é possível falar só. Quando falamos, mesmo sozinhos, montamos um discurso que possa ser claro a um interlocutor imaginário, alguém que é outro, mesmo estando dentro da gente. É nessa presença externa - que pode ser nosso eu-obscuro ou uma pessoa-encantada qualquer - que encontro o "excedente da visão", um olhar que me completa e que me define.

Nesses agradecimentos, apresento aqueles que são o meu principal “excedente de visão”, os olhares que me formam e que, juntos, foram os principais responsáveis por isso tudo o que está escrito aqui, bem como por tudo o que eu um dia ainda vá escrever.

A mainha, por ser minha dupla e minha companheira, por todo o seu esforço em me fazer quem sou e por toda a sua dedicação em me fazer feliz. A Pedro e a painho, pelo amor que sinto por eles e por me ensinarem a ser família.

A Maria, por ter me ensinado que os guias podem nos tirar das situações mais adversas e nos fortalecer com doçura. A Afonso, por ter apontado um desvio fundamental para que eu encontrasse o meu trajeto verdadeiro. A Nina, por suas recomendações preciosas durante o processo de qualificação.

A Ceça, pela presença forte e amável na minha vida e pela inspiração que ela representa. A Sergio, por apoiar todos os meus projetos, mas principalmente por tornar minha família mais feliz. A Buga e a Tanya, pelo apoio fundamental nos momentos iniciais, quando esse trabalho não tinha sequer um formato.

A Helder por ter insistido em me ver como sou mesmo nos dias em que não fui eu mesma, mesmo nos dias em que eu não tive vontade nem de abrir meus olhos.

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A Carolina, por entender principalmente o que eu não preciso falar. A Alba, Daniel e a Lucas por deixarem meu coração mais tranquilo. A Cecília, por me completar em sangue e em pensamento.

A Rodrigo e a Alane, por terem compartilhado os mesmos desesperos, entre risadas e carinhos, mesmo à distância. A Manuela, por tudo o que ela é e por tudo o que tento ser por ela. A Eugênia e Milena, pela parceria em todos os momentos.

A Val, Priscilla, Maíra, Ana e Bella, por deixarem os meus dias mais poéticos, entre afazeres e amizades.

A Gatis, Raquel e Lu, companheiros de mestrado, com os quais dividi algumas da angústias e muitas das questões desse processo.

A Joana, Rodrigo, Mari e Camila, pela amizade e pelo carinho, que me fortaleceu em tantos outros momentos.

Aos amigos que, mesmo não participando diretamente, são valiosíssimos por sua presença constante: Tati, Suelen, Teresa, Mayumi, Marcia, Hilda, Patrícia e Larissa.

A Clovinho.

A Iracema, sempre.

A Chet por me mostrar a trilha, a Duane por me mostrar a prova. Essa dissertação é minha prova também, minha obra.

"Não tomo consciência de mim mesmo senão através dos outros". E, creio, essa relação pode chegar ao seu auge na presença, mesmo que cafona, do amor – o amor que me acompanha em todas as minhas decisões e que me faz feliz, por todas as pessoas que me amam e que eu escolhi de uma forma ou de outra amar.

"Para a palavra e, por conseguinte, para o homem nada é mais terrível do que a falta de resposta". Para o amor, nada é mais frustrante que a indiferença. Contamos com respostas por sabermos que, mais do que uma definição, uma resposta é uma prova de existência nossa no olhar e no mundo externo. Essas pessoas são as que me dão respostas, as provas de que eu existo. E nada é mais intenso do que se sentir existindo.

Com amor, Joana

(aspas de Bakhtin)

RESUMO

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A transposição da nossa cultura para o ambiente digital incentiva o surgimento de novas

dinâmicas de trato com os conteúdos culturais, as imagens entre eles. Entre as

consequências deste acontecimento está uma profunda modificação do nosso

relacionamento com o visual. O presente trabalho analisa as perspectivas que

acompanham essas transformações, buscando entender como as novas circunstâncias de

experiência com a imagem, reproduzida e difundida em meio digital, se organizam no

tempo e no espaço das pessoas, quais as potencialidades de interação com a imagem que

elas trazem e quais as consequências disso nos nossos hábitos perceptivos. Com o

objetivo de refletir sobre a fotografia, não por seu viés produtivo, mas pelas novas

circunstâncias da interação com essas imagens e as alterações que essas mudanças

provocam no nosso relacionamento com as obras, faz-se a relação entre a análise

proposta por Fred Ritchin sobre as potencialidades hipertextuais da fotografia numérica

e a abordagem de Edmond Couchot a respeito das recentes transformações que estas

imagens têm produzido nos nossos hábitos culturais e, portanto, perceptivos. Para

ilustrar os percursos da pesquisa, analisaremos o trabalho do artista norte-americano

Jonathan Harris, um dos principais nomes nas Artes Visuais contemporâneas e

desenvolvedor de projetos que reimaginam, reconfiguram e potencializam nossa

interação com a tecnologia.

Palavras-chaves: hiperfotografia, hiperconteúdos, interação, numérico

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ABSTRACT

The implementation of our culture for the digital environment encourages the

emergence of new dynamics of dealing with cultural content, including images. Among

the consequences of this event there is a profound change in our relationship with the

visual. This work aims to examine the prospects that accompany these changes, seeking

to understand how the new circumstances of experience with the image, reproduced and

difused in digital form, are organized in time and space of people, what is the potential

for interaction with the image they bring and what are the consequences in our

perceptual habits. In order to analyze the images in the new circumstances of our

interaction with them, and consequently the changes caused in our relationship with the

works, rather than their production, we try to relate the analysis proposed by Fred

Ritchin on the potential hypertext of digital photography with the numerical approach

proposed by Edmond Couchot do about recent changes that have produced these images

in our cultural and therefore perceptive habits. In order to illustrate the paths of

research, we will analyze the work of the american artist Jonathan Harris, one of the

leading names in contemporary visual arts and proposer of projects that re-imaginate,

reconfigure and enhance our interaction with technology.

Keywords: hiperphotography, hipercontents, interaction, numerical

SUMÁRIO

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1. Apresentação.............................................................................................................11

a. Imagens: guias no mundo........................................................................................11

2. Eixo 1: Uma introdução necessária........................................................................16

a. Imagens cotidianas: os usos e funções da

fotografia...........................................16

b. Apreciação: o retrato e seu status social..............................................................18

c. Difusão: a febre dos postais.................................................................................23

d. Conservação e armazenamento: os álbuns fotográficos......................................24

e. Desdobramentos...................................................................................................25

3. Eixo 2: Desenvolvimentos sobre formatos digitais.................................................27

a. O Contexto da Novidade: novas mídias, novas

tecnologias.................................29

b. Horizonte inicial: o digital e suas

virtualidades....................................................34

4. Eixo 3: Hiperconteúdos e a hiperfotografia............................................................38

a. A escrita eletrônica.................................................................................................39

b. Do leitor ao navegador.........................................................................................41

c. Sobre a morte do autor e outros assassinatos.......................................................43

c.1. Direitos autorais na cultura da tecnologia.......................................................48

d. A quebra da página e a questão das instabilidades do formato digital – ou as

imaturidades do hipertexto..........................................................................................51

e. Da natureza das imagens digitais.........................................................................55

f. As novas potencialidades da fotografia: a hiperfotografia..................................61

5. Eixo 4 – Novas dinâmicas perceptivas....................................................................75

a. As questões do feedback e a sensação de invasão da informação.......................81

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6. Conclusão: Mudanças de perspectivas ou considerações finais

inacabadas.................................................................................................................85

a. Historia e subjetividade.......................................................................................92

7. Referências

Bibliográficas......................................................................................98

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Apresentação

One never sees things, one always sees them through a screen. Alberto Giacometti

a. Imagens: guias no mundo

Nossa relação com as imagens é, geralmente, intuitiva e natural. Criamos imagens até

quando usamos a imaginação. Criamos imagens para nos comunicarmos, para dar conta

da nossa vontade de conhecer mais, de compreender mais, são elas que facilitam o

nosso contato com o que está à nossa volta.

As imagens são superfícies que pretendem representar algo, afirmou Vilém Flusser no

livro Filosofia da Caixa Preta (2002). Apesar do risco de má interpretação, a palavra

representação encontra-se sempre referenciada quando tratamos o conceito de imagem.

Perceber a imagem como uma representação é admitir que ela sempre remete a alguma

coisa. Esse algo pode existir ou não - e o próprio conceito de existir, nesse caso, é

bastante flexível, afinal uma imagem criada pela mente existe naquela mente.

De todas as possibilidades de abordagem do conceito, detenho-me neste estudo àquela

que vê a imagem como uma superfície de contato com o mundo, um plano de

representação que, em suas duas dimensões, agrega dezenas de significados. Essa

conceituação nos levaria às telas de pintura, às fotografias ampliadas e impressas, às

imagens eletrônicas exibidas em computador, tanto no formato de imagem em

movimento, como de imagem fixa.

Há quase 50 anos, o escultor Alberto Giacometti foi capaz de perceber algo que

sintetizaria nossa relação com a imagem naquela época e que acredito se aplicar mais

ainda à sociedade contemporânea em crescente interação com ambientes e formatos

digitais, vivendo a adaptação de nossa cultura para formas de produção, distribuição e

comunicação mediadas pelo computador (MANOVICH, 2002, p.43). “Nós nunca

vemos as coisas, nós vemos as coisas através de uma tela”, disse Giacometti, referindo-

se ao papel que a fotografia, ainda analógica, tinha assumido na vida de pessoas que,

mais do que preocupadas com viver experiências, estavam ocupadas com o registro

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dessas experiências. Em O museu imaginário (2011), André Malraux abordou, entre

outras questões, o papel da fotografia na divulgação do conhecimento sobre a arte.

Segundo Flusser, as imagens são instrumentos criados para orientar o homem no mundo

(2002, p. 9), ou seja, servem para dar sentido e localização à nossa existência. Existem

desde que o homem existe, desde que o homem, consumido e impregnado por tudo o

que viu, se preocupou em também inserir no mundo um pouco de ‘como’ ele via.

Se, durante muito tempo, a produção de imagens foi restrita apenas aos que dominavam

saberes específicos, foi com a invenção da fotografia que a produção de imagens se

tornou mecânica e entrou, com a ajuda de uma máquina, pela primeira vez, na vida

cotidiana. Desde então, nossa produção imagética mantém uma relação muito íntima

com a tecnologia.

Qual a realidade da imagem hoje? Pergunto por uma sincera dificuldade de me

conformar com as definições e limites da própria palavra imagem. Meio de expressão

cultural e artística durante toda a história humana, foi com a invenção da fotografia que

a criação de imagens viveu o forte impacto da mecanização, tornando-se uma prática

simples e acessível a uma parcela bem maior da população. A produção técnica da

imagem ganhou repercussão gigantesca e se sobressaiu em quantidade quando

comparada a técnicas de criação de imagem até então tradicionais, como a gravura e a

pintura.

O impacto da fotografia foi tamanho que fez com ela fosse capaz de, em certa medida,

“tomar o lugar” de quase toda a produção de imagens anterior a ela, no momento em

que a presença da obra cedeu espaço à sua imagem registrada em película, e as pessoas

passaram a ter muito mais contato com a foto do quadro da Mona Lisa do que com a

própria Mona Lisa. Por isso, creio ser praticamente impossível falar de imagem na

sociedade pós-industrial sem falar, inevitavelmente, de fotografia.

A situação se desloca ainda mais quando o formato digital passa a massivamente tentar

agregar nossa produção cultural. É, na verdade, um processo semelhante ao vivenciado

pela pintura quando essa passou a ser fotografada para fins de divulgação. Num

processo praticamente equivalente, a imagem passa agora a ser digitalizada, virar

código numérico, display eletrônico. Mais que isso, não depende mais sequer do

aparelho fotográfico, podendo ser completa simulação, manipulação de pixels.

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A fotografia será a base deste texto sempre que menciono a palavra imagem, não por

simples predileção pelo formato, mas porque acredito que ela foi a imagem que melhor

se adaptou às transformações e novas estratégias impostas pela sociedade

contemporânea, cada vez mais repleta de hibridismos entre mundos on e off line – ou

entre o mundo não-mediado e o mundo mediado pelo computador.

Como nos ensinou Flusser (2009), a fotografia foi a primeira imagem técnica, ou seja, o

primeiro tipo de imagem a ser produzido por aparelhos.

Historicamente, as imagens tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas são pós-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo (FLUSSER, 2009, p.13).

Flusser compara, quanto à importância histórica, a invenção da imagem técnica com a

invenção da escrita. “Textos foram inventados num momento de crise de imagens

(tradicionais), a fim de ultrapassar a idolatria. Imagens técnicas foram inventadas num

momento de crise dos textos, a fim de ultrapassar o perigo da textolatria”, afirma

(FLUSSER, 2009, p.17). Apesar de todos os desenvolvimentos tecnológicos

posteriores, a fotografia manteve-se como base da maioria dos formatos de imagens

existentes atualmente (entre cinema, vídeo, etc.) e adaptou-se a todas as transformações

de linguagem impostas a formas de expressão humana mesmo após a transcodificação

digital da nossa cultura.

É na perspectiva de propor uma continuidade contextual que localizo as imagens

digitais como prosseguimentos históricos das imagens técnicas, introduzindo um novo

universo de produção, publicação e apreciação de conteúdos: o computador e sua rede

de troca de informação, o ciberespaço. O ciberespaço, segundo o conceito utilizado por

Piérre Levy, é o “novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos

computadores” (1990, p.17), abrigando a infra-estrutura material da comunicação

digital, em seu universo de informações e sujeitos que o alimentam. Segundo Martin

Dodge e Rob Kitchin, o termo ciberespaço significa etimologicamente "espaço

navegável", derivado da palavra grega Kyber (Navegar). Entretanto, segundo Pires

(2009, p. 57): “foi William Gibson, em sua novela ‘Neuromancer’ escrita em 1984,

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quem inaugurou o uso do termo ciberespaço, que é relativo ao navegável, espaço digital

das redes computacionais acessíveis a partir de um computador”.

Cada vez mais controlada pelas tecnologias do cálculo automático, nossa relação com as

imagens tem se configurado a partir de novos modos de utilização que induzem

transformações nos nossos hábitos culturais. Produzir, reproduzir, conservar e difundir

imagens são práticas vivenciadas de formas diferentes na sociedade contemporânea.

O objetivo deste estudo é analisar as perspectivas que acompanham essas

transformações, buscando entender como as novas circunstâncias de experiência com a

imagem, reproduzida e difundida em meio digital, se organizam no tempo e no espaço

das pessoas, quais as potencialidades de interação com a imagem que elas trazem e

quais as consequências disso nos nossos hábitos perceptivos.

O percurso metodológico proposto aqui percorrerá quatro eixos. O primeiro eixo,

introdutório, tem o objetivo de buscar uma referencialidade histórica para que possamos

embasar a ideia de que o formato digital transformou realmente nosso relacionamento

com a fotografia. Esse eixo introdutório vai analisar os hábitos sociais relativos à

fotografia nos séculos XIX e XX.

No segundo eixo, propomos uma análise da linguagem numérica e as transformações

que ela operou nas imagens e, por extensão, a todos os conteúdos culturais das

sociedades ocidentais. No terceiro eixo, propomos explicitar as potencialidades da

fotografia em seu formato numérico e conectado em rede, a partir da relação do

conceito de hiperfotografia (RITCHIN, 2009) com a análise de alguns exemplos

encontrados durante a pesquisa, entre eles, a obra do artista Jonathan Harris. Somente

então, no quarto e último eixo do estudo, abordaremos as transformações que essas

mudanças têm produzido nos nossos hábitos perceptivos.

Esse percurso se mostrou o que mais se encaixava ao objetivo da pesquisa de analisar a

fotografia não por seu viés produtivo, mas pelas circunstâncias de novas experiências na

visualização dessas imagens e as alterações que essas mudanças provocam no nosso

relacionamento com as obras fotográficas.

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Eixo 1: Uma introdução necessária

a. Imagens cotidianas: os usos e funções da fotografia

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As transformações estruturais na passagem da imagem química para a imagem

numérica produziram formas diferentes de interação com a imagem, cuja produção e

circulação passaram também a ser mediadas pelo computador. Transitamos da

materialidade da fotografia analógica para a flexibilidade da fotografia digital, que

requer não apenas diferentes usos cotidianos, como também diferentes noções sensoriais

de trato com a imagem.

Traçar um marco referencial sobre os diferentes relacionamentos estabelecidos com a

imagem fotográfica ao longo de sua história é o ponto de partida para que possamos

compreender o impacto da revolução digital na produção contemporânea de imagens.

Para ter uma dimensão mais pontual desse impacto, analisarei a relação do sujeito com a

fotografia no cotidiano social ainda no século XIX, como por exemplo, a tradição de

manter galerias de retratos permanentes de familiares e amigos, desenvolvida a partir da

carte de visite, e que tem sido paulatinamente substituída por álbuns de família em redes

sociais.

Por acreditar que a divisão tradicional da fotografia como arte ou documento,

antagonismo bastante proposto no século XIX, é questionável diante dos hibridismos da

produção fotográfica contemporânea, para fazer essa retomada histórica, privilegiarei

nossa relação com a fotografia como imagem, partindo de aspectos dos usos sociais, da

difusão e conservação das imagens já produzidas, sem me direcionar à observação da

fotografia como atividade, prática de produção de conteúdos.

Me apoio, para dar conta desse objetivo, na defesa proposta por François Soulages no

livro Estética da Fotografia de uma pesquisa que não se detenha entre as “fotografias

sem arte” ou as “fotografias que pertencem a uma obra fotográfica” (2010, p.14). “Não

se pode pensar a fotografia a partir de uma única obra ou de um certo tipo de obras”,

afirma o autor. De onde penso tirar uma boa justificativa para não mergulhar em um

campo fotográfico específico dentro deste trabalho, visto que o objetivo é analisar as

condições de modalidades de reprodução e difusão das imagens em ambiente digital e

as interações que elas possibilitam.

Essa fotografia faz parte do cotidiano social, selecionada por suas dimensões afetivas

(seja na documentação de memórias do sujeito, nos álbuns e galerias de família, ou no

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colecionismo de obras de arte e vistas geográficas em postais fotográficos – ambas

práticas submetidas a critérios, em sua maioria relativos ao gosto).

Para analisar essas transformações históricas no trato da imagem fotográfica, propomos

a observação de três aspectos importantes na relação cotidiana e complexa que a

sociedade estabeleceu com a fotografia: a apreciação, a difusão e a conservação das

fotos.

Essa abordagem faz-se importante ao procurar entender como lidávamos com a imagem

no passado, como a manuseávamos, como a conservávamos, como interagíamos com

ela, para que, a partir dessa abordagem, possamos perceber as mudanças no nosso

relacionamento com as imagens digitais, as formas emergentes de difusão, cópia,

armazenamento, conservação, etc.

Durante o século de XIX, podemos identificar três etapas nucleares na relação complexa

entre a fotografia e a sociedade, como apontadas por Annateresa Fabris (2008, p.17). De

1839 à década de 1850, a fotografia despertou o interesse de pequeno número de

amadores, provenientes das classes abastadas, pagantes dos preços cobrados por artistas

fotógrafos como Nadar, Le Gray, Carjat. Com a carte de visite de Disdéri passou-se a

um segundo período, em que a fotografia alcança uma dimensão industrial, com

barateamento do produto e vulgarização dos ícones fotográficos. O terceiro período

corresponde à década de 1880, momento da massificação e da consolidação da

fotografia como um fenômeno comercial. Nessa etapa, a busca pelo status de arte

também se tornou intensa. É nesses três momentos que proponho localizar a nossa

análise sobre apreciação, difusão e conservação.

b. Apreciação: o retrato e seu status social

Durante os seus primeiros dez anos de existência, período de afirmação inicial, a

fotografia atraiu um público restrito, diretamente interessado nos emblemas da nitidez e

da credibilidade que só um processo químico e mecânico proveria com tanta rapidez.

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Nesse momento, as experiências fotográficas estavam pautadas em três aspectos que

negociavam entre si: uma herança artística, presente na relação da prática com a câmara

escura, já utilizada na pintura; uma lógica industrial, muito relacionada ao consumo

icônico que ganhava força com a litografia; e um teor científico, presente no processo

químico e nas teorias óticas empregadas pela fotografia (VIRILIO, 1994, p. 104-105).

A conjunção desses três fatores justifica a afirmação de que a fotografia se apresentou como a melhor imagem da sociedade industrial, ícone do crescimento das metrópoles, do desenvolvimento de uma economia monetária, industrializada, influenciada pelas mudanças no conceito de espaço e de tempo, pelas revoluções das comunicações e pela consolidação do modelo democrata burguês (ROUILLÉ, 2009, p. 16).

Mas no cotidiano da maior parte da população, a fotografia ainda não tinha alcançado

uma presença tão marcante. Apesar de ter custos inferiores à produção de retratos à

mão, o daguerreótipo ainda era um método de preços altos, que não conseguiu se

popularizar imediatamente. Os primeiros fotógrafos eram pintores, e a grande maioria

de seus clientes pertencia à burguesia. Dentro dessas casas, a fotografia começou a

consolidar o seu papel de afirmadora de um estatuto social. Mas apesar de ter surgido

sob o título de “arte democrática”, a fotografia só entrou efetivamente no cotidiano das

pessoas com as práticas da carte de visite. Na segunda metade do século XIX, quando a

competitividade entre os estúdios e o avanço da técnica incentivaram a redução dos

preços cobrados pelos retratos, que, durante essa primeira fase, eram bem acima das

condições salariais da população mais pobre1.

