ilidio sardoeira

12
Ilídio Sardoeira EDUCAÇÃO ONTEM, HOJE E AMANHÃ Junho 2013

Upload: anac-norte

Post on 10-Mar-2016

214 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Discurso de Ilidio Sardoeira na Assembleia Constituinte de 1976

TRANSCRIPT

Page 1: Ilidio sardoeira

Ilídio

Sardoeira

EDUCAÇÃO

ONTEM, HOJE E AMANHÃ Junho 2013

Page 2: Ilidio sardoeira

EDUCAÇÃO ONTEM, HOJE E AMANHÃ

Problema de sempre a educação assume, nos dias de hoje, uma importância rele-

vante que a todos nós, cidadãos atentos, diz respeito. Assim, aproveitamos a su-

gestão do nosso colaborador permanente —Costa Neves— para publicar neste

Caderno Cultural da Anac-Norte, um extrato do Diário da Assembleia Constituin-

te nº 118 de 12/03/1976, com a intervenção de Ilídio Sardoeira, no tempo que

era Presidente da Assembleia o Prof. Henrique de Barros.

Costa Neves, que foi um dos primeiros alunos de Ilídio Sardoeira, traça a seguir,

em breves linhas, um esboço biográfico do deputado ilustre.

Após a inclusão do extrato da constituinte voltará para finalizar com um ligeiro

mas pertinente comentário.

Ilídio Sardoeira quem foi?

Natural de Amarante (1915-1987)

Fez-se professor, homem de ciência, poeta. Foi democrata interveniente e cida-

dão exemplar. Um pouco por toda a parte deixou amigos e admiradores. Viveu

para os outros e nunca pediu nada para si. Modesto, bondoso e afável encantou

pelo gesto, arrebatou pela palavra.

É esse o homem que nós, vamos aqui homenagear, deixando aberto o caminho

para a descoberta profunda do seu valor intrínseco.

Dirigiu quando aluno do Liceu de Vila Real o quinzenário “Alma Nova” e, em Ama-

rante o Jornal “A Voz do Marão”; após a sua licenciatura em “Biológicas”, na Uni-

versidade do Porto, lecionou nos Liceus de Évora, Figueira da Foz, Braga, Porto (D.

Manuel II), Ponta Delgada (Antero de Quental), Viseu e V. N. Gaia.

Publicou livros de poesias, de divulgação científica (Biblioteca Cosmos), traduções

várias e trabalhos sobre Pascoaes.

Inspetor-Orientador do Ensino Básico, Deputado (MDP/CDE) da Assembleia Cons-

tituinte e Bolseiro do INIC (Alta Cultura em 1977).

Era irmão do nosso colega, já falecido, Luís Sardoeira que trabalhou na Agência

de Amarante e Filial do Porto.

Página 02

Page 3: Ilidio sardoeira

O Sr. Presidente (Vasco da Gama Fernandes): - Tem a palavra o Sr. Deputa-do Ilídio Sardoeira.

O Sr. Ilídio Sardoeira (MDP/CDE): -

Sr. Presidente, Srs. Deputados: A aprova-ção em recente plenário desta Assembleia do preceito que estabelece que os funcio-nários e agentes do Estado e das demais entidades públicas não podem ser prejudi-cados ou beneficiados em virtude do exer-cício de quaisquer direitos políticos previs-tos na Constituição, designadamente por opção partidária, coincidiu com a notícia de que o Prof. Mário Silva, expulso da sua Universidade em 1947 em consequência de uma opção política consentida pelos governantes de então, iria dar a sua última lição em dia a marcar para a próxima Pri-mavera. Mesmo que tardiamente, a Pri-mavera chega sempre para aqueles que se consagram à defesa dos direitos funda-mentais.

Nós afirmaremos aqui, e supondo-nos intérpretes do consenso desta Assem-bleia, que o conhecido colaborador de M.me Curie, com ser afastado da sua cáte-dra, deu com a sua vida uma lição da mai-or valia. E essa decorre da exemplaridade da sua conduta cívica.

