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IHU ON-LINE Revista do Instituto Humanitas Unisinos Nº 472 | Ano XV 14/09/2015 ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online) José Carlos Moreira da Silva Filho: A restauração a partir da memória Jair Krischke: O acerto de “faz de conta” com o passado Sandro Chignola: Reinventar a liberdade, reinventar a si próprio Michael Peters: Financeirização, o ácido que corrói a democracia Dora Lília Marín-Díaz: A antropotécnica que molda o indivíduo pela educação Marcelo de Araujo: O que significa ser humano na contemporaneidade Cuidado de si e biopolítica Saberes e práticas na constituição dos sujeitos contemporâneos

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Page 1: IHU ON-LINE · Heliana de Barros Conde Rodrigues, professora na UERJ, analisa de que forma os estudos de Michel Foucault desestabili-zaram algumas “certezas” propagadas no âmbito

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Revista do Instituto Humanitas UnisinosNº 472 | Ano XV

14/09/2015

I S S N 1 9 8 1 - 8 7 6 9 ( i m p r e s s o )

I S S N 1 9 8 1 - 8 7 9 3 ( o n l i n e )

José Carlos Moreira da Silva Filho: A restauração a partir da memória

Jair Krischke: O acerto de “faz de conta” com o passado

Sandro Chignola: Reinventar a liberdade, reinventar a si próprio

Michael Peters: Financeirização, o ácido que corrói a democracia

Dora Lília Marín-Díaz: A antropotécnica que molda o indivíduo pela educação

Marcelo de Araujo: O que significa ser humano na contemporaneidade

Cuidado de si e biopolítica

Saberes e práticas na constituição dos sujeitos

contemporâneos

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SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

Pensar os processos biopolíticos a par-tir de um paradigma contemporâneo exige abordar a realidade em nível

molecular. Quando os biopoderes operam de forma fragmentária, particularizada, o cui-dado de si, com todos seus discursos, práti-cas e procedimentos tecnocráticos, torna-se um tipo de governo descentralizado da vida humana, permeando todos os âmbitos de nossa experiência em sociedade.

A revista IHU On-Line desta semana aborda o tema central do XVII Simpósio Internacional IHU a ser realizado nos dias 21 e 24 de setembro na Unisinos, em São Leopoldo. Muitos dos que estarão partici-pando do evento contribuem no debate desta edição.

O professor e pesquisador Sandro Chig-nola, da Universidade de Pádua – Itália, coloca em causa o que se compreende ma-joritariamente por liberdade e propõe uma reinvenção do conceito.

Michael Peters, professor na Univer-sidade de Illinois, nos Estados Unidos, analisa a maneira pela qual o conceito de biopolítica foi apropriado na antiguidade, modernidade e contemporaneidade, justi-ficando que nossa acepção atual do termo está calcada na financeirização.

Para Dora Lília Marín-Díaz, professora na Universidad de Los Andes, na Colôm-bia, uma das razões para a crise no pro-jeto educacional hegemônico é uma certa modelagem dos sujeitos para se tornarem úteis ao modelo de sociabilidade proposto pelo Estado.

Edgardo Castro, professor convidado no Instituto Italiano di Scienze Umane de Nápoles, na Universidade Federal de San-ta Catarina e na Universidad de Chile, faz uma análise do pensamento do Giorgio Agamben e Roberto Esposito com a biopolí-tica e argumenta que ao exercitarmos nos-sa liberdade também produzimos verdade.

Segundo o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Benilton Bezerra Junior, os desdobramentos cien-tíficos de nosso tempo possibilitaram uma relação profunda, e cada vez mais radi-cal, entre os conhecimentos biológicos e a biopolítica.

Mozart Linhares da Silva, professor da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, analisa como a historiografia germânica no interior do Rio Grande do Sul impactou na naturalização da discriminação contra os negros.

Julio Roberto Groppa Aquino, profes-sor na Universidade de São Paulo – USP, analisa a maneira pela qual os processos de pedagogia estão intrincados com o ca-pitalismo cognitivo.

Na opinião de Carlos Ernesto Noguera--Ramírez, professor na Universidad Pe-dagógica Nacional – UPN, em Bogotá, na Colômbia, as dinâmicas biopolíticas edu-cacionais convertem os sujeitos em meros indivíduos.

Silvia Grinberg, professora na Univer-sidade Nacional San Martin – UNSAN, na Argentina, a escola, enquanto objeto bio-político, tornou-se, principalmente, um dispositivo para disciplinar os pobres.

O médico e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, Luis David Castiel retoma a discussão da biopolítica a partir da dis-cursividade biomédica sobre o cuidado de si e suas estratégias para se ter uma vida saudável.

Alexandre Filordi de Carvalho, profes-sor na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, defende que a educação deveria funcionar como um dispositivo de ruptura, e não de institucionalização do status quo.

Os pesquisadores Marco Antonio Jimé-nez García e Ana María Valle Vázquez, professores da Universidade Autônoma do México – UNAM, argumentam que o exer-cício da liberdade converte-se em um tipo contemporâneo do cuidado de si.

Heliana de Barros Conde Rodrigues, professora na UERJ, analisa de que forma os estudos de Michel Foucault desestabili-zaram algumas “certezas” propagadas no âmbito da saúde no cenário brasileiro.

Nesta semana, nos dias 15 e 16 de se-tembro, realiza-se na Unisinos, o III Coló-quio Internacional IHU A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas. A narrativa das testemunhas, estatuto epis-têmico, ético e político. O evento é pro-movido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com a Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança.

Quatro participantes do evento conce-deram entrevistas para esta edição.

Sueli Bellato, vice-presidente da Co-missão de Anistia do Ministério da Justiça, analisa o perdão a partir dos processos ju-diciais de reconciliação.

Jair Krischke, ativista dos direitos hu-manos, argumenta que o Brasil ainda não fez seu acerto de contas com o passado.

José Carlos Moreira da Silva Filho, pro-fessor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, sustenta que é fundamental mantermos a memória da repressão viva para não incorrermos nos erros do passado.

Carlos Frederico Guazzelli, defensor público do Tribunal de Justiça do RS, avalia o trabalho da Comissão da Verdade no Rio Grande do Sul.

Também participarão do evento Francis-co De Roux, da Colômbia, Xabier Etxeber-ría, Espanha, Martín Almada, do Paraguai e Tshepo Madlingozi, da África do Sul.

Publicamos a entrevista com Marcelo de Araujo, professor na UERJ, que analisa a moralidade dos “aprimoramentos huma-nos” e o artigo “Após décadas de atraso, a guerra fria finalmente caminha para seu final no continente americano”, de Ga-briel Pessim Adam, professor na Universi-dade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos nos cursos de Relações Internacionais e Direito, analisa a reaproximação entre os EUA e Cuba.

A edição impressa circulará na terça--feira, no campus da Unisinos, a partir das 8h.

A todas e a todos uma boa leitura e uma ótima semana!

Foto de Capa: Sasa Asentic/Flickr Creative Commons

Editorial

Cuidado de si e biopolítica. Saberes e práticas

na constituição dos sujeitos contemporâneos

Instituto Humanitas Unisinos - IHU Av. Unisinos, 950 São Leopoldo / RS CEP: 93022-000

Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 e-mail: [email protected]

Diretor: Inácio Neutzling Gerente Administrativo: Jacinto

Schneider ([email protected])

A IHU On-Line é a revista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi-cação pode ser acessada às segundas-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço www.ihuonline.unisinos.br.

A versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo da IHU On-Line é copyleft.

Diretor de RedaçãoInácio Neutzling ([email protected])

JornalistasJoão Vitor Santos - MTB 13.051/RS ([email protected]) Leslie Chaves – MTB 12.415/RS ([email protected]) Márcia Junges - MTB 9.447/RS ([email protected]) Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS ([email protected]) Ricardo Machado - MTB 15.598/RS ([email protected])

RevisãoCarla Bigliardi

Projeto GráficoRicardo Machado

EditoraçãoRafael Tarcísio Forneck

Atualização diária do sítioInácio Neutzling, César Sanson, Patrícia Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner, Matheus Freitas e Nahiene Machado.

ColaboraçãoJonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui-sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR.

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SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

Destaques da Semana6 Destaques On-Line8 Linha do Tempo10 Marcelo de Araujo: O que significa ser humano se faculdades cognitivas e físicas forem aprimoradas?

Tema de Capa20 Sandro Chignola: Reinventar a liberdade, reinventar a si próprio

26 Michael Peters: Financeirização, o ácido que corrói a democracia

33 Dora Lília Marín-Díaz: A antropotécnica que molda o indivíduo pela educação

38 Edgardo Castro: A liberdade pessoal, a liberdade do mundo

43 Benilton Bezerra Junior: Biopolítica e biologia, hélices do DNA contemporâneo

48 Mozart Linhares da Silva: O cromatismo que nega o negro

54 Julio Roberto Groppa Aquino: A biopolítica educacional para além dos muros da escola

57 Carlos Ernesto Noguera-Ramírez: A biopolítica educacional e a conversão dos sujeitos em indivíduos

62 Silvia Grinberg: A estatização da vida e o controle das massas na densidade urbana

69 Luis David Castiel: O cuidado de si e a governamentalidade biomédica

76 Alexandre Filordi de Carvalho: A educação como ruptura, não como institucionalização

82 Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez: O exercício da liberdade como cuidado de si

87 Heliana de Barros Conde Rodrigues: As ressonâncias e desestabilidades da presença de Foucault no Brasil

95 Programação96 Baú da IHU On-Line

IHU em Revista98 Agenda de Eventos100 #Justiça, Verdade e Memória: A restauração da História pela narrativa das vítimas

101 #Justiça, Verdade e Memória - Sueli Bellato: Pelos caminhos da verdade até a justiça e reconciliação

105 #Justiça, Verdade e Memória - Jair Krischke - O acerto de “faz de conta” com o passado

112 #Justiça, Verdade e Memória - José Carlos Moreira da Silva Filho: A restauração a partir da memória

119 #Justiça, Verdade e Memória - Carlos Frederico Guazzelli - A História gaúcha revista pela Comissão Estadual da Verdade

123 #Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos: Após décadas de atraso, a guerra fria finalmente ca-minha para seu final no continente americano

125 Publicações127 Retrovisor

Sumário

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Destaques da Semana

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TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

Destaques On-LineConfira entrevistas publicadas entre os dias 07-09-2015 e 11-09-2015 no sítio do IHU

“É contraditório cortar gastos e elevar juros numa economia em recessão”

Entrevista Gentil Corazza, graduado e mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor na mesma área pela Universidade de Campinas – Unicamp. Cursou o pós-doutorado na Sorbonne e foi professor e diretor da Faculdade de Economia da UFRGS.

Uma série de fatores combinados explicam as causas da crise econômica brasi-leira, mas todos eles estão envolvidos num mesmo pano de fundo: a crise política, diz Gentil Corazza em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Na avaliação dele, entre as causas que colocaram a economia num patamar de recessão, destaca-se o fato de que o governo “subestimou os impactos da crise internacional sobre a economia brasileira”.

Publicada em 11-09-2015

Disponível em http://bit.ly/1F1I8fE

Revista vexatória: condenação hereditária, humilhação e violência

Entrevista com Vivian Calderoni, graduada em Direito e mestre em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo – USP, onde também é coordena-dora adjunta do Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade. Atualmente é advogada do Programa de Justiça da organização não governamental Conectas Direitos Humanos, que integra a Rede de Justiça Criminal.

As pessoas que estão em privação de liberdade nos presídios têm direito ao con-vívio familiar. Além de garantir que o preso receba o amparo da família no cárcere, a visita propicia a manutenção de laços afetivos que podem favorecer a reinserção social dos egressos do sistema prisional. No entanto, o momento da visita é ante-cedido por um processo de preparação dos visitantes, os quais são revistados para garantir que nenhum tipo de objeto proibido ingresse no presídio.

Publicada em 07-09-2015

Disponível em http://bit.ly/1UHiMekFonte imagem: www.ihu.unisinos.br

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br

Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br

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Migrações: “O radicalismo não cabe mais nos dias contemporâneos”

Entrevista especial com Rosana Schwartz, doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Educação, Artes e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM e graduada em His-tória pela PUC/SP. Atualmente leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Um fenômeno global, os fluxos migratórios demonstram a “dificuldade de olhar para o outro (...) porque a cultura do eu com a cultura do outro sempre cria um choque, o qual gera um estranhamento”, diz Rosana Schwartz à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.

Publicada em 08-09-2015

Disponível em http://bit.ly/1FBOsFP

Estado brasileiro é condescendente com ilegalidades no setor da construção civil

Entrevista com Vitor Filgueiras, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Fe-deral da Bahia – UFBA, mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e graduação em Economia pela UFBA. Atualmente é auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE.

Apesar de os índices registrarem a expansão do emprego formal no setor da construção civil e de incrementos dos rendimentos do trabalho, “as características estruturais do mercado de trabalho se mantiveram ou foram recrudescidas, como a intensificação da rotatividade, a existência de péssimas condições de trabalho e o aumento dos acidentes e mortes nas obras”, constata Vitor Filgueiras.

Publicada em 09-09-2015

Disponível em http://bit.ly/1QsTFpE

Relatório Figueiredo: mais de sete mil páginas sobre a violência contra indígenas no Brasil

Entrevista com José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Me-mória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNI-Rio, onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, e coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas. É graduado em Comunicação Social e doutor em Letras pela UERJ.

“A repercussão do Relatório Figueiredo foi grande porque não se tratava de um caso patológico, de pessoas que eram psicopatas e que atacavam os índios, mas de pessoas normais, que tinham família, que frequentavam a Igreja, tinham conta no banco e faziam carinho em seus filhos e, de repente, essas pessoas estavam envolvidas: eram grileiros, comerciantes, políticos, desembargadores, juízes, deputados, governadores, delegados e até ministros”. O relato faz parte das lembranças de José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da UNI-Rio.

Publicado em 10-09-2015

Disponível http://bit.ly/1UHkZ9D

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TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

Linha do TempoA IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, entre os dias 07-09-2015 e 11-09-2015, relacionadas a assuntos que tiveram repercussão ao longo da semana

“O problema do Brasil hoje é que não se sabe para onde estamos indo”, constata assessor da Presidência

O assessor especial da Pre-sidência da República para As-suntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, foi surpreendido em Washington pelo novo revés da presidenta Dilma Rousseff: o rebaixamento da nota de cré-dito do Brasil pela Standard & Poor’s. Garcia está na capital dos Estados Unidos defendendo exatamente a solvência de seu país diante das dúvidas pela cri-se econômica e os escândalos de corrupção que afetam o gigante brasileiro. Segundo o assessor, que participou da XIX Conferên-cia Anual da CAF (Banco de De-senvolvimento da América Lati-na) sobre os principais desafios da América Latina, o PT precisa “refletir” sobre alguns “erros” cometidos e apurar “responsabi-lidades”. Mas afirma que o par-tido está sendo vítima de uma campanha “criminalizadora” que não condiz com a realidade.

A entrevista é de Silvia Ayu-so, publicada por El País, 10-09-2015.

O PT deve fazer um mea culpa pelos casos de corrupção que es-tão sendo revelados?

Não, o mea culpa é feito pelas entidades religiosas, e nós não somos uma. Isso que as pessoas muitas vezes dizem, que o par-tido está acabando, não é ver-dade. O partido tem uma capi-laridade social extraordinária. E os erros que possa ter cometido, alguns deles graves, e inclusive as responsabilidades de alguns de seus dirigentes não vão com-prometer isso.

Leia mais em http://bit.ly/1KfA4bE

“Esta encíclica aponta

para uma nova

civilização”

Nascido em 1921, o francês

Edgar Morin elaborou, sobretudo

em torno da noção de ‘comple-

xidade’ e todos os seus corolá-

rios também ecológicos, uma

reflexão filosófica e sociológica

transdisciplinar considerada por

muitos como entre as mais fe-

cundas das últimas décadas. Os

seus numerosos ensaios, como os

seis volumes da obra O Método,

foram traduzidos para mais de

trinta línguas. Em uma entrevis-

ta concedida a Antoine Peillon e

Isabelle De Gaulmyn, publicada

por La Croix e reproduzida pelo

sítio do IHU, ele destaca que

“Numa era do pensamento frag-

mentado onde os assim denomi-

nados partidos ambientalistas

não compreendem a amplidão

e a complexidade do problema,

perdendo de vista a pertinência

daquilo que o Papa Francisco

chama “a casa comum”, uma

expressão já empregada por

Gorbachov”.

Leia mais em http://bit.

ly/1FHNMP2

Rebaixamento é resultado do desajuste do ajuste’, afirma Belluzzo

O ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fa-zenda Luiz Gonzaga Belluzzo diz que houve um erro na condução da política econômica. Na ava-liação dele, um dos motivos que levou o Brasil a perder o grau de investimento foi a crença do governo federal de que o ajuste fiscal traria de volta a confiança do setor privado.

A entrevista é de Luiz Guilher-me Gerbelli, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 10-09-2015.

Como o senhor avalia a decisão tomada pela S&P?

Exatamente a tentativa de impedir o rebaixamento acabou determinando a decisão da S&P. Na verdade, a situação fiscal piorou depois do ajuste fiscal. A política monetária está contradi-zendo a tentativa de ajustar as contas porque piorou a relação da dívida/PIB. O déficit nominal também está piorando. Eu, na verdade, tenho muitas restrições em como as agências de risco se comportaram durante a crise (internacional). Elas se portaram muito mal. Cometeram barbari-dades. Mas eu não tinha dúvida de que isso (o rebaixamento) iria ocorrer, pelos critérios das agên-cias e pelo desajuste do ajuste.

Na avaliação do sr, o que foi esse desajuste do ajuste?

O desajuste do ajuste nasce da crença de que a confiança do setor privado seria recuperada fazendo o ajuste fiscal. Na ver-dade, foi produzido um efeito negativo sobre a expectativa do setor privado, sobre o comporta-mento dos balanços, das receitas esperadas, etc.

Leia mais em http://bit.ly/1NmghbC

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

No MS, a questão indígena é um barril de pólvora prestes a explodir

Dois conflitos armados entre indíge-

nas e fazendeiros eclodiram em menos

de cinco dias no estado. A letargia do

Judiciário e do Executivo é o principal

indutor do confronto.

A reportagem é de Márcio Pelle-

grini e publicada por CartaCapital,

09-09-2015.

O estado do Mato Grosso do Sul viu

eclodir, na semana passada, dois con-

flitos armados entre fazendeiros e indí-

genas Guarani-Kaiowá em um intervalo

de apenas cinco dias, resultando em

uma morte e diversos feridos. Os con-

flitos ocorreram a 160 km de distância,

mas envolvem os mesmos atores e pos-

suem as mesmas causas: a letargia do

Judiciário e a omissão do Executivo na

demarcação de terras indígenas. “Os

índios estão esperando há anos por

uma solução negociada com o governo

federal, mas essa solução não chega e

as condições de vida se tornam mais e

mais degradantes”, afirma Matias Ben-

no, do Conselho Indigenista Missionário

(Cimi) do Mato Grosso do Sul. Para ele,

a situação no estado é “um barril de

pólvora prestes a explodir”. Atualmen-

te, o Mato Grosso do Sul é um estado

com forte vocação econômica para o

agronegócio, setor que foi o principal

motor da economia brasileira em 2014.

A expansão do setor no estado, no en-

tanto, esbarra em terras indígenas,

cujas demarcações estão emperradas

na Justiça há décadas. Estes dois ele-

mentos explicam o protagonismo do

estado como palco dos piores conflitos

envolvendo indígenas no Brasil.

Leia mais em http://bit.ly/1ULQ7j8

A reforma nas regras de anulação de casamentos do Papa irá recalibrar o Sínodo dos Bispos

Em seu mais recente movimen-to de reforma, o Papa Francisco emitiu dois novos documentos nesta terça-feira (8), tecnica-mente conhecidos como “motu próprio”, cujos objetivos são o de tornar mais rápida, mais fácil e menos cara a obtenção de uma anulação matrimonial.

Na linguagem católica, uma anulação significa a decisão de um tribunal eclesiástico segun-do a qual uma união entre um homem e uma mulher não foi válida por ter falhado em algum dos requisitos tradicionais (por exemplo: a falta de consenti-mento genuíno ou a incapacida-de psicológica para assumir as obrigações).

A reportagem é de John L. Al-len Jr., publicada por Crux, 08-09-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Estas anulações são extrema-mente importantes no nível da prática religiosa. Isso porque os católicos cujas relações matri-moniais se romperam e que de-sejam se unir novamente com outra pessoa também na Igreja precisam, antes de tudo, obter uma anulação.

Não é por acaso que Francis-co está fazendo este movimento pouco tempo antes de se iniciar o “Ano Santo da Misericórdia”, evento que ele decretou para co-meçar no dia 8 de dezembro, no mesmo dia que essas mudanças passam a valer. Na terça-feira, o papa falou que esta decisão foi motivada por um desejo pasto-ral de aliviar a opressão causada pela “escuridão ou pela dúvida” no coração das pessoas em rela-ção ao estado civil delas.

Leia mais em http://bit.ly/1NtTRXn

O pequenino afogado Ayslan Kurdi nos faz chorar e pensar

“Você não morreu, meu que-rido Ayslan. Foi viver e brincar num outro lugar, muito melhor. O mundo não era digno de sua ino-cência”, escreve Leonardo Boff, teólogo e escritor.

Confira um trecho do artigo.

O pequenino sírio de 3 a 4 anos jaz afogado na praia, páli-do e ainda con suas roupinhas de criança. De bruços e com o ros-to voltado ao lado, como quem quisesse ainda respirar. As ondas tiveram piedade dele e o leva-ram à praia. Os peixes, sempre famintos, o pouparam porque também eles se compadeceram de sua inocência. Ayslan Kurdi é seu nome. Sua mãe e seu irmão-zinho também morreram. O pai não pôde segurá-los e lhes esca-param das maõs, tragados pe-las águas. Querido Ayslan: você fugia dos horrores da guerra na Síria, onde tropas do presidente Assad, apoiado pelos ricos Emi-rados árabes, lutam contra sol-dados do cruel Estado Islâmico, esse que degola a quem não se converte à sua religião, triste-mente apoiado pelas forças oci-dentais da Europa e dos Estados Unidos. Imagino que você tremia ao som dos aviões supersônicos que lançam bombas assassinas. Não dormia de medo de que sua casa voasse pelos ares em cha-mas. Quantas vezes você não deve ter escutado de seus pais e vizinhos quão temíveis são os aviões não pilotados (drones).

Leia mais em http://bit.ly/1K0Yj9S

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TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

ENTREVISTA

O que significa ser humano se faculdades cognitivas e físicas forem aprimoradas?O filósofo Marcelo de Araujo analisa casos de aprimoramento humano e questiona a moralidade de experimentos que já estão sendo feitos, a exemplo da divisão do DNA de embriões

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos

Quando o tema de discussão é aprimoramento humano, pa-rece que os limites superam

a imaginação e o que parecia ficção científica está ganhando o status de realidade. Para melhorar as faculdades cognitivas, como memória e capacida-de de concentração, muitas pessoas já recorrem ao uso de drogas que são utilizadas para tratar doenças como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH e Alzheimer, a exemplo da Ritalina, Modafinil, apesar da falta de legislação para tratar do as-sunto no país. Mas, e se o melhoramen-to cognitivo fosse alcançado “por meio de próteses cerebrais, ou por manipu-lação genética, isso seria moralmente aceitável?”. E se atletas constatassem que o uso de próteses garantiria um de-sempenho melhor nas suas atividades, “os cirurgiões estariam legalmente – ou pelo menos moralmente – obrigados a realizar essas amputações voluntá-rias?” Ou ainda, se no futuro a tecnolo-gia para edição do genoma humano se tornasse segura, e garantisse a erradi-cação de doenças como, por exemplo, Tay-Sachs, Huntington, fibrose cística e algumas formas de Alzheimer, “a busca por aprimoramento humano, por meio de manipulação genética, continuaria sendo moralmente inaceitável?” Essas são algumas das indagações feitas pelo filósofo Marcelo de Araujo, que estu-da as implicações morais e políticas do aprimoramento cognitivo e humano de modo geral.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o pesquisador explica que a discussão sobre aprimo-ramento humano tem suscitado vários problemas para a filosofia moral e a bioética, entre eles, um debate sobre se os indivíduos “teriam um ‘direito fundamental’ de buscar livremente, cientes dos riscos envolvidos, tecnolo-gias que tenham o potencial para me-lhorar suas faculdades físicas e cogniti-vas”. Mas muito mais do que um debate sobre moral ou bioética, Araujo frisa que essa discussão recoloca no centro do debate uma das questões mais tra-dicionais e fundamentais da história da filosofia: “a questão sobre a compreen-são que temos de nós próprios como se-res humanos”. O problema tradicional da filosofia, “O que é o ser humano”, é atualizado a partir do questionamento: “O que significa se compreender como ‘ser humano’ a partir do momento em que nossas faculdades cognitivas e fí-sicas forem radicalmente aprimoradas, ou talvez mesmo em parte substituí-das, por meio da intervenção de novas tecnologias?”.

Marcelo de Araujo é graduado e mestre em Filosofia pela Universida-de Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Filosofia pela Universität Konstanz, na Alemanha. Atualmente é professor associado de Ética da Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professor adjunto de Filosofia do Direito da UFRJ.

Confira a entrevista.

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

Não poderia surgir o desejo, en-tre vários atletas profissionais, de substituir suas pernas e bra-ços naturais por superpróteses?

Haveria algo de imoral nisso?

IHU On-Line - Em que consiste sua pesquisa sobre aprimoramen-to humano?

Marcelo de Araujo - A expressão “aprimoramento humano” (ou hu-man enhancement em inglês) diz respeito ao uso de drogas, equi-pamentos e procedimentos para melhorar nosso desempenho em diferentes tipos de atividades físi-cas ou mentais. O “aprimoramento humano” é especialmente conheci-do nos esportes: um atleta, além de treinar duro, pode tentar “apri-morar” sua performance através do uso de medicamentos. Quando o medicamento em questão é ba-nido por algum órgão regulador, isso é conhecido como doping. O objetivo do atleta é obter uma pe-quena margem de vantagem que ele ou ela não teria sem o uso do medicamento.

Mas existem outros tipos de ati-vidades em que as pessoas também vêm buscando “aprimoramento”, sem que algum órgão regulador possa intervir para determinar se isso é ou não aceitável: jogadores de xadrez, soldados em opera-ções militares e estudantes vêm recorrendo a medicamentos para se manter alertas no exercício de atividades que exigem muita con-centração. A Federação Interna-cional de Xadrez - Fide já proíbe o uso de certas substâncias como Modafinil1 em competições oficiais.

1 Modafinil é um fármaco neurotrópico. Nos Estados Unidos, o modafinil é aprovado pelo FDA para o tratamento da narcolepsia e apneia do sono. Em alguns países seu uso é aprovado também para o tratamento da so-nolência diurna. Em 2010 a Agência Europeia

Entre soldados envolvidos em cer-tos tipos de operações militares ocorre justamente o contrário: são seus governos que exigem deles o uso de drogas como Modafinil para que possam permanecer alertas por mais tempo.2

Aprimoramento cognitivo

Mas quando essas drogas são usadas por estudantes, não é cla-ro se eles estão ou não cometendo algum tipo de infração. Evidente-mente, eles estarão cometendo uma infração se obtiverem os me-dicamentos por meios ilegais, ou se forçarem outras pessoas a usar es-ses medicamentos. Mas haveria al-guma coisa de moralmente inacei-tável no uso dessas drogas para fins de “aprimoramento cognitivo”? Se tomamos, por exemplo, café para nos manter alertas durante longas horas de estudo, por que não po-deríamos também recorrer a dro-gas na expectativa de obter uma performance ainda melhor do que teríamos se bebêssemos várias xícaras de café? E se — apenas a título de hipótese — pudéssemos melhorar nossas faculdades cogni-tivas (memória e capacidade para concentração, por exemplo), não por meio de drogas cujo efeito se perde após algumas horas, mas por meio de próteses cerebrais, ou por meio de manipulação genética?

de Medicamentos atualizou a lista de indica-ções do medicamento para apenas sonolência ligada a narcolepsia. (Nota da IHUOn-Line)2 Slate (16/07/2008): “Night of the living meds: The U.S. military’s sleep-reduction program”. (Nota do entrevistado)

Isso seria moralmente aceitável? O uso de tecnologias para fins de aprimoramento agravaria desigual-dades sociais? Ou, pelo contrário, tecnologias para aprimoramento não poderiam talvez proporcionar uma “compensação” para aquelas pessoas que, por conta de desigual-dades sociais, não tiveram bom de-sempenho na escola ou em concur-sos? Em minha pesquisa tenho me ocupado de questões como essas, questões acerca das implicações morais e políticas da busca pelo aprimoramento humano. Trata-se de um debate ainda incipiente no Brasil, mas que tem recebido mui-ta atenção, tanto em publicações acadêmicas como também na im-prensa, em países como Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra.

IHU On-Line - Quais os princi-pais problemas filosóficos que emergem das discussões sobre aprimoramento humano?

Marcelo de Araujo - A questão so-bre o aprimoramento humano susci-ta vários problemas para a filosofia moral e para a bioética. Há, por um lado, uma série de questões “nor-mativas”: quais tipos de aprimo-ramento deveriam ser permitidos, banidos ou exigidos pelos governos? Os indivíduos teriam um “direito fundamental” de buscar livremen-te, cientes dos riscos envolvidos, tecnologias que tenham o poten-cial para melhorar suas faculdades físicas e cognitivas? Pessoas que, em princípio, não teriam nenhum interesse em buscar aprimoramento para si mesmas não poderiam talvez se sentir indiretamente compelidas a buscar aprimoramento, se outras pessoas fizerem isso: se o mercado de trabalho, por exemplo, privile-giar a admissão de pessoas dispos-tas a usar medicamentos que as torne mais “focadas” e, portanto, capazes de “produzir” mais, não surgiria uma pressão social para que cada vez mais pessoas fizes-sem uso dos métodos de aprimora-mento, contribuindo para o fatura-mento, por exemplo, da indústria farmacêutica?

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Além de questões normativas, a busca pelo aprimoramento susci-ta também, por outro lado, uma questão fundamental para a filoso-fia: a questão sobre a compreensão que temos de nós próprios como seres humanos. O que significa se compreender como “ser humano” a partir do momento em que nos-sas faculdades cognitivas e físicas forem radicalmente aprimoradas, ou talvez mesmo em parte substi-tuídas, por meio da intervenção de novas tecnologias? Algumas pessoas subordinam a busca pelo aprimo-ramento a um projeto ainda mais amplo, conhecido como “transu-manismo” ou “pós-humanismo”.3 O que está em questão na discussão sobre transumanismo é a pergunta sobre se não poderíamos modificar radicalmente a “natureza huma-na” e explorar novos limites para a “condição humana”.

IHU On-Line - O uso de próteses tem para muitas pessoas uma fi-nalidade, por exemplo, “correti-va” no sentido de reparar alguma limitação física. Contudo, toda vez que se discute o uso de pró-teses ou, por outro lado, a cria-ção de ciborgues, o debate ganha uma dimensão moral. A partir de que momento o uso de próteses ou de melhoramento humano em geral pode suscitar uma discussão moral, ou seja, a partir de que momento essa passa a ser uma discussão sobre moral?

Marcelo de Araujo - Parece-me que a busca por próteses “correti-vas” já envolve uma questão moral. O que se busca com a fabricação de uma prótese é permitir a indivídu-os que, por exemplo, passaram por uma amputação, recuperar certas capacidades físicas naturais perdi-das em um acidente. A prótese per-mite aos indivíduos, por exemplo, participar do mercado de trabalho em condição de igualdade com as

3 Ver por exemplo (eds.) Max More e Natasha Vita-More. 2013. The Transhumanist Read-er: Classical and Contemporary Essays on the Science, Technology, and Philosophy of the Human Future. Oxford: Wiley-Blackwell. (Nota do entrevistado)

outras pessoas. E mesmo que a pró-tese não proporcione a restituição de capacidades físicas naturais, ela pode, em alguns casos, ser relevan-te para restituir a autoestima do indivíduo. Ela pode, por exemplo, desempenhar um papel importante na compreensão que uma pessoa tem de si mesma como homem ou como mulher. É essa uma das fun-ções, por exemplo, das próteses mamárias.

Mas próteses podem também proporcionar, em algumas circuns-tâncias, mais do que a simples restituição de uma capacidade fí-sica: elas podem também propor-cionar um tipo de aprimoramento. O cenário da ficção científica está repleto de figuras que adquirem poderes fantásticos graças ao uso

de “superpróteses”. Pense por exemplo em filmes como O Homem de 6 milhões de Dólares (1974-1978), Robocop (1987/2014) ou Eu, Robô (2004). Mais recentemente, o escritor australiano Max Barry4, no romance O Homem Máquina (2011), narra a história de um ho-

4 Max Barry (1973): é um escritor australia-no de ficção científica, sendo autor dos livros Eu S/A (Jennifer Government, no original), A Companhia (Company), Syrup e Machine Man (Homem Máquina). Os dois primeiros livros mencionados foram publicados no Brasil pela Editora Record, e Machine Man (Homem-máquina) foi lançado pela Editora Intrínseca. Syrup permanece inédito na lín-gua portuguesa. Atualmente, Barry prepara um novo livro, chamado Lexicon, com previ-são de lançamento para meados de 2013 nos Estados Unidos e no Canadá. Barry também é criador do jogo on-line Jennifer Government: NationStates, e apóia o uso de software livre. Um filme baseado em seu primeiro romance, Syrup, está em pós-produção, e chega aos ci-nemas em 2012. (Nota da IHU On-Line)

mem que teve uma perna ampu-tada em um acidente. Ele recebe então uma prótese no lugar da perna. O homem fica tão satisfeito com sua prótese que, aos poucos, decide substituir outras partes do seu corpo por próteses sofistica-das. Embora sejam obras de ficção científica, filmes e livros podem levantar questões filosóficas im-portantes sobre a moralidade do aprimoramento humano por meio de próteses.5

Pernas e braços naturais X superpróteses

Longe dos cenários de ficção científica, temos, por exemplo, o caso do corredor sul-africano Os-car Pistorius6. Em 2012, nas Olim-píadas de Londres, Pistorius correu sobre próteses lado a lado com atletas normais. Esse foi um caso sem precedentes em competições desse tipo na história das Olimpía-das. Mas a participação de Pistorius gerou também muita controvérsia, pois houve na época a suspeita de que as próteses que ele usava não apenas o colocavam em condição de igualdade com outros atletas. As próteses, como várias pessoas alegaram, davam a Pistorius uma vantagem desleal sobre os demais competidores. Muitas pessoas in-sistiram então para que o Comitê

5 Max Barry. 2012. Homem-Máquina. Trad. Fábio Fernandes. Rio de Janeiro: Intrínseca. (Nota do entrevistado)6 Oscar Leonard Carl Pistorius (1986): é o primeiro atleta olímpico e paralímpico da história a competir de maneira simultânea e em igualdade de possibilidades com atletas não deficientes em nível mundial e olimpico. É conhecido como “Blade Runner” (corredor lâmina) por não ter as duas pernas e usar próteses finas feitas de fibra de carbono. A sua participação em Pequim 2008 foi rejei-tada pela Associação Internacional de Fede-rações de Atletismo por considerar que as suas próteses lhe conferiam vantagem sobre os demais atletas. O atleta recorreu da deci-são e em Maio de 2008 o Tribunal Arbitral do Esporte revisou a decisão. Entretanto, Pis-torius não obteve a marca mínima que exige a Associação Internacional de Federações de Atletismo para correr na prova de 400 me-tros. Em 2014, atleta sul-africano foi conde-nado, no tribunal de Pretória, a cinco anos pela morte da namorada, Reeva Steenkamp. (Nota da IHU On-Line)

A moralidade do “aprimora-mento” cogni-

tivo permanece questionável

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Olímpico banisse o uso de próteses nas competições que envolvessem corredores normais. As próteses de Pistorius supostamente funcio-navam como uma espécie de do-ping.7 Mas poderíamos nos pergun-tar se essa proibição, que impede que “paratletas” disputem lado a lado com “atletas normais”, não representaria um tipo de injustiça relativamente aos atletas portado-res de necessidades especiais. O Comitê Olímpico, aparentemente, decidiu por enquanto não permitir que atletas que correm sobre pró-teses disputem novamente ao lado de atletas normais. Mas vamos su-por que no futuro essa decisão seja revista, talvez por uma questão de justiça para com os atletas porta-dores de necessidades especiais; e vamos supor também, além disso, que atletas que correm sobre pró-teses comecem a ganhar, com cada vez mais frequência, medalhas de ouro em competições que rendem aos atletas milhões de dólares oriundos de patrocinadores e cam-panhas publicitárias: não poderia então surgir o desejo, entre vários atletas profissionais, de substituir suas pernas e braços naturais por superpróteses? Haveria algo de imoral nisso?

Atletas menores de 18 anos po-deriam exigir a amputação de uma perna para que mais tarde possam ter a expectativa de participar dos jogos olímpicos? Em 2014, a para-tleta britânica Danielle Bradshaw, de 15 anos, que corria com uma prótese no lugar da perna direita, exigiu a amputação do pé esquer-do para que pudesse correr mais rapidamente e, assim, seguindo o exemplo de Pistorius, tivesse mais chances de disputar as Olimpíadas um dia. A amputação — até onde sei — não foi realizada. Mas os ci-rurgiões estariam legalmente — ou pelo menos moralmente — obriga-dos a realizar essas amputações voluntárias? Essas são questões

7 Brendan Burkett et alia. (2011). “Shifting boundaries in sports technology and disabil-ity: equal rights or unfair advantage in the case of Oscar Pistorius?”. In Disability & So-ciety 26(5): 643-654. (Nota do entrevistado)

que apenas aos poucos começam a emergir, mas que terão de ser de-batidas pela filosofia moral daqui para frente.

IHU On-Line - Quais são, ainda nesse sentido, as discussões mo-rais acerca do aprimoramento cognitivo e do aprimoramento genético? Que tipo de aprimora-mento cognitivo ou genético é ou não considerado moral?

Marcelo de Araujo - “Aprimora-mento cognitivo” e “aprimoramen-to genético” são categorias dife-rentes. A primeira diz respeito a um domínio de atividades passível de aprimoramento; a segunda, por ou-tro lado, diz respeito a um método de aprimoramento. Por “aprimora-mento cognitivo” se entende um aumento de nossa capacidade para memorizar, processar informação, e de nos concentrarmos durante longos períodos de tempo. Quando uma pessoa tem sua capacidade cognitiva comprometida em função de problemas como, por exemplo, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH8, ou

8 Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (‘TDAH): é um transtorno mental do neurodesenvolvimento no qual se verificam diversos problemas significativos de atenção, hiperatividade ou impulsividade que não são apropriados para a idade da pes-soa. O diagnóstico requer que os sintomas te-nham início entre os seis e doze anos de idade e que persistam por mais de seis meses. Nas crianças em idade escolar, os sintomas de dé-

Alzheimer9, ela pode recorrer a medicamentos na expectativa de “tratar” o seu problema. Nesse caso, não falamos em “aprimora-mento”, mas de “tratamento”.

Mas quando uma pessoa, que não tem nenhuma doença que compro-meta suas faculdades cognitivas, recorre a medicamentos na expec-tativa de melhorar sua capacidade de se concentrar e memorizar, en-tão falamos em “aprimoramento cognitivo”, e não em “tratamen-to”. No debate contemporâneo sobre a moralidade do aprimora-mento cognitivo, o “método” para aprimoramento geralmente envol-ve o uso de medicamentos como, por exemplo, Ritalina10, Modafinil (vendido no Brasil como Stavigi-le), Adderall11, Piracetam12, Sunifi-

ficit de atenção muitas vezes estão na origem de mau desempenho escolar. (Nota da IHU On-Line)9 Doença de Alzheimer: é a forma mais comum de demência. Não existe cura para a doença, a qual se agrava progressivamente até levar à morte. Foi descrita pela primeira vez em 1906 pelo psiquiatra e neuropatolo-gista alemão Alois Alzheimer, de quem rece-beu o nome. A doença é geralmente diagnos-ticada em pessoas com idade superior a 65 anos, embora possa ocorrer mais cedo. Em 2006, existiam no mundo 26,6 milhões de pessoas com Alzheimer e em 2050 prevê-se que afete 1 em cada 85 pessoas à escala mun-dial. A doença afeta 1% dos idosos entre os 65 e 70 anos, mas a prevalência aumenta expo-nencialmente com a idade, sendo de 6% aos 70, 30% aos 80 anos e mais de 60% depois dos 90 anos. (Nota IHU On-Line)10 Metilfenidato: é uma substância quími-ca utilizada como fármaco, estimulante leve do sistema nervoso central, com mecanismo de ação ainda não bem elucidado, estrutu-ralmente relacionado com as anfetaminas. É usada no tratamento medicamentoso dos ca-sos de transtorno do déficit de atenção e hipe-ratividade (TDAH), narcolepsia e hipersonia idiopática do sistema nervoso central (SNC). (Nota da IHU On-Line)11 Adderall: é um psicoestimulante droga do phenethylamine classe prescrito no trata-mento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e narcolepsia. Adde-rall também pode ser usado como um desem-penho atlético e melhorador cognitivo, para fins recreativos e como um afrodisíacos e eu-forizante. A medicação é uma mistura de vá-rios sais dos dois anfetamina enantiómeros; pelo teor de sal, os ingredientes ativos são 75% dextroanfetamina sais (a dextrorotary ou enantiómero “destro”) e 25% levoamphe-tamine sais (a levorotary ou “canhoto” enan-tiómero). (Nota da IHU On-Line)12 Piracetam: é substância química utiliza-da como nootrópico. Reporta-se-lhe a pro-priedade de melhorar as funções cerebrais

O descarte de embriões huma-nos, é importan-

te mencionar, ocorre também cotidianamen-te em clínicas para reprodu-ção assistida

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ram13, etc. Essas drogas passaram a ser conhecidas como “smart dru-gs” ou “nootrópicos”. Seus efeitos de longo prazo sobre as pessoas que não necessitam de nenhum tipo de tratamento ainda é des-conhecido. E mesmo a capacidade que elas teriam de realmente pro-porcionar alguma forma de apri-moramento cognitivo é às vezes contestada.

Smart drugs

Parte do problema relativo à falta de conhecimento sobre a eficiência e a segurança envolvi-das no uso dessas drogas decorre do modo como governos e a so-ciedade civil costumam lidar com a distinção entre “tratamento” e “aprimoramento”. Ninguém nega que tenhamos uma obrigação moral de, tanto quanto possível, proporcionarmos às pessoas re-médios para fins de “tratamento” de eventuais deficiências cogniti-vas. Mas, por outro lado, a mora-lidade do “aprimoramento” cog-nitivo permanece questionável. Prescrever e adquirir, para fins de aprimoramento, medicamen-tos originalmente criados para o tratamento de problemas como TDAH, narcolepsia, ou Alzhei-mer é, em quase todos os países, ilegal. Mas isso, por outro lado, não tem impedido estudantes de buscar drogas como Ritalina e Modafinil para fins de aprimora-mento. A proibição, além de co-locar essas pessoas em uma situ-ação de ilegalidade, desestimula as pesquisas sobre a eficácia e a segurança de substâncias que, em princípio, poderiam ser usadas

envolvidas em processos de aprendizagem, memória, atenção e consciência. Indica-se usualmente no tratamento de perda de me-mória, perda de atenção e direção, bem assim nas alterações da função cerebral pós aciden-te vascular cerebral; vertigem e dificuldade de aprendizado em crianças. (Nota da IHU On-Line)13 Sunifiram: é uma piperazina derivado químico de pesquisa que tem nootrópicos efeitos em estudos com animais, com signifi-cativamente maior potência do que o pirace-tam. Um número de compostos relacionados são conhecidos, incluindo unifiram (MS-232).(Nota da IHU On-Line)

de modo seguro e eficaz para fins de aprimoramento, e não apenas para tratamento. A proibição e a desinformação acabam tendo também como consequência a gradual formação de uma rede para o comércio ilegal e difusão de “smart drugs” sobre as quais os governos têm pouco ou ne-nhum controle.14

Mas é importante notar que o recurso a medicamentos não é o único “método” na busca por aprimoramento. Já existem no mercado aparelhos eletrônicos de uso externo — e de segurança e eficácia ainda questionáveis — para promover a concentração e o aprendizado através da “estimu-lação magnética transcraniana”.15 Especula-se também que, no futu-ro, seria tecnicamente possível, ainda que moralmente inaceitá-vel, manipular geneticamente embriões humanos para fins de aprimoramento cognitivo. Essa es-peculação torna a discussão sobre a moralidade do aprimoramento humano ainda mais complexa e envolta em controvérsias, pois o aprimoramento humano por meio de manipulação genética não afe-taria apenas um indivíduo, mas todos os descendentes do indiví-duo “aprimorado”. Isso significa dizer que os riscos envolvidos no aprimoramento afetariam toda a germ-line do indivíduo. A incer-teza sobre como o aprimoramen-to cognitivo (ou outras formas de aprimoramento humano) poderia afetar negativamente a vida de gerações de pessoas seria, a meu ver, uma forte razão para, pelo menos por enquanto, rejeitarmos como moralmente inaceitável o aprimoramento humano por meio de manipulação genética.

14 Jornal da Globo: (03/07/2015): “Polícia Federal está de olho nas compras irregula-res de ritalina. Medicamento que melhora a concentração virou febre entre estudantes.” (Nota do entrevistado)15 Ver por exemplo os sites das empresas Foc.Us (http://www.foc.us/) e Thync (http://www.thync.com/). Ver também BBC News (24.08.2014): “Warning over electrical brain stimulation”. (Nota do entrevistado)

Experimentos: editando o DNA de embrião humano

Em abril de 2015 uma equipe de cientistas chineses publicou um artigo no qual afirmam ter “editado” o DNA de um embrião humano.16 O artigo desencadeou rapidamente um debate mundial sobre a moralidade desse tipo de experimento. Aparentemente, as revistas Nature e Science se recu-saram a publicar o artigo da equi-pe chinesa por razões éticas. Mas o artigo acabou sendo publicado na revista Protein & Cell, sediada em Pequim. Os cientistas chineses tiveram o cuidado de descartar os embriões geneticamente modifi-cados de modo a evitar que eles se desenvolvessem a ponto de for-mar um feto humano. O descarte de embriões humanos, é impor-tante mencionar, ocorre também cotidianamente em clínicas para reprodução assistida.17 A pesquisa dos cientistas chineses, embora não tenha sido inteiramente bem sucedida, e a despeito de todas as críticas, foi realizada na ex-pectativa de que, no futuro, seja possível encontrar uma cura para doenças congênitas tais como Tay--Sachs, Huntington, fibrose cística e algumas formas de Alzheimer. Não se tratava, portanto, de apri-morar um embrião humano, mas de corrigir problemas associados a doenças hereditárias. No en-tanto, a simples possibilidade de que, no futuro, o genoma huma-no possa ser editado para fins de aprimoramento foi suficiente para que alguns cientistas repudiassem publicamente o experimento chi-nês e conclamassem a comunidade científica internacional a uma sus-pensão — uma “moratória” — des-

16 Puping Liang et alia. 2015. “CRISPR/Cas9-mediated gene editing in human tripro-nuclear zygotes”. In Protein & Cell, 6(5): 363-372. (Nota do entrevistado)17 O descarte de embriões é regulado no Bra-sil pela Resolução n. 2.013/2013 do CFM, pu-blicada no DOU em 9 de maio de 2013, Seção I, p. 119. (Nota do entrevistado)

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se tipo de pesquisa.18 Essa reação, contudo, não me parece coerente com práticas já existentes, e re-guladas juridicamente, inclusive no Brasil.

Vamos supor que a tecnologia para edição do genoma humano se torne eficaz e segura no futuro, tão eficaz e segura que ela poderia ser usada para praticamente erradicar da humanidade doenças como, por exemplo, Tay-Sachs, Huntington, fibrose cística e algumas formas de Alzheimer. Num cenário como esse, a busca por aprimoramento humano, por meio de manipulação genética, continuaria sendo moral-mente inaceitável? Muitas pessoas provavelmente alegariam que sim: que o aprimoramento por meio de intervenção no genoma humano seria moralmente inaceitável, pois constituiria uma forma de eugenia. Mas, a meu ver, não é inteiramen-te claro por que razão deveríamos rejeitar o aprimoramento humano nesse caso. Muitos casais, e tam-bém mulheres que preferem engra-vidar sem o envolvimento afetivo ou sexual com um homem, recor-rem à “reprodução assistida” e a bancos de sêmen para gerar uma criança. Em 2015 constatou-se que o número de importações de sêmen humano para fins de fertilização in vitro aumentou em mais de 500% no Brasil.19 Isso levou a empresa americana Fairfax Cryobank a abrir uma filial em São Paulo. O Brasil proíbe a comercialização de sê-men humano, mas não proíbe a sua importação.

18 The Economist (21/08/2015): “A new technique for manipulating genes holds great promise - but rules are needed to gov-ern its use”; Nature: “Don’t edit the human germ line”. (519): 410-411; The Guardian (23/04/2015): “Scientists genetically modify human embryos in controversial world first”; Nature (24/04/2015): “Ethics of embryo ed-iting paper divides scientists. Research com-munity also split over how close the method is to being an option for preventing disease”; Nature (30/04/2015): “Embryo editing sparks epic debate. In wake of paper describ-ing genetic modification of human embryos, scientists disagree about ethics”, (520): 593-594. (Nota do entrevistado)19 UOL Notícias (17/06/2015): “Importação de sêmen estrangeiro aumenta 500% no Bra-sil em um ano”. (Nota do entrevistado)

Bancos de sêmen e as compras pela internet

Diferentemente do que ocorre no Brasil, os bancos de sêmen nos Estados Unidos fornecem infor-mações detalhadas sobre o histó-rico do doador. Só não revelam a sua identidade. No site em inglês da Fairfax Cryobank é possível es-colher e comprar pela internet o sêmen, para posterior fertilização

de um óvulo, conforme a “cor dos olhos”, “cor do cabelo”, “raça” e, é claro, conforme os indícios sobre a “inteligência” do doador. Eviden-temente, não há nenhuma garantia de que a fertilização in vitro resul-tará em uma criança com todas as características atribuídas ao doa-dor do sêmen utilizado. Mas o direi-to brasileiro, e mais especialmente o direito americano, não proíbem as pessoas de escolher livremente uma amostra de sêmen que tenha mais probabilidade de gerar uma criança com as características es-colhidas, características que in-cluem, evidentemente, indícios da inteligência do doador. Mas se não proibimos as pessoas de fazer essas escolhas num cenário de incerteza como ocorre atualmente, por que deveria ser proibido num cenário futuro — ainda que meramente hi-potético — no qual as chances de se

gerar uma criança “cognitivamente aprimorada” seriam bem maiores?

No que concerne ao aprimora-mento por meio de manipulação genética, é importante lembrar também que, embora seja atual-mente rejeitado de modo enfático pela comunidade científica no caso de seres humanos, ele já existe para o aprimoramento de semen-tes de plantas, mais resistentes a pragas, e para o aprimoramento de animais para abate, menos vulne-ráveis a infecções.20

IHU On-Line - De que maneira a atual concepção sobre melho-ramento humano pode ser en-tendida como extensão ou varia-ção do nosso desejo natural de aprimoramento?

Marcelo de Araujo - Eu usei aqui a expressão “aprimoramento hu-mano” em um sentido bem restri-to, para me referir unicamente ao aprimoramento buscado por meio de medicamentos, próteses, apa-relhos, manipulação genética, etc. Mas é desnecessário dizer que a busca pelo “aprimoramento”, em um sentido mais amplo, é bastante antiga. Aristóteles, por exemplo, já havia percebido, na antiguida-de, que há uma correlação entre, de um lado, nossos hábitos alimen-tares e o estilo de vida que levamos e, por outro lado, nosso melhor ou pior desempenho no exercício de atividades físicas. Para o “apri-moramento cognitivo”, em um sentido mais amplo da expressão, a “tecnologia” mais antiga e ao mesmo tempo mais confiável ainda é a educação: boas escolas, acesso à cultura, hábitos de leitura, etc. A busca pelo aprimoramento num sentido mais restrito não tem por objetivo substituir o aprimora-mento num sentido mais amplo. O atleta que recorre a medica-mentos para obter uma margem de vantagem não deixa de treinar duro. E estudantes que recorrem à

20 The Guardian (23/06/2015): “Could these piglets become Britain’s first commercially viable GM animals?”. (Nota do entrevistado)

Em 2015 cons-tatou-se que o número de im-portações de sêmen huma-

no para fins de fertilização in vitro aumen-

tou em mais de 500% no Brasil

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Ritalina ou Modafinil para obterem boas notas não deixam de estudar com afinco. O aprimoramento no sentido restrito visa suplementar o aprimoramento em sentido amplo.

IHU On-Line - Historicamente, como se iniciou a discussão sobre o aprimoramento humano? A par-tir de que momento passou a ser um tema relevante na filosofia e, desde então, como tem se dado a discussão na área?

Marcelo de Araujo - No caso es-pecífico do aprimoramento huma-no por meio de próteses, que é um tema pelo qual tenho me interes-sado atualmente, percebi que hou-ve um debate sobre esse tema logo após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo no contexto da Alema-nha, devastada pela guerra. Isso, é claro, ocorreu porque o número de homens mutilados em consequ-ência dos combates era monumen-tal. Mas esse debate não era ainda um debate do qual participassem muitos filósofos. Foi, sobretudo, nas artes visuais e em obras de fic-ção que se discutiu a questão do aprimoramento humano por meio de próteses na primeira metade do século XX. Parece-me que, no âmbito do debate filosófico, a dis-cussão sistemática sobre a mora-lidade do aprimoramento humano é bem mais recente. Isso se deve, presumo, aos avanços tecnológicos no âmbito da engenharia genéti-ca, da farmacologia, da medicina reprodutiva e da mecatrônica nos últimos anos.

IHU On-Line - Como a ideia de “corpo humano como máquina” aparece em obras filosóficas? É

possível mencionar exemplos de filósofos que chamam atenção para esse aspecto?

Marcelo de Araujo - A compre-ensão do corpo humano como uma espécie de máquina remonta à fi-losofia mecanicista do século XVII. No Discurso do Método, de 1637, René Descartes1 já comparava o ser humano a “autômatos, ou má-quinas moventes”. No Tratado do Homem, de 1630, Descartes sugere que nossos órgãos internos intera-gem entre si como peças de uma máquina, como as molas e engre-nagens de um sofisticado relógio. Thomas Hobbes2, logo nas primei-ras linhas do Leviathan, de 1651, sugere que nada nos impede de produzir “vida artificial”. O meca-nicismo de Hobbes e Descartes foi retomado mais tarde por filósofos

1 René Descartes (1596-1650): filósofo, fí-sico e matemático francês. Notabilizou-se so-bretudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas carte-siano, que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. Descartes, por vezes cha-mado o fundador da filosofia e matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama de racionalismo conti-nental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o em-pirismo), posição filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line)2 Thomas Hobbes (1588–1679): filóso-fo inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651), trata de teoria política. Neste livro, Hobbes nega que o homem seja um ser na-turalmente social. Afirma, ao contrário, que os homens são impulsionados apenas por considerações egoístas. Também escreveu sobre física e psicologia. Hobbes estudou na Universidade de Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A respeito desse filósofo, con-fira a entrevista O conflito é o motor da vida política, concedida pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição 276 da revista IHU On-Line, de 06-10-2008. O material está disponível em http://bit.ly/ihuon276. (Nota da IHU On-Line)

como Julien Offray de La Mettrie3, que publicou em 1748 um tratado intitulado O Homem Máquina. La Mettrie, na verdade, dá um passo adiante e nega que haja qualquer diferença qualitativa entre animais e seres humanos. Ainda no século XVIII o “homem máquina” deixa de ser uma simples especulação filo-sófica para inspirar também a obra de engenheiros e inventores que, dentro das possibilidades técnicas do século XVIII, se deram por ta-refa criar suas próprias versões de “vida artificial”. Jacques Vaucan-son4, por exemplo, construiu um tocador de flauta em tamanho na-tural. Pierre Jaquet-Droz5 criou um “autômato” capaz de desenhar e de escrever frases simples a partir de um sistema pré-programável de engrenagens.6 Aliás, o filme Hugo (2011), de Martin Scorsese7, faz uma referência ao “autômato” es-critor e desenhista criado por Pier-re Jaquet-Droz. ■

3 Julien Offray de La Mettrie (1709-1751): médico e filósofo francês e um dos primeiros escritores a escrever sobre o materialismo na Era do Iluminismo. É reivindicado como um fundador da ciência cognitiva. (Nota da IHU On-Line)4 Jacques Vaucanson(1709 – 1782): é um inventor e engenheiro francês. (Nota da IHU On-Line)5 Pierre Jaquet-Droz (1721 — 1790) foi um relojoeiro suíço que viveu em Paris, Londres e Genebra, onde desenhou e construiu bonecos animados ou autômatos como publicidade para sua empresa que vendia relógios e pás-saros mecânicos. (Nota da IHU On-Line)6 Ver, por exemplo, Anson Rabinbach. 1992. The Human Motor: Energy, Fatigue, and the Origins of Modernity. Berkeley: Univer-sity of California Press; Paolo Rossi. 1989. Os Filósofos e as Máquinas: 1400-1700. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras. (Nota do entrevistado)7 Martin Scorsese (1942): cineasta, ator, produtor e roteirista norte-americano. De sua filmografia, destacamos A Última Tenta-ção de Cristo e A ilha do medo. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... — Biotecnologias e reprodução humana: limites e possibilidades. Edição nº 68, 28-07-2003, disponível no link http://migre.me/ruHvG

— As tecnociências e a modelagem da vida. Edição nº 456, 20-10-2014, disponível no link http://migre.me/ruHzE

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Reinventar a liberdade, reinventar a si próprioO italiano Sandro Chignola analisa criticamente a forma pela qual a sociedade compreende o conceito de liberdade

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Sandra Dall Onder

No neoliberalismo todos são li-vres. Livres para que possam desenvolver as dinâmicas de

mercado, livres para lucrar individu-almente com os bens comuns e livres para serem empreendedores de si. Po-rém não somos tão livres assim para construir liberdades para além destas lógicas. “O fato é que esta liberdade é produzida por tecnologias diferentes, muito invasivas e fugazes. É necessário que o indivíduo - independentemente se é um precário, um estudante, um mi-grante - se perceba como um livre em-preendedor de si, em constante com-petição e concorrência com os outros”, critica Sandro Chignola, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ao analisar um tipo de apropriação ingênua da li-berdade. “Eis o problema, para muitos de nós, pensar e praticar momentos de recomposição política à altura da go-vernamentalidade neoliberal: tentar imaginar uma coisa comum à altura de formas de cooperação subtraídas do comando capitalista acrescentando a competitividade, privatização do dese-jo e solidão”, complementa.

Para Margareth Thatcher, figura icô-nica da ideologia neoliberal, o que existe, desde seu ponto de vista, são indivíduos e empreendedorismos pesso-ais em uma sociedade de mercado. Isso se explica pelo fato de que o mercado não pertence à natureza do comum, é uma instituição, que por sua vez preci-sa ser implantada, projetada e prepa-rada. Daí a necessidade de se criar tais subjetividades. “É necessário, para que o mercado continue a ser um lugar

de valorização, que cada indivíduo se perceba como um empreendedor. Isto é, como uma vontade de empreender onde eventualmente recairão os cus-tos do fracasso da mesma”, descreve. Ao pensar o papel da filosofia dentro deste contexto, o professor provoca. “A reinvenção do comum só será pos-sível se estiver à altura desta tensão. Dentro e fora da Universidade, é des-ta reinvenção que tenho a intenção de participar. Mesmo que seja necessá-rio cortar transversalmente o cânone, aparentemente pacífico, da história da filosofia.”

Sandro Chignola é professor de Filo-sofia Política no Departamento de Filo-sofia, Sociologia, Pedagogia e Psicolo-gia Aplicada na Universidade de Pádua, Itália. É autor, entre outros, de Histó-ria de los conceptos y filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010).

O Cadernos IHU ideias publicou re-centemente o artigo Sobre o disposi-tivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de autoria de Chignola e disponível em http://bit.ly/1gbIVig.

No dia 22 de setembro, às 20 horas, no Anfiteatro Pe. Werner, o professor apresenta a conferência A política dos saberes, evento que integra a progra-mação do XVII Simpósio Internacional IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação, Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade. Mais informa-ções em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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Eis o problema, para muitos de nós, pensar e praticar momentos de recomposição política à altura

da governamentalidade neoliberal

IHU On-Line - Quais são as re-lações e tensões entre vida, tra-balho e linguagem no contexto da biopolítica e do biocapitalismo?

Sandro Chignola - A resposta não pode ser imediata, nem sim-ples. Digamos que se trata de es-tabelecer a difusão do termo “bio-política” - ou, num sentido mais extenso, a generalização contem-porânea do prefixo -bio no âmbito das ciências humanas e das ciên-cias sociais (bioética, biopolítica, biodireito, biopoder, bioeconomia, etc.). Desta forma, encontramos razões históricas ou ainda podemos interpretá-las como um reflexo de uma estrutura metafísica.

No segundo caso – seria, por exemplo, o caminho tomado por Giorgio Agamben1 - é completa-

1 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia-no. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do go-verno estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his-tória: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi-torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan-tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/

mente supérfluo investigar a his-tória do conceito: a captura da vida pelo poder reflete um dado original, o segredo da política oci-dental. No primeiro, se trata de trabalhar em termos genealógicos para a historicização do conceito. Este me parece o caminho mais in-teressante a tomar. Foucault como sabido, escrevendo Les Mots et les choses (Paris: Gallimard, 1966), ao menos dez anos antes de Corsi no Collège de France, cunhou os ter-mos “biopoder” e “biopolítica”, rastreando a mudança da ideologia da era clássica da representação exatamente na afirmação dos sabe-res que se ligam à vida, ao trabalho e à linguagem, isto é, à biologia, à economia política e à filologia.

Dispositivos de captura

Seguindo Kaushnik Saunder Rajan,2 que escreveu há alguns anos um belo livro, Biocapital (Durhan: Duke University Press, 2006), creio que podemos dizer que a fase da acumulação capitalista se produz quando ocorre o sequenciamento do genoma, quando a vida é tra-tada como um código ou uma sé-rie de informações que podem ser conservadas, modificadas ou tro-cadas- como uma “linguagem”, - a

ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moder-na, disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU On-Line)2 Kaushik Sunder Rajan: antropólogo das ciências da vida, cuja pesquisa está focada na economia política global da biomedici-na, com um enfoque comparativo sobre os Estados Unidos e Índia. Sua pesquisa sobre o genoma e os mercados de medicamentos re-sultou na publicação do livro Biocapital livro Biocapital: The Constitution of Post-Genomic Life (Duke University Press in 2006). (Nota da IHU On-Line)

política da vida, portanto, também é configurada como privatização ou patenteamento do DNA ou como a extensão do uso, além dos limites da jornada de trabalho e do acio-namento das qualidades espécie- específicas do homo sapiens. Ou seja, (não somente os músculos, mas também a potência linguística e de relação que o diferencia de outros seres vivos e que marcam o processo de hominização), sinais que marcam não somente a con-vergência da formação capitalista que podemos identificar entre o «biocapitalismo» e a «biopolítica» entendida como o campo onde se confrontam os dispositivos de cap-tura relativos ao primeiro e às mo-dalidades de subtração e de fuga que marcam os novos dispositivos de subjetivação, mas que enten-demos como pontos de emergência da fase histórica que justifica o uso e a generalização dos conceitos que utilizam prefixos – bio é vida, trabalho e linguagem, isso é o que devemos observar.

IHU On-Line - Qual é o nexo fundamental que pode ser esta-belecido entre a biopolítica e o biocapitalismo?

Sandro Chignola - Acho que po-demos colocar a questão, de forma esquemática, no seguinte modo. Existe uma transformação signifi-cativa que marca os mecanismos de acumulação capitalista contempo-rânea: a vida, como tal, possui um valor. Ela é valorada e assim, des-frutada, conforme as tecnologias diferenciadas. Seja a privatização do código genético de plantas ou ervas da farmacopeia tradicional dos índios pelas multinacionais do setor, seja o tratamento e o co-mércio de órgãos ou de partes de órgãos para transplantes, ou ain-da quando o indivíduo interage no Facebook no seu tempo “livre”, mostrando detalhes do seu perfil de consumo que outros venderão a terceiros e que permitem o alto posicionamento do valor na bolsa das redes sociais ou das platafor-mas digitais que o conectam vinte e quatro horas por dia, ou ainda, quando se trata da “extração” que distingue tanto as finanças globais

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que investem sobre a dívida quan-to sobre um capital que, de forma muito tradicional, continua lucran-do sobre os bens comuns, destruin-do florestas, escavando minas, de-vastando a vida.

A esta transformação segue a dos conflitos que surgem neste novo terreno. «Biopolíticas » são, neste sentido, tanto as transformações relativas às instituições e às tecno-logias jurídicas que acompanham e que legitimam este processo, quanto as lutas que o atravessam e que o colocam em confronto. Des-te modo não podem mais ser en-tendidas simplesmente como lutas pelos direitos. Onde a questão é a vida, a vida de forma geral que é politizada como demonstram as lutas pela água e pela defesa dos bens comuns, as lutas ecológicas, as lutas das mulheres, as lutas dos precários e dos endividados – a fi-gura sobre a qual Maurizio Lazza-rato3 focou recentemente – que, enquanto figuras políticas, não podem ser reconduzidas ao perfil clássico do trabalhador fordista ou

3 Maurizio Lazzarato: Sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde re-aliza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capita-lismo cognitivo e os movimentos pós-socia-listas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e en-trevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015, disponível em http://bit.ly/1WmGF9v; Sub-verter a máquina da dívida infinita. Entre-vista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1N0i2JB; “Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo”. Entrevista com Maurizio La-zzarato, publicada em Notícias do Dia, de 05-01-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejolW; “Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault...” Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notí-cias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GLy9d9; Capi-talismo cognitivo e trabalho imaterial. En-trevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejOsv; As Revoluções do Capitalismo. Um novo li-vro de Maurizio Lazzarato. Reportagem pu-blicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GXuMlq. (Nota da IHU On-Line)

aos quadros formais da cidadania democrática.

IHU On-Line - Como podemos compreender o paradoxo entre o aprofundamento da biopolítica e da governamentalidade e os limi-tes que se apresentam à autono-mia do sujeito em nosso tempo?