No Brasil, o pionerismo da Família Imperial no interesse pela fotografia e o montante

de gastos dispensados pela realeza com essa prática davam indícios de quão dispendioso

era manter essa atividade. “Segundo os livros da Casa Imperial, no período de 1848 a

1867, gastou-se em fotografias e álbuns de fotos uma soma correspondente a 14% da

verba oficial alocada todo ano na rubrica orçamentária Professores, etc. para a Família

Imperial” (MAUAD, 1997, p. 198).

Em artigo publicado no livro História da vida privada no Brasil, Ana Maria Mauad

analisa, dentre outros documentos históricos, álbuns de fotografias das elites cafeeiras 1 O valor de seis retratos pequenos poderia custar até dez vezes o salário médio de um empregado de uma empresa de pequeno porte na Europa (FABRIS, 2008, p. 45)

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do Vale do Paraíba, durante o Segundo Reinado. A respeito de dois álbuns de duas das

famílias mais importantes nesse contexto (os Werneck e os Avellar), a autora afirma:

Nestas séries estão retratados os membros da família e toda a rede social que a troca de fotografias teceu, apontando para o fato de que o objetivo da fotografia era também a circulação entre os pares de uma imagem considerada ideal, consubstanciando-se nesse circuito o comportamento necessário à sedimentação da classe senhorial enquanto fração social dominante. (MAUAD, 1997, p. 216-217)

Tais fotografias eram passadas de pais para filhos como um legado, com comprovação

histórica e relevância na memória afetiva da família, repleto de poses e técnicas de auto-

representação.

Apenas no início dos anos 1860, a fotografia começou sua ascensão como uma

economia de mercado, conquistando o seu espaço como prática financeiramente mais

democratizada. Essa fase marcou a adaptação do retrato às leis mercadológicas,

incentivada pela difusão da carte de visite. Em formatos menores, com clichês

compostos por entre quatro a dez retratos ao invés de um único retrato maior, esse

modelo, patenteado por Disdéri em 1854, barateou os custos e transformou a fotografia

numa moeda de alta circulação, incentivando o acesso de grande parte da população ao

retrato.

A carte de visite promove uma repetição quase vulgar de ícones fotográficos,

difundindo o uso exaustivo de poses estereotipadas, cenários e objetos simbólicos que,

em muitos casos, simularam um status social distante da realidade. A classe menos

favorecida passou não apenas a ter acesso ao retrato, mas a utilizá-lo como uma

ferramenta de simulacro.

Esses pequenos retratos materializaram a fotografia como papel, palpável, colecionável,

de fácil circulação e permuta. Tornaram-se objetos socialmente emblemáticos, com

valor expositivo no cotidiano social.

Todos se encantaram em multiplicar os exemplares de sua graciosa pessoa, e, no mundo elegante, enviava-se o retrato para facilitar suas visitas por procuração. Logo veio a ideia de reunir esses retratos e de

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fazer uma galeria com eles, e de manter em exposição permanente de seus amigos e de suas relações (D’AUDIGIER, apud Rouillé, 2005, p.54).

Em casa, as galerias genealógicas passaram a suprir a ausência de certos membros da

família, inclusive os mortos. Expostas em paredes, ou em móveis especiais, algumas

galerias reafirmaram uma prática de adoração às raízes e ganharam importância como

efígies familiares (FABRIS, 2008, p.42). Apesar de ausente, o membro da família se

fazia presente como matéria, registrada naquele papel carregado de tempo e de

afetividade.

Paralelamente, a elite começa a buscar técnicas de diferenciação já que a fotografia não

era mais de seu domínio exclusivo. Começa um movimento elitista de valorização do

trabalho dos artistas fotógrafos, cujas obras eram tratadas como verdadeiras pinturas –

não é à toa que nesse período, começa a se fortalecer o trabalho dos pictorialistas, que se

utilizavam não apenas do mesmo repertório, mas também de algumas técnicas da

pintura para produzir fotografias retocadas, pouco nítidas, com recorrência de

paisagens, naturezas mortas e retratos. Ao contrário do trabalho de estúdios mais

baratos - extremamente serializado - essas fotografias se apresentavam como prova da

criação do artista e reforçavam o status social de quem as podia pagar.

Em sua análise das práticas de auto-imagem da elite brasileira nas décadas de 1860 a

1890, Ana Maria Mauad afirma que, em alguns casos:

Antes de ser fotografada, a elite cafeeira do Vale [do Paraíba] foi pintada por Barrandier, artista francês que viajou pela região por volta de 1840. Seus retratos figuravam nas paredes das fazendas, sendo mais tarde fotografados pelos próprios fotógrafos itinerantes, como uma forma de adequar a pintura à nova função da imagem, que não era só de ostentação no âmbito doméstico, mas de circulação numa esfera mais ampliada (MAUAD, 1997, p. 225).

A carte de visite incentivou uma circulação mais intensa entre os retratos que, trocados

entre pessoas, passavam a ter uma relevância social ainda maior. Era comum que

pessoas enviassem a parentes e amigos o seu retrato como forma de garantir o seu

espaço no seio familiar e nos demais círculo afetivos. Esse movimento de troca 20

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reafirmou uma relação íntima entre a fotografia e o dinheiro, o que seria segundo Gilles

Deleuze a característica essencial à arte industrial (1985, p. 104).

Mauad observa também que, nessas fotografias de pequeno porte, era comum ver, além

do retrato, pequenas anotações dos donos das imagens, seja para identificar os

personagens, retificar identificações, ou registrar pequenas dedicatórias. A fotografia era

um objeto palpável, e como tal, deveria ser manuseada. Estudioso da fotografia como

um objeto vernacular, Geoffrey Batchen lembra que:

Algumas vezes, essa escrita simplesmente fornece à fotografia uma citação que a identifique (“Eu”) ou uma data. Em outras ocasiões, esse ato permite quem escreve de adicionar humor ou sentimento a uma imagem ordinária, ao colocar palavras na boca do sujeito da foto ou através da pura pungência das palavras (“Enfim”, por exemplo) (2004).2

Em suas pesquisas, Batchen se dedica bastante ao que chama de sculptural

photographs, ou em tradução livre como fotografias esculturais. Essas fotografias são

objetos do cotidiano do século XIX que além da imagem, eram vinculadas a outros

materiais que adicionavam texturas ao manuseio das fotografias, tais como pedaços de

tecidos, mechas de cabelos, restos de algum objeto pessoal capazes de remeter o

observador a lembrar mais ativamente as pessoas retratadas. “E ao incluir essas texturas

extras, elas transformavam ver em uma forma de toque. Mesmo quando isso está atrás

de um vidro, você imagina a sensação do cabelo ou acariciando aquela seda bordada”

(Idem, 2004)3.

Num trecho fundamental do livro Forget Me Not, Batchen afirma:

[...] a capacidade do objeto de provocar rememoração, por si só dá a essas fotografias substância e textura, tornando-as tocáveis e quentes, e permitindo passado e presente a coabitar na vida doméstica do dia-a-dia. [...]Vale a pena refletir sobre o papel do toque na experiência do objeto fotográfico.4 (2004, p.31)

2 “Sometimes this writing simply provides a photograph with an identifying caption (“Me”) or a date. On other occasions it allows the writer to add humor or sentiment to an otherwise ordinary image, by putting words in the subject’s mouth or through the sheer poignancy of the words themselves (“At Rest,” for example)”. Em entrevista a Cabinet Magazine, disponível em: http://www.cabinetmagazine.org/issues/14/dillon.php

3 “And by including these extra textures, it turned looking into a form of touch. Even when it’s behind glass, you imagine feeling this hair or stroking that embroidered silk”. Idem.

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O que se pode apreender dessa abordagem que Geoffrey Batchen faz dos objetos

fotográficos é a importância do gesto na interação com as fotografias no cotidiano da

sociedade do século XIX. Essa presença gestual não estava contida apenas no ato

fotográfico (como a pincelada está contida no ato da pintura), mas também nos atos

sociais da fotografia que sua apreciação pressupunha. O ato de tocar uma imagem como

um objeto provocou uma interação especial em que “ambos dedos e olhos

desempenham um papel na percepção” (BATCHEN, p.31).

c. Difusão: a febre dos postais

Muitas fotografias, a partir de 1870, começam a ser editadas em cartões postais. A

origem dessa prática ainda é controversa. Afirma-se que em 1875, um livreiro de

Oldenburg, na Alemanha, teria sido o primeiro a editar duas séries de 25 cartões postais

ilustrados. Mas, para alguns pesquisadores, o postal surgiu como uma sugestão que o

professor austríaco Emmanuel Hermann fez ao Correio de seu país para a “a criação de

um meio de comunicação mais fácil, barato e rápido, enviado a descoberto, ideal para

mensagens curtas, mas que custasse a metade do valor de uma carta convencional”

(DALTOZO, 2006, p.13). A sugestão foi aceita e no dia 01 de outubro de 1869 surgiu o

Correspondenz-Karte, espécie de cartão-postal. Mas, só a partir do momento em que

começaram a reproduzir fotografias, os cartões postais se tornaram verdadeiramente

populares. Na França, isso ocorreu em 1889 com a criação de um postal da Torre Eiffel

para a Exposição Universal (BARBUY, 1999) e no Brasil, em 1901 (FABRIS, 2008, p.

33).

Para Daltozo, a carte de visite foi precursora do cartão postal, com suas fotos

“distribuídas nos eventos sociais ou enviadas dentro de envelopes [...] como prova de

amor e amizade” (DALTOZO, 2006, p. 14).

4 “[…]the object's capacity to provoke remembrance, for it gives these photographs substance and texture, making them touchable and warm, and allowing past and present to cohabit in everyday domestic life. [...] It is worth reflecting on the role of touch in the experience of photographic object (...)” (2004, p.31)

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O surgimento do postal tem um espaço de bastante relevância na história social da

fotografia porque cumpriu com o papel de divulgar o mundo para os seus apreciadores.

Diante daquelas imagens, arquétipos da cultura popular ganhavam corporeidade e se

tornaram parte de um grande inventário.

A consequência foi que essas imagens levadas ao consumo da massa produziam no

público uma sensação de posse simbólica do mundo (FABRIS, 2008, p.33) que agora

ele conhecia visualmente. Acredito que essa posse simbólica era reforçada também pelo

sentimento de posse referente à matéria, ao cartão fotográfico. Não apenas as imagens

dos membros da família, mas também retratos de celebridades e paisagens passaram a

ser colecionáveis e a estimular uma sensação de pertencimento ao indivíduo.

Aos poucos, o postal também foi sendo apresentando como um formato de reprodução

da obra de arte, mais acessível e mais difundido socialmente. No seu auge de

popularidade, de 1900 a 1925, passou a ser exposto dentro das casas das pessoas

emoldurado como um quadro, não só na Europa e nos Estados Unidos, como também

no Brasil.

Edmond Haracourt, curador do museu de Clunny, afirmou que o cartão postal levou às

últimas consequências a “missão civilizadora” conferida à fotografia para a “educação

do homem ao belo” (apud FABRIS, 2008, p. 35). A respeito desse aspecto, podemos

afirmar que o cartão postal, por sua intensa difusão, seria o formato que mais teria se

adequado à idéia de fotografia como “arte democrática” que acompanhou a prática

desde seu surgimento.

A viagem imaginária e a posse simbólica são as conquistas mais evidentes de uma nova concepção do espaço e do tempo, que abole fronteiras geográficas, acentua similitudes e dessimilitudes entre os homens, pulveriza a linearidade temporal burguesa numa constelação de tempos particulares e sobrepostos (idem).

d. Conservação e armazenamento: os álbuns fotográficos

Uma das práticas mais estimuladas pela fotografia em seus primeiros cem anos foi o

colecionismo. Com a multiplicação da carte de visite e dos castões postais, os álbuns 23

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fotográficos foram se tornando um sistema imprescindível para organização e

principalmente, para a conservação daqueles “museus imaginários ideais” (apud Fabris,

2008), criados com critérios variados de acordo geralmente com o interesse e o gosto de

seus donos.

Além de conter imagens de membros da família, alguns álbuns, já no século XX, se

tornaram moda ao retratar vistas geográficas, o que despertou ainda mais o interesse dos

colecionadores e se adequou bastante à “mentalidade classificadora da época”

(FABRIS, 2008, p.42).

No que concerne à importância das vistas, Solange Ferraz de Lima destaca que “se o

retrato representou para a classe burguesa a possibilidade de expressar sua

individualidade, como afirmou Gisele Freund, as vistas expressam a conquista do

espaço urbano” (LIMA, 2008, p.33).

Ainda segundo Solange Lima, a primeira notícia de comercialização de vistas no Brasil

saiu no Correio Paulistano em 1859 e são fotografias da Academia de Direito para

“aquelles srs estudantes que desejarem levar para seus lares uma lembrança do lugar de

sua vida acadêmica” (apud LIMA, 2008, p. 67). A partir de então, começa a se formar

um mercado de vendas de fotografias para álbuns e de álbuns completos para coleções.

A popularização das vistas, seja em cartões postais ou em álbuns, marcou o terceiro

momento na relação da sociedade com a fotografia. Esse período ficou conhecido não

mais pela vulgarização icônica com a imagem reproduzida em larga escala, mas pela

massificação da prática fotográfica com a introdução, no mercado, das máquinas de

Eastman Kodak. O surgimento de câmeras de médio porte, mais leves, estimulou na

população o desejo de retratar o mundo conforme sua própria perspectiva. A partir de

então, a fotografia se popularizou não apenas como objeto, mas como atividade.

e. Desdobramentos

Na época de seu surgimento, o grande impacto que o dispositivo fotográfico provocou

ao introduzir um novo produto visual foi, justamente, a possibilidade de transformar o

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visível em algo palpável. Nunca antes foi tão clara a perspectiva da luz como matéria,

numa associação entre dois sentidos humanos: a visão e o tato. É no grão que essa

materialidade se dava, na esfera descontínua dos grãos. A película condensava a

natureza física e química do processo fotográfico. Através da máquina fotográfica, toda

e qualquer outra realidade se tornou familiar. E essa realidade cabia no espaço das mãos

dos indivíduos, permitindo que a experiência fotográfica fosse vivenciada com a

intimidade do toque.

Quase 150 anos depois, a fotografia digital surgiu para introduzir uma nova tecnologia e

uma nova superfície de “impressão” da imagem. Como é de se esperar, essas novidades

comprometem o relacionamento do homem com o visual e traçam novos

comportamentos.

Com a digitalização e o surgimento de imagens eletrônicas, cada vez mais populares, foi

instrumentalizada uma mudança na própria dinâmica de interação com essas imagens.

Repensar o passado é o ponto de partida para uma relação mais competente com a

tecnologia contemporânea e seus potenciais de comunicação.

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Eixo 2: Desenvolvimentos sobre formatos digitais

Cada avanço tecnológico, a transmissão elétrica da imagem fixa, o cinema, o rádio, o vídeo, a televisão, mas também outras técnicas sem relação direta com a imagem, não deixam de ter efeitos tecnestésicos5

consideráveis modificando a percepção do mundo, das coisas e da sociedade (COUCHOT, 2003, p.18).

As transformações culturais que produziram a contemporaneidade têm como um dos

maiores motivadores o desenvolvimento das técnicas de comunicação. Com a

assimilação da tecnologia digital, a cultura contemporânea de imagens vive uma nova

sensibilidade visual. A Internet se tornou uma importante ferramenta de

armazenamento, reprodução e difusão da produção de conteúdo imagética. A presença

digital da imagem vem redefinindo o seu regime de apreciação, para além das formas de

contato físico, off line. O termo “revolução digital” já expressa as mudanças massivas

que a digitalização tem provocado nos meios de comunicação.

No computador, a imagem se corporifica como código numérico, digitalizando-se.

Surge um novo regime de produção, cada vez mais composto por linguagens híbridas e

suportes eletrônicos (softwares) que comportam conteúdos de formatos tão

diversificados que classificá-los taxonomicamente se torna um esforço vão.

Walter Benjamin, em seu célebre artigo sobre a obra de arte e sua reprodução mecânica

(1993), traçou os percursos das técnicas modernas que operaram mudanças na

sensibilidade humana ao transformarem o objeto artístico, autêntico e original, em obra 5 Sobre o conceito de efeitos tecnestésivos, ver página 72.

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valorizada por sua possibilidade de encontro com o espectador. A sensibilidade se

alinhou à reprodutibilidade.

Com a imagem digital, novos problemas emergiram nas configurações da subjetividade

contemporânea. Nesse período, que alguns teóricos chamam de “Era do Simulacro”6, o

homem se vê diante da dificuldade, e até desinteresse em distinguir ilusão e realidade,

cópia e original, falso e verdadeiro. Vivemos uma mudança de época, um período de

transformação que conta com a convivência de diversos formatos e que solicita um jeito

diferente de apreciar uma imagem.

Segundo a análise de Maria Lúcia Bastos Kern e Annateresa Fabris, no livro Imagem e

Conhecimento:

É incontestável a transformação da imagem diante do crescente fenômeno da simulação que, com base em outros critérios, fornece novas definições para o antigo aparato lógico e simbólico e para a própria concepção de corporeidade, cada vez mais mediada, cada vez mais distante das visões humanísticas e existenciais anteriores (2006, p. 178).

As imagens se transformaram, reformularam os paradigmas fotomecânicos. Tornaram-

se fluídas, recicláveis, facilmente clonáveis, vinculadas a novos formatos de superfície,

mais dinâmicos e flexíveis, ocupando espacialidades que não se referem mais a um

lugar geográfico. Até a noção de tempo se alterou já que a Internet nos possibilita uma

liberdade de acesso a qualquer instante.

A rede de computadores tem sido cada vez mais utilizada como espaço de

armazenamento, exposição e difusão de conteúdo. No Brasil, que em outubro de 2011

tornou-se o terceiro país do mundo em número de internautas, 78 milhões de pessoas

têm acesso à Internet7. Ao representar 40% do total dos quase 191 milhões de

brasileiros8, esse número nos dá uma boa dimensão do universo de possibilidades de

alcance dos conteúdos digitais dispostos em rede, principalmente quando esse alcance é 6 Sobre o conceito de Simulacro, ver Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D´Água, 1991.

7 Dados divulgados pelo IBOPE Nielsen Online e disponibilizados em: http://www.ibope.com.br ou através do email: [email protected]

8 Dado divulgado pelo IBGE e disponibilizado em: http://www.ibge.gov.br/home/default.php 27

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comparado às formas tradicionais de acesso e divulgação de conteúdo – publicações em

livros, jornais, revistas, etc.

Partimos da premissa de que a digitalização da imagem produz uma transformação

intensa nas nossas atitudes em basicamente todos os setores de produção e fruição

cultural. O espaço e o tempo são comprimidos ao ponto de quase suprimir a distância

existente entre observador e imagem. Isso impõe novos desafios à subjetividade. Torna-

se, portanto, fundamental discutir as especificidades desse “novo universal” - em termos

usados por Pierre Levy (1999, p. 15) para descrever o impacto das novas formas

culturais do ciberespaço - e pensar a relação do sujeito com a produção contemporânea

de imagens nesses suportes digitais, compreendendo o processo e intervindo nele.

a. O Contexto da Novidade: novas mídias, novas tecnologias

“Estamos testemunhando a emergência de novas formas de consumo cultural e de novas

práticas sociais”, afirma André Lemos (2005, p. 8) sobre a configuração cultural que

vemos ser delineada pelas novas tecnologias da informação e comunicação. A

recorrência do adjetivo “novo” nos permite fazer uma associação provável entre o

conceito de cibercultura e uma lógica da inovação, do ineditismo, que o valoriza.

Lev Manovich faz um apanhado relevante sobre a utilização do termo “novas mídias”

no livro “The Language of New Media” (2001):

[…] a definição popular de novas mídias identifica-as ao uso de um computador para distribuição e exibição, em vez de para produção. […] Fotografias que são colocadas em um CD-ROM e requerem um computador para serem visualizadas são consideradas novas mídias; as mesmas fotografias impressas em um livro não são. […] Não há nenhuma razão para privilegiarmos o computador no papel de máquina de exibição e distribuição de mídia em contraponto ao computador usado como ferramenta para a produção de mídia ou como um dispositivo de armazenamento midiático. Todos têm o mesmo potencial para mudar as linguagens culturais existentes. E todos têm o mesmo potencial para deixar a cultura como está. (traduzido de 2001, p.43)9

9 “[…] the popular definition of new media identifies it with the use of a computer for distribution and exhibition, rather than with production. […] Photographs which are put on a CD-ROM and require a computer to view them are considered new media; the same photographs printed as a book are not.

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No capítulo “How media become new?” (2001), Manovich faz um levantamento sobre

o paralelismo histórico existente entre as trajetórias da mídia e do computador e como

elas entraram em confluência para o desenvolvimento das novas mídias.

Manovich afirma que ambas as histórias, das tecnologias da computação e da mídia,

começaram na década de 1830, respectivamente com a máquina analítica (Analytical

Engine) de Babbage e o daguerreótipo de Daguerre. Seis anos antes da formalização do

invento de Daguerre no Palácio Nacional da França em 1839, Babbage criou o

dispositivo capaz de operar dados, cujos resultados seriam escritos na memória da

própria máquina.

Como aponta Manovich, não foi por uma simples coincidência que essas tecnologias

foram desenvolvidas quase ao mesmo tempo. As próprias necessidades da sociedade de

massa na modernidade criaram as condições favoráveis para o surgimento de métodos

de divulgação de ideologias (mídias), e catalogação de informação (o computador)

como esses.

