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1 Imagens como artefatos da memória: experiências narrativas de fotógrafos amadores mineiros LUCAS MENDES MENEZES 1 Na realidade belo-horizontina, a fotografia integra a história da cidade mesmo antes da sua fundação. O gabinete fotográfico da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) foi responsável pela documentação da construção e pela divulgação das imagens da nova capital de Minas Gerais entre os anos de 1894 e 1897. Ao longo dos primeiros anos da cidade, alguns dos fotógrafos que trabalharam na CCNC começaram a atuar em estúdios. Em decorrência das transformações da cidade e do desenvolvimento industrial e tecnológico da fotografia, o campo fotográfico em Belo Horizonte se desenvolve para além da atuação dos fotógrafos de estúdio. Segundo Luana Campos (2008), o comércio fotográfico na cidade que se dava inicialmente através das “casas de variedades”, caminhou fundamentalmente a partir dos anos 1930 para a “diferenciação e especialização” em três segmentos distintos. Para a autora, além dos estúdios e ateliês de fotógrafos profissionais, os laboratórios de revelação e ampliação e as lojas (principalmente óticas) que forneciam suprimentos fotográficos para amadores são relevantes para a compreensão deste processo. Desta forma, entendemos o crescimento da prática fotográfica amadora como diretamente ligado ao desenvolvimento industrial e comercial da fotografia. Os aparelhos de simples manejo lançados pela Kodak a partir da década de 1880, a invenção das câmeras de pequeno formato no início do século XX, o desenvolvimento de filmes flexíveis e o crescimento de indústrias japonesas (principalmente na década de 1950) – que propunham automatismos que passavam a exigir cada vez menos das habilidades e do bolso do fotógrafo – são representativos desse contexto. A fundação do Foto Clube Minas Gerais (FCMG), em agosto de 1951, a partir da reunião de quatro fotógrafos amadores de Belo Horizonte, é um importante elemento para se pensar o desenvolvimento da prática na cidade. A agremiação era formada por aficionados em fotografia que filiavam sua produção ao universo da “arte bela e difícil 1 Mestrando em História pela UFF e bolsista do CNPq.

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Imagens como artefatos da memória: experiências narrativas de fotógrafos

amadores mineiros

LUCAS MENDES MENEZES1

Na realidade belo-horizontina, a fotografia integra a história da cidade mesmo

antes da sua fundação. O gabinete fotográfico da Comissão Construtora da Nova Capital

(CCNC) foi responsável pela documentação da construção e pela divulgação das

imagens da nova capital de Minas Gerais entre os anos de 1894 e 1897. Ao longo dos

primeiros anos da cidade, alguns dos fotógrafos que trabalharam na CCNC começaram

a atuar em estúdios. Em decorrência das transformações da cidade e do

desenvolvimento industrial e tecnológico da fotografia, o campo fotográfico em Belo

Horizonte se desenvolve para além da atuação dos fotógrafos de estúdio. Segundo

Luana Campos (2008), o comércio fotográfico na cidade que se dava inicialmente

através das “casas de variedades”, caminhou fundamentalmente a partir dos anos 1930

para a “diferenciação e especialização” em três segmentos distintos. Para a autora, além

dos estúdios e ateliês de fotógrafos profissionais, os laboratórios de revelação e

ampliação e as lojas (principalmente óticas) que forneciam suprimentos fotográficos

para amadores são relevantes para a compreensão deste processo.

Desta forma, entendemos o crescimento da prática fotográfica amadora como

diretamente ligado ao desenvolvimento industrial e comercial da fotografia. Os

aparelhos de simples manejo lançados pela Kodak a partir da década de 1880, a

invenção das câmeras de pequeno formato no início do século XX, o desenvolvimento

de filmes flexíveis e o crescimento de indústrias japonesas (principalmente na década de

1950) – que propunham automatismos que passavam a exigir cada vez menos das

habilidades e do bolso do fotógrafo – são representativos desse contexto.

A fundação do Foto Clube Minas Gerais (FCMG), em agosto de 1951, a partir

da reunião de quatro fotógrafos amadores de Belo Horizonte, é um importante elemento

para se pensar o desenvolvimento da prática na cidade. A agremiação era formada por

aficionados em fotografia que filiavam sua produção ao universo da “arte bela e difícil

1 Mestrando em História pela UFF e bolsista do CNPq.

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de ver e criar com a objetiva” (CATÁLOGO FCMG, 1959). O clube permaneceu

aberto, em sua primeira fase, até a metade dos anos 60. Neste período, teve quase uma

centena de membros, entre eles figuras significativas no cenário político, econômico e

cultural da cidade.

