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 Coordenadores Marcos Wachowicz João Luis Nogueira Matias ESTUDOS DE DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE Fundação Boiteux Florianópolis 2009

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Coordenadores Marcos Wachowicz Joo Luis Nogueira Matias

ESTUDOS DE DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE

Fundao Boiteux Florianpolis 2009

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, Joo Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2009. 1 CD-ROM Inclui bibliografia ISBN: 978-85-7840-022-4 1. Propriedade. 2. Meio Ambiente. 3. Propriedade Intelectual. 4. Desenvolvimento. 5. Polticas pblicas.

Editora Fundao Boiteux Conselho Editorial Prof. Aires Jos Rover Prof. Arno Dal Ri Jnior Prof. Carlos Arajo Leonetti Prof. Orides Mezzaroba

Secretria executiva

Thlita Cardoso de Moura

Capa, projeto grfico

Reciclagem digital e Arte Visual

Diagramao e reviso

Thais dos Santos Casagrande UFSC CCJ - 2 andar Sala 216 Campus Universitrio Trindade Caixa Postal: 6510 CEP: 88036-970 Florianpolis SC Tel./Fax: 3233-0390 (ramal 209) E-mail: [email protected] Site: www.funjab.ufsc.br2

Endereo

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

SUMRIOPREFCIO

PARTE I PROPRIEDADE

O SISTEMA DE PROPRIEDADE INDGENA PR-COLONIAL.......................................................................14 Thais Luzia Colao

A PROPRIEDADE NO BRASIL COLNIA, IMPRIO E NO CDIGO CIVIL DE 1916................................26 Francisco Amaral

A PROPRIEDADE PS-MODERNA: conceito e classificao............................................................................43 Jos Isaac Pilati

MACROECONOMIA

E

ADMINISTRAO

PBLICA:

propriedade

pblica

e

interesses

privados...................................................................................................................................................................70 Luiz Henrique Urquhart Cademartori

O

FUNDAMENTO

ECONMICO

E

AS

NOVAS

FORMAS

DE

PROPRIEDADE......................................................................................................................................................95 Joo Luis Nogueira Matias

PROPRIEDADE INTELECTUAL E SOCIEDADE DA INFORMAO: uma anlise de sua natureza jurdica e co-dependncia......................................................................................................................................................126 Marcos Wachowicz Afonso de Paula Pinheiro Rocha

EFETIVAO DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL ATRAVS DE MEDIDAS DE FRONTEIRA: regulao no acordo TRIPS e na negociao do Acordo Comercial Anti-Contrafao (ACTA).................................................................................................................................................................147 Helosa Gomes Medeiros

PROPRIEDADE E DESENVOLVIMENTO: anlise pragmtica da funo social............................................167 Luciano Benetti Timm Renato Vieira Caovilla

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

PARTE II PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE

ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL: um novo paradigma para o sculo XXI...............................................194 Jos Rubens Morato Leite Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira

PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE NO DIREITO.......................................................................................214 Rogrio Portanova

PROPRIEDADE, TRIBUTOS E MEIO AMBIENTE..........................................................................................228 Ubaldo Csar Balthazar

ALGUNS COMENTRIOS COMPARATIVOS A RESPEITO DA RELAO ENTRE A FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE E PROTEO AMBIENTAL NOS SISTEMAS JURDICOS DO BRASIL E DA ALEMANHA........................................................................................................................................................243 Andreas J. Krell

DA CONCESSO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA EM REAS DE PROTEO: ESTUDO SOBRE A FUNO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PBLICA URBANA.................................259 Juliana Cristine Diniz Campos PROPRIEDADE INTELECTUAL E AMBIENTALISMO CULTURAL...............................................273 Afonso de Paula Pinheiro Rocha

TRIBUTAO AMBIENTAL E PROPRIEDADE: possibilidade de uma poltica fiscal adequada ao programa Minha casa, minha vida.....................................................................................................................................303 Denise Lucena Cavalcante Joo Victor Porto Sales

A FUNO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAO DO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL................................................................................................................................327 Germana Parente Neiva Belchior

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

PREFCIO

O Estudo do Direito de Propriedade e do Meio Ambiente na sociedade contempornea ganha relevo e novas dimenses tericas. Percebe-se um grande movimento acadmico, um crescente interesse scio-poltico e econmico, que tem despertado nos estudiosos do direito questes que delineiam novos contornos da disciplina em suas mais variadas matizes doutrinrias. Neste sentido que a presente obra aglutina inmeros seminrios, congressos e eventos realizados no Brasil e no exterior pelos professores e pesquisadores do Programa de Psgraduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e da Universidade Federal do Cear UFC. Esta obra coletiva uma viso ampla sobre as questes dos novos paradigmas para um velho direito: Propriedade e Meio Ambiente.

1.