Em 1890, a história da mídia vai ganhar um novo capítulo com o desenvolvimento das

imagens em movimento por Edison e os Irmãos Lumiére. Manovich destaca a

importância do cinema para acalmar a ansiedade do público, cada vez em mais contato

com uma quantidade de informação que não parava de crescer. “Se os cérebros dos

indivíduos estavam sobrecarregados pelo montante de informação que eles tinham que

processar, o mesmo era verdade sobre as corporações e os governos”.10 (idem, p.46)

Alguns outros equipamentos foram essenciais para a história da computação, como o

leitor de cartões perfurados de Herman Hollerith, cuja empresa deu origem à

International Business Machines Corporation - IBM. Em 1936, Alan Turing deu um

importante passo para a união da história da mídia e do computador, ao descrever em

um artigo uma máquina que processava números e os gravava numa fita. Manovich

compara essa máquina com um projetor de filmes:

[…]There is no reason to privilege computer in the role of media exhibition and distribution machine over a computer used as a tool for media production or as a media storage device. All have the same potential to change existing cultural languages. And all have the same potential to leave culture as it is.”(2001, p.43)

10 “If individuals' brains were overwhelmed by the amounts of information they had to process, the same was true of corporations and of government”. (idem, p.46)

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Se acreditarmos na palavra cinematógrafo, que significa "movimento de escrita", a essência do cinema será registrar e armazenar informação visível em uma forma material. Uma câmera de película grava dados em um filme; um projetor de filme lê-los. Este aparelho cinematográfico é semelhante a um computador em um aspecto fundamental: um programa de computador e dados também têm de ser armazenados em alguma mídia. É por isso que a Máquina de Turing [a máquina desenvolvida mais tarde e nomeada em homenagem a Alan Turing] parece um projetor de filmes. É uma espécie de câmera de filmar e projetor de filme ao mesmo tempo: lendo instruções e dados armazenados em uma fita infinita e escrevendo-os em outros locais nesta fita. (idem, p.47) 11

Mas foi o surgimento do primeiro computador eletrônico, criado pelo alemão Konrad

Zuze, que provocou pela primeira vez e de forma inusitada a união entre a mídia e a

tecnologia computacional. O computador de Zuze foi o primeiro dispositivo

eletromecânico que processava os cálculos e os exibia numa fita perfurada. A fita

utilizada por Zuze foi um rolo de 35mm que havia sido previamente descartado e que

trazia gravado uma cena qualquer com duas pessoas.

Qualquer significado e emoção contidos nesta cena do filme tinham sido dizimados por sua nova função como um suporte de dados. A pretensão dos meios de comunicação modernos para criar simulações de realidade sensível é igualmente cancelada; a mídia é reduzida à sua condição original, como suporte de informação, nada além, nada mais. (idem, p. 48)12

Para Manovich, o filme de Zuze antecipou a convergência, um conceito que só viria a

ser conhecido cinquenta anos depois. Como resultante gráfico, fotografias, sons, textos

e toda forma de conteúdo tornaram-se “computáveis”. In short, media becomes new

11 “If we believe the word cinematograph, which means "writing movement", the essence of cinema is recording and storing visible data in a material form. A film camera records data on film; a film projector reads it off. This cinematic apparatus is similar to a computer in one key respect: a computer's program and data also have to be stored in some medium. This is why the Universal Turing Machine [a máquina desenvolvida mais tarde e nomeada em homenagem a Alan Turing] looks like a film projector. It is a kind of film camera and film projector at once: reading instructions and data stored on endless tape and writing them in other locations on this tape”. (2001, p.47)

12 “Whatever meaning and emotion was contained in this movie scene has been wiped out by its new function as a data carrier. The pretense of modern media to create simulation of sensible reality is similarly canceled; media is reduced to its original condition as information carrier, nothing else, nothing more”. (MANOVICH, 2001, p. 48)

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media (idem, p.48) ou “mídia se tornou novas mídias” e o computador passa a ser,

portanto, um processador midiático.

Em seu livro (2001), Manovich aponta as principais diferenças entre as novas mídias e

as mídias analógicas. Uma das questões mais importantes no estabelecimento dessas

distinções é o compartilhamento do mesmo código. Mesmo quando se tratam de mídias

analógicas representadas digitalmente, as novas mídias, apesar de resultarem em

conteúdos diferentes, possuem o mesmo código digital, o que permite que sejam

processadas na mesma plataforma, o computador. Essa comunhão de um mesmo código

é um dos pontos que motiva a cultura numérica a uma desespecificação e a um

complexo hibridismo – no computador, imagem, som e escrita dividem o mesmo espaço

e se interrelacionam de uma forma nova, que não se pauta na completa distinção entre

os formatos.

Além disso, se por um lado, é característica da mídia analógica a perda inevitável de

informação em relação ao original, seja por excesso de cópias sucessivas ou

simplesmente pelo processo de digitalização da mídia; por outro lado, a cópia da mídia

digital não significa perda de qualidade do arquivo. Portanto, podemos perceber que o

arquivo digital não pode mais ser julgado segundo critérios de originalidade e não é aí

que está residido o seu valor.

Para completar essa abordagem comparativa, Manovich destaca também a

interatividade das novas mídias, que permitem ao usuário desempenhar o papel de uma

espécie de co-autor do trabalho ao qual ele tem acesso; ao contrário da mídia analógica,

que apresentaria uma obra fechada, dotada de uma mensagem original previamente

determinada pelo autor.

Feitas essas definições, torna-se importante trazer à tona uma observação feita pela

artista e pesquisadora Giselle Beiguelman, em mesa redonda no 2º Fórum Latino-

Americano de Fotografia - Forum Foto (2010)13. Durante o evento, a pesquisadora

afirmou que “a ideia de novidade, especialmente hoje no âmbito da cultura digital, é

muito traiçoeira por conta do processo de descartabilidade das coisas” (2010)14. Por

isso, ela prefere utilizar o termo “mídias emergentes”, como forma de barrar o uso

13 Realizado em São Paulo, em 2010.

14 Disponível em: http://www.forumfoto.org.br/pt/ 31

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abusivo do termo ‘novo’ e sua identificação com a idéia de novidade, cada vez mais

suplantável diante do ritmo dos avanços tecnológicos.

Esse tipo de desconfiança diante do conceito do novo é típico de um momento de

transição técnica. O formato digital da imagem, de natureza completamente diferente da

imagem química, provocou instabilidades nas bordas do campo da fotografia que

incentivaram posturas alarmistas, inclusive pregando o fim da prática fotográfica.

André Rouillé chegou a apontar “a impossibilidade de uma legitimidade” fotográfica no

contexto “desmaterializado e fragmentado” do ambiente digital (apud FATORELLI

(Org.), 2008, p. 22 e 23) porque, segundo o autor, a fotografia digital opera um regime

de verdade completamente diferente da fotografia analógica, ou seja, ambas possuem

diferentes relacionamentos com a realidade.

A fotografia de película, a normal, sem ser digital, a fotografia comum, seu regime de verdade se baseia no fato de que essa é uma imagem de impressão, relativamente estática, no sentido em que era difícil transformá-la, falsificá-la, [para isso] era preciso retocá-la.[...] Com a fotografia digital, tudo muda. Primeiro vendem a máquina fotográfica com o software de tratamento de imagem. O retoque, o falso, portanto, se podemos dizê-lo assim, não é periférico, não é exterior à imagem, pertence à imagem. De certa maneira, a imagem digital já nasce falsa. (apud FATORELLI (Org.), 2008, p. 25)

Esse posicionamento do autor já seria um pouco menos radical que suas primeiras

propostas de pesquisas sobre o formato digital, nas quais ele chegou a afirmar que a

fotografia digital não era fotografia (apud FATORELLI (Org.), 2008, p. 28). Esse tipo

de questionamento toma força nos momentos de insegurança entre processos de

transição, quando precisamos viver a reconfiguração das nossas referências.

Ainda no Forum Foto, Giselle Beiguelman faz uma observação sobre as diferenças e

especificidades entre a imagem digital e a imagem química, que talvez nos ajude a

compreender abordagens como a de André Rouillé, mesmo que as conclusões a que

chegamos não sejam as mesmas que as desse autor.

No caso das imagens digitais, afirma Beiguelman, o que nós temos é uma operação de transcodificação, onde a luz é reinterpretada como

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dado. Basicamente, a luz da imagem digital é reinterpretada por um sensor que traduz a luz em elétrons, em sinal, interpretado pelo computador como um dado que vai ser reconstruído a partir de uma matriz - que é a imagem no final das contas (BEIGUELMAN, 2010).

Para a autora, a questão da escrita da luz pertenceria sim, à imagem química, mas isso

não retiraria da fotografia digital o direito de ser identificada como fotografia, como

Rouillé chegou a pensar, mas uma fotografia que responderia diretamente a outras

operações e interpretações, condizentes com suas novas práticas - observações estas

com as quais concordo.

b. Horizonte inicial: o digital e suas virtualidades

O fim do século XX e o início do século XXI já nos permitem perceber intensas

transformações na nossa lógica de relacionamento com a imagem. Importantes

mudanças na sensibilidade humana foram intensificadas pelo desenvolvimento das

imagens eletrônicas em novos meios de comunicação visual – primeiro a televisão em

meados da década de 1930 e, principalmente, no final do século XX, com o

computador. O desenvolvimento da imagem digital tem uma conseqüência cada dia

mais provocadora: o surgimento de novos modos de ver.

Em A Máquina da Visão (1994), Paul Virilio comenta os novos processos de percepção

das imagens diante da intensificação do processo de virtualização - que ultrapassa a

questão da informática e domina os mais diversos aspectos da nossa vida. Para o autor,

nesse novo contexto, a imagem perde a sua unicidade e reafirma uma reconstrução

sintética do olhar. As imagens se reconstroem numa outra codificação, os códigos

numéricos - o código binário do computador – e distanciam-se das características da

imagem analógica, o que influencia uma fusão/confusão entre o real e o virtual.

“No uso corrente, a palavra virtual é empregada com frequência para significar a pura e

simples ausência da existência, a 'realidade' supondo uma efetuação material, uma

presença tangível" (LÉVY, 1996, p.15). Como Lévy destacou, faz parte do senso

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comum a associação da virtualidade a uma espécie de demérito da ilusão, contrapondo o

real ao virtual e associando-o ao falso.

O autor explica que a associação entre o virtual e o falso apreende apenas uma das

existências do virtual:

A virtualidade não tem absolutamente nada a ver com aquilo que a televisão mostra sobre ela. Não se trata de modo algum de um mundo falso ou imaginário. Ao contrário, a virtualização é a dinâmica mesma do mundo comum, é aquilo através do qual compartilhamos uma realidade. Longe de circunscrever o reino da mentira, o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a verdade como a mentira. Não há verdadeiro e falso entre as formigas, os peixes ou os lobos: apenas pistas e engodos. (LÉVY, 1996, p. 101)

Uma importante observação sobre esse pensamento proposto por Pierre Lévy pode ser

estendida à questão da informatização e do conteúdo digital. Para respeitarmos a

verdade é preciso lembrar que a questão da virtualização e da perda da presença fazem

parte do dia-a-dia da humanidade muito antes da reorganização da nossa cultura para os

códigos do computador. A religião e a imaginação são bons exemplos do

relacionamento antigo que mantemos com a virtualidade. O virtual não é específico do

ambiente digital.

A fotografia digital, por exemplo, ao se popularizar, foi muito associada a uma pretensa

imaterialidade. Creio que esse relacionamento entre o digital e o ambiente em rede,

virtual, é um dos responsáveis por essa vinculação superficial do conteúdo digital a uma

desmaterialização. Sobre isso, Lévy é taxativo: “a virtualização não é de modo algum

um desaparecimento no ilusório, nem uma desmaterialização. Convém antes assimilá-la

a uma 'dessubstanciação’, que pode ser declinada em mutações associadas: a

desterritorialização, o efeito Moebius” (1996, p.135).

O virtual nos propõe uma reorganização das nossas coordenadas de espaço e de tempo.

É esse desprendimento do aqui e agora que faz com que o senso comum admita a

virtualização como um processo de desrealização. Como Lévy exemplificou, o fato de

não conseguirmos situar nossas conversas telefônicas não é suficiente para acreditarmos

que elas são inacessíveis, ou que são imaginárias.

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A desterritorialização é, portanto, uma das características do virtual. Sobre ela, Lévy

completa:

Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam,[...] não se tornam completamente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde (1996, p. 21).

De onde podemos concluir que o lugar do virtual é a sincronização e o seu tempo, a

interconexão.

Outro importante caráter associado à virtualização é o que Lévy chama de efeito

Moebius: “passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior”, que poderia ser

observada pela colagem e quase indistinção entre, por exemplo, o público e o privado,

entre o subjetivo e o objetivo, entre o autor e o leitor, no ambiente virtual.

O hipertexto é um bom exemplo para oferecer a compreensão desses dois princípios do

virtual: além de inserir-se numa nova dinâmica entre autor e leitor,

desterritorializado, presente por inteiro em cada uma de suas versões, de suas cópias e de suas projeções, desprovido de inércia, habitante ubíquo do ciberespaço, o hipertexto contribui para produzir acontecimentos de atualização textual, de navegação e de leitura (LÉVY,1996, p. 20).

Como já observamos, no ambiente digital, novas situações de interação com conteúdo

questionam e expandem as fronteiras da espacialidade e temporalidade tradicionais.

Novas dinâmicas perceptivas são estimuladas quando as máquinas passam a mediar a

sensibilidade humana.

Migramos de uma lógica de consumo massiva da sociedade industrial, fundada na

economia da informação, para uma lógica de consumo interativa, autônoma e

personalizada que começou a ser produzida pela sociedade pós-industrial (BELL, 1973)

e, mais ainda, pela sociedade de rede (CASTELLS, 2000).

Conjugando todos os estágios de comunicação, incluindo aquisição, manipulação,

armazenamento e distribuição de informação (MANOVICH, 2002, p.43) e promovendo

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uma nova forma de contato entre o espectador e a cultura, o computador passa a

estimular hábitos perceptivos distintos. Por meio de novas interfaces, a máquina se

conecta ao sujeito, apresentando-se não apenas como um prolongamento do corpo

humano, mas dotando-o de sensibilidades corporais inovadoras. Graças à interação

autor-obra-espectador na web 2.015, diferentes formas de ver, significar e memorizar

passam a ser assimiladas pelo público.

A rede oferece ao público um conteúdo que deve ser reconstituído de acordo com a

bagagem cultural do sujeito, suas vontades, seus desejos, suas experiências e saberes

prévios. Não-linear e interativa, a mídia digital, apesar de oferecer conteúdo

indiferenciadamente a todos os sujeitos conectados, possibilita uma infinita diversidade

de trajetos de informação e, conseqüentemente, respostas variadas.

Em sua estrutura, as novas mídias são igualitárias. Por meio de um simples processo de conexão, todos podem participar dela (...) As novas mídias têm a tendência a eliminar todos os privilégios de formação, e com isso também o monopólio cultural da inteligência burguesa. (Enzensberger apud LEMOS, 2005, p.1)

Eixo 3: Hiperconteúdos e a hiperfotografia

A fotografia é uma imagem adaptável. A breve análise proposta aqui sobre sua

historicidade é capaz de denotar uma multiplicidade de transformações que foram

incentivando a relocação da prática fotográfica no desenvolvimento da sociedade, desde

a época moderna. Entre carte de visite, cartões postais, álbuns fotográficos, câmeras

analógicas de diversos formatos e cartões de memória, as formas de trato e interação

com a fotografia sofreram modificações importantes nesses quase dois séculos de

história.

A imagem digital requer não apenas diferentes usos cotidianos, como também

diferentes noções sensoriais de trato com a imagem. Um novo contexto de leitura dessas

15 O termo, criado por Tim O’Reilly, refere-se a uma segunda geração de serviços oferecidos na Internet, que consideram o efeito em rede como um dos aspectos mais importantes para o mercado, e visualiza a web como uma plataforma em constante mudança e que depende da participação ativa dos usuários.

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imagens precisa ser questionado, a partir do momento em que o acesso a elas passa a ser

mediado por interfaces em rede.

Em uma entrevista cedida à edição de 2010 do site do Fórum Latino-Americano de

Fotografia de São Paulo, Giselle Beiguelman afirmou:

O mais importante, contudo, não é o fato de [as formas contemporâneas de produção de conteúdo] lidarem com tecnologia, mas sim o de serem mediadas por um dispositivo que é uma máquina em rede e que é, a um só tempo, uma máquina de leitura, escritura – seja ela textual, audiovisual, imagética, etc. – e publicação. (BEIGUELMAN, 2010)16

A grande novidade da produção imagética da era digital, segundo Beiguelman, não é a

produção em si, os novos temas, os novos instrumentos utilizados na criação de

imagens, as novas formas de publicação, os novos meios de divulgação, mas sim, o fato

de que isso tudo ocorre numa plataforma só: o computador.

É ele que introduz novas dinâmicas no circuito de produção de imagens, permitindo não

só alargamento da capacidade de produção de conteúdo, mas o reconhecimento de toda

uma produção cultural que antes permanecia subjugada a filtros editoriais tradicionais.

Com a web 2.0, esse contexto se intensifica. Diminuem as desigualdades de espaço e o

espectador passa a atuar como editor de conteúdo, que escolhe o que deve ser publicado,

visualizado, repassado. O usuário de Internet está submetido agora a novos

intermediários, como o acesso às velocidades de conexão e ao equipamento.

O computador, portanto, proporciona uma nova forma de interação entre o homem e a

imagem, mais pautada na união das potencialidades dos dois do que no simples uso da

máquina como instrumento de visão ou na simples subordinação do homem à tela.

O ato de observar em si já muda de forma radical com a digitalização. O contato com

imagens numéricas é apenas mais um dos aspectos com que o sujeito tem que lidar

enquanto navega na rede, dividindo-se entre caixas de email, ferramentas de bate-papo,

redes sociais e páginas diversas. Sua atenção agora se dispersa entre os

desenvolvimentos do que podemos chamar de hiperconteúdos – conteúdos em formato

16

1

Disponível em: http://www.forumfoto.org.br/pt/2010/07/giselle-beiguelman/ 37

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de texto, imagem, músicas, etc., que se relacionam e localizam no grande espaço da

virtualidade da rede, “multilineares, multisequenciais e indeterminados”, como disse

Bolter (1991, p.10), referindo-se ao hipertexto.

Pelo computador o sujeito vai entrar em contato com o hipertexto – forma de conteúdo

que, para dar conta das ambiguidades existentes em qualquer comunicação, oferece ao

leitor links que citam, explicam, aprofundam a temática abordada, permitindo uma

possibilidade de derivações que só vai ser desencadeada de acordo com a vontade do

sujeito. Ele é o novo caminho da comunicação.

a. A escrita eletrônica

O termo hipertexto foi desenvolvido, em 1964, pelo filósofo americano Ted Nelson, um

dos pioneiros da Tecnologia da Informação. Segundo ele, “o hipertexto, ou a escrita

não-seqüencial com liberdade de movimentação entre os links, é uma idéia simples e

óbvia. É apenas a versão eletrônica das conexões literárias tal como já as conhecemos”

(apud BEILGUELMAN, p.66), como as notas de rodapé, as citações, as referências

bibliográficas e as imagens que se apresentam como informações complementares de

um texto. Mas se essa noção de conexão já existia nos textos tradicionais, o que faz o

hipertexto ser considerado um novo paradigma na produção textual?

O hipertexto é, antes de tudo, uma “escritura eletrônica não-sequencial e não-linear”

(MARCUSCHI, 1999, p.1) que possibilita ao leitor um trajeto de leitura particular e

individual, com resultado indeterminável, guiado por suas escolhas pessoais.

“O hipertexto perturba nossa noção linear de texto rompendo a estrutura convencional e

as expectativas a ela associadas” (Snyder, apud MARCUSCHI, 1999, p.1) permitindo

que um tema se desenvolva por muitos níveis de tratamento e propondo diferentes

abordagens simultaneamente. Essa multiplicidade de desenvolvimentos exige do leitor

uma postura consciente sobre o que ele busca, a fim de evitar o que Marcuschi nomeou

de “stress cognitivo”, ou seja, “a carga ou pressão cognitiva que o hipertexto põe a mais

para o seu leitor em relação ao leitor de um texto impresso e linear” (MARCUSCHI,

2001, p. 85). O stress que se constrói na intersecção entre a quantidade sempre crescente

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de conteúdo oferecido e a responsabilidade do leitor quanto à filtragem dessa

informação.

Além da não-linearidade, outra característica parece ser fundamental para a

compreensão do hipertexto: sua volatibilidade, apontada por Bolter como uma

instabilidade inerente ao formato (Bolter, 1991, p. 31). Esse aspecto faz do hipertexto

um fenômeno virtual em essência, com “escolhas tão passageiras quanto as conexões

estabelecidas por seus leitores” (MARCUSCHI, 1999, p.2). Além da volatilidade, a

questão da virtualidade (MARCUSCHI, 1999, p.4) do hipertexto é o que determina que

esse tipo de escrita não se encerre num todo, mas nos permita um deslocamento

indefinido e praticamente ilimitado.

Segundo Marcuschi, mais alguns aspectos são importantes na observação da natureza

do hipertexto, entre eles: a topografia, que sugere o hipertexto como um espaç o de

escritura e leitura que “desestabiliza os frames17 de que dispomos para identificar limites

textuais” (1999, p.2); a fragmentariedade; a acessibilidade ilimitada; a interatividade, à

qual atribuímos a tênue relação entre leitor-autor de um hipertexto; a multisemiose, que

seria a possibilidade de conexão entre diferentes linguagens (música, cinema, texto

escrito, fotografia); e a iteratividade que, segundo o autor trata-se da “natureza

intrinsecamente intertextual marcada pela recursividade de textos ou fragmentos” (1999,

p.2) o que pode ser feito na forma de notas, citações, etc.

b. Do leitor ao navegador

Bolter afirma que o hipertexto introduz um novo “espaço de escrita” baseado no

ambiente eletrônico do computador. Por espaço de escrita ele compreende “os

campos físico e visual definidos por uma determinada tecnologia de escrita" (1991,

p.11). O livro é um espaço de escrita, assim como um papiro já foi, assim como hoje, o

computador é.