A associação foi responsável pela realização de onze exposições fotográficas

entre os anos de 1951 e 1965, em espaços como a Feira de Amostras de Belo Horizonte

(1952), o saguão da Prefeitura (1956) e o Museu de Arte da Pampulha (1961). As

imagens produzidas e expostas pelo FCMG podem se tornar reveladoras das mais

diversas realidades e estimular discussões que vão permear o horizonte da história da

cidade e das práticas culturais e mesmo da história da arte.

A origem da associação de fotógrafos amadores em clubes funciona como uma

resposta ao fenômeno “democratização” da prática fotográfica (POIVERT, 1993).

Fotógrafos amadores das principais cidades da Europa e dos Estados Unidos se reuniam

em pequenas sociedades com o intuito de valorizar a perspectiva artística da fotografia,

em contraposição à prática pouco exigente dos amadores convencionais: os apertadores

de botão. No Brasil, apenas nos anos 1940 a prática foto-clubística começa a se

expandir consideravelmente, mediada principalmente por amadores de algumas capitais

e de cidades do interior de São Paulo.

Durante a pesquisa documental, privilegiamos a consulta aos jornais e revistas

de grande circulação da cidade. Nesta medida, já foi possível catalogar dados a partir de

exemplares significativos dos jornais “Estado de Minas”, “Folha de Minas” e “Diário de

Minas”, tais como a efetiva publicidade e crítica das exposições realizadas pelo clube e

anúncios de estabelecimentos e produtos fotográficos. Outro resultado obtido através da

pesquisa realizada junto aos jornais da época foi a descoberta de que, durante dois

períodos na década de 1950, membros do FCMG foram responsáveis por uma coluna

semanal sobre fotografia no jornal “Diários de Minas”. O objetivo da maioria dos

artigos é esclarecer algumas questões técnicas sobre a fotografia, sobretudo aquelas

ligadas à atividade de laboratório. Os artigos eram acompanhados por reproduções de

fotografias de autoria de membros clube.

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Reveladores de trocas e diálogos, os catálogos das onze exposições organizadas

pelo FCMG2 revelam, primeiramente, elementos da realidade interna do clube:

diretorias, membros mais ativos e patrocinadores. Fornecem o discurso da organização

do evento na apresentação de cada catálogo, evidencia o contato com clubes do país e

do exterior, os fotógrafos que mais expunham e as fotografias premiadas em cada

evento – reveladoras do conceito de boa fotografia no interior do clube 3. As fotografias

dos acervos pessoais dos ex-membros do FCMG, para além da memória da instituição a

que em algum momento foram submetidas (isto para as imagens expostas em salões),

trazem consigo elementos de uma memória individual e de um fazer fotográfico

pessoal.

A exploração desses dois últimos acervos (reproduções fotográficas em

catálogos e fotografias de acervos pessoais) tem sido especialmente significativa quando

da realização de entrevistas com os fotógrafos.

Os fotógrafos amadores

Os encontros com Wilson Baptista, um dos fundadores e primeiro presidente do

FCMG, conformaram a base dos primeiros passos da pesquisa. Nascido em Belo

Horizonte em 1913, Wilson é filho único, graduou-se em Direito e ainda jovem assumiu

o lugar de seu pai como titular de um cartório da capital. Adolescente, Sr. Wilson foi

apresentado à fotografia e adquiriu sua primeira câmera, uma Kodak Brownie em 1929.

Baptista desenvolveu a fotografia como hobby, adquiriu uma Agfa de filme Pack na

década de 1930 e passou a se dedicar seriamente ao registro de encontros de família e de

amigos até adquirir a Contax que o acompanhou na maior parte de sua jornada

fotográfica. Sr Wilson já era pai de família quando resolveu fundar o foto-clube em

Belo Horizonte para se dedicar artisticamente à fotografia, hobby que, por muito tempo,

ele manteve simultaneamente à prática do tiro. Como os registros remanescentes

2 Quatro exposições nacionais (entre 1951 e 1954), sete internacionais (entre 1956 e 1965) e uma

extraordinária, conhecida como “Exposição Fotográfica de Motivos belo-horizontinos” realizada em setembro de 1953;

3 A maior parte do acervo foi levantada graças à coleção mantida por Wilson Baptista; todavia, o catálogo da primeira exposição realizada ainda em 1951 só foi encontrado na coleção da Sociedade Fluminense de Fotografia, agremiação que teria sido fundamental no desenvolvimento do clube mineiro.

