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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA 1 TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E MERCADO DE TRABALHO: MUITO ALÉM DA PROSTITUIÇÃO Thiago Clemente do Amaral 1 1) Considerações Iniciais Travestis e transexuais têm sido objeto de diversos estudos no Brasil desde há pelo menos vinte anos (BARBOSA, 2010; BENEDETTI, 2005; BENTO, 2008; DUQUE, 2005 e 2011; GARCIA, 2007; KULICK, 2008; LEITE JR, 2011; MISKOLCI, 2009 e 2012, PELÚCIO, 2009; TERTO JR, 1989; VENTURA, 2010; dentre outros). Diversos foram os temas tratados no que tange a esta questão. Discutiu-se a violência, as DST´s, a prostituição, a relação destas pessoas com o binarismo de gênero em voga em nossa sociedade, etc. Dentre os trabalhos analisados por mim, poucos buscaram apontar, de forma aprofundada, as razões da inter-relação entre estes sujeitos e os temas mencionados 2 . Não defendo, no que tange à prostituição, por exemplo, que a realidade das travestis seja universal e imbuída de fatalismos. Por óbvio, a realidade individual de cada uma das pessoas que vive neste tipo de situação é única e específica, sendo bastante temerária uma tentativa de generalizar motivos que as levam a esta situação, sem uma análise que parta de uma pesquisa mais aprofundada do que a presente. No entanto, não se pode deixar de apontar questões que tocam a um número considerável de travestis e transexuais em suas histórias de vida: a dificuldade de fazer-se respeitar em seu processo de questionamento factual ao binarismo de gênero; a expulsão de casa e a falta de apoio da família; a evasão escolar, devido à falta de preparo do Estado, por meio de seus professores, para lidar com a 1 Graduando do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Email: [email protected] 2 Não me refiro aqui a supostas causas biológicas ou psicológicas que condicionariam tais sujeitos a viverem estas realidades, mas sim a causas sociais que levaram estas pessoas a viverem em situações de extrema dificuldade não só financeira, mas também educacional, política, e mesmo no âmbito de direitos humanos dos mais básicos, tais como moradia, saúde, educação, além do reconhecimento de uma identidade que lhes tem sido negadas ainda quase 25 anos após a promulgação da chamada “Constituição cidadã”.

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES

15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I

Salvador - BA

1

TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E MERCADO DE TRABALHO:

MUITO ALÉM DA PROSTITUIÇÃO

Thiago Clemente do Amaral1

1) Considerações Iniciais

Travestis e transexuais têm sido objeto de diversos estudos no Brasil desde há pelo menos

vinte anos (BARBOSA, 2010; BENEDETTI, 2005; BENTO, 2008; DUQUE, 2005 e 2011;

GARCIA, 2007; KULICK, 2008; LEITE JR, 2011; MISKOLCI, 2009 e 2012, PELÚCIO, 2009;

TERTO JR, 1989; VENTURA, 2010; dentre outros). Diversos foram os temas tratados no que tange

a esta questão. Discutiu-se a violência, as DST´s, a prostituição, a relação destas pessoas com o

binarismo de gênero em voga em nossa sociedade, etc. Dentre os trabalhos analisados por mim,

poucos buscaram apontar, de forma aprofundada, as razões da inter-relação entre estes sujeitos e os

temas mencionados2.

Não defendo, no que tange à prostituição, por exemplo, que a realidade das travestis seja

universal e imbuída de fatalismos. Por óbvio, a realidade individual de cada uma das pessoas que

vive neste tipo de situação é única e específica, sendo bastante temerária uma tentativa de

generalizar motivos que as levam a esta situação, sem uma análise que parta de uma pesquisa mais

aprofundada do que a presente.