Novos paradigmas para um velho direito: Propriedade e Meio Ambiente

A consolidao contempornea da idia de supremacia das normas constitucionais impe a releitura dos direitos fundamentais em perspectiva que prestigie os valores democraticamente eleitos pelo legislador. O contexto do neoconstitucionalismo demanda construo terica que faa a devida adaptao dos institutos jurdicos aos padres firmados pela Constituio, fixando novos paradigmas de interpretao para as normas infraconstitucionais. O foco do presente projeto gira em torno do instituto de propriedade, abordando desde a parte terica, histrica e filosfica em busca da sua compreenso, at a construo em forma de direito. A doutrina brasileira possui um paradigma de forte tradio romano-germnica na sua concepo de propriedade. Entretanto, nada mais justifica que a mesma seja vista com ares de um direito natural e sagrado, bem como inerente ao esprito humano.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Por sua vez, dentro de um paradigma anglo-saxo, o estudo da propriedade adquire um carter de cunho mais tcnico e a mesma passa a ser estudada sobre a tica de um fenmeno econmico. Surge, ento, o interesse para o avano da cincia jurdica em realizar uma anlise comparativa entre os dois modelos, oportunizando o estudo de como essa mudana de paradigma pode ser operacionalizada para melhor compreender e implementar os objetivos e valores destacados na Constituio Federal de 1888. Assim, ante as novas demandas do Direito e do Estado, o direito de propriedade deve ser remodelado para respeitar a funo social e ambiental, o que demonstra a importncia e a atualidade da pesquisa, conforme ser analisado no decorrer deste projeto.

2.

O direito de propriedade no paradigma liberal

O advento do Estado liberal marca a ruptura com a velha ordem, caracterizada pela prevalncia do mito e do dogma, no plano filosfico, pela inexistncia da liberdade de trabalho, no plano econmico, e pelo poder ilimitado do soberano, no plano poltico. Tal realidade explica, embora no justifique, os excessos que lhe foram peculiares. O iderio liberal expresso no apenas de um novo cenrio poltico e social, mas de uma transformao da prpria maneira das pessoas encararem a vida, o que refletia sobre a ordem jurdica e, necessariamente, sobre o direito de propriedade. No Estado liberal, por volta do sculo XVIII, vigorava o constitucionalismo clssico, onde a Constituio era reduzida a um instrumento jurdico que tinha como finalidade bsica limitar ou enfrear o exerccio do poder estatal. O poder estava adstrito s normas que almejavam a liberdade, protegendo, assim, o indivduo. E para se ter liberdade, era preciso segurana na ordem jurdica. A liberdade individual, e, conseqentemente, a segurana jurdica eram os primados bsicos do Estado liberal. Surgem, assim, os direitos civis e polticos, denominados de direitos fundamentais de primeira gerao. Referidos direitos se caracterizam pela necessidade de no-interveno do Estado no patrimnio jurdico dos membros da comunidade. Esta categoria fundada no Estado liberal absentesta, onde se deu a manifestao do status libertatis ou status negativus. Realam, portanto, o princpio da liberdade.6

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Em tal contexto, a propriedade foi concebida como absoluta, plena realizao da liberdade dos indivduos, direito divino, assegurando ao proprietrio o direito de usar, gozar e dispor da coisa. O antigo Cdigo Civil Brasileiro, Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916, era expresso desse iderio. O Estado devia, assim, assegurar os meios jurdicos necessrios para o proprietrio garantir a manuteno de sua propriedade, bem como seu carter de perpetuidade. O uso da propriedade era realizado de forma irresponsvel, independente dos custos ambientais que tal atividade pudesse proporcionar, em busca do desenvolvimento econmico.

3. O Estado social e o direito de propriedade

A industrializao e o progresso tcnico trazem consigo fenmenos que, ao romper com a harmonia da sociedade liberal, alteram profundamente as concepes da sociedade e do Estado, bem como o prprio sistema de direitos fundamentais. Nesse sentido, a concepo individualista do direito de propriedade, tpica do Estado liberal, tornou-se um forte obstculo proteo e preservao do meio ambiente. Com a degradao ambiental, a qualidade de vida tambm foi prejudicada. A meta do intervencionismo transformar o ultrapassado Estado liberalista em Estado social, objetivando solidariedade e justia social. A partir deste momento, com a origem do Estado social, visualizam-se os direitos fundamentais de segunda gerao. Os direitos de segunda gerao so os direitos econmicos, culturais e sociais, s que os ltimos requerem prestaes positivas (status positivus) por parte do Estado para suprir as carncias da sociedade. A propriedade, direito fundamental tpico de primeira gerao, precisa cumprir sua funo social, de acordo com a legislao civil de 1916. Verifica-se que referido direito se transforma, se modifica, se reestrutura para atender s novas exigncias do Estado Social, em consonncia com os direitos fundamentais de segunda gerao. Contudo, o formalismo tpico do Estado Social no era suficiente para a concretizao efetiva dos direitos previstos em tese. Como avano em relao ao Estado Social, no Estado Democrtico de Direito a ordem jurdica vocacionada realizao dos valores previstos na Constituio, atuando de forma incisiva para a concretizao dos direitos fundamentais.7

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

No que se refere propriedade, a Constituio Federal de 1988, ao garantir, em seu art 5, incisos XXII e XXIII; e art. 170, incisos II e III, o direito de propriedade vinculado funo social, acarreta uma transformao no seu contedo. A funo social da propriedade, portanto, pretende no apenas impor obrigaes negativas ao proprietrio, mas tambm um poder-dever de dar a sua propriedade um destino em prol da coletividade. No entanto, ainda perdura no Estado contemporneo o essencial da concepo liberal, traduzindo na afirmao de que o homem, pelo simples fato de o ser, tem direitos e que o Poder Pblico deve respeit-los. Assegurar o respeito da dignidade humana continua sendo o fim da sociedade poltica. Dignidade esta, no entanto, que no vista apenas no mbito do indivduo isolado, mas sim de uma forma coletiva, em virtude da solidariedade.