Sandro Chignola - Neste caso as coisas mais importantes foram ditas por Foucault. A governamen-talidade neoliberal se liga ao nú-cleo próprio da subjetividade. Tem como dispositivo chave uma deter-minada produção de subjetividade. O problema não é mais a projeta-ção e o controle de um «corpo útil» como na transição que levou ao fordismo; isto é, a transformação do agricultor em operário com a sua bagagem: adestramento, eco-

nomia do gesto, construção de um tempo coletivo ordenado e subme-tido ao princípio de utilidade. No neoliberalismo o problema é o “go-verno” de um sujeito que deve ser deixado livre para agir para que possam se desenvolver as dinâmi-cas de mercado. O fato é que esta liberdade é produzida por tecnolo-gias diferentes, muito invasivas e fugazes. É necessário que o indiví-duo - independentemente se é um precário, um estudante, um mi-grante - se perceba como um livre empreendedor de si, em constante competição e concorrência com os outros. Aqui a autonomia coincide com o abandono do indivíduo, a vi-cissitude do mercado como um du-ríssimo princípio de realidade para a sua ação e desejo. Coincide com a solidão, falando de outro modo. Eis o problema, para muitos de nós, pensar e praticar momentos

de recomposição política à altura da governamentalidade neoliberal: tentar imaginar uma coisa comum à altura de formas de cooperação subtraídas do comando capitalista acrescentando a competitividade, privatização do desejo e solidão.

IHU On-Line - A partir desse ce-nário de produção de subjetivi-dade e retomando a contribuição de Habermas sobre a “eugenia li-beral”, em que aspectos se pode falar de uma somatização do su-jeito hoje?

Sandro Chignola - Habermas fa-lava de “eugenia liberal” há quinze anos. Óbvio que para ele o proble-ma não era a eugenia racista, mas o tipo de intervenção projetual que as novas tecnologias biomédicas colocavam à disposição (para aque-les que podiam pagar) para ter cor-pos com boa performance ou filhos saudáveis. Em termos filosóficos e morais a questão, especialmente na discussão com Rorty,4 estava ligada aos limites (ou a ausência) do exercício da liberdade individu-al em relação ao próprio corpo ou ao corpo dos filhos (cor dos olhos, capacidade, potencial). Creio que, entre os “sinais característicos” da nossa época, retomando um tema da filosofia da história de Kant,5 há

4 Richard Rorty: filósofo pragmatista es-tadunidense. Esteve em pé de guerra com a filosofia toda a sua vida. Defendia-se contra a pretensão de absoluto do pensamento analí-tico e renunciou durante décadas, a modo de protesto contra as correntes tradicionais do seu âmbito, a dirigir uma cátedra de filosofia (apenas aceitou até 1982 um lugar na Uni-versidade de Princeton). Sua principal obra é Filosofia e o Espelho da Natureza (Princeton: Princeton University Press, 1979). (Nota da IHU On-Line)5 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último gran-de filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fe-nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou-menon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci-mento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringi-ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibili-dade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93,

A reinvenção do comum só será possível se es-tiver à altura desta tensão

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também essa somatização do indi-víduo. Uma pessoa que investe a sua liberdade e seu desejo em seu corpo para ter um boa performan-ce ou para se adequar aos padrões de consumo da moda, para torná-lo mais “saudável” ou vital, para sal-vá-lo da decadência ou da velhice. Aqui o tema tende a coincidir com o próprio corpo ou com o investi-mento que nele se faz.

IHU On-Line - A partir do ce-nário do biocapitalismo, em que sentido se pode falar de um novo poder pastoral que conduz a res-ponsabilidade e a cura de si em uma “saúde singular e coletiva”?

Sandro Chignola - Quando Fou-cault aborda o tema da governa-mentalidade não se limita, e digo isto, pois estou convencido da in-fluência que Max Weber6 teve so-bre Foucault, à definição de um “tipo ideal” de poder. Em relação ao governo como um período de longo prazo de exercício do poder no Ocidente, Foucault traça uma genealogia. O governo tem uma matriz pastoral no sentido de que esta instituição administra de for-ma particular o poder. Ao contrário

de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível para do-wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU em Formação número 2, intitulado Em-manuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitu-lada A autonomia do sujeito, hoje. Impera-tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ihuon417. (Nota da IHU On-Line)6 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois, disponível para download em http://bit.ly/ihuon101. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/ihuem03. Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

do que acontece no paradigma da soberania que deseja o poder irre-sistível, o governo não domina, não explícita o seu próprio monopólio da violência que permite levar le-gitimamente à morte um culpado, não acumula ou se apropria da riqueza que os dominados produ-

zem, não delimita um território como campo de aplicação das suas regras, mas procura regular um ambiente onde seu referente não está disponível e livre e o expõe ao risco e à aleatoriedade que carac-terizam os resultados da sua ação. O governado se move segundo ló-gicas e dinâmicas próprias que não pertencem àqueles que governam e que os impedem de exercê-lo de forma unidirecional e irresistível. Ao contrário, quem governa deve ter como objetivo o bem do go-vernado para assim poder se legi-timar perante o mesmo. O modelo do governo biopolítico do gover-no é o bom pastor, não o vampiro thanatos político da soberania. E o bom pastor – Foucault traça a genealogia hebraico-cristã nas es-crituras, no poder administrativo dos bispos nas dioceses – se preo-cupa com a saúde de cada ovelha perdida e com o rebanho em ge-ral. Opera, como disse a propósi-to Foucault, omnes et singulatim. O biocapitalismo reaviva poderes

de tipo pastoral entre o público e o privado. Não somente implan-ta poderes de tipo administrativo e pós-representativos como tam-bém priva as soberanias nacionais (FMI, WTO, Troika UE - para dar alguns exemplos concretos – que expressam poderes tecnicamente não democráticos, não eletivos e que, todavia governam mercados e políticas globais em vista de um suposto crescimento econômico), mas trabalha molecularmente so-bre as condutas individuais, gover-nando a liberdade dos indivíduos e das populações a que pertencem. As políticas de saúde, por exem-plo, trabalham cada vez mais com “conselhos” que visam à responsa-bilização do indivíduo (não fumar, submeter-se a exames regulares, seguir uma dieta...) para a obten-ção de efeitos gerais. O que ante-riormente estava sob a tutela das instituições, como a saúde pública, agora é de responsabilidade indivi-dual. E o indivíduo, governado pela sua autopercepção é considerado uma pessoa madura, responsável, solidária.

IHU On-Line - Quais são as rela-ções que podem ser estabelecidas entre a biomedicalização e uma financeirização da área de saúde?

Sandro Chignola - A questão é muito complicada e difícil de in-terpretar se não nos contentamos com fórmulas fáceis. O que parece claro é que a pesquisa biomédica está, de um lado, ligada à capaci-dade de atrair investimentos (que contam com uma compensação), de outro e, por causa disso, obriga-da a inventar continuamente mer-cados para as suas descobertas. Patentes, novas doenças, novas moléculas pululam, assim como o valor do que poderíamos chamar de futures da saúde. Em muitos casos não é simplesmente tratar as doenças, mas tratar a própria vida como se estivesse potencialmente em risco (risco imponderável, in-descritível, fugaz, constantemente rastreável) onde se pode investir. O que podemos concluir, mas não muito claramente, é que esses pro-cessos não são conduzidos por um agente supervilão do capital e sim,

O governado se move segundo lógicas e dinâ-micas próprias que não perten-cem àqueles que governam e que os impedem de

exercê-lo de for-ma unidirecio-

nal e irresistível

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muitas vezes, pela ética profissio-nal dos pesquisadores e a sua ge-nuína curiosidade científica. É essa interação entre liberdade e pode-res, incluindo a ética da pesquisa e captura da mesma lógica do em-preendedorismo que me parece ser a questão a ser refletida. As coisas nunca são simples ou lineares.

IHU On-Line - Por que se pode falar da biopolítica também como um elemento do racismo de Estado?

Sandro Chignola - O campo do racismo de estado é o campo de emersão histórica do termo bio-política. Foucault fala sobre isso no Corso de 1976-1977 no Collège de France. E, no entanto, o termo aparece muito antes de Foucault. Foi usado nos anos 1930 para des-crever os fundamentos e as in-variantes biológicas da política. Povos, raças, hábitos, costumes poderiam, assim, ser classificados e hierarquizados. Nos anos 1970, na Alemanha, existiam organiza-ções de extrema-direita que publi-cavam revistas ou jornais ligados à biopolítica. Obviamente um termo não é um conceito, como ensinou, entre outros, o historiador alemão Reinhart Koselleck.7 O conceito de biopolítica, sobre o qual me inte-ressa traçar a história não perten-ce à metafísica da soberania, e sim aos processos que falamos acima.

IHU On-Line - Por que se pode falar da biopolítica também como um elemento do racismo de Estado?

Sandro Chignola - Porque o mer-cado é banal, mas devemos nos lembrar que não pertence à na-tureza, é uma instituição. E como instituição deve ser projetado, preparado e implantado. É um pro-

7 Reinhart Koselleck (1923-2006): Um dos mais importantes historiadores alemães do pós-guerra, destacando-se como um dos fundadores e o principal teórico da História dos Conceitos. As suas investigações, ensaios e monografias cobrem um vasto campo temá-tico. No geral, pode-se dizer que a obra de Ko-selleck gira em torno da história intelectual da Europa ocidental do século XVIII aos dias atuais. Também é notável o seu interesse pela Teoria da História. (Nota da IHU On-Line)

cesso, como observou Marx,8 que derrama sangue e violência. Mas é um processo que não para em sua fase inicial. A acumulação capita-lista prossegue constantemente se reinventando. Na teoria neolibe-ral, onde, como dizia Thatcher,9 não se prevê a sociedade, deveres ou solidariedade, existem apenas indivíduos e empreendedorismos individuais. É necessário, para que o mercado continue a ser um lugar de valorização, que cada indivíduo se perceba como um empreende-dor. Isto é, como uma vontade de empreender onde eventualmente recairão os custos do fracasso da mesma.

É óbvio que, para alcançar isso, precisamos trabalhar duro para disciplinar a subjetividade. Conos-co, por exemplo, acontece através das reformas das escolas e das uni-versidades onde o aluno ou aluna, são treinados para pensar em si mesmos em constante competição com os outros e considerar apenas os saberes em base à utilidade do que produzem. Aristóteles,10 ao

8 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Leia a edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de au-toria de Leda Maria Paulani, tem como títu-lo A (anti)filosofia de Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o autor, confira a edição número 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada A finan-ceirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a entrevis-ta Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On-Line pre-parou uma edição especial sobre desigual-dade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argu-mento central da obra de Marx O Capital, dis-ponível em http://bit.ly/IHUOn449. (Nota da IHU On-Line)9 Margaret Hilda Thatcher (1925): po-lítica britânica, primeira-ministra de 1979 a 1990. (Nota da IHU On-Line)10 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por um lado, ori-ginais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou significativas contribuições para o pensa-mento humano, destacando-se nos campos da ética, política, física, metafísica, lógica,

contrário, dizia que a filosofia não servia. Mas dizia isso porque a filo-sofia não é serva de ninguém, seria como uma revindicação de liberda-de da mesma. Bem, nas novas re-formas a filosofia é imediatamente redimensionada e são valorizados os saberes técnicos da economia, do direito ou os estágios nas em-presas. Eu acredito que aqui, mas é apenas um exemplo, podemos ver como o sujeito empreendedor é criado literalmente. E, como as falhas individuais acabam sendo atribuídas à “má vontade” do indi-víduo, exonerando as instituições dos deveres de recuperação ou de respostas às obrigações sociais de formação. Como as prisões, para dar outro exemplo, que funcionam desta forma: não se objetiva a re-cuperação do réu. Os descartes de uma humanidade perdida são esto-cados, em locais separados e con-siderados lixo tóxico, devendo ser mantido longe da cidade-empresa.

IHU On-Line - Em que medida há uma institucionalização do pensa-mento crítico nos departamentos de “governamentality studies”, que resulta em um dispositivo da captura e torna a filosofia um negócio?

Sandro Chignola - Isto é uma po-lêmica pessoal. Tem havido muito pouca reflexão, parece-me, sobre como o pensamento crítico tem sido traduzido em um negócio. Vende-se o rótulo “biopolítica” ou “Italian Theory” como um produto no mercado. E a crítica da gover-namentalidade de Foucault deu impulso a departamentos e institu-tos de pesquisa, que atuam como Think tanks ao lado dos governos, ao invés de criticá-los. Mas é, afi-nal, uma polêmica que até mesmo setores do feminismo criticaram: há cadeiras universitárias e biblio-tecas inteiras de “Women Studies”, dizem essas mulheres, e, em mui-tos aspectos, a nossa situação é a mesma das nossas avós. Há alguns anos Foucault tornou-se um ícone,

psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

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como um filósofo “biopolítico” tor-nando-se um jogador na mesa de jogo da sua própria carreira aca-dêmica e editorial. Pessoalmente, continuo me baseando na ética da responsabilidade do trabalho inte-lectual. Assumo total responsabili-dade pelo que falo e escrevo. Não em termos de uma coerência au-toral, que não me interessa. Mas, em relação aquilo que digo e faço, para que tenha algum significado para o mundo.

IHU On-Line - Qual é a res-ponsabilidade política da filoso-fia em um tempo marcado pela biopolítica?

Sandro Chignola - Exatamente o que eu dizia há pouco. Assumir a responsabilidade por aquilo que se fala e procurar fazer aquilo que se diz. Com obstinação e coragem. Libertar-se da ilusão de neutralida-de e da universalidade da filosofia. Para mim, por exemplo, já não é óbvio decidir o programa de um curso ou um seminário na Univer-sidade. Não é permitido usar a his-tória da filosofia para se proteger. Faz-se política mesmo quando se reproduz um cânone; quando você optar em dar um curso sobre Enne-adi de Plotino,11 sobre Heidegger12

11 Plotino (205-270): filósofo egípcio, dis-cípulo de Amônio Sacas e mestre de Porfírio, que nos legou seus ensinamentos em seis li-vros de nove capítulos cada, chamados de As Enéadas. Acompanhou uma expedição à Pér-sia, onde tomou contato com a filosofia persa e indiana. Regressou à Alexandria e, aos 40 anos, estabeleceu-se em Roma. Desenvolveu as doutrinas aprendidas de Amônio numa escola de filosofia com seleto gupo de alunos. Pretendia fundar uma cidade chamada Plato-nópolis, baseada nos ensinamentos da Repú-blica de Platão. Plotino dividia o universo em três hipóstases: o Uno, o Nous (ou mente) e a alma. (Nota da IHU On-Line)12 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo

ou sobre filosofia analítica, porque aqueles que te precederam em tal curso, o fizeram antes de você. A política da filosofia começa quan-do, com Nietzsche,13 se decide que o lugar da filosofia é este mundo.

(1927). A problemática heideggeriana é am-pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti-tulada Ser e tempo. A desconstrução da me-tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU Em Formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biolo-gismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferença - pré-evento do XI Simpósio In-ternacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Line)13 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi-lósofo alemão, conhecido por seus concei-tos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível para download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitu-lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis-mo radical de Nietzsche não pode ser mini-mizado, na qual discute ideias de sua confe-rência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI Simpósio Inter-

Lugar da filosofia

Ela está irrevogavelmente ligada à imanência do confronto entre li-berdade e poder. E deve-se tomar partido nesse embate. Mesmo es-colhendo como “lado” autores e textos que possam te dar as armas ou instrumentos para entrar na ba-talha, pois a possibilidade de “ficar de fora”, um espaço para se pro-teger da mesma para cuidar dos próprios estudos, não existe. As-sim, a escolha do lado da batalha é a primeira escolha a fazer mes-mo quando se decide o que e como falar. Essa escolha eu fiz há muito tempo. E Foucault me interessou porque me permitiu – permitiu a mim e a muitos dos meus alunos e alunas- de concentrar-nos no cam-po de batalha que divide a socie-dade hoje: a produção de subjeti-vidade. Uma subjetividade sujeita à governamentalidade neoliberal e dominada pela lógica do espírito empresarial ou pela subjetividade capaz de reinventar-se no auge de seu desejo de liberdade e de sub-tração: isto parece marcar o cam-po das lutas biopolíticas. A reinven-ção do comum só será possível se estiver à altura desta tensão. Den-tro e fora da Universidade, é desta reinvenção que tenho a intenção de participar. Mesmo que seja ne-cessário cortar transversalmente o cânone, aparentemente pacífico, da história da filosofia. ■

nacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirma-ção da totalidade da existência, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do sen-tido, com Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... — “É preciso reinventar a democracia à altura do século XXI”. Entrevista especial com Sandro Chignola publicada na revista IHU On-Line, nº 455, de 29-09-2014, disponível em http://bit.ly/1O3gfqE;

— Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze. Artigo de Sandro Chignola publicado no Cadernos IHU Ideias, nº 214, disponível em http://bit.ly/1gbIVig.

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Financeirização, o ácido que corrói a democraciaMichael Peters argumenta que a dívida tornou-se um procedimento sofisticado de domesticação populacional na contramão de uma postura mais ética

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Walter O. Schlupp

Ao pensarmos a biopolítica de-vemos compreender as radi-cais mudanças entre o que o

conceito representava na Grécia Anti-ga, depois na Modernidade com o re-nascimento e, contemporaneamente, em um espaço global marcado pelo ne-oliberalismo. “O nascimento da biopo-lítica assume uma forma mais radical com o neoliberalismo como racionali-zação do governo via meios econômi-cos, em que sujeitos com direitos são obrigados a ser livres, isto é, fazer opções dentro de um estado limitado onde o bem-estar é reduzido ou modi-ficado a cada viravolta do mercado ou de arranjos semelhantes a mercado”, analisa o professor pesquisador Michael Peters, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Disto decorre que a relação credor- devedor, longe de ser uma mera ope-ração econômica, trata-se de um pro-cesso ético e político capaz de criar um “novo” tipo de sujeito social: o endivi-dado. “Dívida tem prioridade sobre a troca, ao se passar a entender que o capitalismo financeiro e a economia da dívida neoliberal se baseiam e atuam por meio da produção moral de indiví-duos endividados. O neoliberalismo é o mecanismo de controle mais eficiente que, através de dívida, mantém sob controle a resistência por parte dos trabalhadores e estudantes”, pondera o professor. “A financeirização é uma nova modalidade de subjetividade que cria normas e valores que estruturam a nossa vida diária. Um aspecto domi-

nante é seu elemento especulativo, onde cada vez mais os cidadãos co-muns ‘jogam nos mercados’”, avalia. Ao pensar a situação das populações da União Europeia – UE, Michael Pe-ters critica. “A política financeira e os interesses que impelem o processo financeiro muitas vezes são implemen-tados por organismos não diretamen-te eleitos pelos cidadãos da UE, nem responsáveis perante eles. O pacto de crescimento, o pacto para o euro e os diferentes memorandos de entendi-mento parecem sacrificar a soberania fiscal, necessariamente comprometen-do também a possibilidade de qualquer cosmopolitismo democrático.”

Michael Peters é doutor em Filoso-fia da Educação pela University of Au-ckland, Nova Zelândia. É professor de Educação na University of Illinois. É editor de “Educational Philosophy and Theory” (Blackwell) e “Policy Futures in Education and E-Learning”.

No dia 22-09, às 9 horas, no Anfitea-tro Pe. Werner, o professor apresenta a teleconferência A Biopolítica Pós-Colo-nial no Império do Capital: Linhas fou-caultianas de investigação nos Estudos Educacionais, evento que integra a pro-gramação do XVII Simpósio Internacio-nal IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacio-nal de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade. Mais informa-ções em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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O nascimento da biopolítica assume uma forma mais ra-dical com o neoliberalismo como racionalização do go-verno via meios econômicos

IHU On-Line - Em que consiste a biopolítica pós-colonial no Impé-rio do Capital?

Michael Peters - “Biopolítica pós-colonial no Império do Capital” foi o título de uma palestra que dei no ano passado em Bogotá, na Colômbia, numa conferência sobre Foucault1 organizada pelo profes-sor Carlos Noguera. Usei esse título sintético para sinalizar três linhas de pesquisa segundo Foucault que eu achei mais significativas, espe-cialmente na última década. Tentei rastrear os seguintes pontos: o dis-curso do pós-colonialismo que data de Edward Said;2 a noção de biopo-lítica na obra de Giorgio Agamben;3

1 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em Formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)2 Edward Said (1935-2003): teórico lite-rário palestino-americano, além de ativista palestino. (Nota da IHU On-Line)3 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia-no. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do go-

e o modo pelo qual Antonio Negri4 e Michael Hardt5 usam Foucault no seu trabalho. Em cada caso, temos

verno estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his-tória: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi-torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan-tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moder-na, disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU On-Line)4 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros inte-lectuais italianos. Em 2000 publicou o livro--manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em se-guida, publicou Multidão. Guerra e demo-cracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt – sobre esta obra, publicamos um arti-go de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. O último livro da “trilogia” entre os dois autores Commonwe-alth (USA: First harvaard University Press paperback, 2011), ainda não foi publicado em português. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)5 Michael Hardt (1960): téorico literário americano e filósofo político radicado na Universidade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os livros internacionalmente famo-sos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003) e Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da IHU On-Line)

um grande e importante teórico que deu início a um novo discurso e inventou uma nova linguagem para falar sobre o mundo, mas que ain-da deve algo a Michel Foucault.

Edward Said

Said foi significativamente in-fluenciado por Foucault em sua compreensão do colonialismo como discurso, sendo que o trabalho de Foucault sobre a ordem do discurso proporcionou a ele os meios para analisar as relações de poder que existem no Orientalismo: a cons-trução discursiva do Ocidente so-bre o Oriente, a qual nos diz muito sobre o Ocidente e sua imagem dis-torcida. Enquanto o próprio Fou-cault escreveu surpreendentemen-te pouco sobre o colonialismo, seus métodos podem ser fácil e provei-tosamente aplicados: o colonialis-mo é o exemplo paradigmático de um sistema de biopolítica que se transformou ao longo dos anos.

Agamben

Pensando na América Latina e na variação histórica nos processos coloniais entre a Espanha e Portu-gal, pode-se argumentar que o sis-tema colonial, como o “campo” de Agamben, envolveu a própria subs-tância do controle da “vida, morte e cópula”, como T.S. Eliot6 diria, [ou seja], sobre todos os aspectos da vida e da morte. Ao mesmo tem-po, a biopolítica do colonialismo passou por muitas transformações diferentes durante sua história de 500 anos na América Latina. No entanto, podemos dizer que abor-dagens da biopolítica nos ajudam a entender o funcionamento de ad-ministrações coloniais.

Antonio Negri e Michael Hardt

Negri e Hardt, em comparação, examinaram formas de capitalismo pós-moderno e as maneiras pelas

6 Thomas Stearns Eliot (1888-1965): po-eta modernista, dramaturgo e crítico literário britânico-estado-unidense. Em 1948, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. (Nota da IHU On-Line)

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quais o neoliberalismo serve para inventar e sustentar novas formas de autocapitalização, onde tudo, inclusive o trabalho, é teorizado no lado do capital. Eles também falam com mais otimismo sobre os bens comuns e o desenvolvimento do trabalho imaterial.

Biopolítica pós-colonial no Im-pério do Capital era, então, um termo complexo que incluía três conceitos e três conjuntos de te-óricos para resumir as pistas mais promissoras na pesquisa baseada no trabalho de Foucault que leva a uma melhor compreensão do nos-so mundo contemporâneo e sua emergência em algo diferente. Na verdade, também fornece um meio para falar sobre os últimos 500 anos da história do mundo de uma forma que Foucault ignorava – a história dos Outros do Ocidente –, história do mundo como história do colonialismo enquanto lógica domi-nante para tipos evolutivos de or-dem mundial. Eu naturalmente não estou dizendo que esta é uma his-tória sem consequências para hoje; implícitas nas relações coloniais são as sementes de instituições de hoje; implícitos no arranjo políti-co são modelos de administrações do Estado, formas de educação moderna, sistemas de transporte destinados a explorar recursos, ati-tudes sociais, sistemas de classe e assim por diante. Biopolítica real-mente serve como abordagem que pode abarcar toda a transformação dos sistemas mundiais.

IHU On-Line - Quais as relações que podemos estabelecer entre a biopolítica num mundo globa-lizado e a governamentalidade neoliberal?

Michael Peters - Devemos lem-brar que as preleções de Michel Foucault no Collège de France sobre Governamentalidade Neo-liberal foram intituladas “O Nas-cimento da Biopolítica”, onde ele discute o liberalismo pós-guerra alemão e a reconstrução da eco-nomia alemã, de um lado, e o liberalismo da escola de Chica-go e o desenvolvimento da teo-ria do capital humano sob Gary

Becker,7 por outro. Governamenta-lidade é um conceito que Foucault usa para analisar a “arte de gover-nar” – racionalidade do governo – com base na produção da subje-tividade dos cidadãos, direciona-da para o controle biopolítico das populações. Foucault utiliza esse conceito para analisar a sociedade grega antiga, a modernidade e sua

forma mais recente na roupagem do neoliberalismo. Ele se refere a um novo tipo de poder exercido pelo Estado para produzir cidadãos autônomos (auto significando si--mesmo, nomos significando lei), ou seja, cidadãos autorreguladores. O nascimento da biopolítica também se ocupa do nascimento do Estado moderno e com a introdução de uma nova forma de conhecimento chamada economia política, que se torna a base para o controle do Es-tado sob o neoliberalismo.

Nascimento da biopolítica

O nascimento da biopolítica as-sume uma forma mais radical com

7 Gary Stanley Becker (1930–2014): eco-nomista estadunidense. Foi Professor na Universidade de Chicago, laureado com o Prémio de Ciências Económicas de 1992 por ter estendido os domínios da análise micro-econômica para comportamento e interação humana. Foi membro do Hoover Institution, do National Bureau of Economic Research e da Pontifícia Academia das Ciências desde 1997. (Nota da IHU On-Line)

o neoliberalismo como racionali-zação do governo via meios eco-nômicos, em que sujeitos com di-reitos são obrigados a ser livres, isto é, fazer opções dentro de um estado limitado onde o bem--estar é reduzido ou modificado a cada viravolta do mercado ou de arranjos semelhantes a mercado. Isso envolve a “responsabilização” dos indivíduos, tornando-os res-ponsáveis por si mesmos mediante ênfase sobre a escolha individual na praça. Excelente exemplo disso é o desenvolvimento da teoria do capital humano por Schultz e mais tarde por Becker, da terceira gera-ção da Escola de Chicago,8 forne-cendo uma análise de educação, crime, casamento e bem-estar so-cial em termos de capital humano, responsabilizando os cidadãos por cuidarem de si próprios, deixan-do o Estado livre para privatizar todos os ativos estatais, perma-necendo como legislador ou regu-lador do sistema dentro do qual a escolha é exercida [pelo cidadão]. Parece que não há fim para este processo: primeiro, as empresas estatais, depois os ativos estatais são privatizados; segundo, o Esta-do do bem-estar social [welfare state] é desmontado e as institui-ções sociais são privatizadas par-cial ou completamente; terceiro, parcerias público-privadas são vis-tas como meio de inserir a lógica da privatização mais fundo no te-cido social.

O capital humano, primeiro su-gerido por Becker em 1962, muda de investimento do Estado no in-divíduo para investimento do indi-víduo em si mesmo, com base no tedioso argumento de que a edu-cação, especialmente nos níveis superiores, não é um bem público, mas privado; ou seja, [trata-se de] ganho individual mais para seu pró-prio avanço com base na educação, sendo que as coisas exteriores [ex-ternalities] são mínimas e difíceis de se medir.

8 Escola de Chicago: escola de pensamen-to econômico que defende o mercado livre. Sua teoria foi disseminada por professores da Universidade de Chicago. (Nota da IHU On-Line)

O capitalismo financeiro e a economia da

dívida neolibe-ral se baseiam e atuam por meio

da produção mo-ral de indivídu-os endividados

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IHU On-Line - Como podemos compreender o paradoxo entre o aprofundamento da biopolítica e da governamentalidade e os limi-tes que se apresentam à autono-mia do sujeito em nosso tempo?

Michael Peters - Esta análise leva naturalmente à sua terceira pergunta. É fácil ver-se a aplica-ção do argumento de Foucault, es-pecialmente nos países ocidentais que se afastaram do ensino univer-sitário livre para autofinanciamen-to e financeirização dos estudantes conduzidos pelo consumidor, onde os alunos assumem dívida para frequentar a universidade e ficam endividados ao longo de seu estu-do e carreira. Atualmente, a dívida dos estudantes, por exemplo, nos EUA, expandiu-se para mais de US$ 1,3 trilhão, a segunda maior forma de ‘hipoteca’ depois da habitação e maior do que a atual dívida no cartão de crédito. Neste sentido, o neoliberalismo em sua última fase, desde meados da década de 2000, representa uma nova etapa na evo-lução do capitalismo enquanto de-senvolvimento da financeirização e da sociedade da dívida. A relação credor-devedor torna-se um pro-cesso ético e político de criação de sujeitos endividados e, portanto, de criar um certo tipo de subjeti-vidade com o nascimento da cul-tura de financiamento. Dívida tem prioridade sobre a troca, ao se pas-sar a entender que o capitalismo financeiro e a economia da dívida neoliberal se baseiam e atuam por meio da produção moral de indiví-duos endividados. O neoliberalismo é o mecanismo de controle mais eficiente que, através da dívida, mantém sob controle a resistên-cia por parte dos trabalhadores e estudantes.

HU On-Line - Em que consiste a economia biopolítica da dívi-da? Qual é a importância do me-canismo da dívida no capitalismo financeirizado?

Michael Peters - Tanto para as sociedades quanto para os indiví-duos, a economia biopolítica da dívida leva a que a dívida e as fi-nanças substituam a força de pro-

dução sob o capitalismo industrial, onde a economia global acaba se estruturando em torno de crédito e taxas de crédito. Assim, a atual batalha da Grécia é um exemplo paradigmático de como os direitos e a democracia são dominados por relações de crédito e débito, por decisões tomadas pelos grandes bancos e agências internacionais que emprestam enormes quantias. Como indica David Graeber9 (2011) em Debt: The First 5,000 Years [Dí-vida: Os Primeiros 5000 Anos]:

Todos os estados-nação moder-nos são construídos sobre gastos deficitários. Dívida passou a ser a questão central da política internacional. Mas ninguém pa-rece saber exatamente o que é, ou como pensar sobre isso... Se a história mostra alguma coisa,

9 David Graeber (1961): é um anarquista, antropólogo e professor de antropologia so-cial, no Colégio Goldsmith da Universidade de Londres. Anteriormente foi professor as-sociado na Universidade de Yale, instituição que, anteriormente, se negou a recontratá-lo após o término de seu contrato em junho de 2007, assunto em torno do qual se apresen-tam controvérsias e cartas de apoio ao pro-fessor e de repúdio à decisão da diretoria da universidade. Graeber participa ativamente em movimentos sociais e políticos, protes-tanto contra o Fórum Econômico Mundial de 2002 e o movimento Occupy Wall Street. Ele é membro do Industrial Workers of the World e faz parte do comite da Organização Internacional para uma Sociedade Participa-tiva. (Nota da IHU On-Line)

é que não há melhor maneira de justificar relações fundadas na violência, para fazer tais relações parecerem morais, do que reformulando-as na lingua-gem da dívida-acima-de-tudo, porque isso imediatamente faz parecer que é a vítima que está fazendo algo errado (p. 6).

Na Islândia vimos um certo padrão emergindo, em seguida, nos países mediterrâneos europeus Espanha, Irlanda, Portugal, Chipre e Grécia. A crise financeira levou à reestru-turação dos bancos, a seus formi-dáveis resgates pelos governos e às políticas de “austeridade”, onde os benefícios sociais são reduzidos, a idade da aposentadoria é aumen-tada, e a educação, privatizada. O centro global real é naturalmente Wall Street e a City de Londres, que fixam as taxas interbancárias e têm sido condenadas por fraude maciça após a desregulamentação do setor financeiro. O último em-préstimo de US$ 85 bilhões para a Grécia, argumentam muitos econo-mistas, servirá para pagar os em-préstimos existentes, e sem cresci-mento e com desemprego elevado, há pouca probabilidade de se colo-car a dívida nacional e do governo sobre uma base sustentável.

IHU On-Line - A partir da con-tribuição de Nietzsche em “A Genealogia da Moral”, como se apresentam hoje as novas moda-lidades de subjetivação em cone-xão com uma economia geral da dívida?

Michael Peters - A grande con-tribuição de Nietzsche é a de ter previsto [sic] a antiga conexão entre dívida, culpa e moralidade da punição enquanto pagamento. Diz ele que [o termo alemão para] “culpa” [Schuld] foi derivado de “dívida” [Schulden], e “punição” tornou-se “pagamento”, da época do “sujeito legal” no mundo anti-go. Seria o prazer do credor, que pode exigir toda espécie de condi-ções para, finalmente, tomar o que lhe agrada, até mesmo tendo, de certa forma, prazer com a violação do endividado? O conceito moral de obrigação, juntamente com a

A política fi-nanceira e os interesses que impelem o pro-

cesso financeiro muitas vezes são implementados

por organis-mos não dire-

tamente eleitos pelos cidadãos

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culpa, a consciência e o dever, têm seu início nesta relação contratu-al, marcada com sangue e tortura. Dívida torna-se uma nova forma de subjetividade. Devemos pergun-tar quais formas assume o sujeito endividado e como isso configura formas de relação de poder onde a economia moral é a base da eco-nomia geral. Podemos ver isso na criação de prisões para devedores nos dias de hoje, onde pessoas po-bres são detidas e encarceradas por inadimplência.

IHU On-Line - Em que medida podemos falar de uma financeiri-zação que atinge todos os setores de nossa vida? Quais são suas im-plicações fundamentais?

Michael Peters - A financeiriza-ção da vida começou com o sur-gimento do cartão de crédito no início dos anos 1950, mas tornou--se extremamente importante em nossa vida como meio de se viver: comprar mantimentos ou mesmo qualquer mercadoria, determinar as taxas de crédito [sic], tomar empréstimos, investir em si mesmo na educação, etc. O cartão de cré-dito é um método de pagamento baseado na promessa de pagamen-to. Crédito tornou-se um método de crédito rotativo e, em meados da década de 1960, tinha-se torna-do uma característica arraigada de nossas vidas. Na década de 1990 o cartão de crédito era um fenôme-no global e agora vemos os primei-ros passos rumo a cartões digitais. Claro que todos nós sabemos das consequências de não pagar a dí-vida, a qual, com juros elevados, pode levar à falência. É uma carac-terística necessária da sociedade de consumo. O cartão de crédito representa apenas um aspecto da financeirização. A financeirização é uma nova modalidade de subje-tividade que cria normas e valores que estruturam a nossa vida diária. Um aspecto dominante é seu ele-mento especulativo, onde cada vez mais os cidadãos comuns “jogam nos mercados.” Acabamos de ver as consequências disso com o mer-cado de ações interno chinês, onde a volatilidade levou a um declínio de US$ 3 trilhões em pouco mais

de três semanas. Cada vez mais, novos instrumentos financeiros são inventados, como o surgimento de derivativos financeiros.

Economia real e economia financeira

Tem-se uma ideia do poder des-ses sistemas ao se fazer uma com-paração entre a economia real pro-dutiva (cerca de US$ 70 trilhões de dólares na escala global) e o mer-cado de derivados financeiros (US$ 1,3 quatrilhão, cerca de 10 a 14 vezes mais que o PIB mundial). Ca-pital entra na esfera privada, que gira em torno de lucrar com finan-ças em vez de ativos ou de trabalho

próprio de cada um. Negociar títu-los lastreados em hipotecas leva à financeirização da casa. O risco torna-se um modo de ser, uma for-ma de cálculo diário, medido em termos de altos e baixos do mer-cado de ações ou [em termos] dos próprios fundos de pensões. Chega-mos a entender imóvel como inves-timento e uma forma de capital, ao invés de uma casa, e negociamos para cima ou para baixo. A dívida das famílias é delicadamente equi-librada conforme usamos débito e crédito como meio de prover edu-cação e aposentadoria futura.

IHU On-Line - A partir do concei-to de economia da dívida, como analisa a hegemonia da economia sobre a política em nosso tempo?

Michael Peters - Esta é uma questão importante, porque as obrigações de dívida internacio-nais, encargos, reestruturação, consolidação escapam das exigên-cias da democracia em nível mun-dial e conflitam com a vontade das pessoas em nível local. Bancos e agências internacionais de crédito, que atuam em concerto, interfe-rem com as estruturas democráti-cas nacionais, ignorando as pessoas e passando por cima de governos que tenham atrasado pagamentos.

Chipre

Por exemplo, a crise de Chipre estava fortemente relacionada a um tipo de capitalismo financeiro neoliberal que é cosmopolita, mas não democrático. A orientação de Bruxelas sempre tem visado o pac-to para o euro, que aponta o cami-nho para a austeridade fiscal insti-tucionalizada, dando prioridade ao pagamento das dívidas. Esses obje-tivos monetizados também ajudam a desestabilizar a negociação sala-rial coletiva e a promover cortes nos gastos públicos e nas pensões. Na crise espanhola, a estratégia de austeridade da União Europeia - UE mais parecia ser socorro [bailouts] para os bancos privados mediante garantias estatais para saldar a dívida para com credores estran-geiros, em detrimento de seus pró-prios recursos [estatais].

Esta é uma visão ético-política em que interesses financeiros têm conseguido uma espécie de aprisio-namento institucional com a fina-lidade de socializar as perdas de bancos privados. A política finan-ceira e os interesses que impelem o processo financeiro muitas vezes são implementados por organismos não diretamente eleitos pelos cida-dãos da UE, nem responsáveis pe-rante eles. O pacto de crescimento, o pacto para o euro e os diferentes memorandos de entendimento pa-recem sacrificar a soberania fiscal, necessariamente comprometendo também a possibilidade de qual-quer cosmopolitismo democrático. Esta é uma receita para agitação social com forte sentimento anti--UE entrar no discurso político do-

A financeiriza-ção é uma nova modalidade de subjetividade

que cria normas e valores que es-truturam a nos-

sa vida diária

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minante, acompanhada do desejo de autonomia econômica local. Isto certamente também pode ser analisado em termos de sentimen-tos cosmopolitas com componen-te ético-político, particularmente quando esses sentimentos popula-res acabam punindo a relação com o resto da Europa.

América Latina

Na América Latina, a crise da dí-vida na década de 1980 – a década perdida – também demonstrou o que acontece quando a dívida ex-terna excede a capacidade de ga-nho e a capacidade de pagamento da dívida. Eu gostaria de ouvir de estudiosos brasileiros se o enorme empréstimo estrangeiro utilizado para financiar a industrialização foi uma estratégia sensata. Essa dívi-da inchou por um fator de quatro em menos de uma década. Quanto eu saiba, as rendas caíram, o de-semprego aumentou, o crescimen-to estagnou e a inflação brasileira subiu para níveis perigosos. Hoje, a presidente Dilma Rousseff enfren-ta uma dívida externa cada vez maior, de quase US$ 350 bilhões, numa combinação de altas taxas de juros e uma taxa crescente de inflação, atualmente acima de 8%. Juntamente com a desaceleração na China (maior parceiro comercial do Brasil) e na Rússia, isso leva os críticos a reavaliar o potencial dos mercados emergentes, dos quais se esperava que “salvassem” o Oci-dente, e a refletir sobre o futuro papel dos BRICs.10

Nessas situações de crise finan-ceira, a democracia facilmente pode ser suspensa, revogada ou

10 Brics: Em economia, Brics é um acrônimo que se refere aos países membros fundadores de um grupo político de cooperação: Brasil, Rússia, Índia, China e à África do Sul. Os membros estão todos em um estágio similar de mercado emergente, devido ao seu desen-volvimento econômico. Apesar do grupo ain-da não ser um bloco econômico ou uma asso-ciação de comércio formal, como no caso da União Europeia, existem fortes indicadores de que os cinco países têm procurado formar uma aliança, e assim converter seu crescente poder econômico em uma maior influência geopolítica. Desde 2009, os líderes do gru-po realizam cúpulas anuais. (Nota da IHU On-Line)

podada com legislação de emer-gência. Quão robusta a democracia moderna é perante a finança inter-nacional é uma questão interes-sante, inclusive porque operam em diferentes ciclos de tempo: uma é instantânea, a outra reage num ci-clo eleitoral.

IHU On-Line - Que formas po-líticas e de resistência surgem a partir do cenário de desterrito-rialização da dívida?

Michael Peters - A resistência à dívida como movimento popular está aumentando em todo o mun-do, motivada pela prepotência, pela natureza fraudulenta de boa parte do sistema bancário interna-cional, e pela injustiça da dívida com seus cronogramas de amorti-zação. Por exemplo, a Rede Cidadã para Fiscalização da Dívida Inter-nacional – ICAN,11 com seu slogan “Não devemos – Não pagamos”, entende dívida como mecanismo central do sistema capitalista, que “representa uma ameaça para ati-vos monetários, mas também ba-seia seu crescimento no abuso da força de trabalho, da natureza, na violação dos direitos humanos, na conquista de países ‘em de-senvolvimento’ e na relegação do trabalho frustrante a determinados setores, com discriminação de gê-nero”. Trata-se de um movimento internacional antidívida e antiaus-

11 Saiba mais em http://www.citizen-audit.net/about-ican/. (Nota do entrevistado)

teridade. Existem muitos movi-mentos específicos, inclusive o mo-vimento antidívida-de-estudantes nos EUA, além de um número cada vez maior de movimentos interna-cionais que associam a questão da dívida a apelos por justiça social.12

IHU On-Line - Em que aspec-tos a recusa do pagamento das dívidas a países credores é uma forma de resistência contra um dispositivo de poder econômico? Nesse sentido, como analisa o caso da Grécia?

Michael Peters - A recusa em pagar a dívida era central para a estratégia da esquerda na Grécia. Um relatório recente do parlamen-to grego argumenta em termos inequívocos:

Todas as provas que apresen-tamos neste relatório mostram que a Grécia não só não tem a capacidade de pagar essa dívi-da, mas também não deve pa-gar essa dívida; em primeiro lu-gar, porque a dívida resultante do regime da Troika é uma vio-lação direta dos direitos huma-nos fundamentais dos morado-res da Grécia. Assim, chegamos à conclusão de que a Grécia não deve pagar essa dívida, porque é ilegal, ilegítima e odiosa.13

Muitos economistas têm argu-mentado sistematicamente que o alívio da dívida tem que ser uma parte importante da recuperação econômica da Grécia. A situação está muito fluida. Como se sabe, o primeiro-ministro Alexis Tsipras pediu novas eleições, a fim de de-belar a revolta em suas próprias fileiras e reforçar o apoio ao pro-grama de resgate. Muitos dentro de Syriza14 estão questionando sua meia-volta.

12 Veja, por exemplo, http://strikedebt.org/elbarzon/). (Nota do entrevistado)13 Saiba mais em http://www.infowars.com/greeks-refuse-to-pay-debt-declare-it--illegal-illegitimate-and-odious/. (Nota do entrevistado)14 SYRIZA: (Em português, Coligação da Esquerda Radical; em grego, Συνασπισμός Ριζοσπαστικής Αριστεράς, Synaspismós Ri-zospastikís Aristerás, abreviado SYRIZA) é um partido político de esquerda da Grécia,

Cada vez mais, novos instru-mentos finan-ceiros são in-

ventados, como o surgimento de derivativos

financeiros

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Resultado das eleições

Seja qual for o resultado das eleições, uma questão candente é a insustentabilidade da dívida gre-ga e sua incapacidade de pagar, o que sugere que o problema não vai desaparecer e que agora é estru-tural, no sentido de que ele não vai ser resolvido pelos resgates em curso. Infelizmente os abutres estão esperando para comprar ativos estatais gregos a preço de banana. Entretanto, os proble-mas da Grécia não são exclusivos – eles são parte de um problema maior de uma cultura financeira global emergente caracterizada por risco, incerteza, especulação e volatilidade, o que significa que, com a mesma rapidez com que um mercado cai, de repente pode subir novamente montado numa nova bolha. Volatilidade marca o mercado financeiro global, e suas consequências estão castigando a população local, que pode perder tudo muito rapidamente e só con-seguirá existir precariamente na marginalidade.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Michael Peters - Num artigo que escrevi alguns anos atrás, “The Cri-sis of Finance Capitalism and the Exhaustion of Neoliberalism” [“A Crise do Capitalismo Financeiro e o Esgotamento do Neoliberalismo”], relacionei o seguinte:

O colapso sistemático das insti-tuições financeiras globais é, em parte, resultado de uma série de

surgindo num momento de reestruturação da esquerda no mundo. Foi fundado em 2004 como uma aliança eleitoral de 13 partidos e organizações de esquerda, tendo como com-ponente principal o partido Synaspismós (Em português, Coligação de Movimentos de Esquerda e Ecológicos- SYN; em grego Συνασπισμός της Αριστεράς των Κινημάτων και της Οικολογίας, Synaspismos tis Aristerás tu Kinīmátōn kai tis Oikologías). Em maio de 2012, o SYRIZA apresentou-se como um único partido. Vitorioso na eleição de janei-ro de 2015, o líder do Syriza, Alexis Tsipras, foi empossado como primeiro-ministro para dirigir o novo governo da Grécia, viabilizando um governo de coalizão com o partido nacio-nalista conservador, Gregos Independentes. (Nota da IHU On-Line)

problemas inter-relacionados, que evidenciam as numerosas dimen-sões da crise do capitalismo finan-ceiro e o esgotamento do modelo neoliberal de desenvolvimento:

1. O fracasso e subsequente recapitalização, nacionaliza-ção ou resgate de grandes ban-cos, o que suscita uma era de “política de austeridade” na Europa;

2. O enorme crescimento do mercado global de derivativos e consequente expansão ex-cessiva dos sistemas bancários nacionais em comparação com a “economia produtiva”;

3. O aumento dos níveis insus-tentáveis de dívida soberana e nacional, resultando em se-questro [de bens de inadim-plentes] e políticas de flexibili-zação quantitativa nos Estados Unidos;

4. A tentativa feita de regula-mentar as estratégias de evasão fiscal por parte das empresas multinacionais;

5. A evasão fiscal por indi-víduos ricos num sistema de paraísos fiscais e trustes internacionais;

6. O excesso de bônus e ações preferenciais dadas aos CEOs, mesmo quando houve mau desempenho;

7. A forma como a UE (agindo junto com o Banco Central Eu-ropeu e o FMI) exerceu pressão fiscal e econômica considerável sobre os governos democrati-camente eleitos no sentido de mudar as políticas;

8. O rápido crescimento das novas tecnologias da infor-mação, que produz uma nova complexidade mundial de ne-gociação de alta frequência (HFT) a uma velocidade que escapa do controle eficaz ou regular das agências nacionais e regionais;

9. A perda de confiança e o de-salinhamento dos incentivos no âmago da cultura financeira dos mercados de ações;

10. A cultura fraudulenta e cri-minosa nos níveis mais altos da indústria financeira, onde se in-clui a manipulação deliberada da taxa de câmbio Libor, com poucas condenações penais, exceto para esquemas Ponzi e corretagem de insider.15

Posteriormente, escrevi um ar-tigo intitulado “Speed, Power and the Physics of Finance Capitalism” [“Velocidade, Potência e a Física do Capitalismo Financeiro”], onde observei:

A financeirização caracteriza a política do capitalismo neo-liberal tardio, permitindo-lhe extrair valor dos bens comuns: invadir a previdência social e o seguro-saúde, privatizar a edu-cação e infraestrutura, moneti-zar a medicina e o seguro mé-dico, hipotecar maciçamente a dívida dos estudantes, confiscar fundos dos depositantes, tirar recursos das empresas estatais. Estas todas são as formas de en-clausuramento [enclosure] que permitem uma pequena mas poderosa minoria saquear o bem comum, da mesma forma como essa elite global saqueou a riqueza pessoal da maioria via bolha imobiliária, com enorme queda nas posses de todas as famílias, exceto de muito, mui-to poucos. O capitalismo das fi-nanças impõe-se ao capitalismo industrial, mas o que se impõe ao capitalismo financeiro? Esta é a primeira crise planetária de tal magnitude global e está ligada intimamente a uma cri-se ecológica, social e de de-semprego mais ampla. Tanto a escala quanto a velocidade de seu desenvolvimento inexorável pode indicar que nada consegue salvar o sistema, e as coisas de-vem continuar assim até o co-lapso final inevitável.16 ■

15 http://www.infowars.com/greeks-refuse--to-pay-debt-declare-it-illegal-illegitimate--and-odious/. (Nota do entrevistado)16 http://www.truth-out.org/news/item/16960-speed-power-and-the-physics-of-finance-capitalism. (Nota do entrevistado)

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A antropotécnica que molda o indivíduo pela educaçãoPara Dora Lília Marín-Díaz, a crise de governamento se dá pela insatisfação com os modelos modernos que querem moldar o indivíduo como agentes úteis a um Estado

Por Márcia Junges e João Vitor Santos

A professora Dora Lília Marín- Díaz remonta à ideia de go-vernamento através de uma

espécie de ordenamento. “Os séculos XVII e XVIII estiveram marcados pela emergência de problemas de gover-no derivados, entre outros assuntos, da desregulação no crescimento da população. Isso levou ao aumento no número de pessoas que precisavam ser conduzidas para ajudar na consecução dos propósitos do Estado”, explica. Ou seja, fez-se necessário organizar e nor-matizar os indivíduos para solidificar o Estado. Assim, “essas vidas humanas se constituíram na ‘matéria-prima’ para que maquinarias modernas – a escola, o exército, os hospitais, os hospícios – e suas antropotécnicas específicas se encarregassem de produzir sujeitos go-vernáveis e úteis”.

É através dessa antropotécnica biopo-lítica que se dá a molduração do indi-víduo. “As disciplinas desenvolveram-se através de antropotécnicas concretas que possibilitaram a produção de se-res humanos – indivíduos – adequados e funcionais a um Estado que precisa ser forte política, militar e economi-camente”, completa Dora. O resultado são agentes normativos, que respondem a estímulos, mas operando dentro de um limite de governamento para servir a um Estado. Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a professo-ra analisa essa operação biopolítica no

espectro da educação. E, ainda, tensio-na a operação acerca de crises e seus limites. “A crise de governamentali-dade que vivemos hoje é associada ao que poderíamos descrever como uma insatisfação generalizada que tem sua expressão tanto na vida quotidiana dos indivíduos quanto nas formas de resis-tências e revoltas específicas e difusas sobre os mais variados temas e contra as mais variadas instituições e formas de governo”, completa.

Dora Lília Marín-Díaz é professora na Universidade Pedagógica Nacional, na Colômbia. Possui doutorado em Educa-ção pela Universidade Federal de Rio grande do Sul - UFRGS. Ainda é mestre em Educação pela UFRGS, especialista em Estudos Culturais pela Pontifícia Universidade Javeriana da Colômbia, especialista em Avaliação Educacional pela Universidade El Bosque.

No dia 23-09, às 14 horas, no Audi-tório Central, a professora apresenta a conferência Educação, indivíduo e biopolítica: a crise do governamento, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopo-lítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Prá-ticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o nexo que une a educação, o indivíduo e a biopolítica em nosso tempo?

Dora Lília Marín-Díaz - Trata--se de um nexo que definiria como

antropotécnico. Ele foi resultado de uma das primeiras estratégias biopolíticas que operou na consti-tuição da Modernidade: a política de crescimento demográfico, cujo propósito era o fortalecimento dos

Estados administrativos (absolutis-tas). Os séculos XVII e XVIII estive-ram marcados pela emergência de problemas de governo derivados, entre outros assuntos, da desre-gulação no crescimento da popu-

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lação. Isso levou ao aumento no número de pessoas que precisavam ser conduzidas para ajudar na con-secução dos propósitos do Estado.

Essas vidas humanas se constitu-íram na “matéria-prima” para que maquinarias modernas – a escola, o exército, os hospitais, os hospícios – e suas antropotécnicas específi-cas se encarregassem de produzir sujeitos governáveis e úteis. Con-tudo, a impossibilidade da regula-ção no crescimento da população fez com que o problema aumen-tasse e levou para importantes transformações nas estratégias de condução, que começaram a pro-curar cada vez mais o autogover-no dos indivíduos, um assunto que impactou as formas como vivemos até hoje.

Dispositivos disciplinares

As práticas e discursos associados à defesa e proteção da vida adqui-riram distintas ênfases e amplia-ram seu vocabulário e legislação nos dois últimos séculos. Contudo, não podemos esquecer que foi essa estratégia biopolítica – a política de crescimento demográfico – que motivou a emergência de disposi-tivos disciplinares. As disciplinas desenvolveram-se através de an-tropotécnicas concretas que possi-bilitaram a produção de seres hu-manos – indivíduos – adequados e funcionais a um Estado que precisa ser forte política, militar e econo-micamente. Os excedentes dessas disciplinas levaram ao desenvolvi-mento de discursos e práticas libe-

rais que, ainda com críticas fortes às instituições dessa primeira mo-dernidade, continuaram a deman-dar delas não só a produção de indivíduos governáveis, senão de indivíduos autogovernáveis.

A biopolítica desses séculos deu passo à configuração de antropo-técnicas disciplinares, produtoras de sujeitos modernos que começa-ram a se considerar unidades indi-viduais com identidades próprias. A educação agenciada principal-mente pela escola moderna – com suas técnicas de encerramento, vigilância e punição – chegou a ocupar um lugar central na sua produção.

IHU On-Line - A partir desse ce-nário, como podemos compreen-der a crise de governamento em curso?

Dora Lília Marín-Díaz - A “crise de governamento” ou, melhor ain-da, a “crise de governamentalida-de” que vivemos hoje é associada ao que poderíamos descrever como uma insatisfação generalizada que tem sua expressão tanto na vida quotidiana dos indivíduos quanto nas formas de resistências e re-voltas específicas e difusas sobre os mais variados temas e contra as mais variadas instituições e formas de governo. As grandes manifes-tações dos últimos anos – dos es-tudantes, na chamada “primavera árabe”1 e nos protestos dos ativis-

1Primavera Árabe: os protestos no mundo árabe ocorridos de 2010 a 2012 foram uma onda revolucionária de manifestações e pro-testos, compreendendo o Oriente Médio e o Norte da África. Houve revoluções na Tuní-

tas de Wall Street2, da sociedade civil no movimento dos Indignados em Madrid3 e em outras cidades eu-ropeias –, assim como as novas do-enças que se tornaram um tema de saúde pública e que se encontram relacionadas com temas da vida quotidiana – “procrastinação”4, “síndrome de Burnout”5 entre os

sia e no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria; grandes protestos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã e Iémen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauri-tânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saa-ra Ocidental. Os protestos têm compartilhado técnicas de resistência civil em campanhas sustentadas envolvendo greves, manifesta-ções, passeatas e comícios, bem como o uso das mídias sociais, como Facebook, Twitter e Youtube, para organizar, comunicar e sensi-bilizar a população e a comunidade interna-cional em face de tentativas de repressão e censura na Internet por partes dos Estados. (Nota da IHU On-Line)2 Occupy Wall Street (Ocupe Wall Stre-et): é um movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das em-presas - sobretudo do setor financeiro - no governo dos Estados Unidos. Iniciado em 17 de setembro de 2011, no Zuccotti Park, no distrito financeiro de Manhattan, na cidade de Nova York, o movimento ainda continua, denunciando a impunidade dos responsáveis e beneficiários da crise financeira mundial. Posteriormente surgiram outros movimentos Occupy por todo o mundo. As manifestações foram a princípio convocadas pela revista canadense Adbusters, inspirando-se nos movimentos árabes pela democracia, espe-cialmente nos protestos na Praça Tahrir, no Cairo, que resultaram na Revolução Egípcia de 2011. (Nota da IHU On-Line)3 15M: O Movimento 15M, também chama-do de “Movimiento de los indignados”, é um movimento popular formado na sequência da manifestação de 15 de maio de 2011 (organi-zada por diversos coletivos), quando depois que 40 pessoas decidiram acampar uma noi-te na Puerta del Sol espontaneamente, houve uma série de protestos pacíficos na Espanha. O objetivo foi promover uma democracia mais participativa longe do bipartidarismo e do domínio de bancos e corporações, bem como uma “verdadeira separação de poderes” e outras medidas destinadas a melhorar o sis-tema democrático. (Nota da IHU On-Line)4 Procrastinação: é o diferimento ou adia-mento de uma ação. Para a pessoa que está a procrastinar, isso resulta em estresse, sensa-ção de culpa, perda de produtividade e vergo-nha em relação aos outros, por não cumprir com a suas responsabilidades e compromis-sos. Embora a procrastinação seja conside-rada normal, torna-se um problema quando impede o funcionamento normal das ações. A procrastinação crônica pode ser um sinal de problemas psicológicos ou fisiológicos. (Nota da IHU On-Line)5 Síndrome de Burnout (do inglês to burn out, queimar por completo): é um distúrbio psíquico de caráter depressivo, precedido de esgotamento físico e mental intenso. Tam-

A moral hedonista, o narci- sismo, a liberalidade eviden-

ciam a impossibilidade de conduzir os novos para algum projeto coletivo

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professores, entre outras – são ex-pressões dessa insatisfação que também é possível perceber na produção de novas reflexões que atentam para melhorar as condi-ções de vida nas nossas sociedades.

No meio dessas preocupações emerge um renovado interesse por recuperar técnicas de cuidado de si antigas ou de outras culturas. Isso se evidencia na produção ampla e massiva de livros e materiais de autoajuda e, em geral, na procura por métodos e formas de exercícios individuais e coletivos que aju-dem a conseguir certo equilíbrio e tranquilidade como expressões do que muitos consideram como felicidade.

Fragilidade individual e coletiva e as crises

Hoje, assistimos ao questio-namento que as pessoas comuns fazem dos modos como são con-duzidas por outros, mas também das formas como se sentem com-pelidas a conduzir a si mesmas. Trata-se de questionamentos que emergem no meio de fatos sociais que mostram a fragilidade da vida individual e coletiva: as crises econômicas marcadas pela insta-bilidade das economias do mundo, a escassez de alimento, o aumen-to populacional, assim como pelos conflitos armados entre os dife-rentes países, seja pela posse do petróleo, seja pela posse da água, seja pela posse da terra, seja pela posse das armas nucleares. Tais fatos, junto a essa excessiva cen-tralidade do indivíduo, estão ge-rando a crise das instituições e das

bém é chamada de síndrome do esgotamento profissional, assim denominada pelo psica-nalista nova-iorquino Freudenberger, após constatá-la em si mesmo, no início dos anos 1970. A dedicação exagerada à atividade pro-fissional é uma característica marcante de Burnout, mas não a única. O desejo de ser o melhor e sempre demonstrar alto grau de desempenho é outra fase importante da sínd-rome. O portador de Burnout mede a autoe-stima pela capacidade de realização e sucesso profissional. O que tem início com satisfação e prazer termina quando esse desempenho não é reconhecido. Nesse estágio, a necessi-dade de se afirmar e o desejo de realização profissional se transformam em obstinação e compulsão. (Nota da IHU On-Line)

práticas que, nos últimos quatro séculos, marcaram os modos de praticar a vida coletiva nas socie-dades ocidentais.

Trata-se de uma crise de grande escala, que se estrutura entre dois pontos: os fatos históricos – esses acontecimentos que são seu pro-duto ou, ainda, que os produzem – e o narcisismo contemporâneo e a sua moral hedonista6. Eles fazem visível a impossibilidade de educar

hoje. A moral hedonista, o narci-sismo, a liberalidade evidenciam a impossibilidade de conduzir os no-vos por algum caminho ou para al-gum projeto coletivo. Além disso, é claro que o longo processo de indi-vidualização produziu as condições para uma crise de governamento que se expressa na excessiva cen-tralidade do ‘eu’ e na cada vez mais difícil possibilidade de viver junto com outros.

IHU On-Line - Quais são os ne-xos fundamentais entre os discur-sos educativos contemporâneos e práticas éticas e políticas?

6 Hedonismo (do grego hedonê, “prazer”, “vontade”): é uma teoria ou doutrina filosó-fico-moral que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana. Surgiu na Grécia, e seu mais célebre representante foi Aristipo de Cirene. O hedonismo filosófico moderno pro-cura fundamentar-se numa concepção mais ampla de prazer entendida como felicidade para o maior número de pessoas. (Nota da IHU On-Line)

Dora Lília Marín-Díaz - Continu-ando com o argumento que apre-sentei antes, poderíamos compre-ender que o nexo fundamental entre os discursos educativos con-temporâneos e as práticas éticas e políticas derivasse de uma relação que na modernidade articulou a condução de si mesmo – as práticas éticas– com a condução dos outros – as práticas políticas– através de antropotécnicas orientadas à ges-tão da vida. E isso pode ser perce-bido nos discursos educativos, na instituição escolar e nas técnicas disciplinares.

Hoje, as práticas éticas, as prá-ticas políticas e as estéticas – de relação como o mundo – encon-tram-se questionadas pela falta de um projeto coletivo que pudés-semos reconhecer e aceitar como um bem comum e no qual conse-guíssemos apostar nossos esforços educativos como humanidade. A sensação de uma grande crise na educação – nessa arte de governar moderna – deriva-se da ausência de fins educacionais e da impos-sibilidade de construí-los sem que isso seja considerado como um limitante da individualidade e da liberdade de alguém. As técnicas operadas sobre nós mesmos e so-bre os outros não só não se orien-tam por um telos comum, senão que diante do narcisismo extremo elas se definem segundo os inte-resses supostamente naturais dos sujeitos. É quase um naturalismo ingênuo que, entre outros, desco-nhece os importantes debates so-bre a diferença entre interesse e desejo, mas também sobre a forma como os interesses são criados e articulados a formas de condução específica, em particular, aquelas próprias de uma racionalidade de governo liberal que encontrou nas práticas de governamento neoli-beral as possibilidades para seu desbloqueio.

Autoridade em cheque

O hiperindividualismo contem-porâneo levou para uma crise na educação, entre outras coisas, pelo questionamento da autorida-de adulta – derivada de seu saber e

Hoje, as práticas éticas, as práti-

cas políticas e as estéticas encon-tram-se questio-nadas pela falta

de um projeto coletivo como

um bem comum

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da experiência acumulada – e con-fundida com autoritarismo. Esses processos tiveram seu correlato no abandono que muitos maiores fize-ram da tarefa de orientação, socia-lização, ensino e direção dos mais novos, entre outras coisas, porque também eles estão centrados em si mesmos e em atender seus desejos e interesses.

Nesse processo promoveram-se práticas inéditas de autoaprendi-zagem e autogoverno das crianças. O que os levou para decidirem so-bre muitos assuntos quotidianos da sua vida, passando a ser quase que uma nova espécie de adultos pe-quenos. O constrangimento sentido hoje pelos adultos diante da im-possibilidade e, em alguns casos, da obrigatoriedade de oferecer e conduzir a primeira socialização das crianças parece ser uma fonte desse sentimento de insatisfação, contrariedade e impaciência com respeito aos modos de vida e go-vernamento atuais.

IHU On-Line - Quais são os im-pactos nas práticas de si e na constituição da infância?

Dora Lília Marín-Díaz – O nexo entre os discursos educativos con-temporâneos e as práticas éticas e políticas que assinalei tem a ver com a articulação dessas práticas no desenvolvimento de antropo-técnicas concretas que serviram para a condução da vida. E que, ainda, encontraram expressão nos discursos educativos, na instituição escolar e nas técnicas disciplinares por elas desenvolvidas.

Antes de pensar nos impactos desse nexo nas práticas de si e na constituição da infância eu in-sistiria em dois assuntos: por uma parte, que esse nexo possibilitou a atualização de um conjunto de técnicas e exercícios de si, através das práticas pedagógicas. Nesse sentido, é importante reconhecer que a série exercitação-individu-alização-condução esteve no cen-tro da configuração dos modos de vida modernos e que, através dela, é possível descrever um phylum

técnico que levou as sociedades ocidentais da velha Arete7 grega à Paideia8 grega, e no encontro desta última com o pastorado hebraico, à Paideia cristã. O atrelamento do preceito formativo cristão e suas práticas de si – predominante nas formas de vida monacais (regimen) – às técnicas de dominação sobera-nas – ‘reinado’ (dominatio) – mar-cou o início da modernidade. Um momento no qual as práticas de

condução retomaram técnicas das práticas de si antigas e as ajusta-ram ao novo telos moderno, produ-zindo outras práticas de si.

7 Aretê (do grego ἀρετή aretê,ês, “adaptação perfeita, excelência, virtude”): é uma pala-vra de origem grega que expressa o conceito grego de excelência, ligado à noção de cum-primento do propósito ou da função a que o indivíduo se destina. No sentido grego, a vir-tude coincide com a realização da própria es-sência, e portanto a noção se estende a todos os seres vivos. (Nota da IHU On-Line)8 Paideia: refere-se ao sistema de educação e formação ética da cultura grega, que incluía temas como ginástica, gramática, retórica, música, matemática, geografia, história na-tural e filosofia, objetivando a formação de um cidadão perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um pa-pel positivo na sociedade. O conceito surgiu nos tempos homéricos e permaneceu em sua essência inalterado ao longo dos séculos, em-bora variando suas formas de aplicação e as disciplinas envolvidas, e continua a interes-sar muitos educadores e pensadores contem-porâneos. (Nota da IHU On-Line)

Por outra parte, esse nexo tam-bém teve expressão na configura-ção de modos específicos de ser sujeitos de governo e supôs a con-figuração de identidades não só em termos de raça, gênero, mas também de idade. A constituição da criança como sujeito infantil só pode ser entendida na estrei-ta tensão entre a intervenção dos adultos e a experiência de crian-ças, entre o que se pode nomear como a construção social de uma noção de infância e a experiência, não repetível, de cada indivíduo. A constituição da infância como su-jeito de governo foi determinada em boa medida pelas práticas es-colares e os discursos educativos ou de cuidado na família, aquelas que sustentaram a produção desses indivíduos governáveis ou autogo-vernáveis que precisava a institui-ção estatal. Nesse movimento, o desenvolvimento de práticas de si que implicavam a exercitação das crianças se associaram a discursos psicológicos sobre a constituição subjetiva da criança, em particu-lar, aqueles que procuravam ar-gumentos teóricos da psicanálise, para mostrar que no processo de escolarização e nos primeiros anos da vida dimensões importantes da relação do sujeito consigo e com os outros estão em jogo.

IHU On-Line - Por outro lado, em que medida as práticas gover-namentais se relacionam com as práticas pedagógicas e o que isso revela sobre o governamento dos sujeitos em nosso tempo?