No entanto, não se pode deixar de apontar questões que tocam a um número considerável de

travestis e transexuais em suas histórias de vida: a dificuldade de fazer-se respeitar em seu processo

de questionamento factual ao binarismo de gênero; a expulsão de casa e a falta de apoio da família;

a evasão escolar, devido à falta de preparo do Estado, por meio de seus professores, para lidar com a

1 Graduando do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Email: [email protected]

2 Não me refiro aqui a supostas causas biológicas ou psicológicas que condicionariam tais sujeitos a viverem estas

realidades, mas sim a causas sociais que levaram estas pessoas a viverem em situações de extrema dificuldade não só

financeira, mas também educacional, política, e mesmo no âmbito de direitos humanos dos mais básicos, tais como

moradia, saúde, educação, além do reconhecimento de uma identidade que lhes tem sido negadas ainda quase 25 anos

após a promulgação da chamada “Constituição cidadã”.

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situação da transgeneridade; a falta de acesso à saúde pública, e de dinheiro para recorrer à saúde

privada, que faz com que muitas travestis e transexuais interfiram em seu corpo tomando hormônios

e colocando próteses de silicone industrial sem nenhum acompanhamento médico, por vezes

correndo-se sérios riscos que podem levar à morte3; e, por fim, a dificuldade na obtenção de um

emprego fora do mercado da prostituição, seja devido à falta de conclusão dos estudos, seja devido

à falta de passaportes básicos para sua inserção social, tais como documentação que indique seu

nome social de maneira coerente com sua forma de apresentação enquanto gênero distinto daquele

imposto em seu nascimento.

Os estudos que se debruçaram sobre tais questões partiram muitas vezes de uma realidade

vista estereotipicamente como dada: a intersecção necessária da vida das travestis com a violência,

doenças, degradação e prostituição. A partir desta visão, estuda-se como funciona a realidade, sem

se buscar as causas sociais que criam estes estereótipos. A propósito, cabe questionar se este tipo de

abordagem não vem a reforçar ainda mais tais estereótipos, uma vez que traz o debate para o campo

meramente descritivo, deixando-se diversos fatores sociais mais aprofundados de lado.

Outra forma de abordagem é aquela que se preocupa em encontrar as causas para tal

intersecção de temas. No entanto, muitas vezes as razões são buscadas em realidades muito

individualizadas, separadas de um contexto social mais amplo, evitando-se determinadas

discussões, como o papel da quebra do binarismo de gênero na conformação de tais realidades.

Neste tipo de abordagem, buscam-se apenas as causas psicológicas e individualizadas para a

discriminação, tornando-se o debate incompleto e enviesado.

Por fim, encontrei abordagens que buscaram fazer uma discussão mais aprofundada sobre as

razões sociais que levam grande parte das pessoas a apontarem as travestis como uma espécie

escória social; nestas abordagens, percebi uma preocupação bastante grande em relação aos motivos

sociais que contribuem para que as travestis sejam excluídas da escola, da família, do mundo do

trabalho, do atendimento à saúde, levando-as muitas vezes a terem que trabalhar com a prostituição.

3 Discorri sobre o tema do silicone industrial e sua inter-relação com o mundo jurídico em artigo apresentado para o X

ENUDS, em novembro de 2012. Infelizmente, os Anais deste encontro ainda não foram publicados.

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Pretendo, neste trabalho, trazer algumas considerações para este debate, fazendo algumas

perguntas que vão em sentido complementar a este último tipo de abordagem apontada acima: por

que algumas travestis e transexuais estão inseridas no mercado de trabalho formal, fora do mercado

de prostituição, enquanto outras encontram apenas esta como alternativa? Quais fatores as levaram

a enveredar por um caminho diverso daquele apontado pela maior parte dos trabalhos que se

propuseram a estudar estas pessoas?

Baseado em entrevistas e leituras que tenho realizado para minha pesquisa de conclusão de

curso, busco apontar hipóteses que ajudariam a responder tais questões. Como já dito, por se tratar

de uma pesquisa qualitativa (conversei apenas com cinco travestis/transexuais que estão ou

estiveram inseridas recentemente no mercado de trabalho), não poderia ter a pretensão de dar

respostas completamente precisas e acabadas sobre o tema.

Minha intenção neste trabalho é apontar elementos que encontrei em comum nas cinco

experiências a mim relatadas, e propor assim linhas gerais que possam ser utilizadas em pesquisas

ulteriores sobre o tema.