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indicam, Sr. Wilson foi um membro muito ativo, participando diretamente de várias das

iniciativas do clube e sendo um dos seus principais incentivadores ao longo dos anos

que permaneceu aberto.

As conversas iniciadas em 20064 amadureceram e resultaram em indícios

significativos para a pesquisa. Na ausência de um acervo organizado pelo clube5, foi

através dele que entramos em contato com catálogos das exposições organizadas, que

pudemos consultar o livro de atas das assembléias e que tivemos acesso a várias cópias

fotográficas que ele ainda mantém espalhadas pela casa. Estes documentos forneciam

datas, nomes, parcerias, muitos deles com informações precisas, que balizaram as

pesquisas nos jornais da capital e demais publicações. Mas o ciclo não se encerrava ali,

os novos indícios se tornavam muito mais interessantes quando eram novamente

compartilhados com o fotógrafo, restituídos e resignificados pelo seu olhar e pelo seu

discurso.

As visitas se tornaram freqüentes, os catálogos e reproduções fotográficas já

amareladas pela ação do tempo passavam a despertar memórias, sensações antigas se

tornavam presentes. Nesta medida, essa experiência passou a configurar um novo

percurso para a pesquisa: como devemos abordar essas lembranças? Como registros de

uma época? Ou como um discurso essencialmente construído no presente? Acreditamos

que, através dos primeiros resultados obtidos, que a alternativa está em algo entre esses

dois caminhos.

A experiência bem sucedida com o Sr. Wilson nos motivou a estabelecer contato

com outros ex-membros do clube. Como o clube encontra-se fechado há quase

cinqüenta anos e era formado, em sua maioria, por homens com mais de trinta anos, são

poucos os remanescentes. Todavia, conseguimos realizar entrevistas com outros dois

ex-membros do FCMG: Gabriel de Souza Assunção e Bruno Roberto Martins Costa. A

nova experiência se mostrou promissora já no primeiro contato; apesar de terem se

4 As primeiras entrevistas com Wilson Baptista foram realizadas no quadro da pesquisa coordenada pela

Profa. Dra. Maria Eliza Linhares Borges junto ao Programa de História Oral da UFMG que tinha como objetivo discutir o desenvolvimento da profissão fotógrafo em Belo Horizonte.

5 Segundo os indícios remanescentes, o clube teria fechado as portas ainda na metade da década de 1960,

pouco tempo depois da realização da última exposição internacional realizada em 1965.

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filiado a um grupo de fotógrafos amadores, tanto Gabriel quanto Bruno Roberto se

dedicaram por muitos anos a fotografia profissional.

Gabriel de Souza Assunção é mineiro, nascido em Bom Despacho em 1931.

Mudou-se com a família para Belo Horizonte após o falecimento do pai em 1943.

Gabriel concluiu os estudos na capital e após o Científico ingressou como caixa do

Banco da Lavoura. Segundo ele, a fotografia já se fazia presente no cotidiano da família

e ele mesmo chegou a possui uma câmera box quando ainda viva na fazenda. Ao longo

dos anos, principalmente influenciado pelo irmão, Gabriel passou a desenvolver um

interesse maior pela fotografia, fazendo pequenos registros artísticos de viagens,

sobretudo paisagens. No Banco da Lavoura conheceu Averaldo Araújo Sá, também

aficionado da fotografia e figura responsável por levá-lo ao FCMG. Segundo seu relato,

eles perceberam que tinha equipamentos suficientes para tornar aquela prática,

desenvolvida como hobby, em trabalho, algo que complementasse a renda de ambos.