Dora Lília Marín-Díaz – Eu falaria não tanto de uma relação entre as práticas pedagógicas e as práticas governamentais, mas do reconhe-cimento das práticas pedagógicas como práticas de governamento ou condução. Lembremos que os dis-cursos educativos aparecem forte-mente fundados em questões rela-cionadas com o acesso à verdade e com as transformações do sujeito. E, nesse sentido, eles se encontram vinculados ao conjunto de práticas de exercitação destinadas à modi-ficação dos sujeitos e à produção

Constituição da criança como sujeito infan-til só pode ser entendida na

estreita tensão entre interven-ção dos adultos e a experiência

de crianças

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de modos de vida específicos para sociedades e grupos humanos tam-bém específicos. Podemos pensar que as práticas pedagógicas, en-quanto ações reguladas destinadas à formação e à definição de modos de comportamento dos outros, po-dem ser consideradas como práti-cas de governamento (de condu-ção). É por isso que nessas práticas são incorporados e desenvolvidos exercícios destinados à transfor-mação do indivíduo, com o propó-sito de levá-lo a se enquadrar nos modos de vida de seu grupo social.

Reconhecer as práticas pedagógi-cas como práticas de governamen-to permite compreender quanto elas foram definitivas nos modos de praticar a vida dos indivíduos modernos. Se entre os séculos XVI e XVII tais práticas tiveram uma ênfase no ajuste e uso de antro-potécnicas disciplinares – daí a centralidade de discursos sobre a instrução e didática, assim como o aparecimento da máquina esco-lar –, nos séculos XVIII e XIX elas apostaram em uma ênfase liberal que encontrou nos discursos sobre a educação e na pedagogia um es-paço fértil para interpelar os mo-dos disciplinares predominantes na época e que apesar disso continu-aram a ser central nas formas de vida das sociedades contemporâ-neas. Essa centralidade é marcada pela defesa e excessiva importân-cia atribuída às práticas educacio-nais e de aprendizagem nos diver-sos cenários sociais.

IHU On-Line - A quem e a que interessa esse governamento dos sujeitos e, sobretudo, das crianças?

Dora Lília Marín-Díaz - Essa per-gunta é interessante no sentido que possibilita duas respostas que poderiam ser até opostas. A primei-ra resposta apontaria para afirmar que a todos nós interessa o gover-namento dos sujeitos, dos outros e de nós mesmos. Finalmente, esse foi o foco da racionalidade gover-namental moderna que orientou as práticas pedagógicas dos últimos séculos e que nos levou não só para

usar uma série de exercícios e prá-ticas de si para produzirmos como individualidades que espreitam na sua “interioridade” as capacida-des, os interesses e os desejos mais íntimos para conseguir o sucesso e a felicidade, mas também para acreditar que nesse processo se jo-gam as liberdades e os direitos de todos e cada um dos indivíduos.

A segunda resposta se orienta para afirmar que não há um “al-guém” ao qual interessa esse go-vernamento. Não há uma mão que promova o direcionamento para uma determinada forma de gover-namento dos sujeitos e, em parti-cular, das crianças. As formas de governamento que se organizaram na modernidade com suas técnicas e racionalidade específica foram o resultado de modos de vida práti-cos dos sujeitos e das coletivida-des. Essas formas de vida produ-ziram-se e atualizaram-se no meio de acontecimentos históricos, geográficos e sociais, assim como dos excedentes imprevistos no de-senvolvimento de um conjunto de operações biopolíticas e antropo-técnicas concretas desenvolvidas pelos humanos.

IHU On-Line - Que tipo de sujei-to é “desejável” a partir de tais práticas de governamento e qual é o lugar da resistência e da liber-dade nesse cenário?

Dora Lília Marín-Díaz – Neste ponto não sei mesmo se podería-mos falar num sujeito “desejável”,

produto do desenvolvimento de uma determinada forma de gover-namento. Contudo, como assinalei antes, o sentido e orientação que as práticas de condução tomaram, no decorrer dos quatro últimos séculos, produziram modos espe-cíficos de ser sujeito governado. Assim, se delimitar e fixar um “eu” foi o propósito das disciplinas e suas antropotécnicas em séculos anteriores, mudar e transformar esse “eu” é o propósito das formas de governamento contemporâneas com suas técnicas específicas.

Tal mudança de ênfase expres-sa um assunto relevante, pois ela foi fundamental na consolidação das formas de governamento atu-ais, aquelas que são reguladas pela concorrência no âmbito do mercado econômico e profissional. Em outras palavras, as formas de condução atual exigem a produ-ção de indivíduos, humanos que se consideram a si mesmos como agentes autônomos e empresários de si mesmos, indivíduos dispostos a se transformar e incrementar seu capital para alcançar a ascensão social e profissional, num mun-do regido pela economia e pelo mercado.

Na perspectiva dessa forma de governo atual, antes de pensar no lugar da resistência ou da liberda-de, pensaria em contracondutas, em outras formas de condução. Não se trataria de resistir ou opor--se ao desenvolvimento de uma de-terminada forma de governamen-to, ou de se opor a qualquer forma de condução e uma liberdade ple-na, mas sim de praticar outras for-mas de condução que mobilizam os nossos modos de vida. Assim, se hoje há um predomínio dos modos de governamento biopolíticos, de controle e gestão da vida individu-al, parece necessário o desenvolvi-mento de outras condutas que se orientam para práticas coletivas e de responsabilização social, outros modos de valoração e outros pre-ceitos éticos, estéticos e políticos onde o “eu” se apaga em função do bem comum e do tecido social.■

Parece neces-sário o desen-volvimento de

outras condutas que se orien-

tam para prá-ticas coletivas

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A liberdade pessoal, a liberdade do mundoEdgardo Castro debate como a nossa forma de exercitar a liberdade é também uma forma de produzir subjetividade e, consequentemente, verdade

Por Márcia Junges e Ricardo Machado| Tradução Rita Romio

Compreender a vida para além do fun-cionamento biológico é entendê-la dentro de um corpo que não se re-

duz ao que a epiderme cobre, mas vê-la como uma célula, uma micropartícula do corpo do Estado. A esta vivência dá-se, normalmente, o nome de biopolítica, um tipo de vida que, dependendo dos interesses das regras que im-põem nosso convívio, pode ser potencializada ou simplesmente abandonada. “O abandono da vida ou a produção da vida nua se dá por um enfraquecimento das instituições democráti-cas. Uma série de fatores contribui para isso: a prática de governar recorrendo a medidas de emergência, a subordinação do poder legisla-tivo ou judicial ao executivo, o não respeito (‘abasallamiento’) às minorias, a subordinação do Estado aos interesses econômicos e empre-sas, ou às finanças internacionais, os ataques contra a liberdade de expressão, etc.”, explica o professor e pesquisador Edgardo Castro, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Umas das principais intuições de Foucault que contribuiu para os estudos biopolíticos contemporâneos é de que não éramos somen-te seres viventes, mas também seres políticos, logo, produtores de subjetividades, cujos mo-dos de constituírem existência começam a ser estudados pelos gregos. A estas práticas, Fou-cault dá o nome de tecnologias de si. “No cora-ção dessas práticas de subjetividade se encon-tra a liberdade, entendida como possibilidade de agir em relação a si próprio e a outros. Se eu não posso agir sobre mim mesmo e sobre os que agem sobre mim, já não se trata, segundo nosso autor, de uma situação de governo, mas simplesmente de dominação”, avalia Edgar-do Castro. “Uma das formas fundamentais do exercício da liberdade é o discurso verdadeiro, ser capaz de dizer a verdade sobre mim e so-bre os outros. A obra de Foucault não se esgo-ta, portanto, na biopolítica, mas nos conduz, em última instância, para a relação entre a

prática da subjetividade-liberdade-verdade”, complementa.

Edgardo Castro é doutor em Filosofia pela Universidad de Friburgo, pesquisador do CONICET e professor da Universidad Nacional de San Martín. Tem trabalhado como professor em diversas universidades argentinas, e é pro-fessor convidado no Instituto Italiano di Scien-ze Umane de Nápoles, na Universidade Federal de Santa Catarina e na Universidad de Chile. Suas publicações versam sobre a filosofia con-temporânea, particularmente francesa e ita-liana. É um dos principais tradutores da obra de Giorgio Agamben ao espanhol. Entre seus livros, destacamos Pensar a Foucault (Buenos Aires: Biblos, 1995), Giorgio Agamben. Una ar-queología de la potencia (Buenos Aires: Unsam Edita, 2008) traduzido para o português sob o título Introdução a Agamben. Uma arqueolo-gia da potência (São Paulo: Autêntica, 2012) e Diccionario Foucault (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2012).

No livro O (Des)governo biopolítico da vida humana, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em 2011, foi publicado o artigo O poder e a vida nua: uma leitura biopolíti-ca de Giorgio Agamben, p.91 - 104. Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção. Entrevista especial com Edgardo Castro é pu-blicada nos Cadernos IHU em Formação, nº 45, disponível em http://bit.ly/1F93jwk.

No dia 22-09, às 10h45min, no Anfiteatro Pe. Werner, o professor apresenta a conferência Recepções da biopolítica foucaultiana: Agam-ben e Esposito, evento que integra a progra-mação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Edu-cação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade. Mais informa-ções em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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Uma das formas fundamen-tais do exercício da liberda-

de é o discurso verdadeiro, ser capaz de dizer a verdade so-

bre mim e sobre os outros

IHU On-Line - Quais são as re-cepções fundamentais da biopolí-tica foucaultiana em Agamben1 e Esposito2?

Edgardo Castro - Para compreen-der, a recepção da noção foucaul-tiana da biopolítica na filosofia ita-liana contemporânea e, sobretudo, em Giorgio Agamben e Roberto Esposito, é necessário ter em con-

1Giorgio Agamben (1942): filósofo italia-no. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do go-verno estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his-tória: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi-torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan-tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moder-na, disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU On-Line)2 Roberto Esposito: filósofo italiano, espe-cialista em filosofia moral e política. De sua vasta produção bibliográfica, citamos Pensie-ro vivente. Origine e attualità della filosofia italiana (2010), Bios. Biopolitica e filosofia (2008), L’origine della politica. Hannah Arendt o Simone Weil? (1996). (Nota da IHU On-Line)

ta os matizes que esta noção tem no próprio Foucault.3 De fato, em Foucault, há um núcleo conceitual de ideias sobre a biopolítica, abor-dado a partir de diferentes pers-pectivas. Em relação a este núcleo conceitual, quando Foucault fala da biopolítica, ele o faz para se re-ferir ao governo de vida biológica da população.

Entretanto, este governo da vida biológica da população tem sido abordado, pelo próprio Foucault, a partir de diferentes perspectivas: a medicina, o direito, a guerra e a economia. Assim, ao lidar com a noção da biopolítica a partir da perspectiva do direito e da guerra, Foucault se encontra com as ques-tões do racismo e os extermínios nazista e soviético. Quando aborda a questão da biopolítica a partir da perspectiva econômica, em contra-partida, encontra-se com os temas do liberalismo e do neoliberalismo. Em relação à perspectiva aberta

3 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em Formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)

pela medicina moderna, está pre-sente nas duas abordagens anterio-res, porque a biopolítica refere-se, precisamente, à vida biológica da população.

Agamben

Esquematicamente pode-se di-zer que, num primeiro momento, Agamben privilegiou a perspectiva do direito e, num segundo momen-to, a da economia. Encontramo--nos assim com o seu Homo sacer. Il potere sovrano e a nuda vita (Ei-naudi: Torino, 1995), e alguns anos mais tarde, com Il Regno e a Glória (Torino: Bollati Boringhieri, 2007).

Esposito

Quanto a Roberto Esposito, seu trabalho centrou-se, desde o iní-cio, na perspectiva aberta pela medicina moderna e, em parti-cular, no conceito de imunidade, ou seja, nas projeções filosóficas conceituais de uma ação que, para afirmar a vida, recorre a doses, em princípio não letais, de morte. Em princípio, portanto, precisamente estas doses podem se tornar letais e a biopolítica tornar-se tanatopo-lítica, a política de vida em políti-ca de morte.

IHU On-Line - Quais são as li-nhas mestras que Agamben e Esposito traçam sobre a biopolí-tica e em que diferem entre si, fundamentalmente?

Edgardo Castro - A primeira coi-sa que deve ser dita é que nem em Agamben, nem em Esposito, en-contramos uma única linha que se tenha mantido inalterada. É neces-sário notar que se trata de pesqui-sas que ambos os autores começa-ram há cerca de vinte anos, e que as mesmas continuam o seu curso.

No entanto, no caso de Agam-ben, seu trabalho parte, como te-mos salientado, de um enfoque da biopolítica a partir da perspectiva do direito e, em seguida, adicio-na um outro ângulo de análise, a economia. Desta forma, em um primeiro momento, Agamben bus-ca interpretar e, ao mesmo tempo,

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completar a análise foucaultiana fazendo uso da noção schmittiana de estado de exceção.4 A vida que está em jogo na biopolítica, en-tão, é aquela que é capturada pelo dispositivo da exceção soberana: vida exposta à morte violenta, a partir da qual se pode dispor sem estar submetida às leis dos deuses ou dos homens. O paradigma des-ta relação entre poder soberano e a vida nua é o que encontramos nos campos de concentração e de extermínio.

Posteriormente Agamben muda-rá sua análise em relação ao go-verno da vida no que se relaciona ao econômico. A noção de Glória e a de vida inoperosa ou, simples-mente, inoperosidade ocuparão o lugar dos conceitos de estado de exceção e vida nua. A noção de Glória, de origem teológica, refere-se ao aspecto celebrativo e festivo do poder: hinos de lou-vor, ação de graças, etc. Tradicio-nalmente, na teologia cristã, esta era a tarefa atribuída aos anjos, ou seja, dar graças a Deus, louvar seu poder, celebrar a sua Glória. E esta será também a tarefa dos santos, isto é, daqueles que, no final da história, estarão entre os eleitos e serão ressuscitados para a eternidade. Eles já não terão nada para fazer num sentido his-tórico, já que a história está com-pleta; mas, noutro sentido, eles têm uma tarefa, a de celebrar a Glória divina, com os anjos. Trata-se, portanto, de uma tare-fa eterna, que não é uma tarefa histórica, uma vez que tudo está concluído. A noção de inoperosi-dade, uma tarefa que não é uma tarefa, remete a esta concepção teológica daqueles que alcança-ram a salvação.

4 Estado de Exceção (São Paulo: Boitem-po, 2005) é uma reconstrução histórica e uma análise da lógica e da teoria por trás da sua evolução e conseqüências, de Hitler aos pri-sioneiros de Guantánamo. Para isso o Agam-ben destrincha o pensamento de Carl Schi-mitt (autor alemão, contemporâneo de Wal-ter Benjamin, com quem polemizou) e seus estudos sobre ditaduras; filósofos e teóricos do direito; e as mudanças nas constituições européias e norte-americanas que levaram a instituição do estado de exceção como para-digma (Nota da IHU On-Line).

Espetáculo do poder

Para Agamben, a teologia é, por-tanto, essencialmente um labora-tório conceitual para, a partir do qual, pensar não noutro mundo, mas neste. Com isso ele utilizou o conceito de Glória para pensar o aspecto comemorativo dos po-deres do mundo, da liturgia que envolve o Estado e os governan-tes. Este aspecto comemorativo do poder é encontrado nos dias de hoje, de acordo com o nosso autor, na dimensão política dos meios de comunicação de massa. As nossas democracias modernas se alimen-tam, para o seu funcionamento, do espetáculo do poder.

No que diz respeito à noção de inoperosidade, Agamben a aborda a partir da doutrina da potência elaborada por Aristóteles.5 Inope-roso é aquilo que poderia ser feito, mas não é realizado. Um pianista, por exemplo, pode tocar um piano, tem a capacidade de fazê-lo – Aris-tóteles diria que isto seria a potên-cia de fazê-lo –, mesmo quando, na verdade, não está tocando o piano.

5 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por um lado, ori-ginais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou significativas contribuições para o pensa-mento humano, destacando-se nos campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

Esta capacidade, que não se esgota na ação, é o que define a dimensão inoperosa da vida humana.

Na obra de Agamben, assim nos encontramos com duas séries: es-tado de exceção–vida nua e Glória–inoperosidade. A segunda série não muda a primeira, pelo contrário, ambas descrevem os dois meca-nismos da máquina governamental do Ocidente, ou seja, o poder so-berano e o governo econômico dos homens.

Para além das possíveis abor-dagens, Roberto Esposito seguiu outro caminho. Como dissemos, a sua interpretação da biopolítica foucaultiana é apoiada, num pri-meiro momento, no conceito de imunidade. Aqui, como também já foi assinalado, não é o modelo jurídico que orienta a sua interpre-tação, mas o modelo médico. Nes-te campo, com efeito, se fala de imunidade ou, mais propriamente, de imunização, para referir-se, por exemplo, à operação de introduzir num organismo uma dose não letal de um determinado vírus. É o que ocorre nos processos de vacinação.

Imunização

Duas observações são necessá-rias. Em primeiro lugar, a imuniza-ção ou imunidade, como se queira preferir, torna-se, assim, um mo-delo conceitual para compreender a relação entre as políticas da vida, da biopolítica afirmativa, e as polí-ticas de morte, a tanatopolítica. Mas a verdade é que ela serve ao autor para pensar também o que faz a comunidade ser uma comu-nidade, isto é, a presença de um munus (termo latino que expres-sa, entre outras coisas, a ideia da obrigação de um dom, ou seja, as funções realizadas por um indiví-duo). A imunidade (immunitas, em latim) e a comunidade (communi-tas) partilham, segundo Esposito, esse núcleo semântico expresso a partir do termo munus. Em segun-do lugar, o registro médico que de algum modo predomina na obra de Esposito dedicada à comunidade e à imunidade, não se esgota, no entanto, às possibilidades herme-

O abandono da vida ou a produ-ção da vida nua se dá por um en-fraquecimento das instituições

democráticas

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nêuticas que o termo “imunidade” possui. De fato, a imunidade tem sido, também, um dos conceitos relevantes no âmbito da aplicação da lei. Esposito, na verdade, não deixa de explorar as relações entre estes diferentes registros.

No entanto, em seus trabalhos mais recentes, este autor intro-duziu como eixo da sua reflexão conceitos em terceira pessoa e no impessoal (nem eu nem você). Seu referencial teórico tem sido o de desconstruir as formas dominantes de abordar as relações entre o po-der político e a vida humana. A no-ção de pessoa é, com efeito, o que permitiu essa articulação. Basta pensar os debates contemporâneos sobre o início e o fim da vida.

Diferenças

Certamente, existem muitos pontos de contato entre o traba-lho de Agamben e de Esposito; mas as diferenças não são poucas, e seria injusto, no que diz respeito a ambos, reuni-los de forma sim-plificada, sob um rótulo comum. Entre essas diferenças, para as-sinalar uma das mais relevantes, é o uso dos conceitos da teologia para pensar sobre os caminhos da política. Trata-se, como sabemos, de um procedimento interpretativo denominado teologia política, que remonta muito além dos autores em causa. O conceito de seculari-zação (como passar de conceitos teológicos ou instituições reli-giosas, respectivamente, para os conceitos políticos e econômicos e instituições modernas) tem sido o conceito central dessa maneira de pensar. Os nomes de Max Weber6 e

6 Max Weber (1864-1920): sociólogo ale-mão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conheci-das e importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edi-ção, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois, disponível para download em http://bit.ly/ihuon101. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em For-mação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/ihuem03. Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a confe-

Carl Schmitt7 ilustram claramente esta posição. Voltando aos nossos autores e suas diferenças, eu diria que na obra de Agamben de Homo sacer para Il Regno e a Gloria, com as contribuições originais do autor, este modo de pensar permanece em vigor. No caso de Esposito, no

entanto, as suas obras, especial-mente as mais recentes, como Due. La macchina de la teología política e il posto del pensiero (Einaudi: Torino, 2013), movem-se numa direção inversa.

IHU On-Line - No caso de Agam-ben, ele introduz o conceito de vida nua a partir de sua compre-ensão da biopolítica. Em que as-pectos as democracias do Ociden-te não cessam, paradoxalmente, de produzir essa vida nua?

rência de encerramento do I Ciclo de Estu-dos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o ca-pitalismo. (Nota da IHU On-Line)7 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filóso-fo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos (porém também um dos mais controversos) especialistas em direito constitucional e in-ternacional da Alemanha do século XX. A sua carreira foi maculada pela sua proximidade com o regime nacional-socialista. Entre ou-tros, é autor de Teologia política (Politische Theologie), tradução de Elisete Antoniuk, Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2006 e “O Le-viatã na Teoria do Estado de Thomas Hob-bes”. Trad. Cristiana Filizola e João C. Galvão Junior. In GALVÃO JR. J.C. “Leviathan ci-bernetico” Rio de Janeiro: NPL, 2008. (Nota da IHU On-Line)

Edgardo Castro - O conceito de vida nua (nuda vita) utilizada por Agamben em 1995, no Homo sa-cer, remete, como foi observado, à vida capturada no dispositivo ju-rídico e da biopolítica do estado de exceção.

Há dois aspectos a considerar estritamente para entender esta noção. Trata-se de uma vida que por lei é fora da lei. Por exemplo, quando se decreta o estado de ex-ceção, ou quando se definem de-cretos e decretos-leis de necessi-dade e urgência. A vida está fora da lei pelo próprio mecanismo da lei. Através deste mecanismo pos-so descartá-la, destruí-la, ou seja, cometer homicídio.

A partir desta ideia, tomada como Agamben faz, em sentido estrito, tem sido desenvolvido, es-pecialmente nos seus leitores, um conceito de vida nua mais amplo, que poderíamos descrever nestes termos: trata-se de uma vida da qual se pode dispor, a ponto de aniquilar, mesmo se não foi for-malmente declarado um estado de emergência ou estabelecidos decretos de necessidade e de ur-gência. Poderíamos falar, então, de um estado de emergência de fato e não de direito, com todas as difi-culdades teóricas que um conceito deste tipo implica.

Deixar morrer

Assim, poderíamos falar de vida nua quando (retomando uma ex-pressão clássica de Foucault) se deixa a vida morrer, porque não é protegida pela legislação ou, se for, porque essas leis de fato não se aplicam.

Então, a vida está numa situação de vida nua, estritamente falando, quando o estado de emergência é decretado, ou leis de necessida-des e urgências são definidas e, num sentido mais amplo, quando a vida torna-se desprotegida, ex-posta à morte, porque ficou des-protegida na forma jurídica, social e econômica. Neste segundo senti-do, podemos falar não apenas de um abandono legal (abandono é o termo técnico que Agamben utili-

A vida está numa situação

de vida nua, estritamente

falando, quan-do o estado de emergência é

decretado

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za para referir-se à vida capturada nos mecanismos de emergência so-berana), mas também de um aban-dono político e econômico da vida.

O abandono da vida ou a pro-dução da vida nua se dá por um enfraquecimento das instituições democráticas. Uma série de fato-res contribui para isso: a prática de governar recorrendo a medidas de emergência, a subordinação do po-der legislativo ou judicial ao exe-cutivo, o não respeito (‘abasalla-miento’) às minorias (não somente étnica ou pelo seu estatuto social, inclusive minorias relacionadas a dissidentes políticos), a subordina-ção do Estado aos interesses eco-nômicos e empresas, ou às finanças internacionais, os ataques contra a liberdade de expressão, etc.

IHU On-Line - Em que medida a filosofia de Foucault ajuda a des-vendar os saberes e práticas na constituição dos sujeitos na con-temporaneidade? Que formas de vida surgem como potencializa-doras e como linhas de fuga para um exercício da autonomia e da subjetividade?

Edgardo Castro - É uma pergun-ta muito interessante. Temos fala-do muito de Agamben e de Espo-sito como continuadores da obra de Michel Foucault, mas devemos dizer que em Foucault, o concei-to de biopolítica tem outras nuan-ces. Muito resumidamente, eu di-ria que, para Foucault, o conceito de biopolítica não é nem original, nem necessariamente um conceito negativo, mas positivo. De fato, num primeiro momento, Foucault introduz este conceito não para mencionar os campos de concen-tração ou de extermínios do século

XX, mas para abordar os direitos modernos de saúde e o processo de medicalização da vida biológica da população no século XVIII. Em suma, eu diria que o conceito de biopolítica de Foucault se refere aos processos de modernização da vida biológica da espécie humana ou, em todo caso, da população.

Para pensar estes processos, Foucault desenvolveu uma série de instrumentos conceituais, es-pecialmente o dispositivo de segu-rança, ou seja, formas de exercício do poder que têm como campo de aplicação processos que só podem ser compreendidos em termos agregados, estatísticos, e para os quais somente se pode agir enquan-to conjunto. A biopolítica, pois, ao contrário de disciplinas, centra-se não sobre indivíduos, mas sobre a população.

Governamentalidade

No entanto, é interessante notar que, ao estudar o problema da bio-política, Foucault redescobre, por assim dizer, o conceito de governo ou, de acordo com um neologismo que introduz, de governamentali-dade. É interessante sublinhar que, seguindo este caminho, o governo do povo, Foucault abrirá toda uma perspectiva de análise sobre a sub-jetividade, precisamente, a partir do conceito de governo. Seus últi-mos cursos no Collège de France têm como título “O governo de si e dos outros”.

Estudando as formas de auto-governo nos gregos e romanos, Foucault vai se concentrar em noções relacionadas a técnicas ou tecnologias de si, parrésia (dizer verdadeiro), etc. Assim, estudará o conjunto dos modos de fazer e dizer que constituem o que ele chama de práticas de subjetividade, ou seja, os modos de tornar-se sujeito. No coração dessas práticas de subjetividade se encontra a liberdade, entendi-da como possibilidade de agir em relação a si próprio e a outros. Se eu não posso agir sobre mim mesmo e sobre os que agem so-bre mim, já não se trata, segundo nosso autor, de uma situação de governo, mas simplesmente de dominação. Uma das formas fun-damentais do exercício da liber-dade é o discurso verdadeiro, ser capaz de dizer a verdade sobre mim e sobre os outros. A obra de Foucault não se esgota, portanto, na biopolítica, mas nos conduz, em última instância, para a rela-ção entre a prática da subjetivi-dade-liberdade-verdade. ■

Este governo da vida biológica da população

tem sido aborda-do, pelo próprio Foucault, a par-tir de diferentes perspectivas: a medicina, o di-reito, a guerra e a economia

LEIA MAIS... — Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção. Entrevista especial com Edgardo Castro publicada na revista IHU On-Line, nº 343, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/1aqgaVL;

— Totalitarismos e democracia e seu nexo político em Agamben. Entrevista especial com Ed-gardo Castro publicada na revista IHU On-Line, nº 420, 27-05-2013, disponível em http://bit.ly/1FzqkUd.

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Biopolítica e biologia, hélices do DNA contemporâneoBenilton Bezerra Junior analisa a forma pela qual a biologia acaba permeando grande parte dos espaços de experiência humana

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

O pano de fundo da contempo-raneidade com suas inúmeras possibilidades técnicas tor-

nou os tentáculos da biologia braços invisíveis, impactando quase todos os espaços de convivência. “Não há pra-ticamente nenhum campo da experi-ência humana sobre o qual a biologia não tenha lançado seus tentáculos, produzindo saberes, discursos, e práti-cas que inundam nossa vida cotidiana, explicando, modulando e apontando caminhos em quase tudo que vive-mos: sintomas psíquicos, identidades socioculturais, decisões econômicas, experiências místicas, preferências es-téticas e políticas, saúde, bem-estar”, defende Benilton Bezerra Junior, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O impacto das biotecnologias na vida cotidiana se acelera numa veloci-dade impressionante, e isso é um pro-cesso sem volta”, destaca o professor. Nesse sentido, ele traz os exemplos das interfaces corpo-máquina, que, por um lado, ampliam as informações que temos sobre os nossos corpos, do pré-natal ao diagnóstico de tumores, e, de outro, aumentam a possibilidade de vigilância, ou seja, “controle per-manente sobre os indivíduos por parte do Estado e das corporações econômi-cas, novas possibilidades de padroniza-ção e hierarquização (agora com base em referentes de natureza biológica), formas insólitas de violência e, claro, mercados surpreendentes com a for-ça imperativa que sua lógica exibe”, complementa.

Benilton Bezerra Junior é graduado em Direito e em Medicina, mestre em Medicina Social e doutor em Saúde Co-

letiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente, é membro do Instituto Franco Basaglia, atua como docente adjunto do Progra-ma de Pós-Graduação em Saúde Cole-tiva, e é pesquisador do Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujei-to - PEPAS, da UERJ.

Benilton Bezerra Junior participou do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades cujas conferências foram publicadas no livro O Futuro da Autonomia: Uma Socieda-de de Indivíduos? (São Leopoldo – Rio de Janeiro: Editora Unisinos – Editora PUC-Rio, 2009) no qual foi publicado a conferência Retraimento da auto-nomia e patologia da ação: a distimia como sintoma social.

É autor, entre outras obras, de A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea (Rio de Janeiro: Ga-ramond Universitária, 2014) e Freud e as neurociências: o Projeto para uma psicologia científica (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013).

No dia 21-09, às 20 horas, no Anfite-atro Pe. Werner, o professor apresenta a conferência Biopolítica, formas de vida e psicopatologia na atualidade, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Co-lóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopo-lítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Con-temporaneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line - Quais são as prin-cipais expressões da captura bio-política na atualidade?

Benilton Bezerra Junior - Bio-política foi o termo usado por Fou-cault para dar conta das mudanças ocorridas no exercício do poder na virada do século XIX para o sécu-lo XX, que ultrapassa as práticas disciplinares sobre os indivíduos tomados isoladamente e se volta para a população, para o conjunto de indivíduos. E faz isso não pelo uso da coerção ou da força, mas por meio do conhecimento deta-lhado das características e necessi-dade da população de modo a pro-mover, proteger e regular aspectos ligados à vida dos cidadãos. A ges-tão da saúde, da alimentação, da sexualidade, das relações raciais, da natalidade e da mortalidade, dos hábitos e estilos de vida, etc.

Ao longo do século XX esse pro-cesso se expandiu e alguns fatores contribuíram para isso. Por exem-plo, a revolução espetacular no conhecimento biológico se tradu-ziu não apenas na multiplicação de biotecnologias de regulação, reparação e transformação de fe-nômenos ligados à vida, mas tam-bém na transformação do lugar das ciências da vida no imaginário te-órico, político e social atual. Não há praticamente nenhum campo da experiência humana sobre o qual a biologia não tenha lançado seus tentáculos, produzindo saberes, discursos e práticas que inundam nossa vida cotidiana, explicando, modulando e apontando caminhos em quase tudo que vivemos: sin-

tomas psíquicos, identidades so-cioculturais, decisões econômicas, experiências místicas, preferên-cias estéticas e políticas, saúde, bem-estar, etc. A compreensão, a gestão, as disputas identitárias, as formas de governabilidade, mui-to de tudo isso se move contra o pano de fundo de uma biopolítica que foi se tornando simplesmente parte da paisagem, parte daquilo que o mundo é – aos nossos olhos mais distraídos. Por isso, falar em captura é interessante, porque de certo modo podemos dizer que um dos desafios atuais é justamente compreender a complexidade e as ambiguidades e contradições desse processo, para poder pensarmos e agirmos de maneira crítica nesse cenário.

IHU On-Line - Em que medida o conceito de biopolítica pode nos ajudar a entender a relação entre as formas de vida e a psicopatolo-gia em nosso tempo?

Benilton Bezerra Junior - Uma das características de nossa cul-tura atual é maciça presença, em nosso imaginário cultural, de des-crições biológicas e neurocientífi-cas, muitas delas fortemente re-ducionistas, acerca das múltiplas variedades da experiência huma-na. Isso inclui as formas de nomear, descrever, explicar e tratar qual-quer tipo de sofrimento que expe-rimentamos. Ora, como dizem os budistas, viver é sofrimento. Não por alguma maldição qualquer, mas pelo simples fato de que prazer e sofrimento, alegria e tristeza, sa-tisfação e insatisfação são partes

necessariamente complementares da experiência de sermos seres autoconscientes.

Todos os mitos, todas as reli-giões, todas as formas de cuidado e cultivo de si têm em seu centro essa premissa (que Freud1 trou-xe para o centro de sua visão do humano, quando escreveu sobre o mal-estar na cultura): o mal-es-tar, a dor de existir, que decorre de nossa autoconsciência, é uma experiência universal, antropo-logicamente invariante. Quando imaginamos seres humanos sem isso (pense nos indivíduos na so-ciedade do romance Admirável Mundo Novo (Porto Alegre: Editora Globo, 1979), de Huxley,2 em que os humanos se livram completa-mente da angústia e do mal-estar pelo consumo da droga total, o soma). São seres estranhíssimos, com os quais não temos nenhuma empatia. Não à toa, apesar de fa-lar de um mundo sem guerras, sem miséria, sem violência, sem fome, etc., é uma distopia, um pesade-

1 Sigmund Freud (1856-1939): neurologis-ta, fundador da psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé-todo a hipnose, estudou pessoas que apresen-tavam esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas pulsões, foi influen-ciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se bases da psicanálise. Freud nos trouxe a ideia de que somos movi-dos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes foram contro-versos na Viena do século XIX, e continuam ainda muito debatidos hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a religião, disponível em http://bit.ly/ihuon207. A edi-ção 16 dos Cadernos IHU em formação tem como título Quer entender a modernida-de? Freud explica, disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line)2 Aldous Huxley (Aldous Leonard Hu-xley) (1894-1963): romancista inglês. Viveu a maior parte dos anos 1920 na Itália fascista de Mussolini, que inspirou parte dos sistemas autoritários retratados em suas obras. Hux-ley produziu um total de 47 livros, dentre os quais a obra-prima Admirável Mundo Novo. (São Paulo: Globo, 2004), escrita em 1931. Os temas nela abordados remontam gran-de parte de suas preocupações ideológicas como a liberdade individual em detrimento do autoritarismo do Estado. (Nota da IHU On-Line)

Não há praticamente nenhum campo da experiência humana

sobre o qual a biologia não tenha lançado seus tentáculos

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lo. Agora pense nos androides do filme Blade Runner, baseado num conto de Phillip K. Dick.3 Lá vemos o oposto: robôs que, não se sabe como, passam a sofrer das angús-tias humanas em torno da identi-dade, do sentido da existência, do assombro com a morte. De forma não prevista pelos seus constru-tores, eles experimentam o mal--estar que conhecemos. E por isso é fácil compreender aquilo pelo qual estão passando.

Dor existencial

Há, portanto, uma dor de exis-tir que faz parte essencial daqui-lo que somos, e a humanidade sempre produziu estratégias des-critivas para dar conta dela, para dar-lhe um sentido e um destino. Nenhum mito ou religião jamais supôs dar um fim a ela, suprimi-la de vez, preveni-la. Mas na cultu-ra atual podemos entrever alguns fatores que tendem a transformar o que é um traço antropológico crucial em algo a ser nomeado, descrito e tratado como um pro-blema, uma desordem, um trans-torno a ser tratado e superado. A forte presença do reducionis-mo em descrições biológicas da vida mental, a valorização cada vez mais extremada da criação de “diagnósticos” para identifi-car e gerir experiências e com-portamentos, a presença de uma indústria da saúde cada vez mais poderosa e rica em conselhos, re-gras, serviços e produtos, e uma cultura que valoriza de maneira tirânica a performance corporal, mental e social otimizadas – tudo isso faz parte do cenário comple-xo atual, que o conceito de bio-política ajudar a destrinchar.

3 Philip Kindred Dick ou Philip K. Dick (1928-1982): também conhecido pelas iniciais PKD, foi um escritor americano de ficção científica que alterou profundamente este género literário. Apesar de ter tido pou-co reconhecimento em vida, a adaptação de vários dos seus romances ao cinema acabou por tornar a sua obra conhecida de um vasto público, sendo aclamado tanto pelo público como pela crítica. (Nota da IHU On-Line)

IHU On-Line - Que formas de vida surgem como potencializa-doras e como linhas de fuga para um exercício da autonomia e da subjetividade?

Benilton Bezerra Junior - Há alguns campos da convivência hu-mana hoje nas quais questões que dizem respeito ao corpo, e a for-mas de vida em que a corporeida-

de tem uma função organizadora central, abrem caminho para uma ação política fundada na valoriza-ção da autonomia, e no exercício de uma subjetividade que põe em discussão formas hegemônicas de normatização e controle da vida. Penso agora em dois exemplos, o campo da militância das pessoas com deficiência e o campo da luta pelos direitos ligados à diversidade sexual e de gênero.

Crítica aos modelos médico-biológicos

Um dos aspectos centrais de am-bos os movimentos que agitam es-ses campos é justamente a crítica aos modelos médico-biológicos e às políticas conservadoras que bus-cam normatizar, controlar, e even-tualmente excluir múltiplas formas de experiência da diversidade (fí-sica, funcional, psicológica) e o exercício de autonomia de pessoas que fogem aos padrões de normali-dade tradicionalmente instituídos. Com o surgimento do modelo so-

cial da deficiência instituído pelo movimento pelos disability rights, a deficiência deixou de ser defi-nida pelo fato de alguém possuir uma lesão ou limitação qualquer (impairment), e passou a ser per-cebida como uma experiência de deficiência, provocada fundamen-talmente por um meio que é hostil, porque indiferente às necessidade específicas dessas pessoas. O que antes era um problema do indiví-duo passou a ser uma questão so-cial, cultural, ética, tecnológica, enfim, um problema de natureza política: como devemos organizar os espaços e as regras de convivên-cia de modo a ampliar a autonomia que todo indivíduo, nas condições que lhe são próprias, pode e deve ser capaz de exercitar.

Sexualidade

De modo semelhante, a afirma-ção de que sexo biológico, identi-dade e gênero e orientação sexual podem ser combinadas das mais variadas e surpreendentes formas, assumida e promovida pelos movi-mentos de defesa da diversidade sexual e de gênero, arrancou das mãos da medicina e da biologia a autoridade final quanto à definição das fronteiras entre o prescrito e o proscrito, entre o legítimo e o ilegítimo, publicizando e politi-zando o debate em torno dessas questões – sempre na direção da resistência e problematização das formas de controle normativo dos padrões imperativos tradicionais. Nos dois exemplos citados, boa parte dos argumentos se apoiam na definição da diversidade e da normatividade como traços essen-ciais ao fenômeno vital, biológico e mental, e que se expressam sem-pre de forma singular a cada indi-víduo. Ou seja, creio que são dois exemplos de como o discurso que toma a vida como centro da ação política pode abrir caminhos muito interessantes.

IHU On-Line - Quais são as prin-cipais lutas e resistências que

O impacto das biotecnologias

na vida cotidia-na se acelera

numa velocidade impressionante, e isso é um pro-cesso sem volta

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se colocam em nosso cotidiano frente ao aprofundamento do go-verno biopolítico a que estamos submetidos?

Benilton Bezerra Junior - Tal-vez possamos pensar que esse tipo de resistência surge aqui e ali em movimentos muito diferentes uns dos outros. Por exemplo, contra a urgência em eliminar rapidamen-te todo tipo de sofrimento mental diagnosticado como um transtor-no qualquer, cria dispositivos e oportunidades para a produção de narrativas – pessoais e coletivas – que transformem a dor muda em sofrimento, em experiência que pode ser compartilhada, redes-crita, e assim se tornar capaz de abrir caminhos existencialmente novos e mais interessantes, ao in-vés da simples e rápida anestesia emocional. Veja bem, nada tenho contra os instrumentos de que dis-pomos para minorar o sofrimento psíquico. É muito melhor viver num mundo com medicamentos como ansiolíticos, antidepressivos e an-tipsicóticos do que sem eles. Mas eles devem sempre estar a serviço desse outro objetivo, e essa deve ser a maior justificativa para seu uso.

Autonomia e dignidade humana

Outro exemplo que me ocorre pode parecer ir na contramão do que disse na resposta anterior: é a crítica à importância excessiva da ideia de autonomia como de-finidora da dignidade humana. O movimento das deficiências logo se deu conta de que o modelo social tomado ao pé da letra e transfor-mado em dogma era um equívoco. Afinal, há deficiências que podem impor uma limitação ao exercício da autonomia que nossos recursos atuais não podem reparar – graves limitações cognitivas congênitas, por exemplo.

O deslocamento necessário nes-se ponto é perceber o seguinte:

mesmo os indivíduos sem nenhum constrangimento ao exercício de sua autonomia, em algum mo-mento da vida, por algum tem-po, foram ou serão dependentes. Precisarão contar com a empatia e a solidariedade dos semelhan-tes. Quando somos bebês, quando estamos doentes, diante de situa-ções traumáticas, quando estamos face a face com o fim, fica mais que nunca evidente que o que nos define como humanos, tanto ou mais do que a possibilidade da autonomia, é a certeza da depen-dência mútua e a necessidade da empatia e da solidariedade dos outros. “Autonomia” pode se tor-nar uma espécie de fetiche e ser facilmente assimilada ao modo de produção de imagens, hie-

rarquias identitárias, mercados de autogestão. Como disse Alain Ehrenberg,4 nós já vivemos numa era da “autonomia generalizada” – uma ilusão, claro, mas de pode-rosos efeitos normativos sobre os indivíduos. O mesmo se poderia

4 Alain Ehrenberg (1950): sociólogo fran-cês, autor de uma tese de doutorado de socio-logia Arcanjos, guerreiros, homens militares e desportistas. Interessado nas ansiedades do indivíduo na sociedade moderna, confronta-do com a necessidade de realização e autono-mia e a perda de sistemas de apoio social e sinalização. (Nota da IHU On-Line)

dizer da noção de “singularida-de”, que se bandeira de maio de 1968 virou ferramenta de marke-ting e imperativo social. Resistir a isso significa encontrar essas rotas de fuga, esses saltos para o lado, como talvez o movimento das de-ficiências ilustre.

IHU On-Line - Quais são os prin-cipais limites e desafios para se pensar uma vida que tensione a biopolítica como horizonte valo-rativo da subjetividade?

Benilton Bezerra Junior - O principal desafio é manter o es-pírito aberto, capaz de perceber o que de interessante e proble-mático vai surgindo no horizonte como efeito incontornável das transformações políticas, cultu-rais, sociais, tecnológicas – que hoje se dão em um ritmo difícil de acompanhar pela reflexão crí-tica. Por exemplo, o impacto das biotecnologias na vida cotidiana se acelera numa velocidade im-pressionante, e isso é um pro-cesso sem volta. E para ficarmos apenas naquelas em que o corpo e os fenômenos vitais são os alvos privilegiados, como as interfaces corpo-máquina, os sistemas de controle do funcionamento cor-poral, a ampliação do acesso a informações pré-natais (e à inter-venção com base nelas, é claro), é inevitável pensar nos efeitos complexos que acarretam: de um lado, mais controle sobre doenças agudas e crônicas, prevenção de problemas congênitos, ampliação das capacidades físicas e men-tais, mais segurança; de outro, maior controle permanente sobre os indivíduos por parte do estado e das corporações econômicas, novas possibilidades de padro-nização e hierarquização (agora com base em referentes de natu-reza biológica), formas insólitas de violência e, claro, mercados surpreendentes com a força im-perativa que sua lógica exibe.

O maior contro-le permanente sobre os indiví-duos por parte do Estado e das

corporações eco-nômicas, novas possibilidades

de padronização e hierarquização

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Desenvolvimento científico

Não há como separar desenvolvi-mento científico, inovação tecno-lógica, hegemonia do capital finan-ceiro, transformação do papel do Estado nas sociedades, e as formas contemporâneas da biopolítica. O desafio maior talvez seja o de criar condições teóricas, conceituais, culturais e políticas que consigam inserir a reflexão propriamente ética na avaliação de seus efeitos – não aquilo em que a palavra bioé-tica muitas vezes se transforma em mera definição de padrões aceitá-veis de práticas, mas uma reflexão que contemple, que deixe sempre à vista a tensão, uma certa incer-teza e inquietação necessárias na avaliação dos efeitos desses fenô-menos, permitindo a existência de espaços de resistência e de ação frente às (por definição inevitáveis e incessantes) formas de controle e opressão.

IHU On-Line - Em que medida se pode estabelecer um nexo entre a biopolítica, o retraimento da autonomia e a patologia da ação?

Benilton Bezerra Junior - Umas das características de nossa época atual é que o ocaso dos referen-ciais simbólicos tradicionais e a perda das grandes narrativas que ofereciam (e, de certa forma, im-punham) marcas identitárias fortes

e roteiros de ação mais ou menos claros, produziu um efeito para-doxal. Desatrelado das ancoragens simbólicas compulsórias, os indi-víduos nunca desfrutaram de tan-ta liberdade para suas escolhas. Praticamente tudo se transformou em matéria de opção pessoal. E,

no entanto, o que isso produz não são sujeitos livres, mas indivíduos desorientados, com um sentimen-to de precariedade e provisorie-dade permanentes, que minam sua confiança e sua capacidade de agir criativamente no mundo. Não à toa, nas últimas décadas pre-senciamos uma explosão de litera-tura, de serviços e de agentes de “consultoria”, “motivação”, “coa-ching”, “mentoring”, etc. A era da “autonomia generalizada (Ehren-berg)” é também a idade do “ho-

mem sem gravidade” (Melman5) e das relações “líquidas” (Bauman).

Torna-se cada vez mais frequen-te a experiência de inapetência ou apatia, que se expressa não tanto como nas formas tradicionais de depressão – cuja engrenagem gira em torno da perda e da culpa, mas no que a psiquiatria convencionou chamar de distimia, esse estado de desânimo, baixa autoestima, incapacidade de elaborar projetos e neles se engajar. O distímico não sofre por não poder realizar seus desejos, mas por dificuldade em identificá-los e a partir deles se orientar sobre como agir no mun-do. Acaba sendo presa fácil de todas as estratégias de gestão da vida e da existência social que lhe são oferecidas para que ele possa fazer “suas escolhas”. É nesse sen-tido que podemos compreender a distimia como sintoma social, como aquela experiência que reve-la, de forma disfarçada, a verdade sobre nossa realidade, que temos dificuldade de enxergar. ■

5 Charles Melman: psicanalista francês, aluno de Lacan. É membro fundador da Association Freudienne Internationale e diretor de ensino na antiga École Freudienne de Paris. Escreveu dezenas de livros. De 17 a 19-05-2007, Melman esteve na Unisinos proferindo o ciclo de conferências Como alguém se torna paranóico? De Schereber a nossos dias, numa promoção do Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Foi o conferencista de abertura do Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos, em 21-05-2007. (Nota da IHU On-Line)

Talvez possa-mos pensar que esse tipo de re-sistência surge

aqui e ali em movimentos

muito diferentes uns dos outros

LEIA MAIS... — “Só os sujeitos de linguagem podem crer em Deus”. Entrevista especial com Benilton Bezer-ra Junior publicada na revista IHU On-Line, nº 308, de 14-09-2009, disponível em http://bit.ly/1ESoVNG;

— 1968: a passagem de um direito conquistado a uma norma instituída. Entrevista especial com Benilton Bezerra Junior publicada na revista IHU On-Line, nº 250, de 10-08-2008, dis-ponível em http://bit.ly/1J3084y;

— A subjetividade humana na sociedade de indivíduos. Entrevista especial com Benilton Be-zerra publicada nas Notícias do Dia, de 25-05-2007, disponível em http://bit.ly/1Kd4LtA.

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O cromatismo que nega o negroMozart Linhares da Silva analisa como as narrativas identitárias da região do Vale do Rio Pardo produzem processos de invizibilidade e exclusão do negro

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

População. Esta palavra, assim no singular, com todo o reducionismo que ela sugere é talvez a peça de

ficção mais bem reproduzida na história do Brasil ao longo dos séculos, consolidada teoricamente durante grande parte do sé-culo XX e que o começo do século XXI trata de colocar em causa. “A população sempre foi um mistério no Brasil”, aponta o profes-sor e pesquisador Mozart Linhares da Silva, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Some-se à negação das singularidades que compõem as inúmeras populações brasilei-ras à complexidade de nossas sociedades e um certo desejo de eugenia que via na mestiçagem uma forma de “branquear” os negros. “O que é interessante neste arranjo nacionalista/eugenista, calcado na mestiçagem e seleção de imigrantes, é o meio pelo qual o Estado produzirá uma narrativa unificadora da nação. E esta na-ção unificada será instituída, ainda, sob a égide do não racismo. O mestiço é a ‘pro-va’ do convívio pacífico das ‘raças’ e está na base do que se chamará ‘ideologia’ da democracia racial”, apresenta o professor.

A questão de fundo que aparece nesta prática biopolítica de Estado é, em últi-ma medida, um projeto de desracialização dos negros. “O que o proselitismo da mes-tiçagem propõe é o seu desaparecimento. Este é o sentido da eugenia brasileira. (...) O mestiço é uma categoria de passagem, assim como o pardo, nos censos, é uma ca-tegoria que anuncia a indecidibilidade ra-cial, ou melhor, a desracialização do sujei-to negro”, descreve o professor. A escola, nesse sentido, tem um papel fundamental

uma vez que funciona como a engrenagem que faz esta biopolítica funcionar. “A esco-la aparece como um espaço de legitimação de estratégias biopolíticas de regulação de risco e harmonização sociorracial mais do que um ambiente de articulação do con-flito e da crise”, frisa. “O cromatismo faz deslizar, junto com a intensidade da cor, a intensidade do preconceito”, critica.

Mozart Linhares da Silva possui gradu-ação em História pela Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul - PU-CRS, mestrado e doutorado em História pela PUCRS e pós-doutorado em Educação, com ênfase em Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É adjunto III da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Tem experiência nas áreas de His-tória, com ênfase em História das Ideias, e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Estudos Culturais e edu-cação, Estudos Foucaultianos, História da Educação e Etnicidade e Educação.

No dia 21-09, às 14 horas, no Auditório Maurício Berni, o professor apresenta a conferência A racialização do Brasil e a biopolítica, evento que integra a progra-mação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopo-lítica | III Colóquio Internacional de Bio-política e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contempora-neidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medida a racialização do Brasil é uma das expressões da biopolítica?

Mozart Linhares da Silva - Con-sidero que a racialização no Bra-

sil é um fenômeno que ocorre no contexto pós-abolição, quando há um deslocamento das questões ati-nentes ao estatuto jurídico do es-cravismo para as questões antropo-

lógicas relacionadas à população, ou melhor, a forma como a popu-lação deveria ser constituída. É importante observar que desde os anos 1870 o darwinismo, o evolu-

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cionismo e o positivismo passam a orientar a intelligentsia nacional, sobretudo pela via da chamada Es-cola de Recife1 e da Faculdade de Medicina da Bahia.2 E, consideran-do os aspectos do biodeterminismo deste período, a miscigenação era vista na perspectiva do degene-racionismo, como fica claro, por exemplo, nas posturas do Conde de Gobineau3 sobre o Brasil. No período inicial da República assis-timos a uma geração de intelectu-ais e cientistas que tomaram para si a “responsabilidade” de (re)discutir a nação e problematizar a possibilidade de uma “identidade nacional”. É neste período que a população suscita, efetivamente, interesse. Figurarão neste grande debate sobre a população euge-nistas medelianos e lamarckianos, sanitaristas, intelectuais, médicos, juristas e educadores de feição liberal ou mesmo fascista, entre outros. O Estado que emerge des-te debate vai tomar forma a par-tir de 1930, nomeadamente com o Estado Novo. O que temos então? Por conseguinte, o que temos aqui é o momento em que a população passa a entrar no cálculo político do Estado, com claro propósito de reconstruí-la.

1 Escola do Recife: trata-se de um movi-mento intelectual iniciado por Tobias Barre-to na Faculdade de Direito do Recife. Ela se estabelece no final do século XIX, por volta de 1868 e se caracteriza pelo abandono do po-sitivismo como matriz principal. De filosofia monista, apoia-se na perspectiva de uma in-terpretação da ciência da natureza com espi-ritualidade (algo não católico). O surgimento da Escola se dá com a publicação de artigos que proclamam o espiritualismo e combatem a subordinação da filosofia à teologia, bem como se posiciona contra uma ciência de Deus. (Nota da IHU On-Line)2 Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia: é a esco-la de medicina mais antiga do Brasil, fundada em 18 de fevereiro de 1808 por influência do médico pernambucano Correia Picanço, logo após a chegada de Dom João VI ao país, sob o nome de Escola de Cirurgia da Bahia. Em 1887, a Faculdade formou a primeira médica diplomada no Brasil, a gaúcha Rita Lobato Velho Lopes. Foi também a primeira institu-ição do País no uso clínico dos raios X. (Nota da IHU On-Line)3 Joseph Arthur de Gobineau (1816– 1882): foi um diplomata, escritor e filósofo francês. Foi um dos mais importantes teóric-os do racismo no século XIX. (Nota da IHU On-Line)

População

A população sempre foi um mis-tério no Brasil. Ela começa a fazer sentido a partir da publicação, em 1902, da obra de Euclides da Cunha4, Os Sertões, e do relató-rio das viagens médico-científicas de Belisário Penna5 e Artur Neiva,6 intitulado Viagem Científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Per-nambuco, Sul do Piauí e de Norte a Sul de Goiás, de 1916. Estas obras apresentaram o sertanejo ao país e serviram como esteio de uma postura intelectual e científica que caminhará cada vez mais para o sanitarismo em detrimento de uma eugenia ortodoxa. É somente nos anos 1930 que esta massa disforme – que era a população brasileira – passa a reclamar metodologias e cálculos estatísticos mais precisos. Este é o sentido da criação, em 1936, sob a direção do nacionalis-ta Teixeira de Freitas,7 do Instituto

4 Euclides da Cunha (1866-1909): enge-nheiro, escritor e ensaísta brasileiro. Entre suas obras, além de Os Sertões (1902), des-taca-se Contrastes e confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907), À margem da história (1909), a conferência Castro Alves e seu tem-po (1907), proferida no Centro Acadêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito), de São Paulo, e as obras póstumas Canudos: diá-rio de uma expedição (1939) e Caderneta de campo (1975). Confira a edição 317 da IHU On-Line, de 30-11-2009, intitulada Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiurgos do Brasil, disponível para download em http://bit.ly/ihuon317. (Nota da IHU On-Line)5 Belisário Augusto de Oliveira Penna (1868– 1939): foi um médico sanitarista bra-sileiro. Filho do Visconde de Carandaí, for-mou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1890, e retornou a Minas Gerais onde clinicou por alguns anos, tendo sido eleito ve-reador em Juiz de Fora. Em 1904 mudou-se para o Rio de Janeiro, passando a trabalhar na Diretoria Geral de Saúde Pública, onde co-laborou no combate à febre amarela, malária e outras doenças no território nacional. (Nota da IHU On-Line)6 Arthur Neiva (1880–1943): foi um cienti-sta, etnógrafo e político brasileiro. Diploma-do pela Faculdade de Medicina do Rio de Ja-neiro, foi aluno de Oswaldo Cruz. Dedicou-se à profilaxia e entomologia médica, tornan-do-se afamado conhecedor dos barbeiros, insetos transmissores da doença de Chagas. Foi o primeiro a descrever uma espécie de barbeiro. Realizou diversas campanhas sani-tárias. (Nota da IHU On-Line)7 Augusto Teixeira de Freitas (1816– 1883): foi um jurisconsulto brasileiro, re-conhecido como o jurisconsulto do império. Sua obra constitui objeto de profundos estu-

Nacional de Estatística, renomeado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 1938. Desse modo, o que encontraremos nos anos 1930 em diante, grosso modo, é a construção de uma narrativa nacional desdobrada das estraté-gias biopolíticas do Estado que to-mou para si a responsabilidade de dar a forma à nação/população.

Política de branqueamento

E esta forma será tributária de uma leitura heterodoxa da euge-nia, que transforma a mestiçagem de algo que condenava a nação em uma perspectiva redentora, que constituirá a base da política de branqueamento da população. O que é interessante neste arranjo nacionalista/eugenista, calcado na mestiçagem e seleção de imigran-tes, é o meio pelo qual o Estado produzirá uma narrativa unifica-dora da nação. E esta nação uni-ficada será instituída, ainda, sob a égide do não racismo. O mestiço é a “prova” do convívio pacífico das “raças” e está na base do que se chamará “ideologia” da democra-cia racial. Mas o que nos revela esta mestiçagem no âmago do “dis-curso” do Estado? Ela não apenas funciona como amortecedor das relações raciais anulando conflitos, como integra o negro na narrativa da nação através de sua exclusão, pois, de fato, o que o proselitismo da mestiçagem propõe é o seu de-saparecimento. Este é o sentido da eugenia brasileira. Biopolítica de branqueamento desdobrada em democracia racial, entendida aqui como um dispositivo de se-gurança que permite um processo de inclusão-exclusiva do negro no

dos acadêmicos até os dias de hoje, no Brasil e no exterior. Formado pela Faculdade de Di-reito de Olinda – atual Faculdade de Direito do Recife –, mas tendo estudado também em São Paulo, Teixeira de Freitas foi o respon-sável pela extraordinária Consolidação das Leis Civis brasileiras, de 1858, e autor da pri-meira tentativa de codificação civil do Brasil: seu “Esboço de Código Civil”, feita por enco-menda do imperador D. Pedro II, por meio de decreto de 11 de janeiro de 1859. (Nota da IHU On-Line)

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corpo espécie da população. Este era o cerne da famosa conferência de Batista de Lacerda8 intitulada Sur les metis au Brésil por ocasião de sua participação, como envia-do oficial do governo brasileiro no Congresso Universal das Raças, re-alizado em Londres, em 1911. Em um século, esperava ele, o Brasil seria uma nação branca, livre tan-to de negros como de mestiços. O mestiço é uma categoria de passa-gem, assim como o pardo, nos cen-sos, uma categoria que anuncia a indecidibilidade racial, ou melhor, a desracialização do sujeito negro.

IHU On-Line - Nesse sentido, podemos compreender a racia-lização brasileira como uma tec-nologia de classificação/exclusão dos sujeitos? Por quê?

Mozart Linhares da Silva - Sim, considerando as colocações acima, a mestiçagem vai funcionar como um discurso poderoso de confor-mação do branqueamento da na-ção ao mesmo tempo que anula a possibilidade do conflito racial no país. Se observarmos os censos de 1940 em diante, teremos a nítida evidência de como o corpo espécie da população foi sendo construído a partir da gestão da mestiçagem como elemento de negação das polaridades, sobretudo do sujeito negro, na conformação da nação. No censo de 1940 temos 21,2% de pardos; em 1990, 42,45%; e em 2010, 43,1%. E, neste sentido, po-demos apontar para um processo de construção do sujeito negro, ou melhor, da população negra, em população-sacer, para tomar de empréstimo a expressão de Agam-ben.9 Esta seria a silenciosa euge-nia brasileira.

8 João Batista de Lacerda (1846 - 1915): Médico e cientista brasileiro, foi nomeado pelo ministro da Agricultura subdiretor da seção de antropologia, zoologia e paleon-tologia do Museu Nacional. (Nota da IHU On-Line)9 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia-no. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di

IHU On-Line - Em que medida a categoria raça foi ressignificada pelo Movimento Negro em nosso país?

Mozart Linhares da Silva - Na medida em que se procurou rees-truturar a própria categoria raça no campo político de uma afirma-ção de existência. O Movimento Negro (seria mais apropriado movi-mentos negros) entendeu que todo o processo de luta pela afirmação do negro no Brasil deveria consi-derar o desmantelamento da cha-mada “democracia racial” e, neste sentido, foi ao âmago da narrativa nacional, que o incluiu nesta narra-tiva pela sua exclusão. Não é sem sentido que a afirmação da negri-tude passa pela negação da mesti-çagem como possibilidade identi-tária. Para o Movimento Negro não se deve separar em duas categorias “pretos e pardos”, como faz o IBGE nos censos, e sim considerar como negro a soma de pretos e pardos. Considerando o último censo, o Brasil tem 43,1% de pardos e 7,6% de pretos. Somando-se estas cate-gorias, teríamos uma maioria ne-gra no Brasil, com 50,7%. Trata-se, como estamos vendo, de uma dis-

Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do go-verno estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his-tória: destruição da experiência e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi-torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan-tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moder-na, disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU On-Line)

puta pela nomeação, pela confor-mação da população.

O processo de desconstrução da “ideologia da democracia racial” começa a ocorrer a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Até então a imagem que o Brasil mostrava ao mundo era a de um paraíso racial, um modelo de solução multirra-cial. Depois dos horrores racistas da Guerra, a Unesco, com o objetivo de entender melhor o caso brasilei-ro (um possível modelo ao mundo), apoiou uma série de pesquisas sobre relações raciais no Brasil entre 1950 e 1952. Ao contrário das expectati-vas, as pesquisas apresentaram um país marcado profundamente pelo racismo e pela tradição escravista. A dita democracia racial não se re-fletia numa democracia social, ao contrário, as desigualdades sociais eram resultado também do racismo. Os resultados das pesquisas sobre relações raciais no país suscitaram vários outros projetos de investiga-ção nos anos 1960, como é o caso das obras de Fernando Henrique Cardoso,10 Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 2005, 5ª ed), Octavio Ianni,11 As Metamorfo-ses do Escravo (São Paulo: Hucitec/Curitiba: Scientia et Labor, 1988, 2ª ed), e Florestan Fernandes,12 A integração do Negro na Sociedade de Classes (Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008). Se do ponto de vista acadêmico o mito passou a ser re-futado, do ponto de vista do Estado ele se mantinha inalterado. Com a Ditadura Militar, a “ideologia da democracia racial” foi reafirmada, até porque servia bem à política de

10 Fernando Henrique Cardoso (1931): Sociólogo, cientista político, professor uni-versitário e político brasileiro. Foi o 34º Presidente do Brasil, por dois mandatos consecutivos. Conhecido como FHC, ganhou notoriedade como ministo da Fazenda (1993-1994) com a instauração do Plano Real para combate à inflação. (Nota da IHU On-Line)11 Octavio Ianni (1926-2004): sociólogo brasileiro, autor de, entre outros, Homem e sociedade (1961), Imperialismo e cultura (1976) e A sociedade global (1992). (Nota da IHU On-Line)12 Florestan Fernandes (1920–1995): So-ciólogo e político brasileiro. Foi duas vezes deputado federal pelo Partido dos Trabalha-dores. (Nota da IHU On-Line)

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negação dos conflitos no país, seja de classe ou raça. Somente no final dos anos 1970, com a decadência do regime militar, as coisas começaram a mudar. Lutar contra o regime era também lutar, evidentemente, con-tra as ideias que o sustentavam. E, dentre elas, a “democracia racial”. Não é sem sentido que em 1979 seja criado o Movimento Negro Unificado - MNU e instituído o 20 de Novem-bro como o Dia da Consciência Ne-gra, data alusiva à morte de Zumbi dos Palmares.13

Na segunda metade dos anos 1970, com a abertura dos dados censitários aos pesquisadores, até então interditados pelo regime mi-litar, novas pesquisas atestaram a falácia do mito, sustentando a pla-taforma de lutas dos movimentos sociais antirracismo. As pesquisas estatísticas do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a exemplo das investigações de Carlos Hasenbalg14 e Nelson do Valle Silva,15 mostram, em números, um país marcado pelo racismo. É evidente que o Movimento Negro vai se abastecer destas pesquisas e fortalecer assim seu discurso de ataque à democra-cia racial. Será cobrado do Estado, também, que reconheça o racismo, o que ocorre em 1996, com FHC. Em 1995 é criado o Grupo de Traba-lho Interministerial para a valoriza-ção da População Negra, vinculado à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos - SNDH. Este grupo pos-

13 Zumbi dos Palmares (1655-1695): úl-timo líder do Quilombo dos Palmares. Foi capturado e entregue a um missionário por-tuguês quando tinha aproximadamente seis anos. Aos 15 anos de idade, fugiu e retornou a seu local de origem. (Nota da IHU On-Line)14 Carlos Hasenbalg: foi um sociólogo ar-gentino que atuou como professor e pesqui-sador nas áreas de relações raciais, estratifi-cação social e mobilidade social. Trabalhou no Brasil apartir de 1969, país em que dedi-cou suas preocupações intelectuais. (Nota da IHU On-Line)15 Nelson do Valle Silva: economista pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1968), mestrado em Informática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1972) e doutorado em Sociologia - University of Michigan - Ann Arbor (1978). Atualmente é Pesquisador Sênior nacional do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - IESP-UERJ. (Nota da IHU On-Line)

sibilitou a articulação política do MNU e abriu o debate sobre as ações afirmativas, que seria in-tensificado e ampliado no governo Lula, com a criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SE-PPIR. A partir deste contexto tere-mos, portanto, um grande debate no país, que nos chega ainda hoje e que coloca em pauta cotidiana-mente a discussão sobre relações raciais e racismo.

IHU On-Line - Quais foram as constatações fundamentais da análise dos processos de subjeti-vação e constituição dos sujeitos negros na pesquisa desenvolvida no Vale do Rio Pardo, no RS?

Mozart Linhares da Silva - Nas últimas duas décadas assistimos a um intenso movimento de ressigni-ficação das narrativas identitárias sobre o negro no Brasil. Afirmação da negritude, melhora da autoes-tima, reconhecimento do racismo, diferencialismo racial e reescrita da História passam por esta ressig-nificação. Não há dúvidas que mu-danças importantes estão ocorren-do. E o ambiente escolar não é uma ilha, ao contrário, é um dispositivo extremamente sensível na produ-ção e circulação das verdades que produzem sentido social. Conside-rando que os processos de subje-tivação estão relacionados àquilo que se pode falar de si e aquilo que a sociedade articula como verdade sobre si, recortamos, neste proces-so, os enunciados que constituem o discurso racial e como este discur-so atravessa os sujeitos no ambien-te escolar, mais especificamente os sujeitos não brancos.

A partir de entrevistas semiestru-turadas com sujeitos não brancos, organizamos o corpus-discursivo da pesquisa. Enfatizamos, nestas entrevistas, as “histórias de vida” desses sujeitos no tempo de escola.

É interessante notar como os en-trevistados, quando não incitados a apontar questões relacionadas ao racismo, não apontam o preconcei-

to como uma evidência importante ou em primeiro plano. Quando as questões são explicitamente rela-cionadas à discriminação racial ou de cor as falas são unânimes em apontar o racismo, mas, majorita-riamente, fora do ambiente escolar, no mundo do trabalho, no comér-cio, entre outros. Como funciona o racismo no ambiente escolar, de acordo com estes depoimentos? Da mesma maneira que há na socieda-de brasileira uma dificuldade em se admitir o racismo do ponto de vista individual, há uma dificuldade em admitir-se vítima. Neste jogo, o preconceito não aparece como os-tensivo, mas como “dano colateral” de outras práticas de violência sim-bólica. Se o racismo é visto como uma realidade, o que se percebe é que o ambiente escolar, segundo estes depoimentos, funciona como uma zona de amortecimento. Nou-tras palavras, o que se percebe funcionando aqui é a escola como um dispositivo de segurança, agin-do e regulando a intensidade das formas de percepção da discrimi-nação racial. Não se constituindo como “zona dura do racismo”, a escola faz circular a ideia do con-vívio pacífico e da harmonia inter--racial, ou seja, legitima a chamada “ideologia da democracia racial”, o que faz com que o racismo seja uma recorrência, mas sempre nega-do e escorregadio. Neste sentido, a escola aparece como um espaço de legitimação de estratégias biopolíti-cas de regulação de risco e harmo-nização sociorracial mais do que um ambiente de articulação do conflito e da crise.