Aponto, no primeiro item deste trabalho, a quebra do binarismo de gênero como o principal

fator de exclusão social de travestis e transexuais. Discuto que esta relação acontece devido à

dificuldade (por vezes relativa, conforme apontado por DUQUE:2011) destas pessoas em se

utilizarem do mecanismo do armário para enfrentar determinados problemas sociais. Diante desta

dificuldade, faço uma breve digressão sobre a impertinência de subsumir o termo “transfobia” ao

termo “homofobia”, tal como propõe determinados setores do movimento LGBT.

Em seguida, busco entender quais fatores contrabalanceiam esta pressão relacionada à

quebra do binarismo de gênero, possibilitando a algumas travestis e transexuais o término de seus

estudos e a inserção no mercado de trabalho, enquanto que para outras tais portas são fechadas

desde muito cedo.

Por fim, discuto, a partir destas questões, as diferenciações acionadas pelas minhas

entrevistadas para referir-se aos termos “travesti” e “transexual”, ligados muitas vezes não à

diferenciação médico-institucional referente à suposta aversão ao órgão genital, mas sim devido à

construção social dos termos e seus respectivos estigmas. Aponto que o termo “transexual”, mais

asséptico (ainda mais por ter sido criado “em laboratório” e ser utilizado por profissionais de saúde

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e das áreas psi) muitas vezes serve de substituto para o termo “travesti” justamente para pessoas que

visam se livrar do estigma criado por este último, consolidando assim seu papel de relativa inserção

social.

2) A quebra do binarismo de gênero4 e a impossibilidade do armário como principais

fatores para a exclusão social de travestis e transexuais

Ocorre com as pessoas que iniciam o processo transgênero não apenas uma mera opressão

referente à orientação sexual, mas também uma opressão de gênero.

A discriminação contra transexuais e travestis femininas é mais marcada do que a dos

homens gays, uma vez que a realidade que se impõe em nossa sociedade é não só heterocentrada,

mas também machocentrada. Assim sendo, o processo de feminilização destas pessoas é encarado,

muitas vezes, como uma afronta dupla: ao binarismo de gênero e à supremacia do sexo masculino,

cuja negação acaba por ser bastante execrada5.

Miskolci afirma, neste sentido, ao se referir a usuários de internet gays estudados por ele,

que a atração por pessoas do mesmo sexo os leva necessariamente a confrontar a ordem social,

perdendo o privilégio do gênero masculino, o que, de certa forma, os exporia a serem humilhados e

(mal)tratados como mulheres” (MISKOLCI, 2009:187).

Sendo assim, é extremamente problemático o entendimento (corrente em setores do

movimento LGBT) de que as questões referentes à transfobia devem estar subsumidas às questões

4 Entenda-se por binarismo de gênero, em linhas muito gerais, a necessidade imposta socialmente às pessoas

para que elas sejam enquadradas no gênero masculino e feminino, sendo que o primeiro é mais valorizado

socialmente do que o segundo. Por esta perspectiva, qualquer “desvio” que aponte para uma espécie de “confusão”

entre os gêneros embaralha este sistema, evidenciando que tal divisão possui forte caráter social, ao invés da visão

biologizante que impera nos últimos séculos.

5 Alguns autores, como Miskolci (2009; 2012), apontam para uma espécie de valorização da masculinidade, em

geral associada a heterossexuais, entre uma grande parcela de gays. Esta valorização costuma vir acompanhada de

uma desvalorização de tudo o que possa ser ligado à feminilidade. Sob este viés, reforça-se não só a discriminação

contra gays afeminados, que dão pinta, mas também a discriminação contra travestis e transexuais, que são vistas

muitas vezes como pessoas que abdicaram de sua masculinidade.

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referentes à homofobia de maneira geral6. Não há dúvida de que a questão da orientação sexual

refere-se a um marcador social diferente do referente à questão de gênero, embora haja pontos

claros de intersecção entre ambos.

Além da já mencionada questão da quebra do binarismo de gênero, cabe ressaltar o papel do

armário para melhor diferenciar aspectos específicos da transfobia de aspectos mais genéricos da

homofobia.