Esta breve alusão a uma injustiça que foi paradigma impiedoso de uma es-

tratégia política que levou a classe docen-te às portas da mendicidade e da medio-cridade funcional e o ensino, em Portugal, a um impasse complexo e com raízes de difícil deslaçamento e correcção, esta bre-ve alusão, dizia, remete-se para um acon-tecimento que merece ser comunicado a esta Assembleia, até para sublinhar a per-tinência do preceito referido.

Estávamos em 1948. Precisamente no dia 1 de Julho. Durante um encontro, quase casual, com o Prof. Mário Silva re-cordei uma amizade comum - Bento de Jesus Caraça.

Vim ontem de Lisboa - logo me in-formou. Assisti ao seu funeral. Foi uma manifestação impressionante. A polícia não consentiu que o cadáver de Bento Ca-raça ficasse em câmara ardente, na Casa do Alentejo, mas o cortejo fúnebre não se esquece mais. O silêncio de todos e o in-vulgar pesar que todos publicamente tes-temunhavam impressionava quantos, dos passeios, assistiam à sua passagem.

Homens simples abeiravam-se dos amigos ou admiradores de Bento Caraça e perguntavam:

- Quem morreu? Quem vai aí? - Um amigo do povo. Muitos descobriam-se e desciam à

rua por solidariedade. O cortejo engrossa-va de rua para rua. O silêncio cortava-se à

Página 03

A intervenção do Deputado Ilídio Sardoeira na Assembleia Constituinte em 1976

Page 4: Ilidio sardoeira

faca; era a voz de um protesto comum. Atrás da urna, depositário da chave, se-guia Mário de Azevedo Gomes, seu amigo e companheiro de luta, luta por um Portu-gal livre onde o direito à justiça não se contunda com uma obra de caridade e a alienação a todos os azimutes não seja o sinal e prova do autêntico civismo. Não acuso: condeno.

Observa-se desatenção da parte da Assembleia.

O Sr. Presidente: - Peço a atenção da Assembleia.

A comunicação do Sr. Prof. Sardoei-ra tem uma importância, tem uma emo-ção que me parece que exige da nossa parte um pouco mais de respeito e um pouco mais de silêncio.

Vozes: - Muito bem! O Orador: - Ora, quem, como eu, viu

e ouviu, nas horas mais difíceis da vida política portuguesa, Mário de Azevedo Gomes, não sabe hoje ainda que mais ad-mirar nele: se a sua figura marfínica e hie-rática de retábulo, se a sua palavra lúcida e incisiva ou a sua coragem exemplar. Pois bem: ele era o último guardião de um dos melhores obreiros da cultura portu-guesa. E não estou a pensar tão-só no mestre, de Matemática que foi, na novi-dade que havia em Os Conceitos Funda-mentais da Matemática ou nessas duas pequenas obras-primas que são A Cultura Integral do Indivíduo e Galileu Galilei. Te-nho em mente sobretudo as dezenas de obras que constituíram a inacabada Bibli-oteca Cosmos, empreendimento a que votou e devotou os últimos anos da sua vida e com que se propunha, além do mais, resistir à colonização cultural em

que continuamos a estar mergulhados, por míngua, em nome da política do espí-rito, de uma revolução cultural autêntica que fosse obra nossa, obra de todos os portugueses com o direito - e o dever - que lhes assistia de pensarem, escreve-rem e dialogarem livremente.

A Biblioteca Cosmos foi uma obra de resistência ao fascismo, mas também a prova de que, cerceadas as fontes criati-vas de um povo, é a própria sobrevivência desse mesmo povo que corre riscos - os riscos maiores.