Miscigenação

É preciso destacar aqui como o discurso sobre a miscigenação en-tra neste jogo. A miscigenação, como já mencionamos, é um dos elementos fundamentais da bio-política de branqueamento e des-construção do sujeito negro. Alguns depoimentos apontam justamente para a condição de pardo como um fator de amenização do precon-ceito. O cromatismo faz deslizar,

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junto com a intensidade da cor, a intensidade do preconceito. É o caso de uma entrevistada que re-latou sua opção em casar com uma pessoa branca para que seus filhos nascessem com pele mais clara e assim escapassem do racismo. Vale a pena reproduzir este relato aqui: “No meu primeiro casamento eu não quis casar com uma pessoa com a pele negra, para os meus fi-lhos não sofrerem depois. Eu não quis. Então eu tenho os meus três filhos com pele branca, os três pri-meiros. E a minha última filha, do segundo casamento, eu casei com uma pessoa da pele negra, ela já é morena. Então, ela tem um ano e quatro meses e às vezes as pes-soas, sem a maldade, vão brincar com ela, oh negrinha, ou pretinha, então é por isso. Mesmo eu tendo a pele negra, eles (os filhos bran-cos) já não passam por isso, por-que eles têm a mistura”. Como diz uma entrevistada sobre o racismo na escola: “Eu acho que não se percebia como uma discriminação, no momento de escola, acho que a gente percebia como uma situação diferente apenas. Eu acho que não tinha essa intensidade de se sentir totalmente discriminado”.

Nesta pesquisa, considerando o corpus-discursivo que utilizamos, a escola aparece, de fato, como um desdobramento fiel da biopolítica que fez da democracia racial uma estratégia de regulação de antago-nismos. Mesmo em um contexto de mudanças como o nosso, ela con-tinua sendo algo importante a ser considerado nas análises.

IHU On-Line - Em que sentido a colonização alemã de Santa Cruz do Sul surge como elemento im-portante para se compreender a formação das identidades étnicas dos sujeitos negros nessa cidade?

Mozart Linhares da Silva - Fo-ram várias pesquisas realizadas e orientadas na região do Vale do Rio Pardo, com objetivos e enfoques específicos, mas que permitem, no conjunto, algumas considerações mais amplas sobre a construção do

sujeito negro em regiões marca-das pela narrativa imigrantista de cunho germânico.

Em Santa Cruz do Sul, maior mu-nicípio do Vale, é forte a ideia de comunidade, apontada como um dos “traços” culturais advindo do tempo dos “pioneiros”, como são chamados os primeiros imigrantes. Na perspectiva histórica regional, profundamente marcada por uma interpretação étnica, é comum as-sociar ao desenvolvimento econô-mico da região a ética do trabalho imigrante, sua capacidade empre-endedora, senso comunitário e de-terminação. Segundo levantamen-to que fizemos, a comunidade vê a cidade como limpa, rica, bela, cul-ta, próspera e branca. A pobreza e os chamados “Outros” são con-tornados. Eles existem, mas fora da cidade imaginada, eles estão, como se costuma dizer, “depois da faixa”, o que seria a periferia, pra-ticamente fora da cartografia men-tal da comunidade. Na realidade, estes “Outros” não pertencem à comunidade, são “de fora”.

Há, evidente, um sistema de in-visibilidade dos “Outros”, sobretu-do os não brancos. Para verificar como a população de Santa Cruz do Sul se organiza espacialmente e etnicamente, realizamos, com a colaboração de Viviane Weschen-felder, um levantamento nos dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-xeira - INEP e nas escolas públicas (municipais e estaduais) e privadas da região. Segundo dados do INEP (2006), 14,07% dos alunos se de-clararam pardos e 9,18% negros, que somados na categoria de não brancos, chegam a 23,25%. Nas es-colas privadas os números apontam o esperado, considerando a lógica do exclusivismo destes espaços de classe média: 97,41% de brancos, 0,60% de pretos e 1,99% de pardos. Separamos, então, cinco escolas públicas da periferia e cinco es-colas públicas do centro de Santa Cruz do Sul e tivemos os seguintes dados sobre a cor da população: nas escolas do centro temos 85,52%

de brancos, 5,4% de pretos e 8,29% de pardos; nas escolas da periferia temos 60,40% de brancos, 16,66% de pretos e 21,01% de pardos. Se somarmos alunos pretos e pardos, as escolas do centro apresentam uma média de 13,69% enquanto as da periferia, uma média de 37,67%. Interessante estes números, consi-derando que a população preta e parda do Rio Grande do Sul, se-gundo dados do IBGE (2005), cor-respondia a 15,5%. O contingente de não brancos na região de Santa Cruz do Sul está nitidamente con-centrado nas escolas de periferia da cidade. O fato destes se locali-zarem nas regiões menos abastadas socialmente atesta a invisibilidade dos afrodescendentes e dos par-dos, já que a região periférica da cidade é vista como “uma outra Santa Cruz do Sul”.

Invisibilidade

A invisibilidade dos não brancos, de fato, vai ao encontro das narra-tivas da historiografia regional que aponta estes “Outros” como imi-grantes recentes, excrescências do desenvolvimento industrial, entre outros. Segundo estas narrativas, estes grupos não estavam presen-tes na origem de Santa Cruz do Sul, quando da chegada dos imigrantes na metade do século XIX. Os pio-neiros germânicos ergueram a co-munidade a partir de um “vazio ci-vilizatório”. É esta saga de famílias germânicas, que enfrentaram todos os problemas e dificuldades, mas conseguiram triunfar, que se cons-titui como narrativa épica, como epopeia civilizatória. É evidente que nesta narrativa não há lugar na História regional, por exemplo, para o escravo, que, segundo a his-toriografia tradicional não existia em regiões de imigração europeia, o que é, vale dizer, desmentido pela historiografia atual, a exem-plo das inúmeras pesquisas reali-zadas na região de São Leopoldo. Admitir o escravismo em regiões de imigração desestruturaria a narra-tiva épica e o proselitismo da ética do trabalho do pioneiro. Pesquisas

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realizadas junto à comunidade ne-gra da região, como as realizadas por Mateus Skolaude, mostram como o sujeito negro é atravessa-do por estas “verdades” triunfalis-tas do germanismo. A ideia de um coadjuvante menor na construção regional o coloca na condição de colaborador à cultura da região, o que nos faz entender como fun-ciona a política multicultural que agencia a coexistência das diferen-ças em mesmo território, mas com fronteiras culturais ou étnicas bem definidas, legitimando a tolerância como código de convivência social.

IHU On-Line - Quais são as pe-culiaridades no processo de cons-trução do imaginário sobre o su-jeito negro na imprensa de Santa Cruz do Sul entre 1950-2000?

Mozart Linhares da Silva - No que se refere às pesquisas rea-lizadas na imprensa escrita, em que foram problematizados como os regimes de verdade operam na constituição do sujeito negro, ficou claro como este é visto como um sujeito rasurante na comunidade. O negro é comumente associado ao forasteiro, a tipos indesejados re-lacionados à desordem, indolência, desemprego e miséria, bem como sujeitos amparados por políticas assistencialistas. São imagens que contrastam com as relacionadas ao imigrante germânico, comu-mente associado às temáticas que exaltam valores como o trabalho, religiosidade e empreendedoris-mo. Trata-se do contraste do imi-grante trabalhador e do forasteiro indolente. Como exemplo, destaco quatro imagens: na primeira lê-se no título da matéria: Santa Cruz do Sul reage contra migração de desempregados (Gazeta do Sul, 13-02-1993); na segunda, O come-ço da colonização do Rio Grande do Sul (Gazeta do Sul, Especial. 25-07-2002); na terceira, Em bus-ca de auxílio (Gazeta do Sul, 04-09-2002); na quarta, O começo da colonização do Rio Grande do Sul (Gazeta do Sul, Especial. 25-07-2002, p. 14).

É importante atentar para o pro-cesso de afirmação do germanismo na região de Santa Cruz do Sul, o que nos permite entender como as narrativas sobre os “Outros” pas-sam a fazer sentido, no caso, na imprensa escrita. A construção de uma narrativa identitária germâ-nica em Santa Cruz do Sul passa a se intensificar a partir do final dos anos 1970, período, vale lem-brar, de arrefecimento da política

de combate ao discurso étnico--racial como afirmador identitário que marcou o pós-guerra. Nos anos 1970 em diante o neoliberalismo e o aceleramento da globalização certamente foram elementos a se-rem considerados nesta retomada das “identidades”. Elas, as iden-tidades, passaram a ser constru-ídas, também, como uma forma de “resistência” à ameaça global/homogeneizadora das identidades, nomeadamente as “regionais”. É preciso considerar ainda o enfra-quecimento do Estado-nação como suporte identitário, o que abriu o caminho para narrativas comuni-taristas. Parece-me que em Santa Cruz do Sul este foi, grosso modo, o caso.

Alguns eventos importantes apontam para esta hipótese. Em 1977 ocorre o “Concurso de Mono-grafias” intitulado “Santa Cruz do Sul – Aspectos de sua História”, que impulsiona o “resgate” da memó-ria da comunidade germânica. Em 1984 é criada a Oktoberfest, festa que propõe a difusão e valorização da “cultura germânica”. No mesmo sentido, em 1986, é criado o Cen-tro Cultural 25 de Julho, importan-te entidade de cultivo das “tradi-ções germânicas” na região. Neste processo de construção “identitá-ria”, profundamente vinculado à ideia de comunidade étnica, a po-pulação negra é, evidentemente, excluída, ou melhor, passa a ser incluída numa lógica de contrasti-vidade cultural e étnica, ou seja, como marcadora do avesso da co-munidade regional. Nota-se que é este o contexto em que se propaga a política multiculturalista na re-gião, caldada no convívio e tolerân-cia com as diferenças. A escolha da Miss Negra do Estado ocorre, vale lembrar, em Santa Cruz do Sul, e a comunidade “germânica” celebra o estereótipo da mulher “alemã” na escolha da Rainha da Oktoberfest. É esta dinâmica multiculturalista que a análise da imprensa escrita revela com profusão de imagens, das quais nos interessou as que constituíam junto à comunidade, o sujeito/população negro. ■

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A biopolítica educacional para além dos muros da escolaJulio Roberto Groppa Aquino pensa os projetos de governamento da vida ligados aos processos pedagogizantes a serviço do capitalismo cognitivo

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

Não há biopolítica sem um processo pedagogizante. Isso porque, como explica o pro-

fessor Julio Roberto Groppa Aquino, o governamento biopolítico ocorre por meio de ações de cunho pedagógico sem as quais seus intentos não seriam possíveis. “Vale lembrar que o escopo das práticas educacionais não se con-fina ao âmbito formal/escolar, inscre-vendo-se como modalidade de condu-ção das condutas em nível molar. Isso significa que se trata de compreender o tecido social como um todo, incluídos seus diferentes nichos populacionais, como alvo e terreno das intervenções biopolíticas na atualidade”, avalia o pesquisador, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ao aproximar a contribuição teórica de Michel Foucault com o campo da Educação, o pesquisador atribui uma maior receptividade, na atualidade, do pensamento do francês com o esgota-mento narrativo das teorias pedagógi-cas dominantes. “Isso significa que o efeito principal das ideias foucaultia-nas na educação é a materialização de um horizonte ético-político que, longe de qualquer ensejo prescritivo, se per-faz por meio do usufruto de um tipo de liberdade de pensar/agir não con-tingenciado pela miséria travestida em grandiloquência do mundo atual e, so-bretudo, pelo enfadonho universo das ideias educacionais”, pondera. “Trata--se de indícios de uma rápida e inde-lével transformação de uma forma es-

colar que, no caso brasileiro, tão logo se pretendeu democrática, aliou-se aos ditames daquilo que alguns autores têm chamado capitalismo cognitivo”, complementa.

Julio Roberto Groppa Aquino é gra-duado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fi-lho – Unesp. Realizou mestrado e dou-torado em Psicologia Escolar pelo Insti-tuto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP e fez pós-doutorado na Universidade de Barcelona. Atualmen-te é professor titular da USP. É autor e organizador de inúmeros livros, en-tre os quais destacamos Da autoridade pedagógica à amizade intelectual: uma plataforma para o éthos docente (São Paulo: Cortez, 2014); Foucault pensa a educação: o diagnóstico do presente (São Paulo: Segmento, 2014) e Instan-tâneos da escola contemporânea (Cam-pinas: Papirus, 2007).

No dia 21-09, às 14 horas, na Sala Ig-nacio Ellacuría e Companheiros – IHU, o professor apresenta a conferência Es-tudos de Biopolítica no Brasil, evento que integra a programação do XVII Sim-pósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Cons-tituição dos Sujeitos na Contempora-neidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que os estudos

de biopolítica e educação reve-

lam sobre a realidade brasileira?

Julio Roberto Groppa Aquino -

A tópica conceitual da biopolítica,

quando abordada pelos estudos

educacionais, acompanha a história

recente da educação brasileira, so-

bretudo quando focaliza os enfren-

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tamentos ao redor de três temáti-cas principais: corpo/sexualidade/saúde, o imperativo da inclusão e o corolário neoliberal. Nesse senti-do, ao mesmo tempo que as discus-sões descortinam alguns dos tantos impasses testemunhados por uma sociedade em democratização, elas permitem também entrever os movimentos paradoxais, e por ve-zes contraditórios, operados pela racionalidade educacional vigente em relação ao próprio ideário de-mocrático. A noção de biopolítica desponta, portanto, como um ins-trumento eficaz tanto de análise quanto de crítica da própria atuali-dade; para além, por sinal, de sua dimensão educacional.

IHU On-Line - Em que medida a biopolítica é, cada vez mais, a ló-gica que perpassa a educação em nosso país?

Julio Roberto Groppa Aquino - A biopolítica, como lógica estraté-gica de um tipo de governamento populacional flexível, não obstante ininterrupto e a céu aberto, tem nas práticas educacionais um braço forte. A bem da verdade, poder--se-ia afirmar que o governamento biopolítico vale-se essencialmen-te de ações de cunho pedagógico – ou, para ser mais preciso, peda-gogizante –, sem o qual seus inten-tos não se efetivariam. Assim, vale lembrar que o escopo das práticas educacionais não se confina ao âm-bito formal/escolar, inscrevendo--se como modalidade de condução das condutas em nível molar. Isso significa que se trata de compreen-der o tecido social como um todo,

incluídos seus diferentes nichos populacionais, como alvo e terre-no das intervenções biopolíticas na atualidade. Exemplo disso são as alianças implacáveis entre a mídia e a pedagogia, redundando em um governamento de tipo instrucional que parece ter invadido todas as esferas da vida, até mesmo as mais recônditas. Em suma, uma espécie de cruzada normalizadora de todo e qualquer gesto humano, por toda a extensão de toda a vida e, tan-to pior, sem chance de recusa ou contestação, posto que abençoada pelo refrão ambíguo do respeito à diversidade, diferenças, etc.

IHU On-Line - Quais são as prin-cipais repercussões do pensa-mento de Foucault1 na pesquisa educacional brasileira?

Julio Roberto Groppa Aquino - A mobilização dos pesquisadores

1 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)

em torno do tema da biopolítica – uma noção tratada pontualmen-te na obra foucaultiana – é um bom exemplo das reverberações do pensador francês na pesquisa educacional nacional. A fecundi-dade das ideias foucaultianas nes-se quadrante pode ser atestada na crescente atenção dispensada por um conjunto igualmente cres-cente de pesquisadores nas duas últimas décadas e meia, em que vimos consolidar-se um campo de estudos próprio. Por exemplo, no período de 1990, data do primeiro artigo de orientação foucaultiana rastreado nos principais periódicos da área, até 2014, foram publica-dos, apenas nos últimos cinco anos, mais da metade dos artigos que to-maram Foucault como interlocutor no plano temático, teórico e/ou metodológico. Trata-se de apenas uma mostra do impacto desse tipo de teorização no âmbito da pes-quisa educacional. Isso sem contar os presumíveis, porém insondáveis efeitos nas práticas pedagógicas propriamente.

IHU On-Line - Por que o campo da educação é tão receptivo às ideias foucaultianas?

Julio Roberto Groppa Aquino - Creio que a porosidade – germinal, frise-se – às ideias de Foucault no quadrante educacional deve-se, sobretudo, ao esgotamento narra-tivo das teorias pedagógicas domi-nantes, muitas vezes enredadas em uma espécie de normatividade ob-tusa e, ademais, saturante. Como é amplamente sabido a partir dos es-tudos foucaultianos na educação, as práticas educacionais são palco de intencionalidades ora reformis-tas/salvacionistas desmesuradas, ora comprometidas com uma vi-são de mundo tecnocrática. Nessa perspectiva, a reboque do que um autor do campo outrora propôs, o contato com as ideias foucaultia-nas oportuniza uma pedagogia sem redenção, para além dos binaris-mos históricos que designam a dis-cursividade aí em circulação. Isso significa que o efeito principal das ideias foucaultianas na educação é a materialização de um horizonte ético-político que, longe de qual-

Trata-se de indícios de uma rá-pida e indelével transforma-

ção de uma forma escolar que aliou-se aos ditames daquilo que alguns autores têm cha-mado capitalismo cognitivo

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quer ensejo prescritivo, se perfaz por meio do usufruto de um tipo de liberdade de pensar/agir não con-tingenciado pela miséria travesti-da em grandiloquência do mundo atual e, sobretudo, pelo enfadonho universo das ideias educacionais.

IHU On-Line - Qual foi o contex-to de recepção/difusão das obras desse pensador em nosso país?

Julio Roberto Groppa Aquino - Para melhor compreender a re-cepção das ideias do pensador, se-ria preciso situá-la de acordo com três momentos distintos: primeiro, sua chegada em meio ao clima re-pressivo da ditadura e, depois, sua apropriação em meio aos ventos da redemocratização. No entanto, logo em seguida testemunharíamos a disseminação das ideias neolibe-rais no país, sobretudo a partir dos anos 2000. Daí um terceiro momen-to, se se quiser, no que se refere à recepção das ideias do pensador no Brasil. É sob a batuta de dife-rentes enquadres sócio-históricos que se pode compreender melhor a difusão de Foucault operada pe-los estudos brasileiros e, por con-seguinte, os diferentes matizes de sua apropriação.

IHU On-Line - Qual é o maior legado de Foucault ao campo da Educação como um todo?

Julio Roberto Groppa Aquino - Como dito anteriormente, creio que se trata de uma atitude ra-dicalmente crítica aos modos de pensar e agir quando em confron-to com as novas gerações. Modos, quiçá, menos pretensiosos, de um lado, e mais recalcitrantes, de ou-tro. Um fio de navalha, por assim dizer, por meio do qual o âmbito educacional pode reencontrar seu papel duplamente transitivo e transtornador no cenário das tro-cas sociais contemporâneas. Em outras palavras, trata-se de abrir o mundo aos que estão chegando nele; abrir, no caso, comportando uma dupla acepção: introduzir os mais novos no constituído e, ao mesmo, rasgar os véus que obsta-culizam o acesso aos meandros de tal constituição. Daí que, por meio

da companhia de Foucault, nada nos cabe além de fomentar uma espécie de vitalidade intelectual sóbria, infensa a qualquer tipo de adesão entusiástica às palavras de ordem do presente. Ou, se se qui-ser, trata-se de dispor o presente contra si próprio. Quem sabe, as-sim, se façam dilatar as fronteiras do próprio pensamento em favor de um futuro menos asfixiante.

IHU On-Line - Em que consistem os processos de governamentali-zação escolar?

Julio Roberto Groppa Aquino - Muitos dos estudos recentes no campo dos estudos foucaultianos na educação oferecem instrumen-tos para deslindar certos aspectos dos processos de governamentali-zação em curso nas práticas edu-

cacionais. Desde os investimentos psicologizantes na autonomização gestionária discente sob o mantra do empreendedorismo/empre-sariamento, passando pelo clima reinante de desqualificação (hete-ro e autoimpingida, por sinal) da autoridade docente, até o incon-tornável impacto das tecnologias de informação e comunicação nos afazeres pedagógicos, entre ou-tros tantos efeitos, o que se pode vislumbrar são certas mutações estruturais das pautas do agir e do convívio escolar. Trata-se de indícios de uma rápida e indelével transformação de uma forma esco-lar que, no caso brasileiro, tão logo se pretendeu democrática, aliou--se aos ditames daquilo que alguns autores têm chamado capitalismo

cognitivo. Entenda-se que, des-se ponto de vista, tanto a escola pública, com seu assistencialismo característico, quanto a escola pri-vada, convertida em uma espécie de shopping center pedagógico, atuariam, cada qual a seu modo, em prol de um mundo sob a batuta da governamentalidade de feições biopolitizantes. Em suma, o desa-parecimento da noção de educação como fator político determinante para a edificação de um mundo minimamente comum, doravante fragmentado em grupos identitá-rios próprios digladiando pela fatia maior do bolo social.

IHU On-Line - Pensando nas obras de Foucault e no seu diag-nóstico acerca da biopolítica, quais são os maiores desafios da escola contemporânea?

Julio Roberto Groppa Aquino - Para o presumível espanto de al-guns, chego a pensar (e a praticar, inclusive), em certos momentos, uma recuperação estratégica de alguns expedientes típicos da esco-la disciplinar de outrora. Fazendo--o, logro compreender e operar o espaço escolar, na contramão dos discursos contemporâneos, como uma arena ficcional, e de nature-za laboratorial, calcada em expe-riências, por um lado, de imersão vertical no passado e, por outro, de fomento a respostas crítico--criativas ao presente. Trata-se, em suma, de um convívio intensivo com os mortos, a matéria única de uma sala de aula que mereça seu nome, a fim de que nos constitu-amos como viventes igualmente dignos de um futuro que, não obs-tante, não será usufruído por nós. Em suma, a sala de aula como uma ponte artificiosa (composta de en-genhosidade e de artificialidade, ressalte-se), entre o que nos foi legado e aquilo que seremos capa-zes de reconstruir com as próprias mãos. Eis, em linhas gerais, o que compreendo como amizade inte-lectual, tida como atitude de rigor acentuado e, ao mesmo tempo, de afeição desmedida aos que já se foram e, sobretudo, aos que estão por vir. ■

Vale lembrar que o escopo das práticas educacionais

não se confina ao âmbito for-

mal/escolar

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A biopolítica educacional e a conversão dos sujeitos em indivíduosCarlos Ernesto Noguera-Ramírez analisa a forma pela qual os processos de formação transformaram-se em dispositivos de individualização

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

Crise. Eis uma palavra de apenas cinco letras capaz de descrever o momento de transição que vi-

vemos. Para o professor e pesquisador co-lombiano Carlos Ernesto Noguera-Ramírez, a sensação ao se observar a realidade edu-cacional também pode ser definida nesta pequena e impactante palavra. “Assisti-mos a uma crise sem precedentes da edu-cação, e essa crise, penso eu, pode ser en-tendida como uma crise de governo, como uma grande crise de governamentalidade, e poderíamos dizer, também, como uma crise biopolítica”, critica, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Os discursos do mundo educacional, como os discursos da autoajuda, procuram criar indivíduos felizes e bem-sucedidos, indivíduos que devem conhecer-se a si mesmos e explorar e desenvolver as suas capacidades e po-tencialidades: devem aprender a resolver problemas e devem, sobretudo, aprender a aprender para viver num mundo em per-manente e rápida mudança”, expõe.

Como os dias atuais estão léguas distan-tes da compreensão clássica do termo in-teresse (inter – esse – sujeito e objeto), as práticas do ensino contemporâneo ca-minham na contramão da lógica do ensi-no moderno, em que havia uma dimensão regimental da formação, que levaria à liberdade em seu sentido mais legítimo. “Hoje a ideia parece ser que essa perfec-tibilidade só se consegue com a aprendi-zagem permanente sem ensino, sem dire-

ção, sem cultivo, só interagindo com um meio que cada vez mais é o mercado. Aqui é onde se precisa de uma ressignificação da educação”, pondera o professor. “Hoje a educação permanente e a aprendizagem ao longo da vida é uma continuação do sonho comeniano, mas transformado em pesadelo sob a ilusão de que cada um, como empresário de si mesmo, poderá ser bem-sucedido e feliz no mercado que é o mundo ou no mundo que é um grande mer-cado, um supermercado”, complementa.

Carlos Ernesto Noguera-Ramírez é gra-duado em Psicologia e Pedagogia pela Uni-versidad Pedagógica Nacional – UPN, em Bogotá, na Colômbia. Realizou mestrado em História pela Universidad Nacional de Colombia – UNAL e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É professor na Universida-de Pedagógica Nacional, na Colômbia.

No dia 22-09, às 14 horas, no Auditório Pe. Bruno Hammes, o professor apresen-ta a conferência Aprendizagem e práticas de governamento: a necessária ressignifi-cação educacional, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacio-nal IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práti-cas na Constituição dos Sujeitos na Con-temporaneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o nexo en-tre aprendizagem e práticas de governamento?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - A aprendizagem tem a ver com a modificação das condutas,

com a transformação ou aquisição de comportamentos por parte dos indivíduos. Quando aprendemos, modificamos as nossas formas de agir frente a determinadas situa-ções; aprender é conduzir-se de forma tal que essa conduta seja

bem-sucedida e se repita dian-te da mesma situação ou frente a situações similares. O discurso educacional contemporâneo está centrado nesse conceito de apren-dizagem. Desde a Conferência Mundial de Educação para Todos,

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em Jomtien (1990), se começou a falar de necessidades básicas de aprendizagem, mas desde 1973 a própria Unesco anunciava uma transformação mundial que des-crevia como a passagem da educa-ção e do ensino para a aprendiza-gem, na medida em que as pessoas começavam a assumir a educação como um assunto de seu particular interesse, já não como algo que oferecia o Estado, mas como uma necessidade individual que deveria ser satisfeita pela atividade autô-noma do indivíduo como agente que se movimenta para conseguir suas metas.

Quarenta anos após o relatório de Edgar Faure1 titulado Aprender a ser, a Unesco citou uma Confe-rência Internacional sobre Cidades da Aprendizagem em Beijing (no outubro de 2013) e anos antes mu-dava o nome do seu Instituto de Educação -IUE, criado no ano de 1950, pelo novo nome de Institu-to da Unesco para a Aprendizagem ao Longo da Vida - IUL. Estamos na era do que Simons2 e Massche-lein3 denominaram o dispositivo de aprendizagem. Agora, seguindo--se Foucault,4 consideramos que o

1 Edgar Faure (1908-1988): foi um político francês. Ocupou o cargo de primeiro-mini-stro da França nos períodos de 20 de Janeiro de 1952 a 8 de Março de 1952; e 23 de Feve-reiro de 1955 a 31 de Janeiro de 1956. (Nota da IHU On-Line)2 Maarten Simons: professor da Faculad-de de Psicologia e Educação na Universida-de Católica Leuven - Bélgica. (Nota da IHU On-Line)3 Jan Masschelein: chefe do Laboratório de Educação e Sociedade, e do grupo de pe-squisa Educação, Cultura e Sociedade na Uni-versidade Católica Leuven - Bélgica. (Nota da IHU On-Line)4 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos

governamento consiste em certas formas de condução da postura própria e dos outros, então poderí-amos pensar que a aprendizagem, a insistência contemporânea na necessidade de aprender de ma-neira permanente e a longo da nos-sa vida é uma forma particular de governo de nós, uma forma em que a gente se conduz, uma forma em que se dirige a conduta de todos e de cada um.

IHU On-Line - Por que é necessária uma ressignificação educacional?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - Em vários textos eu venho insistindo na impossibilidade con-temporânea da educação. Assisti-mos a uma crise sem precedentes da educação, e essa crise, penso eu, pode ser entendida como uma crise de governo, como uma gran-de crise de governamentalidade, e poderíamos dizer, também, como uma crise biopolítica. A aprendiza-gem, como conceito e como práti-ca no campo educacional, implica uma centralidade no indivíduo e seus interesses e necessidades, em suas aptidões, suas atitudes; trata--se de um dispositivo que procura a conversão dos sujeitos em indiví-duos, dispositivo de individualiza-ção, de constituição de ‘eus’ que devem agir como empresários de si mesmos, como gerentes do seu próprio capital humano. Os discur-sos do mundo educacional, como os discursos da autoajuda, procu-ram criar indivíduos felizes e bem--sucedidos, indivíduos que devem conhecer-se a si mesmos e explorar e desenvolver as suas capacidades e potencialidades: devem aprender a resolver problemas e devem, so-bretudo, aprender a aprender para viver num mundo em permanente e rápida mudança.

Esses indivíduos que são promo-vidos por essas práticas e discursos educacionais contemporâneos pa-recem trazer em si mesmos tudo aquilo que precisam para viver no mundo atual. A ideia do ‘livre de-senvolvimento da personalidade’, a ideia da necessidade e do direito a eleger, a escolher desde muito

Cadernos IHU em Formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)

cedo, a ideia de que os indivíduos têm interesses particulares (dis-tinta da ideia clássica do interesse como aquilo que se produz na rela-ção entre – inter – esse – sujeito e objeto), a ideia de um eu que nas-ce com determinadas aptidões e capacidades singulares que se de-senvolvem num ambiente livre de intervenção, tudo isso vai contra a ideia moderna de educação.

O indivíduo aprendiz perma-nente, esse Homo discendis, não precisa ser ensinado, não precisa ser educado, cultivado, só preci-sa aprender. Hoje se promove e proclama uma ideia de liberdade como princípio e fim do que po-deríamos chamar de ‘autoeduca-ção’. Para aprender, o indivíduo deve ser livre para assim continuar em liberdade. A ideia moderna de educação, exprimida muito clara-mente por Kant,5 implicava partir da disciplina e da autoridade do adulto que representava a cultura na qual deveria ingressar a crian-ça, para, assim, como resultado da ação educativa, conseguir a auto-nomia e a liberdade. E essa é uma leitura ruim da educação liberal. Por exemplo, Rousseau6 sempre

5 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último gran-de filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fe-nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou-menon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci-mento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringi-ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibili-dade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível para do-wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU em Formação número 2, intitulado Em-manuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitu-lada A autonomia do sujeito, hoje. Impera-tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ihuon417. (Nota da IHU On-Line)6 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): fi-lósofo franco-suíço, escritor, teórico político e compositor musical autodidata. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do ro-

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considerou que Emílio precisava de educação, claro, não entendida como a ação direta do preceptor sobre ele, mas da ação do meio, do ambiente (preparado de alguma maneira pelo educador) para de-senvolver e permitir o crescimento de Emílio e suas capacidades. Essa educação liberal era pensada como um processo de perfectibilidade da natureza humana. Pelo contrário, hoje a ideia parece ser que essa perfectibilidade só se consegue com a aprendizagem permanente sem ensino, sem direção, sem cul-tivo, só interagindo com um meio que cada vez mais é o mercado. Aqui é onde se precisa de uma res-significação da educação.

IHU On-Line - Por que educar é uma arte de governo? Quais são os tensionamentos que surgem a partir desse binômio?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - A educação não é uma ação espontânea, casual, é uma ação intencional, tem um propósito e essa é fazer de um ser dependente, frágil, incapaz de se governar, um sujeito autorregulado, capaz de governar-se a si mesmo. Por isso a educação é uma arte. Agora, é pre-ciso esclarecer que se trata de uma arte impossível, como é a própria arte de governar. Não é possível governar, mas também não é possí-vel educar no sentido de conseguir mediante um processo bem defini-do uns fins particulares. Embora, é preciso tentar, como humanos não podemos renunciar a educar ou go-vernar, a menos que abandonemos o propósito da perfectibilidade, da melhora da humanidade, seja ela o que for.

Se Foucault falou nos seus últi-mos cursos da governamentalidade

mantismo. As ideias iluministas de Rousse-au, Montesquieu e Diderot, que defendiam a igualdade de todos perante a lei, a tolerância religiosa e a livre expressão do pensamento, influenciaram a Revolução Francesa. Con-tra a sociedade de ordens e de privilégios do Antigo Regime, os iluministas sugeriam um governo monárquico ou republicano, consti-tucional e parlamentar. Sobre esse pensador, confira a edição 415 da IHU On-Line, de 22-04-2013, intitulada Somos condenados a viver em sociedade? As contribuições de Rousseau à modernidade política, disponí-vel em http://bit.ly/ihuon415. (Nota da IHU On-Line)

e assinalou a constituição nos sé-culos XVI e XVII do governamen-to como uma transformação ou mutação do poder pastoral, esse processo pode compreender-se, seguindo a história da educação e as análises de Peter Sloterdijk,7 no seu livro Você precisa mudar sua vida (ainda não lançado no Brasil), como a expansão na população da arte de educar representada na fi-gura da escola comeniana e da sua proclamada ‘ensinar tudo a todos’. Aquilo que Foucault analisou como a governamentalização do Estado e Sloterdijk definiu como a mas-sificação de práticas de exercita-ção (disciplinarização), podemos entendê-la como a escolarização e educacionalização moderna. Desde esta perspectiva, não há uma ten-são entre governo e educação, mas uma identificação, uma assimila-ção, pois educar é governar a todos e cada um, e governar é educar. Durante os últimos quatro séculos, a humanidade tem se comprome-tido com uma inédita atividade de formar, educar, ensinar a todos como condição da própria humani-zação, pois o homem nasce incom-pleto, é só um animal discipliná-vel, quer dizer, o único animal que precisa ser ensinado para adquirir sua forma. Ainda que na Didática Magna Comenius fala de quatro escolas. Nos seus últimos escritos falou do mundo como uma escola, como a ‘casa das disciplinas’, ou seja, como o lugar onde as pessoas ensinam e aprendem. Comenius foi o primeiro mestre sem fronteiras e seus escritos e atividades educa-cionais foram a primeira Interna-cional da Educação (Sloterdijk). A vida iniciava na escola da materni-dade, passava pela escola do berço até chegar à escola da morte, pois

7 Peter Sloterdijk (1947): filósofo alemão. Desde a publicação de Crítica da razão cíni-ca, é considerado um dos maiores renovado-res da filosofia atual. Em 2004, encerrou sua trilogia Esferas (Sphären), cujos primeiros volumes foram publicados em 1998 e 1999. Interessado na mídia, dirige Quarteto filosó-fico, programa cultural da cadeia de televisão estatal alemã ZDF. Tem inúmeras obras tra-duzidas para o português, como Regras para o parque humano - uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo (São Paulo: Estação Liberdade, 2000). No sítio do IHU On-Line, foram publicadas várias traduções de entrevistas concedidas pelo filósofo. Elas podem ser acessadas pela busca em www.ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line)

o homem deveria aprender a mor-rer. Hoje a educação permanen-te e a aprendizagem ao longo da vida é uma continuação do sonho comeniano, mas transformado em pesadelo sob a ilusão de que cada um, como empresário de si mesmo, poderá ser bem-sucedido e feliz no mercado que é o mundo ou no mundo que é um grande mercado, um supermercado.

IHU On-Line - Quais são as ca-racterísticas da educação com ên-fase na governamentalidade dis-ciplinar e nas práticas biopolíticas da educação no neoliberalismo?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - A educação disciplinar é a es-cola comeniana, é a educação da sociedade disciplinar centrada no fato de que cada um deveria ser ensinado e instruído em espaços fechados como a escola, a fábrica, o quartel, o hospício, o atelier, sob a vigilância de um mestre e com efeito de um método. Com Rous-seau aparece uma nova e esquisi-ta forma de educar, pois rejeita a escola, rejeita o ensino e procla-ma a livre ação do indivíduo num meio (a natureza) fora da cidade (artificiosa). Os rigores das discipli-nas são deslocados pelas móveis e livres ações da criança num meio natural que excita seus sentidos e pensamentos. É uma educação doce, suave, tranquila, sem pre-sa ligeira, que não procura maior coisa, pois só quer formar um bom homem, que, ainda que não saiba muito, conheça o suficiente para ser um bom cidadão. Não obstan-te, é uma ação de governo que o educador exerce ainda que indi-retamente, não como a disciplina se exerce sobre o corpo do aluno, mas sobre o meio, sobre o ambien-te para que este estimule, incite a ação de Emílio para sua educação. Uma educação das coisas, da natu-reza e não do homem.

Educação neoliberal

A educação neoliberal, stricto sensu não é uma educação. É um abandono da educação pela apren-dizagem permanente e ao longo da vida. Tanto a educação liberal de Rousseau quanto a aprendizagem ao longo da vida são resultado ou

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efeito da crise da educação disci-plinar, da sociedade disciplinária ou das disciplinas, mas não são uma alternativa a ela. Na procura de ativar a educação liberal, essa que se fundamenta na liberdade, essa que, como diria Foucault, requer e consome liberdade, emergiram na década de 1970 duas alternativas: 1) a sociedade desescolarizada de Illich8 e 2) a educação permanente e a cidade da aprendizagem de E. Faure. Desde perspectivas ideoló-gicas e políticas diferentes, essas duas alternativas significaram o enfraquecimento da escola e a pe-dagogização ou educacionalização (como alguns colegas europeus gostam de falar) da sociedade. Mas também significou o enfraque-cimento da educação pela ideia de um deixar fazer e deixar ser sob o suposto de dignificar e respeitar a liberdade individual. O neolibe-ralismo educacional e governa-mental requer liberdade, produz e consome liberdade, mas o efeito, o resultado e os excedentes dela parecem ser bem pobres. Se Emí-lio, exemplo da educação liberal, não era um homem extraordinário, era só um bom homem, um bom cidadão mais ou menos ingênuo e com um saber mínimo do mundo, se o projeto liberal rousseaunia-no era fazer de Emílio um simples bonzinho, feliz na sua ingenuidade quase natural, o projeto liberal de criar um empresário de si mesmo bem-sucedido e feliz está produ-zindo frustração, depressão, de-sorientação, como assinala Richar Sennet9 no seu livro sobre a Corro-são do caráter (Rio de Janeiro: Re-cord, 2009). Em um texto anterior

8 Ivan Illich (1926-2002): pensador e po-límata austríaco. Foi autor de uma série de críticas às instituições da cultura moderna. Escreveu sobre educação, medicina, traba-lho, energia, ecologia e gênero. Pensador da ecologia política, foi uma figura importante da crítica da sociedade industrial. Confira a edição 46 da IHU On-Line, de 09-12-2002, intitulada Ivan Illich, pensador radical e ino-vador, disponível em http://bit.ly/ihuon46. (Nota da IHU On-Line)9 Richard Sennett (1943): é um sociólogo e historiador norte-americano, professor da London School of Economics, do Massachu-setts Institute of Technology e da New York University. É também romancista e músico. Casado com a socióloga Saskia Sassen, sua obra mais conhecida é O declínio do homem público. (Nota da IHU On-Line)

assinalava Bart Simpson10 como o Emílio do romance neoliberal, mas acho que Logan LaPlante11 (aquele guri que ministrou uma famosa pa-lestra no TED sobre como hackear a educação e ser feliz) é a melhor figura do neoliberalismo governa-mental ou educacional.

IHU On-Line - Nesse cenário, como podemos compreender a sociedade da aprendizagem?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - A sociedade da aprendizagem ou as cidades da aprendizagem, para utilizar a expressão da última Conferência Mundial da multina-cional da educação, realizada pela Unesco, são cidades ou sociedades decadentes, inviáveis, insuportá-veis, insustentáveis. Os graves pro-blemas de saúde, educação, traba-lho, violência, iniquidade, etc., são considerados como problemas na gestão do capital humano, particu-larmente, problemas relacionados com a incapacidade dos indivíduos de gerenciar seu capital humano. A mercantilização da vida, do mun-do, da natureza não leva a uma autorregulação, mas a uma concor-rência que implica a destruição do outro, à ganância de curto prazo, rápida, pois o futuro não existe mais. No neoliberalismo, a ‘mão invisível’ de Smith12 desapareceu e

10 Bart Simpson: Personagem do dese-nho animado Teh Simpsons, exibido no Bra-sil desde a década de 1990. (Nota da IHU On-Line)11 Logan Laplante: é um jovem, que aos 13 anos de idade, tornou-se famoso por sua conferência no TEDx em que conta sua expe-riências de ter sido tirado do sistema de ensi-no dos Estados Unidos para ser educada em casa. Ele e seus pais defendem a possibilidade de adaptar a formação aos próprios interes-ses e estilo de aprendizagem, algo que a edu-cação tradicional não oferece. (Nota da IHU On-Line)12 Adam Smith (1723-1790): considerado o fundador da ciência econômica tradicional. A Riqueza das Nações, sua obra principal, de 1776, lançou as bases para o entendimento das relações econômicas da sociedade sob a perspectiva liberal, superando os paradigmas do mercantilismo. Sobre Adam Smith, veja a entrevista concedida pela professora Ana Maria Bianchi, da Universidade de São Pau-lo - USP, à IHU On-Line nº 133, de 21-03-2005, disponível em http://bit.ly/ihuon133, e a edição 35 dos Cadernos IHU ideias, de 21-07-2005, intitulada Adam Smith: filósofo e economista, escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago Loureiro Araújo dos Santos, disponível em http://bit.ly/ihuid35. (Nota da IHU On-Line)

a satisfação dos interesses dos indi-víduos se faz ao preço da supressão dos interesses do outro. O planeta e a vida estão, pela primeira vez, em risco pela ação humana. A es-fera de imunidade construída na Modernidade (para falar em ter-mos de Sloterdijk) está quebrada e só um co-imunismo (para citar de novo Sloterdijk) poderia reversar a catástrofe do hiperindividualismo e do narcisismo contemporâneo.

IHU On-Line - Qual é a situação das pesquisas no campo dos estu-dos foucaultianos e da biopolítica na Colômbia?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - Diferentemente do Brasil, na Colômbia não temos um campo de estudos foucaultianos, mas temos, desde várias décadas, um volu-me significativo de trabalhos que, principalmente no campo do direi-to, das ciências sociais e na edu-cação, tem utilizado as distintas ferramentas do filósofo francês. No Colóquio de Biopolítica realizado em Bogotá no ano de 2013, mos-trou-se parte dessa ampla produ-ção de estudos sobre a biopolítica e sobre os trabalhos foucaultianos. Igualmente, no ano passado orga-nizamos em Bogotá um Seminário sobre os usos de Foucault para pensar a educação e ali confluíram parte dos pesquisadores que estão desenvolvendo estudos nessa dire-ção, tanto da Colômbia quanto de outros países como Brasil e Méxi-co. Outra diferença do Brasil, e em geral de América Latina, é que na Colômbia conseguimos consolidar um trabalho de longo prazo que, utilizando as ferramentas de Fou-cault, criou uma escola de pensa-mento que hoje completa quatro décadas de trabalho de pesquisa e formação contínua sobre os proble-mas da história da educação e da pedagogia. Meu livro, publicado no Brasil pela Autêntica, forma parte dessa tradição que tem-se enrique-cido com o grande e significativo trabalho que vem fazendo o pro-fessor Alfredo Veiga-Neto.

IHU On-Line - Como vê as articu-lações entre a Colômbia e outros países do continente, especial-mente o Brasil, no que concerne às investigações no campo em

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que a Educação se conecta com os estudos sobre a biopolítica?

Carlos Ernesto Noguera-Ramírez - Na verdade, considero que ainda exista um volume significativo de pesquisas e reflexões sobre a bio-política desde diversas disciplinas como a ética, o direito, as áreas da saúde, a filosofia e a educação. Es-ses diferentes trabalhos não consti-tuem um campo de estudos. A meu ver, um campo de estudos implica uma certa comunidade que se reú-ne, que realiza eventos, colóquios, congressos ou seminários, que pu-blica ou que mantém periódicos ou dossiês e coletâneas onde se discutem e abordam determinados temas ou problemas ou autores. É o caso dos estudos foucaultianos no Brasil, cujos trabalhos alimentam uma importante linha editorial na Autêntica e o Colóquio Internacio-nal Michel Foucault. Dentro desse campo, uma parte significativa está dedicada à pesquisa sobre temas educacionais liderada pelo profes-sor Alfredo Veiga-Neto, autor de um blog que difunde informação sobre a atividade da comunidade brasilei-ra e internacional.

Ainda que na Colômbia não exis-ta uma experiência similar, o ani-versário da morte do filósofo tem sido uma oportunidade para rea-lizar encontros de pesquisadores que desde diferentes disciplinas utilizam as ferramentas do pen-sador para realizarem diversas problematizações. A comemora-ção dos vinte e dos trinta anos da morte de Foucault permitiu, para o caso da educação, a realização de dois importantes seminários que têm convocado colegas de dis-tintas regiões do país e do estran-geiro. No primeiro seminário reali-zado em Bogotá em 2004, tivemos a grata oportunidade de conhecer o professor Veiga-Neto, e desde então iniciamos uma parceria que está aportando frutos bem interes-santes e que tem possibilitado um grande intercâmbio de experiên-cias acadêmicas entre colegas dos dois países.

Colaboração

Com a colaboração de várias universidades privadas e públicas da Colômbia, organizamos no ano

2013 o IV Colóquio Latino-Ameri-cano de Biopolítica e o II Interna-cional de biopolítica e Educação com a participação de um número considerável de colegas brasilei-ros. Como resultado desse evento, publicamos na Universidade Peda-gógica Nacional da Colômbia dois números em duas revistas (Revista Colombiana de Educación e Revista Pedagogía y Saberes), dedicadas ao tema da biopolítica, a governamen-talidade e a educação, publicações onde participaram colegas brasilei-ros. No ano passado, como come-moração dos trinta anos da morte do filósofo, organizamos em Bogo-tá, com a participação de colegas da Unisinos, da USP e da UFRGS, o II Seminário Internacional Pensar de Outro Modo. Ressonâncias de Foucault na Educação, evento ao qual assistiram colegas do México e convidamos o professor Michael Peters para que se aproximasse às nossas discussões.

No Colóquio deste ano aqui na Unisinos se lançará um livro co-memorativo dos quarenta anos da publicação de Vigiar e PunirI (Pe-trópolis: Vozes, 1987) dirigido pelo professor Silvio Gallo com traba-lhos de autores brasileiros e colom-bianos, entre outros. Eu acho que na última década fizemos um des-cobrimento mútuo de colombianos e brasileiros e esse encontro está rendendo. Sem lugar a dúvidas, somos os dois países do continente que têm uma significativa tradição na pesquisa e problematização de assuntos educacionais e pedagó-gicos utilizando as ferramentas foucaultianas.

IHU On-Line - Nesse cenário, qual é a atualidade dos escritos de Foucault no campo da Educação?

Carlos Ernesto Noguera-Ramí-rez - Ainda que o filósofo tenha morrido há trinta anos, seu pen-samento continua sendo muito útil para pensar as questões educacio-nais. Tanto suas elaborações arque-ológicas quanto aquelas centradas no exercício do poder, e também os seus últimos estudos sobre o gover-no e os processos de subjetivação, constituem-se ferramentas muito apropriadas para analisar os acon-tecimentos educacionais e pedagó-gicos. Em um artigo, eu e a pro-

fessora Dora-Marín falávamos do ‘efeito educacional em Foucault’ enquanto pensamos que o trabalho do filósofo teve que ver com assun-tos relativos à educação, ainda que ele próprio não fosse ciente disso. Um exemplo particular tem a ver com a noção metodológica de ‘go-vernamentalidade’, que conside-ramos mais bem compreendida a partir da análise das práticas peda-gógicas, pois estas constituem prá-ticas privilegiadas de condução da conduta própria e dos outros. Para suportar essa afirmação, mostra-mos nesse texto, a partir de exem-plos derivados de pesquisas pré-vias, a centralidade das práticas pedagógicas nos modos de praticar a condução da vida na chamada Modernidade e sua relevância nas formas de condução contemporâ-nea, como é o caso da aprendiza-gem permanente como condição para viver nas nossas sociedades.

Há outra questão que eu acho im-portante para ratificar a atualidade do pensamento de Foucault na edu-cação e na Pedagogia: depois das teorias críticas derivadas das pers-pectivas marxistas, as ferramentas de Foucault têm-se constituído hoje na perspectiva com maiores possibilidades de crítica para pen-sar assuntos contemporâneos como aqueles relacionados com a crise atual de governamento. Poder--se-ia dizer que as ferramentas do filósofo possibilitam hoje uma crítica da crítica, e isso é central num momento em que a crítica ao papel do Estado e aos dispositivos disciplinários, por exemplo, assim como a exaltação da liberdade ou das liberdades individuais, são tão valorizadas tanto pelo pensamento da esquerda quanto pelas perspec-tivas neoliberais. Pensar de outro modo hoje significa fazer uma críti-ca à individualização, ao indivíduo (e não só ao individualismo!); sig-nifica fazer uma crítica à ideia de liberdade, quer dizer, estudar a sua constituição histórica, suas condi-ções de possibilidade e seu signi-ficado em termos governamentais. Eis aí a potência do pensamento foucaultiano, eis aí as possiblida-des subversivas dessa crítica que alguns consideram simplesmente como perspectivas neoconservado-ras ou reacionárias. ■

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A estatização da vida e o controle das massas na densidade urbanaPara Silvia Grinberg, as cidades tornam-se o cenário da biopolítica, para a qual a gestão escolar da pobreza é sua principal chave de ação

Por Márcia Junges e Leslie Chaves | Tradução Janaína Cardoso

Entre outros aspectos, a coexistência den-sa dos indivíduos e a produção e circu-lação de bens são elementos que fazem

parte dos processos de urbanização de um terri-tório. Nesse contexto, o Estado se posiciona como o ente responsável pela proteção e administração da vida. Desse modo, conforme assinala Silvia Grinberg, “a urbe torna-se cenário biopolítico, expressão e realização do desdobramento de re-gularização da vida que implica essa ação política sobre a vida”. Ainda, para a pesquisadora, o espa-ço citadino assume centralidade nessas discussões porque “a vida urbana, o devir urbano constitui o ponto desde o qual amarra uma análise de nossa vida social, cujo estudo envolve a compreensão dos problemas associados com o nascimento da biopolítica”.

No cenário urbano, o cuidado do bem público, tarefa que as instituições estatais assumiram, aparece como preocupação e controle dos pobres desde os primórdios da urbe. Insere-se nesse pon-to a confluência da biopolítica com a escola e a pobreza. De acordo com Silvia Grinberg, o estabe-lecimento dos sistemas educativos modernos, no âmbito da coexistência densa urbana, foi pensado também como mecanismo preventivo e de manu-tenção da ordem, que implicaria no controle dos pobres. “De fato, uma das questões-chave destes sistemas foi a conformação do que hoje conhece-mos como a escola primária. Este nível é o que se estabelece como obrigatório e teve como princi-pal destinatário não tanto a infância em geral, se-não a infância pobre. A obrigatoriedade da escola primária se constitui na ação política sobre a vida desse conjunto populacional que já era, e ainda é, uma preocupação quando se trata do bem-estar da população e/ou da vida urbana”, constata.

Essa lógica do controle dos pobres também se estende para a distribuição dessa população no território urbano, que acaba sendo fixada em áre-as periféricas as quais, apesar de fazerem parte da cidade, contam com uma escassa ou nula urba-nização. Ainda, a presença do Estado nesses espa-ços é terceirizada para Organizações Não Gover-namentais e reforçada pela cultura do “faça você

mesmo”, onde a resignação é propagada como virtude e modo de controle e gestão da pobreza. “Temos assistido à gestação de uma especial polí-tica associada à provisão e ampliação de direitos que se tornam deveres para os cidadãos. Nestes bairros, os sujeitos se posicionam entre a lógica do empowerment e do pergunte a si mesmo”, ex-plica a pesquisadora. Conforme Silvia Grinberg, esse mecanismo se reproduz na escola, em todas as suas instâncias, culminando na distribuição desigual do conhecimento, que acaba perdendo importância diante das inúmeras dificuldades en-frentadas para se colocar em funcionamento essa instituição em um ambiente carente.

Silvia Grinberg é doutora em Educação pela Universidad de Buenos Aires - UBA, mestre em Ciências Sociais pela Faculdad Latinoamericana de Ciências Sociales – FLACSO e Bacharel em Ciências da Educação pela UBA. Atualmente é professora de Sociologia da Educação e diretora do Centro de Es-tudos de Pedagogia na Escola Contemporânea de Humanidades da Universidade Nacional San Martin – UNSAN e pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas - CONICET. Entre suas publicações destacam-se os livros Edu-cación y Poder em el Siglo XXI: Gubernamentalidad y pedagogía en las sociedades de gerenciamento (Buenos Aires: Miño y Dávila, 2008), El Mundo del Trabajo en la Escuela: La producción de significa-dos en los campos curriculares (Buenos Aires: Jor-ge Baudino Ediciones, 2004) e Proyecto Educativo Institucional: Acuerdos para hacer escuela (Buenos Aires: Magisterio del Rio de La Plata, 1999).

No dia 23-09, às 14 horas, no Sala Ignacio Ella-curía e Companheiros – IHU, a professora apre-senta a conferência Biopolítica e a gestão escolar da pobreza, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU |V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio In-ternacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contem-poraneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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A urbe torna-se cenário biopo-lítico, expressão e realização

do desdobramento de regulari-zação da vida que implica essa

ação política sobre a vida

IHU On-Line - Qual é a relação entre a biopolítica e a gestão es-colar da pobreza?

Silvia Grinberg - Creio que a primeira questão é reconhecer na noção de biopolítica seu enraiza-mento histórico. Ou seja, trata-se de uma noção que Foucault cons-trói dando conta das rupturas pró-prias que constituem um momento particular, da problematização de uma época assim como as proble-matizações dessa época. Isto que o autor chamou biopolítica envol-ve um modo específico em que os saberes, a política, o Estado se ocupam da vida e/ou dessa popu-lação. Esse processo que supôs a consideração da vida por parte do poder, a estatização da vida que, justamente, situou desde então o Estado como fiador e protetor da vida, como sabemos não dos indivíduos, senão da população. Trata-se de um fenômeno que se produz como algo próprio das ci-dades e/ou com a imposição da sociedade urbana. A criação des-se sistema operativo que, como destaca Choay1, vai definir ao ur-bano. A urbe torna-se cenário bio-político, expressão e realização do desdobramento de regulariza-ção da vida que implica essa ação política sobre a vida. Foucault se ocupa disto em vários textos e é

1 Françoise Choay: nascida em 1925, é hi-storiadora das teorias e formas urbanas e ar-quitetônicas e professora de urbanismo, arte e arquitetura na Université de Paris VIII. Cur-sou filosofia antes de se tornar crítica de arte. Nos anos 50 colaborou nas revistas L’Obser-vateur, L’Œil e Art de France. Nos anos 60 di-rigiu a seção parisiense da Art international. Da década de 1970 até hoje, publicou diversos estudos sobre arquitetura e urbanismo. (Nota da IHU On-Line).

uma questão que penso que pode rastrear-se desde suas primeiras obras até as últimas, mas que, cla-ramente, se desdobra quando de-senvolve as noções de biopolítica e governamentalidade. A gestão, senão também escolar, da pobreza é parte fundamental das biopolíti-cas da vida urbana.

Na última aula de Segurança, território e população, Foucault refere-se à urbanização do terri-tório que, em minha opinião, nos ajuda a pensar em nossos não tão novos problemas. A urbe, sinaliza, traz consigo a questão da coexis-tência densa: coabitação dos ho-mens, fabricação de bens, venda de produtos que são os eixos de preocupação que já no século XVII envolvem não só a cidade em si, mas ocorre como parte desse pro-cesso de urbanização do território que supunha fazer do reino, do território inteiro, uma espécie de grande cidade, procurar que o ter-ritório se organize como uma cida-de. Neste longo processo aparecem instituições que, como a polícia, vão se ocupar do bem-estar. O cui-dado do bem público que, já nestes séculos, aparece como preocupa-ção e controle dos pobres. Assim, por exemplo, a exclusão de quem não pode trabalhar e a obrigação de fazê-lo vai se aplicar àqueles que são aptos a se desempenhar como trabalhadores.

Vai-se tratar “do viver e o mais que viver, do viver e o melhor vi-ver”. Esta é uma preocupação ur-bana porque se trata de preocu-pações que só existem na cidade e porque há cidade. A saúde, a subsistência, todos os meios para impedir a escassez, a presença

dos mendigos, a circulação dos vagabundos, são questões próprias da medicina social que adquirem espessura própria a partir desta coexistência densa que envolve a vida urbana. De forma que é nesta especial configuração, o meio ur-bano, que esta população se tor-na categoria, objeto, branco de poder e saber. A cidade é muito mais do que um dado da análise da biopolítica: a vida urbana, o devir urbano constitui o ponto desde o qual amarra uma análise de nos-sa vida social, cujo estudo envol-ve a compreensão dos problemas associados com o nascimento da biopolítica, ainda que Foucault se ocupe desse nascimento em outros textos e não necessariamente no que leva esse nome.

Importa-me muito este marco porque estamos vivendo essa histó-ria, mas em uma terceira ou quarta saga onde agora assim o território, já não do reino, se tem urbaniza-do, e onde os fluxos são cada vez são mais globais. A pergunta pela cidade, pela bio-história, envolve uma história de nosso presente, de nossos modos de habitar e fa-zer a cidade em tempos de pós- metrópoles. Nesta cena, creio que necessitamos pensar a biopolítica nesse ponto de encontro que en-volve a escola e a pobreza nos pro-cessos constitutivos dos modernos sistemas educativos. De fato, uma das questões-chave destes siste-mas foi a conformação do que hoje conhecemos como a escola primá-ria. Este nível é o que se estabe-lece como obrigatório e teve como principal destinatário não tanto a infância em geral, mas a infância pobre. Isso envolvia ocupar-se de um modo, inclusive, preventivo dessa coexistência densa, do con-trole dos pobres que afligia e aflige a vida urbana.

Na América Latina isto foi fun-damental. O homem da cidade vestia o traje europeu enquanto o traje americano era vestido por essas raças que, afirmava, viviam na ociosidade e que espreitavam à beira das incipientes cidades. Já no século XIX se descreve as crian-ças das periferias como sujas, co-

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bertas de farrapos, que vivem com uma matilha de cachorros; homens estendidos pelo chão na mais com-pleta inatividade, no desasseio, e a pobreza por todos os lados. Po-deríamos continuar com essa des-crição. Os pobres eram descritos como ébrios, embrutecidos, toscos e imorais, como ameaças à vida ci-vilizada. Aqui ressaltemos dois as-pectos: primeiro, está claro que se trata de uma oposição assim como de uma descrição da pobreza que persiste até o dia de hoje. Segun-do, a obrigatoriedade da escola primária se constitui na ação po-lítica sobre a vida desse conjunto populacional que já era, e ainda é, uma preocupação quando se trata do bem-estar da população e/ou da vida urbana.

Separação entre pobres e ricos na cidade

A divisão entre bairros de ricos e pobres, como Foucault indicou com muita clareza, ocorre no sé-culo XIX quando os pobres, por um lado, se tornam força política ca-paz de revelar-se e seguidamente quando a epidemia da cólera cris-taliza os temores médico-sanitá-rios. A intervenção estatal sobre o direito à moradia e à proprie-dade se torna fundamental neste processo de divisão. A sensação predominante não era a culpa, senão o medo. Medo que também se estabelecia no velho temor à revolta que já Foucault descre-vera para o século XVII. A recolo-cação dos pobres, de suas viven-das, de seus lugares de vida já na primeira metade do século XX, se constituiu numa estratégia-chave da regulação da vida da cida-de. Agora, também sabemos que essa população pobre tornou-se força de trabalho do capitalismo industrial.

Desde o fim do século XX assisti-mos a processos de aprofundamen-to e sofisticação destas dinâmicas que envolvem a urbanização, assim como esse temor à revolta urba-na de uma população pobre cuja mão de obra às vezes já não pa-rece ser tão necessária, como Cas-

tel2 descreveu através da noção de supranumerários.

Em nossa contemporaneidade, as coisas sem dúvida mudaram um pouco. Necessitamos, ao mesmo tempo, ter este olhar de como chegamos a ser quem somos para entender a radicalidade de nossa contemporaneidade. Em nossas latitudes, isso apresenta especiais traços que, entre outros aspectos, se caracterizam pela consolidação de espaços urbanos que, parado-xalmente, se caracterizam pelo crescimento urbano, mas através de uma escassa e/ou nula urbani-zação. Se algo tem crescido des-de o fim do século passado são as vilas, cabanas, favelas, slums3 do sul global. As escolas não só não ficam fora destas lógicas se-não que estão atravessadas pelos mesmos traços que os setores das metrópoles onde estão implanta-das. Assim, se em algum momento o sistema educativo, a escola pri-mária, era chamada a formar tra-balhadores, no presente isso não é o que ocorre, inclusive apesar dos alunos e seus docentes. A ges-tão da pobreza se voltou sobre si mesma.

No trabalho de investigação que desenvolvemos nos encontramos permanentemente com docentes, alunos, famílias que lutam diaria-mente para ter boas escolas em seus bairros. Se há algo que é claro é a pressão que exercem as famí-lias mais pobres pelo acesso à edu-cação. De fato, vamos encontrar cada vez mais essa pressão na cir-culação da matrícula entre as insti-tuições: uma importante porcenta-gem da matrícula das escolas que estão fora das vilas se compõe com essa população. Agora essas lutas se enfrentam com condições políti-cas que arbitram, recarregando de responsabilidades os sujeitos e as instituições. E isso é fundamental para entender as formas da biopo-lítica contemporânea.

2 CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social. Uma crônica do salário. (Petrópolis: Vozes, 1995). (Nota da IHU On-Line).3 Slum: favela em inglês (Nota da IHU On-Line).

IHU On-Line - Como se pode compreender o nexo entre o aprofundamento da biopolítica e o aumento da pobreza?

Silvia Grinberg - Estamos viven-do um permanente processo de urbanização que, desde o final do século XX, apresenta as formas da metropolização onde os fluxos ur-banos não só crescem e se aprofun-dam, mas também se globalizam. Estes processos voltam a colocar a questão urbana no centro da cena, mas em termos que, apesar de não serem novos, são diferentes. Vi-vemos tempos de metropolização seletiva, caracterizados, por um lado, pela participação das cidades na excelência das redes de coman-do, e o aprofundamento das rup-turas e da pobreza no coração dos espaços urbanos, por outro.

As cidades contemporâneas são visualizadas como lugar de distri-buição de riscos que definem es-paços non-go4. Isto é fundamental porque tem múltiplos efeitos re-bote nas grandes urbes, não só no sul senão também no norte globa-lizado. Assim, por exemplo, a se-paração antiquada de bairros ricos e pobres, no século XXI apresenta uma lógica que envolve processos de fragmentação que em muitas urbes se traduz em segregação. Às vezes, essas lutas assumem a forma de revolta urbana, muitas outras, talvez as mais comuns, funcionam de um modo mais silencioso que envolve algo assim como ocupar e/ou ganhar espaços. Contra esse ficar de fora, esse ficar segregado, atuam essas lutas, ainda que não somente, pela escolaridade.

A lógica fragmentada do governo

As metrópoles constituem a cris-talização mais clara das lógicas fragmentadas que apresenta o go-verno da população nas sociedades contemporâneas onde, entre outros aspectos, tem crescido e se solidi-ficado aqueles setores da urbe que combinam extrema pobreza urba-na e degradação ambiental. Nestas

4 Non-go: espaços onde não se deve ir porque oferecem perigo. (Nota da IHU On-Line).

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tensões, a vida destes bairros fica associada de modos muito particu-lares aos discursos e tecnologias do empoderamento da comunidade, onde o local se define como locus de solução dos problemas da vida do bairro. Uma reformulação das relações entre a perícia e a política que situa a comunidade como locus de ação e gestão social. Assim, é possível identificar instituições di-versas, sobrepostas e também di-fusas que se tornam responsáveis pela vida de sujeitos e bairros. Mo-dos de agenciamento que combi-nam responsabilidade, autonomia e eleição na lógica da autogestão.

Porém, isso não quer dizer au-sência de Estado e muito menos de governo. Ao contrário, esta é a forma através da qual o Estado se faz presente, especialmente nos bairros mais pobres, distribuindo planos, subsídios através de Or-ganizações Não Governamentais - ONGs, ou promovendo a criação de cooperativas e/ou fundações que se tornam responsáveis tanto pelo financiamento como pelos proble-mas do bairro. Bayat (2000)5 obser-va isto mesmo na África e Ásia. Em todos os casos os governos alentam a iniciativa local que, na lógica da autoajuda, voltam ao bem-estar social uma questão de responsabi-lidades que os cidadãos individuais e/ou suas comunidades devem as-sumir para consigo. A proliferação das ONGs no sul global constitui um indicador-chave nesta matéria.

Observamos estas dinâmicas des-de 2004 diariamente nos bairros que na Argentina se chamam vilas miséria, onde nos encontramos de-senvolvendo um trabalho perma-nente de investigação. De fato, a criação destas organizações com epicentro no bairro tem cresci-do de modo exponencial e tem se constituído em caminhos através dos quais os indivíduos conseguem fundos, planos sociais, microcré-ditos, subsídios, mas também as formas que a urbanização assume.

5 BAYAT, Asef. From ‘Dangerous Classes’ to ‘Quiet Rebels’: politics of urban Subaltern in the Global South. International Sociolo-gy nº15, p. 533–556, 2000. (Nota da IHU On-Line).

Assim, na forma da forma de auto-gestão não só se põe em funciona-mento os refeitórios senão que se pavimentam as ruas.

Temos assistido à gestação de uma especial política associada à provisão e ampliação de direitos que se tornam deveres para os ci-dadãos. Nestes bairros, os sujeitos se posicionam entre a lógica do empowerment e do pergunte a si

mesmo. Tanto a provisão de água, como de energia elétrica, a coleta de lixo e/ou a melhora do poder legislativo municipal, também da escola, se encontram diretamen-te atadas a essa capacidade de agência.

Em suma, nos encontramos fren-te a novos modos de pensar a ges-tão da pobreza, onde é a noção de gestão a que requer ser examinada porque teme um efeito especial. Desde o fim do século XX assistimos a uns modos de pensar-nos onde as lógicas gerenciais atravessam e se expandem para além da empresa. As políticas sobre a vida se apro-fundam de um modo que já não envolvem este fazer viver e deixar morrer, mas que se apresentam na lógica do fazer-fazer/se viver. A frase fazer-se responsável expres-sa a lei motiv6 de nossos tempos.