17 Marcuschi faz referência a H. Weinrich que, segundo o autor, “definia o texto como uma produção lingüística unitária e contínua entre dois vazios, representada pela fórmula: # T #” (apud Marcuschi, 1991, p.2).

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“Um repertório de gestos, um jogo tátil entre a mão e o papel (ou o “mouse”), uma

constelação de objetos e de instrumentos de visão definem a posição da leitura neste

mundo”, afirma Beiguelman (2001, p.35), e esta, por sua vez, é capaz de definir a

posição do sujeito capacitado para fruí-la.

É a virtualidade que permite ao hipertexto a abertura responsável por demandar um

comportamento diferente do leitor em interação com o conteúdo. O leitor do hipertexto

não é mais um sujeito que percorre um caminho horizontal, como muitas vezes

percorreu um texto impresso. No ambiente virtual do hipertexto, o leitor navega,

percorre a informação, faz escolhas e cria sua própria linearidade.

Por sua relevância no processo comunicativo, incentivado pelo hipertexto, o leitor tem

sido muitas vezes reconhecido como um “co-autor”, pois cabe a ele o controle do curso

da informação.

O leitor determina não só a ordem da leitura, mas o conteúdo a ser lido. Embora o leitor usuário do hipertexto (o hipernavegador) não escreva o texto no sentido tradicional do termo, ele determina o formato da versão final de seu texto, que pode ser muito diversa daquela proposta pelo autor. (MARCUSCHI, 2001, p. 96)

Essa associação com a autoria é competente, mas prefiro a concepção defendida por

Pierre Lévy de que, no contexto da mídia digital, o espectador, leitor, o usuário de

Internet que circula pelos textos das redes de computadores locais e mundiais é não só

autor, mas um editor em potencial (1996, p.50), porque sua autoria seria, na verdade,

uma reorganização da informação, o julgamento de qual conteúdo buscar, e qual deve

ser descartado.

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A questão da autoria para o hipertexto se polemiza por dois aspectos: a autoria que edita

a informação e a autoria que se apropria dela18. Sobre esta segunda, trataremos mais

especificamente no desenvolvimento a cerca da propriedade intelectual.

c. Sobre a morte do autor e outros assassinatos

Houve um tempo em que esses textos que hoje chamaríamos de ‘literários’ (narrativas, contos, epopeias, tragédias, comédias) eram aceitos, postos em circulação, valorizados sem que fosse colocada a questão do seu autor; o anonimato não constituía dificuldade, sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era para eles garantia suficiente. (FOUCAULT, 2011, p.95)

A presença do autor nem sempre foi reconhecida na nossa produção cultural, como

podemos perceber a partir do trecho acima do artigo “O que é um autor?”, de Michel

Foucault, escrito em 1969. Por muito tempo, o discurso não foi tido como propriedade

de alguém, mas, sim, como uma ação. A falta de identificação entre o ato de escrever e

o processo de criação individual pode ser identificada em grande parte dos textos da

Idade Antiga até a Idade Média. A própria Bíblia, cujos livros teriam sido escritos como

‘revelação divina’, e os escritos de São Tomás de Aquino e de São Agostinho - que

segundo os próprios autores seriam, na verdade e apenas, a “palavra de Deus” passada a

eles - remetem a essa relação instável entre a cultura ocidental e a autoria da criação.

18 A respeito da autoria, Marchuschi expõe a classificação de Michael Joyce que dividiu o hipertexto em duas categorias: o exploratório e o construtivo. “Num extremo, o caso do hipertexto exploratório, os usuários são navegadores que têm que fazer escolhas e seguir como se estivessem numa ação linear. Preserva-se uma certa autonomia do autor do texto original e, como lembram Moulthrop & Kaplan (1994, p. 221), trata-se de uma alternativa hipertextual que mantém muito da “passividade do texto escrito”. No outro extremo, o do hipertexto construtivo, o texto original deve ser tão aberto que possibilite interconexões e controle do usuário. Na atividade exploratória, podemos escolher o caminho a seguir e na construtiva podemos até adicionar notas ou produzir novas ligações. [...]Se o hipertexto exploratório está desenhado para “leitores” e exploradores de conhecimentos, o hipertexto construtivo está desenhado para operadores-escritores” (Marcuschi, 2001, p. 89).

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Faz-se necessário, antes de prosseguir com essa proposta de reflexão a respeito da

autoria, destacar que, apesar de estar, em termos de exemplos, me referindo ao autor

como um autor de um texto, de uma obra escrita, a ideia de autoria que abordo aqui

certamente também faz referência ao autor de uma pintura, de uma fotografia, de uma

música. A opção por esse trajeto está de acordo com os exemplos propostos pelos dois

autores em quem me baseio, Foucault e Barthes, e suas abordagens de extrema

relevância sobre o tema. Falar sobre a autoria nessa pesquisa é imprescindível para que

possamos compreender as transformações que esse conceito viveu até o contexto

digital.

Como destacado por Foucault, o termo “autor” não se refere simplesmente à atribuição

de um produto a seu criador, mas a uma função que seria, “portanto, característica do

modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de

uma sociedade” (2011, p.94). Para ele, o autor não é simplesmente a pessoa que

escreve, cria uma obra, mas seria uma função variável e complexa de um discurso,

responsável por conferir determinado status e por localizar o criador na produção

cultural da sociedade.

Na visão de Foucault, o discurso científico percorreu o caminho oposto ao da literatura:

na Idade Média, os textos sobre ciências da natureza, medicina, geografia e astronomia

só eram aceitos se vinculados ao nome de um autor que os atestasse como verdade. Era

a cultura da Idade Média criando ferramentas para assegurar a coerência desses

discursos com o pensamento autorizado na época. Qualquer texto que transgredisse essa

ordem era identificado e punido.

Os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores. (FOUCAULT, 2011, p.94)

Mais tarde, entre os séculos XVII e XVIII, essas obras passaram a ser aceitas “no

anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre demonstrável novamente”

(FOUCAULT, 2011, p.95). Já o discurso literário percorreu o caminho inverso: da

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legitimação pela tradição, característica das obras gregas, para a ansiedade da

identificação de suas origens.

Pouco antes de Foucault, Barthes já tinha percebido a valorização da autoria como um

dos aspectos do abandono da Idade Média e da descoberta do homem como sujeito,

momento importante no processo de individualização que marcou a modernidade. “O

autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na

medida em que, ao terminar a idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo

francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio pessoal do indivíduo”

(Barthes, 2004, p. 66).

Apenas no final do séc. XVIII e início do séc. XIX, diante do fortalecimento da noção

de propriedade privada, com a ascensão da sociedade burguesa, começou a ser

regularizada a propriedade de textos, voltando a atenção da sociedade para as questões

da autoria e dos direitos de reprodução.

Como resposta a isso, podemos destacar, como fizeram Barthes e Foucault em seus

textos, a importância crucial de Mallarmé, um dos primeiros a abandonar o papel do

autor e, distante desse status, valorizar a escrita, “atingir esse ponto onde só a linguagem

age, ‘performa’, e não ‘eu’” (BARTHES, 2004, p.67).

É que a literatura, objeto privilegiado da crítica, não cessou, desde Mallarmé, de se aproximar daquilo que é a linguagem no seu ser mesmo e, com isso, ela solicita uma linguagem segunda que não seja mais em forma de crítica mas de comentário. [...] À questão nietzschiana: quem fala? Mallarmé responde e não cessa de retomar sua resposta, dizendo que o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra — não o sentido da palavra, mas seu ser enigmático e precário. (FOUCAULT, 2001, p.111, 420)

Mallarmé dessacralizou a linguagem e iniciou o percurso ao que Barthes chamou de “a

morte do autor”, um modo de agir que ganhou força nos trabalhos de diversos artistas

durante todo o decorrer do séc. XX, o século de contestação das noções tradicionais de

arte, artista, originalidade, intencionalidade, inspiração e talento, cultuadas pelo

modernismo.

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O modernismo foi, na história da arte, o momento de valorização da figura individual

do artista e sua importância como o ponto originário da obra. Em contraposição a esses

dogmas se seguiram diversas posturas polêmicas, a começar pelo trabalho de Marcel

Duchamp. Com seus ready-made19, Duchamp colou o status de arte em objetos

industriais como forma justamente de confundir as fronteiras do artístico. Como ele

mesmo costumava afirmar, sua obra maior era viver. “Cada segundo, cada respiração é

uma obra que não é inscrita em lugar algum, que não é nem visual nem cerebral” (apud

COUCHOT, 2003, p.63).

Essa confusão foi o ponto de partida para anunciar a morte da arte que, ao contrário de

provocar consigo também a morte do artista, acentuou sua singularidade criadora,

tornando-o o único capaz de definir o que é uma obra de arte. Seria, portanto, o artista a

instância em que residiria a criação mais verdadeira e sua originalidade.

Entremeio a todos esses anúncios de ruptura com a tradição da arte e como parte do

processo de reconsideração dos preceitos modernos, Duchamp, alguns anos antes de

Barthes, destacou a importância do papel do espectador no processo de criação e

recriação de uma obra, a partir da percepção. Ele disse que é o observador que faz a

obra, assertiva que também era muito cara à pintura impressionista, “a primeira a exigir

do olho uma participação ativa na síntese cromática” (COUCHOT, 2001, p.110).

Barthes também destaca a importância do Surrealismo na dessacralização da imagem do

autor, com seu estímulo à escrita automática que escreveria “tão depressa quanto

possível o que a própria cabeça ignora” (2004, p.67).

Para Barthes, o texto não poderia ter sua autoria considerada porque se trataria sempre

de uma imitação de um discurso antecedente, um “tecido de citações” que não poderia

ser considerado original. Buscar identificá-lo com um “Autor” seria o mesmo que tentar

fechá-lo, impondo a ele um significado único. Essa identificação entre obra e criador era

muitas vezes incentivada pela própria crítica com o objetivo de, por meio da descoberta

do Autor, decifrar o texto e “vencê-lo”.

À desvalorização do autor como lugar da originalidade do texto, Barthes contrapôs a

relevância do leitor, o lugar em que poderiam ser localizadas todas as escritas múltiplas

que compõem um texto. “A unidade de um texto não está na sua origem, mas em seu

19 Para saber mais sobre os ready-made de Duchamp, ler A Salutar Ruptura, de Janis Mink. Em: Marcel Duchamp: a arte como contra-ataque

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destino” e completa “é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-

se com a morte do autor” (2004, p.70).

Desse modo, o feudo estruturalista nega ao artista e também ao autor, o papel de origem da obra; e, à obra, seu status de lugar originário de um sentido a ser interpretado. Ao mesmo tempo em que o texto substitui a pluralidade e o intermediário pela unidade da obra, a exploração pela interpretação, e a colaboração prática do autor e do espectador pelo consumo. Os porvires eclipsam as antigas noções de origem e de original. (ROUILLÉ, 2009, p. 346)

Esse ofuscamento da noção de original se intensificou ainda mais com as reflexões

desenvolvidas pelos artistas conceituais e os questionamentos, dez anos mais tarde,

incentivados pelo discurso pós-moderno. O conflito entre original e cópia que, segundo

Benjamin (1993), foi inaugurado pelas imagens técnicas (em termo flusseriano), operou

mudanças intensas na nossa sensibilidade e na arte, transformando o objeto artístico,

autêntico e original, em obra valorizada de acordo com sua possibilidade de reprodução

e encontro com o espectador.

Nesse momento, foi, portanto, especialmente por meio da fotografia, que a cópia

contestou a “aura”20 do objeto de arte, e questões sobre originalidade, direito do autor,

propriedade intelectual e plágio se alinharam à produção cultural da época, pouco mais

de cem anos após as primeiras inovações introduzidas pela imagem fotomecânica.

Pouco depois de Barthes ter declarado a morte do autor (1969), nos anos 1980, diversos

artistas, motivados pelo interesse em contestar a ideologia exclusivista do modernismo,

confrontaram diretamente as convenções sobre a criação ao apropriar-se de trabalhos

anteriores a eles. Foi o caso de Sherrie Levine, que fotografou as provas de fotógrafos

icônicos como Walker Evans, Edward Weston, entre outros, e as reproduziu sob os

títulos de “Sherrie Levine after Walker Evans”, “Sherrie Levine after Edward Weston”,

etc. A intenção da artista estava diretamente afinada com esse questionamento pós-

moderno do que define o valor artístico de uma obra (seja uma fotografia ou outra

forma de expressão): seria o gesto do artista, o uso de uma determinada ferramenta, a

20 O conceito de aura é definido por Benjamin como a existência única de um objeto de arte, cunhada por sua tradição, ou “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja” (BENJAMIN, 1993, p.170).

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crítica ou o resultado final? Andre Rouillé faz uma análise interessante sobre esse

trabalho em particular:

A eloqüência desconstrutiva do gesto de apropriação de Sherrie Levine mobiliza em alto grau o material, o procedimento e as obras fotográficas, porque, para o senso comum, a fotografia é o emblema do procedimento mecânico, logo não artístico, de apropriação das aparências, de fabricação de simulacros. (2009, p. 347)

Ou seja, no que concerne a uma obra fotográfica, Levine leva o debate sobre

apropriação a um patamar muito especial ao lembrar que a fotografia é em si a

apropriação de uma determinada imagem do fotografado, ou de um determinado ponto

de vista a respeito de um acontecimento. O trabalho da artista é uma forma de afirmar

que, se uma obra fotográfica – a apropriação que o fotógrafo faz da imagem de algo –

pode ser considerada como produto de autoria de alguém, a apropriação de outra

apropriação não é menos legítima que a primeira. No mesmo percurso, uma fotografia

da série “Untitled Cowboy”, do artista Richard Prince, entrou para o rol das dez

fotografias mais caras do mundo ao ser vendida por US$1.248.000 (um milhão e

duzentos e quarenta e oito mil dólares). A fotografia de 1989 se tratava da reprodução

feita por Prince de um trecho de um anúncio do cigarro Marlboro, contestando não

apenas questões de propriedade, autenticidade, mas os próprios limites entre arte e

outros campos, como a publicidade.

Sabemos que a arte desempenha um importante papel no agendamento de reflexões e

questionamento sobre a nossa cultura e na nossa percepção do mundo. Não é à toa

portanto que, pouco antes de começarmos a vivenciar as primeiras inserções da

tecnologia digital no nosso cotidiano, alguns artistas começassem a discutir questões

como autoria, propriedade intelectual, autenticidade e cópia, que serão tão caras para a

nossa sociedade diante do processo de transcodificação da nossa cultura para a

linguagem do computador.

c.1. Direitos autorais na cultura da tecnologia

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A conjugação entre tecnologia digital e a Internet tem transformado nossas vias de

acesso a expressões culturais. Se durante boa parte do século XX, a tecnologia tornou

possível o consumo de produtos culturais por meio de técnicas de difusão como o rádio,

a televisão e os toca-discos; com a Internet, vivemos os impactos de uma nova dinâmica

cultural, que permite não apenas o consumo, mas também a produção e, principalmente,

a divulgação de conteúdo. O nosso relacionamento com as diversas formas de expressão

abandonou um caminho de mão única em prol de traçar um novo percurso por vias

múltiplas que permitem trajetos indeterminados.

Podemos perceber o aumento intenso do uso de plataformas de divulgação de conteúdo

baseadas na ação de um indivíduo em rede, como o youtube, o twitter e o facebook, que

transformam o usuário de internet em um canal possível, um novo mediador disposto a

continuamente alimentar as bolhas de dados da rede mundial. A reprodução passa a

compor, junto com a produção e a remixagem, os principais comportamentos dessa

nossa cibercultura. O professor André Lemos chama essa configuração cultural de

“ciber-cultura-remix” (2005, p.1) que, “sob o prisma de uma fenomenologia social”,

altera nossa relação com a autoria e a propriedade intelectual.

Em palestra na mesa “Música, a fronteira do mundo – criatividade, tecnologia e

políticas públicas”21, o criador do Creative Commons, Lawrence Lessig destacou que a

Internet incentiva uma “diferente ecologia da criatividade”, que permite não apenas

consumo eficiente, mas uma produção amadora também eficiente. A grande polêmica é

que essa nova ecologia da criatividade ameaça a hegemonia da lógica da propriedade

incentivada pelo mundo industrial moderno.

Desde seu florescimento na década de 1990, a cibercultura é guiada por algumas

características fundamentais à sua dinâmica interna, que foram mapeadas por diversos

autores22. Para a nossa análise, acho importante destacar os seguintes pontos: a conexão

21 O evento, realizado no dia 24 de agosto de 2011, no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, contou com a presença de nomes importantes para o debate da questão da propriedade intelectual na Internet e as políticas de regulamentação do acesso e do uso das novas tecnologias da informação, tais como Ronaldo Lemos, professor da FGV e diretor do Creative Commons no Brasil, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, o professor Sérgio Amadeu e a deputada Manuela D’Ávila.

22 Dentre os autores que já tentaram definir os princípios que regem a cibercultura, gostaria de destacar as contribuições de dois brasileiros: André Lemos, para quem “A cibercultura caracteriza-se por três ‘leis’ fundadoras: a liberação do pólo da emissão, o princípio de conexão em rede e a reconfiguração de formatos midiáticos e práticas sociais” (2005, p.2); e Ronaldo Lemos que, por sua vez, identifica os seguintes princípios da Internet: descentralidade, transparência, responsabilidade (accountability), a inovação perpétua e o acesso sem barreiras, que tem o potencial de influenciar as instituições: a

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em rede, a descentralidade do pólo emissor, a neutralidade e universalidade da rede, a

reconfiguração cultural e a recombinação de conteúdos. A maioria dessas características

incentivam comportamentos que entram em choque direto com os princípios da

propriedade intelectual.

A propriedade intelectual é posta em xeque, por exemplo, quando se considera, do ponto de vista da realidade de nossos dias, a proteção a outros interesses, tais como a privacidade, a garantia da existência de espaços públicos (commons) na rede, a liberdade de expressão e a livre concorrência. (LEMOS, 2005, p.65)

Se observarmos com atenção esses aspectos fundamentais à cibercultura, poderemos

perceber que mesmo a conexão em rede, a descentralidade, a neutralidade e a

universalidade, que aparentemente não oferecem ameaça real ao direito da propriedade

intelectual, são princípios que incentivam diretamente os aspectos da reconfiguração

cultural e da recombinação de conteúdos.

Um indivíduo usuário de Internet, por estar conectado à rede, tem a possibilidade de

assumir pra si o papel de divulgador do conteúdo de outras pessoas assim como o que

ele mesmo produz a partir das referências que ele tem, recombinando os códigos e

reconstruindo nossa cultura. É essa liberdade que vai de encontro às formas já

estabelecidas de produção cultural, incentivadas pelas indústrias de intermediação como

a indústria fonográfica. E essa liberdade não provoca alterações apenas no nosso

relacionamento com a música, mas com todas as outras formas de conteúdos culturais,

inclusive a fotografia.

Vivemos hoje uma tendência mundial de “substituir a cultura da liberdade pela cultura

da permissão” (LESSIG, 2011), e o resultado disso tem sido a emergência de diversos

mecanismos que, sob o pretexto de regulamentar o uso da internet, têm tentado

remodelar os princípios que regem o meio, transformando as práticas das liberdades

digitais em cibercrimes.

Há uma celeuma entre o direito e as novas dinâmicas tecnológicas. E esta não reside

apenas na questão da distinção impossível entre a cópia e o original de qualquer

politica, os estados, a criação de leis (S.d).48

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conteúdo digital, mas principalmente na própria dinâmica de fluxo da cibercultura, que

não permite aos meios jurídicos tradicionais nenhuma forma de regulagem além do

controle do acesso à rede.

Giselle Beiguelman fala que, no espaço da Internet, a autoria:

[está] ameaçada de extinção não pela facilidade de reprodução permitida pelo meio digital, o que reduziria a discussão a um problema jurídico equivalente ao problema do xerox, mas por estar disponível em uma Rede mundial de fluxo contínuo de dados (e idéias), fundada em uma nova tecnologia de escrita que se rebela contra sua função de inscrever.(2003, p.36)

A internet estimula a livre circulação de conteúdo, mais que isso, a Internet nos modos

que a vivenciamos hoje só existe por conta desse princípio, seu funcionamento alimenta

esse princípio e é retroalimentado por ele. Diante desse fluxo, a cultura da permissão

que a propriedade intelectual estimula se enfraquece e o conceito de autor precisa ser

recolocado.

d. A quebra da página e a questão das instabilidades do formato digital –

ou as imaturidades do hipertexto

Com o surgimento do hipertexto - e de todas as outras formas de conteúdos culturais

virtuais acessíveis no ambiente digital (hiperconteúdos) -, o contexto de leitura se

tornou constantemente mediado por interfaces conectadas em rede. Esse processo exigiu

uma recolocação das nossas produções culturais e resultou em transformações

importantes no nosso relacionamento com esses produtos.

O livro como um objeto de sentido precisou ser redirecionado para dar conta das

especificidades de espaços diferentes que passam a se relacionar quando a cultura

cibernética se expande a praticamente todos os campos da cultura ocidental. Giselle

Beiguelman, em O Livro Depois do Livro, aposta nas potencialidades de uma cultura

cíbrida, “pautada pela interpenetração de Redes on e off line, que incorpore e recicle os

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mecanismos de leitura já instituídos, apontando para novas formas de ver e significar”

(2003, p. 13).