Eles continuaram a atuar como caixas no Banco da Lavoura, mas com uma jornada de

meio expediente, dedicavam-se parcialmente a um pequeno estúdio de retratos no centro

da cidade. Segundo Gabriel, a falta de tino comercial foi o principal fator para o fim da

parceria poucos anos depois, mas mesmo assim ambos continuaram a se dedicar a

fotografia profissionalmente. Averaldo continuou a realizar retratos e passou a oferecer

cursos de fotografia voltados especificamente ao público científico, sobretudo médicos,

arquitetos e engenheiros. Gabriel realizaria seus primeiros trabalhos no mercado

publicitário da capital naquele período. Após um intervalo de sete anos, compreendido

na década de 1960 e início da década de 1970, onde trabalhou em uma serralheria no

Paraná em parceira com o irmão, Gabriel voltou a se dedicar exclusivamente a

fotografia publicitária, aposentando-se como fotógrafo.

Bruno Roberto Martins da Costa nasceu em Carmo do Paranaíba, interior de

Minas Gerais, em 1923. Depois de morar em Monte Carmelo, onde o pai atuou como

juiz de Direito, seguiu para Araguari. Mudou-se para Belo Horizonte em 1937 para

estudar no Colégio Batista, em seguida cursou o Científico em Uberlândia, onde após se

formar chegou a trabalhar em uma farmácia. Contudo, em virtude do adoecimento do

pai, ele retornou para capital em 1950. Nesse período, fez seus primeiros trabalhos

como fotógrafo, que envolveram registros de atividades esportivas, realizados quase

como extensão do hobby que desenvolvera anteriormente ainda em Uberlândia quando

ganhou a antiga Agfa de seu pai. Bruno Roberto chegou a fotografar para a revista Vida

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Esportiva, especializando-se depois em fotografia social. Com auxílio do amigo

Francisco Fernandes, pintor e fotógrafo renomado na cidade, Bruno desenvolveu um

trabalho artístico paralelo especializando-se, sobretudo, em retratos. No entanto, ainda

no final da década de 1950 foi convidado a começar atuar nos registros das obras da

Mendes Júnior e em seguida foi funcionário da Vale do São Francisco, órgão federal,

onde atual como fotógrafo até sua aposentadoria.

Das imagens como artefatos da memória

A dinâmica das entrevistas obedeceu a um mesmo padrão: com o consentimento

do entrevistado o gravador era ligado e os primeiros registros atestam uma conversa

mais aberta; nosso objetivo era explicar um pouco os objetivos da pesquisa e ver como

os entrevistados respondiam a esse primeiro impulso. Em seguida, realizamos perguntas

mais específicas sobre a trajetória de vida dos mesmos e, em pouco tempo, a fotografia

passava a protagonizar narrativa dos entrevistados. Todavia, a discussão não se

restringia a fotografia tida como ideia abstrata e não estava focada apenas na prática

fotográfica, em muitos momentos, fotografias específicas eram citadas como

representativas de uma situação, de um conceito ou mesmo de uma pessoa. Além dessas

imagens surgidas de maneira espontânea nas entrevistas, outro conjunto de imagens foi

introduzido na discussão por iniciativa do entrevistado. Esse conjunto foi formado por

reproduções realizadas com base nas fotografias encontradas nos catálogos e

publicações pesquisadas.

Os dois conjuntos e imagens passavam a resgatar lembranças e estimular

narrativas. A fotografia, muitas vezes tida como uma prática que eles se dedicavam com

carinho e disposição artística, também implicava percursos, escolhas individuais e de

grupo. Em alguns momentos, essas escolhas não permanecem nítidas nas imagens,

sendo recorrente fazer pequenos retornos, desvios, explicar o caminho. O segundo

conjunto de imagens despertava, sobretudo, lembranças dos antigos colegas de clube.

Muitas vezes essa narrativa se concentrava em aspectos particulares da personalidade do

colega, em outras dizia respeito às conquistas profissionais e intelectuais do mesmo,

mas sempre havia espaço para a capacidade de produção fotográfica.

Wilson Baptista, ao ser questionado sobre a participação de Câncio de Oliveira,

reconhecido fotógrafo profissional do período, no FCMG, revela:

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WB: Não, o Câncio, eu lembro de fotografia dele lá, exposta mesmo, só uma: “Trem do Sertão”, ele bateu em uma estação do interior, o trem saindo assim com aquele vapor da locomotiva, contra-luz, era um negócio bonito sabe? E a movimentação da estação estava uma cena viva sabe? E ele ficou com apelido de “Trem do Sertão” lá no Foto Clube, só conhecia ele como “Trem do Sertão”. (BAPTISTA, 2011)

No caso de Câncio, uma imagem havia se tornado emblemática de sua

participação no clube ainda na época em que ele permaneceu aberto, tanto pela sua

qualidade quanto por sua excepcionalidade. O fotógrafo não freqüentaria o FCMG por

muito tempo, fazendo contribuições restritas ainda na década de 1950. Todavia, Câncio

sempre surge no discurso dos entrevistados como fotógrafo profissional bem sucedido e

figura de destaque no setor de fotografia de casamento.