6 Leitmotiv: (do alemão, motivo condu-tor ou motivo de ligação) é uma expressão idiomática alemã que significa genericamen-te qualquer causa lógica conexiva entre dois ou mais entes quaisquer. Na dramaturgia é uma figura de repetição, no decurso de uma obra dramática, de determinado tema, a en-volver significação especial. (Nota da IHU On-Line)

A gestão da pobreza se realiza através do empoderamento, auto-gestão e uma noção que se tornou fundamental que é a resiliência. Muito se tem escrito sobre a au-sência do Estado e/ou que o Estado abandona a população mais pobre. Basta caminhar um pouco por es-tes bairros para saber que nada é mais afastado dele. Inclusive mui-tas vezes se assinala que o Estado, se está presente, é só através da polícia. De fato, se há una institui-ção que dentro das fronteiras dos bairros deixa fazer é a polícia, de outro modo não se entenderia a re-alidade das vilas. A ideia de aban-dono não dá conta do que acontece nos bairros mais pobres de nossas metrópoles. Desde o fim do século passado, temos visto crescer uma importantíssima quantidade de programas e planos sociais que, na forma da promoção dos direitos, atua distribuindo planos e empo-derando comunidades. A lógica ge-rencial se traduz em um viver sem-pre à margem e nunca terminar de cair, por exemplo, essa agência ou inclusive essa resiliência que é per se elevada. Os sujeitos conseguem não só superar as condições do entorno, senão também melhorar permanentemente suas vidas.

IHU On-Line - Em que medida os currículos escolares expressam e reproduzem uma gestão escolar da pobreza?

Silvia Grinberg - Há nesta ques-tão múltiplos modos de ocupar-se do tema. Um é aquele que se re-fere aos modos em que os dese-nhos curriculares se explicam ou apresentam estas questões. Assim, por exemplo, no caso específico da formação de docentes resulta in-teressante. Nos deparamos com o fato de que se estabelece uma ex-plícita relação entre a atitude dos docentes e a produção da desigual-dade. Assim, retomando alguns dos postulados das investigações das denominadas pedagogias críticas do final dos anos 1960 em diante, os futuros docentes são convidados a reconhecerem através de quais atitudes associadas com a estig-matização produzem situações que redundam em reprodução da po-

A gestão, senão também esco-lar, da pobre-za é parte fun-damental das

biopolíticas da vida urbana

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breza. Sobre essas hipóteses flores-cem as propostas que reclamam às escolas que elevem a autoestima e trabalhem sobre a resiliência de seus alunos e estas são tecnologias próprias da gestão da pobreza.

Agora creio que necessitamos de investigações que se ocupem des-tes temas desde outro lugar. Nes-tas dinâmicas, as escolas não só não estão isentas dessas tecnolo-gias, senão que, de fato, de diver-sos modos são resultado da agên-cia que referíamos antes. Por um lado, porque de fato sua criação nos bairros foi resultado das lutas que os vizinhos realizaram junto com os docentes, para contar com instituições educativas na zona. As-sim, na Argentina, no começo dos anos 1990, diante do constante e crescente povoamento dos bairros mais pobres, as escolas existen-tes deviam funcionar em três tur-nos, fazendo com que fosse quase impossível que algo da ordem da escolaridade se fizesse possível. Neste contexto, diretores, docen-tes e vizinhos se constituíam em comissões que iniciaram distintas lutas e pressões que se resultaram na criação de novas escolas. Em to-dos estes casos, a construção dos edifícios esteve fortemente assen-tada na ação dessas comissões tan-to no que referia aos fundos que se juntavam através de quermesses, festas, etc., como à capacidade de conseguir financiamento nas múl-tiplas janelas que têm os estados nacional, estadual e municipal.

Estas dinâmicas têm ficado im-pressas, digamos, no DNA das es-colas. Tudo custa mais nestas es-colas: ter docentes, bancos, água, giz, etc., etc. Os diretores têm que ocupar-se inclusive de pesar a comida que lhes mandam ao refei-tório. Desde o mais simples até o mais complexo. E este não é mais um dado, já que atravessa as lógi-cas de fazer escola e ao currículo em seu fazer diário, já que redunda em um aprofundamento das dife-renças que se produzem na distri-buição e acesso ao conhecimento.

Seguidamente, nessa forma ge-rencial redundante, que recebe o nome de gestão do conhecimento,

se convidam aos docentes a dei-xarem de ensinar para orientar aprendizagens, buscas de informa-ção e a escola torna-se um lugar para a gestão das aprendizagens. É entre humilhante e surpreendente constatar como populações inteiras de alunos que ficam 12 anos nas es-colas terminam sem poder redigir duas orações.

IHU On-Line - Como podemos compreender o paradoxo que, em uma sociedade globalizada, cuja economia se sobrepõe a ou-tras instâncias sociais, como a po-lítica, por exemplo, os currículos escolares se estabelecem a partir do perfil de um sujeito inovador, pró-ativo e empreendedor?

Silvia Grinberg - Teríamos que ver se isso se trata de um parado-xo, ou melhor, da globalização das reformas educativas em tempos gerenciais. Este é o sujeito próprio das formas que apresentam as polí-ticas sobre a vida contemporânea. Não há oposição entre biopolítica e bioeconomia, ou melhor, se tor-naram uma mesma realidade. Rose fala de uma ética somática, uma refletividade de nós sobre nós mes-mos, sobres nossos egos, que se ocupa sobre o corpo, a carne. Ge-rir nosso ego é atuar proativamen-te sobre nossos corpos, administrar nossa saúde, tornar-se empresários do que comemos. As dietas se tor-naram a nova obsessão de nossos tempos. Temos que estar de dieta. A gestão da saúde se tornou parte das modulações que apresentam a experiência de si contemporânea e isso em uma forma onde biopolítica e biocapital coincidem.

O empreendedorismo se torna a chave do sujeito a formar, cha-mado a propiciar uma permanen-te gestão de si. Tal como Foucault propôs, aqui não se trata daquilo que a política deixa de fazer, se-não do que nos faz fazer. Se este autor encontrou no governo de si o modo em que quem devia governar aos outros primeiro devia gover-nar a si mesmo, assistimos agora a uma generalização desse governo de si que nos chama a atuar sobre nós mesmos. Este não tão sui ge-

neris governo de si se recarregou e nas reformas curriculares cada vez mais globalizadas nos chama a monitorar nossos atos, intervir preventivamente e responsabili-zar-nos por nossas conquistas e desde já fracassos. Salvamos a batalha com nossos egos cada vez mais precários. E, então, esse pa-radoxo se torna a batalha do self contemporâneo.

IHU On-Line - Em que aspectos se pode observar uma relação en-tre a elaboração dos currículos escolares e o neoliberalismo?

Silvia Grinberg - Em geral pre-firo não usar o termo neoliberalis-mo, porque me parece que encap-sula a discussão contemporânea e a possibilidade de compreender aquilo que estamos sendo e/ou so-mos chamados a viver. Assim, por exemplo, quanto às chamadas polí-ticas inclusivas: Onde as situamos? Como tem observado Corcini Lopes e Veiga Neto,7 a inclusão se torna parte fundamental da exclusão.

Agora, se não saímos dessa no-ção, não concluímos que a ques-tão curricular contemporânea se tem tornado bastante complexa. Por um lado, se tornou diversa e incluiu novos modos de pensar, como é o caso do gênero ou as et-nias. Inclusive os livros escolares, que constituem especiais modos de tradução curricular, cada vez mais abandonam os modos estere-otipados da sexualidade normal, a família tipo e/ou o modelo do ho-mem branco. Desde já temos muita investigação que fazer a respeito. Que formas assumem a regulação das condutas, os processos de sub-jetivação nestes tempos de diver-sidade, onde parece que já nada contrai nem diz quem podemos ser. De fato, cada vez mais somos chamados a modelar nossa sexua-lidade, a escolher quem queremos ser e desde já mudar quantas vezes queiramos. Às vezes, parece que o sonho se torna pesadelo.

7 VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura C. Inclusão e governamentalidade. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100 – especial, p. 947-964, 2007. (Nota da IHU On-Line).

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Agora, junto com isso, o currícu-lo se tem globalizado sem dúvida e neste outro sentido que referí-amos antes. Os docentes são cha-mados a flexibilizar o ensinamento para se tornar coach. E isto, en-contramos em praticamente to-das as latitudes. Junto com isso, um chamado a desestabilizar as disciplinas escolares em virtude de currículos flexíveis chamados a integrar saberes. Agora, se os docentes não devem ensinar, as disciplinas devem integrar-se e os alunos devem gerir a autoapren-dizagem, cabe a pergunta: quem vai ensinar e onde vão aprender os jovens a somar e diminuir, ler e escrever, etc.? Estamos viven-ciando um profundo descrédito do saber em virtude dos procedimen-tos. Inclusive toda a transmissão de conhecimento parece ser tra-dicional, bancária e/ou reprodu-tiva; parece que nas sociedades do conhecimento já não é impor-tante saber quando ou o que foi a revolução francesa, a coloniza-ção da América, um exemplo en-tre tantos. A memória ao mesmo tempo em que se circunscreve aos museus, parece ser algo mau para a aprendizagem. Claro, se tudo é aprender de memória, é um pro-blema; porém, estamos tão segu-ros que já não necessitamos saber e exercitar essa memória. A ideia da ubiquidade das aprendizagens tem deixado a escola acreditando que já não deve ensinar já que se aprende em todos os lados.

Seguidamente, a integração de saberes reclama o domínio dos dis-cursos. Para integrar, necessitamos conhecer os discursos, caso con-trário, essa integração é simples-mente impossível. Estamos vendo diariamente os resultados disso com gerações de jovens que obtêm o título da escola secundária com escasso domínio desses saberes. Isso ocorre sob a paradoxal situa-ção que nos circunda, vivendo na sociedade do conhecimento. Isto se torna parte integral da gestão da pobreza, onde as lógicas da au-togestão do saber não fazem outra coisa do que aprofundar cada vez mais o desigual acesso ao saber. E isto, se alguém sabe com clareza,

são os jovens que frequentam as escolas nas vilas, que sem eufemis-mos permanentemente sinalizam sua preocupação, porque se sen-tem cada vez mais burros.

IHU On-Line - Nesse sentido, se pode pensar a governamenta-lidade em estreita conexão com a gestão escolar da pobreza e a biopolítica? Por quê?

Silvia Grinberg - Biopolítica e governamentalidade na obra de Foucault se tornam conceitos nos quais a distinção conceitual é fun-damental, também ocorre que ali onde assinala que vai falar de biopolítica termina falando da go-vernamentalidade e termina assi-nalando que vai voltar a ocupar-se das políticas sobre a vida quando se tenha ocupado da questão do governo. Biopolítica e governa-mentalidade na obra de Foucault se tornam conceitos onde um e outro se explicam mutuamente. Também é provável que estejamos nestes tempos em melhores con-dições de realizar essa tarefa que determinava que fosse fazer. As políticas sobre a vida e suas múlti-plas intersecções contemporâneas constituem chaves nodais para a compreensão de nossa atualidade. De fato, as modulações do self pró-prias de nossos tempos nos lançam a avaliar o risco de nosso geno-ma ou a treinar nossos cérebros e constituem dinâmicas próprias das políticas sobre a vida nas lógicas próprias destes tempos gerenciais, onde a gestão de si tem se torna-do fundamental. Como observa Lemke8, a governamentalidade é o set da biopolítica e creio que com essa intersecção nos encontramos permanentemente.

Assim, por exemplo, em uma das escolas onde desenvolvemos o trabalho de investigação, nos deparamos com o fato de que, após longas gestões por parte das organizações de bairro, a escola consegue autogerir a pintura da

8 LEMKE, T. The birth of bio-politics: Micha-el Foucault’s lectures at the College de Fran-ce on neo-liberal governmentality. Economy and Society, London: Routledge, v.30, n. 2, p. 190-207, 2001. (Nota da IHU On-Line).

escola. É claro que isto se vive como uma conquista. E, de fato, de um modo muito particular, é. A questão é que esse embeleza-mento do edifício, mais do que um valor em si, se torna um re-curso, um exemplo cívico, de va-lores positivos onde se aprende que o aclamado direito à cidade constitui um dever da cidadania, resultante do empreendedorismo e o virtuosismo cívico.

Ao mesmo tempo, ocorre aqui-lo que Dean9 chamou de governa-mentalização do governo, onde as políticas sobre a vida se tornam responsabilidade de indivíduos e co-munidades. Isso gera um particu-lar modo de viver nas vilas, que se traduz em um estar sempre no limite, que gera ações e atitudes que se dirimem entre essa sorte de virtuosismo cívico no marco de jornadas solidárias e na capacida-de que se tem de gritar e golpear portas sem esgotar-se ou vacilar na tentativa. Agora bem, essa insistência, esse estar buscan-do como fazer do bairro e/ou da escola um lugar melhor é a outra face de Jano10, da gestão através da comunidade. No entanto, há ali um plus que é importante res-saltar. No bairro como na escola é frequente encontrar-se com vizi-nhos, mestres, diretores que, mo-vidos pela necessidade, se tornam advogados, arquitetos e/ou espe-cialistas em meio ambiente e isto se traduz em formas permanen-tes de buscar a saída para as coi-sas, para a vida. Essas lutas, essa agência, se tornam ameaçadoras e constituem um aspecto fundamen-tal da revolta contemporânea.

IHU On-Line - Em contextos de extrema pobreza e degradação

9 DEAN, Mitchell. Governmentality: power and rule in modern society. (Londres: Sage Publ, 1999). (Nota da IHU On-Line).10 Jano: (em latim Janus) foi um deus ro-mano das mudanças e transições. A figura de Jano, representada por duas faces, é associa-da a portas (entrada e saída), bem como a transições. A sua face dupla também simbo-liza o passado e o futuro. Jano é o deus dos inícios, das decisões e escolhas. O maior mo-numento em sua glória se encontra em Roma e tem o nome de Ianus Geminus (gêmeos Jano). (Nota da IHU On-Line).

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ambiental, qual é a peculiaridade da gestão escolar da pobreza?

Silvia Grinberg - Desde o fim do século passado, grande parte dos debates sobre a vida social se en-contra atravessada pela configu-ração e transformações do mundo urbano próprias do mundo globa-lizado, que envolve cada vez mais essa urbanização do território. O campo se urbaniza não só porque cresce o capacete urbano, senão porque a vida do campo torna-se urbana. Agora, estamos recém co-meçando a viver os efeitos dessa urbanização. Por um lado, referidas às elites globalizadas que fazem inversões produtivas e tecnológicas nas principais cidades do mundo e se constituem em um espaço fun-damental, como nós para tomar e pôr em marcha decisões políticas, econômicas e culturais. Por outro, a vida urbana se torna mais com-plexa, fragmentada em redes e restringida para importantes seto-res da população que, como parte dos processos de metropolização seletiva, ficam cada vez mais vi-vendo em espaços relegados e, no que se refere à metrópole do ter-ceiro mundo, também degradados.

A insegurança, a contaminação, e inclusive os processos de divisão da cidade entre ricos e pobres, por nomear só alguns dos que mais nos afligem, não são tão sui generis, mas trazem novas questões. Na Área Metropolitana de Buenos Aires nos encontramos com uma realida-de muito particular que provavel-mente se constitui no paroxismo do atual cenário de políticas so-bre a vida. Os bairros mais pobres da urbe têm crescido de maneira sustentada, com uma escassa e ao mesmo tempo comunitária gestão do espaço urbano; assim, desde a água até as ruas são resultado da agência dos habitantes do bairro que, às vezes, com mais ou menos fundos públicos conseguem ter luz, água e/ou asfalto. Seguidamente, ocorreu de maneira diretamente proporcional à criação dos bairros privados, que contam com dia-metrais condições ambientais e se assentam sobre as planícies de inundação dos rios elevando suas

alturas. O crescimento desordena-do se produziu em ambos os casos, mas está claro que com efeitos contrários. Uma terceira questão resulta interessante: os, diríamos, antigos capacetes urbanos, assim como as vilas, sofrem cada vez mais as inundações que se bem po-dem conduzir à mudança climáti-ca, está claro que esse crescimento díspar não faz mais que aprofundar a questão ambiental e deixa ata-dos tragicamente o ambiente e a pobreza.

IHU On-Line - Qual é o espaço para o exercício da autonomia do sujeito-aluno num contexto desse tipo?

Silvia Grinberg - A resposta é um pouco ao revés se o poder se exer-ce é, não diria sobre sujeitos autô-nomos, mas sim, como observava Foucault, sobre sujeitos livres e porque somos livres. Creio que isto é fundamental. A cada vez maior sofisticação das tecnologias de go-verno como das políticas sobre a vida ocorrem porque somos sujeitos livres. Se há condução das condutas é porque há sujeitos que devem ser conduzidos e isso não ocorre se não é pela vontade do poder que envol-ve toda relação de poder.

No caso da educação isto é im-portante. Isso porque é talvez a tarefa de condução mais eficiente, mas também mais necessária. Edu-car, sem dúvida, consiste em uma atividade que molda nossas condu-tas, nos põe no mundo, nos ensina um modo de pensar, julgar e atuar, em qualquer proposta pedagógica. Não há uma pedagogia que, por mais crítica que pretenda ser, con-siga escapar dessa trama.

Estamos vivendo os últimos anos em meio a algumas pedagogias que, sobre a base dessa crítica e enaltecendo-a, se configuram nas lógicas das sociedades de apren-dizagem que, como tem descrito uma série de pesquisadores, se tra-ta de um tipo de racionalidade que chama a educar sem mediar o en-sinamento. Está claro que alguém poderia pensar que finalmente deixamos livres os estudantes para que aprendam segundo seu ritmo,

interesses, necessidades, etc. Ago-ra a outra face disso é que vemos diariamente nas escolas, docentes que por um lado têm dificuldade para definir sua tarefa, já que são chamados, justamente, a deixarem de ensinar para orientar aprendi-zagens. Por outro lado, como pode alguém aos seis anos saber o que lhe interessa, como pode alguém formular problemas em uma dis-ciplina se desconhece os conceitos básicos. Como destacava Arendt11, estamos confundindo autoridade com autoritarismo e isso tem nos levado a crer que qualquer ato de transmissão é autoritário. Agora e novamente retomando a autora, sem esse ato de transmissão, cada nova geração estaria condenada a começar sempre do zero e está cla-ro que nada poderia ser pior.

De forma que, retomando a per-gunta: Nós, os sujeitos, somos li-vres e todo processo educativo é uma mostra disso. Temos mostras e exemplos muito diversos na histó-ria que nos mostram que nenhuma educação, por mais autoritária que seja, conseguiu domínios totais sobre as condutas. Somos sujei-tos livres e permanentemente nos revelamos. Isso explica as práti-cas pedagógicas que per se são de governo. A educação é onde, com maior clareza, nos encontramos com a condução das condutas e com as contracondutas.■

11 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica. Foi influenciada por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em consequência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os Estados Unidos, onde escreveu grande parte das suas obras. Lecionou nas principais universidades deste país. Sua filosofia assenta numa críti-ca à sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera econômica, tendo como modelo de inspiração a antiga cidade grega. A edição mais recente da IHU On-Line que abordou o trabalho da filósofa foi a 438, A Banalidade do Mal, de 24-03-2014, disponível em http://bit.ly/ihuon438. Sobre Arendt, confira ianda as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar-caram o século XX, disponível em http://bit.ly/ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponí-vel em http://bit.ly/ihuon206. (Nota da IHU On-Line).

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

O cuidado de si e a governamentalidade biomédicaLuis David Castiel analisa a forma pela qual os procedimentos medicinais se convertem em uma prática biopolítica

Por Ricardo Machado e Márcia Junges

Se pudéssemos afirmar que há um senso comum no discurso medici-nal, este está relacionado à ideia

de equilíbrio, um meio termo, práticas que mais ou menos servem para todo mundo. Não por acaso a biopolítica também com-preende a sociedade como uma espécie de meio termo que “equilibra” as singularida-des em algo que se convencionou chamar população. “Basicamente, as estratégias de autocuidado, especialmente sancionadas e naturalizadas no contexto da prevenção e da promoção da saúde, trazem como ele-mento central a receita do cuidado de si através do autocontrole e da moderação, sem permitir-se liberdades que escapem ao governo de cada um. Destacam-se os im-perativos dos comportamentos saudáveis quanto à atividade física e alimentação”, explica Luis David Castiel, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Paradoxalmente, o discurso médico com relação ao tratamento dos pacientes se apresenta, ao mesmo tempo, como parré-sia e retórica. “A parrésia foi abordada por Foucault significando, em poucas palavras, ‘dizer tudo’ e, por extensão, ‘falar com li-berdade’ e, portanto, ‘coragem de dizer a verdade’”. Por sua vez, a retórica é a arte da persuasão por meio de argumentos con-vincentes que independem da noção de ver-dade para o convencimento do(s) outro(s). Pode-se propor que a discursividade médica é capaz de apresentar, paradoxal e simulta-neamente, ambos os elementos”, argumen-ta o professor. Ainda há a questão do con-texto tecnocrático em que vivemos, onde as pessoas são compelidas a seguir instruções. “Certos aspectos da promoção da saúde possuem inegáveis elementos da governa-mentalidade biomédica. Naturaliza as pre-cariedades e produz um deslocamento para riscos preveníveis e patologias tratáveis.

Estes diagnósticos securitários de riscos se tornam imperativos que devem ser assumi-dos e tratados por aqueles que eventual-mente venham a portá-los, especialmente os que possam arcar com os respectivos cus-tos da securização”, complementa.

Luis David Castiel possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Com-munity Medicine pela University of London, doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz e pós-doutorado pelo Departamento de Enfermeria Comuni-taria, Salud Publica y Historia de la Cien-cia da Universidade de Alicante, Espanha. Atualmente é Pesquisador titular do De-partamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública e do Programa de Pós-Gra-duação de Epidemiologia em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz. É autor de di-versas publicações, entre elas: O Lagarto e a Rosa no asfalto. Odontologia dos desejos e vaidades (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013), Das Loucuras da Razão ao Sexo dos Anjos: biopolítica, hiperprevenção, produ-tividade científica (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011) e La salud persecutoria. Los límites de la responsabilidad (Buenos Aires: Lugar Editorial, 2010).

No dia 23-09, às 10h45min, no Anfiteatro Pe. Werner, o professor apresenta a confe-rência Autocontrole e biopolítica: a gerên-cia do risco na saúde, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacio-nal IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contempo-raneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line - De que maneira o “autocuidado” na saúde dos indi-víduos se converte em uma espé-cie de microfísica do “biopoder”?

Luis David Castiel - Para situar o autocuidado nestes termos, é pre-ciso encarar o biopoder mais como uma perspectiva que um conceito, no sentido de se constituir como um leque de iniciativas mais ou menos racionalizadas desenvolvi-das por autoridades no sentido de intervir no âmbito da vitalidade humana – seu nascimento, desen-volvimento, adoecimento e morte.

Para efeitos analíticos, autores como Paul Rabinow1 e Nikolas Rose2 – quando este ainda era um pensa-dor foucaultiano, na década pas-sada – consideram três elementos que são reunidos na ideia de biopo-der: o conhecimento dos processos vitais, as relações de poder que to-mam como objeto os seres huma-nos e os modos de subjetivação por

1 Paul Rabinow: graduado, mestre e doutor em Antropologia pela University of Chicago. Atualmente é professor de antropologia da University of California e diretor de Antropo-logia do Contemporary Research Collabora-tory (ARC). Atuou também como diretor de Práticas Humanas no Centro de Pesquisa de Engenharia Biológica Sintética, que consis-te em um grupo de pesquisa decentralizado com pesquisadores de sete universidades dos Estados Unidos. Confira a entrevista concedi-da por Rabinow à edição 429 da revista IHU On-Line, de 15-10-2013, intitulada O lugar do antropos sintético, disponível em http://bit.ly/1ctbdih. (Nota da IHU On-Line)2 Nikolas Rose: professor de Sociologia e diretor do Departamento de Ciências So-ciais, Saúde e Medicina do King’s College de Londres. Rose é codiretor do Centro de Biologia Sintética e Inovação (CSynBI), uma importante colaboração de pesquisa entre o King’s College e o Imperial College de Lon-dres. Biólogo, psicólogo e sociólogo, Rose cofundou duas influentes revistas radicais nos anos 1970 e 1980, desempenhando um papel fundamental na introdução do pensa-mento crítico pós-estruturalista francês para o público anglófono e ajudou a desenvolver novas abordagens para a análise e a estratégia políticas. Publicou amplamente sobre vários campos e disciplinas, e sua obra foi traduzida para 13 idiomas. É ex-editor administrativo de economia e sociedade e coeditor-chefe da revista interdisciplinar BioSocieties. Seu último livro, escrito com Joelle Abi-Rached, intitula-se Neuro: The New Brain Sciences and the Management of Life (Princeton: University Press, 2013). Leia o seu perfil in-titulado Nikolas Rose, um amigo crítico das ciências, publicado na IHU On-Line, edição 457, de 27-10-2014, disponível em http://bit.ly/1J3ydS7. (Nota da IHU On-Line)

meio dos quais os sujeitos operam sobre si mesmos enquanto seres vivos. Todos estes elementos pos-suem vínculos com o autocuidado.

O próprio Foucault3 utiliza a expressão ‘biopoder’ na última de suas conferências no Curso no Collège de France 1975-76, inti-tulado ‘A sociedade precisa ser defendida’. Para definir melhor os aspectos que está enfocando, explicita-os como sendo relativos a questões referentes a taxas de nascimento e os primórdios das respectivas políticas de interven-ção; questões de morbidade, não tanto epidêmicas, mas os agravos à saúde usualmente prevalentes nas populações e que demandam intervenções em termos de saú-de pública e assistência médica; problemas ligados aos idosos e acidentes passíveis de abordagens securitárias, problemas ligados à raça e os correspondentes efeitos, especialmente urbanos, das con-dições geográficas, climáticas e ambientais.

Como assinalado, a microfísica do biopoder no autocuidado se mani-festa no território da subjetividade de cada um. Há pressões biopolíti-cas que se configuram como man-datos de autodisciplina modelados pela ideia matriz de uma suposta autonomia demarcada por uma vigorosa noção de responsabilida-de pessoal em questões de saúde que é capaz de assumir contornos opressivos. Zygmunt Bauman4 con-sidera que as noções de responsabi-lidade e escolha responsável que se localizavam no terreno semântico da obrigação ética e preocupação moral pelo outro, passaram para o território da autorrealização e do cálculo de riscos, essencial para o exercício do autocuidado.

34 Zygmunt Bauman (1925): Sociólogo po-lonês, professor emérito nas Universidades de Varsóvia, na Polônia e de Leeds, na Ingla-terra. Publicamos uma resenha do seu livro Amor Líquido (São Paulo: Jorge Zahar Edito-res, 2004), na 113ª edição do IHU On-Line, de 30-08-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon113. Publicamos um entrevista exclu-siva com Bauman na revista IHU On-Line edição 181 de 22-05-2006, disponível para download em http://bit.ly/ihuon181. (Nota da IHU On-Line)

IHU On-Line - Esta preocupação do Estado e (talvez principalmen-te) da sociedade civil com os cui-dados que os sujeitos devem ter com seus corpos está voltada à saúde pública ou aos interesses produtivos dos sujeitos sociais?

Luis David Castiel - Antes de tudo, é preciso demarcar o que deve ser óbvio: isto se dá no in-terior do capitalismo globalizado neoliberal com seus cânones rela-tivos à liberdade de escolha, direi-to de decidir e, no caso da ativi-dade científica, por proposições sustentadas pelo individualismo metodológico. Este entendimento da realidade social considera que os fenômenos sociais são melhor explicados pelas características dos indivíduos compreendidos no fenômeno. Ou seja, toda análise que envolve explicações socioló-gicas no contexto macro deveria, a priori, ser colocada em termos de explicações no contexto micro dos indivíduos e suas ações. Mesmo que os saberes do campo da saúde pública sejam construídos através de pesquisas populacionais, seus conteúdos são extrapolados para prescrições coletivas em termos individuais.

Em outras palavras, o mode-lo se configura tendo como foco uma ideia de sujeito autônomo e responsável capaz de estabelecer relações de custo/benefício – mas que também poderiam ser de ga-nho/malefício – em suas ações e trocas nas interações com o mundo em que vive. Assim, indivíduos se-riam capazes de eleger o que seria mais adequado para suas necessi-dades, demandas ou preferências, conforme o jargão economicista. Isto deve ocorrer mediante suas supostas capacidades conscientes de atuar como agentes de consu-mo supostamente bem informa-dos em um mercado que oferece múltiplas e tentadoras opções aos consumidores.

Como rezam os clichês, as pes-soas que fazem a diferença devem sempre buscar a superação, não desistirem de correr atrás de seus sonhos proativamente, saindo de suas zonas de conforto, comprome-

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tidos com suas metas, para agregar valor com solidariedade pelos pró-ximos. E, sobretudo, transformar os riscos em oportunidades...

Adversidades

Porém, os efeitos adversos deste modelo – que não são poucos, nem triviais – muitas vezes implicam na dura face da precarização e sofri-mento humano de contingentes excluídos. Mesmo aqueles que pro-curam estar incluídos, pagam seus preços. Uma forma consagrada para lidar com os efeitos indesejá-veis deste modo de vida se dá atra-vés da patologização do mal-estar. Eventualmente, se responsabilizam aqueles que não sabem se pautar de maneira adequada às dinâmicas de vida estabelecidas socialmente por seus males e/ou por suas ina-dequações. Vivem-se tempos mo-ralistas, sobretudo no âmbito da saúde, onde vigora o primado do biopoliticamente correto.

IHU On-Line - De que maneira, via de regra, trocamos uma vida livre por uma vida longeva? Quais são as potencialidades e os limites de cada uma das perspectivas?

Luis David Castiel - Basicamen-te, as estratégias de autocuida-do, especialmente sancionadas e naturalizadas no contexto da pre-venção e da promoção da saúde, trazem como elemento central a receita do cuidado de si através do autocontrole e da moderação, sem permitir-se liberdades que escapem ao governo de cada um. Destacam-se os imperativos dos comportamentos saudáveis quanto à atividade física e alimentação.

Ambas se dedicam, em sínte-se, a sustentar, especialmente, os mandatos de se exercitar com re-gularidade, evitar ganho de peso acima de um certo patamar e mo-derar a ingestão de alimentos que não sigam o ideário dos insistentes enunciados do ‘estilo de vida sau-dável’. Assim se institui a promessa de maior sobrevida, preferencial-mente com vitalidade. Claro que há um pedágio para se alcançar esta graça. Ou seja, desde que nos

comportemos devidamente – jus-tamente no sentido de nos colocar comportas – para evitar transbor-damentos comportamentais. Para isto há que se exercer uma autovi-gilância sanitária intensa para con-trolar os possíveis excessos de uma existência à mercê de disposições subjetivas potencialmente dissolu-tas e das pressões sociais da cultu-ra de consumo hedonista.

Contradições

É interessante notar que a pala-vra ‘estilo’, seguindo o Dicionário Houaiss, significa uma haste de metal, osso etc., com uma ponta aguda, usada pelos antigos para escrever sobre tábuas cobertas de cera. Sua etimologia provém do latim ‘stilus’ – varinha pontuda; haste pontuda usada para escre-ver; daí deriva o sentido relativo ao modo de se escrever. O estilo de vida procura indicar um modo individual de se determinar auto-ralmente ao ‘escrever’ o próprio destino. Como se as contingências contextuais não determinassem muito dos textos e escolhas do car-dápio existencial estabelecido.

De modo esquemático, parece prevalecer no interior da existên-cia biopoliticamente correta uma perspectiva dualista com um apelo à mente sã que deveria se pautar por argumentos racionais do que deve significar viver humanamen-

te. Tais argumentos servem sobre-tudo para buscar a domesticação neopuritana de corpos. Parece que só assim haveria alguma garantia de que estes se mantenham sãos e salvos por longo tempo.

Espíritos animais

Há um juízo de que as pessoas são suscetíveis aos seus ‘demô-nios interiores’ capazes de fazer com que se perca o autocontrole. Este, inclusive, é uma noção cara à teoria econômica proposta por Lord Keynes5 que chega a indicar que se trata de “espíritos animais” que portamos. Diante das possibi-lidades tentadoras dos imperativos prazerosos apresentados pela atual cultura de consumo, o prêmio para este esforço virtuoso seria alcan-çar o bem maior de se usufruir da maior ‘longevitalidade’ possível de forma a permanecer um consumi-dor produtivo por longo tempo.

Só que probabilisticamente, isto não está garantido. Trata-se de uma aposta. Como se a meta úl-tima deste autogerenciamento de saúde, no limite paradoxal, fosse o de sair da vida bem tarde e de forma a mais saudável possível... Como sugere sintomaticamente o cartunista estadunidense Randy Glasbergen,6 ao mostrar a reco-mendação de um médico a um pa-ciente, ambos já na vida eterna, sobre as nuvens no Céu: – Pare de descansar em paz e comece a fazer algum exercício. Este é o protocolo para uma pós-vida saudável.

5 John Maynard Keynes (1883-1946): economista e financista britânico. Sua Teo-ria geral do emprego, do juro e do dinheiro (1936) é uma das obras mais importantes da economia. Esse livro transformou a teoria e a política econômicas, e ainda hoje serve de base à política econômica da maioria dos países não-comunistas. Confira o Cader-nos IHU Ideias n. 37, As concepções teó-rico-analíticas e as proposições de política econômica de Keynes, de Fernando Ferrari Filho, disponível em http://bit.ly/ihuid37. Leia, também, a edição 276 da Revista IHU On-Line, de 06-10-2008, intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Key-nes, disponível para download em http://bit.ly/ihuon276. (Nota da IHU On-Line)6 Randy Glasbergen (1957-2015): foi um cartunista e ilustrador americano humorís-tico mais conhecido durante três décadas do jornal Syndication. (Nota da IHU On-Line)

A receita do cuidado de si

através do au-tocontrole e da

moderação, sem permitir-se li-

berdades que es-capem ao gover-

no de cada um

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IHU On-Line - Levando em con-ta um certo modo hegemônico de enunciação sobre o cuidado de si, o discurso médico-sanitário se aproxima mais da retórica ou da parrésia? Por quê? De que forma isso ocorre?

Luis David Castiel - A parrésia foi abordada por Foucault signifi-cando, em poucas palavras, “dizer tudo” e, por extensão, “falar com liberdade” e, portanto, “coragem de dizer a verdade”. Por sua vez, a retórica é a arte da persuasão por meio de argumentos convin-centes que independem da noção de verdade para o convencimento do(s) outro(s). Pode-se propor que a discursividade médica é capaz de apresentar, paradoxal e simultane-amente, ambos os elementos.

Ela pretende ser um relato cuja retórica se apresenta e se legitima como um regime de produção de explicações verdadeiras cada vez mais configuradas pela perspecti-va do evidencialismo empiricista quantitativo. É importante assumir que, inegavelmente, a medicina atual detém alta capacidade reso-lutiva. Mas, ao mesmo tempo, se autoriza a uma retórica em termos hiperpreventivos de modo, diga-mos, biopoderoso. Aqui caímos em uma questão filosófica: podemos explicar funcionamentos, mas, não verdades. O problema é pre-tender explicar e instituir o que é verdade a partir do paradigma do funcionamento que estabelece um referencial de objetividade com-partilhada. Isto vai depender da capacidade de acesso aos achados que irão receber o estatuto de evidência – logo ‘verdade’, ainda que, eventualmente, transitória. Neste sentido, diz-se que a ciên-cia não é dogmática. Mas as ciên-cias médico-epidemiológicas são capazes de produzir preceitos ca-tegóricos quanto ao que definem como vida saudável. Sabemos que a lei da gravidade possui o esta-tuto de verdade indiscutível pe-rene. Já a suposta nocividade da alimentação com ovos, entre ou-tros alimentos, é capaz de variar conforme o sabor das afirmações evidencialistas.

Gestão da vida

Cada um de nós é passível de ser pautado por metas de gestão da vida como fenômeno biológico configurado por noções de risco propaladas por mensagens médico--epidemiológicas normativas a par-tir de porta-vozes da prudência, moderação e temperança em nome da vida saudavelmente regrada. Ou, ainda, determinadas por meios diagnósticos médico-laboratoriais. Por exemplo, o tratamento medica-mentoso preventivo com estatinas em função de alterações dislipidê-micas já vistas como pré-patologia. E, também, diante das alterações de valores numéricos definidores de estados sob risco, como a pré- hipertensão, a pré-diabetes e a osteoporose, bem como tratamen-tos dependentes de acesso a pro-dutos protéticos, farmacêuticos e biotecnológicos/genômicos.

Epidemiopoder

A partir da mesma perspectiva que Foucault desenvolveu a ideia de biopoder, podemos nos referir a um epidemiopoder que irá con-figurar práticas médico-sanitárias, se considerarmos as características básicas que definem o objeto das disciplinas neste âmbito – saúde e vida nas populações. Na atualida-de, é a normatividade de base epi-demiológica que rege os preceitos e recomendações que pretendem disciplinar as populações humanas no interior dos discursos de auto-cuidado centrados no comporta-mento saudável.

O epidemiopoder ocupa um lu-gar hegemônico no confronto das definições que se autorizam para estabelecer as decisões quanto ao rumo ‘correto’ das políticas, dos arcabouços administrativos, legais e institucionais e das ações, ba-seados nos padrões ditados pela expertise técnica vigente. O epide-miopoder participa ativamente na geração de uma cultura científica que configura nosso pensamento e a ideia que a sociedade moderna tem a seu respeito com base em distribuições de normalidade sus-tentadas pela curva normal.

Em outras palavras, o epide-miopoder consistiria em idiomas/vocabulários e argumentos morais sustentados pelos conhecimentos produzidos pelas ciências da saú-de. Destaca-se a epidemiologia como um dispositivo de técnicas e práticas de investigação cujos re-sultados pretendem revelar as con-dições de saúde quanto a riscos e agravos de grupos humanos.

Isto se dá mediante procedimen-tos e estratégias estatísticas lo-gicamente integradas em termos de variáveis de tempo, local e di-mensões biológicas, ecológicas, psicológicas, sociológicas, demo-gráficas, econômicas, entre ou-tras. Pretende-se, assim, constituir processos cognoscíveis biopolitica-mente corretos com suas leis e va-riações com vistas a instituir racio-nalidades, tecnologias e programas de intervenção no âmbito de, uma vez mais tomando-se liberdade com as ideias foucaultianas, uma epidemiopolítica.

IHU On-Line - Em que medida a medicina atual se configura mais como uma “tecnologia de segu-rança” e menos como uma ferra-menta de regulação e controle? Quais são as implicações biopolí-ticas deste tipo de expediente?

Luis David Castiel - A pretendida garantia de segurança proporcio-nada pela perspectiva de expertise técnica vinculada ao epidemiopo-der ancorada nas noções probabi-lísticas de risco se fragiliza. Pois se vê obrigada a se afastar da lógica da tecnossegurança ao assumir a possibilidade imprevisível de ocor-rências indesejáveis e, eventual-mente, desastrosas no horizonte. Isto ocorre em função da impossibi-lidade de que os cálculos de riscos tenham a capacidade de assegurar incondicionalmente a segurança almejada. A pretensão é que es-tudos de grandes massas de dados – chamados big data – virão sanar essas limitações. Ainda assim, mui-tas vezes, diante das vicissitudes da vida, não é possível antecipar o que não pode ser antecipado ou o que não se quer antecipar.

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Como vimos, as pessoas são com-pelidas a seguirem instruções para adotarem comportamentos saudá-veis virtuosos e a consumirem produ-tos e expedientes hiperpreventivos como fórmula para a desejada vita-lidade longeva. Em outras palavras, certos aspectos da promoção da saú-de possuem inegáveis elementos da governamentalidade biomédica. Na-turaliza as precariedades e produz um deslocamento para riscos preve-níveis e patologias tratáveis. Estes diagnósticos securitários de riscos se tornam imperativos que devem ser assumidos e tratados por aqueles que eventualmente venham a portá-los, especialmente os que possam ar-car com os respectivos custos da securização.

IHU On-Line - Por que os seres humanos em suas singularidades não se constituem como objeto da biopolítica? Como essas sin-gularidades se transformam em população?

Luis David Castiel - O conceito de biopolítica assume uma abs-tração de seus possuidores físicos concretos. Seus objetos não são seres humanos singulares, mas suas características biológicas medidas e agregadas no nível populacional. Estes procedimentos tornam possí-vel a definição de normas, estabe-lecimento de padrões e determi-nação de valores médios. A ‘vida’ (agora cativa entre aspas) se torna uma dimensão independente, ob-jetiva e mensurável, além de uma realidade prática e epistemologi-camente separada dos seres vivos concretos e da singularidade da ex-periência individual. E a noção de biopolítica se refere à emergência de disciplinas como a estatística, demografia, epidemiologia e bio-logia, que permitem analisar tais processos vitais na população e go-vernar indivíduos e coletivos para correção, exclusão, normalização, disciplina, terapia e otimização.

É preciso enfatizar a importância de que é preciso lidar constante-mente com a carga de informação pletórica que nos atordoa ao pre-tender proporcionar uma orienta-ção razoável, capaz de nos levar

erraticamente a descaminhos. Im-porta sustentar a possibilidade de que ainda nos cabe identificar e resistir aos agentes responsáveis pelos mal-estares nossos de cada dia, ainda que apregoem algo dis-tinto. É neste cotidiano gerador de ansiedades que a gestão dos riscos tende a ocupar um papel obsessor. E, ironicamente, impossível de dar conta do riscado.

Por sua vez, a tecnomedicina atual tem deixado a desejar por várias razões. Uma delas decor-re de suas estratégias prescritivas sob influência de insidiosas ações de marketing da Big Pharma sobre os prescritores de seus produtos. Além da transformação da relação médico-paciente em trocas entre prestador de serviços especializa-dos-cliente, elas são construídas a partir de conhecimentos biomé-dico-epidemiológicos que são pas-síveis de assumir uma forte feição medicalizadora.

Medicalização

Alguns encaram que o uso indis-criminado do termo ‘medicalização’ pode ser injusto com certas práticas benéficas à saúde viabilizadas pela medicina. Então, talvez a faceta criticável poderia ficar melhor re-presentada sob a expressão ‘me-dicamentalidade’, evidentemente inspirada na consagrada ideia de ‘governamentalidade’ de Foucault. Algo como a mentalidade médi-ca também empregada por outros profissionais de saúde que se torna

abusiva ao propor tratamentos me-dicamentosos ampliados além das prescrições farmacológicas usuais ao incluir, por exemplo, alimentação e atividade física como remédios.

A medicamentalidade está re-ferida, entre outros aspectos, à articulação no campo sanitário de instituições, procedimentos, análi-ses e reflexões, cálculos e táticas que produzem uma determinada forma intrincada de poder sobre a população, por meio da economia política, de instrumentos técni-cos essenciais e de dispositivos de segurança.

Governamentalidade

Em outra obra, o pensador fran-cês vai designar governamentali-dade como “o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si”. Através desta expressão, Fou-cault denomina ações que aprego-am uma suposta especificidade de cada pessoa em termos de tempo e lugar – algo explicitamente alegado pela epidemiologia ao conceber as variáveis de pessoa, tempo e lugar em seus estudos. Ora, as metas de tais ações, como visto, se dirigem à promoção hiperpreventiva da saúde e da longevidade. E, por ex-tensão, de governo da vida de cada indivíduo como membros de reba-nhos populacionais que deverão ser objeto dos poderes pastorais dos especialistas sanitários. E, tam-bém alegoricamente, os rebanhos devem agir como aqueles capazes de se movimentar estimulados pe-las cenouras da longevidade diante deles. Inclusive, assumidamente, esta hortaliça é considerada um ali-mento saudável. Mas que demanda moderação pelos riscos oferecidos pelo excesso de betacarotenos...

IHU On-Line - De que forma a busca por corpos atléticos e ma-gros se converteu em uma es-pécie de dever moral contem-porâneo? Como tais protocolos comportamentais se convertem em dispositivos biopolíticos?

Luis David Castiel - A questão atual relativa ao medo de engordar

Certos aspectos da promoção da saúde pos-

suem inegáveis elementos da

governamentali-dade biomédica

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e aos mandatos da atividade física chama a atenção, sobretudo, para as dimensões morais do problema e para o efeito, digamos colateral, das ansiedades produzidas pelos múltiplos riscos a serem gerencia-dos, especialmente em função da demanda de autocontrole na in-gestão de alimentos. Há um apelo intenso pelo que foi denominado como nutricionismo – a forma de encarar os alimentos especifica-mente mais por sua constituição química e menos pelo sabor.

De todas as formas, a relação da promoção da saúde alimentar com o ganho de peso tende a se inscrever no âmbito dos tratamentos morais que compõem o mal-estar na civi-lização globalitária, como sugere Milton Santos.7 E, claro, isto inclui a correspondente racionalidade pa-radoxal e ambivalente na operação de suas estruturas normativas duais e ambíguas – que simultaneamente estimulam e restringem. Não obs-tante, deve-se ter corpos prepara-dos e mentes treinadas à base do autocontrole para poder atuar com competência e resiliência tanto na produtividade laboral como nos momentos de desfrutar – com mo-deração – da fruição proporcionada pelos objetos e experiências ofere-cidas no mercado.

Coloca-se, então, a tarefa de bus-car outros compromissos ético-polí-ticos que se afastem da perspectiva utilitária dos agentes supostamente autônomos e racionais, com direito de decidir e escolher seus próprios benefícios diante dos custos esti-pulados – só que dentro de possi-bilidades afastadas de dimensões

7 Milton Santos (1926-2001): geógrafo bra-sileiro, foi um dos pensadores de nosso país mais respeitados em sua área. Em 1994, ele recebeu o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, na França, uma espécie de No-bel da Geografia. Santos exerceu boa parte da carreira acadêmica no exterior (França, Ca-nadá, EUA, Peru, Venezuela etc.). Foi profes-sor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo falecido em 2001. Santos publicou mais de 40 livros e 300 artigos em revistas especializadas. A Edi-tora Unesp publicou o livro SANTOS, Milton. 1926-2001. Testamento Intelectual/Milton Santos; entrevistado por Jesus de Paula As-sis; colaboração de Maria Encarnação Sposi-to. São Paulo: UNESP, 2004. (Nota do IHU On-Line)

emancipatórias. Neste sentido, tal proposição se configura como ne-cessidade de identificar e lidar com os paradoxos das dinâmicas biopolí-ticas que procuram modelar nossas relações com o contexto das práti-cas pessoais e coletivas em saúde. Temos de estar atentos para não sermos afetados pelos mecanismos culpabilizantes de responsabiliza-ção postos em ação no ambiente sociocultural vigente.

IHU On-Line - Como as discipli-nas empregadas no cuidado de si convergem àquilo que poderíamos chamar de “tecnologia da imor-talidade”? Do que se trata essa ideia? Que implicações biopolíti-cas estão por trás desta questão?

Luis David Castiel - Pode-se di-zer que a era moderna começou de fato com a ideia de busca compul-sória de felicidade – status de di-reito, dever e propósito maior da vida para aqueles que podem se dar a este privilégio. Temos, então, a busca da felicidade como autos-satisfação pessoal em um exercício que vincula individualismo e globa-lização neoliberal. Os mercados al-teram o sonho da felicidade como um estado de vida satisfatória para a busca infindável dos meios para se alcançar essa vida feliz que sem-pre parece estar adiante. O jogo para a busca de felicidade é correr, não chegar. Ou tentar descer ao playground do contentamento por uma escada rolante que não para de subir.

Contradições

Numa sociedade de consumido-res, estaremos felizes enquanto não for perdida a esperança de sermos felizes. Mas, a busca da felicidade é competitiva. O para-doxo de uma sociedade que esta-belece para todos uma meta que a maioria não consegue alcançar. Além disso, parece que neste contexto a maioria procura a fe-licidade onde não vai encontrá-la. Para o bioeticista Carl Elliott,8 a felicidade última seria o sonho

8 Carl Elliott (1961): Professor do Centro de Bioética e do Departamento de Pedriatria

humano de permanência, longe-vidade infinita, eternidade. Neste ínterim, mal-estar, sofrimento e infelicidade se tornam problema de bioquímica cerebral, sanável com psicofármacos.

O lugar-comum de correr atrás dos sonhos na vida transforma-se em projeto de planejamento e ges-tão racional da existência que deve mapear, organizar, escolher, com-parar com outros projetos de busca da felicidade. Mas as opções dispo-níveis vigentes tendem a apontar sobretudo para o êxito financeiro e prestígio pessoal em termos in-dividuais. Assim, pode-se desfrutar das benesses dos muitos objetos/experiências reiteradamente apre-sentados pela publicidade. Temos, sobretudo, tecnologias de aperfei-çoamento que atuam como ferra-mentas para supostamente produ-zir um projeto melhor ainda, mais bem sucedido, de acordo com os avanços tecnobiocientíficos. A bus-ca da felicidade se torna um tipo estranho de dever que demanda tecnologias para garantir que a vida renda motivos para autossa-tisfação individual maximizada. E, melhor ainda, com o aceno de acesso à ‘longevida’ o mais eterna possível.

IHU On-Line - De que maneira a alimentação deixa de ser um ato de vivência humana e passa a ser uma forma de busca da “inexis-tência de patologias”? De que for-ma esse ato natural se torna um processo tecnocrático?

Luis David Castiel - Não sei se é possivel definir ‘quanto’ que o ato humano de alimentar-se é natural ou tecnocrático. Em termos breves, somos misturas peculiares de natu-reza e cultura. Alguns até dizem que haveria uma desnatureza humana. De todo o modo, há algum tempo, prevalecem as recomendações pre-ventivas de moderação diante de atividades alimentares altamente difundidas, alegadamente viciáveis, como ingerir açúcar, gorduras e sal – substâncias pródigas em alimentos

e Filosofia da Universidade de Minnesota (Nota da IHU On-Line)

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processados, mas não só. Aliás, já existe regulamentação restritiva para o sal estar disponível nas me-sas de estabelecimentos públicos para, ao tentar evitar o fácil aces-so, obrigar os clientes que escolhe-rem pelo uso, exporem sua falta de estilo de vida saudável, solicitando a substância arriscada ao garçom. Alimentação e atividade física cor-retas são passíveis de ser encara-das, alegórica e literalmente, como medicamentos preventivos.

Além disso, há muitos estudos ba-seados em evidências que afirmam os efeitos deletérios de alimentos viciantes nas estruturas neuroendó-crinas relativas ao prazer, também envolvidas nos mecanismos de adic-ção a certas drogas opioides e dopa-minérgicas. Mesmo considerando a possível pertinência dos resultados de estudos empíricos que produzi-ram estes achados, eles veiculam indisfarçáveis matizes moralistas.

Como resistir aos apelos quase obscenos do contexto sociocultural que oferece prazeres legais e ba-ratos como os alimentos processa-dos, que estão compostos com as famigeradas gorduras trans, que proporcionam um sabor delicioso perigosamente adictivo? Pelo visto, restringindo ou proibindo sua ven-da, como ocorre em alguns países.

Alimentação

Como é possível saber-se durante a alimentação que não ultrapassa-mos o limiar salutar da modera-ção em situações cotidianas, mas potencialmente perigosas para

controlar se realmente estamos transitando no território protegido não vicioso no ato de alimentar-se? Mesmo correndo o risco de simpli-ficação, quando se encerra uma refeição com a sensação de não se estar completamente saciado (de-ve-se ter cuidados também ao ato de se comer entre refeições).

Como administrar com denodo as refeições nossas de cada dia man-tendo a atenção na medida em que se ingere o alimento se estamos saindo da saciedade comedida e ingressando licenciosamente na sensação de fartura? Sabe-se que pode, conforme alguns fatores e contingências, tardar algum tempo para que a sensação de saciedade se manifeste no decorrer de uma refeição. Ou seja, em suma, é pre-ciso sair da mesa, com alguma dis-ponibilidade, se houver vontade, de se comer mais... Decerto, parece inevitável o autocontrole vigilante que pode beirar dimensões obsesso-ras com a contabilidade constante de calorias e quantidade/qualidade da comida (e de fruição) à mesa.

IHU On-Line - Deseja acrescen-tar algo?

Luis David Castiel - Não à toa é tão difícil fazer/manter dietas. En-volve o convívio cotidiano de uma situação normativa dual: adminis-trar a possibilidade de satisfação numa atividade como o ato de comer, assumindo o potencial da-noso e viciante que a alimentação traz, e justificando imperiosamen-te a necessidade de contenção, por meio de uma gestão da saciedade

e do tipo de alimentação. E, claro, procurando deleitar-se, à medida do possível, com prazeres light. Como diz Zizek,9 um hedonismo envergonhado. E, aos que não pos-suem autocontrole, a imputação de descontrole/transtorno/vício e seus correspondentes tratamentos.

Inegavelmente, para diversas pessoas, esta pode ser uma pro-posta complexa e árdua de regime constante de vida, pois implica em atos de cuidado de si mediante pe-nitência preventiva para evitar a culpa dos pecados e riscos da in-temperança diante dos prazeres. Em geral, costuma-se pensar e falar muito de temas relativos à equa-ção saudável/agradável durante as refeições. Nos fins de semana, caso tenhamos nos comportado direito no decorrer dela, havendo queimado “gordura” previamente, pode-se permitir certas autoin-dulgências. Desde que voltemos à moral e aos bons costumes nas segundas-feiras e, sobretudo, na volta contrita das pantagruélicas festas de fim de ano – para aqueles que tenham o que comer ou pos-sam escolher os alimentos em suas refeições de todos os dias. ■

9 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): filósofo e teórico crítico esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador senior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as quais estão a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova York, e a Universidade de Michigan. Publicou recentemente Menos que nada. Hegel e a sombra do materialismo dialético (São Paulo: Boitempo, 2013) (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... — Saúde e tecnologia. A busca da imortalidade. Entrevista especial com Luis David Castiel publicada nas Notícias do Dia, de 14-04-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Q1flbG;

— A dominância das dimensões médicas na sociedade. Entrevista especial com Luís David Cas-tiel publicada nas Notícias do Dia, de 27-05-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1K86r7G;

— Medicina, técnica, ética e os dilemas preemptivistas na saúde. Entrevista especial com Luis David Castiel publicada na revista IHU On-Line, nº 420, de 20-10-2014, disponível em http://bit.ly/1hXLJkn.

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A educação como ruptura, não como institucionalizaçãoAlexandre Filordi de Carvalho defende a educação como um espaço de produção de novas subjetividades e não de serventia a afetos passivos

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

No front de batalha da insti-tucionalidade da educação não há nada de novo. Mi-

lhares de professores e pesquisadores travam uma luta que não é própria, fazendo inúmeras revisitas, revisões, desdobramentos teóricos e descreven-do procedimentos metódicos, mas com avanços muitos tímidos nas trincheiras da novidade. “O que inaugura de novo, com isso? Novo entendido, talvez, com a força da ideia de novo paradigma, conforme sugeria Thomas Khun, ou com o que faz pensar de modo com-pletamente diferente. Provavelmente quase nada”, critica o professor e pes-quisador Alexandre Filordi de Carvalho, em entrevista por e-mail à IHU On- Line. “Seria, a meu ver, promovendo rupturas nas redes e nos circuitos de saberes-poderes hegemônicos, a fim de atuar na composição de novas formas de lidar com o saber e de relacionar-se com as experiências para a formação de subjetividades ativas e não passi-vas”, propõe.

Em sua avaliação, a biopolítica opera no automatismo da institucionalização, o que levou Gilles Deleuze a associar tal sistema com a sociedade de con-trole à medida que as etapas a serem cumpridas estão todas pressupostas. “Ora, desinstitucionalizar a educação é justamente quebrar a relação cícli-ca dessa lógica. A função-educador, com isso, não pode ter a ingenuidade de que reformará a escola ou qualquer instituição. Ela deve ter a clareza de sua atuação no nível da micropolítica, no âmbito das pequenas descontinuida-des, no oportunismo de uma experiên-cia que forja um novo acontecimento”,

defende Alexandre. “Escutar alguém é relacionar com as suas margens huma-nas, com as suas finitudes. Desse modo, a escuta pode ser uma experiência para potencializar a desinstitucionalização dos padrões burocráticos, logo hierár-quicos, de relações, de entendimento, de trocas simbólicas, de produções dis-cursivas inclusive”, avalia.

Alexandre Filordi de Carvalho é gra-duado em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde também realizou mestrado. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em Educação pela Uni-camp, onde também realizou pós- doutorado. Atualmente, é professor de Filosofia da Educação na Universi-dade Federal de São Paulo – Unifesp também atuando como professor no Programa de Pós-Graduação em Edu-cação. É membro coordenador da Red Iberoamericana Foucault - RIF. É autor de Foucault e a função-educador: su-jeição e experiências de subjetividades ativas na formação humana (Ijuí: Uni-juí, 2010).

No dia 21-09, às 14h, no Auditó-rio Central, o professor apresenta a conferência A “função educador” na perspectiva da biopolítica e da gover-namentalidade neoliberal, evento que integra a programação do XVII Sim-pósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Saberes e Práticas na Cons-tituição dos Sujeitos na Contempora-neidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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A governamentalidade neoli-beral reativa constantemente a ordem abstrata de gestão: o

mais importante é o Estado, são as contas, o equilíbrio fiscal, a gestão correta, ou seja, tudo o que não é feito de carne e osso

IHU On-Line - Como pode-mos compreender a “função- educador”?

Alexandre Filordi de Carva-lho - Pode parecer que a ideia de função-educador seja apenas uma forma distinta ou rebuscada para nos referirmos ao professor ou ao educador. Mas não é. A função--educador é um conceito operador, logo, possui força própria. E nas fronteiras de sua especificidade, quer dizer justamente que nem todo professor, infelizmente, en-contra-se na função-educador.

Pensemos em um autor qualquer. Um pesquisador que, no cenário brasileiro atual, vê-se impelido a publicar os seus papers. O que ele faz? Revisita ou revisa referências, descreve um experimento, desdo-bra teorias e procedimentos metó-dicos, etc. O que inaugura de novo, com isso? Novo entendido, talvez, com a força da ideia de novo pa-radigma, conforme sugeria Thomas Kuhn,1 ou com o que faz pensar de modo completamente diferente. Provavelmente quase nada.

Isso nos serve para entender a seguinte dimensão: nem todo autor tem pré-requisitos para exercer a função-autor, como apontava Fou-

1 Thomas Kuhn (1922-1996): físico norte--americano cujo trabalho incidiu sobre his-tória e filosofia da ciência, tornando-se um marco importante no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Sua obra mais conhecida é A estrutura das revoluções científicas. (São Paulo: Perspectiva, 2003). (Nota da IHU On-Line)

cault.2 Para Foucault, a função-au-tor designa a força de um ato cria-dor por um autor que foi capaz de fundar uma discursividade. Em ou-tras palavras, a sua obra foi capaz de desdobrar outras obras, ou mais precisamente, de sua discursivida-de, surgiram outras. De Newton3

2 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)3 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrô-nomo e matemático inglês. Revelou como o universo se mantém unido através da sua te-oria da gravitação, descobriu os segredos da luz e das cores e criou um ramo da matemáti-ca, o cálculo infinitesimal. Essas descobertas foram realizadas por Newton em um interva-lo de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e 1667. É considerado um dos maiores nomes na história do pensamento humano, por cau-sa da sua grande contribuição à matemática, à física e à astronomia. O IHU promoveu de 03-08 a 16-11-2005 o Ciclo de Estudos Desa-fios da Física para o Século XXI: uma aven-tura de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, em específico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu palestra em 21-09-2005, intitulada A cosmo-logia de Newton. (Nota da IHU On-Line)

temos o newtonismo; de Marx4 o marxismo; de Freud5 o freudis-mo; de Darwin6 o darwinismo; são

4 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Leia a edição número 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, que tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx, dispo-nível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o autor, confira a edição número 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitula-da A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a entrevista Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, conce-dida por Pedro de Alcântara Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On- Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada no livro O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, que retoma o argumento central da obra de Marx O Capi-tal, disponível em http://bit.ly/IHUOn449. (Nota da IHU On-Line)5 Sigmund Freud (1856-1939): neurolo-gista, fundador da psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé-todo a hipnose, estudou pessoas que apresen-tavam esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas pulsões, foi influen-ciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se bases da psicanálise. Freud nos trouxe a ideia de que somos movi-dos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes foram contro-versos na Viena do século XIX, e continuam ainda muito debatidos hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a religião, disponível em http://bit.ly/ihuon207. A edi-ção 16 dos Cadernos IHU em formação tem como título Quer entender a modernida-de? Freud explica, disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line)6 Charles Darwin (Charles Robert Darwin, 1809-1882): naturalista britânico, propositor da teoria da seleção natural e da base da teo-ria da evolução no livro A Origem das Espé-cies. Organizou suas principais ideias a partir de uma visita ao arquipélago de Galápagos, quando percebeu que pássaros da mesma espécie possuíam características morfológi-cas diferentes, o que estava relacionado com o ambiente em que viviam. Em 30-11-2005, a professora Anna Carolina Krebs Pereira Regner apresentou a palestra obra Sobre a origem das espécies através da seleção na-tural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, de Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto Hu-manitas Unisinos - IHU. Sobre o assunto, confira as edições 300 da IHU On-Line, de 13-07-2009, Evolução e fé. Ecos de Darwin, disponível em http://bit.ly/UsZlrR, e 306, de 31-08-2009, intitulada Ecos de Darwin, disponível em http://bit.ly/1tABfrH. De 09 a

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exemplos de autores que exer-ceram a função-autor. Assim, a função-autor foi capaz de produzir uma ruptura, uma descontinui-dade cuja força fez emergir um novo rosto de concepções, de en-tendimento, de pensamento, de análise, de procedimentos, etc. A função-autor é a viva potência de capacitar o impensado a se efeti-var como realidade e na realida-de. O que somos, no limite, depois de Watson7 e Crick8? Um conjunto de sucessão de códigos possíveis de serem compreendidos quando são decodificados conforme signos criados pelos mesmos autores. Por-tanto, toda obra, na função-autor, não se restringe, portanto, ao au-tor, mas transfunde a própria cria-ção do autor, uma vez que ela foi capaz de produzir algo novo.

Levando essa conjuntura em con-sideração, assim como a função- autor criou algo novo, tensionando a configuração do poder hegemôni-co, sobretudo no âmbito de nossas relações com o conhecimento, com os saberes, com quaisquer práti-cas, a função-educador é uma ma-neira de conceber que o educador também pode cindir a configuração das relações de poderes hegemô-nicos. Por não ser essencial ou ex-clusivamente um cientista, como o educador poderia criar algo novo? Seria, a meu ver, promovendo rup-turas nas redes e nos circuitos de saberes-poderes hegemônicos, a fim de atuar na composição de no-vas formas de lidar com o saber e de relacionar-se com as experiên-

12-09-2009, o IHU promoveu o IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin. (Nota da IHU On-Line)7 James Dewey Watson (1928): é um biólogo molecular biólogo, geneticista e zoólogo estadunidense. Mais conhecido como um dos codescobridores da estrutura do DNA em 1953, com Francis Crick. Foi agraciado, juntamente com Crick e Maurice, foi agracia-do com o prêmio Nobel de 1962 em Fisiologia ou Medicina “pelas suas descobertas sobre a estrutura molecular dos ácidos nucleicos e seu significado para a transferência de in-formação em matéria viva. (Nota da IHU On-Line)8 Francis Crick [Francis Harry Comp-ton Crick]: (1916-2004): biólogo molecular, biofísico e neurologista inglês, mais conheci-do por ser um dos descobridores da estrutu-ra da molécula do DNA em 1953 com James Watson. (Nota da IHU On-Line)

cias para a formação de subjetivi-dades ativas e não passivas.

Do ponto de vista da função- educador, a subjetividade ativa encontrar-se-á na esfera de todo processo de criação que representa a dessujeição do educador dos me-canismos que aprisionam e norma-lizam suas ações, gestos e práticas que o finalizam como sujeito.

IHU On-Line - Em que medi-da podemos estabelecer nexos entre a “função-educador” e a biopolítica?

Alexandre Filordi de Carvalho - Partindo do pressuposto que a biopolítica investe sobre coletivos com o intuito de administrar a vida dos indivíduos ligados a qualquer coletividade, três aspectos eu des-tacaria entre a função-educador e a biopolítica.

Alunos

As escolas são organizadas por classes de alunos. Mas no que es-ses alunos se transformaram na sociedade biopolitizada? Eles fo-ram reduzidos a índices, a escalas, a um cálculo de probabilidade, a uma soma distributiva, a um cus-to previsto e a uma calculabilida-de econômica. Assim, cada aluno não é mais um indivíduo, mas um átomo fictício a ser administrado. A função-educador, nesse sentido, é convidada a agir como um tensor nessa estrutura biopolítica. Especi-ficamente ela é desafiada a tratar a formação do aluno como pessoa, como sujeito com potencialidade de romper com as abstrações po-pulacionais que roubam dele voz e vez históricas.

Educador

Mas na outra ponta, em segundo lugar, essa mesma atuação da fun-ção-educador deve ser destinada para si mesmo. Quer dizer, na mes-ma proporção que o aluno como indivíduo se perde na biopolítica, o mesmo ocorre com o educador. Logo, a função-educador é um re-fazer-se micropolítico face às pró-prias tarefas e às incumbências que

a relação com a educação supõe e exige de um educador. Ser educa-dor não é cumprir uma demanda burocrática nem uma tarefa re-petitiva, tampouco é fazer de sua ação e de sua presença um ecoar de previsibilidades.

Função-educador

Por conseguinte, em terceiro lugar, a função-educador é uma forma de desinstitucionalizar as relações estabelecidas nos dispo-sitivos educacionais. A biopolítica opera no automatismo da institu-cionalização. Por isso que Deleuze9 associou biopolítica com sociedade de controle, pois as etapas a serem cumpridas na vida estão todas da-das, pressupostas, administradas. Ora, desinstitucionalizar a educa-ção é justamente quebrar a rela-ção cíclica dessa lógica. A função--educador, com isso, não pode ter a ingenuidade de que reformará a escola ou qualquer instituição. Ela deve ter a clareza de sua atuação no nível da micropolítica, no âmbi-to das pequenas descontinuidades, no oportunismo de uma experi-ência que forja um novo aconte-cimento. Ela tem de cavoucar na burocracia espaços e lugares para tanto. Mas acredito ser o interior da sala de aula um lugar privilegia-do para romper com a lógica das abstrações populacionais da bio-política. E isso não começaria se fôssemos capazes, por exemplo, de saber o nome das pessoas com as quais nos relacionamos no coti-diano da educação, respeitando as suas singularidades e suas respecti-vas diferenças subjetivas?