Enquanto no caso dos homens gays, por exemplo, sempre irá existir, em menor ou maior

grau, a possibilidade de esconder-se no armário, em relação às travestis e transexuais, devido à

marcação de diferença de gênero (costumeiramente mais acentuada do que a marcação referente à

orientação sexual) o armário é, quase sempre, impossível de ser usado com a mesma destreza.

Segdwick, ao analisar a questão do armário em seu clássico estudo sobre assunto, aponta

que até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário

com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas.

(SEDGWICK, 1993:22)

Ao comparar a situação de discriminação do gay com outras modalidades de opressão,

Sedgwick aponta que o racismo (…) baseia-se num estigma que é visível, salvo em alguns casos

excepcionais (…). O mesmo vale para as opressões fundadas em gênero, idade, tamanho,

deficiência física. (ibidem)

Ao trazer a questão do armário para a realidade brasileira contemporânea, em especial no

que diz respeito às sociabilidades via internet, Miskolci aponta que a valorização da capacidade de

“desaparecer” discretamente na sociedade oblitera o fato de que em busca de proteção se reforça a

mesma ordem simbólica que historicamente oprimiu e relegou às margens (“ao meio”) as

sexualidades em desacordo com as normas dominantes (MISKOLCI, 2009:177). O que ocorre no

caso das travestis e transexuais é que, em grande parte das vezes, não existe esta possibilidade de

desaparecimento / permanência no armário descrita por Miskolci.

Este estar (necessariamente) fora do armário7 pode ser apontado como um dos motivos que

aumentam o estigma da população trans, uma vez que a permanente exposição de elementos de 6 Discorrerei melhor sobre este tema em tópico próprio.

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transgeneridade faz com que os riscos de agressão corridos por estas pessoas seja maior do que o de

setores do movimento LGBT que podem encontrar guarida dentro deste mecanismo.

Vistas as duas questões apontadas no título deste tópico, as quais estão completamente

imbricadas com a transfobia, irei agora apontar alguns elementos que podem servir de contraponto a

tais dificuldades. Discorro a seguir sobre dois deles: a não-ruptura dos laços familiares e o início

relativamente tardio do processo de transformação de gênero.

3) A não-ruptura dos laços familiares e o início relativamente tardio do processo de

transexualização

Kulick, em seu clássico trabalho escrito nos anos 1990, já apontava a ruptura com a família

como um momento crucial no percurso que leva algumas travestis à prostituição: à medida que que

tais modificações [corporais] vão se tornando mais aparentes, os meninos quase sempre são

expulsos de casa ou a abandonam por livre iniciativa (KULICK, 2008:65).

Em que pese ser questionável este abandono por livre iniciativa8, é importante ressaltar a

importância deste momento de ruptura com a família, ponto crucial do percurso que leva (ainda

hoje) ao mercado do sexo grande parcela de travestis e transexuais.

Entre as pessoas que entrevistei, todas afirmam que possuem relações boas com suas

famílias, em que pesem algumas diferenças. Geanne9 não mora com seus pais, mas os visita com

frequência e relata apoio da família quando iniciou seu processo de transexualização; Thayná mora

com seus pais e afirma não ter nenhum problema com eles no que diz respeito à sua

transexualidade; Josiane afirma que também mora com sua mãe, mas não teve apoio em sua

7 Tiago Duque (2011) relativiza esta questão em sua análise sobre travestis adolescentes da cidade de Campinas, ao

propor que tais sujeitos utilizam-se das montagens e desmontagens de forma estratégica, a depender de situações, locais

e interesses distintos existentes em diferentes contextos.

8 A título de exemplo, aponto a autobiografia de Fernanda Farias de Albuquerque: Era dia 8 de maio de 1982, e tudo

despencou sobre mim. Foi pela vergonha de ser descoberto, pela coragem que eu não tinha. (…) Porque à minha saia

eu não podia renunciar. Por tudo isso e por tantas outras coisas mais, naquela noite enxerguei só uma saída, a fuga. A

outra, o suicídio, na época me parecia clamorosa demais. (ALBUQUERQUE & JANELLI, 1995:51).