Bento Caraça sabia isso e fazia, à sua maneira, a revolução cultural possível, devolvendo a sua confiança aos outros, certo de que a superação de cada um in-clui a possibilidade do fracasso. Por isso, mesmo no seu leito de ferro e de fim, on-de o visitámos, com dois polícias de infor-mação postados em frente da sua casa, não lhe morre no rosto aquele sorriso ím-par, sorriso de um homem que confia nos outros e os chama para uma obra e uma esperança compartilhada e possível. Espe-rança de esquerda, sublinho, porque vol-tada para a sorte das classes desfavoreci-das e para cujo enraizamento na praxis caberá muito concreta responsabilidade aos homens de esquerda deste país. Parti-cularmente aos socialistas e comunistas. Mas regressemos ao termo da última e definitiva jornada de Bento Caraça, ao ce-mitério dos Prazeres. A multidão pára e aguarda silenciosa. Aguarda o quê? Aguarda quem? Obviamente, a última pa-lavra de justiça e de despedida. É então que se assiste a um acto insólito e que tanto diz sobre o meio século de história que a nova Constituição se propõe ultra-

Página 04

Page 5: Ilidio sardoeira

passar. A polícia aproxima-se de Azevedo

Gomes e segreda-lhe o que quer que seja ao ouvido. O professor ouve e cala: o seu gesto dirá o bastante.

Manda que se abra a urna do seu amigo e companheiro de luta; enrola com lentidão as folhas onde escrevera o elogio fúnebre de Bento Caraça e, perante o es-panto e a comoção de todos, dispõe a breve mensagem ao lado do cadáver do amigo. Aquele gesto e o silêncio de todos davam a real dimensão da alienação em que caíra um povo. Um povo que não fala, tem medo. Um povo que tem medo não fala. Azevedo Gomes encontrara o gesto genial para exprimir, pelo silêncio, a men-sagem de um povo que perdera o direito (expressão de Pascoais) de pensar em voz alta.

Aplausos. Eu não digo aqui tudo o que penso e

quero. Todo o funcionário público, todo o professor em particular, tem ainda hoje um lastro fascista de inibições de que o 25 de Abril o não libertou, por enquanto.

Observei, atento e comovido, o ros-to do Prof. Mário Silva que me fez esta descrição: por detrás das lentes espessas dos óculos, os olhos estavam húmidos. Mas, nessa soalheira manhã de Julho, eu via - e revejo agora - o sorriso confiante e saudável de Bento Caraça, sorriso deitado nos ventos da história de que começa a erguer-se, seja por que via for, um rosto novo para o povo português e que será, se os cidadãos portugueses quiserem as-sumir a responsabilidade que o texto da Constituição já propõe, um rosto socialis-ta.

Vozes: - Muito bem! O Orador: - Chamo a atenção para

uma declaração de Pierre Mendès France no seu último livro, onde diz que a sinceri-dade é o segredo do político. Se os Depu-tados que elaboraram esta Constituição forem sinceros, e se os portugueses que a vão aplicar são sinceros, eu tenho a espe-rança de que o rosto ri.

Reparem, Srs. Deputados, que nós não descobri-mos tão-só caminhos novos para o Mundo: criámos um povo chama-do Brasil.

Só que a lição não foi tida em conta pelos governantes que o Movimento do 25 de Abril derrubou. Contra os ventos da libertação de que nasceu a Índia, o Congo Belga, as fracções territoriais que compu-nham os impérios francês, britânico e ho-landês, contra a indicação do remate da guerra argelina, contra o bom senso e o senso comum, os nossos governantes dis-seram não.

E aqui temos, com os retornados, o fruto amargo de uma visão estreita da história. O que poderia ter sido consegui-do pelos caminhos da paz e da concilia-ção, graças a um controlado processo de esclarecida democratização, pois que era essa a orientação que salvaguardava os valores de expressão portuguesa, os valo-res e as gentes, nasce nesses países de uma violência sistematicamente aplicada e mundialmente condenada.