IHU On-Line - Nesse sentido, quais são as relações e tensiona-mentos que surgem a partir da governamentalidade neoliberal?

9 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vin-cennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos, singularidades, con-ceitos que nos impelem a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de acontecimentos- outros. (Nota da IHU On-Line)

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Alexandre Filordi de Carvalho - Tomemos de modo concreto o que se passa no estado do Paraná, go-vernado por um partido neoliberal. A crise instalada ali, com toda falta de recursos para a educação, com o estrangulamento de condições minimamente humanas de traba-lho pedagógico, com o solapamen-to do reconhecimento do papel da educação como núcleo central na transformação social, com o uso de violência física, moral, psicológica e simbólica na contenção de mani-festações, enfim, tudo isso revela a dificuldade que temos de lutar contra o controle que coloca tudo sob um falso controle. O que isso quer dizer?

A governamentalidade neoliberal reativa constantemente a ordem abstrata de gestão: o mais impor-tante é o Estado, são as contas, o equilíbrio fiscal, a gestão correta, ou seja, tudo o que não é feito de carne e osso, mas que determina a limitação dos canais que geram, gestam e distribuem recursos e condições a tudo que diz respeito às necessidades humanas.

Tensionar essa governamentali-dade implica sair da abstração. Por isso as manifestações são impor-tantes, pois dão visibilidade ao que não se vê, ao que estava aquietado e mantido sob controle pela admi-nistração. Manifestar é combater a resiliência de todo quietismo. Os alunos estão o tempo todo ma-nifestando, mas colocá-los em or-dem, sem minimamente dar vez à voz deles, é recapturá-los na mes-ma lógica desse governo violento contra tudo que se antepõe a ele.

IHU On-Line - Quais são as con-tribuições dos estudos foucaultia-nos para o que você nomeia de “função educador”?

Alexandre Filordi de Carvalho - Eu diria que os estudos foucaul-tianos instigam a função-educador a contemplar três esferas de afir-mação criativa. Trata-se de: a) a relação do educador com a crítica, b) o educador no papel de intelec-tual específico e c) o educador na posição de educador infame.

A crítica vai exercer, em primei-ríssima mão, uma função interven-tora de limite diante dos excessos de governo e de condução que atin-gem amplas esferas da existência. O que acontece toda vez que obe-decemos? O que é ativado? O que está em jogo? Como a educação também envolve uma arte de go-vernar, a crítica, nesse caso, é uma capacidade de impor limites aos excessos de governo. Consequente-mente, a crítica busca transformar as relações estabelecidas numa perspectiva de poder, produzindo outras relações mais abertas, flui-das, heterogêneas, menos arbores-cente e mais rizomática.

Mas a crítica também é um po-sicionar-se a fim de fraturar os fo-cos de experiência que impedem outras derivações de saberes e de práticas que não sejam as já ins-titucionalizadas em seus governos. Em causa encontra-se a ativação das incoerências em face de um sistema normalizador de saberes, de matrizes de comportamento, de possíveis e de impossíveis para certos modos de ser. Com efeito, desinstitucionalizar a educação im-plica em um constante exercício de questionamento das forças cons-trangedoras da instituição escolar, dos limites impostos a cada sujeito no que diz respeito ao pensar, ao saber, ao fazer, ao poder ser; im-plica duvidar dos significantes mes-tres interpostos entre os jogos de qualificação e de desqualificação administradas. Desinstitucionalizar a educação também é ativar postu-ras e ações para “não aceitar como verdade o que uma autoridade nos diz que é verdade”, como afirmava Foucault em sua conferência deno-minada O que é a crítica.

Intelectual específico

Em outro nível, é preciso consi-derar aquilo que Foucault denomi-nava de intelectual específico. O intelectual específico é aquele ca-paz de fazer de um conhecimento ou de uma área que pressuposta-mente domina um campo de luta política para a transformação das relações de poder. Trata-se, como Foucault sugeria, de mostrar às

pessoas que elas são mais livres do que pensam, que tudo que consi-deram como verdadeiro e evidente não passa de aspectos produzidos em dado momento histórico, e que, portanto, podem ser diferen-tes do que são.

Se pensarmos no papel do inte-lectual específico na função-edu-cador, vemos que temos um convi-te à transformação das relações de entendimento e de valoração pre-ponderantes na atualidade. Quer dizer que o educador é convidado a se colocar para além de suas atri-buições burocráticas, fazendo dos saberes que domina uma navalha de cortar consenso, hegemonia, homonormatividades, repetições normativas e, sobretudo, condutas paralisantes de qualquer poten-cialidade criadora. Não devemos esquecer-nos que ao ensinar e for-mar, valer-se de uma ligação subje-tiva com outrem, o educador está estreitamente vinculado à produ-ção de verdade. E uma vez que no interior de todo saber circula uma verdade, constituir um novo regi-me político da verdade é sempre um desafio, como gostava de men-cionar Foucault. Por isso mesmo, tal postura torna-se um ponto de tensão interposto no caminho de todos os que fazem funcionar sua posição específica na ordem do saber.

IHU On-Line - Mas quem é o educador infame? E em que medi-da ele opera numa “dramaturgia do real”?

Alexandre Filordi de Carvalho - No célebre texto de Foucault A vida dos homens infames (in: Di-tos e escritos, v. 4. Trad. Vera Lu-cia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006), de 1977, o filósofo mostrou a história revigorada pelos acontecimentos não notados ou quase despercebi-dos, que testemunham e dão prova do mundo real sobre o qual nos co-locamos, mas nem sempre damos conta de sua existência. A vida dos homens infames é a “história minúscula”, que cativa e anuncia “vidas breves, reencontradas ao

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acaso, vidas singulares, estranhos poemas”, nos termos de Foucault.

Com efeito, o educador infame é educador vivo que, ao ensinar e ao relacionar-se com os seus edu-candos, afirma toda singularidade humana destituída de fama. Isso é a dramaturgia do real. Em outros termos, tal educador é aquele que se faz no dia a dia, na micropolíti-ca escolar ou em qualquer relação educativa. É ele um estranho po-ema despercebido, porém, dignifi-cado e invocado como parcela viva da história, fazendo girar as expe-riências mais reais, menores, nem sempre vistas e valorizadas, mas que estão lá, aqui, além de aqui: em todos os recantos, formas, ex-periências em sala de aula – nos cem lugares possíveis. O educador infame tem o seu conhecimento voltado à pontualidade do aconte-cimento real.

Heterotopias

No âmbito do infame, o educa-dor deixa de ser o sujeito “caça-do do mundo”, como mencionava Foucault. Isso quer dizer que ele afirma por intermédio de sua ação e de sua singularidade tudo o que intenta aniquilar as heterotopias e os “germes de um novo modo de existência”, nos termos de De-leuze. O educador infame, dessa maneira, traz para o âmbito do acontecimento histórico todo tipo de experiência outrora condenada a passar debaixo de todo discurso normativo e regulador, tal como ocorre nos condicionantes histó-ricos da biopolítica. O infame, ao contrário, pulveriza e espraia as dimensões de possibilidades de experiências de rompimento com o localizado, com o hegemônico, com o homônimo. O infame tam-bém desapostiliza e desvestibu-lariza a existência. Por isso mes-mo, passa a afrontar os canais de forças reprodutoras do modo de ser educador e do modo de ser educando.

Desinsitucionalização

Além de tudo isso, o infame é um nível de experiência fundamental

aos processos de desinsituciona-lização das relações humanas por intermédio da educação. Se de um lado toda a instituição requer para os seus sujeitos o cumprimento de seus rituais, inclusive nas for-mas mais perversas e hierárquicas possíveis, de outro lado o infame afirma-se como experiência de li-bertação possível ante tais rituais, pois o que mais importa é a con-sistência subjetiva dos sujeitos desde a potencialidade criadora de outras experiências à margem do institucionalizado.

IHU On-Line - Qual é a im-portância da escuta do pro-fessor à demanda do aluno na “função-educador”?

Alexandre Filordi de Carvalho - Se levarmos em consideração o que foi dito a respeito das estratégias de governamentalidade neolibe-ral e também acerca da função--educador na dimensão infame, é possível pensar que a escuta é uma possibilidade dupla de produzirmos experiências capazes de criar algo novo nos modos de afirmação dos sujeitos.

Desinstitucionalização

De um lado, a escuta é um rom-pimento com as abstrações dos indivíduos. Sabemos que nenhum aparelho burocrático escuta um in-divíduo. Ele não está nem aí para os problemas e as demandas singu-lares de cada um. O aparelho bu-rocrático age conforme os protoco-los. Ele é um monstro frio. A escola pode ser assim também, e sendo de tal modo, ela continuará fazen-do sentido à lógica do controle, dos dados, do oficialismo, das me-tas oficiosas. Mas escutar alguém é relacionar com as suas margens humanas, com as suas finitudes. Desse modo, a escuta pode ser uma experiência para potencializar a desinstitucionalização dos padrões burocráticos, logo hierárquicos, de relações, de entendimento, de tro-cas simbólicas, de produções dis-cursivas inclusive.

Com isso, de outro lado, a escu-ta nos coloca no patamar da dife-

rença, pois as demandas subjetivas entre falar e ouvir são sempre pes-soais. E a produção das diferenças começa quando somos capazes de acolher o lugar da fala de outrem e a própria fala de outrem. Como sempre lembrava Guattari,10 a fala ordenada linguisticamente é o sig-no fundamental para a existência de toda dominação subjetiva e, claro está, dominação das con-dições políticas de modos de ser. Romper com isso demanda ouvir livremente, dar espaço ao que é contingenciado.

IHU On-Line - Nos dias de hoje, qual é o papel do professor num país como o Brasil?

Alexandre Filordi de Carvalho - Eu realmente tenho dificuldade em responder a essa questão. O Brasil é um país continental e extrema-mente rico em suas especificidades culturais e regionais. Eu, pesso-almente, não acredito na escola que planifica, que visa competên-cia para o estado burocrático e a governamentalidade biopolítica. E não acredito no professor que re-duplica essas mesmas estratégias, que vestibulariza a existência. Ali-ás, gostaria que as coisas não fos-sem assim.

Eu diria que o papel do professor é o papel do educador infame e do intelectual específico. Estar na sua especificidade, lutando contra a abstração numérica da biopolítica. Há coronelismo ainda, há senhores do engenho com terno e gravata, há dominação nos campos; há a vida ribeirinha sendo marginaliza-da e entregue à míngua pelas es-tratégias do agronegócio; há a vio-lência no campo e na cidade, mas há também desemprego, fome, miséria, violência doméstica, alie-

10 Pierre-Félix Guattari (1930-1992): filósofo e militante revolucionário francês. Colaborou durante muitos anos com Gilles Deleuze, escrevendo com este, entre outros, os livros Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizo-frenia e O que é Filosofia?. Félix Guattari, do-tado de um estilo literário incomparável, é, de longe, um dos maiores inventores conceituais do final do século XX. Esquizoanálise, trans-versalidade, ecosofia, caosmose, entre outros, são alguns dos conceitos criados e desenvol-vidos pelo autor. (Nota da IHU On-Line)

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nação, desigualdade social, enfim, há tudo que é do homem.

Formas de convivência

Os professores estão também diante disso. Seria interessante se cada um pudesse pensar em aliar ao que ensina a ação infame, a afirmação singular em busca de subjetividades ativas, capazes de instigar ações de luta, de contes-tação, de movimento, de criação de outras formas de convivência, de relação humana e de modos de ser. Junto a isso estaria o caráter intelectual específico de cada um: como as ciências exatas podem ser instrumento de contestação? Como as humanidades e as artes podem ensinar a pensar, a agir e a fazer diferentemente do que fazemos? Não há fórmula para isso; não pode haver fórmula para isso. Mas pen-sar nessa direção já é algo que con-voca à ação.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios da formação docente?

Alexandre Filordi de Carvalho - Hoje eu diria que um dos maio-res desafios à formação docente é a superação do que denomino de empobrecimento subjetivo. O em-pobrecimento subjetivo é a total entrega aos padrões planificados de consumo, aos níveis mínimos de conhecimento técnico e objetivo, a uma redução completa da po-tencialidade humana em bobagem, em superficialidade, isto é, em re-produção estética, em reprodução

de memes intelectuais, em repro-dução de gostos e de afetos.

Seria muito urgente, por exem-plo, dedicarmos à leitura da lite-ratura clássica uma maior atenção para refinar os perceptus e os afec-tus humanos. Proust11 censurava os jornais porque, segundo ele, fazem com que prestemos atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais. Nem sei o que Proust diria se reencarnasse nos dias atuais! A questão é que o re-fino subjetivo demanda ir contra a temporalidade do banal, a tempo-ralidade do tempo perdido no surfe virtual sem sentido, na patifaria do riso fácil e na banalização do vul-gar. É assustador ver os alunos na graduação – e inclusive na pós-gra-duação – com os celulares ligados, a cabeça curvada, formando o que chamo de homem letra C, quan-do se está falando de Goethe,12 Proust, Nietzsche,13 Deleuze, etc.

11 Marcel Proust [Valentin Louis Geor-ges Eugène Marcel Proust] (1871-1922): escritor francês célebre por sua obra À la re-cherche du temps perdu (Em Busca do Tem-po Perdido), publicada em sete volumes entre 1913 e 1927. (Nota da IHU On-Line)12 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): escritor alemão, cientista e filósofo. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Juntamente com Schiller foi um dos líderes do movimento literário romântico alemão Sutrm und Drang. De suas obras, merecem destaque Fausto e Os sofrimentos do jovem Werther. (Nota da IHU On-Line)13 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi-lósofo alemão, conhecido por seus concei-

É como se isso não fizesse sentido para o necessário imediato, o ur-gente, o banal. Enfim, penso que o grande desafio na formação do-cente hodierna é o de lutar contra o empobrecimento subjetivo que, por sua vez, reduplica o empobre-cimento das formas de lidar com os desafios desumanizadores do mun-do atual. ■

tos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível para do-wnload em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitu-lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis-mo radical de Nietzsche não pode ser mini-mizado, na qual discute ideias de sua confe-rência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI Simpó-sio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e dis-ponível para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O amor fati como res-posta à tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/Hza-JpJ. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... — Foucault e a questão da crítica em torno da biopolítica. Artigo de Alexandre Filordi de Car-valho publicado na revista IHU On-Line, nº 335, de 28-06-2010, disponível em http://bit.ly/1KLOi4P;

— Do gozo Ubu ao gozo degenerado: a afirmação de sexualidades heréticas a partir de Fou-cault. Artigo de Alexandre Filordi de Carvalho publicado na revista IHU On-Line, nº 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/1IN3B72;

— A função-educador e a educação desviante. Artigo de Alexandre Filordi de Carvalho publi-cado na revista IHU On-Line, nº 374, de 26-09-2011, disponível em http://bit.ly/1EDuakg.

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O exercício da liberdade como cuidado de siOs pesquisadores Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez analisam a forma pela qual o cuidado de si representa uma relação intrínseca com o outro

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Karen Monique Souza

Não há cuidado de si sem re-conhecimento ao outro, isso porque, logicamente, reco-

nhecer a si próprio implica perceber o outro. Assim como liberdade não im-plica a possibilidade de fazer o que se quer pessoalmente, tampouco subme-ter-se a um sistema externo de estímu-los. “A liberdade implica criar nossas próprias leis, ou seja, criar junto com outros nossas leis. Se isso não é pos-sível nas democracias representativas, pelo menos pode ser uma possibilida-de no âmbito das relações singulares”, sustentam os professores Marco Anto-nio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Neste sentido, conside-ramos que as democracias vigentes em nossos países e no mundo são o contrá-rio à liberdade. Precisamente por isso é importante retomar e refletir sobre o ‘dizer veraz’, a verdade e a liberdade que coloca Foucault”, complementam.

Ao refletir sobre a liberdade desde o ponto de vista apresentado pelos professores, é preciso considerá-la não como um ponto de chegada, mas como um processo micropolítico de resistência. “Particularmente nós, os latino-americanos, sabemos o que isso significa, pois ajustar-nos a normas e exigências estranhas aos nossos costu-mes nem sempre resulta em um bom caminho”, propõem. “Pensar em outro mundo não é negar este mundo, não é acreditar no paraíso ou inferno, pensar em ‘um mundo outro’ é aceitar que o paraíso e o inferno estão aqui mesmo. Como diria Ítalo Calvino em sua novela Cidades invisíveis (São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1998), o inferno está

aqui nesta terra e o que fazemos é construir e alongar, até o limite, espa-ços que nos permitam viver de outra maneira”, avaliam.

Marco Antonio Jiménez García é doutor em Ciências Sociais pela Uni-versidade Autônoma Metropolitana Xochimilco - UAM-X, professor em Ci-ências Humanas e Sociais na gradução e pós-graduação da Universidade Autô-noma do México – UNAM e da Univer-sidade Autônoma da Cidade do México – UACM. Integra a Academia de Teoria e Filosofia da Educação, é membro da Associação Filosófica do México e do Conselho Mexicano de Pesquisa Educa-cional e Investigação Rede Foucault.

Ana María Valle Vázquez é doutora em Educação pela Faculdade de Filo-sofia e Letras da UNAM. Atualmente é professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Ensino em Ciências Humanas de Morelos e da UNAM. Integra a Aca-demia de Teoria e Filosofia da Educa-ção, a Associação Americana de Filoso-fia da Educação e a Rede Internacional de filósofos da Educação.

No dia 24-09, às 9 horas, no Anfite-atro Pe. Werner, o professor Marco Antonio Jiménez García apresenta a conferência Educação e cuidado de si, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Co-lóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopo-lítica e Educação. Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Con-temporaneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line - Quais são as re-lações fundamentais que podem ser estabelecidas entre a educa-ção e o cuidado de si?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Exis-tem várias atividades nas relações humanas que se caracterizam pelo cuidado de si, por exemplo, o que na atualidade chamamos esporte, o cuidado dos doentes e o ensino. Três atividades que se caracteri-zam por um exercício contínuo, em busca da melhoria das condições do corpo, da saúde e do conhecimen-to. O cuidado de si mesmo sempre implica no cuidado com o outro, particularmente na educação, não poderia haver cuidado de si sem a atenção ao outro. Educar é tanto o cuidado de si, como o cuidado do outro.

Se relacionarmos a educação com a pedagogia, que não são iguais, poderemos dizer que as ci-ências, tanto as chamadas exatas como as denominadas do espírito (entre as quais se encontra a pe-dagogia) estão prescritas em um pensamento cartesiano, ou seja, o sujeito e a subjetividade se funda-mentam na autoconsciência de si e com relação à ideia de verdade como conhecimento de si mesmo. Pareceria ser que o preceito dél-fico “conhece-te a ti mesmo” nos instruiu, mas não nos educou nessa tarefa. De alguma maneira, Platão1 não faz senão afirmar, a seu modo, o imperativo de que “a verdade” está nas ideias e de que todo co-nhecimento não é nada mais que a contemplação da verdade ab-soluta. No entanto, este modo de ver o preceito gnothi seauton se transforma com a luz lançada pelo

1 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República (São Paulo: Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo: Martin Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As implicações éticas da cosmologia de Pla-tão, concedida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU On-Line, de 04-09-2006,disponível em http://bit.ly/pte-X8f. Leia, também, a edição 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento, disponí-vel em IHU On-Line)

trabalho que Foucault2 realiza com respeito ao conceito de epiméleia heautou (cuidado de si).

Sobre o dito anteriormente, as relações que podemos estabelecer entre o cuidado de si e a educa-ção são: 1) todo o cuidado de si é um cuidado com o outro; 2) o cui-dado de si não implica puramente autoconsciência, mas também a realização de certas práticas com outros; 3) Na educação, a relação com o outro se refere a singulari-dades e não em um sentido uni-versal absoluto; 4) são práticas constantes que vão desde o pensa-mento até o exercício corporal; 5) a relação cuidado de si e educação de modo algum implica relativismo ou universalismo, e sim uma prag-mática do sujeito na história; 6) o cuidado de si e a educação supõem a parrhesía (dizer a verdade), é uma tensão constante em busca da verdade, e não as autocomplacen-tes fórmulas da verdade universal, nem do relativismo do verossímil.

IHU On-Line - Como podemos compreender adequadamente o conceito de cuidado de si a partir do pensamento foucaultiano?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - A noção de cuidado de si em Foucault diz respeito a “dizer a verdade”, aspec-to que nos vincula com a interpreta-ção ética, que desde Nietzsche3 não

2 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em Formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)3 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó-sofo alemão, conhecido por seus conceitos

tem a ver com o bem ou o mal, no seu sentido abstrato ou metafísico, mas com práticas concretas do que é bom e do que é mal. Assim, cuidar de si, de nenhuma maneira, é uma noção que deve ser entendida como um bem em si mesmo, e sim como uma possibilidade de experiência com os outros. O valor, o resultado, os benefícios e os prejuízos dessas experiências, produto do resulta-do de si, correspondem a singula-ridades e a conjunturas, e não são resultado de causalidades e muito menos se convertem em causas de outras coisas. A noção de cuidado de si mesmo em Foucault nos per-mite reconhecer uma circunstância diferente sobre o controle de ou-tros sobre nós mesmos e, ao mesmo tempo, nos sugere o controle de si. Tal questão nos introduz ao terreno da biopolítica.

IHU On-Line - Em que medida Foucault dá prosseguimento ao

além-do-homem, transvaloração dos va-lores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível para download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitu-lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis-mo radical de Nietzsche não pode ser mini-mizado, na qual discute ideias de sua confe-rência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo bio-político da vida humana. Na edição 330 da Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à ti-rania do sentido, com Danilo Bilate, dispo-nível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)

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trabalho de Pierre Hadot4 com sua pesquisa arqueo-genealógica sobre a prática ética do cuidado de si (epimeléia heatoû) das so-ciedades antigas?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Ho-nestamente não conheço Hadot, sei da influência que teve em Fou-cault, sobretudo, com respeito às práticas do cuidado de si, ao com-promisso com a transformação da própria vida, sua crítica aos filóso-fos como profissionais. Em parti-cular, a observação que faz Hadot quando apareceu o terceiro volume de História da sexualidade (Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985), com respeito à má tradução do título do livro para La Inquietud de si, neste sentido não é o mesmo inquietar-se que cuidar-se. Sem dúvida, o pri-meiro termo tem conotação pro-fundamente psicológica, questão que Foucault não desdenhava, mas a ênfase dos últimos trabalhos de Foucault, em consonância com Ha-dot, tem relação com o cuidado de si como práticas de cuidado aos de-mais. Até onde sei, a influência de Hadot em Foucault foi fundamen-tal para os seus últimos trabalhos.

IHU On-Line - Qual é a dimensão da liberdade ante a ética do cui-dado de si?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - A ética do cuidado de si implica uma me-lhora, mas, ao mesmo tempo, o cui-dado de si como o cuidado do outro sugere uma submissão. Se conside-rarmos que nenhuma ética é boa em si mesma, nem dona do bem, então este vem a ser um dos erros clássicos da filosofia e do humanis-

4 Pierre Hadot: filósofo francês, é um dos co-autores do livro Dicionário de ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003. Sus pesquisas concentraram-se pri-meiramente nas relações entre helenismo e cristianismo,em seguida, na mística neopla-tônica e na filosofia da época helenística. Elas se orientam atualmente para uma descrição geral do fenômeno espiritual que a filosofia representa. Em português pode ser lido o li-vro de sua autoria O que é a filosofia antiga? (São Paulo: Loyola, 1999). Para uma resenha da obra confira a revista Síntese 75(1996), p. 547-551. A resenha do original francês é de Henrique C. de Lima Vaz. (Nota da IHU On-Line)

mo. Pelo contrário, a ética do cui-dado de si se divide entre o projeto coletivo e a submissão ou controle de uns sobre outros. Não há liberda-de sem heteronomia ou autonomia. Toda liberdade implica disciplina, decisão individual e singularidade. Não existe cuidado de si, como cui-dado de outros, sem autonomia.

A liberdade não é fazer o que cada um deseja. Muito menos, sub-meter-se a um sistema de mando externo. A liberdade implica criar nossas próprias leis, ou seja, criar junto com outros nossas leis. Se isso não é possível nas democra-cias representativas, pelo menos pode ser uma possibilidade no âm-bito das relações singulares. Neste sentido, consideramos que as de-mocracias vigentes em nossos pa-íses e no mundo são o contrário à liberdade. Precisamente por isso é importante retomar e refletir sobre o “dizer veraz”, a verdade e a li-berdade que coloca Foucault.

Toda liberdade singular que não é coletiva, não é liberdade, assim como toda liberdade coletiva que não se refere ao singular não é li-berdade. A liberdade não é o ponto de partida, nem o ponto de chega-da, e sim um processo que se faz e se desfaz a todo momento, é um conjunto de práticas e de exercí-cios coletivos e individuais que im-plica o cuidado de si. Quando Kant5

5 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último gran-de filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fe-nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou-menon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci-mento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringi-ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibili-dade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível para do-wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU em Formação número 2, intitulado Em-manuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da

diz que a ética é conduzir-nos de tal maneira que nossa ação seja lei de conduta universal, e quando John Stuart Mill6 diz que a felici-dade é possível, desde que todos os demais o sejam, nos dizem que tanto a ética como a liberdade não são um ponto de chegada, uma con-dição exclusiva de alguém, mas, sim, que o ético está nas ações sin-gulares dos sujeitos em coletivo, e que a felicidade é possível so-mente como alegria e de maneira circunstancial. Ninguém pode ser livre, ético e feliz o tempo todo. A liberdade, a felicidade e a ética são costumes, práticas, exercícios e experiências únicas, que são o cuidado de si. Se as práticas do cuidado de si, como o cuidado do outro, não nos mostram esta con-dição de singularidade e ao mesmo tempo de universalidade da ética, então isto não é cuidado de si.

IHU On-Line - Em que sentido o cuidado de si nessas sociedades antigas era uma forma de subje-tivação que ajudava a construir a liberdade como modo de vida?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Eu me pergunto se o cuidado de si é um tema exclusivamente grego relacio-nado com a liberdade grega, com a democracia grega e a filosofia ou se o cuidado de si pode implicar práticas, experiências e exercícios que permitiram a sociedades an-tigas permanecerem e ter vigên-cia, de maneira muito diferente e criativa, diferenciando-se de outros grupos sociais que desapareceram. Isto não quer dizer que nós somen-te gostamos de histórias no sentido hollywoodiano de grandes pirâmides e grandes exércitos, pois reconhe-cemos que não existem, na atuali-dade, grupos sociais de origens re-motas que tenham sobrevivido com suas próprias formas culturais e que não foram, necessariamente, os au-

revista IHU On-Line, de 06-05-2013, intitu-lada A autonomia do sujeito, hoje. Impera-tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ihuon417. (Nota da IHU On-Line)6 John Stuart Mill (1806-1873): filósofo e economista inglês. Um dos pensadores libe-rais mais influentes do século XIX, defensor do utilitarismo. (Nota da IHU On-Line)

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tores da majestosidade que, às ve-zes, a alguns historiadores lhes sur-preende. Penso nos ciganos e outros grupos sociais que sobreviveram.

Liberdade

Se pensarmos que a ideia de li-berdade corresponde somente ao mundo grego e ocidental, como for-ma de vida, e que os demais povos antigos jamais souberam dela, pode complicar-se, porque de um modo ou de outro, teríamos que assumir que os europeus são os únicos que conhecem sobre liberdade e esse caminho teríamos que seguir todos os povos do mundo. Em poucas pa-lavras, para ser livres teríamos que aspirar ser como os franceses, os ingleses ou os alemães. Tal fato não quer dizer que neguemos a influên-cia e a importância que tem o oci-dente, incluindo os Estados Unidos. Porém, a liberdade não é única e nem um bem universal, e sim uma prática concreta que hoje, mais do que nunca, se exerce na singulari-dade. Particularmente nós, os lati-no-americanos, sabemos o que isso significa, pois ajustar-nos a normas e exigências estranhas aos nossos costumes nem sempre resulta em um bom caminho.

Diferença

A liberdade é sinônimo de dife-rença e não somente de identi-dade. O que seria dos gregos sem os persas? Inclusive as marcantes diferenças em um mesmo povo como aqueus, espartanos, troia-nos ou atenienses. O cuidado de si, nas antigas sociedades, baseava--se na diferença de costumes, no enriquecimento entre culturas que não negavam o domínio e a guerra entre elas. Justamente na guer-ra, no controle e na afirmação da diferença é possível a liberdade. Perguntamo-nos como poderia ser possível a liberdade e o cuidado de si dentro de uma paz perpétua e sem diferença alguma. Se houvesse paz eterna e igualdade, não have-ria por que cuidar-se.

IHU On-Line - Nos dias de hoje, como se expressa o cuidado de si?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Na época atual existem duas formas de falar do cuidado de si. Por um lado a chamada “autoajuda” que vai desde a Igreja “Pare de sofrer”, até a psicanálise mais sofisticada, passando pelos livros de autoaju-da, os florais de Bach, ioga, e de-mais fórmulas e práticas que ofe-recem a melhora da vida, a cura. Porém, por outro lado, e talvez o mais grave da nossa situação atu-al, é uma espécie de cuidado de si autista, indiferente, cínico e oportunista, que invade todos os campos de atividade social, que não reconhece a alteridade, nem a diferença quando atua somente em benefício próprio.

Hoje, cuidar de si mesmo não pode estar alheio ao pragmatis-mo e ao utilitarismo desta época e, quando utilizamos estas duas noções, não somente nos referi-mos ao senso comum que estamos acostumados, mas também no sen-tido filosófico e profundo que nos remete a experiências históricas de povos antigos, particularmente aos mitos e rituais que ainda per-duram. Hoje, o cuidado de si é um cuidado pragmático e utilitário, no melhor sentido de ambos os ter-mos. Ou seja, da necessidade de assumirmos a nós mesmos sem es-perar nada de um Estado benfeitor ou um pai protetor. Entretanto, as-sumindo as diferenças políticas e, sobretudo, o reconhecimento dos inimigos. Um erro grave da nossa época é a opacidade e o relativis-mo oportunista que se confundem com o cuidado de si. O cuidado de si, hoje, como em outras épocas, implica o compromisso com a ver-dade, para a qual não se requer ser universitário ou filósofo, inclusive pode ser ineficaz. Qualquer ho-mem, mulher, ou grupo de pessoas pode estar em condições para as práticas do cuidado de si.

Compromisso

O compromisso com a verdade implica esforço, coragem e ris-cos, porém isto não depende de um estado de consciência, e sim, fundamentalmente, de situações

particulares ou gerais, que possam provocar alterações da vida singu-lar ou coletiva. Não resta dúvida de que, hoje, estamos marcados pela necessidade que a própria reali-dade nos impõe, a necessidade de mudar nossa vida, recordando Slo-terdijk.7 O como e em que direção não dependem de doutrinas, cren-ças, ideologias e outros supostos, e sim das condições mesmas em que a vida se realiza. Este século XXI iniciou com uma má notícia, acabou o liberalismo e o socialis-mo, já não existem mais “ismos”, mas também iniciou com uma boa notícia: hoje todos nós somos res-ponsáveis de nossa própria vida em conjunto com os demais e isto significa o cuidado de si mesmo. Como fazemos ou não fazemos, isto não depende de alguma profe-cia ou bons desejos.

IHU On-Line - Quais são os principais limites e possibilida-des do cuidado de si num tempo marcado pela biopolítica e por uma financeirização de todas as esferas de nossa vida, em úl-tima instância, em técnicas de governamentalidade?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Não há como esquecer que Foucault passou a entender a biopolítica como um controle que alguns exercem so-bre outros, para interessar-se pelo modo como nós controlamos a nós mesmos. De nenhuma maneira o fato de ser controlados por outros é um mal em si mesmo, muito menos o fato de controlarmos a nós mes-mos significa um bem em essência. Precisamente, em uma sociedade

7 Peter Sloterdijk (1947): filósofo alemão. Desde a publicação de Crítica da razão cíni-ca, é considerado um dos maiores renovado-res da filosofia atual. Em 2004, encerrou sua trilogia Esferas (Sphären), cujos primeiros volumes foram publicados em 1998 e 1999. Interessado na mídia, dirige Quarteto filosó-fico, programa cultural da cadeia de televisão estatal alemã ZDF. Tem inúmeras obras tra-duzidas para o português, como Regras para o parque humano - uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo (São Paulo: Estação Liberdade, 2000). No sítio do IHU On-Line, foram publicadas várias traduções de entrevistas concedidas pelo filósofo. Elas podem ser acessadas pela busca em www.ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line)

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disciplinar somos governados por outros e, em uma sociedade de controle, somos governados por nós mesmos. Em ambas as sociedades existe o cuidado de si. De maneira alguma se trata de considerar que viemos de um descuido de nós mes-mos, de um descuido de si e que progredimos de um cuidado de nós mesmos ou cuidado de si. O cuidado de si não é um assunto evolutivo, nem progressista, nem civilizató-rio. Assim como a biopolítica não é um desejo maligno, que provém de uma mente, de uma pessoa, de um grupo ou de uma classe social que, com nefastos interesses, dedicam--se a submeter e aniquilar a outros. O que Foucault põe em relevo com o termo biopolítica é a condição de “Estado de polícia”, que se refere ao caráter ilimitado do Estado no controle que regula o comporta-mento dos indivíduos. O que, aqui, Foucault nos mostra é como a razão do Estado é ilimitada no exercício e controle dos súditos ou cidadãos, porém esta concepção de biopolíti-ca transpõe a outra forma de bio-política e que tem a ver com o con-trole de si; o que se põe em terreno de discussão é até onde o que eu faço de mim mesmo tem a ver com a minha própria vontade e desejo, e não simplesmente é um mecanismo de adaptação à vontade dos outros.

Biopolítica e biopoder

O que nos interessa, como a Fou-cault, é considerar a biopolítica como biopoder, ou seja, como uma condição da vida, da vida humana. Portanto, não há como conceber o cuidado de si como um antído-to contra a biopolítica. Pelo con-trário, biopolítica e cuidado de si andam de mãos dadas. Pensar que o capitalismo, tal e como o conhe-cemos, está a ponto de desapa-recer e que há uma crise que não permite sua permanência é como pensar que este sistema econômico e político é eterno e que as coisas seguirão assim pelos séculos dos séculos. O que Foucault nos ensina é que nem uma ou outra resposta fundamentalista, mágica, essen-cialista, relativista ou absolutista é verdade. Que a realidade social

não depende da extinção do sol, ou de sua eterna existência, e sim das condições mesmas que os indivídu-os produzem em sua prática, suas experiências e em sua vida. Por-tanto, o cuidado de si não depende das expectativas e muito menos de ilusões ou fantasias que criamos, e sim, das práticas de nossos atos e de nossas experiências com outros.

IHU On-Line - Qual é o espaço para a autonomia, liberdade e para subjetividade a partir de um cenário como este?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Como citamos, um modo de olhar a reali-dade e a subjetividade nesta época é possível em concordância com o que Foucault chamou de biopolíti-ca. Não existe um novo mundo, e sim “um mundo outro”, ou seja, nestas condições, com o mundo em que vivemos, temos que fazer ou-tras coisas. Pensar em outro mundo não é negar este mundo, não é acre-ditar no paraíso ou inferno, pensar em “um mundo outro” é aceitar que o paraíso e o inferno estão aqui mesmo. Como diria Ítalo Calvino8 em sua novela Cidades invisíveis (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), o inferno está aqui nesta terra e o que fazemos é construir e alongar, até o limite, espaços que nos permitam viver de outra manei-ra. A vida não está em outra parte, nem além de nossas possibilidades, está aqui mesmo, contra ou a favor de outros, porém juntos.

IHU On-Line - Ainda nessa pers-pectiva de autonomia, liberdade e subjetividade, como se entrela-çam o cuidado de si e o cuidado dos outros em nosso tempo, pen-sando no recrudescimento da in-tolerância em suas mais variadas formas?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Um dos temas que está na moda em nossos países, juntamente com os direitos

8 Ítalo Calvino (1939-1985): escritor cuba-no, radicado na Itália, autor de livros como As Cidades Invisíveis (São Paulo: Companhia das Letras, 1998) e da trilogia Os Nossos An-tepassados. (Nota da IHU On-Line)

humanos, a paz e a democracia, é a tolerância. Não nos é estranho que nos anos setenta do século passa-do, supomos erradicada a escravi-dão, o tráfico de seres humanos e a discriminação racial. Aconteceram protestos muito importantes nos Estados Unidos e outras partes do mundo contra a discriminação racial e movimentos pela paz como o do Vietnã; e o que hoje vemos na vida política e social do mundo: tráfico de seres humanos, discriminação racial, violência contra crianças, mulheres, idosos e indígenas; fatos que tentam ocultar-se com discur-sos a favor da paz, da tolerância e da democracia. Se todo cuidado de si implica coragem e verdade e dizer a verdade, muito cuidado de-veríamos ter quando, de modo au-tomático, aprovamos certos discur-sos em favor da tolerância, da paz ou da democracia que, na verdade, são formas de encobrir a verdade, o reconhecimento e a diferença e o diálogo com os outros.

IHU On-Line - Em que medida o cuidado de si cedeu espaço, na Modernidade, para o conhecimen-to de si? O que isso representa?

Marco Antonio Jiménez García e Ana María Valle Vázquez - Conhe-cer a si mesmo é um dos elemen-tos constitutivos do cuidado de si. Conhecer a si mesmo, de maneira nenhuma, significa conhecer a es-sência do indivíduo, muito menos significa ter todos os elementos ra-cionais para saber como proceder e também não é uma resposta uní-voca a todas as nossas perguntas na vida. Sequer é uma questão de pura consciência, senão que im-plica a tensão constante entre a situação, o afeto e a razão. Para conhecer a si mesmo, seguindo os preceitos délficos, é necessário não perguntar mais do que se suporta saber e não comprometer-se com o que não se possa cumprir. Por isso nunca se deve confundir o cuida-do de si com a inquietação de si. Como mencionamos no princípio, não se trata de um assunto psico-lógico, mental ou espiritual, alheio ao corpo. O cuidado de si, como o conhecimento de si, tem a ver com práticas muito concretas. ■

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As ressonâncias e desestabilidades da presença de Foucault no BrasilPara Heliana de Barros Conde Rodrigues, as discussões propostas pelo estudioso abalaram algumas certezas propagadas no país, sobretudo no campo da saúde

Por Márcia Junges e Leslie Chaves

Desde 2009, Heliana de Barros Conde Rodrigues desenvolve pesquisas so-bre os efeitos e a repercussão dos

pensamentos de Michel Foucault entre os bra-sileiros. A psicóloga faz um resgate histórico e analítico das vindas do estudioso ao Brasil, que coincidiram com um período bastante tenso da trajetória política do país, a ditadu-ra militar. Esse contexto não foi impedimento para a manifestação do pensamento crítico de Foucault, como a expressão “fazer viver e deixar morrer”, caracterizadora do biopoder. Em 1975, o estudioso esteve no Brasil e aca-bou se posicionando quanto aos acontecimen-tos políticos daquele momento. O regime di-tatorial se acirrava, e entre os ditos “inimigos internos” foi eliminado o jornalista Vladimir Herzog. “Em protesto, Foucault suspendeu o curso que ministrava na Universidade de São Paulo e esteve presente às exéquias do jorna-lista – ato resistencial que reuniu, na Catedral da Sé, milhares de pessoas, apesar da opera-ção dissuasiva montada pela polícia”, conta a pesquisadora.

A partir desse episódio, as vindas de Fou-cault ao Brasil passaram a ser vigiadas. Nas discussões feitas nessas passagens, as con-ferências sobre as questões de saúde públi-ca estiveram entre as mais impactantes para o Brasil, segundo Heliana de Barros Conde Rodrigues, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Pode-se dizer que O nascimento da Medicina Social foi aquela que produziu maio-res perturbações nas até então certezas do movimento sanitário brasileiro: contrariando o que pensavam nossos renovadores no campo da saúde, Foucault ali defende que a medicina moderna sempre foi “social”, sendo o “coló-quio individual” médico-paciente apenas um, e não o mais importante, de seus aspectos”, explica. A pesquisadora ainda acrescenta que “medicina e corpo são ditos ‘realidades bio-políticas’, na primeira menção foucaultiana a esse famoso (e controverso) conceito. Tais

colocações demandavam que os defensores da ‘medicina social’ reconhecessem que seus próprios discursos, dispositivos e práticas tal-vez tivessem por solo e/ou por efeito aquilo mesmo que diziam combater: a produção de corpos úteis, dóceis, de força política reduzi-da e a regulação calculada-calculista da vida das populações”.

Heliana de Barros Conde Rodrigues é gra-duada em Psicologia pela Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo – USP, com pós- doutorado na área de Sociologia, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente é professora e procientista da UERJ, atuando nos cursos de graduação em Psicologia, especialização em Psicologia Ju-rídica e pós-graduação em Psicologia Social. Entre suas publicações destacam-se a organi-zação dos livros Clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil (Rio de Ja-neiro: Biblioteca Virtual do Centro Edelstein, 2012), Psicologia e Direitos Humanos: desa-fios contemporâneos (São Paulo: Casa do Psi-cólogo, 2008) e Dicionário Biográfico da Psi-cologia no Brasil – Pioneiros (Rio de Janeiro/Brasília: Imago/CFP, 2007).

No dia 22-09, às 14 horas, no Auditório Central, a professora apresenta a conferên-cia Aproximações preliminares ao problema da Biopolítica: Michel Foucault no Brasil, evento que integra a programação do XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio La-tino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação. Sa-beres e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade. Mais informações em http://bit.ly/1EY37A5.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line - Quais são as prin-cipais aproximações preliminares ao problema da biopolítica traça-das por Michel Foucault?

Heliana de Barros Conde Ro-drigues - Na verdade, creio que o título proposto ficou cheio de ambiguidades. O que eu pretendia dizer era que falaria, no Colóquio, sobre o que hoje se considera a primeira menção de Foucault1 ao conceito (ou ao menos ao termo) “biopolítica” – daí a expressão que usei, “aproximações prelimina-res”. Tal menção foi feita em 1974, na conferência por ele pronuncia-da no Rio de Janeiro, mais especi-ficamente no Instituto de Medicina Social da UEG (hoje UERJ), depois publicada em Microfísica do Poder2

1 Michel Foucault (1926-1984): filóso-fo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhe-cimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concep-ções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-titulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em Formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line).2 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Po-der. (Rio de Janeiro: Record, 2014). (Nota da IHU On-Line).

sob o título “O nascimento da me-dicina social”.

Vejo agora que a ambiguidade presente no título talvez tenha a ver, igualmente, com meu próprio percurso. Pois embora a biopolíti-ca seja, dentre os problemas fo-calizados por Foucault, talvez o mais citado na atualidade, quer na França, no mundo anglo-saxão ou no Brasil – ao menos é o que suge-rem algumas recensões recentes –, eu mesma nunca lhe dediquei uma exposição ou artigo, visto que te-nho mais dúvidas do que certezas quanto a seu uso. Assim, trata-se de “aproximações preliminares” também para mim...

IHU On-Line - Qual é a peculia-ridade de sua abordagem quando esteve no Brasil?

Heliana de Barros Conde Rodri-gues - Venho desenvolvendo, desde 2009, pesquisas sobre a presença, os efeitos e as ressonâncias de Michel Foucault em nosso país. O “Foucault-corpo” esteve entre nós nos anos de 1965, 1973, 1974, 1975 e 1976 – sempre durante a ditadura civil-militar, portanto. O interva-lo entre a primeira visita (1965), momento em que concluía a reda-ção de As palavras e as coisas3, e a segunda (1973), quando já par-ticipara das lutas políticas junto aos estudantes na Tunísia, chefia-ra o Departamento de Filosofia na

3 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. (São Paulo: Martins Fontes, 2002). (Nota da IHU On-Line)

Universidade Experimental de Vin-cennes, engajara-se na defesa dos imigrantes, fundara o Grupo de In-formações sobre as Prisões - GIP e fora eleito para a cátedra de “His-tória dos Sistemas de Pensamento” no Collège de France, no qual já ministrara três cursos; correspon-de a uma das tantas mutações na vida de Foucault, que o tornaram, desejavelmente, sempre “diferen-te de si”. Certa vez, ao escrever sobre isso, resumi a ocorrência em uma curta frase: “Quando volta, já é outro”. Em 1973, embora o pa-pel da Literatura na ruptura com a ordem do presente não o entusias-masse como antes, o convite pro-vém do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Ao invés de eruditas discussões sobre o es-truturalismo e a morte do homem, contudo, suas conferências versa-ram sobre “A verdade e as formas jurídicas” (uma alusão cifrada à si-tuação política brasileira?).

No que tange à biopolítica, po-rém, interessa particularmente a visita de 1974, a convite do recém--criado Instituto de Medicina So-cial - IMS da então Universidade do Estado da Guanabara - UEG, hoje do Rio de Janeiro - UERJ. Foucault pronuncia então seis conferên-cias, três das quais – O nascimento da medicina social, O nascimento do hospital e Crise da medicina ou crise da antimedicina? – foram sem grande demora publicadas em periódicos latino-americanos e circularam, mimeografadas, em traduções para o português, por iniciativa do filósofo Roberto Ma-chado. Este, desde 1973, amigo, companheiro de viagem e estudio-so do pensamento foucaultiano, tendo inclusive acompanhado em Paris, em 1973-1974, juntamen-te com Jurandir Freire Costa4, o

4 Jurandir Freire Costa (1944): Nascido em Pernambuco, é um psicanalista e escritor brasileiro. Ver: O ponto de vista do outro. Entrevista com Jurandir Freire Costa publi-cada nas Notícias do Dia, de 05-04-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1JXKZDf. (Nota da IHU On-Line)

Pode-se dizer que O nascimen-to da Medicina Social foi aquela que produziu maiores perturba-

ções nas até então certezas do movimento sanitário brasileiro

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curso “O poder psiquiátrico” no Collège de France e organizado a publicação, em 1979, da coletânea Microfísica do Poder, composta de artigos, entrevistas, aulas e con-ferências de Foucault, dentre as quais as duas primeiras dentre as acima mencionadas.

Pode-se dizer que O nascimento da medicina social foi aquela que produziu maiores perturbações nas até então certezas do movimento sanitário brasileiro: contrariando o que pensavam nossos renovadores no campo da saúde, Foucault ali defende que a medicina moderna sempre foi “social”, sendo o “co-lóquio individual” médico-paciente apenas um, e não o mais impor-tante, de seus aspectos. Medici-na e corpo são ditos “realidades biopolíticas”, na primeira menção foucaultiana a esse famoso (e con-troverso) conceito. Tais colocações demandavam que os defensores da “medicina social” reconhecessem que seus próprios discursos, dispo-sitivos e práticas talvez tivessem por solo e/ou por efeito aquilo mesmo que diziam combater: a produção de corpos úteis, dóceis, de força política reduzida e a regu-lação calculada-calculista da vida das populações. Para usar uma ex-pressão que Foucault só virá a ado-tar em 1976, não estariam nossos renovadores, ao lutar pela implan-tação de uma Reforma Sanitária cujo caráter era o de uma Medici-na Social, programando uma forma de exercício do biopoder, ou seja, uma condução de condutas volta-da a “fazer viver e deixar morrer”? Porém à época, para acolher essas postulações de Foucault, há um “dilema” em pauta: como fazê-lo sem abandonar o marxismo, que fornecia as bases político-doutri-nárias das práticas de esquerda no campo da saúde?

Foucault retornará ao Brasil em 1975, em visita de grande relevân-cia política: a linha mais dura do regime ditatorial avançava então sobre o Partido Comunista, exibin-do, uma vez mais, a face thanato-

política5 dos exercícios do biopo-der: “em defesa da sociedade”, ou seja, de certas formas de vida em detrimento de outras, eliminavam--se nos porões os ditos “inimigos internos”, dentre eles o jornalis-ta Vladimir Herzog6. Em protesto, Foucault suspendeu o curso que ministrava na Universidade de São Paulo e esteve presente às exé-quias do jornalista – ato resisten-cial que reuniu, na Catedral da Sé, milhares de pessoas, apesar da operação dissuasiva montada pela polícia.

Anteriormente, mencionamos o ano de 1976, ligando-o à expres-são “fazer viver e deixar morrer”, caracterizadora do biopoder e pre-sente tanto no último capítulo de História da Sexualidade I – a vonta-de de saber7 quanto na última aula do curso Em defesa da Sociedade. Nesse mesmo ano, Foucault retor-na ao Brasil. No entanto, julgando--se vigiado pelas forças de segu-rança do governo brasileiro desde os protestos pelo assassinato de Herzog – nossa pesquisa confirmou,

5 Thanatopolítica: termo criado pelo pensador sueco Rudolf Kjellén. Refere-se às apropriações políticas da morte. Michel Foucault o utilizou em sua teoria da discipli-narização e depois também em suas últimas conferências, relativas à politização da vida. Hoje em dia, a tanatopolítica e a politização da morte são analisadas por alguns dos expo-entes da chamada Biopolítica, como Giorgio Agamben e Roberto Esposito. (Nota da IHU On-Line)6 Vlado Herzog (1937-1975) jornalista, professor e dramaturgo nascido na Croácia, mas naturalizado brasileiro. Passou a as-sinar “Vladimir” por considerar seu nome muito exótico nos trópicos. Tornou-se famo-so pelas consequências que teve de assumir devido suas conexões com a luta comunista contra a ditadura militar, autodenominada movimento de resistência contra o regime do Brasil, e também pela sua ligação com o Par-tido Comunista Brasileiro. Sua morte causou impacto na ditadura militar brasileira e na sociedade da época, marcando o início de um processo pela democratização do país. A foto que mostra Herzog enforcado dentro de uma cela no DOI-Codi, em São Paulo, em 25-10-1975, foi manipulada pela ditadura, tratando--se de uma farsa para encobrir o seu assas-sinato pelo regime. (Nota da IHU On-Line)7 FOUCAULT, Michel. História da Sexua-lidade. I – A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. (Rio de Janei-ro: Edições Graal, 1988). (Nota da IHU On-Line).

através de documentos do Serviço Nacional de Informações - SNI8, que essa suspeita não era fantasiosa –, ele evita o Sul-Sudeste e concentra suas atividades, patrocinadas pela Aliança Francesa, em Salvador, Re-cife e Belém. Na primeira dessas cidades, pronuncia a conferência “As malhas do poder”, na Univer-sidade Federal da Bahia, campus de São Lázaro. Ali, uma vez mais, o problema da biopolítica estará em pauta, notadamente através dos contrapontos entre a analítica do poder foucaultiana e as concep-ções psicanalíticas e/ou marxistas (ou mesmo freudo-marxistas).

Quanto a isso, vale dizer que a grande imprensa do Rio e de São Paulo ignorou solenemente a pre-sença de Foucault em 1976. Mesmo a Folha de São Paulo, que a noti-ciou, o fez em termos de suspei-ção: “o que estaria ele fazendo no Brasil?”. Por outro lado, a imprensa nanica ou alternativa acompanhou o filósofo. Primeiramente Opi-nião, em um exemplar que inclui a reportagem “Interlocutores ou inimigos?”, um artigo sobre o vin-douro História da sexualidade 1 – a vontade de saber e a tradução de um texto foucaultiano recente. No caso da reportagem, ressaltam-se os desencontros com o “marxismo acadêmico”, bem como a liberda-de com que Foucault utilizava con-ceitos freudo-lacanianos, em um momento em que nossa intelec-tualidade parecia obrigada a uma eterna exegese dos termos psica-nalíticos em alemão.

Ainda através dos nanicos, des-taca-se a vertente anarquista dos mesmos: o alternativo baiano Bar-

8 Serviço Nacional de Informações (SNI): foi criado pela lei nº 4.341 em 13 de junho de 1964 com o objetivo de supervisio-nar e coordenar as atividades de informações e contrainformações no Brasil e exterior. Em função de sua criação, foram absorvidos o Serviço Federal de Informações e Contra-In-formações (SFICI-1958) e a Junta Coorde-nadora de Informações (JCI-1959). A Abin (Agência Brasileira de Inteligência) foi criada em 1999 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, tomando o lugar que fora do SNI. (Nota da IHU On-Line)

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bárie, em duas edições tardias (pu-blicadas em 1981 e 1982), garan-tirá a preservação da conferência “As malhas do poder”. À época o texto teve circulação restrita – era pequena a tiragem do periódico –, mas continuou a ser lido em sucessi-vas reproduções xerográficas pelos estudantes baianos, tornando-se um texto cult para muitos deles nas gerações subsequentes e garantin-do a presença da conferência nos Dits et Écrits, em tradução (agora para o francês!).

Voltando à primeira pergunta sobre as “aproximações prelimina-res”, pretendo, na conferência do Colóquio, correlacionar/comparar as conferências de 1974 no IMS-UEG com a de 1976 em Salvador no que tange ao problema da Biopolítica, assim como abordar as circunstân-cias em que ocorreram as visitas de Foucault ao Brasil como eventuais analisadores de nossos então exer-cícios biopolíticos (com sua neces-sária contraface thanatopolítica e/ou necropolítica, para usar termos hoje em voga).

Para concluir este tema, lembro ainda que as passagens do filósofo por Recife e Belém foram também intensamente vigiadas. No primei-ro caso, talvez “autovigiadas” pe-las próprias pessoas interessadas: antes da chegada de Foucault, muitos compromissos tinham sido agendados com profissionais e aca-dêmicos da cidade; entretanto, às vésperas dos encontros previstos, alguém sempre telefonava para desmarcá-los, num claro indicativo do temor que as pessoas experi-mentavam em se verem a ele asso-ciadas. No caso de Belém, por sua vez, além do desaparecimento da gravação das conferências, ocasio-nalmente roubada do carro de uma participante, deve-se frisar o risco de desaparecimentos outros: con-forme relata o Professor Benedito Nunes, que organizara os encontros na Universidade Federal do Pará, o diretor da Faculdade de Filosofia se dirigiu a ele, após a partida de Fou-cault, para, a mando do SNI, pedir-

-lhe a relação dos frequentadores. Não foi atendido – ação de recusa que gosto de denominar “a cora-gem do silêncio”.

IHU On-Line - Que legado teóri-co fundamental esse autor deixa em sua incursão por nosso país?

Heliana de Barros Conde Rodri-gues - O termo “legado”, a meu ver, não combina muito com Fou-cault (embora tenhamos uma bela coletânea, oriunda de um coló-quio brasileiro, justamente com o título “o legado de Foucault”). Ele costumava dizer – e disse mais uma vez no Brasil, em entrevista a um outro “nanico” baiano cha-mado Invasão, que por sinal teve uma única edição –, que não ti-nha teoria, pensamento ou obra, mas “obsessões”, ou seja, coisas que o perturbavam, atormenta-vam, inquietavam. Nessa mesma entrevista, por sinal, Foucault declarou, acerca do marxismo – perguntas sobre o marxismo eram inevitáveis então, fosse qual fosse a posição política do periódico –, que dele se poderiam fazer dois “usos”: um uso recodificador, pro-dutor de uma representação filo-sófica sintética e totalizante da história; e um uso tático e estraté-gico de um certo número de con-ceitos para analisar uma situação determinada, um certo tempo his-tórico. Para Foucault, no primei-ro caso, teríamos o tão criticado por ele marxismo “acadêmico” ou “universitário”, com todo o efeito inibidor que carregam as grandes teorias, as teorias globais que rei-vindicam “a” verdade e “a” cien-tificidade. Já no segundo caso, te-ríamos talvez, e desejavelmente, a teoria como “caixa de ferramen-tas”, conforme a expressão famo-sa oriunda de uma conversa entre Foucault e Deleuze.

Julgo que o que Foucault disse sobre os usos do marxismo poderia ser transposto para os usos de Fou-cault. Entretanto, apesar dessas advertências, nunca se está imu-ne a que um pensamento se veja

transformado seja em panteão para poucos frequentadores ilus-tres, seja em conjunto de clichês razoavelmente inócuos – o even-tual destino da expressão “caixa de ferramentas”, que acabo de citar, é um bom exemplo do des-tino quiçá funesto de noções de início muito potentes. Nesse sen-tido, quanto menos “foucaultia-no” for o Foucault que utilizamos, melhor, e creio que é justamente desse uso heterotópico, inquietan-te, ligado menos a doutrinas que a obsessões, que, paradoxalmente, têm medo aqueles que recusam a Foucault uma “cátedra”, conforme recentemente ocorrido na PUC-SP – justamente o espaço acadêmi-co em que Foucault talvez goze de maior prestígio no Brasil. Eis o problema dos “legados”, o que me leva a privilegiar os “usos” e a dizer, muito brevemente, que cer-tos usos de Foucault facultam que percebamos que somos muito mais livres do que pensamos ser, e que possamos eventualmente agir, coti-dianamente, em consonância com essa liberdade.

IHU On-Line - Qual é a atualida-de do conceito de biopolítica que ele aborda ao longo de sua obra?

Heliana de Barros Conde Rodri-gues - A atualidade é total, o que pode ser uma rima, mas nunca uma solução. Curiosamente, um con-ceito como o de biopolítica, que podemos dizer “magro” em termos de presença em textos e falas de Foucault – quiçá limitado ao pe-ríodo 1976 a 1979, se deixarmos de lado as já mencionadas confe-rências no Brasil –, tornou-se um enorme sucesso, hoje, nas ciências sociais. No mundo anglo-saxão, por exemplo, em torno da biopolítica e/ou da “governamentalidade”, seu complemento invariável, orga-nizou-se um campo de estudos mui-to valorizado, os “governamental studies”, apto a incorporar todos aqueles âmbitos em que processos vitais estão articulados a práticas de governo de si e/ou de governo

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dos outros, públicos ou privados, estatais ou não, ligados à vida nua (processos biológicos estudados em laboratório, como as sequências de código genético e as técnicas imu-nológicas, por exemplo), ou à vida socializada (políticas de proteção social e securitárias, políticas de-mográficas ligadas à imigração, ao asilo, à acolhida de refugiados, ações ligadas aos direitos huma-nos, etc.).

Em meio a essa proliferação, diviso uma certeza e muitas dú-vidas. A certeza (momentânea, como todas) remete ao fato de que se pode compreender facil-mente o sucesso da biopolítica nas ciências sociais, já que a pri-meira é condição de existência das últimas, como tão bem expôs Foucault no curso Segurança, ter-ritório, população (1978). Ali, re-tomando a polêmica em torno do homem de As palavras e as coisas, as ciências ditas “humanas” (ou sociais, não importa tanto) são remetidas à regulação das popula-ções, ou seja, a modos privilegia-dos de as “fazer viver”, a ponto de se as poder “deixar morrer” caso se afastem demais de certas mé-dias, parâmetros, limiares. Creio que não é difícil compreender isso com uma simples olhadela para as discussões hegemônicas atuais dos cientistas sociais e políticos, no Brasil, sobre a polícia, o tráfico de drogas, os “crackudos”, a violên-cia, as manifestações de protesto, as punições, a maioridade penal, a questão dos imigrantes, etc. Há exceções, é claro, mas a “ra-zão de Estado” e, eventualmente pior que isso, a “razão de Estado de Polícia” está de tal modo pres-suposta como algo indiscutível nesses debates, que não se duvi-da muito da análise foucaultiana sobre a relação estatística-polícia--população-ciências humanas ou sociais.

Já as dúvidas são muitas, e as formulo na forma de perguntas. O interesse intenso pela biopolí-tica provém predominantemente

da crítica à regulação contempo-rânea dos modos de viver, ou do fascínio um tanto acrítico pela contraface genocida do biopoder? Há efetivamente um contraponto atual entre biopoder e biopotên-cia das multidões, como defendem autores como Agamben, Esposito,

Negri e Hardt, por mais que dife-rentemente de Foucault e com as diferenças que marcam suas posi-ções respectivas? O interesse das ciências sociais pela biopolítica visa a atiçar resistências e contra-condutas no que remete aos pode-res sobre a vida ou, ao contrário, a dar legitimidade a suas próprias análises sapientes, restringindo o campo dos possíveis a um espaço previamente regulado, obediente e ordeiro? Soberania, disciplina e biopolítica correspondem a etapas temporais sequenciais do exercício do poder ou, como prefere Fou-cault em Segurança, território, população, apenas a dominâncias, o que implica considerá-las todas a cada situação em análise? As críti-cas foucaultianas aos exercícios do poder sobre a vida, destacando-se, por exemplo, a formulação do Pla-no Beveridge (durante a Segunda Guerra Mundial!) e os Estados-Pro-vidência, permitem, como muitos defendem, ver nele um convertido ao par liberalismo-neoliberalismo como modos de governar? Ou Fou-cault somente tem interesse efe-tivo na máxima liberal-neoliberal

“sempre se governa demais”, já que indaga repetidamente, nos cursos de 1978-1979, se existe ou não um “modo socialista de gover-nar”? São questões, todas, atuais, e debatê-las, mesmo que sem atin-gir certezas, constitui, a meu ver, um dos objetivos do Colóquio da Unisinos.

IHU On-Line - Quais são as prin-cipais expressões da captura bio-política em nosso tempo?

Heliana de Barros Conde Rodri-gues - Há muitas capturas, mas há também – e disso sabemos menos e falamos menos – inúmeras resis-tências e contracondutas. Em um artigo muito citado, “O sujeito e o poder”, escrito no início dos anos de 1980 especialmente para o li-vro dos norte-americanos Dreyfus e Rabinow (Além do Estruturalis-mo e da Hermenêutica. São Pau-lo: Forense Universitária, 2012), Foucault propõe que estudemos os exercícios do poder justamente a partir dos movimentos de resistên-cia. Naquele momento, fala de “lu-tas transversais”; melhor dizendo, daquelas lutas que implicam uma recusa ao tipo de individualidade (ou de individualização) que nos é proposta há alguns séculos, e que propõem a invenção de modos de vida sem modelos predeterminados ou predefinidos. Essas lutas são crí-ticas do poder: não para eliminá-lo em definitivo – o poder não é uma coisa ou substância que possa ser descartada, o poder é um exercí-cio, são ações sobre ações dos de-mais ou sobre as próprias ações –, mas para recusá-lo em seu exercí-cio específico, exercício por estas pessoas, segundo esses princípios, a esses custos, etc.

Sendo assim, creio que nos res-ta insistir em afirmar a agonística inevitavelmente presente entre certas contracondutas que inven-tam liberdades, mesmo que dis-persas e parciais, e certas con-duções biopolíticas de condutas, ou seja: a gratuidade de certos gestos (face aos empreendedoris-

Vale dizer que a grande im-

prensa do Rio e de São Paulo ignorou sole-

nemente a pre-sença de Fou-cault em 1976

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mos de si), a escultura artesanal de formas de amizade (face à ca-pitalização rentável das relações), o caminhar preguiçoso, atento à estética e desatento à utilidade (face à conversão do tempo da vida em tempo de trabalho), a invenção de modos generosos de viver (face às solidariedades obri-gatórias de razões humanitárias instituídas), as práticas contrasse-xuais, esquisitas, queer (face aos sexismos, generismos, identidades cristalizadoras e heteronormativas de todo tipo), as ações anárquicas que nos reúnem, a todos, como um “nós”, os governados (face a governantes e hierarquias de to-das as formas, tipos, justificativas e regimes), a defesa, no pensa-mento, na ação e nas práticas de si, da univocidade do ser (face ao “deixar morrer” contemporâneo, por mais que este tente se legiti-mar em nome da vida de alguns, que seriam a verdadeira popula-ção, ou os melhores, contrapostos ao povo, à plebe, à canalha, bem como à natureza e às demais espé-cies que não a humana).

IHU On-Line - Quais são as no-vas formas ou expressões de re-sistência e liberdade que surgem a partir da desinstitucionalização psiquiátrica?

Heliana de Barros Conde Rodri-gues - Aqui nos voltamos para um problema mais específico e talvez a pergunta se deva ao fato de eu ser psicóloga, feliz ou infelizmente, de resto... Em primeiro lugar cumpre dizer, voltando a minhas investiga-ções sobre Foucault no Brasil, que é muito comum em nosso país que, quando se fala de psiquiatria, as-sistência em saúde mental etc., o nome de Foucault (e sua presença--corpo entre nós) seja associada à de Franco Basaglia9, que nos visi-

9 Franco Basaglia (1924-1980): psiquiatra italiano. Promoveu uma importante reforma no sistema de saúde mental de seu país. Nos anos 1960 dirigiu o hospital psiquiátrico de Gorizia, onde juntamente com outros psi-quiatras começou a promover uma série de mudanças práticas e conceituais, expostas no

tou em 1978 e 1979, pouco antes de falecer, o que ocorreu em 1980. Em Belo Horizonte, principalmen-te, onde Foucault esteve em 1973, em sequência à estada no Rio de Janeiro, a dupla Foucault-Basaglia tornou-se signo de desinstitucio-nalização psiquiátrica, como pude perceber a partir de algumas en-trevistas e da exploração das ações de Foucault à época, quando pro-nunciou conferências não apenas na Universidade Federal de Minas Gerais (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH), como em dois hospitais psiquiátricos mi-neiros (Hospital André Luís e Casa de Saúde Santa Clara).

Essa associação é interessante para responder a sua pergunta, pois, como diz Pierangelo Di Vit-torio, um filósofo italiano que fre-quentou Trieste por muito tempo, ao falar de Foucault e Basaglia co-locamos em cena “uma estranha semelhança” mediante o encon-tro entre a genealogia e os movi-mentos de base, respectivamente associados a cada um deles. Nas palavras de Di Vittorio, Basaglia e Foucault são “intelectuais que não se bastam”: os movimentos de de-sinstitucionalização demandam a análise genealógica como forma radical de historicização, ao passo que esta última ganha sua verda-de, presente ou futura, nesses mo-vimentos desinstitucionalizantes. Hoje, porém, como também pon-tua Di Vittorio, os intelectuais se tornaram “inteiros”, e é disso que sofrem. Talvez sua dimensão única seja, segundo a expressão usada por Edson Passetti10, a de “intelec-

livro “A instituição negada” (1968). Entre os co-autores deste livro organizado por Basa-glia está Giovanni Jervis, que posteriormente aprofundará estes conceitos teóricos de modo acessível aos leigos no “Manual Crítico de Psi-quiatria” (1975), descrevendo ali também a história do movimento, reunido em torno da Associação Psiquiatria Democrática italiana. Em 1979, Basaglia visitou o Hospital Colônia na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, tendo-o comparado aos campos de concen-tração nazistas de Adolf Hitler. (Nota da IHU On-Line)10 Edson Passetti: é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP, onde também realizou

tuais moduladores” – portadores de novos direitos, propositivos de reformas cosmético-midiáticas que têm por única meta “melhorar o possível”.