9 Utilizo neste trabalho os nomes sociais pelos quais minhas entrevistadas se apresentaram a mim.

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mudança corporal, sendo que até hoje é chamada por ela pelo nome de batismo; Jacqueline tem

família em Belém, que a visita com alguma frequência em São Paulo, e possui uma irmã lésbica e

um irmão gay; Daniela não mora com os pais, mas ajuda-os financeiramente e os visita com

frequência.

Em termos de ruptura/manutenção dos laços familiares, Josiane foi quem mais encontrou

dificuldades. Embora hoje more com seus pais, quando iniciou o processo de transexualização teve

de sair de casa, e acabou se prostituindo por um tempo. No entanto, mesmo neste caso mais extremo

de ruptura familiar, os laços não foram completamente desfeitos, tanto que ela voltou para a casa

dos pais, onde mora até hoje.

Acredito que esta lógica de não ruptura das relações familiares seja um dos motivos pelos

quais minhas entrevistadas conseguiram concluir pelo menos o ensino médio (sendo que duas delas

concluíram o ensino superior), com a consequente maior facilidade de inserção no mercado de

trabalho (e, não por acaso, a maior parte delas possui uma renda mensal que varia de 5 a 10 salários

mínimos).

Outro fator relevante que acredito poder explicar esta menor dificuldade na inserção destas

pessoas no mercado de trabalho diz respeito ao fato de que todas as minhas entrevistadas

começaram o processo de transexualização após os vinte anos de idade.

Esta relação ocorre, dentre outras variáveis, justamente porque pessoas que começam seu

processo de transformação de gênero ainda durante a idade escolar sofrem também de forma mais

precoce os efeitos do preconceito transfóbico.

Em tais casos, as pessoas se colocam fora do armário de maneira relativamente cedo,

enfrentando mais dificuldades do que garotos gays, que por vezes encontram formas de esconder ou

disfarçar sua sexualidade dissidente, enquanto esta é afirmada por travestis e transexuais em seu

corpo e em suas roupas, ficando mais suscetíveis a ataques justamente por se confrontarem tão

inequivocamente contra o binarismo de gênero.

Por outro lado, cabe ressaltar que o manejo do armário na idade escolar ocorre de forma

diferente entre garotos gays afeminados e aqueles que não o são, justamente por haver no primeiro

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caso uma espécie de ruptura com as concepções sociais referentes a comportamentos

masculino/feminino.

Neste sentido, ouvi de algumas de minhas entrevistadas frases como: “sempre fui bastante

afeminada na escola, apesar de ter iniciado meu processo de transexualização após a idade

escolar”, frases estas buscando justamente apontar para as dificuldades encontradas desde cedo, as

quais viriam a ser aprofundadas com o início do processo de transexualização.

Esta hostilidade durante a idade escolar que encontrei em minhas entrevistas também foi

apontada por Fernanda Farias de Albuquerque, ainda que suas primeiras experiências transexuais

tenham ocorrido no final da adolescência: Voavam bolinhas de papel, me bombardeavam com

bilhetinhos escritos em folhas amassadas. Jogavam nas minhas costas enquanto eu estava no

quadro-negro. (…) Pedia ajuda a Izael Dias [o professor]. Ele requebrava e me imitava com voz

afeminada: Fala, diga para mim, Fernandinho, o que você quer? Eu emudecia, coberto de

vergonha” (ALBUQUERQUE & JANNELLI, 1995:35)

Apesar de ter iniciado seu processo de transexualização aos 18 anos, as incessantes chacotas

não permitiram a Fernanda a oportunidade de concluir os estudos Em que pese a gravidade de tal

situação, cabe questionar se seria possível sequer a existência de Fernanda na escola e na cidade

onde cresceu nos anos 1960/1970, caso a mesma tivesse iniciado tal processo de transexualização

ainda mais cedo10

.