Se os princípios fundamentais já aprovados apontam para uma sociedade sem classes ou para o socialismo, median-te a criação de condições para o exercício democrático do poder das classes traba-lhadoras e pelo caminho de uma liberda-

Página 05

Page 6: Ilidio sardoeira

de responsável, extensiva à generalidade dos portugueses, permito-me inferir que a nova Constituição situa a nossa comuni-dade num horizonte de esquerda ou aber-to à promoção económica, social e cultu-ral das classes desfavorecidas. O socialis-mo será o fruto da liberdade em acto e a todos os azimutes para a generalidade dos portugueses.

Assim o quero e espero. Se a inge-nuidade não estava aqui representada, eu assumo essa responsabilidade. Faço-o em nome de milhões de portugueses margi-nalizados pela história e faço-o por amor das crianças e adolescentes a que votei a minha vida.

Não quiseram vender a Pátria hipo-tecaram-na até consequências imprevisí-veis. E o prometido campo de exploração capitalista, oferecido por mais de qui-nhentos anos ao mundo ocidental, no cur-to intervalo de uma década, libertou-se, por esforço próprio, à custa de fazendas e vidas, e aconselhou a um grupo de capi-tães a restituir ao povo colonizador as li-berdades perdidas e ao povo colonizado as liberdades nunca alcançadas.

Ora, se por terras nortenhas, entre populações tão carecidas de tudo, que mal têm consciência do cerceamento da própria liberdade, os petardos e as bom-bas rebentam, eu permito-me adiantar que, até pela violência das acções contra-revolucionárias, o povo aprenderá a re-flectir sobre a razão de ser das condições em que tem sobrevivido. A contra-revolução pode vir a ser um processo de aceleração do movimento iniciado em 25 de Abril. Facto esse que ficará a compro-var que há ainda, entre nós, portugueses

que não aprenderam com os erros de um passado recente a corrigir vias de actua-ção condenadas pela história.

Em nome de Cristo ou de Marx - e por que não por ambos de mãos dadas? - o homem português há-de ser descido da cruz em que o pregaram minorias satisfei-tas por intermédio de frios executores de práticas alimentes.

Aplausos. A longo prazo, o processo histórico

em que todos estamos envolvidos é irre-versível e visa o bem comum. Entre nós - e isto foi sublinhado durante o Concílio Ecuménico por um cardeal nórdico, salvo erro - os cristãos parecem empenhados em que a justiça social se fique a dever a Marx.

Descrente desde a adolescência, começo a acreditar que Deus, no século XX, está a escrever direito pelas linhas da esquerda.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: De-pois de cinquenta anos de opressão e re-pressão, a liberdade tem um preço. Entre os vários este: o não sabermos usar dela em favor dos outros. Por exemplo: da cri-ança portuguesa. O Deputado Gonçalves Sapinho referiu, há dias, que há milhares de alunos sem aulas e milhares de profes-sores sem colocação. Mau é que isso este-ja a acontecer. Mas vamos supor que no próximo ano lectivo esta mazela burocrá-tica fica sanada. Os educandos encontram os educadores em disponibilidade. O nos-so sistema educativo entrou nas calhas da solução justa, mesmo ao nível da escolari-dade platonicamente obrigatória? É óbvio que não.

Os problemas centrais da degrada-

Página 06

Page 7: Ilidio sardoeira

ção do ensino permanecem. São proble-mas, em grande medida, de raiz sócio-económica. Ao cabo e ao resto problemas que têm de encontrar primeiro as solu-ções políticas adequadas ao mundo dos adultos.

Eu não sei de quanto tempo dispo-nho para mostrar exactamente, ou de-monstrar esta tese: que a escola não re-solve os fracassos escolares. Os fracassos escolares são resolvidos pelos adultos, pela sociedade em que a escola se insere.

O Sr. Presidente dirá quantos minu-tos me concede para eu fazer uma súmula que esclareça a Assembleia sobre um ponto que me parece essencial.

O Sr. Presidente: - Não tenho cora-gem, Sr. Deputado, de lhe cortar a pala-vra. Faz favor de continuar.