4. O direito de propriedade no Estado Democrtico de Direito: o avano para o Estado de Direito Ambiental

Continuando com a evoluo histrica, surgem direitos de titularidade coletiva, intitulados pela doutrina de direitos fundamentais de terceira gerao. Consagram o princpio da solidariedade, englobando, tambm, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma saudvel qualidade de vida, progresso, autodeterminao dos povos e outros direitos difusos. O direito ao meio ambiente alcanou patamar de direito fundamental da pessoa humana, conforme previsto no art. 225, caput, da Lei Maior. Analisando o art. 5, CF/88, percebe-se que o direito ao meio ambiente no foi por ele albergado, estando, assim, fora do seu catlogo. No entanto, a doutrina j unssona ao defender que o rol dos direitos e garantias do art. 5 no taxativo, na medida em que 2, do art. 5, traz uma abertura de todo o ordenamento jurdico nacional ao sistema internacional de proteo aos direitos humanos e aos direitos decorrentes do regime e dos princpios adotados pela Constituio. A questo ambiental ainda goza de relevo especial na misso de tutelar e de desenvolver o princpio da dignidade humana ou como desdobramento imediato da coresponsabilidade geracional.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

A Constituio brasileira de 1988, ao completar vinte anos, testemunha de transformaes que tornam a questo ambiental na pauta do dia. O meio ambiente ecologicamente equilibrado assume tamanha importncia que acaba se mostrando como um direito horizontal na medida em que interfere sobre os demais ramos do direito: privado, pblico e internacional, caracterizando-se, ainda, como um direito de integrao, que penetra em todos os ramos da cincia jurdica para neles introduzir a idia ambiental. Nesse sentido, a cada dia aumenta o nmero de adeptos de um novo modelo de Estado, defendido, inicialmente, por Canotilho, intitulado de Estado Constitucional Ecolgico. Trata-se da ecologizao do direito ao impor uma nova postura do Estado, na busca da efetivao dos direitos fundamentais de terceira gerao. Depois de mais de vinte anos em debate, o Projeto do novo Cdigo Civil foi aprovado no dia 15 de agosto de 2001. No que concerne ao direito de propriedade, a nova lei traz, de forma indita, a funo ambiental vinculada ao exerccio deste direito em geral. O novo Cdigo Civil o primeiro instrumento normativo brasileiro que trata da funo ambiental da propriedade, conforme seu art. 1.228, 1. Note-se, pois, que alm de inserir a funo social da propriedade, j prescrita no Cdigo Civil de 1916, a atual lei civil prev a funo ambiental, na medida em que trata dos seus elementos, como a proteo flora, fauna, preservao das belezas naturais, manuteno do equilbrio ecolgico e a preservao patrimnio histrico e artstico, assim como o uso da propriedade em consonncia com as determinaes da legislao ambiental. Pela leitura do referido dispositivo, constata-se que o ambiente sadio no est dentro da funo social da propriedade. O legislador foi mais longe, ao impor uma funo ambiental autnoma, nova, gerando outras obrigaes ao proprietrio de qualquer bem, alm daquelas j previstas com a funo social. Isto de suma importncia na medida em que o direito de propriedade vem se transformando para acompanhar a globalizao e o desenvolvimento tecnolgico. O novo dispositivo trata de uma norma geral do direito de propriedade, no se limitando urbana e rural, como fazem as leis j citadas. Assim, a propriedade intelectual, virtual, empresria, etc., todas as formas de propriedade esto submetidas funo ambiental, em perfeita consonncia com o direito fundamental ao equilibro ecolgico e com o Estado de Direito Ambiental.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Outro ponto interessante que o Cdigo Civil traz uma clusula aberta em prol do meio ambiente, ao assegurar que a funo ambiental deve ser assegurada tambm de acordo com a legislao especial e no apenas com os componentes trazidos na redao literal do diploma normativo. O princpio da funo scio-ambiental da propriedade tem uma dupla dimenso. Ao impor que o proprietrio no pode prejudicar terceiros e qualidade ambiental, visualiza-se o aspecto negativo. Com o vis positivo, a funo social e ambiental garante que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente equilibrado. Resta inconteste que a funo social e ambiental da propriedade no constitui um mero limite ao exerccio do direito de propriedade, como aquela restrio tradicional, por meio da qual se permite ao proprietrio, no exerccio do seu direito, fazer tudo o que no prejudique a coletividade e o meio ambiente. A nova perspectiva da funo social e ambiental deve ser rediscutida para atender ao novel paradigma do Estado de Direito Ambiental, ao permitir, portanto, que o proprietrio tenha obrigaes positivas, no exerccio do seu direito, para que a sua propriedade esteja em consonncia com o modelo do desenvolvimento sustentvel. No d dvidas de que o Estado de Direito Ambiental se torna fortalecido com a nova disposio normativa infraconstitucional, o que implica no reconhecimento do status material do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Embora o texto constitucional permanea o mesmo, remetendo apenas funo social da propriedade, tendo o meio ambiente como um dos seus elementos, necessria uma leitura sistemtica de toda a Constituio e da ordem jurdica em geral, tendo como pr-compreenso do intrprete o valor da sustentabilidade ambiental.