4. Homofobia não engloba transfobia

A partir das especificidades apontadas nos pontos anteriores, no que diz respeito à

transfobia, cabe trazer à discussão um ponto bastante controverso no movimento LGBT: a

afirmação por vezes feita de que o conceito de homofobia abrangeria o conceito de transfobia.

10

É importante ressalvar que não estou aqui fazendo uma defesa de que o processo de transexualização deva começar

de maneira mais precoce ou mais tardia. Por óbvio, independentemente da idade em que o mesmo se inicie, não é

justificável a interferência violenta por parte da família, de colegas de escola e de trabalho, e menos ainda de

representantes de órgãos estatais, tais como professores ou médicos. Busco aqui meramente fazer uma descrição de

situações que identifiquei como de maior potencial de discriminação em relação a sexualidades dissidentes.

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Contrapondo-se a esta visão, Daniela me fez os seguintes questionamentos: Quantos gays

vão numa farmácia comprar remédio e o farmacêutico pede pra ele o RG dele e o farmacêutico fica

achando que ele tá mentindo, quantos gays passam por isso? Quantos gays pedem pra professora

chamá-los na hora da chamada de “Maria”, quando o nome do RG dele tá “João”, e a professora

faz questão de gritar em alto e bom som: "João!". Quantos gays passam por isso? Isso é

homofobia, ou transfobia?

O Relatório do GGB (Grupo Gay da Bahia) referente ao ano de 2012 apontou que 37% da

população LGBT assassinada naquele ano foi composta de travestis e transexuais.

Tais exemplos trazem apontam para a necessidade de um tratamento diferenciado da questão

transexual dentro do movimento LGBT. Buscar subsumir o tema da transfobia ao tema da

homofobia significa nada menos do que tentar anular um sujeito político com especificidades

próprias, que sofre preconceito de maneira diferente.

Uma de minhas entrevistadas, Daniela, afirmou peremptoriamente que tal “confusão” entre

os termos “transfobia” e “homofobia” não é despropositada. Segundo ela, grupos LGBT´s, quase

sempre dirigidos e compostos majoritariamente por homens gays brancos de classe média, se

apropriam da pauta trans para inflar os dados da violência LGBT em geral, deixando de lado quase

sempre a informação de que a população trans é muito mais vulnerável à violência, pelos motivos já

expostos anteriormente, dentre outros.

5. Da diferenciação dos termos “transexual” e “travesti”

O caminho mais fácil (e, no entanto, o mais cômodo e mais perverso) para se buscar

diferenciar estes termos é o da reprodução dos saberes médico-institucionais e psicológicos

vigentes, afirmando-se que, enquanto as transexuais teriam aversão ao órgão sexual biológico, as

travestis o aceitariam sem maiores problemas.

Nesta linha de argumentação, Pelúcio afirma que as travestis são pessoas que se entendem

como homens que gostam de se relacionar sexual e afetivamente com outros homens, mas que para

tanto procuram inserir em seu corpos símbolos do que é socialmente tido como próprio do

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feminino. Não desejam porém, extirpar sua genitália, com a qual, geralmente, convivem sem

grandes conflitos. (PELÚCIO, 2009:44)

Leite Jr. traz o debate para um plano discursivo um pouco mais distante destes campos de

saberes “científicos”, afirmando que:

Como o discurso sobre a transexualidade possui uma aura mais ´higiênica´, forjado nos laboratórios e

consultórios da Europa e dos Estados Unidos e ainda pouco disseminado popularmente em suas

especificidades teóricas, pode-se afirmar que o termo ´transexual´ possui um capital linguístico mais

valorizado que o termo ´travesti´, podendo ser mais facilmente convertido em capital social e, desta forma,

sendo capaz de abrir ou fechar portas segundo a maneira como a pessoa se autoidentifica ou é identificada.