O que está em jogo é a necessidade de engendrar não só repertórios capazes de transcender o formato do códex e a cultura material da página, como as únicas possibilidades para a exposição de ideias, mas também suas funções simbólicas, como as de suporte de memória, e econômicas, como o valor material da autoria. (BEIGUELMAN, 2003, p.17)

A questão da cultura material da página é uma das principais imaturidades da

experiência de leitura no ambiente digital. Beiguelman destaca que o livro impresso

ainda é o paradigma do universo de leitura on line, que se organiza em páginas, pastas, e

segue critérios biblioteconômicos de organização. Essa questão, segundo a autora, está

pautada em um apaziguamento de instabilidades (2003, p.11), segundo o qual a

associação do conteúdo on line com a mesma dinâmica de leitura da cultura material da

página é um processo que mascara a transição entre redes on e off line. A aproximação

destes repertórios simbólicos não indica, no entanto, que essas metáforas estão operando

uma transição adequada entre diferentes formações culturais.

Talvez a metáfora do site (sítio), para designar a situação de não-localidade que estrutura o ciberespaço, esteja na raiz desse fenômeno de equívocos terminológicos que não são inconvenientes por serem errôneos, mas por mascararem a situação inédita de uma espacialidade independente da localização em um espaço tridimensional. (2003, p. 12)

Talvez para simularmos uma relação mais natural com o ambiente on-line, ou por falta

de maturidade no reconhecimento das especificidades da linguagem digital, ou ainda

por falta de uma noção real das transformações que essa linguagem opera, o fato é que

até hoje fazemos usos on line de termos que nos são comuns no ambiente off line,

negligenciando as especificidades de cada um desses espaços. Questionar as

especificidades dessas novas experiências de leituras é um ponto inicial na observação

das possibilidades de diálogos permitidos com os procedimentos digitais.

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As mudanças que vieram à tona com o formato digital provocaram um alardeamento do

“perigo” de destruição imposto ao conteúdo analógico. Em seu livro (2003),

Beiguelman faz uma análise interessante do quanto essa perspectiva apocalíptica do

conteúdo digital esteve associada a um sensacionalismo publicitário incentivado pela

indústria da informática. Para estimular a consolidação de livros digitais como produtos

de consumo, muito se pregou o fim do livro impresso, classificado como artigo

obsoleto. Mas, apesar da declaração de morte, o livro tradicional ainda desfruta de

estabilidade no mercado, mesmo após o surgimento dos tablets.

Com a fotografia digital não foi diferente. Uma série de discursos definitivos quanto à

necessidade de separação entre a imagem digital e a fotografia analógica foram

delineados, alguns23 apresentados como uma espécie de rememoração das abordagens

ontológicas do “isso-foi” de Barthes24 e do índice fotográfico, de Dubois25.

Mas a fotografia e praticamente toda a cultura ocidental tem se adaptado sem muitos

sacrifícios às mudanças de linguagem impostas pelo hipertexto. “É difícil falar de

fotografia, hoje”, diz Beiguelman, “assim como de vídeo. Prefiro falar de imagens e de

aparelhos que permitem a criação de imagens” (2010).

Essa opinião encontra eco em dois aspectos fundamentais ao formato digital: o primeiro

deles é, como vimos anteriormente, o argumento de que “toda a mídia digital

compartilha o mesmo código” (MANOVICH, 2001, p.66). As imagens fixas, como as

fotografias, as imagens em movimento, os áudios, os textos, as imagens 3D, todos esses

conteúdos têm em comum o fato de serem compostos por código binário, informações

interpretadas e processadas pelo computador. Um outro aspecto que dificulta essa

classificação taxonômica dos conteúdos digitais é o seu hibridismo: o fato de vermos

cada vez mais vídeos compostos por fotografias, cada vez mais ensaios fotográficos em

formato de vídeo, cada vez mais imagens associadas a uma trilha sonora, etc.

Sobre esse processo de hibridização, Santaella afirma:

23 Como o pensamento inicial de André Rouillé, mais detalhado no capítulo introdutório dessa dissertação.

24 Barthes, Roland. A Câmara Clara. Edições 70, 2006.

25 Dubois, Phillippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios. São Paulo: Papirus, 1993.51

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[...] o computador se transformou em um laboratório experimental no qual diferentes mídias podem se encontrar e suas técnicas e estéticas podem se combinar na geração de novas espécies sígnicas. Quando uma mídia é simulada no computador, propriedades e métodos de trabalho lhe são adicionados até o ponto de transformar a identidade dessa mídia. Isso acontece porque os softwares, como as espécies em uma ecologia comum -- neste caso, o ambiente computacional compartilhado -- uma vez liberados, começam a interagir, mutar e gerar híbridos.” (2007, p.5)

O que Santaella afirma é que, no momento em que são traduzidas para o código

numérico, as mídias perdem suas propriedades específicas e se transformam em cálculo,

algoritmos, se misturando, se hibridizando. Imagens, sons, textos, no computador, são

compostos pelos mesmos códigos e se interrelacionam, na construção de uma cultura

híbrida. A respeito disso, Giselle Beiguelman propõe a discussão “dos pressupostos de

uma cultura cíbrida, fruto das conexões entre Redes on e off line, dos processos de

hibridação dos meios e, nesse âmbito, dos direcionamentos para os quais aponta a

ciberliteratura e seus horizontes imaginários” (2001, p.32). Para nossa discussão

podemos pensar em uma ciberfotografia, ou melhor, a fotografia hipertextual e seus

novos horizontes.

O espaço digital tem possibilitado o surgimento de novas estratégias de produção de

imagens prontas para suplantar muitas das limitações impostas à imagem analógica.

Apesar disso, assim como no livro on line, o relacionamento social estabelecido com a

fotografia digital ainda mantém, de forma generalizada, o modelo analógico como o

modelo central de trato com a fotografia.

e. Da natureza das imagens digitais:

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As imagens de síntese são em primeiro lugar linguagem

(Quéau, 1999, p. 91).

À medida que se numerizam, as imagens analógicas vão abrindo espaço para um novo

tipo de imagem, imagens de síntese, que nos remetem a "uma nova relação entre

imagem e linguagem", anexando ao legível a existência do visível. Para Couchot, a

imagem de síntese é constituída por pontos descontínuos, "cada ponto é definido por

duas coordenadas. (...) abcissas e ordenadas correspondem às linhas horizontais e

verticais que constituem a trama invisível da imagem" (1982).

Essa imagem radicaliza os princípios sob os quais a sociedade moderna vive.

Reduzindo, ou seria melhor dizer, recodificando toda a nossa cultura em dados

numéricos, a imagem de síntese não nos remete mais ao real, mas a uma modelização.

Como afirma Couchot, ela

torna-se o lugar, e define o instante em que [objeto e sujeito] se conectam, se absorvem e se hibridam um no outro – onde eles comutam. As fronteiras do mundo real entre objeto, sujeito e imagem se dissolvem no mundo virtual. A imagem só existe na medida em que o sujeito entra nela. (2003, p.188).

Essas imagens não possuem referente no real, como as imagens analógicas, mas são

uma simulação numérica, ou seja, uma interpretação da realidade em dados eletrônicos

matemáticos. Seu formato, não-linear, potencialmente interativo, pode produzir novas

abordagens do discurso imagético, dando conta de algumas das ambiguidades e

limitações que a imagem analógica não conseguia.

Suas cores – um elemento básico da percepção visual – são produzidas por sistemas numéricos, operações lógicas e displays eletrônicos. Por isso, permitem operações de imersão e navegabilidade que expandem a visão, incorporando outros sentidos e gestos ao processo de interação com imagens. (BEIGUELMAN, 2010)

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No livro After Photography (2009), Fred Ritchin aborda a produção de imagens pós-

revolução digital e como o formato numérico tem transformado nossos modos de ver e

pensar, em suma, nossa percepção de mundo. O formato digital modifica as imagens e

nós modificamos nosso relacionamento com o visual.

Curiosamente, Ritchin observa que usamos termos do nosso cotidiano e da natureza (ou

mesmo um ponto de vista moldado por ela) – ele exemplifica: apple, mouse, web,

blackberry, windows, lap top, desk top, Word, personal assistant, firefox - para

descrever o ambiente on line, que não tem cheiro, gosto, e em que o tato é reduzido ao

clique e à digitação e a visão é continuamente emoldurada por outro retângulo (2009,

p.15). Mais um aspecto do apaziguamento de instabilidades que Beiguelman destaca em

seu livro.

E mesmo diante de uma plataforma sem sabor, sem cheiro, e com o tato e a visão,

limitados aos elementos da máquina (mouse, teclado e tela), somos capazes de vivenciar

as mais diversas experiências – sociais, políticas, estéticas, etc..

O computador tem a capacidade de emitir sobre as interfaces de saída informações visuais – geralmente sobre a tela – ou sonoras [...]. O espectador, por sua vez, age sobre o computador através de diferentes interfaces de entrada por meio de seus dedos, da mão, dos movimentos do corpo, dos comandos sonoros ou mais raramente vocais, etc., que abrem o sistema sobre seu meio ambiente. A manipulação de uma interface de entrada não é somente por meio de comunicação entre o espectador e o computador, ela produz igualmente efeitos sobre o aparelho sensorial do espectador. (COUCHOT, 2003, p.221)

As imagens são apenas um dentre tantos mediadores responsáveis pela reformulação da

nossa sensibilidade em contato com as novas mídias. Estimulados cada vez mais a viver

boa parte do nosso tempo diante do computador, somos obrigados a aprender a filtrar o

fluxo de informação digital em busca do que deve ser visto, arquivado, reutilizado, etc.

Nossa forma de lidar com essas novas mídias foi nomeada pela pesquisadora Linda

Stone como um estado de “atenção continuamente parcial” (continuous partial

attention) (apud RITCHIN, 2009, p. 18), que descreve a forma de assimilação de

conteúdo mais comum para os usuários da web: a multitarefa ou multitasking.

Inundados por uma quantidade de imagens muito maior e pelo surgimento instantâneo

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de novos conteúdos na Internet, nosso aparelho perceptivo passa por uma adaptação

para ser capaz de, ou pelo menos tentar, dar conta da maior quantidade de informação.

Esse tipo de conflito faz com que, diante do computador, dividamos nossa atenção

continuamente entre múltiplas tarefas, no fim das contas, não dedicando uma atenção

total a cada uma delas.

A fotografia digital oferece ao nosso aparelho perceptivo uma profusão de imagens,

numa produção superabundante e muitas vezes com função exclusiva de

entretenimento, que corre o risco de sobrecarregar nossos sentidos. Ter consciência

desse processo ajuda a estimularmos produção e consumo mais responsáveis de

imagens.

Mais do que isso, observar as particularidades da lógica digital pode facilitar a

exploração das diversas potencialidades oferecidas por essa nova linguagem, tais como:

a amplificação do alcance da comunicação; a possibilidade de acabar com as

ambiguidades dos conteúdos, contextualizando-os com outras informações; o incentivo

à seleção de conteúdos a ser operada pelo usuário de internet; o estímulo à

interatividade e às respostas; enfim, a dinamização do processo comunicativo.

Pensar novas estratégias de apresentação de imagens explorando as novas mídias é

apontar para o desenvolvimento de formas de interação com os conteúdos culturais, que

contemplem o interesse de uma sociedade cada vez mais envolvida na simulação26 e se

adeque a sua lógica numérica. Afinal, a questão que se impõe é a mesma feita por

Ritchin: por que fazer a mesma coisa que se pode fazer no papel quando o digital

oferece tantas possibilidades? (2009, p. 101)

Repensar a forma da fotografia é um caminho para transformar nossos modos de visão,

ampliando as possibilidades comunicativas do frame fotográfico e conciliando toda uma

sorte de informações e referências possíveis. Nesse contexto, Ritchin defende que

um novo tipo de fotografia surge, nem janela, nem espelho, mas mosaico. Ela nos leva a múltiplas vias – o hipertexto. Nele, a fotografia

26 Entende-se aqui o conceito de simulação conforme foi abordado por Couchot: a simulação (numérica) não busca nem imitar nem fingir o real, com a vontade secreta de nos extraviar. Ela busca, em contrapartida, substituí-lo por um modelo lógico-matemático que não seja uma imagem enganadora como o simulacro, mas uma interpretação formalizada da realidade ditada pelas leis da racionalidade científica. (2003, p.176)

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não é apenas um objeto tangível, um retângulo relembrando uma pintura, mas sim uma imagem efêmera feita de ladrilhos. (RITCHIN, 2009 p.70)

A analogia do mosaico é um desenvolvimento de Ritchin a partir da exposição “Mirrors

and Windows”, curada em 1978 por John Szarkowski que, na ocasião, explicou que os

fotógrafos ali apresentados estavam divididos em duas categorias: “mirror” (espelho),

com os trabalhos daqueles que pensam a fotografia como um meio de expressão de si

mesmo, e “window”, com os trabalhos dos que pensam a fotografia como um meio de

exploração.

Mcluhan já havia proposto essa comparação com o mosaico ao estudar a imagem da

televisão, no livro Os Meios de Comunicação como extensões do Homem (1974). Para

ele, esse tipo de imagem exigia do olho um trabalho de recomposição sintética e uma

focalização diferenciada daquela imposta pela leitura, por exemplo. Em comparação

com a comunicação escrita, a imagem televisa era descontínua, assimétrica, não-linear

(MCLUHAN, 1974, p.375). O caráter de mosaico que McLuhan via na TV estava

relacionado à confusão de informações que a televisão jogava diante do telespectador,

sem que, em contrapartida, fosse oferecida a esse espectador alguma forma de

segurança diante da perda da linearidade da escrita.

Ritchin, por sua vez, analisa a imagem digital sob essa perspectiva do mosaico que

admite a fotografia como uma “meta-imagem” (2009, p. 141), uma malha de pontos

potencialmente interativos, que a conectam com o todo dinâmico de informação na rede.

A fotografia hipertextual entende o ambiente digital como um espaço a ser descoberto.

O autor observa que a fotografia no ambiente digital é wired, ou seja, sem fio,

instantânea, maleável, automática, faz parte de uma imensa multimídia, capaz de

influenciar e mudar toda a produção cultural do séc. XXI.

On line, uma série de operações nos permite desafiar a estrutura tradicional da

fotografia. Outros gestos são possíveis com o mouse e o jogo tátil estabelecido entre ele

e o computador.

Estar em contato com uma imagem pode não ser mais, como era há menos de meio

século, ter essa imagem nas mãos, sentir com os dedos uma espécie de materialização

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do que o olho vê. No ambiente digital, a imagem é uma tela composta de milhões de

pixels, prontos para se comportar como portas a nos levar a diversos outros caminhos.

Não é a superfície que é relevante para a imagem digital e sim a interface mediada pela

superfície. A interface é justamente o que vai traduzir os processos algoritmos da

linguagem computacional em algo compreensível à linguagem humana e que, por sua

vez, vai recodificar os gestos humanos em ações compreensíveis ao computador,

permitindo a ocorrência de um contato sensível entre homem e máquina.

Essas trocas entre o corpo e o computador são fundamentadas em um modo dialógico

de comunicação, o que produz uma relação com a imagem completamente diferente. A

imagem numérica permite uma interatividade quase imediata entre autor e espectador. O

resultado é uma participação fortemente ativa deste último mesmo na produção de uma

obra.

Até os conceitos de autor e espectador se alteram nesse modo de diálogo estabelecido

entre homem e máquina. Couchot, ao falar sobre a arte de modo geral, lembra que “a

obra é um objeto em que cada um pode encontrar a forma originária concebida pelo

autor, mas na qual cada um ocasiona uma abertura através da releitura pessoal que faz

dela, sua sensibilidade, sua cultura” (2003, p. 138). Essa releitura pessoal atinge um

estado muito específico com a informação numérica.

Ao poder do autor de responsabilidade sobre a obra, é equiparado o poder do espectador

que, percorrendo a obra segundo seus próprios caminhos, torna-se co-autor de seu

sentido. “Cada obra é, de uma certa maneira, única sem ser original, uma vez que cada

confrontação com a obra, cada leitura-visão dialógica é singular e reiterável”

(COUCHOT, 2003, p.298).

Isso dá ainda mais razão a nossa afirmação de enriquecimento do sentido da imagem já

que, como bem destaca Couchot, ao contrário do que acontece na mídia de massa, as

informações numéricas têm a plataforma do computador como um espaço de

remodulação de seu sentido, ou seja, o sentido da mensagem não se define previamente,

pela fonte emissora, mas se constrói na interação que a interface promove entre autor,

observador e computador, interconectados de forma dialógica.

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Não há mais comunicação, no sentido estrito, entre um enunciador e seu destinatário, mas comutação mais ou menos instantânea entre um receptor tornado emissor, um emissor tornado (eventualmente) receptor e um ‘propósito’ flutuante, que por sua vez emite e recebe, se aumenta ou se reduz. (2003, p. 187)

A imagem numérica se afirma na medida em que o espectador pode intervir nela. Por

isso, não se trata mais de uma unidade estática e não possui os mesmos efeitos de

sentido que as imagens tradicionais. Faz-se imprescindível, portanto, a articulação dessa

possibilidade polissêmica que a interface e seu modelo interativo engendram nos

hiperconteúdos, e entre eles a hiperfotografia. “Em suma, polissemia ao invés de

monotonia” (2001, p.31), como aponta Beiguelman a respeito da leitura na era digital.

A multiplicidade de sentidos dos conteúdos culturais é inerente ao contexto interativo

da informação em rede.

As novas condições de acesso à informação (ao mesmo tempo no sentido cibernético e jornalístico) oferecidas pela interatividade numérica (imersão na imagem, navegação, etc.) privilegiam um visual enriquecido e como que “recorporalizado”, fortemente sinestésico, em detrimento de um visual sequencial, linear e essencialmente retiniano. (COUCHOT, 2003, p.181)

Essa possibilidade de enriquecimento da imagem a partir do numérico é um dos

principais aspectos a serem repensados na codificação de formatos de visualização

novos para a fotografia. “Cada pixel pode ser reconfigurado para servir às portas da

percepção, guiando a novas aventuras de exploração” (RITCHIN, 2009, p. 70). A

própria imagem digital pode ser um caminho, um link com outro conteúdo.

Para Ritchin, devemos explorar um novo template para a fotografia no ambiente digital,

que permita guardar informações em todas as quatro arestas da obra, informações que

passam a ser acessadas com o cursor do mouse, como o autor exemplifica no trecho

abaixo:

O canto inferior direito [de uma fotografia] pode conter questões de autoria e copyright; o canto inferior esquerdo poderia conter a

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legenda e esclarecedores comentários do fotógrafo; o canto superior esquerdo poderia conter informações sobre como o tema respondeu à imagem; e no canto superior direito poderia ter informações a respeito de como o leitor pode se envolver, ajudar, aprender mais, fornecendo endereços de web e outras orientações. (2009, p.72)

Há que se pensar no quanto esse formato pode tornar a foto dependente do texto, como

se não fosse possível à imagem encontrar soluções próprias para suas ambigüidades.

Mas é importante perceber que a capacidade de guardar esse conteúdo mencionado por

Ritchin é um incentivo ao diálogo da imagem com qualquer forma de conteúdo,

inclusive a própria imagem.

Em acordo com a difusão do hipertexto, Ritchin defende a prática de uma

hiperfotografia – uma fotografia dinâmica, linkada, que poderia abrir e ampliar a

imagem, permitindo a ela um papel mais vibrante e dialético numa plataforma

multimídia.

f. As novas potencialidades da fotografia: a hiperfotografia

A fotografia digital, na forma como vem sendo abordada geralmente (como uma

simples “impressão” nos desktops dos computadores) não faz uso do potencial

transformador da fotografia como um mosaico interativo. Geralmente, as escolhas

permitidas ao observador ao interagir com imagens em plataformas digitais têm tido

mais a ver com a sequência de visualização das imagens do que com qualquer

exploração de outras abordagens narrativas, de outras informações até mesmo visuais.

As flexibilidades emergentes da encarnação digital da fotografia, incluindo a capacidade de vincular todos os tipos de dados, para rapidamente representar o conceito, bem como a percepção, permitem explorações mais intensas e produtivas das questões menos visíveis. (RITCHIN, 2009, p.179)

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Como mensagem hipertextual, a fotografia pode nos revelar diversos universos

paralelos dentro de uma mesma informação, possibilitando a construção de diálogos

entre incontáveis perspectivas e reflexões.

Ao espectador é oferecido mais do que simplesmente a assimilação de uma mensagem

visual, a hiperfotografia incentiva a participação dele, exigindo e produzindo uma nova

forma de ver: ver-clicando, ver-aprofundando, ver os caminhos diferentes possibilitados

pela mesma imagem.

“Ao contrário da fotografia analógica, em que o espectador é persuadido a nunca tocar

o seu centro pra não deixar marcas, o leitor é convidado a entrar no interior da imagem

digital” (RITCHIN, 2009, p. 74). Diante da foto digital, o leitor pode desenvolver uma

série de operações que o transformam em ator do processo, alguém que pode escolher

entre pular uma imagem, parar numa imagem, observar atentamente, ver

superficialmente, ampliar, reduzir, minimizá-la, maximizá-la, salvá-la.

A visualização passa, portanto, a ser uma ação ativa, dependente quase exclusivamente

da decisão do espectador. Se num espaço de exibição tradicional, como uma galeria ou

um museu, o espectador precisava se adequar às regras do comportamento social para

usufruir de uma obra; na Internet, é ele quem dita grande parte das regras com a qual

convive.

Aonde a imagem do tanque de guerra vai me levar – para fotografias da batalha, ou para o vídeo de uma entrevista com os soldados, ou para os perfis dos políticos em suas conferências de paz [...]? E o garotinho – vou aprender sobre sua família, sobre ele, ou sobre a quantidade de civis vítimas desse conflito específico?[...] Ele vai falar comigo? Eu deveria, se sou uma testemunha, afirmar minha própria opinião, repudiando o estranhamento das imagens ou afirmando seu apego aos fatos, e ver minha resposta e minhas questões se tornarem parte do contexto mais amplo? Deveria eu, em certo sentido, tomar o controle da imagem? (idem, p. 74)

A quantidade massiva de informação exige do leitor uma postura mais ativa em busca

do conteúdo que lhe interessa. Na web, a imagem pode ser apenas um ponto de partida.