Se Wilson Baptista condensou a figura de Câncio de Oliveira em uma imagem, o

mesmo aconteceu com ele na narrativa construída por Gabriel Assunção. Assunção ao

ser questionado sobre a figura de Wilson Baptista, logo se lembrou de uma imagem do

mesmo:

GA: Eu não sei se ele te falou a respeito de uma fotografia que ele fez, chama: “Esperança”, é um céu azul com uma nuvem branca, não tem igual. (...) Aquela fotografia para mim, aquela define o Wilson Baptista, aquela para mim é a essência da fotografia. Se você analisar bem, não tem nada, é uma nuvem branca no céu azul, mas o formato da nuvem conversa com a gente, aquela fotografia é o Wilson Baptista. (ASSUNÇÃO, 2011)

Em seguida, Gabriel vai desenvolver o raciocínio, aproximando a figura de

Wilson Baptista a de um fotógrafo que sempre teve muita atenção para o aspecto

sentimental que a fotografia poderia despertar. Gabriel se recorda inclusive de um

hábito mantido por Baptista para selecionar as fotografias que ele considerava boas o

bastante para enviar para os salões. Segundo Gabriel, quando o fotógrafo faz uma

fotografia, ele se envolve sentimentalmente com ela, revela, amplia e passa a adorar

aquela imagem, mas muitas vezes aquele sentimento está mais ligado ao processo do

que ao resultado final. Nesta medida, Sr. Wilson fazia várias reproduções das

fotografias e levava para seu escritório e, se ele agüentasse olhar para uma fotografia

por vários dias, ele a enviava pra os concursos. E Gabriel conclui:

GA: A fotografia é duas coisas: a técnica e a emoção. A fotografia tem que transmitir alguma coisa para você e não é só os tracinhos certinhos, um foco direitinho, isso faz parte, mas ela tem que te dizer alguma coisa como aquela fotografia do Wilson te diz, ela conversa com você. LM: Ela te leva longe não é? GA: Ela te leva longe... todo mundo que vê aquela fotografia apaixona, menos o Averaldo. O Averaldo não gostava muito do estilo do Wilson não. Então ele tinha uma certa implicância com ele. LM: O Averaldo era mais clássico? Como era?

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“High-Key”, Pedro Albuquerque (1954)

GA: O Averaldo era mais clássico. O Averaldo não se dava muito a criar coisas diferentes sabe? Um objeto em movimento que traça um caminho de luz, isso não era do Averaldo, era do Wilson. (grifo nosso) (ASSUNÇÃO, 2011)

Da produção sentimental de Wilson Baptista, Gabriel é levado por sua memória

a Averaldo de Araújo Sá, antigo sócio e também figura de destaque dentro do FCMG.

Para Assunção, os dois fotógrafos representavam duas tendências distintas no clube:

Averaldo estava mais preocupado com aspectos técnicos, realizando composições

clássicas e impecável trabalho de laboratório; Wilson condensava a ideia da associação

da técnica e da emoção, ele era

tecnicamente muito capaz, mas sempre

estava disposto a criar a partir da

fotografia e não apenas fazer bons registros.

Outro aspecto que, na concepção de Gabriel Assunção,

dividia os membros do clube era o acesso ou a escolha dos

equipamentos. Segundo ele, haviam fotógrafos que só usavam

Rolleiflex, outros optavam pela Leica, Wilson Baptista tinha uma Contax e, por outro

lado, havia outros fotógrafos que tinham que “se virar” com um equipamento inferior. A

construção dessa hierarquia fez Gabriel se lembrar de uma imagem específica, realizada

pelo colega Pedro Albuquerque: “O Pedro Albuquerque uma vez conversando com ele,

ele me dizendo assim: “‘Lembra daquele tema que foi high-key’?”, eu falei: ‘Lembro

demais, adoro um high-key’, você sabe o que é um high-key? Você tem ideia?”