5.

A propriedade intelectual e o meio ambiente

Na anlise da nova feio do direito de propriedade, o meio ambiente, em suas diversificadas perspectivas, assume destacada importncia. A compreenso do alcance do conceito de meio ambiente e as implicaes que decorrem de sua proteo, condicionam o exerccio do direito de propriedade, sendo correto falar-se em funo ambiental da propriedade.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Neste contexto, sero apresentados os paralelos existentes entre o Direito da Propriedade Intelectual e o Direito Ambiental, de maneira a propor a existncia de um meio ambiente intelectual ou cultural. Impe-se, tambm, a anlise de como os instrumentos do direito ambiental podem ser utilizados para aprimorar a tutela jurdica da propriedade intelectual. Podem ser propostos paralelos entre as duas searas jurdicas, principalmente de carter epistemolgicos, o que pode levar sugesto de formas de aplicao de alguns princpios do direito ambiental para o campo da propriedade intelectual. A temtica da pesquisa aglutinada neste livro se demonstra relevante por tratar da necessidade imperativa de conciliar o desenvolvimento econmico com o equilbrio ecolgico, na invaso do pblico na esfera privada, em prol da ecologizao do direito de propriedade, inclusive referente ao meio ambiente intelectual.

6.

A estrutura e sistematizao da pesquisa

A pesquisa agora publicada na presente obra coletiva aglutina temas de ampla discusso no pas e no exterior na rea do Direito da Propriedade e Meio Ambiente. Nos diferentes artigos aqui coletados e para uma melhor sistematizao, optou-se por uma estrutura em duas partes:

A primeira parte contempla essencialmente estudos sobre o Direito de Propriedade, abordando temas como a histria dos sistemas de propriedade, conceitos, classificaes e novas formas de propriedade, em especial a propriedade intelectual. A segunda parte contempla estudos sobre o Direito de Propriedade e Meio Ambiente, isto , analisa no somente aspectos da propriedade pura, mas sua interao com questes ambientais, abordando temas como Estado de Direito Ambiental, questo tributria, funo scio-ambiental da propriedade, propriedade intelectual e ambientalismo cultural.

Os trabalhos aqui desenvolvidos tambm foram apresentados nos seminrios e congressos realizados como fruto das pesquisas do PROJETO CASADINHO do CNPq que possibilitou a unio dos esforos de professores e de pesquisadores do Programa de Ps11

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

graduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Programa de Ps-graduao em Direito da Universidade Federal do Cear UFC. Os artigos agora publicados cumprem com excelncia o aprofundamento das pesquisas devotadas aos Direito da Propriedade e Meio Ambiente, bem como provocam debates sobre seus fundamentos constitutivos e matizes ideolgicas que por certo influenciaro a evoluo do pensamento jurdico. A todos que contriburam para a realizao desta obra nosso muito obrigado. O resultado agora o leitor tem diante de si.

Marcos WachowiczProfessor do Curso de graduao e Ps-graduao em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina UFSC

Joo Luis Nogueira MatiasProfessor do Curso de graduao e Ps-graduao em Direito na Universidade Federal do Cear UFC

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

PARTE I

PROPRIEDADE13

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

O SISTEMA DE PROPRIEDADE INDGENA PR-COLONIAL

Thais Luzia Colao1

SUMRIO 1. Introduo. 2. A discusso da existncia de direito nas sociedades grafas e sem Estado. 3. Bens dos mortos. 4. Propriedade coletiva. 5. Propriedade individual. 6. Sistema de produo. 7. Consideraes Finais. 8. Referncias Bibliogrficas.

1. Introduo

Este trabalho visa relatar o sistema de propriedade indgena, dos Guarani prcoloniais. Antes da chegada dos europeus Amrica, as populaes indgenas tinham cultura e histria prprias, seguindo seu ritmo normal de desenvolvimento. Partindo-se de uma viso etnocntrica, desde a poca do descobrimento, existe consenso de que os indgenas se achavam desprovidos de f, de lei e de rei. Por essa concepo, no se admitiam qualquer manifestao religiosa, regras de convvio social e liderana entre os ndios americanos. A crena na superioridade e na onipotncia do modelo da sociedade crist-ocidental no permitia aos europeus perceber outra verdade alm da sua. Mas populaes indgenas possuam as suas regras de convvio social, o seu direito consuetudinrio, que lhes foi negado por falta de compreenso e respeito e tambm pelos interesses da dominao colonial. Ao se depararem com outra realidade scio-jurdica na Amrica, os espanhis chocaram-se e no entenderam as diferenas entre o direito espanhol de tradio romanista e o direito consuetudinrio das sociedades indgenas, fundamentado,

1

Doutora em Direito. Professora dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao em Direitos da UFSC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa de Antropologia Jurdica GPAJU. Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected].

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Parte I

basicamente, na responsabilidade coletiva, no sistema da reciprocidade e da solidariedade, priorizando os interesses coletivos sobre os individuais. Isto vai aparecer como algo antagnico, totalmente diverso da sociedade burguesa individualista ocidental.