Seus milhares de ladrilhos, os pixels, nos possibilitam criar acesso fácil a outros

destinos, através de menus, mapas de imagem, etc. Diante da imagem digital, uma série

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de novos comportamentos nos são permitidos. Podemos simplesmente ver a imagem,

apreciá-la, podemos salvá-la, numa tentativa de resguardá-la, podemos imprimi-la, para

vê-la se corporificar, podemos ampliá-la, para melhor observar, podemos reduzir, para

ter uma visão mais geral, podemos reeditá-la do jeito que bem entendermos, podemos

enviá-la por email e incentivar sua divulgação.

Tudo isso a uma distância mínima entre o nosso corpo e a tela do computador. Guiados

pelo mouse, tateando o teclado, fazemos da visão um sentido mais amplificado, ou

amplamente conjugado à necessidade do toque. É dessa forma que as imagens digitais

abrem espaço para uma espécie de expansão da nossa visão, e até nos exigem isso ao

estimular novas formas de navegar sobre elas.

Trata-se de usar e abusar daquilo que confere especificidade à imagem digital: sua possibilidade de ser mapeável, de incorporar comportamentos e ações, transformando-se em imagem-interface, recuperando procedimentos e atualizando a linguagem e os códigos visuais no contexto híbrido da Internet. (BEIGUELMAN, 2003, p. 25)

Atento a isto, o artista americano Jonathan Harris tem se tornado um dos principais

nomes nas Artes Visuais27 justamente por desenvolver projetos que reimaginam,

redirecionam e potencializam a relação que os homens estabelecem com a tecnologia e,

entre si, em sociedade. Estes projetos traçam um panorama sobre como as pessoas têm

se relacionado com a cultura através da web, como elas usam novos mecanismos para

contar suas próprias histórias, além de mostrar uma nova gama de potencialidades que

esses novos mecanismos incorporam à nossa produção cultural. Adequados ao processo

de hibridização das mídias, esses projetos geralmente interrelacionam texto, imagem e

sons de modo a unir as três linguagens de forma indissociável. Neste capítulo,

analisaremos um dos projetos de Harris: The Whale Hunt28.

Em 2007, Harry e o amigo fotógrafo Andrew Moore viajaram até o Alaska para

documentar o período de caça a baleias na vila de Barrow. Eles passaram nove dias,

27 Em 2005, Jonathan Harris venceu a bolsa de estudos Fabrica e ganhou três Webby Awards . O trabalho dele também recebeu o reconhecimento de publicações especializadas como a Print Magazine (que o colocou na lista New Visual Artist de 2008) e também do The World Economic Forum (que o colocou na lista de Young Global Leader em 2009).

28 Disponível em: http://thewhalehunt.org/whalehunt.html 61

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entre os preparativos e o acampamento dos caçadores. Segundo o próprio artista, o

projeto intitulado The Whale Hunt (A Caça às Baleias) é um experimento sobre

narrativas criadas por homens.

Eu documentei toda a experiência em uma sequência intensa de 3.214 fotografias, começando com a corrida de táxi para o aeroporto de Newark, e terminando com o abate da segunda baleia, sete dias depois. As fotografias foram tiradas em intervalos de cinco minutos, mesmo durante o sono (usando um cronômetro), o que cria uma "pulsação fotográfica" constante. Em momentos de alta adrenalina, este batimento cardíaco fotográfico acelarava (a uma taxa máxima de 37 fotos em cinco minutos, enquanto a primeira baleia estava sendo cortada), imitando o ritmo de mudança do meu próprio coração. (traduzido de HARRIS, [S.d.])29

O autor explica que o objetivo do trabalho estava dividido em três questões: a primeira

diz respeito à experimentação de uma nova interface de narrativa. A história da caça das

baleias é contada passo a passo em uma sequência de imagens que tenta simular um

ritmo de uma frequência cardíaca, cujo gráfico está disponibilizado na parte inferior das

imagens. É o modelo dessa frequência que dita o ritmo de reprodução de cada imagem,

sugerindo o nível de envolvimento do fotógrafo nas cenas e envolvendo o observador.

Essa timeline pode ter seu desenvolvimento regulado de acordo com o interesse do

espectador, que pode ver cada imagem de forma pausada, ou ainda isolar cada parte da

narrativa maior, escolher ordenar suas imagens pelo tempo, etc.

Um dos aspectos mais enfatizados por Harris é justamente a possibilidade de

transformação dessa narrativa, que depende especialmente do usuário para se

desenvolver. “Cada espectador vai vivenciar a história da caça às baleias de maneira

diferente, e não necessariamente de forma linear, construindo a sua própria

compreensão da experiência” (traduzido de HARRIS, [S.d.]30), afirma.

29 “I documented the entire experience with a plodding sequence of 3,214 photographs, beginning with the taxi ride to Newark airport, and ending with the butchering of the second whale, seven days later. The photographs were taken at five-minute intervals, even while sleeping (using a chronometer), establishing a constant “photographic heartbeat”. In moments of high adrenaline, this photographic heartbeat would quicken (to a maximum rate of 37 pictures in five minutes while the first whale was being cut up), mimicking the changing pace of my own heartbeat.”

30 “Each viewer will experience the whale hunt narrative differently and not necessarily in a linear fashion, constructing his or her own understanding of the experience.” (HARRIS, [S.d.])

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A segunda questão que norteia o trabalho diz respeito a estimular um emparelhamento

entre o humano e a máquina, ao estipular que as imagens fossem produzidas

incessantemente sem serem submetidas de forma completa à escolha do fotógrafo.

Vivendo um processo de coleta incessante e automatizada de dados semelhante ao da

computação, Harris tenta se tornar sensível à perspectiva da máquina, caminho numa

espécie de contramão de iniciativas anteriores, como a inteligência artificial que busca

codificar uma espécie de raciocício humano em computadores.

Por fim, o terceiro objetivo levantado por ele no projeto era bastante prático: traduzir

essa experiência pessoal vivida no mundo físico para a Internet, de forma a contemplar

as linguagens e potencialidades da comunicação em rede. Mas, apesar de ser uma

questão prática, a reprodução otimizada para o contexto digital tem sido um dos

aspectos mais negligenciados na produção de conteúdos fotográficos para a Internet.

Se por um lado as potencialidades da difusão de conteúdos têm sido percebidas e

abordadas por muitos produtores de imagem, como artistas e veículos de comunicação;

por outro lado, as ilimitadas qualidades do computador como plataforma de reprodução

ainda continuam pouco exploradas. Algumas iniciativas mais pontuais, como o projeto

acima citado, já se destacam nesse contexto, enquanto a grande parte da produção ainda

repercute a imagem digital seguindo as mesmas expectativas de uma imagem analógica.

É fácil reconhecer que muitos dos produtores de imagens não percebem as

potencialidades que a web oferece no momento de reprodução do conteúdo. Essa

situação segue a mesma linha de raciocínio proposta por Beiguelman no conceito de

apaziguamento de instabilidades citado anteriormente.

Grande parte das imagens divulgadas on line retomam o formato dos álbuns de

fotografias analógicas, oferecendo ao observador unicamente a opção de ver a imagem,

sem que ela incentive a construção de uma narrativa visual mais complexa, com a

vinculação de outros conteúdos e informações. A imagem é simplesmente o que

podemos acessar visualmente entre suas arestas.

Enciclopédicas em termos de possibilidades, efêmeras na tela, oferecendo um enorme número de percpectivas e combinações entre mídias, atualizadas continuamente e constantemente presentes em parte das próprias imagens do observador, essas novas estratégias das

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imagens digitais não exatamente oferecem um objeto concreto da mesma forma que a fotografia convencional faz”. (RITCHIN, 2009 p.57)

Perceber que é importante considerar o interesse do espectador em percorrer outros

caminhos e montar estratégias para que essas imagens não se esgotem nas suas próprias

arestas é valorizar as possibilidades que o formato digital nos oferece. “Essa fotografia

tem a possibilidade de representar um ponto de vista mais sintético e impressionista,

capaz de mesclar-se com outras imagens ou de criar cópias variadas que podem crescer

como obras derivadas” (RITCHIN, 2009, p.57).

Essas ínumeras possibilidades do formato numérico foram bem exploradas por Harris

em The Whale Hunt. Para entender melhor esse processo de adequação, é interessante

ter acesso às questões colocadas pelo artista para que essa narrativa pudesse ser ajustada

à linguagem digital.

[...] como apresentar um grande conjunto de fotografias (3214) on line, mantendo o tempo de download relativamente breve; como expressar tanto a topografia de toda a narrativa quanto as maneiras pelas quais qualquer momento único se encaixa na narrativa; como extrair e revelar as muitas sub-histórias que ocorriam dentro do contexto da história maior; como transmitir as inúmeras sensações experimentados na caça (tédio, fadiga, curiosidade, excitação, exaustão, beleza sublime) e de forma mais geral como resgatar uma experiência do mundo real tão épica na Internet. (traduzido de HARRIS, [S.d.])31

A solução criada por Harris foi o desenvolvimento de uma interface especial que

corresponda exatamente a essas expectativas e que ofereça ao usuário um mergulho

diferente nesse universo de imagens. No site do projeto, ele explica os fundamentos de

cada ferramenta dessa interface, oferecendo ao usuário condições de transformá-la de

acordo com seus objetivos e vontades pessoais. Bem como afirma Couchot: “é pouca

31 “[…]how to present a large set of photographs (3,214) online while keeping download times relatively brief; how to express both the topography of the entire narrative and the ways in which any single moment fits into that narrative; how to extract and reveal the many substories occuring within the context of the larger story; how to convey the many feelings experienced on the hunt (boredom, fatigue, curiosity, excitement, exhaustion, sublime beauty); and more generally how to restage an epic real world experience on the Internet. The resulting Whale Hunt interface is described in more detail below” (HARRIS, [S.d.])

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coisa clicar sobre um ícone ou sobre um link, mas quando o programa é bem concebido,

os resultados podem ser muito ricos e muito pessoais” (2003, p.279).

Dentro da série de possíveis alterações que cada usuário pode fazer ao navegar pelo site

do projeto de Harris, acho fundamental destacar duas questões que alteram bastante a

nossa experiência com essa fotografia: a disposição em diferentes modos de

visualização e a possibilidade de divisão das imagens em diferentes agrupamentos.

Quanto à visualização, Harris divide o seu álbum de fotografias em três modos: um

oferece uma visualização no formato de mosaico, com a organização das 3.214 imagens

em ordem cronológica em uma grade colorida capaz de revelar padrões de cor em cada

momento, cada situação e atestar uma atmosfera diferente entre os ambientes que

contextualizam a viagem.

Figura 1: Primeira forma de visualização do The Whale Hunt no formato de mosaico.

As outras duas formas de visualização – uma timeline no formato de uma frequência

cardíaca e uma timeline em formato esférico – possuem o mesmo objetivo de mostrar o

ritmo em que as fotos eram feitas ao longo da viagem, dando uma ideia da experiência

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vivida pelo fotógrafo. Em ambos os casos, o usuário pode usar o cursor para selecionar

um pedaço específico da timeline e ver cada imagem de forma isolada.

A questão dos agrupamentos (constraints) pode ser ainda mais ilustrativa do que

estamos defendendo nesse texto. Essa seção oferece ao observador a possibilidade de

restringir a narrativa de acordo com os assuntos, os personagens, os lugares ou até o

ritmo de fotos que o interesse. Esses agrupamentos podem ser usados para isolar várias

pequenas histórias que acontecem dentro da história maior. Cada imagem é classificada

em uma série de tags que as agrupam nesses classificadores (concepts, cast, context,

cadence), que podem ser explorados pelo usuário na criação de uma subnarrativa única.

Por exemplo, podemos selecionar as imagens que contem o próprio Jonathan Harris,

escolher como assunto comida e definir a casa da família Patkotak que o recebeu no

Alasca como o local e, após essas seleções, veremos a única foto em que Harris come

alguma coisa na casa da família. Ou ainda, se selecionarmos como assunto o livro Moby

Dick e o local como o Alaska, teremos uma série de 38 imagens em que Harris lê o livro

como inspiração durante sua viagem.

Figura 2: Visualização em timeline em formato esférico.

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Essa questão dos agrupamentos no projeto The Whale Hunt é um bom exemplo de

como o formato digital e a Internet podem ser duas ferramentas importantes na

construção de uma narrativa interessante para qualquer conteúdo, especialmente a

fotografia.

Figura 3 - Agrupamentos baseados na seleção de classificadores, projeto The Whale Hunt.

É certo que novas formas de interação com a fotografia já são exploradas em algumas

páginas de visualização de imagens na Internet, como por exemplo, o Flickr. Um dos

sites de gerenciamento de fotos mais famosos do mundo, o Flickr possibilita ao usuário

a manutenção de álbuns digitais com algumas funcionalidades específicas como:

vinculação de cada imagem ou álbum a grupos temáticos variados, divulgação das

imagens em redes sociais, permissão de comentários de usuários em qualquer imagem,

sistema de tags para localização de imagens sobre um mesmo tema, possibilidade de

criação de notas ou marcação de pessoas em cada uma das imagens, monitoramento de

estatísticas de visualização da sua página, etc.

No entanto, quando falamos sobre construção narrativa, o Flickr, como a grande maioria

dos álbuns digitais, oferece uma navegação que lembra bastante a linearidade, tradição e

a sequência cronológica dos álbuns analógicos, não sendo oferecidas ao usuário

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possibilidades de construção narrativa mais aprimoradas. Como quase todo o conteúdo

na Internet, a maioria das galerias virtuais, como o Flickr, permitem que o usuário

explore o seu acervo de imagens de forma desordenada, mas sugerem uma navegação

simples e parecida com a interação com imagens analógicas.

Figura 4 - PrintScreen de modo de visualização da plataforma Ffffl*ckr

Bem menos sofisticada que The Whale Hunt, uma outra plataforma de visualização de

imagens que explora algumas das potencialidades da linguagem numérica é o site

ffffl*ckr32. Vinculado ao Flickr, este site trabalha a partir do mapeamento de

informações da conta do usuário, traçando, segundo as características mais recorrentes

de sua navegação, aspectos sobre as imagens que ele costuma visualizar, comentar, e

principalmente marcar como favoritas. A partir daí, o site agrupa algumas imagens e as

sugere ao usuário, na expectativa de que elas correspondam à sua preferência. Cada vez

que o observador clica em uma foto, novas imagens vão aparecendo na tela. É

interessante perceber que essa sugestão conecta o usuário a uma quantidade quase

inesgotável de fotografias que vão aparecendo na tela ao sabor de um clique.

Como destaca Beiguelman, “o que está em pauta aqui é a capacidade de reinvenção da

cronologia pela linkagem das imagens sucessivas.” (2001, p.24). Não somente isso, já

que propomos uma reinvenção narrativa na forma de oferecermos as imagens para a

interação do espectador.

32 http://fffflckr.com/ 68

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Outro projeto de Jonathan Harris que caminha nesta mesma direção é o site We Feel

Fine, que faz uma espécie de scanner virtual das postagens publicadas nos blogs do

mundo inteiro em busca da ocorrência de frases como "i feel" ou "i am feeling" e tenta

organizar um acervo público dessas produções, divulgando textos e imagens que

possam contar um pouco das histórias e sentimentos dessas pessoas.

Figura 5 - Print da página do projeto We Feel Fine, de Jonathan Harris

Os conteúdos são exibidos numa malha de milhares de pontos coloridos em constante

movimento, como um universo cheio de vagalumes. O usuário pode explorar o site de

forma autônoma, escolhendo aleatoriamente entre as opções de conteúdo, ou ainda

restringir as opções, para achar postagens específicas.

É importante deixar claro que todas essas possibilidades de navegação introduzidas pela

linguagem hipertextual são só um dos aspectos e formas de abordagem. Mesmo na

Internet, uma imagem pode não apontar para nada além do que se faz presente

visualmente no seu frame. Ou ainda, por mais que aponte, estará sempre submetida a

outras possibilidades, sem esgotar de todo as potencialidades do formato.

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Não podemos cair na ingenuidade de apresentar o espaço digital como um ambiente já

consolidado e dotado apenas de aspectos favoráveis. Estão apontadas aqui, questões

apenas iniciais, principalmente diante da necessidade cada vez mais presente de

pensarmos a ecologia das imagens digitais (BENTES e FELINTO, 2010) e refletirmos

“sobre a cadeia de produção e o consumo em relação às estéticas que elas engendram e

aos seus contextos de recepção” (BEIGUELMAN, 2010).

É importante notar que a informação, como destacou Ritchin, não é um direito

assegurado ao consumidor, que chegará a ele de forma completa, igualitária,

indiscriminada. Ao contrário, a informação é, sim, algo a ser conquistado de acordo

com nossos interesses, nossas ferramentas de busca, até mesmo no mundo digital.

O mesmo dilema é enfrentado também pela fotografia, cuja reprodutibilidade é levada

às últimas conseqüências no espaço digital, composto em toda a sua totalidade de

arquivos que são eles mesmos cópias que não remetem a nenhum original, mas se

mantém em constante circulação.

Para o conteúdo digital, baseado na combinação de um código numérico complexo, o

original e a cópia são os mesmos. “No mundo analógico, a fotografia da fotografia tem

sempre uma geração a mais de opacidade, não é a mesma; a cópia digital da fotografia

digital é indistinguível ao ponto de o ‘original’ perder o sentido” (RITCHIN, 2009,

p.21).

Domar o conteúdo disposto em rede, impondo-o um limite é tentar ir contra o fluxo

natural e contínuo de dados e ideias característico da Internet. Beiguelman tece um

comentário sobre a escrita digital que pode ser estendido a praticamente todo o

conteúdo em rede on line que, segundo ela aponta, vive o paradoxo de “ao mesmo

tempo em que se confunde com um espaço construído de memória, desenha uma

arquitetura do esquecimento” (BEIGUELMAN, 2003, p.36).

Esse novo espaço que pode nos levar ao esquecimento, por sua fluidez, por se firmar

numa reprodutibilidade efêmera, e principalmente por conviver com um constante

movimento de informações e consequente perda de dados, também pode nos ajudar a

reforçar a rememoração, à medida que nos leva a estabelecer um relacionamento mais

sofisticado com os conteúdos.

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Não é mais a obra que vai ser nossa ferramenta de contar nossas próprias histórias e

resolver nossos problemas de memória, mas o momento em que nós a vemos, o

momento em que nós temos contato com ela e em que ela nos leva a outros lugares.

Douglas Davis, ao estudar a arte e sua reprodutibilidade digital afirma que: “Aqui é o

lugar em que a aura reside – não na coisa mesma mas na originalidade do momento em

que a vemos, a ouvimos, a lemos, repetimos, revisamos” (1995, p.386).

A fotografia, suas formas de memorização, suas funções econômicas como produto

material, tentam agora se adaptar de forma consistente ao ambiente digital e com a série

de relacionamentos entre autor e público que esse ambiente permite. Cabe também aos

consumidores e produtores de imagens buscarem essa adaptação, compreendendo os

parâmetros que regem essa nova linguagem.

Não é a tecnologia, no entanto, que vai produzir sozinha o desenvolvimento desse

diálogo. Ninguém consegue sempre o que quer, mesmo de um computador, defende

Ritchin.

A observação da existência de um novo contexto e a análise de suas características nos

obrigam a estabelecer novas ligações com a comunicação, novos relacionamentos com

as tecnologias. Muito já se conseguiu mudar na nossa forma de conviver com a imagem

digital, mas ainda é gigantesco o conjunto de informações que podem ser melhor

compartilhadas. O novo horizonte do conteúdo digital está apenas sendo traçado.

Eixo 4 – Novas dinâmicas perceptivas

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Como pudemos observar nos capítulos anteriores, a influência que as tecnologias do

cálculo automático têm exercido sobre a imagem não se limita a um campo específico,

mas já controla todos os aspectos da nossa relação com essas formas de expressão -

produção, reprodução, conservação e difusão não são as mesmas desde que a imagem se

tornou digital.

Anteriormente, busquei focar nossa reflexão na reprodução e nas possibilidades de

interação do homem com esses novos processos de visualização de imagens. Nesse

último eixo do trabalho, voltaremos nossos olhares para os resultados provocados no

indivíduo em contato com essas novas formas de reprodução - ou seja, para as

transformações que obras reproduzidas e difundidas no computador provocam na

sensibilidade e nos mecanismos de percepção do observador.

A participação da informação numérica em todos os nossos modos de comunicação tem

modificado intensamente nossos hábitos culturais e, como consequência, nossos hábitos

perceptivos.

A fotografia foi capaz de nos ensinar que uma nova técnica não é simplesmente um

novo modo de produção, mas que, alterando nossas formas de representação, é também

um meio de transformar nossa forma de perceber o mundo, nós mesmos e a sociedade.

Pouco mais de 100 anos depois, a imagem digital vai recolocar novamente nossos

modos de figuração no centro de outra transformação da percepção. “Uma nova técnica

figurativa [...] modela a percepção; age sobre o imaginário; impõe uma lógica figurativa

e uma visão de mundo” (p.19), afirma Couchot no livro A tecnologia na arte: da

fotografia à realidade virtual (2003).

Nessa obra, o artista e pesquisador francês estuda os efeitos tecnestésicos que essas

técnicas operam na nossa percepção. Como efeito tecnestésico, ele admite “a

experiência adquirida durante manipulações técnicas” 33.