Como o nome e a imagem citada nos era familiar, acabamos descobrindo-a entre

as várias reproduções feitas a partir dos catálogos de exposições do clube6:

GA: É essa fotografia que eu quero conversar a respeito dela. O tema foi high-key e o Pedro me aparece com essa fotografia, uma bela de uma fotografia e ele ganhou o primeiro lugar, ganhou o primeiro lugar com essa fotografia aí. Eu participei também, não lembro mais qual fotografia que foi, mas eu não ganhei o primeiro lugar não. (...) O Retes também, mas muito pouco, não era muito não. Então o Pedro descrevendo isso: “Você lembra do high-key?”, “Lembro.”, “Você sabe como eu fiz aquela fotografia?”, eu falei: “Não Albuquerque, você fez com a sua capacidade, a sua...”, “Eu fiz aquela fotografia com uma máquina com a lente quebrada. A lente estava quebrada, você acredita?”, eu falei: “Eu acredito, eu sempre acreditei em você” e com uma máquina de lente quebrada ele fez uma e ganhou o primeiro lugar e se a lente tivesse inteira?[risos] (ASSUNÇÃO, 2011)

6 III Salão Mineiro de Arte Fotográfica, realizado em 1954.

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Outro tipo de percurso realizado pelos entrevistados associava as imagens a

diversas realidades, que se tornavam uma verdadeira síntese de várias memórias. Ao

mostramos uma fotografia exposta por Wilson Baptista em um salão do clube em 1952,

o fotógrafo se lembrou imediatamente de quando a tirou:

WB: Essa fotografia... essa fotografia é... Eu estava indo para Ouro Preto, ela foi feita em 1939, essa fotografia. Eu estava indo para Ouro Preto, eu ia namorar não é? A Hortência, minha mulher, ela estava lá e eu fui para lá e quando passamos por Sabará... o trem saía cedo daqui sabe? Estava esse Rio das Velhas, com esse nevoeiro, esse negócio e eu dentro do trem eu bati essa chapa. (...) Essa é uma das que eu gosto... O Rio das Velhas passava por Sabará, que é a terra do meu pai, e passava por Santa Luzia que é a terra da minha mãe. E Santa Luzia, eu praticamente passei minha infância lá não é? Ficava sempre indo lá... e esse aí, além de ser o Rio das Velhas com essa conotação, eu estava indo para namorar [risos]. (ASSUNÇÃO, 2011)

Além da preciosa informação de que, apesar de ser exposta em 1952 a fotografia

havia sido realizada em 1939, destaca-se o exercício de associações apreendido pelo

fotógrafo. Apesar disso, aspectos técnicos e de

composição também são destacados por

Baptista que, naquele momento, começava a se

dedicar mais seriamente a fotografia.

Dentre os entrevistados, Bruno Roberto Martins da Costa foi o que por menos

tempo freqüentou o FCMG. Acompanhando, sobretudo, seu mentor Francisco

Fernandes, Bruno não gostava muito do ambiente do clube, segundo ele, muito fechado

em algumas personalidades e voltado para uma produção muito distinta da que ele

apreciava. Todavia, o fotógrafo chegou a participar de algumas das exposições do clube

e algumas de suas fotografias chegaram a figurar nos primeiros catálogos. Uma destas

parece ter condensado a situação do fotógrafo perante o clube. Ao comentar a fotografia

“Samaritana” exposta em 1954 no III Salão Mineiro de Arte Fotográfica, Bruno revela

que a imagem não havia ganhado nenhum prêmio através do júri do evento, mas havia

sido reconhecida por outros meios:

BC: Mas a vingança minha foi... tinha um jornal dos Niemeyer no cinema, passava em todo o Brasil, então eles falaram: “Colocaram uma foto sua no cinema”. Era ali na esquina da [Rua] Bahia com... perto donde foi o Estado

“Barra de Rio”, Wilson Baptista (1939-1952)

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“Samaritana”, Bruno da Costa (1954)

de Minas, acho que [Rua] Guajajaras, não... Aí era um cinema, era mais elite, eu fui na sessão das oito, aí o som: [entrevistado simula a chamada do jornal] “Exposição em Belo Horizonte, Foto Clube... a senhorita vai apresentar uma das fotos mais bonitas da exposição, ‘Samaritana’ do fotógrafo Bruno Roberto Martins da Costa”. (COSTA, 2011)

Bruno Roberto não se interessava pelas discussões e a diversidade de produção

que o Foto Clube buscava estimular, suas fotografias estavam voltadas essencialmente

para os retratos super produzidos. Nesta medida, é interessante

como uma fotografia, uma imagem se tornava significativa de

todo esse contexto em sua narrativa.