2. A discusso da existncia de direito nas sociedades grafas e sem Estado

A existncia ou no de direito entre os povos grafos foi uma discusso que se estendeu a este sculo. O direito era sempre associado figura do Estado e da sua codificao escrita. Era muito difcil, maioria dos juristas, conceber outras formas de direito, que no aquela j consagrada pelo modelo ocidental. Essa idia da ausncia de um sistema jurdico nas sociedades indgenas perdurou at recentemente, porque o direito indgena no estava de acordo com os padres do direito europeu, por no possuir "instituies tais como so definidas nos sistemas romanistas ou do common law, por exemplo: a noo de justia, de regra de direito (rule of law), de lei imperativa de responsabilidade individual".2 Chase-Sardi chama de "etnocentrismo jurdico" a posio de vrios autores, tanto de esquerda quanto de direita, como Marx, Engels, Kelsen e Radcliffe-Brown, que vinculam o direito ao Estado, no aceitando a existncia de direito nas sociedades sem escrita por no haver organizao estatal. Afirma, ainda, que necessrio atualizar-se com as modernas investigaes antropolgicas, que chegaram concluso de que no h sociedade humana sem cultura, muito menos sem direito, ainda que no possua o chamado "Estado". O direito tem por base a cultura, constituda fundamentalmente pelos costumes herdados socialmente.3 O conceito de lei existia na lngua Guarani, representado pela palavra TEKO, que significa "ser, estado de vida, condio, estar, costume, lei, hbito".4 As idias de "lei natural", "conformidade com os maiores", ou " conformidade com o direito

costumeiro" eram representadas pelas palavras TEKO REKO, TEKO RAPE e TEKO

23

GILISSEN, op. cit., p. 36. CHASE-SARDI, Miguel. El derecho consuetudinario indgena y su bibliografa antropolgica en el Paraguay. Asuncin: Universidad Catlica, 1990. p. 49, 17-18. 4 MELI, Bartomeu S. J. El "modo de ser" Guaran en la primera documentacin jesutica. 15941639. Revista de Antropologa. So Paulo: v. 24, 1981. p. 7.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

M. Tambm possuam a noo de "conduta boa", pela palavra TEK POR, e "conduta m" pela palavra TEK VA.5 Quanto ao direito civil, a concepo tradicional da Antropologia Jurdica no admitia qualquer possibilidade de sua existncia nas sociedades sem escrita. Porm, Gilissen constatou que antes do aparecimento da escrita os povos j haviam "percorrido uma longa evoluo jurdica", possuindo grande parte das instituies civis hoje conhecidas: "o casamento, o poder paterno e ou materno sobre os filhos, a propriedade (pelo menos mobiliria), a sucesso, a doao, diversos contratos tais como o emprstimo."6 Malinowski afirma que as regras do direito civil so respeitadas no pela arbitrariedade do temor a uma represlia, mas, sim, por um "acordo da reciprocidade" em que todos sero beneficiados.7

3. Bens dos mortos

Existiam vrios costumes nas sociedades indgenas com relao ao destino dos bens deixados pelos mortos. Segundo Gilissen, falecido o chefe, normalmente os seus pertences eram enterrados com ele ou incinerados. Mas os bens que podiam ser teis comunidade para suprir suas necessidades eram preservados, "fazendo assim aparecer as primeiras formas de sucesso de bens." 8 Cludio de Cicco afirma que os bens deixados pelo pai de famlia eram repartidos entre os seus parentes, mas, a cabana seria do filho que casasse primeiro.9 Com relao aos ndios Guan, os bens do falecido so repartidos igualmente entre parentes e amigos, sem privilegiar os filhos.10 Entre os Mby-Guarani do Guair, s era permitido tocar nos objetos dos mortos aps feita a sua conferncia pelo chefe. Posteriormente, os bens eram colocados sobre a sepultura e abandonados.11

5

PERALTA, Anselmo & OSUMA, Tomas. Diccionario guarani-espanhol. Buenos Aires: Tup, 1950. p. 142.67

GILISSEN, op. cit., p. 31. MALINOWSKI, p. 61. 8 GILISSEN, op. cit., p. 44. 9 DE CICCO, op. cit. p. 6. 10 CHASE-SARDI, op. cit., p. 86.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

Tratando-se do Guarani paraguaio contemporneo, os nicos herdeiros do morto so seu cnjuge e seus filhos. Objetos de uso pessoal como roupas, adornos, a rede e documentos so enterrados junto com ele. Os Guarani da regio oriental do Paraguai no conhecem o direito de herana, pois os pertences do defunto so enterrados com ele aps serem tocados pelos seus parentes. 12 Os Ava-Katu-Ete cultivavam a instituio do hermanazzo adoptivo, na qual estabelecido estreito vnculo entre os irmos adotivos. Em caso de morte de um deles, desde que no tenha constitudo famlia, todos os bens passam a pertencer ao irmo adotivo, e no ao irmo consangneo.13