É claro que há coisas ainda mais graves: a que mais me assustou nos últimos tempos foi saber, ao participar da banca de uma defe-sa de tese, que em uma oficina de costura de um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS são fabricadas, pelos usuários, faixas de contenção a serem usadas em outros usuários que eventualmente entrem no que se chama “crise”.

IHU On-Line - No Brasil, qual é a origem dessa desinstitucionali-zação e qual é seu nexo teórico com Foucault?

Heliana de Barros Conde Ro-drigues - Creio que já esbocei a resposta no item anterior: embo-ra a desinstitucionalização deva muito a Foucault teoricamente, principalmente à sua tese História da loucura, os que a efetivaram no Brasil tampouco se “bastavam”, sendo ao mesmo tempo estudiosos e práticos. Para acrescentar algo, porém, retorno a Foucault. Em 1984, numa entrevista (“Polêmi-ca, política e problematizações”) concedida a Paul Rabinow11 jus-

os cursos de mestrado e doutorado e apresen-tou tese de Livre Docência, todos na área das Ciências Sociais. Atualmente é professor no departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da mesma universidade, onde ainda integra a equipe editorial da Revista Verve e, desde 1997, coordena o Núcleo de Sociabilidade Libertária – Nu-Sol. O grupo se autodefine como uma associação de pesquisadores liber-tários voltados para problematizar relações de poder e inventar liberdades. Entre as pu-blicações mais recentes do pesquisador estão Anarquismos & educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2008), Anarquismo urgente (Rio de Janeiro: Achiamé, 2007) e Terrorismos (São Paulo: EDUC, 2006). Ver “O abolicioni-smo penal é viável, possível e urgente”. En-trevista especial com Edson Passetti publica-da na revista IHU On-Line, nº471, de 31-08-2015, disponível em http://bit.ly/1K0M5hD. (Nota da IHU On-Line)11 Paul Rabinow: graduado, mestre e dou-tor em Antropologia pela University of Chi-cago. Atualmente é professor de antropologia da University of California e diretor de Antro-pologia do Contemporary Research Collabo-

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tamente quando a noção de con-senso, nas formulações de Haber-mas12 e Arendt13, recebia especial destaque – recordemos os “inte-lectuais moduladores”, segundo Passetti –, Foucault discorreu lon-gamente sobre o problema de ha-ver, ou não, entre eles, Laing14, Cooper15 e Basaglia, alguma co-munidade ou consenso apriorísti-co. Sua resposta é negativa: não haveria qualquer “nós” prévio e

ratory (ARC). Atuou também como diretor de Práticas Humanas no Centro de Pesquisa de Engenharia Biológica Sintética, que consis-te em um grupo de pesquisa decentralizado com pesquisadores de sete universidades dos Estados Unidos. Confira a entrevista concedi-da por Rabinow à edição 429 da revista IHU On-Line, de 15-10-2013, intitulada O lugar do antropos sintético, disponível em http://bit.ly/1ctbdih. (Nota da IHU On-Line)12 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale-mão, principal estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. Herdando as dis-cussões da Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa como superação da razão iluminista transformada num novo mito, o qual encobre a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos deve contruir-se pela troca de idéias, opiniões e informações entre os sujeitos históricos, esta-belecendo-se o diálogo. Seus estudos voltam--se para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line)13 Hannah Arendt (1906-1975): filóso-fa e socióloga alemã, de origem judaica. Foi influenciada por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em consequência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os Estados Unidos, onde escreveu grande parte das suas obras. Lecionou nas principais universidades deste país. Sua filosofia assenta numa críti-ca à sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera econômica, tendo como modelo de inspiração a antiga cidade grega. A edição mais recente da IHU On-Line que abordou o trabalho da filósofa foi a 438, A Banalidade do Mal, de 24-03-2014, disponível em http://bit.ly/ihuon438. Sobre Arendt, confira ianda as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar-caram o século XX, disponível em http://bit.ly/ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponí-vel em http://bit.ly/ihuon206. (Nota da IHU On-Line)14 Ronald David Laing (1927-1989): psi-quiatra escocês que se colocou contra a psi-quiatria ortodoxa de seu tempo, recusando, contudo, o rótulo de anti-psiquiatra. (Nota da IHU On-Line)15 David Cooper (1931-1986): médico e psiquiatra sul-africano. Atuou na Inglaterra. Representante da corrente antipsiquiátrica, denunciou a psiquiatria oficial, que conside-rava submetida às necessidades da sociedade. (Nota da IHU On-Line)

o problema colocado, tanto para eles quanto para os que os ha-viam frequentado ou lido, fora o de saber se seria possível cons-tituir esse “nós” a partir do tra-balho realizado – um nós sempre futuro, em suma, resultado im-portantíssimo, conquanto inevita-

velmente provisório, de questões colocadas de maneira nova. Lem-bro que Foucault admirava muito o poeta René Char16, para quem “aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não merece res-peito nem paciência” – frase a ser sempre lembrada se julgamos ter, por equipamento ético-teórico, a desinstitucionalização.

IHU On-Line - Em que medida o conceito de biopolítica pode nos ajudar a entender a relação entre a captura das subjetividades e a “produção” de doenças mentais?

Heliana de Barros Conde Ro-drigues - Respondo de forma bem

16 René Char (1907-1988): um dos mais importantes poetas modernos franceses. Ad-mirado por Heidegger pela profundidade de sua poesia filosófica, foi também um herói da Revolução Francesa e nos anos 60 militou no protesto anti-nuclear. Associado com o mo-vimento surrealista por muitos anos e amigo íntimo de muitos pintores - como Braque, Giacometti e Picasso - escreveu uma poesia que confronta os principais interesses mo-rais, políticos e artísticos do século XX, com uma simplicidade de visão e expressão que deve aos poetas e filósofos da Grécia antiga. (Nota do IHU On-Line)

sintética: tomando a biopolítica apenas no sentido de regulação das populações, ela incita, no que tange à sua face subjetivante, a nos relacionarmos com nossos pen-samentos, sentimentos e ações a partir de uma valoração fundada na axiomática do capital – vale lembrar que o saber relaciona-do aos dispositivos de segurança, correspondentes à biopolítica das populações, é a Economia Política. Nesse sentido, se nos sujeitamos sem crítica a esse exercício de po-der sobre a vida, qualquer experi-ência menos capitalizada/capitali-zável será vivida como fracasso ou mal-estar, estando assim disponível para a “captura”, por assim dizer. Muitos anos atrás, Suely Rolnik17 caracterizou a síndrome capitalís-tica fundamental como “síndrome de carência-captura” e, a despeito das modulações desse regime de governamento, acho que a catego-ria mantém sua validade: devemos nos viver como sempre carentes, como invariavelmente “em falta” e, para tanto, os produtos-valores a consumir, inclusive na forma de subjetivação, devem ser perma-nentemente atualizados – o que é “capital humano” hoje não neces-sariamente o será amanhã e o pre-ço do empreendedorismo de si, por exemplo, é o eterno risco, a eterna angústia.

IHU On-Line - Nesse sentido, pode-se detectar um nexo obje-tivo entre o neoliberalismo e o surgimento de patologias como a esquizofrenia e a depressão, por exemplo?

17 Suely Rolnik: é psicoterapeuta, crítica cultural, professora e integrante do Núcleo de Estudos da Subjetividade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo além de professora convidada do Programa de Estu-dos Indepentendes do Museu de Arte Con-temporânea de Barcelona (MacBa). Suas pes-quisas e trabalhos acadêmicos são dedicados às políticas de subjetivação através de uma perspectiva transdisciplinar. Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenadora e parti-cipante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica desta instituição. (Nota da IHU On-Line).

Há muitas cap-turas, mas há

também – e dis-so sabemos me-

nos e falamos menos – inú-meras resis-

tências e con-tracondutas

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Heliana de Barros Conde Rodri-gues - A pergunta já está mais ou menos respondida, a meu ver, po-rém li recentemente (e gostei da formulação) que as atuais expres-sões de mal-estar, que remetem com frequência a expressões em linguagem neuroquímica, seriam a contraparte subjetivante – a da re-lação a si – da expansão tanto das neurociências como da indústria de medicamentos psiquiátricos. Hoje não se fala tanto de esquizofrenia ou de depressão, mas de “transtor-nos” de todo tipo, conforme lista-dos nos DSMs18, para cujo diagnós-tico se pode apelar, inclusive, para o uso prévio da medicação: se ela funcionar, é esse o seu distúrbio!

O neoliberalismo atual, nes-se sentido, não “causa” esquizo-frenia, depressão ou transtornos vários em função de algum fator determinante de dissociações ou de perdas, por exemplo: ele forja dispositivos que têm por efeito ob-jetivações e subjetivações codifi-cáveis-codificadas como patologias mentais, no caso predominante-mente descritas e pensadas como neuroquímicas. Cumpre acrescen-tar que as subjetivações não cons-tituem simples interiorização das objetivações: elas implicam modos de cuidado, modos de relação a si e aos demais, dos quais o neolibe-ralismo, como modo de governar, tenta igualmente ser o gestor – sem nunca o conseguir totalmente, pois se inventam modos resistenciais em permanência, e eles nos inte-ressam sobremaneira.

IHU On-Line - Qual é o espa-ço para o exercício da autono-mia nesse contexto biopolítico

18 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM): é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, de acordo com a Asso-ciação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA). É usado ao redor do mundo por clínicos e pesquisadores bem como por companhias de seguro, indús-tria farmacêutica e parlamentos políticos. (Nota da IHU On-Line)

de classificação de sujeitos e condutas?

Heliana de Barros Conde Ro-drigues - Leio a pergunta e penso em meus alunos da Universidade: eles costumam dizer que o curso de Psicologia pouco lhes ensina que sirva para lidar com os proble-mas que enfrentam, digamos, nas ações públicas de saúde, educa-ção, assistência, etc. Lembro-me em seguida de uma aula do cur-so Hermenêutica do Sujeito, em que Foucault traz à cena algumas reflexões de estoicos19 e epicuris-tas20 quanto aos saberes. Em linhas gerais, eles distinguem os saberes inúteis ou ornamentais daqueles que podem funcionar como um “equipamento” para a vida, para enfrentar as provas da vida, para

19 Estoicismo - Estoico (do grego Στωικισμός): é uma escola de filosofia hele-nística fundada em Atenas por Zenão de Cítio no início do século III a.C. Os estoicos ensina-vam que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sábio, ou pes-soa com “perfeição moral e intelectual”, não sofreria dessas emoções. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estoicos tomam de Heráclito de Éfeso e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao qual per-tence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo grego que significa “harmo-nia”). O estoicismo propõe se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. (Nota da IHU On-Line).20 Epicurismo: é o sistema filosófico que prega a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos. Já quando os desejos são exacerba-dos podem ser fonte de perturbações cons-tantes, dificultando o encontro da felicidade que é manter a saúde do corpo e a serenidade do espírito, ensinado por Epicuro de Samos, filósofo ateniense do século IV a.C., e seguido depois por outros filósofos, chamados epicu-ristas. Epicuro também é conhecido como o Filósofo do Jardim, pois “O Jardim” foi como ficou conhecida a escola por ele fundada e que consistia numa comunidade de amigos e seguidores. Lá, escreveu com detalhes a filo-sofia que iria se tornar conhecida como epicu-rismo. Para Epicuro, para ser feliz era neces-sário controlar os nossos medos e desejos de maneira que o estado de prazer seja estável e equilibrado consequentemente a um estado de tranquilidade e de ausência de pertubação. (Nota da IHU On-Line)

forjar uma arte de viver. Foucault insiste, nesse momento, que a dis-tinção não corresponde, de forma alguma, àquela que diferencia o saber sobre o mundo do saber so-bre o sujeito – como se propôs mo-dernamente, por exemplo, falando de ciências explicativas (mundo) versus compreensivas (sujeito), ou em ciências nomotéticas (mundo) versus idiográficas (sujeito).

Para estoicos e epicuristas, o que qualifica um saber, seja ele relati-vo ao mundo ou ao sujeito, é que possa ser poiético21, ou melhor, que possa engendrar um “agir como se deve”. Suponho que essas refle-xões conduzam a uma boa maneira de desenvolver a questão proposta e que iluminem, inclusive, a afir-mação foucaultiana de que o cui-dado de si é a forma primordial de resistência ao poder político: por cuidado de si, vale ressaltar, não se entende saber sobre o sujeito, mas saber poiético, aquele que equipa para as provas do viver (inclusive, mas de forma decerto singular, no contexto biopolítico...).

IHU On-Line - Por outro lado, como podemos compreender a desinstitucionalização psiquiátri-ca no contexto da área de saúde mental brasileira?

Heliana de Barros Conde Rodri-gues - A desinstitucionalização não vai nada bem, infelizmente. Mas há que defendê-la, sem tornar-se, por isso, acrítico quanto a suas eventu-ais reinstitucionalizações, hoje tão frequentes.■

21 Poiética: Atividade que realiza objetos, processo do fazer artístico ao produzir uma obra de arte, seus gestos, seus rituais, seu percurso. Termo criado por Paul Valéry, em estudo específico sobre o fazer, da poética. Ele opõe os verbos poien (fazer), caracterizado pelo poiema (a coisa feita), e prattein (agir). É a ciência que analisa as manifestações artísticas. A arte não é um discurso, mas ato, que se elabora através de gestos, procedimentos, processos, que não passam necessariamente pelo verbal e independem relativamente deste. Nesse sentido é como se o processo fosse mais importante que a própria obra. Ou a significação deste fazer via ciência deste processo. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

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Programação

V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica

III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação

XVII Simpósio Internacional IHU

De 21/09/2015 a 24/09/2015

Problematizar práticas biopolíticas que produzem formas particulares de ser sujeito nas sociedades con-temporâneas é o objetivo dos dois Colóquios e do Sim-pósio Internacional IHU. Os eventos são uma promoção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Programa de Pós Graduação em Educação, PPG em Filosofia, PPG em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos

Sinos - UNISINOS e PPG em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. A carga horária total da programação é 28h30min. As conferências vão acontecer no Anfiteatro Pe. Werner, no campus da Uni-sinos em São Leopoldo.

Saiba mais em http://bit.ly/1B53Slt

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Confira outras publicações do Instituto Humanitas Unisinos - IHU nas quais foi abordado o tema da Biopolítica• Afinanceirizaçãodavida.Osprocessosdesubjetivaçãoeareconfiguraçãodarelação“economiae

política”. Revista IHU On-Line nº 468, de 29-06-2015, disponível em http://bit.ly/1LYrWxI

• FoucaulteaUniversidade:entreogovernodosoutroseogovernodesimesmo. Artigo de Sandra Caponi

publicado no Cadernos IHU Ideias nº 211, de 2014, disponível em http://bit.ly/1Qcz4W3

• Vida,domistérioaomecanismo.Ecosdeumevento. Revista IHU On-Line nº 457, de 27-10-2014, dispo-

nível em http://bit.ly/1KoKMxm

• As tecnociências e amodelagem da vida. Revista IHU On-Line nº 456, de 20-10-2014, disponível em

http://bit.ly/1FJkaTO

• AdesigualdadenoséculoXXI.Adesconstruçãodomitodameritocracia. Revista IHU On-Line nº 449, de

04-08-2014, disponível em http://bit.ly/1s5ZKvY

• Evoluçãoconsciente.Qualéofuturodahumanidade? Revista IHU On-Line nº 448, de 28-07-2014, dispo-

nível em http://bit.ly/1CJHBhs

• Agamben. Cadernos IHU em Formação nº 45, de 2013, disponível em http://bit.ly/1KaeCn3

• APessoanaEradaBiopolítica:autonomia,corpoesubjetividade. Artigo de Heloisa Helena Barboza pu-

blicado no Cadernos IHU Ideias nº 194, de 2013, disponível em http://bit.ly/1M6vEn1

• Produçõestecnológicasebiomédicaseseusefeitosprodutivoseprescritivosnaspráticasdesaúdee

degênero. Artigo de Marlene Tamanini publicado no Cadernos IHU Ideias nº 189, de 2013, disponível em

http://bit.ly/1MmvSJD

• Biologiasintética.Oredesenhodavidaeacriaçãodenovasformasdeexistência. Revista IHU On-Line

nº 429, de 15-10-2013, disponível http://bit.ly/1KlBRMp

• Aautonomiadosujeito,hoje.Imperativosedesafios. Revista IHU On-Line nº 417, de 06-05-2013, dispo-

nível em http://bit.ly/1UPcqK1

• O(des)governobiopoliticodavidahumana. (São Leopoldo: Casa Leiria, 2011), disponível em http://bit.

ly/1iJuR1p.

• Tudoépossível?Umaéticaparaacivilizaçãotecnológica. Revista IHU On-Line nº 371, de 29-08-2011,

disponível em http://bit.ly/1KhSXX6

• InclusãoeBiopolítica. Artigo de Maura Corcini Lopes, Kamila Lockmann, Morgana Domênica Hattge e Vivia-

ne Klaus publicado no Cadernos IHU Ideias nº 144, de 2010, disponível em http://bit.ly/1VXxhIf

• Nanotecnologiaecriaçãodenovosespaçosenovasidentidades. Artigo de Marise Borba da Silva publica-

do no Cadernos IHU Ideias nº 139, de 2010, disponível em http://bit.ly/1LtxsDK

• Biopolitica,estadodeexcecaoevidanua.Umdebate. Revista IHU On-Line nº 344, 21-09-2010, disponível

em http://bit.ly/1HAZ8oK

• O (des) governo biopolitico da vida humana. Revista IHU On-Line nº 343, 13-09-2010, disponível em

http://bit.ly/1CG8PpB

• Transumanismoenanotecnologiamolecular. Artigo de Celso Candido de Azambuja publicado no Cadernos

IHU Ideias nº 109, de 2008, disponível em http://bit.ly/1Kaj7OL

• Uma leituradas inovaçõesBio(nano)tecnológicasapartirdasociologiadaciência. Artigo de Adriano

Premebida Cadernos IHU Ideias nº 102, de 2008, disponível em http://bit.ly/1FI0LQZ

BaúdaIHUOn-Line

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IHUemRevista

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TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

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Agenda de EventosConfira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU de 14-09-2015 até 29-09-2015

Ciclo de Estudos em EAD – Repensando os Clássicos da Economia

Ministrante: Prof. MS Gilberto Antonio Faggion – UNISINOS

Carga horária: 37h.

Saiba mais http://bit.ly/1fLf14t

IIIColóquiodoInstitutoHumanitasUnisinos–IHUe oVIColóquiodaCátedraUnesco–UnisinosdeDireitosHumanoseviolência,governoegovernança.A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas. A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmico, ético e político

Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU

Saiba mais em http://bit.ly/1LfaGRh

IHU ideias - As identidades dos gaúchos em debate – IHU ideias

Conferencistas: Profa. Dra. Sinara Robin – UNISINOS e Jaime Betts – Psicanalista (membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA)

Horário: 17h30min às 19h

Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU

Saiba mais em http://bit.ly/1MgJlT4

V Seminário Observatórios, Metodologias e Impactos: Dados e Participação

RodadeconversadosObservatóriosSociais:dadoseparticipação

Debatedor: Prof. Dr. Alfonso Torres Carrillo – Universidad Pedagógica Nacional – UPN – Colômbia

Horário: 15h

Local: Auditório Central

Saiba mais em http://bit.ly/1HXmrc2

De02/09a04/11

15/09e16/09

17/09

28/09

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

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28/09

29/09

29/09

Conferência de abertura – Informação e metodologias participativas, desafios nos cenários atuais

Conferencista:Prof. Dr. Alfonso Torres Carrillo – Universidad Pedagógica Nacional – UPN – Colômbia

Horário: 20h

Local: Auditório Central

Saiba mais em http://bit.ly/1HXmrc2

V Seminário Observatórios, Metodologias e Impactos: Dados e Participação

Mesa-redonda:Dadoseparticipação–experiênciasemetodologias

Participantes:

Prof. MS Daniel Bittencourt – UNISINOS – RS - Plataformas colaborativas

Zenaide Busanello Bellé – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – SP - Movimentos sociais e a informação

Alan Freihof Tygel – Cooperativa EITA e UFRJ - Letramento e uso efetivo dos dados

MS Marlene da Rosa de Oliveira Fiorotti – Prefeitura Municipal de Canoas – RS - Diagnóstico socioterritorial e mapa falado

MS Natalia Passos Mazotte Cortez – RJ - Escola de Dados

Horário: 9h

Local: Auditório Central

Saiba mais em Saiba mais em http://bit.ly/1HXmrc2

Desafios e estratégias para o avanço dos Observatórios Sociais

Conferencistas: Prof. Danilo Streck – UNISINOS e Prof. Dr. Celso Alexandre Souza de Alvear – SOLTEC e UFRJ

Horário: 15h30min

Local: Auditório Central

Saiba mais em Saiba mais em http://bit.ly/1HXmrc2

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TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

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#Justiça,VerdadeeMemória

A restauração da História pela narrativa das vítimasEvento promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Cátedra Unesco, Filosofia Unisinos e Programas de Pós-Graduação em Direito e em Saúde Coletiva da UNISINOS quer refletir sobre as práticas de justiça em relação às vítimas

A restauração de um passado se dá através da trama de diversas narrativas. Na História do Brasil, por muito tempo, o período de regime militar, de 1964 a 1985, era contado apenas por uma narrativa. As vítimas ti-nham sua experiência sufocada. Agora, estas vítimas do regime passam a ter voz. E, na busca pela repara-ção, o Estado começa um movimento para encarar de frente esse passado rejeitado. É nesse processo que se insere o conceito de justiça de transição. Verda-de, memória e restauração são conceitos que passam a ser discutidos desde a perspectiva das vítimas. É nessa ambiência que o InstitutoHumanitasUnisinos–IHU, Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança, curso de Filosofia e Programas de Pós-Graduação em Direito e em Saú-de Coletiva da UNISINOS promovem o III Colóquio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e o VI Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e vio-lência, governo e governança, sob o tema Ajustiça,averdadeeamemórianaperspectivadasvítimas.A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmico,éticoepolítico.

O evento ocorre na próxima semana, nos dias 15 e 16 de setembro, na Sala Ignacio Ellacuría e Companhei-ros – IHU, no Campus de São Leopoldo da UNISINOS.

As inscrições podem ser feitas através do sítio do IHU (ihu.unisinos.br) ou diretamente no link http://bit.ly/1UH0udh. A programação completa está disponível em http://bit.ly/1K1NHtR.

Ao longo desses dois dias, conferencistas do Brasil e do exterior promoverão reflexões sobre as práticas de justiça em relação às vítimas. Assim, o colóquio se propõe a debater as diversas práticas de justiça em que a condição das vítimas que sofreram a injustiça é o referente ético, político e jurídico para pensar o justo. Diversas práticas de justiça na perspectiva das vítimas, tais como a justiça transicional, a justiça res-taurativa, a internacionalização da justiça, a justiça histórica, a justiça e o perdão, entre outras, estão en-tre os temas das palestras. O evento ainda se propõe a investigar a relevância do testemunho das vítimas, e das vítimas como testemunhas da injustiça, a fim de poder pensar o estatuto epistêmico da narrativa das testemunhas como referente ético, político e jurídi-co para uma justiça que tenha como prioridade res-taurar, no possível, a injustiça sofrida pelas vítimas e, secundariamente, a penalização da transgressão da lei vigente.

A seguir, confira entrevista com alguns dos painelis-tas. ■

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#Justiça,VerdadeeMemória

Pelos caminhos da verdade até a justiça e reconciliaçãoPara Sueli Bellato, “justiça é possibilidade de acesso para o perdão e para reconciliação”. Caminhos que começam a ser trilhados com a verdade desvelada e reconhecida como História

Por Márcia Junges e João Vitor Santos

Para muitos, a ideia de perdão tem a ver com absolvição. No entanto, para a vice-presi-

dente da Comissão de Anistia, Sueli Bellato, o perdão está mais próximo da reconciliação. Na opinião da mili-tante em Direitos Humanos, trilhar um caminho que leve até a reconciliação passa essencialmente pela justiça. E, por sua vez, só se estabelece a justiça quando a verdade vem à tona e passa a ser reconhecida como a História oficial, legitimada. “A verdade é a luz que per-mite atravessar a ponte para alcançar a Justiça e a reconciliação”, explica. Sem a verdade, as vítimas continuam como que vivendo nas sombras e sem de fato entender a História entrelaça-da com as próprias vidas. É por isso que no IIIColóquiodoInstitutoHumanitasUnisinos–IHUeVIColóquiodaCáte-draUnesco–UnisinosdeDireitosHu-manos, Sueli falará sobre “a justiça e as vítimas”.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHUOn-Line, detalha mais os nexos entre a ideia de perdão e justiça. “O perdão remete à justiça, à liberdade e à paz. Quem perdoa liberta-se de car-regar nos ombros seu algoz e se livra das feridas não cicatrizadas, liberta dos pesadelos, ameaças, temores”, destaca. E ainda conecta esses con-ceitos à ideia de justiça de transição, para além de uma reparação monetá-ria. Para ela, o que muitas vítimas e

familiares querem é não deixar que se esqueça das inúmeras violações de Direitos Humanos que já se passou no país. “Lembrar é também um compro-misso, uma promessa de adoção de me-canismos para não repetição.”

Sueli ainda faz conexões com as ma-nifestações de hoje, muitas pedindo a volta do regime militar. Para ela, ou são fruto de desinformação sobre o que foi o regime ou são atos criminosos que desrespeitam a memória e a própria História de quem viveu esse período. “É preciso examinar com seriedade es-tas manifestações e, se a manifestação for resultado de desconhecimento his-tórico, devemos insistir nos programas educativos obrigatórios como forma de advertência pedagógica. Agora, se parte de pessoas convencidas do que estão manifestando, então entendo que deve ser apurado e responsabili-zado criminalmente. Porque, além de serem ofensas desrespeitosas contra o posicionamento vencedor da dita-dura, também ofende a memória dos mortos e comete crime de vilipêndio”, dispara.

Sueli Bellato é mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília - UNB, militante de direitos humanos, ex-conselheira e vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Confiraaentrevista.

IHUOn-Line-Oqueéajustiçadetransição?

SueliBellato-A justiça de tran-sição é conceituada como o con-

junto de mecanismos, judiciais e extrajudiciais, que tem o objetivo de tratar das graves violações de direitos humanos cometidas num determinado momento político.

Isso quer seja guerra, ditadura, conflitos internos e externos. O propósito é estabelecer a reconci-liação e perenizar a paz.

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IHUOn-Line-Apartirdapers-pectiva da justiça de transição,emquemedidasepodefalaremperdãooudesculpaemnomedoEstadobrasileiro?

Sueli Bellato - Na justiça de transição, o pressuposto do perdão é o arrependimento e a promes-sa de não mais cometer violações que causaram prejuízo à vítima, às vítimas e ao país. Contudo, a con-cessão do perdão é instrumento exclusivo das vítimas. Ao acusado cabe pedir e esperar que a vítima o perdoe. Por ser incondicional, as vítimas aceitam o perdão de acor-do com suas convicções, possibili-dades, sem nenhuma condição de qualquer natureza.

No caso do Brasil, o Estado inter-pretou a declaração de anistiado político prevista no primeiro artigo da Lei 10.559/2002 à luz do Direi-to Internacional e das experiências dos países e povos que atravessa-ram situações de graves violações de direitos humanos como indicati-va para o pedido de desculpas, uma vez que a Anistia é devida a quem praticou atos contrários a lei. No caso, o Estado é quem perseguiu, prejudicou. Por isso lhe cabe pedir desculpas às suas vítimas. O pedido de desculpa é condicionado a uma obrigação de fazer ou de deixar de fazer. Daí a importância de o pe-dido de desculpas ser acompanha-do das reparações aos prejuízos morais e econômicos. Enquanto a Justiça é um fim em si mesmo, o perdão é um meio para se alcançar a Justiça.

IHUOn-Line -Numaperspecti-va jurídica,qualéapertinência

e compatibilidade do perdão najustiça?

SueliBellato-O perdão remete à justiça, à liberdade e à paz. Quem perdoa liberta-se de carregar nos ombros seu algoz e se livra das feridas não cicatrizadas, liberta dos pesadelos, ameaças, temores. Sendo ato exclusivo da vítima e gratuito, somente ela pode atestar se estão dados os elementos que a movem para perdoar. A aplicação dos mecanismos recomendados aos países que sofreram interrupção democrática e graves violações de Direitos Humanos em massa, como ocorreu no Brasil na prolongada ditadura de 21 anos, não ocorreu adequadamente ou até mesmo não ocorreu. Isso pode obstruir o cami-nho da manifestação de arrepen-dimento e do perdão. Refiro-me à falta de responsabilização dos que perpetraram graves violações e se beneficiam da impunidade.

IHU On-Line - Em que sentidoa justiça de transição colaboracoma categoria damemória emrelação aos fatos ocorridos noperíodo da ditadura civil militarbrasileira?

Sueli Bellato - Lembrar é um requisito essencial da Justiça de Transição. Lembrar é também um compromisso, uma promessa de adoção de mecanismos para não repetição.

IHU On-Line - De quemaneiraodireitoàmemóriaseconfiguracomoumdireitoàdefesadavida?

SueliBellato-O resgate da me-mória individual e coletiva repre-senta o resgate da dignidade, a

superação do estado de ruínas, de depressão e afirmação da autoes-tima de toda população. O fim do estado autoritário marca o rom-pimento com as medidas de força e de violência. Fazer a memória é afirmar o compromisso com a vida e com a dignidade humana.

IHU On-Line - Em que medidase entrelaçam o direito funda-mental à verdade e a justiça detransição?

SueliBellato-A verdade é a luz que permite atravessar a ponte para alcançar a Justiça e a reconci-liação. Sem a verdade, as vítimas e sobreviventes estarão submetidos a um estado de desconhecimento dos como e “porquê’s”. Os familia-res de perseguidos políticos conti-nuarão no estado de vitimização, de trauma, insegurança jurídica e política e credores de um direito desrespeitado. O desconhecimen-to do paradeiro dos perseguidos políticos, por exemplo, são direi-tos que seguem sendo negados aos familiares causando obstrução da realização da justiça.

IHU On-Line - Quais foram asprincipais conquistas e desafiosdaComissãoNacionaldeAnistia?

Sueli Bellato - Como estudiosa do tema, ex-conselheira e ex-vice--presidente da Comissão de Anis-tia, entendo que muito se fez até o presente. A começar da instala-ção da Comissão que foi inserida no texto da Constituição graças à intensa mobilização dos militan-tes de Direitos Humanos e dos que sofreram perseguição política. Da mesma forma a instalação da Co-missão se deveu aos mesmos atores que por 13 anos lutaram para que o governo regulamentasse o disposi-tivo da Constituição Federal que só acabou ocorrendo em 28 de agos-to de 2001. Sem prazo final para recepção de pedidos, a Comissão recebeu o maior número de reque-rimentos de anistia entre os anos 2001 e 2004.

Não obstante até o presente momento, ainda restam requeri-mentos sem apreciação e decisão

Concessão do perdão é instru-mento exclusivo das vítimas. Ao acusado cabe pedir e espe-

rar que a vítima o perdoe

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dos primeiros anos da instalação da Comissão de Anistia. Creio ser este um dos maiores desafios. Se não se conseguiu o julgamento dos pedidos de requerimento de for-ma célere, como era recomendado em razão da idade, dos traumas e necessidade das vítimas, que se busque meios de finalizar no curto prazo os requerimentos que ainda faltam ser decididos para que os re-querentes possam receber em vida a declaração de anistiado político brasileiro e as devidas reparações.

IHU On-Line - Em que medidafoifeitajustiçaàsvítimasapartirdaperspectivadostrabalhosdes-saComissão?

Sueli Bellato -A Justiça que as vítimas reivindicam não é apenas a que está no escopo da Comissão de Anistia. Todavia, no limite da sua competência, a Comissão re-aliza a reparação econômica e a moral. Primeiro, a Comissão con-tribui para que as vítimas deixem de ser invisíveis e mudas. Sabemos que o regime militar as colocou no silenciamento e na invisibilidade e assim continuaram na democracia, na medida em que a verdade se-gue incompleta e a justiça não foi feita.

Ainda hoje falamos das vítimas do golpe de 1964 da mesma forma que falamos das vítimas de Canudos, do Contestado, das demais revoltas. No entanto, muitas estão vivas e moram na mesma cidade, no mes-mo bairro e talvez na mesma rua que nós moramos. É como se não tivessem nomes, pais, mães, filhos, rostos. Com as sessões públicas, as caravanas da Anistia e manifesta-ções culturais, as vítimas permi-tem que a população conheça seu protagonismo na História de luta e resistência. Resultado do Proje-to Marcas da Memória, a Comissão realiza parcerias com acadêmicos, profissionais do cinema e da arte para produção de obras literárias, filmes, teatros, etc., com as histó-rias das vítimas e dos acontecimen-tos que atingiram a democracia e a integridade do povo brasileiro.

Também é sabido que as vítimas da ditadura sofreram perseguições,

foram presas, torturadas, perde-ram os empregos, foram expulsas da vida acadêmica, etc. Tudo isto acarretou prejuízo econômico. Por isso a lei que regulamentou a Cons-tituição Federal previu indenização especial para amenizar os impactos causados pelas perseguições.

Porém, as vítimas esperam é que os perpetradores de violações assumam o que praticaram, ma-nifestem seus arrependimentos e a Justiça responsabilize quem sequestrou, prendeu, torturou, violentou, assassinou, usou nomes falsos e muitas vezes praticou toda sorte de crime com o rosto cober-to. Justiça é possibilidade de aces-so para o perdão e para reconcilia-ção. Não obstante ela decorre da Verdade e implica em compromis-sos de não repetição.

IHUon-Line-QualéopapeldaComissãodeAnistiadoMinistériodaJustiça?

SueliBellato–Comissão de Anis-tia é órgão de assessoramento do Ministro da Justiça. Sua competên-cia legal é promover recomenda-ções nos processos administrativos para o reconhecimento do direito de reparação, de acordo com a es-pecificidade de cada caso e permi-tir que o ministro tenha as melho-res condições para decisão final.

IHU On-Line - Por que o temadaAnistiageratantaceleumanoBrasil?

SueliBellato–No mundo todo, a palavra anistia – derivada do gre-

go amnistia – é interpretada como amnésia, esquecimento. Então, os militares quando aprovaram a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, convencionaram que esqueceriam as perseguições por eles pratica-das. Algo como “estamos quites e daqui pra frente não se fala mais nisso”. E mais: como em regime de ditadura não tem diálogo, consul-ta, eles veicularam que esta ideia era resultado de um acordo com as vítimas. Ocorre que a ditadura prosseguiu até início de janeiro de 1985. Foi quando os civis voltaram a presidir o país e foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte para inscrever na História do país um novo marco legal.

Este novo marco legal que é fruto da luta pela democracia não tem e não poderia ter qualquer sintonia com a lei promulgada pelos milita-res em plena ditadura. O espírito da Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988 não autoriza a recepção da construção feita pe-los militares a respeito do esque-cimento. Pelo contrário, a nova Constituição recomenda estado de vigilância a favor da democracia e não esquecimento para não repetir o que aconteceu contra as institui-ções e toda a Nação.

Retrocessos jurídicos

No entanto, a obrigação de co-nhecimento da verdade, responsa-bilização dos crimes do passado e o não esquecimento não tem pre-valecido no Poder Judiciário brasi-leiro. Assim, que decidiu, em 2010, na contramão da história e das políticas da Justiça transicional, quando julgou a Arguição de Des-cumprimento de Preceito Funda-mental promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, ADPF 153, e decidiu que a Lei 6.683/79 é fruto de um pacto político que possibili-tou a transição para a democracia e a declarou válida.

Neste sentido, o Supremo Tribu-nal Federal igualou vítimas e per-petradores às mesmas condições de beneficiados pela dita Lei de Anistia. Felizmente, ainda resta um Embargo de Declaração para que o

No caso, o Es-tado é quem

perseguiu, pre-judicou. Por

isso lhe cabe pe-dir desculpas

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Supremo supere as contradições invocadas no recurso e esclareça a falta de sintonia desta decisão com a condenação sofrida pelo Brasil na ação promovida por familiares de vítimas de desaparecimento força-do perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta corte, entre outras obrigações, recomen-dou a revisão da Lei que auto anis-tia os perpetradores de violações de Direitos Humanos.

IHU On-Line - Há uma relaçãoentre a Comissão deAnistia e aComissãodaVerdade?Queapro-ximações e enriquecimentos po-demserestabelecidos?

Sueli Bellato – Ambas as Co-missões trabalharam a favor do resgate da verdade. Enquanto a Comissão de Anistia – CA iniciou seus trabalhos em 2002 por força da Lei 10.559, com o objetivo de reparar as vítimas das perseguições políticas, a Comissão Nacional da Verdade iniciou seus trabalhos 27 anos após o fim da ditadura militar. E com muitos desafios e respostas aguardadas pelas vítimas, familia-res e aqueles que se mobilizaram para aprovar em 2009, por ocasião

da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, com a recomendação de criação da Co-missão Nacional da Verdade - CNV.

No período de estudos para apre-sentação do projeto de lei e ela-boração do projeto, a Comissão de Anistia participou ativamente das atividades pertinentes. O acervo da Comissão da Anistia, que possui mais de 70 mil processos, esteve sempre à disposição dos comissio-nados e assessores da CNV. O Re-latório final da CNV faz menção à contribuição da CA e das Comis-sões regionais da CV. A Comissão de Anistia também firmou dezenas

de convênios com as Comissões Es-taduais e Regionais da Verdade, o que lhes permitiu e segue permi-tindo uma importante interação e contribuição para o resgate da me-mória e da verdade.

IHUOn-Line-Gostariadeacres-centaralgo?

SueliBellato–De fato, existem temas que mesmo de forma subli-minar estão presentes. Destaco o cumprimento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade e as manifestações atuais de pedi-do de volta à ditadura. É preciso examinar com seriedade estas ma-nifestações e, se a manifestação for resultado de desconhecimen-to histórico, devemos insistir nos programas educativos obrigatórios como forma de advertência peda-gógica. Agora, se parte de pessoas convencidas do que estão manifes-tando, então entendo que deve ser apurado e responsabilizado crimi-nalmente. Porque, além de serem ofensas desrespeitosas contra o posicionamento vencedor da dita-dura, também ofende a memória dos mortos e comete crime de vi-lipêndio. ■

Enquanto a Jus-tiça é um fim em si mesmo, o per-dão é um meio para se alcan-çar a Justiça

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#Justiça,VerdadeeMemória

O acerto de “faz de conta” com o passadoJair Krischke destaca que, de fato, o Brasil “ainda não fez o seu ‘acerto de contas’ com o passado ditatorial civil e militar”. Para ele, o trabalho da Comissão da Verdade foi “frustrante”

Por Márcia Junges e João Vitor Santos

Conhecer o passado para, através dele, entender o presente e pro-jetar uma ideia de futuro. Esse é

um princípio básico da História. Porém, na do Brasil sempre houve uma sombra em tudo que cerca o período da Ditadu-ra Militar, de 1964 a 1985. Somente em 2012 o país mostrou disposição para ilu-minar esse período da história e encarar seus fantasmas com a instalação da Co-missão Nacional da Verdade. O problema é que, na opinião do presidente do Movi-mento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, a luz foi fraca e os fantasmas continuam a assom-brar. “O Brasil ainda não fez o seu ‘acerto de contas’ com o passado ditatorial civil e militar. A Comissão Nacional da Verdade foi absolutamente frustrante em seu rela-tório final”, destaca.

Jair Krischke ainda critica o posiciona-mento brasileiro. “Em matéria de Justiça Transicional, o Brasil vive uma enorme contradição: no meio acadêmico, temos uma excelente produção intelectual so-bre o tema e um pequeno mas extraor-dinário grupo de jovens Procuradores Fe-derais que buscam fazer valer a justiça.

Mas, na esfera do judiciário federal, nos deparamos com uma barreira quase que insuperável”, argumenta.

Na entrevista concedida por e-mail à IHUOn-Line, Krischke ainda recupera a Operação Condor e relaciona as ditaduras em países vizinhos ao Brasil. Relação que, na opinião dele, se deu somente na oca-sião das operações de repressão (ações bilaterais) e que hoje coloca o Brasil em outra situação. “Diferentemente, na Ar-gentina, Uruguai e Chile, vemos um nú-mero bastante significativo de militares e policiais já cumprindo largas sentenças, algumas de prisão perpétua. Que inveja”, destaca.

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos. Atua no Brasil, Argentina, Uru-guai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou, juntamente com um grupo de homens e mulheres solidários, inclusive alguns je-suítas, a primeira organização de direitos humanos do Brasil, que passou a chamar--se Movimento de Justiça e Direitos Hu-manos, da qual hoje é o presidente.

Confiraaentrevista.

IHUOn-Line–Oqueéajustiçatransnacional?Quaissãosuaspre-missasfundamentais?

Jair Krischke - Segundo tenho entendido, não se trata de Justi-ça transnacional, mas sim de ju-risdição extraterritorial. Vejamos esse exemplo de processo que tramita na Justiça Penal de Roma.

Segundo a constituição da Itália, os crimes em que as vítimas pos-suam a cidadania italiana, mesmo que ocorridos fora do território nacional, serão julgados segundo a lei penal do país. No caso, são 23 vítimas que detinham a con-dição de itálo-argentinos e itálo--uruguaios. Os réus são 38, dois bolivianos, quatro peruanos, 12

chilenos, 17 uruguaios, três bra-sileiros (originalmente eram 13) acusados pelos crimes de homi-cídio, massacre e sequestro com desaparição.

Em relação ao Brasil, trata-se de dois casos clássicos de “Operação Condor”, sendo vítimas: Horácio

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Domingo Campiglia1, desapareci-do no dia 12/03/1980 em pleno aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro; Lorenzo Ismael Viñas2, de-saparecido no dia 26/06/1980, em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Os réus brasileiros são: Marco Au-rélio Da Silva Reis, delegado de Po-lícia (aposentado) então Diretor do DOPS/RS; João Osvaldo Leivas Job, coronel do Exército, então Secre-tário de Segurança; Carlos Alberto

1 Horacio Domingo Campiglia. nascido em 06/06/1949, em Buenos Aires. Estudou so-ciologia e medicina, dedicou-se ao grupo Montoneros até as últimas conseqüências. Em 1977 perdeu sua irmã, Alcira Campiglia, assassinada pela repressão, ocasião em que sua mulher, Pilar Calveiro, esteve presa na ESMA. Dirigente Montonero, exilado no Mé-xico, onde era conhecido pelo codinome Pe-trus, o 2º na ordem de comando. No Arquivo Nacional da Memória (Argentina), consta o seguinte: “cidadão ítalo-argentino, desapare-cido no Rio de Janeiro, Aeroporto do Galeão, em 12 de março de 1980 > “o referido viajava do Panamá com passaporte em nome de Jor-ge Piñero, junto com a senhora Monica Su-sana Pinus de Binstock (registro SDH nº6l9 – também desaparecida na mesma ocasião), no vôo 944 de VIASA, com transbordo em Ca-racas, seguindo via VARIG, ao Rio de Janei-ro, aonde efetivamente chegou ao Aeroporto do Galeão, no dia 12 de março de 1980, onde desaparecem. Foram vistos posteriormente, na Argentina, em um centro clandestino de detenção. Continuam desaparecidos até o dia de hoje”. (Nota do entrevistado)2 Lorenzo Ismael Viñas. Nascido em 20/06/1955, Buenos Aires. Filho do escritor argentino David Viñas (professor na Uni-versidade Nacional, ensaísta, autor de vá-rios livros, ganhador do Prêmio Casa de las Américas, Cuba, em 1967), e de Maria Ade-laida Gigli. Era estudante de medicina, que iniciou sua militância na Juventude Universi-tária Peronista, ingressando depois no grupo Montoneros. Dedicava grande parte de seu tempo ao trabalho de promoção social, es-pecialmente na área da saúde, colaborando na construção de ambulatórios e jornadas de melhorias das condições sanitárias, na localidade de Gen. Sarmiento, Buenos Aires. Preso em novembro de 1974, “a disposição do Poder Executivo Nacional”, portanto sem processo formal, ficou nove meses no cárcere de Villa Devoto. Com o golpe de 1976, o cerco repressivo aumentou. Em agosto sequestram sua irmã, Maria Adelaida, e logo a seguir seu cunhado, Carlos Andrés Goldenberger, até hoje desaparecidos. Quando destes aconte-cimentos, tanto Lorenzo, como Cláudia Alle-grini, sua companheira, já estavam exilados no México, desde o final de 1975. A direção Montonera no México, em novembro de 1977, decide que o casal deve viajar ao Brasil, como parte dos planos de retornarem à Argentina. Fazem uma escala preliminar de três meses no Peru, para depois ingressarem em terri-tório brasileiro, onde permanecem até junho de 1979, circulando entre São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. (Nota do entrevistado)

Ponzi, coronel do Exército e Attila Rohrsetzer, coronel do Exército, então Diretor da Divisão Central de Informações.

No próximo mês de outubro, na condição de testemunha, deverei prestar declarações a Justiça Penal em Roma, dando continuidade ao tra-balho de assessoramento e colabora-ção, que venho desenvolvendo desde dezembro de 1999. Foi neste ano que prestei um primeiro depoimento ao Procurador da Justiça Penal da Itália, Giacarlo Capaldo, na Embaixada da Itália em Buenos Aires.

Como as vítimas estão desapare-cidas, são os seus familiares que, ao longo dos anos, buscam verdade e justiça, já que em seus países, isso lhes foi negado. O processo iniciou-se em 1999, fruto da luta desenvolvida pelos familiares, sen-do que, pela demora, muitos já faleceram.

IHUOn-Line–Eoqueéajustiçatransicional?

JairKrischke-Para melhor res-ponder, me socorro do que nos en-sina a organização das Nações Uni-das - ONU: A justiça de transição é conceituada como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado. Isto para atri-buir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memó-ria e à verdade, para fortalecer as instituições com valores democrá-ticos e garantir a não repetição das atrocidades3.

IHU On-Line - Em que medidaessajustiçaprestaodevidorespei-toerespaldojurídicoàsvítimas?

Jair Krischke - É consenso na doutrina internacional que não existe um modelo único para o processo de justiça de transição. Este se revela como um processo peculiar, no qual cada país, cada sociedade, precisa encontrar seu

3 Conforme documento produzido pelo Con-selho de Segurança da ONU - UN Security Council - The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict socie-ties. Report Secretary-General. (Nota do entrevistado)

caminho para lidar com o legado de violência do passado e imple-mentar mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade e não somente o direi-to à reparação econômica.

Porém, de modo sistemático, a Comunidade Internacional e a dou-trina mencionam quatro obriga-ções do Estado:

a) adotar medidas razoáveis para prevenir violações de direitos humanos;

b) oferecer mecanismos e instru-mentos que permitam a elucidação de situações de violência;

c) dispor de um aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes que tenham praticado as violações; e

d) garantir a reparação das víti-mas, por meio de ações que visem à reparação material e simbólica4.

Em matéria de Justiça Transicio-nal, no Brasil, vivemos uma mera ficção. Com enormes dificuldades e deixando muito a desejar, apenas logramos reparar algumas vítimas.

IHUOn-Line-Qualéaposiçãoda justiça transicional acerca daOperaçãoCondor5?

JairKrischke–Salvo no Brasil, o entendimento é de que se trata de crime de lesa humanidade (impres-critível e insuscetível de graça ou

4 Conforme BICKFORD, Louis, ‘Transitional Justice,’ in The Encyclopedia of Genocide and Crimes against Humanity, ed. Dinah Shelton, Detroit: Macmillan Reference USA, 2004, v.3, p. 1045-1047 e também de acordo com a sistematização da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1988, no julgamento do caso Velásquez Rodríguez v. Honduras. (Nota do entrevistado)5 Operação Condor: Aliança político-mili-tar entre os regimes de excessão da América do Sul nas décadas de 1970 e 1980. Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, em coordenação com a agência de inteligência dos Estados Unidos (CIA), cujo objetivo era articular os governos e eliminar os líderes de esquerda. No sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, encontra-se amplo mate-rial sobre o assunto. Consultar a entrevista Operação Condor: novas revelações, com Jair Krischke, de 24-03-2013, em http://bit.ly/ihu240313. Ver ainda , de 28-05-2007, Operação Condor. A estrutura continua existindo, com Neusa Maria Romanzini Pires em http://bit.ly/ihu280507. (Nota da IHU On-Line)

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benefício), com caráter de crime internacional. E, ainda, podendo ser julgado pela justiça de qualquer país que tenha firmado convenções que tratem do tema. Na contramão da história, nosso Supremo Tribunal Federal, desconhecendo a jurispru-dência internacional vigente, deci-diu que a Lei de Anistia6 alcançou, de igual modo, os agentes de esta-do, quer sejam civis ou militares.

IHU On-Line - Em que medi-da a justiça transicional resultaem reconciliaçãoenapromoçãodeumaculturadepazemnossocontinente?

JairKrischke-Não nos é permi-tido, sob hipótese nenhuma, ba-nalizar o sentido da reconciliação. Faz-se necessário levar em conta que o exercício da reconciliação sempre nos trará exigências fun-damentais: o reconhecimento do crime por parte do perpetrador e, em sequência, o pedido de perdão à vítima, com a consequente puni-ção pelo crime praticado. A vítima sempre terá o direito de perdo-ar ou não. É uma questão de foro íntimo. Não temos conhecimen-to de nenhum militar dos países que formam o Cone Sul7 de nossa

6 Lei da Anistia: Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, promulgada pelo então pre-sidente, general João Figueiredo, após ampla mobilização social, ainda durante o regime militar. Na primeira metade dos anos 1970, surgiu o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Therezinha Zerbini Em 1978 foi criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia, congregando várias entidades da sociedade civil, com sede na Associação Brasileira de Imprensa. A luta pela anistia aos presos e perseguidos políticos foi prota-gonizada por estudantes, jornalistas e políti-cos de oposição. No Brasil e no exterior foram formados comitês que reuniam filhos, mães, esposas e amigos de presos políticos para de-fender uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os brasileiros exilados no período da repressão política. (Nota da IHU On-Line)7 Cone Sul: é uma região composta pelas zonas austrais da América do Sul, ao sul do Trópico de Capricórnio, formando uma es-pécie de grande península que define o sul do subcontinente. Geograficamente, o Cone Sul da América é a porção sul do continen-te americano, cuja forma se assemelha a de um triângulo escaleno. Em sua classificação tradicional, a região é composta geopolitica-mente por Argentina, Chile e Uruguai, e seu território ocupa uma área total de 3 712 454 km², limitado a norte por Bolívia, Brasil, Pa-raguai e Peru; a leste pelo Oceano Atlântico; a sul pelo Estreito de Drake, o ponto do con-

América que tenham reconhecido seus muitos e hediondos crimes, pedindo publicamente perdão. Ao contrário, seguem sem manifestar qualquer gesto de arrependimen-to. Alguns, até de forma atrevida, tentam justificar as injustificáveis violências cometidas.

IHUOn-Line-Sendoumcrimedelesa-humanidade, como a justiçatransicionallidacomatorturaper-petradapeloterrorismodeEstado,cujosagentescontinuamsoltos?

JairKrischke-É o caso brasilei-ro, onde, até os dias de hoje, a total impunidade tem a máxima vigência. Em decorrência, o Brasil se transfor-mou, ao longo dos últimos anos, em um verdadeiro “ninho de represso-res”, vindos da Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Que vergonha.

IHUOn-Line-Emlinhasgerais,qualfoiopapelbrasileironaOpe-raçãoCondor?

JairKrischke-Apoiado em farta documentação existente em nossos arquivos, afirmo que o aparelho repressivo brasileiro foi o verda-deiro criador da prática (busca no exterior) posteriormente batizada de “Operação Condor”. Mas, para melhor entender o tema, se faz necessário saber o que é a tão fa-lada Operação Condor. Trata-se de um pacto secreto de cooperação clandestina entre os aparelhos de repressão das ditaduras existentes no Cone Sul. Através desta aliança, as ditaduras militares trocavam in-formações e prisioneiros, realizan-do operações conjuntas, absoluta-mente clandestinas, sem respeitar as normas internacionais e diplo-máticas existentes8.

Em dezembro de 1970, o Brasil deu início a esta prática, ao atuar em conjunto com o aparelho re-

tinente mais próximo da Antártida) e a oeste pelo Oceano Pacífico. O Paraguai é às vezes incluído,[3] devido a área geográfica da re-gião e aspectos históricos e políticos, mas sua exclusão surge quando se consideram as suas características econômicas e sociais que o distinguem dos outros países da região. (Nota da IHU On-Line)8 Os acordos de colaboração clandestina fo-ram exercitados entre Brasil, Argentina, Uru-guai, Chile, Bolívia, Peru e Paraguai. (Nota do entrevistado)

pressivo da Argentina. Foi o caso do sequestro em Buenos Aires do coronel do exército brasileiro Je-fferson Cardin de Alencar Osório9, seu filho e seu sobrinho.

Brasil e Chile

Um documento encontrado no DEOPS/SP10, datado de 21 de agosto de 1975 (portanto, anterior à famo-sa reunião de Santiago do Chile), originário de Santiago e endereça-do ao chefe do SNI11, João Baptista Figueiredo12, com cópias remetidas

9 Jefferson Cardim de Alencar Osório: nasceu no Rio de Janeiro, então Distrito Fe-deral, no dia 17 de fevereiro de 1912, filho do oficial da Marinha Roberto de Alencar Osó-rio, cujo nome verdadeiro era Robert Ernest Hoomenark, e de Corina Cardim de Alencar Osório, professora e poeta. Em 1960, Jeffer-son participou da campanha derrotada do marechal Henrique Teixeira Lott à presidên-cia. No ano seguinte, tentando evitar a prisão do marechal – que defendera a posse do vice João Goulart durante a crise da renúncia de Jânio Quadros –, foi mais uma vez preso. Es-tava sem função quando o conciliador Jango optou por tirá-lo do país e nomeá-lo diretor--técnico do Lóide Brasileiro, em Montevidéu, onde permaneceu até o Golpe de 1964. Je-fferson foi transferido para a reserva pelo Ato Institucional no 1 e teve seus direitos políticos cassados. (Nota da IHU On-Line)10 Departamento de Ordem Política e Social (DOPS): criado em 30 de dezembro de 1924, foi o órgão do governo brasileiro, utilizado principalmente durante o Esta-do Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964, cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. O órgão, que tinha a função de assegurar e disciplinar a ordem no país, foi instituído em 17 de de abril de 1928 pela lei nº 2304 que tratava de reorganizar a polícia do Estado. (Nota da IHU On-Line)11 Serviço Nacional de Informações (SNI): criado pela lei nº 4.341 em 13 de ju-nho de 1964 com o objetivo de supervisionar e coordenar as atividades de informações e contrainformações no Brasil e exterior. Em função de sua criação, foram absorvidos o Serviço Federal de Informações e Contra--Informações (SFICI-1958) e a Junta Coor-denadora de Informações (JCI-1959). A Abin (Agência Brasileira de Inteligência) foi criada em 1999 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, tomando o lugar que fora do SNI. (Nota da IHU On-Line)12 João Baptista Figueiredo (1918-1999): general brasileiro que governou o país duran-te a Ditadura Militar, entre de 1979 a 1985. Foi o 30º presidente do Brasil. Ingressou na carreira política ao ser nomeado Secretário Geral do Conselho de Segurança Nacional do governo do Presidente Jânio Quadros e, em 1964, foi integrante do movimento que culmi-nou com o Golpe militar de 1964. Comandou e chefiou várias companhias militares duran-te os primórdios do Regime Militar. Aponta-do pelo Presidente Ernesto Geisel, concorreu

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a Manuel Contreras13, evidencia a conexão entre o SNI e alguns ope-rativos militares chilenos, principal-mente realizados na Europa.

No documento, Enrique Montero Marx14, subsecretário do Interior do governo chileno, afirma que:

“[…] la decisión de la Junta de Gobierno de Chile de aceptar su propuesta para unificar las acti-vidades de nuestros servicios de inteligencia, la DINA por parte de Chile y el SNI por parte de su país, actualmente desenvueltas en la Península Ibérica […] El territorio español se mantendrá bajo nuestra entera responsabilidad: de igual forma, el territorio portugués esta-rá a cargo de sus agentes, en este caso agentes del SNI. Esperamos que la colaboración ahora iniciada pueda extenderse a países como

para presidente na eleição de 1978 pelo Alian-ça Renovadora Nacional (ARENA), na chapa com Aureliano Chaves para vice-presidente. Em sua posse, pronunciou a famosa frase em que dizia que faria “deste país uma democra-cia”. O mandato foi marcado pela continua-ção da abertura política iniciada no governo Geisel. Em 1983, iniciaram-se as campanhas das Diretas Já, que acabaram rejeitadas no Congresso Nacional. Entretanto, o governo Figueiredo promoveu a primeira eleição civil brasileira desde 1964, que decretava o fim do Regime Militar. (Nota da IHU On-Line)13 Juan Manuel Guillermo Contreras Sepúlveda (1929 –2015): foi militar chileno e ex-chefe da DINA, a polícia secreta do Chile durante o governo militar do general Augus-to Pinochet. Como chefe da polícia secreta, ele foi o mais poderoso e temido homem do país, depois do general Pinochet. Foi conde-nado a 25 penas consecutivas, totalizando 289 anos de prisão por sequestros, desapa-recimentos forçados e assassinatos, além de duas penas de prisão perpétua pela morte do ex-comandante em chefe do exército chileno do governo Salvador Allende, general Carlos Prats e sua esposa, em 1974. (Nota da IHU On-Line)14 Enrique Montero Marx (1928): advo-gado chileno e militar (Air Brigadeiro-Gene-ral). Ele era comandante do Grupo Força Aé-rea do Chile e passou para a Comissão de que instituição Reserve em 1965. Até setembro de 1973 ele alternava suas atividades profissio-nais e militares. Em 11 setembro de 1973, ele assumiu o cargo de secretário do Interior da junta militar que derrubou o presidente Sal-vador Allende. Ele serviu no cargo até 22 de abril de 1982, quando ele se tornou ministro do Interior até 10 de agosto, de 1983. Era par-te da equipe de assessoria Agustín Edwards Eastman durante o seqüestro de seu filho Christian, em 1991. Posteriormente foi pro-cessado várias vezes por violações dos direi-tos humanos, tais como Operação Colombo. (Nota da IHU On-Line)

Francia, Italia y Suecia, donde las actividades subversivas de impor-tantes grupos ya preocupan a nues-tro gobierno.”

Todas essas práticas colaboracio-nistas e de cooperação foram reali-zadas antes da implantação formal da Operação Condor. Operações que foram o ponto máximo de intercâm-bio entre as forças repressivas do Cone Sul, o que elevaria o alcance do terrorismo de Estado que assola-va a região a proporções mundiais.

Operação Condor subdividida em três fases

1 - Troca de informações entre os aparelhos de repressão dos pa-íses membros, com o objetivo de monitorar pessoas e grupos ditos subversivos, perseguidos em seus países. Ao mesmo tempo, criaram um fantástico banco de dados.

2 – Ações concretas contra al-vos suspeitos, ou seja, os di-tos subversivos, nos seis países membros. Assim, acabaram pro-duzindo perseguições, prisões, torturas, sequestros, mortes e desaparecimentos.

3 – Ampliação das operações em países da Europa, onde muitos mi-litantes políticos e sindicais busca-ram refúgio. A ação proposta era unicamente a de executá-los. Tal tipo de ação se estendeu até os Es-tados Unidos da América, sendo o caso emblemático o assassinato de Orlando Letelier15, em Washington, em 21 de setembro de 1976.

IHUOn-Line -Quais sãoos re-flexosdaOperaçãoCondoresua

15 Orlando Letelier del Solar (1932 –1976): diplomata e político chileno, pos-teriormente um ativista político contra a ditadura de Augusto Pinochet. Foi assassi-nado, juntamente com sua assistente, Ronni Muffet, em Washington, D.C. por agentes secretos da DINA (Dirección de Inteligencia Nacional), a polícia política do regime mili-tar chileno. Para o atentado a Orlando Le-telier foi usada uma enorme quantidade de explosivos. O caso teve grande repercussão internacional e induziu o governo dos Esta-dos Unidos a interromper seu apoio explícito à Operação Condor, embora continuasse a apoiar indiretamente o governo de Augusto Pinochet. (Nota da IHU On-Line)

mentalidadenaAméricaLatinae,sobretudo,noBrasil?

JairKrischke-A chamada “Ope-ração Condor”, desde seus pri-mórdios, serviu para consolidar a cumplicidade entre os aparelhos repressivos de nossa região. Práti-ca criminosa que permanece até os dias atuais. Acabando por inculcar nos países da região a certeza da impunidade. No Brasil, marcou o envolvimento do Itamaraty, no apa-relho repressivo brasileiro, através do Centro de Informações do Exte-rior - CIEx16, organismo totalmen-te clandestino no organograma do Ministério de Relações Exteriores.

IHU On-Line - Considerando ocenário político latino-america-no,noqualháinúmerosgovernosdeesquerdaatualmente,acredi-taqueháuma“preocupação”co-mumcomoaquelaqueinspirouenorteouaOperaçãoCondor?

JairKrischke- Observando aten-tamente o cenário político latino--americano, não vejo nenhum go-verno claramente de esquerda. Tanto é verdade que se passou a utilizar o eufemismo de “governo--progressista”... O que não se sabe muito bem do que se trata.

Chamar este período político como sendo de “transição” é um engodo. Na verdade, em maior ou menor grau, trata-se de governos de “transação”, ou seja, o resulta-do dos acordos celebrados com os militares. No caso do Brasil, pode-ríamos, sem medo de errar, dizer: eles apenas desocuparam a praça.

IHUOn-Line-Poroutrolado,emquesentidoosgovernosdeesquer-danaAméricaLatinareproduzemalógicadarepressãotípicadosgo-vernostotalitáriosdedireita?

16 Centro de Informações do Exterior do Itamaraty (CIEX) ou (Ciex): foi um ór-gão de segurança criado clandestinamente dentro do Itamaraty e vinculado ao Serviço Nacional de Informações (SNI) que foi encar-regado de espionar políticos e militantes con-trários ao regime militar que se exilaram nos países vizinhos. Foi instituído apos o Golpe de Estado no Brasil em 1964 bem como países vizinhos. Foi criado pelo embaixador brasilei-ro Manoel Pio Corrêa que servia no Uruguai quando em 1966 idealizou e promoveu a cria-ção do Centro de Informações do Exterior, Ciex. (Nota da IHU On-Line)

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JairKrischke- Os governos ditos “progressistas”, de alguma maneira, mantêm inalterados muitos dos cha-mados “entulhos autoritários”. No caso brasileiro, o mais escandaloso deles é a existência das chamadas “Polícias Militares”. Estas, lamenta-velmente inseridas em nossa “Cons-tituição Cidadã”, num claro exercí-cio de “copia e cola”, tudo originário do decreto-lei da ditadura.

IHUOn-Line-QualéasituaçãodosdocumentosmicrofilmadosnoComando Militar do Sul17? Estãodisponíveis para consulta? A Co-missãoEstadualdaVerdadeteveacessoaeles?

JairKrischke-Na verdade, tra-ta-se dos arquivos do DOPS/RS18, “queimados” publicamente em maio de 1982. Sendo governador José Amaral de Souza19 e Secre-tário de Segurança o cel. Leivas Job20. Uma grande farsa por nós denunciada, provando que os re-feridos documentos haviam sido microfilmados e levados para o Comando Militar do Sul, local onde ainda hoje se encontram. É o que é possível ver na reprodução da Revista Veja de julho de 1985. (ao lado e abaixo/reprodução Acervo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos)

17 Comando Militar do Sul (CMS): é um dos Comandos Militares de Área do Brasil. É o Comando enquadrante da 3ª Região Mili-tar, com sede em Porto Alegre (RS), da 3ª Di-visão de Exército, com sede em Santa Maria (RS), da 5ª Região Militar e da 5ª Divisão de Exército, sediadas em Curitiba (PR). (Nota da IHU On-Line)18 Departamento de Ordem Política e Social - DOPS: criado em 1924, foi o órgão do governo brasileiro utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde com na di-tadura de 64, cujo objetivo era controlar e repri-mir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. (Nota da IHU On-Line)19 José Augusto Amaral de Sousa (1929 - 2012): político brasileiro. Exerceu o mandato de governador do estado do Rio Grande do Sul entre 1979 e 1983 durante o final do regime mi-litar no Brasil. Quando do fim do governo Gua-zzelli, foi indicado governador do Rio Grande do Sul pela ditadura e nomeado pela Assem-bléia Legislativa. (Nota da IHU On-Line)20 João Oswaldo Leivas Job: Coronel do Exército, atuou na Secretaria de Segurança Pública do RS no início da década de 1970. Segundo a Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, cometeu crimes de violação como sequestros, torturas e prisões ilegais. (Nota da IHU On-Line)

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Assim, quando o governador Tar-so Genro criou, por decreto, a Co-missão Estadual da Verdade, um jovem jornalista da Rádio Guaíba me entrevistou, buscando saber minha opinião a respeito. Na oca-sião, disse ao jornalista que aplau-dia a iniciativa e, certamente, se-ria a grande oportunidade para a referida comissão ir até o Comando Militar do Sul, resgatando os ar-quivos do DOPS/RS, que lá se en-contram indevidamente. Especial-mente por tratar-se de um acervo histórico da maior relevância, visto a existência dos registros referen-tes ao Estado Novo21, bem como o monitoramento dos nazistas no Rio Grande do Sul, durante a Segunda Grande Guerra.

Com a informação, o jovem jor-nalista foi até o referido Comando. Lá, um coronel confirmou a exis-tência do mesmo. No dia seguin-te, liguei para o jornalista para cumprimentá-lo, ocasião em que o mesmo me pediu sugestões, bus-cando aprofundar a matéria. Sugeri que procurasse o senhor governa-dor, buscando saber quais as provi-dências que seriam tomadas. Para nosso desconcerto, o governador atribui à Comissão Nacional da Ver-dade a tarefa de resgatar o falado arquivo. Entendia ser matéria de cunho federal, o que não seria de sua competência.

Em meu depoimento à Comissão Nacional da Verdade, iniciei falan-do sobre arquivos, especialmente os do nosso DOPS, que de forma in-devida se encontram no Comando Militar do Sul, aproveitando a oca-sião para pleitear o seu resgate. Como é sabido, nada aconteceu.

IHUOn-Line-Porquedemoroutanto para o Brasil fazer o seu“acertodecontas”comopassa-doditatorialcivilemilitar?