Contudo, para que possamos seguir a diante, é preciso

reconhecer esse lugar específico do fotógrafo amador; sua

experiência em relação à fotografia é diferenciada, tanto em

relação ao profissional quanto em relação ao amador

esporádico, o “apertador de botão”. Para Bourdieu, o

crescente interesse por uma prática mais exigente da

Fotografia pressupõe a neutralização das suas funções tradicionais, quais sejam, a da

integração do grupo e do registro dos momentos familiares. Essa recusa da função

familiar da fotografia é um sintoma da tendência da categoria dos membros de foto-

clubes, que começam a passar horas do seu tempo no laboratório se dedicando aos

mistérios da imagem fotográfica. Em outras palavras, o praticante deixa de se esmerar

ao culto da memória familiar – verdadeira devoção, segundo o autor – em detrimento de

uma prática transgressora de exceção.

Bourdieu (BOURDIEU, 1965) vai classificar como déviants (transgressores), os

fotógrafos amadores que romperam com a função previamente estabelecida à fotografia

dentro do seu grupo social. Eles desvincularam a fotografia do registro familiar e

reuniram-se em associações, reivindicando o status de artistas. No entanto, ao nossa ver,

essa oposição não é estática. A prática aficionada envolve não apenas um fazer

transgressor, mas também um olhar devoto sobre a fotografia. Um importante

pressuposto para essa discussão é ter em medida que a experiência da prática fotográfica

no período estudado está relacionada à geração de um produto material; a fotografia é

imagem, mas também é artefato. Essa materialidade implica que a prática fotográfica

não está presente apenas no ato em si, mas também na contemplação, no olhar acalmado

que denota certo caráter de monumento ao objeto. Hans Belting (BELTING, 2007), em

La Antropologia de La Imagen, defende que o “olhar recordante” de um espectador

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atual é diferente do olhar recordado que o conduziu até a fotografia e nela se

“coisificou”. Para o autor, a dinâmica própria do lembrar através de fotografias conduz

a uma animação peculiar marcada por uma compenetração afetiva relacionada à aura do

tempo “irreptível” que aquela imagem “irreptível” porta.

No contexto da experiência de produção da narrativa oral, a partir de fotografias,

essa construção partilhada entre entrevistador e entrevistado é capaz de desvelar,

sobretudo, um olhar específico sobre as imagens do passado. Nesta medida, essa

animação própria que o “olhar recordante” proporciona é única, na medida em que

envolve a associação de dois tempos que não voltam mais, aquele do passado

impregnado da imagem e aquele do presente que busca novas associações de sentido.

No caso do contato desses amadores com rastros de antigos artefatos, a discussão ganha

contornos próprios na medida em que os espectadores são também, em muitas das

vezes, os próprios produtores das imagens. A imagem “irreptível” no caso dos

fotógrafos amadores envolve também um processo único de escolha, antecipado pela

tomada da imagem, seguida pela revelação, pelo recorte, pela ampliação, todo um

processo encerrado em um produto material carregado, antes mesmo da sua realização,

de representações simbólicas.

Entrevistas:

BAPTISTA, Wilson. Entrevista concedida a Lucas Mendes Menezes. Belo Horizonte,

2011

ASSUNÇÃO, Gabriel de Souza. Entrevista concedida a Lucas Mendes Menezes. Belo

Horizonte, 2011

COSTA, Bruno Roberto Martins da. Entrevista concedida a Lucas Mendes Menezes.

Belo Horizonte, 2011

Referências bibliográficas:

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações Rio de

Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990.

BELTING, Hans. La transparência del médio. Antropologia de La Imagen, 2007

CAMPOS, Luana Carla Martins. “Instantes como esse serão seus para sempre”: práticas

e representações fotográficas em Belo Horizonte (1894-1939). Dissertação de mestrado

(UFMG), 2008

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FABRIS, Annateresa. (org.) Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo:

Edusp, 1991

POIVERT, Michel. « Les relations internationales du pictorialisme au tournat du

siècle ». In. : POIVERT, Michel (org.). Le salon de photographie – Les écoles

pictorialistes en Europe et aux États Unis vers 1900. Paris : Musée Rodin, 1993.