4. Propriedade coletiva

As sociedades indgenas tambm possuam um tipo de propriedade, tanto coletiva quanto individual. A propriedade coletiva a mais abrangente e se inicia com a prpria ocupao do territrio. A terra, o ar e a gua so bens considerados sagrados, aos quais o homem tem acesso para uso comum.14 Gilissen refora esta idia: O solo sagrado, divinizado; ele a sede de foras sobrenaturais. Um lao mstico, por vezes materializado por um altar, existe entre os homens e os espritos da terra, e tambm com os mortos, os antepassados enterrados neste solo.15 De acordo com as atividades econmicas desenvolvidas pelos povos indgenas (a caa, a pesca, o extrativismo e a agricultura), o grupo necessita de grandes extenses de terra, e seus limites territoriais devem ser rigorosamente respeitados por outras tribos. O territrio considerado propriedade da comunidade como um todo e jamais poder vir a ser alienado.16 O chefe divide a terra em parcelas que so distribudas s famlias apenas por um curto lapso de tempo. "No existe apropriao por prescrio aquisitiva; qualquer

11 12 13 14 15 16

Id., Ibid., p. 101. Id., Ibid., p. 144, 148. Id., Ibid., p. 93. Id., Ibid., p. 143. GILISSEN, op. cit., p. 45. DE CICCO, op. cit., p. 5.

17

Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

que seja a durao da deteno de uma parcela, ela deve sempre retornar comunidade."17 Enfim, a comunidade a proprietria da terra, e as famlias detm a posse. 18 Quando excessivos, os bens decorrentes da produo familiar eram destinados ao grupo, mas quando insuficientes para a distribuio coletiva, eram consumidos apenas pelos membros da famlia. Em momentos de crise e de escassez, a famlia carente era suprida por outras famlias.19 Dessa forma, a redistribuio "generosa", fundamentada no princpio da reciprocidade, determinava a produo de bens, tornando-se garantia familiar contra a escassez e tambm sinnimo de prestgio social. 20 Sendo assim, os indivduos que no se enquadrassem no sistema da reciprocidade eram socialmente rechaados: Uma das aes mais fortemente condenadas como anti-sociais a avareza; uma pessoa que tem, por exemplo, mais facas do que necessita e se recusa a distribuir o excedente, malvista e desprestigiada; um lder de aldeia que, sistematicamente, se recusa a ser generoso, isto , a dar do que seu quando lhe pedido, acaba por perder sua credibilidade como lder e, eventualmente, a liderana.21 O espao habitacional tambm era distribudo conforme os laos de consanginidade e afinidades entre os seus ocupantes.22Todos os integrantes eram donos da habitao em geral, mas internamente existia a delimitao de espao individual de cada um.23

5. Propriedade individual

Quanto questo da propriedade individual, as fontes confirmam a sua existncia. Basta averiguar no direito das sucesses que, quando algum falece, normalmente so enterrados com o morto os seus objetos de uso pessoal. Michaele afirma que a propriedade individual dos ndios limita-se s armas, a alguns ornamentos e rede.

17 18

1920 21 22 23

GILISSEN, op. cit., p. 45. CHASE-SARDI, op. cit., p. 144. RAMOS, op. cit., p. 42. CHASE-SARDI, op. cit., p. 169. RAMOS, op. cit., p. 39. Id., Ibid., p. 37. DE CICCO, op. cit., p. 6.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

O restante, como a habitao, os utenslios domsticos e de trabalho, assim como os alimentos so bens de famlia, pertencentes ao cl.24 Referindo-se falta de ambio dos indgenas de acumular riquezas em metais preciosos, Hans Staden atesta: "Seu tesouro so penas de pssaros. Quem as tem em grande quantidade rico, e quem tem cristais para os lbios e faces, dos mais ricos." 25 Susnik argumenta que os bens tangveis so produtos manufaturados, pertencendo de direito a quem os produziu, mas que se trata de uma propriedade limitada porque est sujeita, freqentemente, s regras de livre prestao e do uso coletivo. So eles: os adornos plumrios, principalmente se associados a alguma experincia visionria; as canoas produzidas cooperativamente; as canoas pesqueiras que so de propriedade da famlia; as canoas guerreiras que pertecem aos guerreiros. No existindo, portanto, bens mveis excedentes, predomina o utilitarismo imediato. 26 No entanto, segundo a mesma autora, os bens intangveis ou imateriais so exclusivos de seus possuidores: os cantos revelados pelos sonhos e as frmulas mgicas so de propriedade individual, mas podem ser transferidos em vida pelo seu proprietrio; os cls so donos de seus cantos particulares transmitidos pelos seus ancestrais; as tradies mitolgicas ensinadas durante os ritos de iniciao pertencem a tribo em geral; as associaes responsveis pelos cultos podem ter direito de posse sobre as sepulturas ; as lendas referentes a membros de uma famlia lhes pertencem; os xams so donos dos seus conhecimentos mgicos; os instrumentos musicais considerados sagrados e as mscaras rituais so propriedades individuais de seus portadores.27 Cabe lembrar que, apesar da existncia da propriedade individual dos bens tangveis, na maioria das vezes eles no eram objetos raros. Pela abundncia de matriaprima e simplicidade de produo, eram de fcil acesso a todos. Alm do que, a simples manifestao do desejo de obter a coisa era suficiente para que a recebesse como doao, firmando um compromisso de retribu-la em outra oportunidade. 28

24 25

MICHAELE, op. cit., p. 10. STADEN, op. cit., p. 172. SUSNIK, Introduccon a la antropologa social. (Ambito americano), p. 89. Id., Ibid., p. 90. MARTINS, op. cit., p. 279.