Vozes: - Muito bem! Aplausos. O Orador:- A escola é o espelho da

sociedade; esta não transforma aquela, reprodu-la. Vou apontar sumariamente questões que, no seu desenvolvimento, cada uma daria uma intervenção. Não vou apresentar hipóteses, mas factos concre-tos.A subnutrição da mãe grávida e o crescimento da placenta estão em íntima ligação, na própria medida em que, numa mãe que durante a gravidez é mal nutri-da, a placenta que alimentará o filho não se desenvolve. Essa criança é uma criança marcada para toda a vida. Logo: alimenta-ção - criança que não se desenvolve con-venientemente é um fracasso escolar, é um atraso mental à vista. Este é um pro-blema de adultos, não é um problema que se resolva em qualquer escola do País.

Aplausos.

Há muitas crianças entre nós cujo nascimento é prematuro. Ora, provou-se recentemente, em Helsínquia, que uma criança nestas condições não dispõe de mecanismos bioquímicos enzimáticos ca-pazes de eliminar determinados aminoáci-dos, e esses aminoácidos concentram-se nos neurónios cerebrais e isso é uma das causas de um tipo de atraso cerebral. O próprio leite industrial que se fornece às crianças, se não tiver a composição ade-quada, conduz ao mesmo efeito. Logo, crianças lançadas na escola submetidas a este tratamento são crianças marcadas, são crianças fracassadas. Isto é da respon-sabilidade das sociedades em que elas se inserem, não da escola.

Vozes: - Muito bem! Aplausos. O Orador: - Até aos 4 anos o cérebro

representa 90 % da totalidade do peso do corpo. O corpo representa apenas 20 % das necessidades das proteínas para a multiplicação dos neurónios; por outras palavras, isto significa que nós temos de fornecer a uma criança que nasce, até aos 4 anos de idade, as proteínas necessárias. De outra maneira, numa fase em que os neurónios estão em rápida multiplicação, eles não atingem na qualidade e na quan-tidade um cérebro normal. Uma criança sem proteínas é uma criança marcada e condenada à um fracasso escolar. Ora, as crianças dos nossos meios rurais não co-mem proteínas, que são hoje alimentos caríssimos, e não as comem até por igno-rância: vendem os ovos para comprar a broa.

Vozes: - Muito bem! O Orador: - Ora, as crianças, o povo

Página 07

Page 8: Ilidio sardoeira

que não é esclarecido a este respeito, está a criar condições nos seus filhos para que eles fracassem no domínio escolar. Os meios de comunicação - é urgente - devi-am pôr-se ao lado da escola, do professor da criança, informando-os das consequên-cias e das razões que levam a estes fracas-sos.

Vozes: - Muito bem! Aplausos. O Orador: - Em vez de gastarem pá-

ginas sobre páginas a falar de crimes, de roubos, etc., eles deveriam apontar as causas. Por exemplo, um psiquiatra, há dois anos na Gulbenkian, que está (isto interessa aos juristas) a trabalhar numa penitenciária belga, de Waelle, que rece-be um criminoso condenado a vinte anos, estuda o seu processo e depois estuda o próprio prisioneiro. Ao fim de meses, ou de anos, diz ele, conclui que a causa é re-mota, a causa vem de antes dos 3 anos. Porquê? Porque se as crianças entre os 2 e os 3 anos não são levadas a realizar ope-rações motrizes elementares, por exem-plo, abrir, carregar num interruptor, tocar uma campainha, aparafusar seja o que for, enfim, os problemas que surgem em todas as casas, se o pai o proíbe, se o pai não indica como é que se executam essas operações, a criança começa a encontrar no mundo que a rodeia razões para a sua hostilidade. Esse psiquiatra diz que a cau-sa fundamental da delinquência infantil está nisso, em não sabermos como educar uma criança até aos 3 anos de idade no domínio da motricidade. É um apelo ur-gente que se tem de fazer ao nosso país neste sentido. Por outro lado, há o pro-blema da oralidade: uma das causas dos