Analisando o formato digital a partir de sua influência na arte do século XX, o autor

afirma que “o numérico parece, aos olhos de alguns, despojar o criador de toda

singularidade e de toda expressividade e reduzir o ato da criação a automatismos

maquinícos” (2003, p.15) Isso ocorre, segundo Couchot, porque a experiência

33 Entrevista a Marco Aurélio Fiochi, em 12 of Jun, 2007 http://www.cibercultura.org.br/tikiwiki/tiki-read_article.php?articleId=22

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tecnestésica acontece sob um modo de existência que nos expõe a uma diferente

subjetividade, associada a um forte caráter de despersonalização.

A técnica, ao contrário da mão do artista, sempre sofreu com o preconceito de incentivar

uma homogeneização das formas de expressão, que seria responsável por tornar

anônima a própria subjetividade do indivíduo. Nossa relação com o computador é

marcada por um número cada vez maior de ações numerizadas e automáticas. Essa

percepção levou-nos em inúmeros momentos a considerar uma abordagem reducionista

da subjetividade tanto no ato de criação quanto no ato de recepção de conteúdos

numéricos.

Ao longo dos séculos XIX e XX, a arte viveu os conflitos de questionar essa relação do

artista e do observador com a tecnologia e a subjetividade. Essa tendência se firma por

ser a arte o caminho mais palpável na reeducação do homem diante das provações a que

sua sensibilidade é submetida pela tecnologia.

Passamos a ser inundados por um fluxo cada vez maior de informação (entre textos,

sons e imagens reproduzidos pelo computador e distribuídos na Internet) sem que

consigamos a isso atribuir significações exatas. Vivemos o que Couchot chama de

“deriva de sentido sistemática” (2003, p.68) – um estado em que a quantidade de

informação não cessa de ser produzida, sem fins claros, não sendo, portanto, importante

saber o que fazer com ela. Vivemos à deriva, em um mar de informação que não para de

nos inundar.

A partir das tecnologias de trato automático da informação, como o computador, se

opera uma reformulação nos próprios conceitos da comunicação, que passa a ser

percebida como uma troca de mensagens entre organismos, “independente de suas

naturezas físicas” (Moles apud COUCHOT, 2003, p. 97).

Essa noção, introduzida pela cibernética de Norbert Wiener, vai modificar nossa forma

de nos relacionarmos com as máquinas em geral e nossa forma de perceber as

mensagens. “Ao limite da concretude não existe mais nem natureza nem artifício, mas

uma síntese original e movente que podemos chamar uma natureza artificial ou um

artifício natural” (DELPECH, 1968, p. 43).

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Couchot afirma que com a computação, vivemos em um “depósito de percepções,

comportamentos novos onde o artifício domina um pouco mais sobre o natural” (2003,

p.25), o que nos impulsiona a uma intimidade com a máquina a ponto de

potencialmente possibilitar um hibridismo de nós mesmos – agindo e pensando parte

como humanos, parte como as máquinas, como se fôssemos os homens biônicos criados

pela ficção científica, ou os androides de Blade Runner. Somos os computadores e os

computadores somos nós.

Mas não é apenas de forma geral que essa nova codificação da comunicação causa

mudanças na nossa percepção ao interagirmos com a infinidade de conteúdos com que

convivemos em novos suportes de informação.

Pequenos fatores da recepção também transformam a nossa percepção. Diante do

computador, somos impelidos a efetuar certos tipos de ação, atuar de tal modo para que

possamos nos fazer entender pela inteligência da máquina. O fato de que essa

informação nos chega por uma tela, o fato de, geralmente, estarmos sentados diante

dela, o fato de, geralmente, estarmos sozinhos diante dela; tudo isso influencia na

recepção do conteúdo.

Com o desenvolvimento da tecnologia digital, tornou-se fundamental a criação de novas

codificações dos gestos humanos para que esse diálogo homem-máquina se tornasse

ainda mais produtivo. Antes do desenvolvimento de certas tecnologias numéricas muito

avançadas que se conectam com os humanos pelo tato no touchscreen, pela detecção de

movimento ou pela identificação das modulações da voz, essas mudanças gestuais já

foram introduzidas pelo mouse e pelo teclado.

É através desses dois instrumentos que primeiro nos conectamos com o mundo

cibernético, são eles que nos colocam em contato direto com os conteúdos a que

acessamos pelo computador. Atados ao mouse, vamos apontando os caminhos que nos

levarão a um universo cada vez mais inesgotável de informações em rede. Com o

teclado, vamos expressando nossa subjetividade de forma simbólica, através de uma

série de operações que, mesmo automatizadas, são reposicionadas de acordo com nossas

próprias vontades.

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Além deles, a tela se faz fundamental na nossa interatividade com os conteúdos digitais.

Sobre ela, Manovich afirma “podemos debater se a nossa sociedade é a sociedade do

espetáculo ou da simulação, mas, indubitavelmente, é a sociedade da tela” (2001, p.99).

Essa tecnologia, que como o autor lembra, é utilizada para fins de representação visual

há séculos – na pintura, na fotografia, no cinema, etc.-, nas últimas décadas, tem se

tornado o meio principal de acesso à informação. Por meio da tela, vivenciamos as

últimas tecnologias da realidade virtual, lemos jornal, nos conectamos com nossos

amigos, apreciamos uma obra de arte, etc.

Manovich define:

a tela é um quadro que separa dois espaços completamente diferentes que de alguma forma coexistem. [...] É uma superfície retangular achatada, com o propósito de oferecer uma visão frontal, dentro do nosso espaço normal, o espaço do nosso corpo, e atua como uma janela para outro espaço. Esse outro espaço, o espaço de representação, tipicamente, tem uma escala diferente da escala do nosso espaço normal. (2001, p.99 e 100).

Essa conceituação clássica se aplica de forma geral a qualquer tela – seja uma tela de

pintura, uma fotografia, a tela do cinema ou ainda o monitor do computador. Mas é

importante destacar algumas especificidades de um meio ao outro, como as observadas

pelo autor.

Manovich afirma que, “em vez de ser um meio neutro de apresentar informação, a tela é

agressiva” (2001). Cada um dos tipos de tela é capaz de realizar uma série de operações

que dá sentido a um determinado conteúdo, apresentando-o, filtrando-o ou

simplesmente ignorando sua existência. No cinema, a tela, gigantesca, se impõe diante

do espectador, induzindo-o a se conectar diretamente com a imagem que, por ser

exibida em um ambiente escuro e neutralizado, convence ainda mais o público. A tela

da televisão, por sua vez, menor e misturada a outros objetos do dia-a-dia do

observador, não exige uma concentração total e é integrada à sua rotina, permanecendo

ligada mesmo enquanto ele desempenha outras atividades.

Essas formas de imagens, apesar de exibirem um conteúdo dinâmico, reproduzem um

regime de visão estável, em que o observador, sentado, imóvel, recebe o conteúdo de

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uma fonte emissora autoritária – sendo a ele reservados apenas os direitos de zapear os

canais, no caso da TV, ou abandonar a sala de projeção, no caso do cinema.

Com a tela do computador um novo regime visual é experimentado:

[...]em vez de mostrar uma imagem única, uma tela de computador normalmente exibe um número de janelas coexistentes. De fato, a coexistência de um número de janelas sobrepostas é um princípio fundamental da interface gráfica de um computador moderno. (MANOVICH, 2001, p.100)

Neste sentido, na tela do computador, a atenção do usuário está dividida entre múltiplas

janelas, sem que a nenhuma seja garantido o domínio sobre as outras. Para Manovich,

essa característica poderia ser comparada ao zapping da televisão, mas acho importante

lembrarmos a questão da interatividade na comunicação numérica, um dos principais

pontos a tornar o computador um espaço de conteúdo tão peculiar.

Pelo fato de a tela do computador ser um tipo interativo de tela que, ao ser acessada

através de múltiplos comandos, pode alterar completamente o conteúdo ali exibido, a

presença do usuário diante de sua imagem é marcada por um grau diferenciado de

participação – o que se diferencia do regime visual estável da televisão ou do cinema e o

que nos distancia da prática do zapping.

No computador, a atenção do observador se tornou ainda mais instável, ele não se

concentra mais exclusivamente em uma só imagem. O fato de a informação estar

completamente disseminada por toda a rede tem incentivado o usuário a manter sua

atenção entre múltiplos universos coexistentes. É como se ao invés de estar disposto

fixamente diante de uma imagem única, como no cinema, ou de estar preso a uma

imagem de cada vez, como na televisão, o observador tivesse a possibilidade de

percorrer os universos possibilitados por múltiplas imagens, dispostas em janelas que

coexistem em um mesmo ambiente. Tudo isso submetido ao seu poder de escolha, de

resposta, de interação.

É certo que não se pode controlar a forma através da qual o observador recebe qualquer

imagem, nem como isto se dá em termos significativos para ele – seja isso em uma sala

de projeção cinematográfica, em uma galeria ou em um jornal impresso. Mas uma

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imagem digital, apesar de não ter a mesma corporificação que uma imagem analógica,

se materializa na tela do computador do observador, e entre ele e o que ele vê, a uma

distância mínima, é viável supormos que possa emergir um momento de contemplação

mais autêntico. No computador, uma nova forma de recepção se torna possível, mais

íntima, mais individual, menos submetida aos constrangimentos e obrigações sociais

que uma imagem como o cinema, ou um quadro em um museu poderiam exigir.

Benjamin faz uma observação importante sobre a influência do caráter coletivo da sala

de projeção na percepção dos indivíduos (1991), ele diz:

no cinema, mais que em qualquer outra arte, as reações do indivíduo, cuja soma constitui a reação coletiva do público são condicionadas, desde o início, pelo caráter coletivo dessa reação. Ao mesmo tempo em que essas reações se manifestam, elas se controlam mutuamente (1991, p.188). Sobre a pintura, ele afirma: a pintura não pode ser objeto de uma recepção coletiva, como foi sempre o caso da arquitetura, como antes foi o caso da epopeia, e como hoje é o caso do cinema. (1991, p.188)

Dentro do espaço neutro da sala escura de projeção, o cinema exige a recepção coletiva

de uma obra – o que não se caracterizaria exatamente por contemplação, conceito mais

relacionado à pintura, mas por uma espécie de atenção sustentada pelo hábito do olho.

Diante das imagens cinematográficas, apenas é possível uma recepção tátil

caracterizada pelo passeio do olho pelos frames projetados em sequência. Novas

responsabilidades foram impostas à percepção humana porque a contemplação não dava

mais conta disso.

Foi Crary quem destacou que a atenção moderna é baseada em seu potencial para a

desatenção, a distração, porque esse seria o requisito para impedir a percepção de ser

um caos de sensações (apud CHARNEY e SCHWARTZ, 2004). Ante o choque

sensorial de informações que a vida moderna oferecia - entre novas noções espaciais e

temporais -, a distração era a forma de o homem resguardar sua sanidade.

Por sua vez, alguns aspectos da informação em rede numérica transformam o momento

de recepção dos conteúdos e provocam sensíveis mudanças nos nossos hábitos

perceptivos. Se por um lado, o usuário está sozinho diante da imagem e tem a

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autonomia de escolher acessá-la, de escolher o tempo que passa diante dela, o nível de

atenção que ela merece; por outro, ele também está submetido ao stress cognitivo e

divide sua atenção entre múltiplas outras atividades (e-mail, bate-papo, redes sociais,

sites de informação, etc., todos acessados ao mesmo tempo em abas diferentes de um

mesmo navegador). Portanto, podemos perceber que, para contar com a atenção do

usuário de computador é preciso antes conquistá-lo e para isso, garantir sua

participação. Essa conquista só é possível com o domínio dos novos modos de ver e dos

novos modos de informar que a era digital inaugura.

Considerar a autonomia do usuário na hora de produzir um conteúdo é um dos

caminhos mais diretos para, através da exploração de estratégias mais adequadas à web,

produzir um conteúdo mais sofisticado e socialmente competente.

a. As questões do feedback e a sensação de invasão da informação

Desde as técnicas ótico-mecânicas do início até as tecnologias da informática do fim do século, passando pelas tecnologias eletrônicas, notam-se importantes modificações. Acontece o mesmo com as redes de comunicação. As redes numéricas controladas por computador não funcionam mais como as redes de telecomunicações radiofônicas e audiovisuais, e introduzem importantes modificações na transmissão de informações. (COUCHOT, 2003, p. 67)

Entre essas modificações na transmissão de informações que Couchot menciona, vale

falarmos mais um pouco a respeito da relação estabelecida entre a emissão e a recepção

de informações, marca do próprio conceito de comunicação.

As mídias de massa, que dominaram a comunicação social durante boa parte do século

XX, como o rádio e a televisão, promovem uma relação desequilibrada entre emissor e

receptor, sendo ao ouvinte e telespectador negado o direito de comunicação com a fonte

pelo mesmo canal.

Nessas mídias, o poder de comunicar é restrito a uma classe diretamente representativa

do poder econômico de uma sociedade. A mínima participação do público é

maximamente controlada por filtros editoriais específicos que permitem apenas

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mensagens autorizadas. É essa noção de feedback que a comunicação em redes

numéricas vai revolucionar.

É interessante destacarmos, como o fez Couchot, que o que é veiculado em mídias de

massa não coincide sequer com o conceito de comunicação defendido por Wiener – que

seria a comunicação feita através da troca de mensagens em igual equilíbrio entre

emissor e receptor e auto-gerida, sem a necessidade de regulação artificial do processo

comunicativo. Esse regime de comunicação desenvolvido pelas mídias de massa seria,

portanto, “apenas um aspecto particular do modelo comunicacional geral” (COUCHOT,

2003, p. 96).

O novo espaço da comunicação em rede numérica, por sua vez, é justamente

fundamentado na liberação do polo de emissão:

A nova dinâmica técnico-social da cibercultura instaura assim, não uma novidade, mas uma radicalidade: uma estrutura midiática ímpar na história da humanidade onde, pela primeira vez, qualquer indivíduo pode, a priori, emitir e receber informação em tempo real, sob diversos formatos e modulações, para qualquer lugar do planeta e alterar, adicionar e colaborar com pedaços de informação criados por outros. (LEMOS, 2005, p.2)

Essa radicalidade favorece a participação perceptiva do observador e leva às últimas

consequências a assertiva duchampiana de que é o observador que faz a obra. Na

Internet, o usuário é capaz de influenciar diretamente qualquer tipo de conteúdo, dando

sentido a ele, oferecendo respostas às suas indagações, compartilhando-o,

recombinando-o ou simplesmente ignorando-o.

A produção linear de uma obra se tornou, portanto, um modelo obsoleto à medida que

qualquer usuário consegue intervir no produto depois que ele é divulgado na web. Além

disso, amadores estão produzindo tanto quanto profissionais e sem precisar de museus,

jornais, revistas ou galerias para exibir esses conteúdos, burlando os filtros editoriais e

atingindo uma audiência ainda maior que a desses espaços oficiais de reconhecimento.

A cibercultura tem incentivado o usuário a produzir, distribuir e remixar conteúdos de

todos os tipos, na tentativa de fazer circular as diferentes vozes que compõem a

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sociedade e divulgar o conhecimento. O ato de se conectar, de navegar pela rede,

alimentá-la, reconstruí-la, modificá-la é por si só um aspecto de tomada de poder,

domínio da comunicação e da informação.

A emergência do discurso individual do usuário provoca um sentimento de participação

que não é possível em nenhum outro meio de comunicação e influencia de modo geral

toda a produção cultural, inclusive, a produção artística.

Se compararmos a Internet com a televisão e à submissão que essa última empreende do

telespectador à fonte emissora de informação, podemos perceber os principais efeitos

que a liberdade de emissão acarreta também na recepção de conteúdos.

Se por um lado, a tevê sempre esteve localizada como um objeto mobiliário qualquer

que jogava dentro da casa do telespectador toda uma sorte de conteúdos e imagens

variadas que ele não podia controlar, invadindo diariamente o ambiente familiar do

público; por outro lado, diante do computador conectado em rede não é a imagem que

salta ao contexto do observador, mas o observador que mergulha, imerge no ambiente

digital.

A tevê é como um buraco na parede trazendo o mundo de fora para dentro da sala de

estar do espectador; o computador é uma prancha de mergulho trazendo o espectador

para dentro do enorme mar de informações do mundo. À sensação de invasão que a tevê

proporciona, o computador contrapõe a de acolhimento. Isso se deve a essa participação

imediata que a cibernética não apenas estimula como defende.

Muitas iniciativas da arte já investiram na participação do espectador na elaboração ou

simplesmente na recepção da obra. Essa tendência, que começou de forma ainda tímida,

mas bastante paradigmática com o neo-impressionismo e o impressionismo,

investigando as ações do olho na síntese das imagens pictóricas, alcançou níveis

bastante dramáticos com alguns exemplares de Arte Conceitual, Land Art, Arte

Cinética, etc. Sobre a arte e a criatividade na era da cibernética, Frank Popper vai

afirmar que “o essencial não é o objeto em si, mas a confrontação dramática do

espectador a uma situação perceptiva” (1980, p. 13).

Analisando essa questão, Annateresa Fabris afirma que:

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as novas tecnologias fazem reaflorar aquele unicum, que a reprodutibilidade fotográfica parecia ter relegado à esfera da manualidade, e uma atenção, próxima por vezes da contemplação, antes negada ao olhar distraído que as superfícies tradicionais causam nesse flâneur peculiar que é o fruidor hodierno. (2006, p. 178)

Lembramos aqui o que Douglas Davis disse sobre a aura da era digital residir no

momento em que o observador vê, lê, percebe uma obra, ou seja, no momento da

situação perceptiva. É isso que nos faz pensar sobre a importância de uma formatação

de conteúdo mais adequada à linguagem computacional.

O momento do contato entre o espectador e a imagem, tenha ela fins artísticos ou não, é

o momento mais importante na construção do sentido da obra. Com o computador, esse

momento pode acontecer a cada dia, a cada hora, a cada minuto.

6. Conclusão – Mudanças de perspectivas ou considerações finais inacabadas

Apesar de ter evitado demarcar esse estudo entre fotografias que apresentem ou não

características artísticas, peço a devida licença para situar as reflexões que nos levarão à

conclusão desse projeto no campo da arte. Porque a arte, como dito anteriormente,

desempenha um papel fundamental na reeducação da sociedade para esses novos modos

de ver e principalmente de imaginar que a linguagem dos computadores tem promovido.

Couchot lembra que “o desenvolvimento das técnicas e a complexidade crescente da

automatização constituíram o mais decisivo fator na evolução da arte há um século e

meio” (2003, p.18). Não é à toa. A tecnologia numérica muda tudo e é a arte que

primeiro tenta nos chamar a atenção e nos preparar para as fundamentais mudanças

pessoais e sociais introduzidas pela tecnociência. Não teremos, portanto, dificuldades de

relembrar os tantos grupos de artistas que, ainda na metade do século XX, se mostraram

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engajados em interrogar a matéria da arte, o papel do autor, a troca de informações em

redes, o poder de comunicar, a participação do público na obra, antecipando os

questionamentos que a sociedade teria de se fazer com a digitalização.

Muito antes que as transformações que o numérico introduziu pudessem ser sentidas, a

arte já tentou nos preparar para essa modalidade de interação com a imagem

possibilitada pelo computador. Na virada do século XIX, os impressionistas e pós-

impressionistas introduziram novos hábitos visuais discutindo o funcionamento da

máquina-olho e a participação do observador na recriação da imagem através da síntese

cromática, muito baseada na pesquisa do menor elemento constituinte da imagem que

levou a pintura a caminhos tão diversos no século XX. Anos mais tarde, as Combine

Paintings modificaram nossa noção de tela, apresentando-a como um plano em que

diferentes níveis de realidade bidimensional e tridimensional pudessem coexistir. Por

sua vez, Andy Warhol entrou no debate sobre o humano e os automatismos, pensando-

se como um homem-máquina, e questionando a arte e suas novas tecnologias, buscando

socializá-la, intervindo no que a arte oferece aos olhos, ao mercado e ao público

diretamente. A respeito disso, Alain Renaud afirma:

Ver-se-ão pintores como Rauschenberg, Rosenquist, trabalhar na mesma operação “superficial” de destruição plástica (destruir a Representação Figurativa com a Imagem), jogando decididamente com os efeitos de trama, de textura, com o critério (sempre a imagerie34) da bidimensionalidade e dos enquadramentos tipo BD, gestos igualmente iconográficos já “fora da pintura”, nos quais não podemos deixar de ver, em retrospecto, quase prefigurações intuitivas da estética numérica das sucessivas imagens-pixel (tratamento e síntese numérica das imagens); o que aqui está se dando é uma mudança de princípio da Imagem, que deriva de uma obsolescência cultural das antigas Superfícies. (2009, p.14-15)35.

34 A imagerie, para Renaud, é um conceito que remete a um conjunto, à produção de imagens como um todo, à prática dessa visibilidade embasada pelo “simulacro interativo”. (2009)

35 . “Se verán pintores como Rauschenberg, Rosenquist, trabajando en la misma operación «superficial» de destrucción plástica (¡destruyendo la Representación figurativa con la Imagen!), jugando resueltamente con los efectos de trama, de textura, con el criterio (siempre la «imagerie») de la bi-dimensionalidad y de los encuadres tipo BD, otros tantos gestos iconográficos ya «fuera de la pintura», en los cuales no se nos puede impedir el ver, retrospectivamente, unas prefiguraciones casi intuitivas de la estética numérica de las sucesivas imágenes-pixel (tratamiento y síntesis numérica de las imágenes); está a punto de realizarse un cambio de principio de la Imagen, que deriva de una obsolescencia cultural de las antiguas Superficies”. (2009, p. 14-15)

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Essas antigas superfícies passaram a ser questionadas pelos artistas interessados em

lançar questões complexas sobre a função da arte e principalmente sobre possíveis

mudanças na sua natureza. As “prefigurações intuitivas” da linguagem numérica e das

imagens-pixel, de que fala Renaud, marcaram a arte durante todo o século XX. Mas

acredito ser no cubismo que a remodelação da nossa percepção espacial promovida pela

simulação numérica encontra sua “prefiguração” mais forte.