26 27 28

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

Moiss Bertoni ratifica a situao da rotatividade da posse dos bens, demonstrando que no se reconhece a propriedade, mas se respeita a posse pessoal dos objetos num determinado momento, pois a pessoa que detm a coisa no se chama seu proprietrio, nem seu dono, ou sequer seu possuidor, s se chama sua pessoa, ou seja, a pessoa que, naquele momento, detm a coisa.29

6. Sistema de produo

A diviso do trabalho nas sociedades indgenas era feita, basicamente, pelo sexo e pela idade; cada qual tinha uma parcela de colaborao, sabendo, antecipadamente, dos benefcios que reverteriam para si e para o grupo.30 Toda produo tinha uma motivao fundamental que era "a possibilidade da redistribuio,que envolve um direito e um dever". 31 Tambm importante frisar que muitos autores, como Martins, consideram incorreta a qualificao do trabalho e da economia Guarani como "mera economia de subsistncia", pois, apesar do pouco tempo dedicado ao trabalho, a sua produo ultrapassava o mnimo necessrio para garantir a sobrevivncia do grupo. certo que no existia um excedente econmico capaz de acumular grandes riquezas, mas existia um excedente que permitia "a hospitalidade generosa, a ajuda solidria e a organizao de grandes festas."32

7. Consideraes Finais

Os Guarani pr-coloniais tambm possuam um tipo de propriedade coletiva e individual. A propriedade coletiva era a mais importante e a mais abrangente, iniciando-se com a ocupao do territrio. A terra era considerada um bem sagrado, indispensvel para a sobrevivncia do grupo. Os limites de cada tribo deveriam ser rigorosamente respeitados por outras tribos. O territrio pertencia a toda a comunidade e jamais poderia ser alienado. O tipo de atividade econmica praticada pelos indgenas (a caa, a pesca, o extrativismo e a agricultura) exigia grandes extenses de terra. O valor econmico da terra29 30

BERTONI, op. cit., p. 223.

Conforme as caractersticas scio-econmicas das sociedades indgenas, as relaes de trabalho foram inseridas no contexto do direito civil, no cabendo mencion-las no direito do trabalho. 31 MARTINS, op. cit., p. 148. 32 MARTINS, op. cit., p. 246.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

estava relacionado a sua fertilidade. O chefe dividia a terra em parcelas que eram distribudas s famlias por tempo determinado, depois retornavam comunidade, donde se conclui que as famlias apenas usufruam temporariamente da posse da terra, mas a comunidade que era a sua proprietria. Os bens decorrentes da produo familiar Guarani eram distribudos ao grupo quando excedentes, e, em momentos de crise, a famlia carente que antes houvesse doado seus bens era suprida por outras famlias que tivessem excesso de produo. O princpio da reciprocidade era ativado com a redistribuio generosa dos bens. O indivduo avarento, que no se enquadrasse no sistema da reciprocidade, negando-se a distribuir o excedente, era rechaado socialmente. A habitao familiar indgena pertencia aos membros da grande famlia, agrupados por laos de consanginidade e afinidade. Todos eram proprietrios da residncia de um modo geral, mas, no seu interior, existia a demarcao do espao de cada um dos seus ocupantes. As construes pertenciam grande famlia at o momento em que eram abandonadas em conseqncia de migrao do grupo, ou pela sua substituio por outra casa devido ao seu estado precrio. Apesar de tnue, existia na sociedade Guarani a noo de posse individual. Os objetos de uso pessoal, como as armas, os ornamentos e a rede eram de propriedade individual. Os utenslios domsticos e de trabalho e os alimentos eram bens de famlia, pertencentes ao cl. Pode-se afirmar ainda que os bens intangveis ou imateriais eram exclusivos de seus possudores, mas os bens tangveis tinham a propriedade limitada porque estavam sujeitos s regras da livre prestao e do uso coletivo. Na maioria das vezes, os bens tangveis no eram coisas raras, podendo ser doados a qualquer um que os desejasse, sob o compromisso de retribu-lo quando necessrio, caracterizando a rotatividade na posse dos bens. Na verdade no se reconhecia a propriedade, mas, sim, a posse pessoal de bens num determinado momento. Basicamente existiram duas categorias de bens: os bens de uso exclusivamente coletivo, o Tupamba; e os bens de uso familiar ou individual, o Abamba. Nas sociedades indgenas no havia distino entre tempo produtivo e tempo recreativo, existindo uma contnua alternncia entre as atividades laborais e as atividades dedicadas ao descanso, ao lazer, sociabilidade e religio. Na sociedade Guarani normalmente no havia nenhuma condenao ao cio, pois grande parte do tempo era utilizado para descanso e festividades.21

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Parte I

Existia o costume indgena do mutiro, que era a realizao de trabalhos coletivos em atividades como a pesca, a colheita e a construo de casas, reforando os vnculos de amizade e de parentesco. Mesmo dedicando-se pouco tempo, e no sendo sistematizado e disciplinado, o trabalho indgena resultava numa produo suficiente para satisfazer s necessidades do grupo, possibilitando, ainda, a promoo de grandes festas, a ajuda solidria e a hospitalidade generosa. A baixa produtividade atendia s limitadas necessidades da economia tribal. O trabalho nas sociedades indgenas era dividido basicamente pelo sexo e pela idade. O trabalho feminino era indispensvel para a sobrevivncia do grupo. As mulheres desenvolviam trabalhos domsticos, artesanais (fiao e olaria), agrcolas e de transporte de carga. Os homens praticavam a caa, a pesca, a guerra e construam casas, embarcaes e armas.