fracassos escolares está na dificuldade que grande parte das crianças tem em ler, em aprender a ler, no ano que é concedi-do a essa criança. Porque é que a criança não aprende a ler? Está provado que ela precisa de ser, entre os 2 e os 4 anos de idade, sujeita a trabalhos de oralidade. A falta do ensino pré-primário, de infantá-rios, de creches e até da consciência dos pais, da consciência dos burgueses, faz com que a criança, não sendo preparada para a oralidade, vá fracassar na leitura, e fracassando na leitura fracassa, de uma maneira geral, em tudo. São isto, portan-to, problemas que não têm que ver com a escola mas com a sociedade, com a igno-rância das pessoas, com a não aplicação dos processos de informação a problemas tão graves como este.

Evidentemente que mesmo aqui em Lisboa há pouco tempo um pai que era metalúrgico foi saber do rendimento da filha, que era mau. Conversou com a pro-fessora, e a professora disse-lhe que a fi-lha não dava rendimento, e lá lhe confes-sou porquê. O pai, discordando, diz:

- Não, a culpa é da senhora! - Mas porquê? - Pergunta a profes-

sora. - Eu ganho 10 000$ e a senhora

6000$. Como é que uma pessoa ganhan-do 6000$ pode preparar bem uma crian-ça?

Vozes: - Muito bem! Aplausos. O Orador: - Outro problema impor-

tante é o que se chama agora o «terrorismo linguístico». As crianças dos meios desfavorecidos, dos meios rurais, têm a linguagem dos seus pais - a lingua-

Página 08

Page 9: Ilidio sardoeira

gem autorizada é a que falam os pais, os irmãos, a família. Quando ela é transferi-da para a escola, particularmente para a escola do ciclo, ela encontra outros ho-mens, outras roupas, outra linguagem, ela encontra a recusa, a rejeição da lingua-gem da sua própria família.

Isto implica, o que se chama um traumatismo linguístico. Enquanto os pro-fessores não estiverem informados a este respeito, eles não saberão nas suas esco-las defender uma criança que traz pala-vras da boca dos pais que são recusadas e condenadas pela própria escola, coloniza-da pela classe burguesa.

Aplausos. Outra razão: está provado que num

país onde existem centros culturais de toda a ordem, centros recreativos, activi-dades culturais, meios de informação ade-quados aos níveis etários, o rendimento escolar é maior. Como é que num país como o nosso onde a comunicação foi proibida durante cinquenta anos, nós po-demos esperar que a escola tenha o ren-dimento adequado? Por exemplo: a Repú-blica da Alemanha Oriental tem fracassos escolares da ordem dos 4 %. Um livro so-bre fracassos escolares dos franceses afir-ma que os portugueses nas suas escolas têm fracassos da ordem de 40 %. Quatro, quarenta! E o capítulo é este: isto é um milagre? Não, isto é conhecimento con-creto das crianças, uma modificação ao longo de trinta anos das condições econó-micas do povo alemão, aqui é que está o segredo do êxito na escola. Somos nós, os adultos, os responsáveis pelos fracassos escolares porque não temos a coragem de modificar radicalmente as condições, as

contradições da sociedade portuguesa porque nos empenhamos em manter uma sociedade estratificada, caduca, per om-nia secula seculorum, não é assim? E que-remos depois que a escola resolva proble-mas que não tivemos a coragem de resol-ver nas ruas.

Fala-se aqui no 1.º de Maio e eu li um belo trabalho da Sophia, considerando que era uma ressurreição de um povo. Não é! É um momento de criatividade de um povo que de repente se sente livre. Mas não é a ressurreição de um povo; es-sa depende dos actos dos Portugueses, dos actos de todos os portugueses, dos actos concretos, das acções concretas. É esse apelo que eu faço aos presentes.

Eu sou professor; acho que o segre-do de um professor está em nunca cortar raízes com a criança que foi, levá-la para as suas aulas, pela sua própria mão. Essa criança trouxe eu hoje. Está ali invisível e concreta. Ela está a acusar, através desta Assembleia, a falta de coragem dos Portu-gueses em não terem resolvido, nas ruas, os problemas que surgem nas escolas. Eu espero que no futuro esse problema seja resolvido definitivamente. Disse.