(LEITE JR., 2011:214)

Mesmo Pelúcio, em outro trecho de seu trabalho, afirma ter convivido com pessoas que se

identificavam como transexuais, mas viviam, segundo elas mesmas, como travestis que, em algum

momento da vida, desejaram tirar o pênis, e outras que jamais tinham pensado naquilo, mas que

começavam a estudar essa possibilidade mais recentemente, passando a cogitar a possibilidade de

serem transexuais (PELÚCIO, 2009:42)

Encontrei em minhas entrevistas uma visão muito mais aproximada a esta segunda

afirmação, de cunho mais sociológico, do que em relação à primeira, de cunho mais psicológico.

Cito como exemplo a entrevista com Geanne, que se apresentou para mim como transexual,

e afirmou não desejar para si o processo de transgenitalização, por considerar os atuais métodos

como “castrativos”, pois o órgão criado a partir da vaginoplastia não possibilitaria nenhum tipo de

prazer sexual. Diante desta visão, Geanne afirmou que assume a identidade transexual, em

detrimento da identidade travesti, devido ao fato de esta última estar historicamente relacionada à

prostituição, crimes e drogas.

Nesta mesma linha, cito as afirmações de Daniela, para quem

apesar de existirem discursos médicos e jurídicos que faz uma distinção entre travesti e transexual, esta

diferenciação está baseada em estereótipos (…). Esta diferença é muito mais social do que qualquer outra

coisa. Por exemplo, é mentira que todas as transexuais querem se operar. Eu conheço inúmeras transexuais

que não querem fazer a transgenitalização, e é mentira que toda travesti se sente como homem e como mulher.

Existem travestis que se veem como mulher, que querem ser tratadas no feminino. e eu conheço travesti que

não tem nenhum apreço em fazer uso do seu órgão genital. Então você percebe que esta diferença é muito mais

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social. Você vê que pessoas mais excluídas e mais marginalizadas, que têm pouco estudo, pouco acesso a

informação, elas só se definem como travestis, ao passo que pessoas que estudaram mais, elas se

autodefinem com transexuais. Fora que a invenção da transexualidade é uma coisa muito recente, no sentido

da definição. (...) A diferença não existe que não seja na classe social, porque tanto travestis como transexuais

querem ser vistas como mulheres, e essa diferenciação por meio da cirurgia é tão absurdo... (...) Genitália não

define gênero, apesar do discurso médico e jurídico. Na vida real isto não existe. (…) Se você se apresenta

como travesti automaticamente as pessoas vão te ver como marginal ou como prostituta, enfim, sempre

dentro do âmbito da criminalidade. Logo, eu percebo que muitas travestis se dizem transexuais pra fugir

deste estigma. Existe uma compaixão para com a pessoa quando ela se diz transexual e uma opressão para

quando ela se diz travesti. (grifos meus)

Cabe ressaltar que algumas pessoas, como a ativista Janaína Lima, optam pelo termo

“travesti” justamente por razões políticas, dentre outros motivos para evitar a associação de sua

identidade com a visão asséptica e patologizante que muitas vezes possui o termo “transexual”.

Além de Janaína, em conversas informais com outras pessoas ao longo desta pesquisa, pude

perceber que este posicionamento encontra alguma repercussão.

Em suma, diante das divergências existentes em relação a estes dois conceitos, não há

porque prosperar uma visão médico-psicológica, que difere completamente daquela observada no

mundo real de tais sujeitos.

6. Brevíssimas considerações finais

Busquei neste trabalho apontar algumas razões que diferenciam o preconceito transfóbico do

preconceito homofóbico, visando contribuir para a desconstrução de uma visão conservadora e

politicamente nociva que coloca o primeiro termo como parte do segundo.

Busquei ainda mostrar, a partir das experiências de pessoas com quem conversei, alguns

elementos que podem levaram determinadas transexuais ou travestis a encontrarem emprego fora da

prostituição. Escolhi esta abordagem justamente para me diferenciar da enorme quantidade de

trabalhos que relacionam estes sujeitos com a prostituição.

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES

15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I

Salvador - BA

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Por fim, debati a (im)pertinência dos saberes médicos e psicológicos acerca dos termos

“travesti” e “transexual”, mostrando que a realidade é muito mais rica do que o mero

enquadramento burocrático biologizante realizado em determinados ambientes, sob uma aura de

suposta “cientificidade”.

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