Pautado na “quebra da coerência do espaço figurativo” (idem, p.51), o Cubismo

engendra uma transformação na nossa referência visual. Para os cubistas, o espaço é

uma noção a ser conquistada, reinterpretada e reconstruída.

O quadro [cubista] não remete mais a um modelo no qual o pintor interpreta com mais ou menos exatidão ou deformação as aparências. Ele remete aos movimentos que o olho do pintor realiza, expulsando-o do seu habitar tradicional, deslocando-se de um ponto perspectivo a outro. E ele oferece ao olhar o conjunto desses pontos de vista multiplicados, não mais segundo uma hierarquia espacial ou narrativa mas simultaneamente. (idem, p.51)

Para propor a visão a partir de um conjunto de perspectivas diferentes, o cubismo

promove o “estilhaçamento do ponto de vista único” (idem, p.48). A esses artistas não

interessa uma descrição minuciosa dos objetos segundo o que aparentam visualmente,

mas sim, “revelar sua organização interna e cambiante” (idem, p.51), fazer uma

apresentação baseada no fracionamento da visão, ao invés da mera representação.

Auxiliado pela colagem de outras matérias na formação da obra, o cubismo buscou

projetar a imagem do objeto sobre a tela do quadro, sugerindo que a imagem rompesse a

homogeneidade do plano. Podemos fazer um paralelo entre essa projeção no plano do

quadro e a imagem do computador. No monitor, a imagem é luz projetada, que salta aos

olhos, se dá a ver, conquista o observador, se lança a ele e busca o seu mergulho.

Comum ao computador e ao quadro cubista, a sensação de que a imagem salta aos olhos

do observador presentifica a obra porque sugere que a imagem se forma no momento de

sua apresentação. Por conta desse aspecto particular, é possível dizer que o tempo do

quadro cubista remete ao presente.

Nesse contexto, é importante lembrarmos que a temporalidade numérica se afirma na

automaticidade do tratamento da informação e na rapidez da resposta que o computador

oferece. O numérico transforma o nosso tempo a partir do reforço da interatividade: o

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tempo do computador é o agora, o “tempo real”, o tempo em que o homem e a máquina

se comunicam.

“A modalidade temporal dos mundos virtuais é a eventualidade – que se resulta da

interface entre o tempo do observador, este que ele viveu no momento em que vê a

imagem, e o tempo da imagem no momento em que ela é engendrada pelo cálculo”

(COUCHOT, 2003, p. 169). É no momento em que a imagem numérica encontra o

observador que ela se completa, que o seu cálculo toma sentido. Por isso Couchot

afirma que o autor e o observador partilham do mesmo espaço utópico e do mesmo

tempo ucrônico – porque espaço e tempo só se definem no momento em que ambos os

personagens se conectam e dialogam. No computador, “o artista e o público são

intimados a partilhar da mesma hora” (idem, p.157). Assim como no cubismo, o tempo

da obra só se firma no presente, no momento da apresentação.

As transformações que o cubismo buscou afirmar produziram consequências que podem

ser sentidas até hoje, não apenas na arte, mas, por exemplo, também na comunicação. A

mudança na diagramação de páginas de jornal, revistas e livros ilustrados foi uma das

tantas novidades que o movimento liderado por Picasso e Braque trouxe à nossa

percepção do espaço. Cada página passou a ser vista como quadros “onde coabitam

espaços heterogêneos (letras, desenhos ou esquemas, fotos na forma de clichês

tramados, cores de mesma matéria) sem ponto de vista único, ao mesmo tempo

espalhados e ordenados” (idem, p. 50).

Vejo nisso um impressionante paralelo com a imagem do computador que, remodelada

em código numérico, instaura novos pontos de visão e, portanto, novos modelos de

relacionamento com o visual, baseados também em um fracionamento da tela, da

superfície. Apenas a título de comparação direta, creio ser interessante perceber que tal

diagramação heterogênea parece dialogar de forma contígua com o formato de janelas

múltiplas que a tela do computador introduz à visualização de imagens.

A divisão da tela em janelas interrompe o regime visual da perspectiva que busca

coincidir o ponto de vista do pintor com o ponto de vista do observador e que foi

explorado largamente até que o cubismo viesse contestá-lo.

Esse ponto de vista único, no entanto, foi marca também da fotografia e do cinema,

imagens já automáticas, mas que ainda contavam com a indivisibilidade do olhar do

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observador e o seu emparelhamento com o olhar da câmera. Na contrapartida disso, no

computador, essa imagem se divide em blocos de conteúdo que não obedecem a alguma

hierarquia narrativa, como no caso do cinema, ou espacial, como no caso da fotografia.

De fato, “A perspectiva renascentista de um ponto único deve tornar-se um pouco

estranha num mundo de múltiplas visões, onde cada olho vê um mundo governado por

regras diferentes, e o espectador, por sua vez, vai ser visto por várias máquinas”,

pondera Ritchin (2009, p.171).

Romper com a perspectiva foi, para o cubismo, romper com toda uma cultura de

representação baseada na projeção central e em um observador fixo, quase inerte. A

quebra do olhar centralizador mudou definitivamente os hábitos culturais da sociedade.

Com o rompimento da unidade perspectiva pelo cubismo, se engendra uma tentativa de

ocupar simultaneamente diversos lugares em torno do objeto, tanto para o pintor como

para o observador. Essa tentativa, apesar de ser uma das principais marcas do

movimento não é bem sucedida. Couchot lembra:

Quaisquer que sejam os pontos de vista diversos ocupados pelo sujeito nos seus deslocamentos “em torno” do objeto visto, o olhar não se detém além de na frente do objeto. [...] Na realidade, o pintor, diga-se o que disser, jamais faz a volta completa sobre o objeto, jamais mostra a frente e o verso do objeto, jamais as seis faces do cubo. Sua visão permanece ainda frontal. (2003, p.65)

O quadro cubista, apesar de toda a sua pretensão de abertura da imagem e apesar da

genialidade de seus artistas, não conseguiu suplantar completamente as limitações que a

superfície do quadro impunha aos seus objetivos. Diante de um quadro, nunca foi

possível dar a volta completa no objeto. A frontalidade dessa visão era inevitável.

Por outro lado, se pensarmos as novas formas de interação que as tecnologias do cálculo

automático têm introduzido à visualização das imagens, e se explorarmos as imensas

possibilidades da simulação numérica, acredito ser possível afirmarmos que a sensação

de mergulho que o computador nos proporciona produz uma forma completamente

transformada de relação com as imagens, o que pode possibilitar a solução dessa

frustração cubista.

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Na simulação, a informação numérica é uma informação flexível, fluída, sem aderência

espacial ou temporal alguma, que pode ser manuseada de diferentes maneiras, e cujos

limites podem ser continuamente alargados. O numérico nos permite tocar as imagens,

explorá-las, abri-las, revelando-a sob pontos de vistas múltiplos.

Figura 6 - Trecho da simulação 3D do quadro Guernica.

A título de exemplo, basta lembrarmos a exploração 3D que a artista novaiorquina Lena

Gieseke propõe ao quadro Guernica de Picasso36. Nessa simulação, disponível na

Internet em formato de vídeo, o observador é convidado a “dar a volta completa” no

cenário desenhado por Picasso em 1937, entrando no quadro e efetivamente

desbravando a imagem.

O cubismo tentou fracionar a visão, admitida como um sentido não tão seguro e que

impunha certa distância ao objeto. Afirma Couchot: “é o corpo inteiro, enquanto órgão

perceptivo, e não exclusivamente a visão, que participa da pintura” (idem, p.50). Mas é

no computador que esse fracionamento de visão passa a adquirir real sentido. Com a

simulação numérica, a perspectiva estática, linear e fixa é efetivamente quebrada e até

as fronteiras entre visão, tato, audição (e, quem sabe em breve, olfato e paladar) são

confundidas.

Vivemos uma “situação de experimentação visual inédita” (Renaud, 2009, p.1) com o

domínio da simulação sobre os demais condutores da nossa sensibilidade corporal.

Além da visão e da audição, o tato está cada vez mais hibridado a esses processos 36 Disponível em: https://vimeo.com/1176750

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tecnológicos de interação com os conteúdos culturais. O cubismo já tentou isso quando

buscou unir a visão à sugestão do toque dando às sensações táteis uma relevância

transformadora no processo de apreciação visual de um quadro. Com a simulação, a

nossa noção separatista entre visão, tato e audição é questionada. Entramos tão

densamente em uma imagem, como na simulação 3D de Guernica, que temos a

impressão de podermos tocar os volumes de cada componente do quadro. O olho tateia

e expande a visão.

É justamente esse papel de questionamento e transposição de fronteiras que o

computador e a comunicação em rede numérica têm desempenhado, propondo a

reconfiguração não só das nossas noções sensoriais, mas também de todas as categorias

culturais que embasam conceitualmente nossa sociedade, entre elas, as noções de obra,

autoria, mensagem, comunicação, entre outras.

Fracionamos a imagem, o meio, a mensagem, quebramos a homogeneidade da nossa

noção de espaço e de tempo, reapresentamos as imagens não como aparência visual

fechada, mas como pontos de vistas multiplicados e coexistentes que se abrem quase

infinitamente.

Creio ser importante destacar que o exemplo da Guernica 3D, apesar de se apresentar

em formato de vídeo, levanta questionamentos que podem ser estendidos a toda a

produção cultural numérica, inclusive às imagens ditas fixas como a fotografia. É, na

verdade, na defesa dessa abertura da imagem e, por expansão, da abertura de nossos

conteúdos culturais, que o este texto se embasa. Essa abertura se torna possível com a

devida percepção dos novos regimes de sentido e de uso que a linguagem numérica vem

indicar. Renaud chama a atenção para um novo regime de discursividade e saber

definido pelas novas tecnologias da imagem (2009, p. 1) e para a consequência disso na

modificação do conjunto dos nossos gestos culturais.

O fato de que a imagem passa a ser composta a partir da materialização de um conceito

(algorítmico, para ser mais exato) transforma a identidade da imagem e acrescenta a ela

novas possibilidades de uso, mas também estéticas. Promover a abertura da fotografia

no ambiente digital é, portanto, utilizar as estratégias mais apropriadas para que essa

imagem, enquanto discurso, possa ser tocada em suas novas complexidades.

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Abordar o cubismo é, na verdade, uma forma de percebermos que o contexto do

surgimento da simulação numérica começou a ser traçado e discutido na sociedade

através da arte, da comunicação e das tecnologias muito antes da década de 1980,

quando a linguagem numérica mudou completamente nossas formas de tratamento da

informação. O cubismo, nos deslocamentos que provocou na arte e nas perturbações

que incentivou na cultura, pode ser visto como um dos momentos antecipadores dessa

linguagem.

a. Historia e subjetividade

A respeito das mudanças estéticas que a simulação introduziu na nossa sociedade, Alain

Renaud destaca o que já em 1935, Paul Valéry afirmava, quase como uma premonição:

Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são, de vinte anos pra cá, o que sempre foram. Há de se esperar que inovações tão grandes transformem toda a técnica das artes, atuando além da invenção mesma, quiçá chegando até a modificar maravilhosamente a noção mesma de Arte. (apud Renaud, 2009, p.4)

De fato, as transformações que a simulação impôs às nossas noções de tempo, espaço e

matéria transformaram não apenas as técnicas das artes, mas o conceito de arte como

um todo. Vivemos um processo de flexibilização da concepção de arte e da concepção

de artista. A respeito desta última, Derrick de Kerckhove afirma que o artista

contemporâneo é qualquer pessoa capaz de “compreender as implicações das próprias

ações e dos novos conhecimentos do próprio tempo” (apud FABRIS, p.178). A isso,

Kerckhove chamou de “consciência integral”.

Sua afirmação está localizada na compreensão de uma nova forma de inteligência, que

se associa ao entendimento das potencialidades de uso da tecnologia. O usuário

tecnológico hoje em dia está situado em um ambiente cognitivo coletivo construído

pelas tecnologias numéricas. Neste ambiente, a inteligência não é mais relacionada ao

armazenamento da informação através da memória, mas à compreensão das formas de

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conquistá-la. “Burros são aqueles que não usam o Google”37, afirmou De Kerckhove em

resposta a Nicholas Carr, autor que questionou “O Google nos deixou mais burros?”

(2008)38. O “artista” contemporâneo é o usuário de computador que entende as

potencialidades da informação conectada e sabe como tirar o melhor resultado dela.

Mais do que a informação, ele compreende o processo de informar.

“Caminhamos em direção a uma estética de procedimentos em que o processo

predomina sobre o objeto: a forma cede à morfogênese, vivemos o fim da hegemonia do

espetáculo fechado e estável”, afirmou Renaud (2009, p.3). Isso acontece porque a obra

em si não é mais o objeto hermético que permaneceu o centro das atenções da Arte. A

obra agora se abre.

Couchot cita Leon Battista Alberti e sua apresentação da perspectiva de projeção central

como uma das teorias fundadoras da pintura ocidental. No texto39, Alberti delineia a

teoria geométrica da pintura e acrescenta importantes questões a respeito da construção

de uma obra de arte. Couchot diz:

Para Alberti, o quadro é o resultado de uma série de operações bem hierarquizadas. A mais elementar constitui em delimitar as pequenas superfícies componentes dos objetos. Graças ao intersector, o pintor capta – “mede” – com precisão os contornos do objeto, ele os desenha, ou como diz Alberti, ele os circunscreve. [...] As superfícies devem ser reunidas entre si para formar os membros, os quais formarão, por sua vez, os corpos. Alberti chama este trabalho de composição (compositio). Quanto ao encaixe final dos corpos, este é regulado pelo que ele nomeia a história (historia), “último degrau de acabamento da obra do pintor”. A historia é para Alberti bem mais do que a mensagem do quadro. É graças a ela que o agenciamento dos corpos figurados retém e emociona os olhos e a alma dos espectadores [...]. “A historia, diz ele ainda, é a função mais importante do pintor”. (2003, p.29)

Neste momento da pintura, a historia do quadro estava submetida ao agenciamento do

pintor. É ele quem domina a historia e é ele, portanto, o “mestre da obra”.

37 Em entrevista ao site Fortkey, em: http://www.40kbooks.com/?p=3811

38 Artigo publicado na edição de julho/agosto de 2008 da revista The Atlantic.

39 Alberti, L. “De Pictura” (1435)89

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Com a fotografia, o conceito de historia se transforma e ela passa a ser composta não

apenas pelo autor, mas também pelo automatismo da máquina fotográfica. O autor

deixa de ser o responsável único pela historia, já que a composição não responde apenas

à “análise sintática do objeto visto e sua formulação simbólica” (FABRIS, p.157) pelo

autor, como era característico da tradição pictográfica. A composição na fotografia

passa a responder também aos processos óticos do enquadramento e aos processos

químicos da sensibilização dos grãos de prata.

Essas transformações provocaram consequências na arte como um todo. Em resposta à

fotografia, os impressionistas incentivaram uma nova forma de operar com a historia de

uma pintura ao utilizarem o conceito de síntese cromática. Pela primeira vez, a questão

da historia – abalada pelo quadro impressionista – passa pela intersecção entre o sujeito

do pintor, como instaurador da imagem, e o sujeito do observador. “O que é essencial

na historia que o quadro descreve não é mais a maneira pela qual o sujeito agenciou as

figuras, os membros e as superfícies – e observemos que a circunscrição cessa -, mas a

maneira pela qual ela funciona” (COUCHOT, 2003, p.42).

A historia, portanto, caminhou em paralelo às transformações técnicas que os

automatismos trouxeram à arte – seja se aproximando ou se afastando do autor que não

apenas viu o seu domínio sobre a obra ser questionado, como também a sua própria

subjetividade ser transformada, na tentativa de se manter firme mesmo quando

desafiado pela mecanização das formas de expressão.

Mas é na era da simulação que essa relação entre sujeito e historia realmente se

transforma. No computador, a cultura passa por um processo de modelização, é

recalculada e recriada virtualmente em linguagem matemática. A máquina analisa o

mundo, o reinterpreta. Esse processo se passa dentro da “caixa preta”40 do aparelho

computacional. Não é um processo claro ao sujeito e acontece mesmo que à sua revelia.

Ele perde, por conta disso, o controle sobre uma parte fundamental da criação. No

entanto, sua presença não se deixa apagar. O sujeito agora se reconfigura, ainda como

autor, mas com outras responsabilidades.

É requisitado ao sujeito que abra mão de uma parte do processo: não só das codificações

mais complexas da simulação, que agora competem à máquina, como também do

40 Para fazer um paralelo ao termo utilizado por Flusser quanto à máquina fotográfica. Filosofia da Caixa

Preta.90

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domínio completo do sentido da obra, que passa, como vimos anteriormente, a dialogar

diretamente com o espectador.

A historia no modo dialógico do numérico se compõe em dupla: ela é, parcialmente, mas efetivamente, obra do espectador, a projeção de suas reações, de seus pensamentos, de sua subjetividade; ela é o produto de dois sujeitos que hibridam sua singularidade respectiva através de uma interface. (COUCHOT, 2003, p.279)

O sujeito aí se transforma e essa questão torna ainda mais clara a concepção de De

Kerckhove sobre os artistas contemporâneos. À medida que o autor passa a dividir a

historia da sua obra quase em equilíbrio com o observador, a distinção entre autor e

observador se torna frágil e, na rede, todos os usuários se tornam artistas em potencial,

artistas que têm a possibilidade de agir sobre a obra.

Sabemos que a participação do espectador como co-autor passa pelos automatismos do

computador, mas defendo que, por outro lado, ela pode ser potencializada como um

recurso estético. Como observamos, com a fotografia hipertextual, a imagem torna-se

uma apropriação do sujeito observador que, ao transpor a distância original

recomendada a uma boa observação, mergulha na imagem numérica, se move, navega

pelo pavimento de informações que compõem esse mosaico visual e se desloca entre as

interfaces e a rede.

Mais complexa, a comunicação hibridiza os campos da escrita, da fala e da imagem e

busca sensibilizar o corpo de forma mais completa. Em contato com o corpo é que a

obra passa a efetivamente existir. Interativas, as obras numéricas tomam outra

proporção a partir do momento que passamos a agir sobre elas.

O computador é o ponto de conexão do espectador com esse universo aumentado. Paul

Valéry percebeu ainda cedo a direção que o nosso relacionamento com o visual vinha

tomando:

Como a água, como o gás, como a eletricidade vem de longe para as nossas casas para atender às nossas necessidades, mediante esforço quase zero, assim seremos alimentados por imagens visíveis ou

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auditivas, que nascerão e se devanecerão a um mínimo gesto, quase a um sinal... Eu não sei se algum filósofo já sonhou com uma sociedade que tenha a distribuição da Realidade sensível a domícilio (apud Renaud, 2009)41.

É com a computação que a intensa distribuição dessa “Realidade sensível a domicílio”

toma mais corpo. Sua presença tem tornado complexos outros aspectos do nosso

relacionamento com os conteúdos culturais, além da questão do acesso. As imagens

adquirem outros efeitos de sentido graças às possibilidades da interação numérica. Faz-

se imprescindível, portanto, a articulação dessas novas abordagens possibilitadas pelos

hiperconteúdos, e entre eles a hiperfotografia.

Pensar a criação, utilizando a novidade estética para incentivar a polissemia é, como

vimos, uma forma de enriquecer os conteúdos culturais. A produção de sentido não é

mais de responsabilidade exclusiva da arte, mas passa também por uma questão

logística relacionada ao uso da técnica.

O desenvolvimento dessas questões, no entanto, permanece inacabado, transforma-se

diariamente nas conquistas tecnológicas que reduzem ao mínimo o tempo do que é

novo, ao mesmo tempo em que alargam nosso conceito de obsoleto. Dominar

conceitualmente todas essas transformações, além de me parecer impossível, não me é

interessante, uma vez que acredito que, o momento em que essa realidade se tornar

completamente perceptível será o sinal de que estaremos vivenciando alguma espécie de

estagnação.

Ainda assim, as mudanças que nos são compreensíveis não são superficiais, apesar de

muitas vezes terem sido tratadas de forma pouco aprofundada. Não é somente o custo e

o acesso à técnica que muda, mas todo o comportamento cultural da humanidade. Do

mesmo modo, a rede numérica não é simplesmente a conexão quantitativa do maior

41 Como el agua, como el gas, como la corriente eléctrica vienen desde lejos hasta nuestras moradas para

satisfacer nuestras necesidades, mediante un esfuerzo casi nulo, así seremos alimentados por imágenes

visivas o auditivas, que nacerán y se desvanecerán al mínimo gesto, casi con una seña... No sé si un

filósofo ha soñado alguna vez con una sociedad para la distribución de la Realidad sensible a domicilio.

(apud, Renaud, 2009)

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número de pessoas e computadores, mas a constituição de uma nova forma de

socialização.

Diferentes formas de ver também se desenvolvem com a imersão da visão em uma série

de outros modos de percepção (sensibilizados por conteúdos cada vez mais hibridizados

entre imagens, sons, textos e gestos). A imersão, o mergulho passam a fazer parte da

interação com os conteúdos culturais na tentativa de cativar o público a se interessar

pela informação, a se conectar e construir a rede, evitando o embarque pela indiferença,

a apatia. O resultado tem nos direcionado a uma busca da sensibilização do corpo que

reflete as novas formas de pensar que aprendemos na nossa relação com a máquina. O

sujeito, sua íris, seus poros, os conteúdos, o códigos, os programas, todos precisam ser

conquistados. O computador não é tão frio quanto parece. A arte não está assim tão

distante.

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