Aplausos prolongados de pé. O Sr. Presidente: - Srs. Deputados:

Suponho que raras vezes uma infracção regimental foi tão justificada como aquela que acaba de ser praticada, com a consi-deração e com o respeito e a profunda compreensão do Presidente.

Aplausos. Na última sessão saímos todos co-

movidos com a invocação que aqui se fez das figuras tutelares da democracia portu-guesa, que criaram um ambiente pela sua

Página 09

Page 10: Ilidio sardoeira

pertinácia e pelo seu heroísmo cívico para que conseguíssemos ser gente, e conse-guirmos estarmos todos reunidos numa Assembleia deste tipo, hoje.

Não se levará a mal a um homem que vive mais do coração do que da inteli-gência, que é o meu caso, que diga ao professor Sardoeira quanto me comoveu a invocação de algumas figuras, que fo-ram meus companheiros nas lutas iniciais contra o fascismo, dando-se até a coinci-dência das minhas profundas discordân-cias com o Prof. Bento Caraça, mas que sempre respeitei e admirei e amei (no bom sentido da palavra), pela sua direitu-ra moral, pelo seu proselitismo, pela sua pedagogia actuante, pelo exemplo extra-ordinário que deixou às juventudes vin-douras e que não se vai perder com certe-za.

Outras figuras aqui surgiram, como o Prof. Azevedo Gomes, outro grande amigo que perdi, o Prof. Mário Silva, feliz-mente vivo, embora em condições defici-entes da sua visão. Acabámos de ter um momento muito alto, que fica bem numa Assembleia que por vezes é rotineira nu-ma discussão materialista de preceitos da sua Constituição. Pode V. Ex.ª ter a certe-za, Sr. Prof. Sardoeira, de que o Presiden-te poucas vezes terá conscientemente, tão conscientemente, violado o seu Regi-mento. Vamos continuar.

Aplausos. Pausa. Se existem pedidos de esclareci-

mento, eu pediria aos Srs. Deputados que não me obriguem a continuar a infringir o Regimento. Guardaríamos para amanhã as perguntas que se entende que se de-

vam fazer ao Sr. Prof. Sardoeira, porque efectivamente há regras que têm de ser cumpridas, embora contrariamente, por vezes, com os nossos pontos de vista e com a nossa sensibilidade.

Vamos continuar a trabalhar e te-nho a impressão de que continuando a trabalhar, pelo que vamos fazer, honrare-mos, sem dúvida nenhuma, a memória dessas figuras tutelares que foram tão sentidamente invocadas pelo Prof. Sardo-eira.

Aplausos prolongados de pé.

Página 10

Passados 39 anos da Revolução de

Abril, achamos bem confrontarmos a

atual situação do ensino com a então

existente.

A criança, invisível e concreta, que o

Professor Sardoeira levou à Assem-

bleia, continua hoje a acusar os por-

tugueses responsáveis por não terem

resolvido os problemas que surgem

nas escolas.

Sendo estas um espelho da sociedade,

defrontada cada vez mais com a crise

económica e o desemprego, que ima-

gem poderá ela transmitir aos alunos,

para lhes incutir a esperança de uma

vida melhor para o nosso povo?

Meditar sobre tudo isto, não será uma

das melhores maneiras de comemo-

rarmos a data histórica da Revolução

dos Cravos?