Jair Krischke - No meu pobre e limitado entendimento, o Bra-

21 Estado Novo: Período autoritário da hi-stória do Brasil, que durou de 1937 a 1945. Foi instaurado por um golpe de Estado que garantiu a continuidade de Getúlio Vargas à frente do governo central, tendo a apoiá-lo importantes lideranças políticas e militares. (Nota da IHU On-Line)

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sil ainda não fez o seu “acerto de contas” com o passado ditatorial civil e militar. A Comissão Nacio-nal da Verdade foi absolutamente frustrante em seu relatório final. Para ser justo, o melhor de seu trabalho foram as 29 recomenda-ções. Dignas de serem aplaudidas de pé.

IHUOn-Line-Gostariadeacres-centaralgo?

Jair Krischke - Em matéria de Justiça Transicional, o Brasil vive uma enorme contradição: no meio acadêmico, temos uma excelente produção intelectual sobre o tema e um pequeno mas extraordinário grupo de jovens Procuradores Fe-derais que, com muita dedicação

e qualidade, buscam fazer valer a justiça. Mas, contrariamente, na esfera do judiciário federal, nos deparamos com uma barreira quase que insuperável. Diferentemente, na Argentina, Uruguai e Chile, ve-mos um número bastante significa-tivo de militares e policiais já cum-prindo largas sentenças, algumas de prisão perpétua. Que inveja. ■

LEIAMAIS... — “A Polícia Militar é uma invenção da ditadura”. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas NotíciasdoDia de 16-06-2014, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1UHyLno;

— Operação Condor: novas revelações. Entrevista com Jair Krischke. publicada nas NotíciasdoDia de 24-03-2013, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1IYHQ4z;

— “A Lei de Anistia é uma autoanistia”. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas NotíciasdoDia de 25-05-2012, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1ixteny;

— “Os crimes de sangue não foram anistiados”. Entrevista com Jair Krischke, publicada na revista IHUOn-Line, nº 388, de 09-04-2012, disponível em http://bit.ly/1LXJoAo

— PNDH-3. Verdade, justiça e reparação. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas NotíciasdoDia de 09-01-2010, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1idZah1;

— Os 30 anos da anistia no Brasil. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas NotíciasdoDiade 31-08-2009, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1hY6zjG.

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#Justiça,VerdadeeMemória

A restauração a partir da memóriaPara José Carlos Moreira da Silva Filho, é preciso ter a memória viva. Somente tendo de forma clara a experiência do passado é possível entender o presente e corrigir erros

Por Márcia Junges e João Vitor Santos

“Não há tema mais atual do que a memória”. A frase já foi dita muitas vezes pelo

professor José Carlos Moreira da Silva Fi-lho, mas é sempre vibrante em seus signi-ficados. O que diz é que só resgatando a memória se consegue fazer justiça. É pela memória, e pela experiência do passado, que no presente é possível se constituir um futuro. É olhar para o passado e entender cada mecanismo que faz girar a engrana-gem da História, restaurando-a. “A memó-ria significa novidade, não só por abrir ex-pedientes que a história hegemônica quer dar por encerrados, mas também porque, ao colocar seu foco no reconhecimento da violência e da injustiça do passado, enten-dem a violência e a injustiça do presente. Assim, possibilitam um novo começo, uma reorientação da sociedade e do Estado para a não repetição. E, consequentemente, para uma sociedade menos violenta e mais justa”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHUOn-Line, o professor reflete sobre o papel da justiça de transição e seu poder de restauração. Para ele, esse tipo de justiça é fundamental na compreensão – por que não dizer correção – da conjuntu-ra política e social que vivemos. Só com a clareza restaurativa da memória do período de repressão se consegue compreender – e combater – questões que emergem no co-tidiano. “Menciono três motivos que hoje se destacam: as manifestações sociais que

clamam por golpe de Estado e intervenção militar; a propositura e aprovação de legis-lações autoritárias; e a violência policial e judicial”, destaca ao reportar questões contemporâneas com raízes nesse passado. Trazer à luz as histórias marginais do passa-do, reparar as vítimas e punir os agentes de repressão são os desafios ao processo res-taurativo da história brasileira. “Por mais que esse processo interno de confrontação do passado violento seja limitado e até mesmo impedido em várias direções, ele indica uma via clara de fortalecimento de-mocrático”, pontua.

JoséCarlosMoreiradaSilvaFilhoé dou-tor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Também é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atua como professor na Faculdade de Direito da Pon-tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Douto-rado - e Graduação em Direito). Ainda é conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, coorde-nador do Grupo de Estudos CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição e membro-fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Jus-tiça de Transição – IDEJUST.

Confiraaentrevista.

IHUOn-Line-Qualéapeculia-ridadedajustiçadetransiçãonoBrasilenaAméricaLatina?

JoséCarlosMoreiradaSilvaFi-lho - A peculiaridade da Justiça de Transição - JT na América Latina se dá basicamente em três sentidos.

Em primeiro lugar, o período em que passou a ocorrer.

Caso compreendamos o início do que viria a ser chamado de Justi-ça de Transição no mundo como sendo o Segundo Pós-Guerra, com os processos de responsabiliza-

ção internacional pela prática de crimes contra a humanidade – em especial o Tribunal de Nuremberg1,

1 Tribunal de Nuremberg: tribunal que julgou os processos contra os 24 principais criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial, dirigentes do nazismo, ante o Tri-bunal Militar Inernacional, em 20 de novem-

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e as ações de memorialização e reparação –, veremos que o desen-volvimento e a aplicação de me-canismos jurídicos e institucionais voltados a confrontar um passado de violência generalizada gerado por regimes políticos repressores e autoritários só tiveram lugar no continente latino-americano. É o ocaso das ditaduras civis-militares de segurança nacional geradas no bojo da guerra fria. Localizamos, portanto, o acionamento de meca-nismos de JT no continente a partir dos anos 1980.

A segunda peculiaridade é que tais processos não priorizaram a esfera da responsabilização inter-nacional. Foram processos que en-volveram a construção de mecanis-mos desde o horizonte dos próprios Estados outrora instrumentalizados plenamente por ditaduras civis--militares. Nesse ponto, a América Latina inovou não só por priorizar as suas próprias instituições para cumprir com o dever de memória diante das suas próprias ditaduras, mas também pela criação de meca-nismos inéditos, dos quais se desta-cam as Comissões da Verdade. Os processos latino-americanos des-pertam um forte interesse dos es-tudiosos de outros países. Porque, entre outras razões, buscam refor-çar nas suas próprias instituições públicas um significado forte para a noção de Estado Democrático de Direito ao envolvê-las na investi-gação, reparação e responsabili-zação de atos praticados através dessas mesmas instituições. Com isso, acabam promovendo inclusive ações de reforma institucional.

bro de 1945, na cidade alemã de Nuremberg. (Nota da IHU On-Line)

Por mais que esse processo in-terno de confrontação do passado violento seja limitado e até mesmo impedido em várias direções, ele indica uma via clara de fortaleci-mento democrático. Exatamente por conta desse acionamento in-terno das instituições e dos limites com os quais se depara, surgiram mecanismos inovadores como as Comissões da Verdade. Na impos-sibilidade de se deflagrar de ime-diato ou mesmo em um período afastado no tempo, como foi o caso da Comissão brasileira, um proces-so de responsabilização judicial dos agentes da ditadura, criou-se a opção de uma Comissão de Es-tado com a tarefa investigativa e sistematizadora em relação às gra-ves violações de direitos humanos praticadas. Mas sem poderes para determinar as responsabilizações pelas autorias.

Comissão argentina

A primeira Comissão da Verdade foi a CONADEP2, na Argentina. Inte-ressante notar que ela não impediu com o seu surgimento os processos de responsabilização. Os processos tiveram início com o governo de Raúl Alfonsín3, mas que estavam

2 Comissão Nacional sobre o Desapa-recimento de Pessoas (CONADEP): foi a comissão de notáveis criada pelo presiden-te da Argentina Raúl Alfonsín em 15 de de-zembro de 1983. O objetivo foi pesquisar as graves, reiteradas e planejadas violações aos direitos humanos durante a chamada guerra suja entre 1976 e 1983, levadas a cabo pela ditadura militar conhecida como “Processo de Reorganização Nacional”. (Nota da IHU On-Line)3 Raúl Ricardo Alfonsín (1927-2009): advogado e político argentino, presidente de seu país de 1983 a 1989. Foi uma das figuras mais importantes da história de seu parti-

limitados à responsabilização das juntas militares, seguindo o plano de transição traçado por Alfonsín4. Tal limitação, como se sabe, viria a aumentar com as leis da obedi-ência devida e do ponto final. E, por fim, com os indultos concedi-dos por Carlos Menem5 até mesmo aos militares que compuseram as juntas governativas que comanda-ram o extermínio de cerca de 30 mil pessoas, boa parte dessas de-saparecidas, durante a ditadura argentina.

Quando da retomada dos proces-sos de responsabilização judicial ocorrida a partir de 2003, com a chegada dos Kirchner6 ao poder, e uma retomada que se deu de modo amplo, acabou atingindo não so-mente os membros das juntas mi-litares. O trabalho produzido pela CONADEP foi utilizado como pro-va nos julgamentos, comprovan-do que Comissões da Verdade não são propriamente uma alternativa às responsabilizações judiciais e a elas podem se somar.

O caso brasileiro

Assim, a outra face da inovação latino-americana de priorizar os mecanismos internos é que ela se deu muito em função da própria característica das transições po-líticas ocorridas no continente no período assinalado. Foram transi-

do, a União Cívica Radical. (Nota da IHU On-Line)4 Sobre isto, ver o emocionante relato de Car-los Nino, participante ativo dessa história e parte da equipe montada por Alfonsín para pensar a transição na Argentina. NINO, Car-los Santiago. Juicio al mal absoluto. Bue-nos Aires: Ariel, 2006. (Nota do entrevistado)5 Carlos Saúl Menem (1930): político ar-gentino. Governou o país entre 1989 e 1999, pelo Partido Justicialista (peronista). É atual-mente senador pela província de La Rioja. Foi muito criticado por um governo de corrupção, pelo seu perdão a ex-ditadores e outros crimi-nosos condenados da guerra suja, o fracasso das suas políticas econômicas que levaram à taxa de desemprego de mais de 20% e a uma das piores recessões que a Argentina já teve, além do pouco empenho demonstrado nas in-vestigações do ataque terrorista a comunida-de judaica em 1994, que resultou na morte de 85 pessoas. (Nota da IHU On-Line)6 Néstor Kirchner (1950-2010): foi o pri-meiro da família ao chegar ao poder. Advoga-do, foi o 54º presidente da Argentina. Casado com Cristina Kirchner, foi sucedido por ela na Casa Rosada. (Nota da IHU On-Line)

Por mais que esse processo in-terno de confrontação do pas-

sado violento seja limitado, indica uma via clara de for-

talecimento democrático

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ções ocorridas em maior ou menor grau de modo controlado, com a presença ainda influente dos gru-pos de sustentação e apoio das res-pectivas ditaduras. Isto, ao mes-mo tempo, inibia um processo de responsabilização internacional, já que o próprio país estava cons-truindo mecanismos para lidar com seu passado autoritário, e limitava esses mesmos processos internos.

O caso brasileiro é emblemáti-co nesse sentido. O Brasil inicia a sua transição e já conta com um mecanismo de justiça transicional ainda dentro da própria ditadura. Foi a Lei de Anistia de 19797. Aqui, como argumento com maiores de-talhes no meu livro8, a anistia foi ambígua. De um lado, representou uma política de esquecimento e de impunidade em relação às graves violações de direitos humanos pra-ticadas pelos agentes ditatoriais. E, nesse sentido, não pode ser considerada um mecanismo transi-cional, antes é algo que impede o acionamento de tais mecanismos. Assim, a anistia foi tão somente uma condição exigida pela ditadu-ra para permitir a redemocratiza-ção do país.

Por outro lado, a anistia também foi uma bandeira insurgente que mobilizou fortemente a socieda-de civil e pautou a necessidade do fim da ditadura e do fim da crimi-nalização da oposição política ao

7 Lei da Anistia: Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, promulgada pelo então pre-sidente, general João Figueiredo, após ampla mobilização social, ainda durante o regime militar. Na primeira metade dos anos 1970, surgiu o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Therezinha Zerbini Em 1978 foi criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia, congregando várias entidades da sociedade civil, com sede na Associação Brasileira de Imprensa. A luta pela anistia aos presos e perseguidos políticos foi prota-gonizada por estudantes, jornalistas e políti-cos de oposição. No Brasil e no exterior foram formados comitês que reuniam filhos, mães, esposas e amigos de presos políticos para de-fender uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os brasileiros exilados no período da repressão política. (Nota da IHU On-Line)8 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição - da ditadura ci-vil-militar ao debate justransicional - direi-to à memória e à verdade e os caminhos da reparação e da anistia no Brasil. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 2015. (Nota do entrevistado)

regime. Com isso, acabou pautan-do também a necessidade de uma reparação aos que foram atingidos pela perseguição política. É bem verdade que essa reparação foi limitada em 1979 e permitiu algu-mas poucas reintegrações, refor-mas de militares e aposentadorias excepcionais. Ainda assim, trazia o sentido de reconstituir o status quo anterior à violação pratica-da. É por isso que pode ser com-preendida como um mecanismo transicional.

A terceira peculiaridade

Por fim, o terceiro sentido da peculiaridade latino-americana em termos de Justiça de Transição vem da herança colonial comum. Nosso continente foi palco de ge-nocídios e crimes contra a huma-nidade antes mesmo dessas figuras terem sido tipificadas pelo Direito Internacional, praticados contra os povos originários e os africanos e seus descendentes. Tais genocídios e violências foram constitutivos da própria modernidade, como regis-

trou Enrique Dussel9. A colônia foi a periferia que permitiu a emer-gência da metrópole europeia e o seu protagonismo na formatação do molde político para o mundo. O próprio discurso dos direitos hu-manos é antecedido pela prática genocida nas colônias e dela se nutre10.

No entanto, para que a moder-nidade se desse conta do ingre-diente genocida presente nas suas próprias estruturas, foi preciso que o genocídio ocorresse na metrópo-le. Foi como resultado decantado da própria técnica moderna com todas as suas máquinas de guerra e estratégias sofisticadas de geren-ciamento da morte, do extermínio, do desaparecimento e até do apa-gamento dos rastros, como conse-quência direta das estratégias de controle total sobre pessoas que foram expulsas das comunidades nacionais, ostentando apenas a sua humanidade, mas sem qualifica-ções jurídicas por não terem seus nascimentos atrelados a qualquer nacionalidade. Antes que tais es-tratégias tivessem lugar no solo eu-ropeu, elas foram desenvolvidas na colônia, como um tubo de ensaio, transformando todo o território co-lonial no que Zaffaroni11 chamou de “instituições de sequestro”12. A

9 DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro (a origem do mito da modernidade). Trad. Jaime. A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. (Nota do entrevistado)10 Ver sobretudo o belo estudo de Alejandro Rosillo Martinéz: ROSILLO MARTÍNEZ, Alejandro. Los inicios de la tradición iberoamericana de derechos huma-nos. Aguascalientes-San Luis Potosí: CE-NEJUS-UASLP, 2011. (Nota do entrevistado)11 Eugênio Raul Zaffaroni: ministro da Suprema Corte Argentina. Ainda, é professor titular e diretor do Departamento de Direi-to Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, doutor honoris causa da Uni-versidade do Estado do Rio de Janeiro e vice--presidente da Associação Internacional de Direito Penal. (Nota da IHU On-Line)12 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimi-dade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. A excelente dissertação de Roberta Cunha de Oliveira, intitulada “Do Corpo Colonizado à Linguagem do Avesso na América Latina - papéis dos testemunhos cartográficos para uma Justiça de Transição”, defendida em 2012 no Programa de Pós-Gra-duação em Ciências Criminais da PUCRS sob minha orientação, explora de modo talento-

Anistia foi am-bígua. De um

lado, represen-tou uma política de esquecimento e de impunida-de. Por outro,

também foi uma bandeira insur-gente que mo-bilizou a socie-

dade e pautou a necessidade do fim da ditadura

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colônia já anuncia o padrão políti-co do campo, transformado em pa-drão central da política moderna, como afirma Agamben13.

Eco da herança colonial

Assim, ao olharmos para as dita-duras de segurança nacional e para os regimes autoritários e repressi-vos ocorridos ao longo da existência independente dos Estados latino--americanos, não podemos deixar de notar neles o eco da herança colonial. Herança erigida sobre o genocídio indígena e a escravidão dos negros. Pensando no Brasil, po-demos notar, utilizando a técnica da constelação de Benjamin14, que a tortura no pau-de-arara aplicada ao considerado subversivo ou co-munista – que reivindica políticas voltadas prioritariamente às clas-ses populares e pauperizadas da sociedade – é o pelourinho no qual os escravos rebeldes ou desobe-dientes eram supliciados. É lá que os feitores e capatazes encarre-gados desses castigos se projetam nos agentes policiais e militares que torturaram e exterminaram os subversivos nas ditaduras. E, hoje, o fazem em relação à população negra, pobre e periférica.

Nessa chave, podemos entender as ações afirmativas de cotas para negros e indígenas nas universida-des. É uma entre outras medidas semelhantes, como mecanismos transicionais em relação à nossa herança colonial, que, todavia, se-

so esse filão aberto por Zaffaroni. (Nota do entrevistado)13 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizon-te: UFMG, 2004.p.182-186. Desenvolvendo a afirmação de Agamben sobre esse ponto específico ver: MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política. Tradução de Antonio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005. p.81-96. (Nota da IHU On-Line)14 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi refugiado judeu e, diante da pers-pectiva de ser capturado pelos nazistas, pre-feriu o suicídio. Um dos principais pensado-res da Escola de Frankfurt. Sobre Benjamin, confira a entrevista Walter Benjamin e o império do instante, concedida pelo filó-sofo espanhol José Antonio Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line)

gue ainda pendente de reconheci-mento, reparação e justiça.

IHUOn-Line - Qual é a impor-tânciadessetipodejustiça,dadaaconjunturapolíticaesocialquevivenciamos?

JoséCarlosMoreiradaSilvaFi-lho-A resposta pode ir por vários caminhos. Atendo-me apenas ao contexto brasileiro, menciono três motivos que hoje se destacam: as manifestações sociais que clamam por golpe de Estado e intervenção militar; a propositura e aprovação de legislações autoritárias; e a vio-lência policial e judicial.

Manifestações pró-golpe

Para essa juventude que hoje vai às ruas pedir uma nova dita-dura militar, que idolatra notórios torturadores da ditadura, como o Carlinhos Metralha15 em São Paulo,

15 Carlos Alberto Augusto (1944): dele-gado de polícia em Itatiba, São Paulo, ficou conhecido nos anos 1970 como Carlinhos Metralha pela sua atuação no regime militar. Em entrevistas, assumiu ter participado do chamado massacre da Chácara São Bento, na cidade de Paulista, na região metropolitana de Recife, Pernambuco, em 1973, quando seis militantes da Vanguarda Popular Revolucio-nária (VPR) foram mortos. É réu em ação do Ministério Público Federal (MPF) pelo se-questro qualificado de Edgar de Aquino Du-arte, preso em 1971 e desaparecido em 1973. (Nota da IHU On-Line)

que se ajoelha diante dos quartéis, que sai às ruas com cartazes escri-tos em inglês pedindo ajuda ao Tio Sam, a palavra ditadura é um sig-nificante sem qualquer densidade histórica. Eles não têm a mínima ideia do que falam, e quem tem age de má-fé. Em documentários que foram produzidos por ocasião das manifestações pelo impeach-ment da presidenta Dilma Rousse-ff, fica visível o tamanho da igno-rância através de entrevistas com manifestantes.

Esse é um grande sintoma de que no Brasil não se conseguiu até o presente realizar plenamen-te uma justiça de transição. Uma justiça forte o suficiente para criar um amplo consenso social em tor-no do repúdio ao Estado de exce-ção e às suas práticas criminosas. As histórias de medo, violência e brutalidade não conseguiram se tornar conhecidas de modo amplo na sociedade brasileira. Os efeitos da transição controlada provoca-ram um longo hiato na realização do necessário dever de memó-ria, relegaram a segundo plano os acertos pendentes com o passado autoritário.

E isto não é de espantar, já que os políticos, militares, juízes, pro-motores, empresários, membros da sociedade civil e das institucionali-dades que executaram e apoiaram a ditadura não foram afastados em nenhum milímetro das suas posi-ções de poder e influência. Sequer saíram das suas posições na própria estrutura do Estado. Ou seja, os militares que comandaram o gol-pe e ordenaram torturas, mortes, violações maciças de direitos, que sequestraram as liberdades demo-cráticas, continuaram a ser milita-res. Foram reformados, foram con-decorados, foram enterrados com honras militares, ou continuaram na Força, suas famílias continuam recebendo os benefícios oriundos da carreira.

Os policiais que executaram dire-tamente as torturas foram conde-corados, continuaram a trabalhar nas forças de segurança, morre-ram tranquilos ou se aposenta-ram. Os juízes que fizeram vistas

Para essa juven-tude que hoje

vai às ruas pe-dir uma nova ditadura mili-tar, a palavra ditadura é um

significante sem qualquer densi-dade histórica

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grossas para a tortura que judicia-lizaram a repressão e que faziam apologia da ditadura continuaram tranquilamente as suas carreiras, se aposentaram, ou continuaram trabalhando. Os empresários que edificaram verdadeiros impérios a partir do ostensivo favorecimento da ditadura, que colaboravam de perto com a repressão – ora finan-ciando, ora emprestando seus veí-culos, ora reproduzindo as simula-ções que encobriam assassinatos, ora delatando seus empregados e favorecendo a prática da tortura no espaço das próprias empresas – continuaram enriquecendo sem que qualquer responsabilidade lhes fosse cobrada.

Propositura e aprovação de legislação autoritária

Por fim, os políticos que endos-saram a aparência de normalidade institucional em meio a uma di-tadura de 21 anos – que a apoia-ram, que delataram pessoas que imaginavam ser subversivas, que contribuíram na produção de uma legislação autoritária, que deram sustentação política à ditadura – continuaram sendo políticos. E, ainda, assumiram destaque quando tomam, repentinamente, a pose e o discurso de democratas e de-fensores dos direitos humanos e das liberdades. Ora, percebendo isto não fica difícil compreender o porquê da imposição do hiato, do silêncio, da resistência à rememo-ração. Sintomático da existência dessa força de contenção da me-mória foi a reação, estimulada pe-los tradicionais meios de comuni-cação e pelos mesmos setores que apoiaram o golpe e a sua continui-dade, à proposta e ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade16.

16 Comissão Nacional da Verdade (CNV): é o nome da comissão que investigou as graves violações de direitos humanos co-metidas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, por agentes públicos, pes-soas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado brasileiro, ocorridas no Brasil e também no exterior. A comissão foi instalada oficialmente em 16 de maio de 2012. A CNV concentrou seus esforços no exame e escla-recimento das graves violações de direitos humanos praticados durante a ditadura mi-

Estratégias golpistas de desesta-bilização, isolamento e enfraque-cimento do governo eleito demo-craticamente se repetem. Acabam reproduzindo um casuísmo autori-tário que não respeita o princípio democrático e que se insurge con-trariamente a políticas populares

de diminuição da desigualdade so-cial, embora evite assumir isto ex-plicitamente. É a história das elites brasileiras e da brutal desigualda-de em relação às camadas popula-res. Uma boa parcela da sociedade brasileira, ainda que letrada, sim-plesmente não conhece a histórica sequência de golpes e tentativas de golpe que caracterizam a his-tória política brasileira. Tampouco viram de perto a brutalidade apli-cada aos considerados desviantes ou próximos a eles.

litar (1964-1985). A Comissão ouviu vítimas e testemunhas, bem como convocou agentes da repressão para prestar depoimentos. Pro-moveu mais de 100 eventos na forma de audi-ências públicas e sessões de apresentação dos relatórios preliminares de pesquisa. Realizou diligências em unidades militares, acompa-nhada de ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. Constituiu um nú-cleo pericial para elucidar as circunstâncias das graves violações de direitos humanos, o qual elaborou laudos periciais, relatórios de diligências técnicas e produziu croquis rela-tivos a unidades militares. Colaborou com as instâncias do poder público para a apuração de violação de direitos humanos, além de ter enviado aos órgãos públicos competentes da-dos que pudessem auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos. Também identificou os locais, estruturas, instituições e circunstâncias relacionadas à prática de vio-lações de direitos humanos, além de ter iden-tificado ramificações na sociedade e nos apa-relhos estatais. Em 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou seu relatório final à Presidente Dilma Rousseff. (Nota da IHU On-Line)

Violência policial e judicial

Foi recentemente divulgado o re-latório da Anistia Internacional de 2015. Segundo ele, a polícia brasi-leira é a que mais mata no mundo e conta com elevado índice na prá-tica da tortura. Isto que os dados disponíveis são parciais e escon-dem uma cifra oculta ainda maior. Há, evidentemente, uma forte liga-ção entre as práticas de violência policial e militar descontroladas, discricionárias e patrocinadas pela ditadura e a sua continuidade até o presente. Inclusive com o empre-go dos mesmos métodos ainda que sustentados agora pelo discurso da “guerra ao crime” e não mais pelo da segurança nacional.

Há um parentesco macabro entre a ausência de investigações e res-ponsabilizações, administrativa ou penal, em relação aos crimes im-prescritíveis da ditadura (como as-sim definem os próprios órgãos de jurisdição internacional aos quais o Brasil está submetido) e à prática de crimes por parte das forças de segurança hoje. O Brasil é hoje o maior do mundo em número de vio-lações, mas e em número de inves-tigações e responsabilizações? Dei-xo a resposta para o leitor atento. A justiça militar é uma anomalia ainda presente, assim como a mi-litarização da segurança pública. É como se o inimigo do país continu-asse a ser interno.

De outro lado, vivenciamos um retorno a legislações autoritárias que ampliam ainda mais os poderes discricionários daqueles policiais e agentes de segurança que são responsáveis pela conquista desse campeonato da violência. Qual o sentido, nesse contexto de com-pleta ausência de responsabiliza-ção e reforma institucional, em se envolver continuamente as Forças Armadas na segurança pública? Na Argentina, as Forças Armadas são proibidas de se envolverem na se-gurança, que lida com o cidadão. A tarefa delas é em relação às Forças Armadas oriundas de Estados que são ou venham a ser inimigos, seu

No Brasil, não se conseguiu até o presente rea-lizar plenamen-te uma justiça de transição

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foco é a guerra, não a segurança pública.

Já no Brasil, as Forças Armadas são novamente designadas para participar no monitoramento de movimentos sociais, considerados possíveis inimigos. O poder discri-cionário e o “rigor” das polícias aumentam com a criação legisla-tiva de verdadeiros monstrengos autoritários, como o projeto que busca tipificar no Brasil o crime de terrorismo. Isso, sabendo-se que o seu alvo e as suas consequ-ências atingirão em cheio o direito de mobilização e reivindicação dos movimentos sociais organizados. Aumentando ainda mais a violência do Estado, transparente no caos, precariedade e inchamento do sis-tema penitenciário, são apresenta-das e aprovadas propostas legisla-tivas de diminuição da maioridade penal ou de violação do princípio da presunção da inocência ao que-rer trancafiar pessoas que não fo-ram ainda condenadas.

Boa parte dos juízes brasileiros, hoje, é de orientação punitivista, fazendo uso seletivo, generaliza-do e arbitrário da prisão provisó-ria. Essa modalidade de prisão é responsável por cerca de 40% das detenções feitas no país. São dire-cionadas maciçamente aos jovens negros e pobres que habitam as pe-riferias do país.

A importância da memória

Poderia ainda elencar outros tan-tos entulhos autoritários que pre-cisam ser enfrentados no país. Por exemplo, a estrutura política, as comunicações, o sistema tributá-rio, a política migratória, mas o es-paço é limitado. Meu ponto é sim-plesmente mostrar que a memória significa novidade, não só por abrir expedientes que a história hege-mônica quer dar por encerrados, mas também porque, ao colocar seu foco no reconhecimento da violência e da injustiça do passado, entendem a violência e a injustiça do presente. Assim, possibilitam um novo começo, uma reorienta-ção da sociedade e do Estado para

a não repetição. E, consequente-mente, para uma sociedade menos violenta e mais justa. Não há tema mais atual do que a memória.

IHUOn-Line-Emqueaspectoso dever da memória e o direitoà resistência andam lado a ladocomajustiçadetransição?

JoséCarlosMoreiradaSilvaFi-lho -Quando um país supera um regime de opressão e violência – de cancelamento das liberdades, e conquista as condições mínimas para ser considerado democráti-co, como eleições periódicas, fim da censura, e uma Constituição lastreada em garantias e direitos fundamentais –, ele se vê diante de um grande desafio. Para sedimen-tar as novas bases democráticas e aprofundar a sua qualidade, a so-

ciedade e suas instituições públicas precisam reconhecer as perversões e instrumentalizações das quais foram alvo no período autoritário. Para isto, o dever de memória alia-do ao dever de investigar e revelar os documentos públicos e os arqui-vos secretos é fundamental.

Tal dever traz consigo a imperio-sidade de fazer prevalecer, na nar-rativa pública, nas obras culturais e nos processos de formação das novas gerações, a hermenêutica do repúdio à ditadura. Para isto, é preciso que o golpe de Estado, a usurpação do poder, ou a imposição de um regime violador de direitos e garantias fundamentais sejam reconhecidos na sua natureza re-pulsiva e condenável, com todas as letras, sem eufemismos.

Exercício do direito de resistência

Quando uma sociedade conse-gue fazer isto, não há pruridos ou constrangimento algum em di-zer que os grupos e pessoas que se opuseram ao regime ilegítimo e repressor não foram crimino-sos políticos, já que na definição democrática e legítima de crime político, este só pode ser prati-cado contra um Estado legítimo e democrático. Diante da usurpação do poder público e da imposição de um regime de força, a oposição a ele só pode ter um nome: o exer-cício do direito de resistência. Os grupos que se engajaram na luta armada, a depender do caso con-creto e das circunstâncias de cada ação de resistência e de cada país, poderão, sem dúvida, exceder os seus direitos de defesa. No entan-to, jamais se pode perder de vista que a maior responsabilidade pela violência presente na resistência ao arbítrio é de quem criou tal si-tuação e impôs de modo brutal e ilegítimo a situação de exceção, a precariedade inarredável de qual-quer resistência.

Também não se pode perder de vista que a palavra terrorismo se adéqua melhor e com maior pro-priedade aos agentes públicos do Estado autoritário. Não dá para comparar o poder de fogo e con-trole do Estado – com toda a sua parafernália de armas, recursos, prédios, veículos, burocracias, le-gislações, funcionários e agentes treinados – com o poder de fogo de grupos de militantes políticos que decidiram resistir pela via armada. O medo e o terror são as consequ-ências diretas para toda a socie-dade diante da ação de um Estado com uma política sistematizada e capilarizada de perseguição, mor-te, tortura e desaparecimento de opositores políticos.

Justiça de transição e memória

A justiça de transição anda lado a lado com o dever de memória e com o direito de resistência. Por-

Quando um país supera um regi-

me de opressão e violência, ele se vê diante de um grande desafio

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que o primeiro é a sua própria ra-zão de ser e a sua condição de pos-sibilidade. A memória, entendida como ação política, é fundamento ontológico da justiça de transição, é o que lhe dá sentido e existên-cia. É o exercício desse dever, que não se faz de uma vez por todas ou somente no momento da tran-sição política propriamente dita. É o sentido e a tarefa constante da nova ordem democrática.

Esse sentido que permitirá à so-ciedade reconhecer os perseguidos políticos, seja os que pegaram em armas ou não, como resistentes e com eles se identificar na oposição à ditadura, promovendo a conti-nuidade dessa resistência na cons-trução de um país que não mais repita, que não mais reproduza as condições para que novamen-te ocorra. Ou, ainda, que consiga se desvencilhar dos seus entulhos autoritários, ao menos em um grau que os isole e os reduza a meros espasmos.

IHU On-Line - De quemaneiraodireitoàmemóriaseconfiguracomoumdireitoàdefesadavida?

JoséCarlosMoreiradaSilvaFi-lho–Somente considerando a me-mória como categoria de conheci-mento fundamental da história e da política, o direito à vida pode ser levado a sério, em seu sentido mais radical. Em primeiro lugar, mesmo as vidas que foram ceifadas pelo desenrolar da história em sua car-reira rumo ao progresso continuam a reivindicar o reconhecimento da violência sofrida e da interrupção ou impedimento dos seus projetos. Ainda quando esquecidas, ainda quando fossilizadas pela passagem do tempo, elas continuam reivindi-cando justiça, continuam a tatear as gerações que se sucedem para serem ouvidas e acolhidas.

De outro lado, a capacidade que as gerações do presente desenvol-vem em conseguir desviar o olhar obcecado pela vertigem moderna do futuro inexistente, do mantra dos filhos e netos ainda não nasci-dos ou do progresso ainda não con-sumado, e direcioná-lo para trás, aguçando sua escuta para colher o murmúrio agonizante dos pais e avós que tombaram, tal capacida-de é a condição mais importante para que nenhuma vida do presen-

te seja eliminada ou interrompi-da. Quando perdermos a memória da dor, ela se dissipa, se esvai, se transforma em custo aceitável e passa a habitar a realidade como a sua negação, como um fantasma. Como vaticinou Benjamin, precisa-mos de uma história que dê conta de recolher as ruínas, que nos for-neça um quadro da realidade que inclua em sua moldura as vidas e projetos esmagados, que lhes dê voz e tessitura.

Para uma história assim nenhu-ma vida pode ser tida como custo aceitável, pois o seu sacrifício é um borrão que contamina a pintura toda, e passa a se tornar justamen-te o seu fundamento central, à es-pera da redenção. Fazer justiça às vidas esmagadas pela história dos vencedores, não pode significar também um projeto de progres-so intangível, uma utopia, seria o mesmo que negá-las. O momento de acolhê-las em seu direito e com isso sedimentar o direito dos vivos é aqui e agora, é a ação política do presente. A responsabilidade dessa ação não é das gerações futuras ou da providência divina, ela é nossa, absoluta. ■

LEIAMAIS... — Comissão da Verdade não buscava investigar, mas sistematizar. Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho, publicada nas NotíciasdoDia, de 30-01-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1ES465c.

— O poder menos transparente da República. Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho, publicada na revista IHUOn-Line, nº 383, de 05-12-2011, disponível em http://bit.ly/1Q6eWVj

— Políticas de memória: um dever social. Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Fi-lho, publicada na revista IHUOn-Line, nº 343, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/1K1HQES

— Um direito mais amplo e interdisciplinar. Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Fi-lho, publicada na revista IHUOn-Line, nº 305, de 24-08-2009, disponível em http://bit.ly/1XSPx7v

— Lembranças vivas, feridas abertas: a punição aos torturadores da ditadura no Brasil. Entre-vista com José Carlos Moreira da Silva Filho, publicada nas NotíciasdoDia, de 22-08-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1J2sA6D

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#Justiça,VerdadeeMemória

A História gaúcha revista pela Comissão Estadual da VerdadeCarlos Frederico Guazzelli avalia o trabalho do grupo que reuniu documentos e materiais, trazendo à luz os crimes de violação de Direitos Humanos durante a ditadura no Rio Grande do Sul

Por João Vitor Santos e Márcia Junges

Durante os anos de regime mili-tar, houve “um poderoso siste-ma repressivo, quase autônomo,

voltado precipuamente à vigilância e puni-ção das pessoas e entidades consideradas perigosas pelo regime ditatorial”. É assim que Carlos Frederico Guazzelli, coordena-dor da Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, define os chamados anos de chumbo. Para ele, a missão do grupo no Es-tado foi cumprida. O objetivo foi “revelar, pela memória das vítimas e testemunhas, e até mesmo dos autores, a verdade sobre as graves violações a direitos humanos prati-cadas durante a ditadura. Isso tudo a fim de possibilitar a realização futura de justiça acerca destes crimes”, destaca.

Sobre as críticas em torno da atuação e resultado do trabalho das comissões, Gua-zzelli esclarece: “as comissões de verdade não necessariamente descobrem fatos no-vos – embora ao longo de seu trabalho efe-tivamente venham a fazê-lo. Mais que isso, sua atuação consiste em reunir e organizar o conhecimento sobre fatos que, de outra maneira, mesmo parcialmente conheci-dos, permaneceriam dispersos nos acervos públicos e privados, nas bibliotecas e aca-demias e, sobretudo, diluídos na memória dos sobreviventes”. Assim, entende que a maior contribuição foi “dar forma pública e oficial acerca das violências cometidas pe-

los agentes do sistema repressivo político montado pela ditadura militar no estado do Rio Grande do Sul”.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHUOn-Line, Guazzelli ainda destaca o traba-lho da Comissão de Anistia. “Tem-se feito justiça no terreno das reparações – civis e administrativas, patrimoniais e morais – a milhares de cidadãos e cidadãs brasileiras que a ela acorreram”. Também reconhece que todo esse processo é apenas uma etapa na caminhada pela busca da verdade e res-tauração de um passado perverso e nebulo-so. Um próximo passo que se impõe é a res-ponsabilização dos agentes de repressão. Capítulo ainda não escrito nessa história revista. “Do ponto de vista criminal, apesar da iniciativa recente de vários procurado-res federais, ainda não foi possível respon-sabilizar os autores, diretos ou indiretos, dos crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes dos aparelhos repressivos do regime ditatorial”, pontua.

Carlos Frederico Guazzelli é defensor público junto à 5ª Câmara Criminal do Tri-bunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e ex-professor universitário. Atuou como coordenador da Comissão da Verdade gaúcho durante todos os trabalhos, entre os anos de 2012 e 2014.

Confiraaentrevista.

IHU On-Line - Quais foram asprincipais constatações às quaischegou a Comissão Estadual daVerdadenoRioGrandedoSul?

Carlos Frederico Guazzelli - A Comissão Estadual da Verdade do

Rio Grande do Sul - CEV/RS foi cria-da para auxiliar a Comissão Nacio-nal da Verdade - CNV na apuração das graves violações a direitos hu-manos praticadas imediatamente antes e durante a ditadura militar

instaurada no Brasil. O foco é no território gaúcho – ou mesmo fora dele, inclusive no estrangeiro, mas contra seus naturais (artigo 1º do Decreto Estadual nº 49.380/2012, que a instituiu). Assim, no cumpri-

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mento deste objetivo, a comissão colheu 81 depoimentos. E reuniu inúmeros documentos, acerca dos sequestros, prisões ilegais, tor-turas, mortes, desaparecimentos forçados e perseguições políticas cometidas contra milhares de pes-soas. Isso durante o período histó-rico estabelecido para suas apura-ções, entre 1º de janeiro de 1961 e 5 de outubro de 1988.

Dentre tantas constatações fei-tas sobre estas ocorrências, avul-ta a identificação da constituição e desenvolvimento progressivo – dentro e à sombra das instituições públicas do Brasil e do Rio Grande do Sul – de um poderoso sistema repressivo, quase autônomo, vol-tado precipuamente à vigilância e punição das pessoas e entidades consideradas perigosas pelo regi-me ditatorial. Este aparato foi sen-do continuamente aperfeiçoado, desde o primeiro dia após o golpe e ao longo das duas décadas se-guintes. Acabou sendo responsável pela morte e/ou desaparecimento de cerca de cinquenta pessoas, no território estadual ou mesmo fora dele. Bem como pelos seques-tros, torturas e prisões ilegais de centenas de cidadãos e cidadãs – além das perseguições, cassações, demissões e exílios forçados de milhares de outros, nas mesmas condições.

IHUOn-Line-Quaissedemons-traramosmaioresdesafiosdessetrabalho?

Carlos Frederico Guazzelli - O maior desafio enfrentado pela Co-missão foi a exiguidade do tempo para o cumprimento de tarefa tão

grande, quanto árdua. Cabe lem-brar, também, que o órgão foi cria-do por decreto, em decorrência do que seus membros tiveram menos poderes – dispondo das prerrogati-vas da autoridade delegante, como Chefe do Executivo. Assim, por exemplo, podiam requisitar docu-mentos dos entes da Administração Pública Direta e Indireta. Em re-lação aos outros Poderes, podiam apenas solicitá-los, não requisitá--los – ao contrário dos membros da CNV, cuja criação se deu por lei, que lhes conferiu amplos poderes.

Em compensação, graças à sua estrutura enxuta, ligada à Casa Ci-vil e ao Gabinete do Governador, a CEV/RS pôde exercer suas ativi-dades com agilidade, aproveitando os meios, materiais e pessoais, das Secretarias de Estado (além das ci-tadas, as pastas de Comunicação, Justiça e Direitos Humanos e Segu-rança Pública).

IHU On-Line - Em que medidaotrabalhorealizadoporessaCo-missão dá visibilidade à memó-riaeàverdadehistóricadoqueocorreunosanosdeditaduracivilmilitarnoRioGrandedoSul?

Carlos Frederico Guazzelli - O trabalho das comissões de verdade tem por finalidade expressa justa-mente dar visibilidade à verdade histórica escondida por anos de políticas de esquecimento. No caso brasileiro, isto pode ser expresso, sinteticamente, desta maneira: revelar, pela memória das vítimas e testemunhas, e até mesmo dos autores, a verdade sobre as gra-ves violações a direitos humanos praticadas durante a ditadura. Isso

tudo a fim de possibilitar a realiza-ção futura de justiça acerca destes crimes.

Assim, as comissões de verdade não necessariamente descobrem fatos novos – embora ao longo de seu trabalho efetivamente venham a fazê-lo. Mais que isso, sua atua-ção consiste em reunir e organizar o conhecimento sobre fatos que, de outra maneira, mesmo parcial-mente conhecidos, permaneceriam dispersos nos acervos públicos e privados, nas bibliotecas e acade-mias e, sobretudo, diluídos na me-mória dos sobreviventes.

O resultado das atividades de-senvolvidas pela CEV/RS contri-buiu, portanto, para dar forma pública e oficial acerca das violên-cias cometidas pelos agentes do sistema repressivo político monta-do pela ditadura militar no estado do Rio Grande do Sul. Não se deve esquecer que o “relatório circuns-tanciado” apresentado pela CNV ao país, no final do ano passado – do-cumento também integrado pelos elementos enviados pela CEV/RS – acerca de tais violações, constitui a palavra oficial do Estado Brasi-leiro a seu respeito, reconhecendo sua responsabilidade pelos danos delas decorrentes.

IHUOn-Line -Acredita que foifeita justiça, ainda que tardia-menteemrelaçãoaosgraves fa-tosocorridos?Porquê?

Carlos Frederico Guazzelli - O tripé memória-verdade-justiça constitui o centro do chamado processo de justiça de transição – como é conhecido o conjunto de procedimentos, políticos e jurídi-cos, judiciais e extrajudiciais que deve acompanhar a passagem de um regime excepcional (em vir-tude de ocupação estrangeira, guerra externa ou civil, ou ainda ditadura), para a normalidade de-mocrática. O processo de justiça transicional brasileiro, como se sabe, iniciou tardiamente, e se de-senvolveu com lentidão – até a úl-tima década, quando ganhou bas-

O resultado das atividades desen-volvidas pela CEV/RS contribuiu para dar forma pública e oficial acerca das violências cometidas

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tante impulso, graças à criação e ao trabalho, primeiro, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2002), e depois da Comissão Na-cional da Verdade (2011).

Graças à Comissão de Anistia, tem-se feito justiça no terreno das reparações – civis e adminis-trativas, patrimoniais e morais – a milhares de cidadãos e cidadãs brasileiras que a ela acorreram. Também a Justiça brasileira, inclu-sive no próprio período ditatorial, em inúmeras decisões reconheceu a responsabilidade civil, da União e dos Estados, pelas lesões de direi-tos praticadas contra a cidadania perseguida, por motivos políticos, durante a ditadura. No entanto, do ponto de vista criminal, apesar da iniciativa recente de vários pro-curadores federais, ainda não foi possível responsabilizar os autores, diretos ou indiretos, dos crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes dos aparelhos repressivos do regime ditatorial – pessoas ain-da vivas, mais do que identificadas, algumas delas, inclusive, já conde-nadas civilmente.

Escudo no dispositivo da Lei de Anistia

Isto se deve à equivocada in-terpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009, a um dispositivo da Lei de Anistia (Lei Federal n.º 6.683/79), em virtu-de da qual não se tem permitido a punição de tais delitos. No ano seguinte, a Corte Interamerica-na de Direitos Humanos - CIDH/OEA, a cujas decisões o Brasil é vinculado, condenou-o pela tor-tura e morte de um militante da chamada “guerrilha do Araguaia”. Nesta sentença, proibiu o país de emprestar validade a dispositivos destinados a anistiar crimes con-tra a humanidade – que frente à legislação internacional penal são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia.

A questão já chegou ao Supremo, em mais de um processo, e deve-rá ser reapreciada. Espera-se que,

com nova composição, e depois da condenação do país pela CIDH – e também das revelações do relató-rio final da CNV – este inadmissível obstáculo seja removido, e os res-ponsáveis pelas atrocidades come-tidas sejam criminalmente proces-sados. Sem isso, não haverá plena justiça.

IHU On-Line - Em que medidase pode falar de reconciliaçãonacional após as conclusões dasComissõesEstadualeNacionaldaVerdade?

Carlos FredericoGuazzelli -E, tampouco, verdadeira reconcilia-ção nacional – conceito que se con-trapõe à “conciliação” em nome da qual, na transição da ditadura para a democracia, em nosso país, deixou-se de responsabilizar os autores, diretos e indiretos, dos crimes praticados em favor da sus-tentação do regime ditatorial. Com efeito, somente com o pleno co-nhecimento da verdade histórica – e com a reparação pelas injustiças praticadas aos cidadãos que ousa-ram opor-se ao arbítrio dos ditado-res e seus acólitos – será possível à nação reconciliar-se com seu pas-sado, condição para um futuro de paz e concórdia.

Ao contrário, pois, do que apre-goam os arautos da impunidade dos ditadores, e dos que prende-ram, torturaram e mataram em seu nome, as revelações das comissões de verdade contribuem decisiva-mente para a verdadeira reconci-liação nacional. A paz somente será

sólida e terá longa vida, se repou-sar na justiça e na verdade.

IHUOn-Line -Houveumacon-vergência de esforços e conclu-sões nos trabalhos da ComissãoEstadualdaVerdadeedaNacio-nal?Emqueaspectos?

Carlos Frederico Guazzelli -Houve sintonia entre as ações das Comissões Nacional e Estadual da Verdade. Para tanto, em virtude de “Termo de Ação Conjunta” firma-do entre elas, a princípio a CEV/RS não apurava fatos sob investi-gação da CNV, e vice-versa, para evitar sobreposição de apurações. Assim, por exemplo, a CNV apurou diretamente, por meio de Grupo de Trabalho, as ações da chama-da “Operação Condor” (ou “Plan Condor”) – como eram chamadas as operações conjuntas das polí-cias políticas do Cone Sul da Amé-rica do Sul, nas décadas de 1960 a 1980. Em compensação, as demais violações praticadas no território gaúcho, apuradas pela CEV/RS, in-tegraram o relatório final da CNV, como se fossem por ela procedidas.

Além do mais, em duas oportu-nidades ambas as comissões reali-zaram audiências públicas em con-junto. Também colaboraram entre si, continuamente. Por fim, cabe lembrar que, como determinado no decreto que a criou, todos os de-poimentos e documentos coletados pela CEV/RS foram enviados, in-clusive em meio audiovisual, para a CNV. Todo esse material está in-tegrando o acervo apresentado ao país em 10 de dezembro passado, e encaminhado ao Arquivo Nacio-nal. Neste órgão do Ministério da Justiça, tudo deve ser catalogado, organizado e, mais tarde, será dis-ponibilizado à cidadania brasileira.

Importa acrescentar que um con-junto idêntico de documentos foi entregue, em 4 de dezembro do ano passado, pela CEV/RS, ao en-tão Governador do Estado, Tarso Genro. Ele determinou sua remessa ao Arquivo Público do Estado, onde se espera seja o acervo posto à dis-

As comissões de verdade não necessariamen-

te descobrem fatos novos

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posição do público, em especial, dos estudantes.

IHU On-Line - Uma vez apre-sentado o relatório de ambas ascomissões,quetrabalhoselasde-senvolvemhoje?

Carlos Frederico Guazzelli -Com a apresentação dos relatórios finais das comissões, brasileira e gaúcha, em dezembro último, am-bas encerraram suas atividades. Tratava-se de comissões com pe-ríodo determinado para o cumpri-mento de suas atividades. Isto não impede que, como foi proposto nas Recomendações que apresenta-ram, ao final de seus trabalhos, à União Federal e ao Estado do Rio Grande do Sul, sejam recriadas. In-clusive, poderiam ser instituciona-lizadas, de forma permanente, nas estruturas administrativas, federal e estadual, para continuar apuran-do as graves violações a direitos humanos praticadas durante o pas-sado recente do país.

IHUOn-Line-Comocompreen-derajustificativadequeoEstadodoRioGrandedoSulafirmouter“queimado”osarquivosdoDOPS1e, logo em seguida, documentosreapareceram em Montevidéu eestãomicrofilmadosnoComandoMilitardoSul?Oque isso revelasobreotrinômiojustiça,verdadeememóriaemnossoEstado?

CarlosFredericoGuazzelli-Há fundadas suspeitas de que os tais “arquivos do DOPS” continuem existindo, em poder de autoridades militares. E, até mesmo, em acer-vos particulares. Embora o Gover-nador do Estado, à época (1982)2,

1 Departamento de Ordem Política e Social (DOPS): criado em 30 de dezembro de 1924, foi o órgão do governo brasileiro, utilizado principalmente durante o Esta-do Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964, cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. O órgão, que tinha a função de assegurar e disciplinar a ordem no país, foi instituído em 17 de abril de 1928 pela lei nº 2304 que tratava de reorganizar a polícia do Estado. (Nota da IHU On-Line)2 O governador na época era Amaral de Souza. Exerceu o mandato de governador

tenha invocado a redemocratiza-ção do país como motivo para a in-cineração pública do arquivo prin-cipal do DOPS, espetáculo inclusive apresentado até mesmo pela tele-visão, o episódio nada diz sobre “o trinômio justiça, memória e verda-de”. Diz exatamente o seu oposto: trata-se de típica ação do que os estudiosos da matéria chamam de “política de esquecimento”. É um esforço para apagar a história, em nome de uma falsa conciliação, do que resulta manter sangrando fundas feridas. Posturas que im-pedem a verdadeira reconciliação nacional.

Deve-se lembrar, a propósito, que boa parte dos documentos da-quela repartição – oriundos de suas sucursais no interior do estado (as chamadas SOPS) – foi depositada no Arquivo Histórico do Estado. Trata--se de milhares de fichas e outros papéis, produzidos pelos agentes do órgão, em várias cidades gaú-chas, já digitalizados e organiza-dos, disponíveis para consulta dos interessados.

IHUOn-Line - O acervo de ar-quivos disponível no ComandoMilitardoSulfoiconsultadopelaComissãoEstadualdaVerdade?

CarlosFredericoGuazzelli-To-dos os arquivos das organizações

do estado do Rio Grande do Sul entre 1979 e 1983 durante o final do regime militar no Brasil. Quando do fim do governo Guazzelli, foi indicado governador do Rio Grande do Sul pela ditadura e nomeado pela Assembleia Legislativa. (Nota da IHU On-Line)

militares, relativos ao período di-tatorial, ao que consta, foram re-metidos ao Comando do Exército, em Brasília, cujo titular é a única autoridade daquela Força capaz de autorizar sua consulta. E, como dito antes, a CEV/RS não dispunha de poderes para requisitar docu-mentos de outros Poderes, ao con-trário da CNV.

IHU On-Line - Ao contrário deoutros países latino-americanos,porquenoBrasilhouvetantade-mora em se estabelecer um tra-balho como o das Comissões daVerdade?

Carlos Frederico Guazzelli – O processo de justiça de transição no Brasil, ainda incompleto e in-concluso, iniciou tardiamente. E somente nos últimos anos ganhou impulso – graças, inclusive, ao tra-balho das comissões de verdade. Isto se deve a múltiplos fatores. Dos quais, o mais importante é a natureza do processo político no Brasil, caracterizado, quase sem-pre, por aquilo que os autores cha-mam de “conciliação das elites”, ou, ainda, “por cima”. Foi deste tipo a transição negociada entre os governantes militares e os civis que os sucederam.

A chamada “Nova República” foi um governo eleito indiretamente, na forma prescrita pela ditadura (em “colégio eleitoral”), consti-tuído por dissidentes do regime ditatorial e membros da oposição consentida. E antes de fazer tal transição – “lenta e segura”, como proclamado pelo penúltimo dita-dor – tratou-se de editar uma lei de autoanistia que, graças à pusilani-midade da Justiça e do Congresso, vem impedindo, até hoje, a res-ponsabilização plena dos autores dos crimes praticados durante a ditadura3. ■

3 Para maiores informações acerca do trabalho da CEV/RS, recomendo acessar seu site: comissaodaverdade.rs.gov.br. (Nota do entrevistado)

A paz somen-te será sólida e terá longa

vida, se repou-sar na justiça e na verdade

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TEMA DE CAPA IHU EM REVISTA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

#CríticaInternacional-CursodeRIdaUnisinos

Após décadas de atraso, a guerra fria finalmente

caminha para seu final no continente americano

Por Gabriel Pessim Adam

“No nível da política regional, o fim da Guerra Fria garantiria o retorno da nor-malidade da Doutrina Monroe. Entretanto, no século XXI, Washington observa o recrudescimento de presenças um tanto indesejadas em sua zona de influência cativa. O avanço da China na América Latina – aumentando a interdependência dos países do continente para com a potência asiática – é fator de grande preo-cupação do Departamento de Estado”, analisa Gabriel Pessim Adam em artigo à IHUOn-Line.

Gabriel Pessim Adam é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Ca-tólica - PUCRS com mestrado e doutorado em Ciência Política com ênfase em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atua como docente na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos nos cursos de Relações Internacionais e Direito ([email protected]).

Eisoartigo.

Um dos movimentos mais surpreendentes dos últi-mos anos no Continente Americano é a reaproximação entre Estados Unidos e Cuba, iniciada em dezembro de 2014 e que avançou até a retomada oficial das relações diplomáticas, ocorrida em julho de 2015. A surpresa foi maior porque a intenção do reatamento partiu de Washington, precisamente do Presidente Barack Oba-ma1. Um ato desta magnitude não acontece sem gerar questionamentos acerca de seus interesses reais, de-clarados ou não. Cumpre, então, analisar as principais motivações dos atos voltados para Cuba pelo Governo Obama, que se encaminha para o seu final.

A compreensão das relações entre EUA e Cuba exi-ge que se retomem alguns fatos históricos. A indepen-dência cubana foi obtida junto à Espanha, com auxílio

1 Cabe ressaltar a participação do Papa Francisco no reatamento, o qual enviou cartas a Raúl Castro e Barack Obama solicitando a resolução de questões humanitárias pendentes entre os dois países. The Guardian. Endereço eletrônico: http://www.theguardian.com/world/2014/dec/17/us-cuba-pope-franicis-key-roles. Acessado em 07/09/2015. (Nota do autor)

estadunidense em conflito que durou de 1898 a 1902. Todavia, a sonhada autonomia dos cubanos foi seria-mente vilipendiada pela Emenda Platt, tratado im-posto por Washington a Havana cujo efeito foi manter Cuba como um protetorado forçado dos EUA, o que ge-rou o enriquecimento de uma elite entreguista cubana e desenvolveu um sentimento de posse por parte dos estadunidenses em relação à ilha localizada ao sul da Flórida. A Revolução de 1959 rompeu o domínio esta-dunidense. A superpotência não aceitou o fato, e de pronto dirigiu hostilidades ao Governo de Fidel Cas-tro que culminaram na frustrada tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em 1961. A crise dos mísseis no ano seguinte colocou o mundo em estado de tensão e trouxe a Guerra Fria definitivamente ao Continente Americano. O apoio soviético a Cuba representou uma intromissão na hegemonia continental dos EUA, inicia-da com a Doutrina Monroe em 1823, e ampliada com o Corolário Roosevelt, do início do século XX. A resposta estadunidense foi a adoção do pesado embargo eco-

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TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

SÃO LEOPOLDO, 14 DE SETEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 472

nômico ainda em vigor, bem como a expulsão de Cuba da OEA.

No nível da política regional, o fim da Guerra Fria garantiria o retorno da normalidade da Doutrina Mon-roe. Entretanto, no século XXI, Washington observa o recrudescimento de presenças um tanto indesejadas em sua zona de influência cativa. A primeira delas ad-vinda da própria América Latina. Após reatar as rela-ções com Cuba durante o Governo Sarney, desde o Go-verno Lula o Brasil ensaia uma atuação mais assertiva na América Central. O ponto máximo desta estratégia é a construção do porto de Mariel na costa cubana. O embargo estadunidense à ilha caribenha abre brecha a um país estrangeiro se associar a um entreposto que está localizado a poucas centenas de quilômetros da costa estadunidense e serve de janela para o Caribe; uma fonte inegável de ganhos econômicos e políticos. O Brasil parece ter percebido a oportunidade e age para não perdê-la. De semelhante modo, Argentina, Venezuela e Rússia procuram estreitar suas relações com Cuba nos últimos anos.

Mas nenhum destes países constitui a principal fonte de preocupação dos Estados Unidos. A China, potên-cia asiática ascendente, cujo apetite pelas Américas parece insaciável, assume tal papel. A construção do canal da Nicarágua, obra monumental que rivalizará diretamente com o histórico Canal do Panamá, cuja conclusão está prevista para 2020, é a demonstração de que Pequim não parece disposta a respeitar a Dou-trina Monroe como os países europeus e o Japão antes o fizeram, e reúne condições para abalar o domínio outrora inabalável da superpotência estadunidense nas Américas. Outros complicadores à posição estadu-nidense são o grande volume de capital chinês para in-vestimentos diretos em infraestrutura e empréstimos e a dificuldade de se vilificar os chineses perante as Américas, manobra possível em relação aos soviéticos na Guerra Fria. Portanto, a China, e em menor escala, outros países, representam riscos diretos à hegemonia continental dos EUA, fato que o Governo Obama dá indício de não apenas conhecer, mas de levar a sério.

Internamente, o Governo Obama enfrenta dificulda-des que podem refletir nas eleições presidenciais de

2016. Historicamente, o embargo a Cuba era sustenta-do pelos cubanos anticastristas residentes na Flórida, importante estado para a corrida presidencial no intri-cado sistema político estadunidense. A derrota dos De-mocratas na eleição parlamentar de 2014 levou o Go-verno Obama a lançar uma série de medidas voltadas à população hispânica do país, parcela com peso político crescente e que tendencialmente vota em candidatos do Partido Democrata. A aproximação de Cuba é o mo-vimento mais significativo do Presidente dos Estados Unidos neste sentido. E ao fazê-lo, diga-se, Barack Obama está em sintonia com a maioria de 73% da po-pulação de seu país que aprovavam a retomada dos laços diplomáticos em julho de 2015. (PEW RESEAR-CHER, 2015)2. Ainda no tocante às causas internas dos gestos do Presidente Obama, não se deve descartar a preocupação que acomete os homens públicos em fim de mandato presidencial, período no qual pensam em como seus anos de governo serão lembrados no futu-ro. Os créditos pelo fim da animosidade entre Cuba e EUA por certo dignificam a biografia de um Presidente que não cumpriu as expectativas geradas com a sua eleição. Por fim, nunca se podem descartar as opor-tunidades de negócios a partir da abertura econômica cubana. Os conglomerados econômicos estadunidenses almejam ingressar na ilha, e para tanto, acompanham de perto as mudanças políticas que se avizinham após a saída dos irmãos Castro do poder. A forma como se dará tal transição interessa a Washington, pois habilita a retomada da ascendência econômica e política sobre Cuba.

Como se observa, as intenções do Governo Obama não representam apenas um tomar de consciência por parte da superpotência. Há interesses claros que co-adunam com a visão hegemônica tradicional dos Es-tados Unidos. Portanto, mesmo que a reaproximação entre Cuba e Estados Unidos tenha de ser saudada, há que se observar atentamente os próximos desdobra-mentos, sobretudo aqueles relacionados a temas ainda sensíveis, como Guantánamo, os exilados cubanos e, sobretudo, o injustificável embargo econômico. ■

2 PEW RESEARCH CENTER. Growing Public Support for U. S. Ties with Cuba – And an end to the Trade Embargo. Washington: Pew Research Center, july 2015. (Nota do autor)

ExpedienteCoordenadora do curso: professora mestre Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: professor doutor Bruno Lima Rocha

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PUBLICAÇÕES

O ambientalismo em três escalas de análise

Cadernos IHU, em sua 51ª edição, publica O ambientalismo em três escalas de análise, de autoria de Fabiano Quadros Rückert.

A possibilidade de avançarmos na com-preensão do ambien-talismo demanda uma disposição para pen-sarmos a complexidade dos fenômenos sociais e implica uma abertu-ra para a discussão so-bre as suas diferentes escalas de atuação. No artigo, o autor explora esta possibilidade de compreensão do am-bientalismo, revisando a bibliografia sobre o surgimento da críti-ca à degradação am-biental e construindo três escalas de análi-se para o tema: a pri-meira escala é focada na dimensão científica do ambientalismo, a segunda aborda as in-terpretações sobre o ambientalismo no Bra-sil e a terceira destaca o movimento ambientalista no Vale do Rio dos Sinos. Para Rückert, a subdivisão do ambientalismo em três escalas de análise é necessária para a articulação entre questões de âmbito global – como a percepção da crise ambiental – com o desen-volvimento da Política Nacional do Meio Ambiente e a degradação do Rio dos Si-nos. Neste sentido, o autor explora a polissemia do ambientalismo, identificando pontos de ligação entre as três escalas de análise usadas no artigo. ■

Acesse a íntegra do Caderno em http://bit.ly/1ULXjeR

Esta e outras edições do Cadernos IHU podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU ou solicitados pelo endereço [email protected].

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Cadernos Teologia Pública, em sua 100ª edição, traz o artigo O Vaticano II e a Esca-tologia Cristã. Ensaio a partir de leitura teológico-pastoral da Gaudium et Spes, de Afonso Murad, Facul-dade Jesuíta de Filo-sofia e Teologia - FAJE.

O artigo visa mos-trar a contribuição da Constituição Pasto-ral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, para a escatologia contemporânea. O autor escolheu como método um estudo comparativo entre o ensino de um catecis-

mo tradicional católico, anterior ao Concílio (CAULY), referente aos novíssimos, e os artigos do referido documento conciliar. Foram escolhidos como parâmetro os temas: antropologia dual, morte e ressurreição, juízo e nova criação, centralidade cristoló-gica, tensão entre ação humana e vinda do Reino. Com isso, há critérios para avançar na escatologia, além de subsidiar a elaboração de textos pastorais acerca deste tema fundamental para a vida cristã. ■

Acesse a íntegra do Caderno em http://bit.ly/1OPTjbI.

Esta e outras edições dos CadernosTeologiaPública podem ser adquiridas direta-mente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU ou solicitados pelo endereço [email protected].

PUBLICAÇÕES

O Vaticano II e a Escatologia Cristã. Ensaio a partir de leitura teológico-

pastoral da Gaudium et Spes

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RetrovisorReleia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Biopolitica, estado de excecao e vida nua. Um debate

Edição 344 - Ano X - 21.09.2010

Disponível em http://bit.ly/1HAZ8oK

Dando continuidade ao tema do número 343 da IHU On-Line e à luz do recém--realizado XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida hu-mana, a edição 344 da revista analisa a biopolítica, o estado de exceção e a vida nua. Contribuem para o debate Oswaldo Giacóia, César Candiotto, Fabián Ludueña, Sylvio Gadelha da Costa, Karla Saraiva, Carlos Noguera, Maura Corcini Lopes, Kamila Lockmann e Morgana Domênica Hattge, Vera Portocarrero, José Roque Junges, Márcio Seligmann-Silva e Ricardo Timm.

O (des) governo biopolitico da vida humana

Edição 343 - Ano X - 13.09.2010

Disponível em http://bit.ly/1CG8PpB

O tema de capa da IHU On-Line número 343 aborda as discussões centrais do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, realizado na Unisinos. Pesquisadores e pesquisadoras de várias áreas do conhecimento con-tribuem para a discussão. Entre eles Frédéric Gros, Edgardo Castro, Castor Ruiz, José Antonio Zamora, José Carlos Moreira Filho, Andrea Fumagalli, Márcia Arán e Giuseppe Cocco.

Michel Foucault, 80 anos

Edição 203 - Ano VI - 06.11.2006

Disponível em http://bit.ly/1Oj6fsy

Discutir a importância do legado do filósofo francês Michel Foucault, que em 15 de outubro de 2006 completaria 80 anos de vida. Essa é a proposta da edição 203 da IHU On-Line, que refletiu a respeito desse pensador, por ocasião dos 20 anos do seu falecimento. Colaboraram nesse debate inúmeros pesquisadores, explo-rando a atualidade e as interfaces do pensamento de Foucault com outras áreas do conhecimento. Contribuem para a edição Alfredo José da Veiga-Neto, Diogo Sardinha, Eric Lecerf, Jorge Dávila, José Ternes, Judith Revel, Roberto Machado, Silvio Gallo, Vera Portocarrero e Alexandre Filordi de Carvalho.

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As identidades dos gaúchos em debateData: 17 de setembroHorário: 17h30min às 19hLocal: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU

twitter.com/_ihu

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medium.com/@_ihu

ihu.unisinos.br

IHU Ideias

Eventos Instituto Humanitas Unisinos - IHU

A apresentação e o debate do importante documento acontecerá nesta quarta-feira, dia 16 de setem-bro, no Auditório Central, às 20h.

Tendo em vista a grande de-manda pelo evento, uma segunda edição do mesmo ocorrerá no dia 15 de outubro, no mesmo local.

Leia mais em http://bit.ly/1iaIlTr.

Cadernos Teologia Pú-blica, em sua 100ª edição, traz o artigo O Vaticano II e a Escatologia Cristã. Ensaio a partir de leitura teoló-gico-pastoral da Gaudium et Spes, de Afonso Mu-rad, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE.

Leia mais em http://bit.ly/1OPTjbI.

Cadernos Teologia Pública, em sua 99ª edi-ção, traz o artigo Pensar

o humano em diálogo crítico com a Constitui-

ção Gaudium et Spes, de Geraldo Luiz De Mori,

da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE.

Leia mais em http://bit.ly/1iJ7kOf.

O Vaticano II e a Escatologia Cristã Pensar o humano em diálogo crítico

com a Constituição Gaudium et Spes