Costa Neves

Page 11: Ilidio sardoeira

EXEMPLO DE COERÊNCIA E FIRMEZA NO COMBATE PELA LIBERDADE A vida de Ilídio Sardoeira, desde muito novo (os seus alunos chamavam-no de Doutor Menino) dedicado à pedagogia e ação cultural e cívica, é de todos os amarantinos conhecida pelo que repre-senta na luta contra o obscurantismo, que entre nós continua a existir apesar de avanços significa-tivos conseguidos depois do 25 de Abril. No final do século XX mais da quarte parte dos portugue-ses não sabe ler nem escrever e cerca de 60% não leram um único livro. Além de pedagogo, de ensaísta, de poeta, de escri-tor de temas científicos, foi também um cidadão interveniente, porquanto sempre entendeu que “os problemas centrais da degradação do ensino são, em grande medida de raiz sócio-económica, e portanto terão de ter soluções políticas adequadas ao mundo dos adultos”. Como um dos seus pri-meiros alunos, compartilhando com ele dos mes-mos anseios e ideais, que tão bem soube comuni-cai a várias gerações e que constituíam uma atra-ção para todos os que o escutavam, não posso deixar de alinhar algumas palavras referentes ao seu comportamento exemplar como homem pú-blico que usando a sua própria expressão, “sempre teve os homens dentro”. Com ele aprendi que não há cultura sem liberdade nem liberdade sem cultura, e que para se adquirir esta será necessária a independência económica. Por isso a luta pela liberdade não pode restringir-se à conquista, aliás muito importante, dos direi-tos civis e políticos, mas essencialmente do direito ao completo e amplo desenvolvimento das capaci-dades intelectuais, artísticas e materiais, dentro de um espírito de autêntica solidariedade humana. A cultura, na sociedade em que vivemos, tem sido e é o monopólio duma classe -a burguesa- embora alguns provenientes do fundo das massas tenham podido ascender, a pulso, a altas posições sociais. Mas, a proporção desses continua ainda bastante reduzida relativamente à enorme quantidade de homens e sobretudo mulheres, impedidos pelas circunstâncias dessa ascensão. E quantos dos pro-letários que conseguem vencer se conservam fieis à sua própria classe e aos seus ideais de emancipa-ção humana e não desertaram ingressando no

campo contrário! Embora a cultura seja utilizada muitas vezes como meio de opressão, drama a que não são alheias certas situações políticas em que grande parte de operários e camponeses são induzidos a votar em partidos que, no poder, tudo fazem para restringir os seus mais sagrados direi-tos sociais e económicos, entre os quais avultam os direitos sindicais. Mas nem por isso a cultura significa opressão, antes pelo contrário dá a cada homem a consciência da sua própria dignidade, de todos os seus deveres e sobretudo do lugar que ocupa na sociedade a que pertence, sem o que não é uma autêntica cultura. Ilídio Sardoeira, tendo sido professor durante qua-se meio século, aprendeu muito ensinando, como ele próprio confessou nas breves notas auto-biográficas insertas na coletânea “Poesia de Ama-rante Anos 80”. Ao reconhecer que a promulgação do texto da Constituição de 1976, votada pelos três maiores partidos e considerada na altura uma das mais avançadas do mundo, foi “um dos mo-mentos mais gratificantes da sua militância cívica,” e ao defende-la, nas suas bases essenciais à defesa dos direitos inalienáveis dos trabalhadores, (como no último artigo publicado neste jornal), até ao fim da sua vida, Ilídio Sardoeira deu um exemplo vivo de coerência e firmeza nos combates pela paz e pela liberdade, qualidades tão arredadas, nos dias de hoje, daqueles que mais as apregoam. Ilídio Sardoeira foi um dos amarantinos que mais contribuíram para a emancipação do homem que há-de nascer de todos nós, mesmo daqueles em que está adormecida temporariamente a parcela de dignidade que existe em todos os homens. “A cultura nunca rendeu aos que a serviram como devotos”. Assim escreveu quem dedicou toda a sua vida ”a favor de maior justiça e Paz entre os homens, porque sempre os caminhos da Paz se hão-de cruzar com os de maior justiça social”. Por isso não admira que não lhe tenha sido presta-da em vida a homenagem que bem merece de todos os amarantinos. Porto, 13 de Dezembro de 1987 COSTA NEVES

Página 11

ILÍDIO SARDOEIRA

Page 12: Ilidio sardoeira

Página 12