8. Referncias Bibliogrficas

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.

O

direito

nas

sociedades

primitivas.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

A PROPRIEDADE NO BRASIL COLNIA, IMPRIO E NO CDIGO CIVIL DE 1916

Francisco Amaral1

SUMRIO Introduo. A propriedade em perspectiva histrica e crtica. 1. A experincia jurdica romana. 2. A propriedade no Brasil Colnia. 3. A propriedade no Brasil Imprio. 4. O Cdigo Civil de 1916. 5. Concluses.

Introduo. A propriedade em perspectiva histrica e crtica.

Os programas de ps-graduao das Faculdades de Direito da Universidade Federal do Cear e da Universidade Federal de Santa Catarina renem seus professores, alunos e docentes externos especialmente convidados, para uma reflexo sobre a propriedade no Brasil Colnia, no Imprio e no Cdigo Civil de 1916, e sua relao com o meio ambiente. O tema, por sua amplitude, implica uma perspectiva histrica e crtica. Histrica, porque se protrai ao longo de quase meio milnio, compreendendo os perodos colonial e imperial, e crtica porque, servindo a histria do direito de conscincia crtica do direito positivo2, permite conhecer as mudanas ocorridas, suas causas e seus efeitos, assim como o sentido e a funo das diversas sucederam na histria do nosso pas. A iniciativa conveniente e oportuna, considerando-se as mudanas que a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 e o Cdigo Civil de 2002 introduziram na ordem jurdica brasileira, afetando no s a estrutura da propriedade como tambm a sua funo, permitindo vislumbrar a passagem de uma concepo espcies de propriedade que se

1

Doutor honoris causa das Universidades de Coimbra e Catlica Portuguesa. Professor Titular de Direito Civil e Romano da Universidade Federal do Rio de Janeiro. e-mail: [email protected]. 2 Paulo Grossi. Mitologie giuridiche della modernit, Milano, Giuffr Editore, 2001, p. 3 e 38

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

Parte I

tradicionalmente dogmtica e estrutural, para uma de natureza axiolgica e funcional, mais coerente com o pensamento jurdico contemporneo. A propriedade exprime juridicamente a relao pessoa-coisa, na qual se reconhece um especial poder sobre os bens, transferveis por meio do contrato e protegidos, no seu valor, pelas normas da responsabilidade civil. Propriedade, contrato e responsabilidade civil so, assim, institutos bsicos do direito privado. Em torno deles formou-se a cincia, a legislao e a jurisprudncia do direito civil3, que tutela tambm, o meio ambiente, matria de importncia crescente na sociedade contempornea, a sociedade da cincia, da tecnologia, do risco. O reconhecimento da centralidade da propriedade, mobiliria e imobiliria, no impede, porm, considerar-se a pessoa humana o valor fundamental da ordem jurdica brasileira, uma das notas do direito contemporneo, que v a pessoa humana in concreto e situada, no mais a figura abstrata e geral do sujeito de direito. Pessoa humana e justia como valores prioritrios e fundamentais, contrariamente posio hegemnica da segurana e da propriedade, da poca da codificao. Aspectos a relevar, tambm, so as mudanas que o legislador introduziu na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 e o Cdigo Civil de 2002. Mudanas de natureza estrutural, com a insero de princpios, clusulas gerais e conceitos indeterminados, que abrem o direito para os valores tico-polticos e para o mundo da realidade ftica; mudanas de natureza funcional, com a passagem da perspectiva estrutural do normativismo-legalista da modernidade para a funcionalizao dos institutos jurdicos, principalmente a propriedade e o contrato, e por fim, mudanas de natureza metodolgica, com a possibilidade de um novo pensamento jurdico, problemtico, axiolgico e dialtico, a substituir o pensamento sistemtico, normativista, teortico e lgico-dedutivo da modernidade. Essas inovaes permitem o retorno da razo prtica ao direito civil brasileiro, e afetam, como no podia deixar de ser, a realizao dos institutos bsicos do direito civil, trazendo a propriedade novamente ribalta da discusso jurdica4.

3 4

Guido Alpa. Che cos il diritto privato?, Roma-Bari, Editori Laterza, 2007, p. 81. Stefano Rodot. Il terribile diritto. Studi sulla propriet privata, Bolonha, Il Mulino, 1981, p.17.

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Parte I

A propriedade interessa tanto ao direito privado quanto ao direito pblico, o que demonstra a unidade essencial do direito5. Como direito subjetivo e como instituto jurdico, pertence ao direito civil, que o disciplina na sua existncia e eficcia6, e ao direito constitucional, que o considera direito fundamental 7, princpio da ordem econmica e financeira8 e dotado de funo social9. Sua importncia cresce na medida em que aumenta a complexidade da sociedade contempornea. Novos problemas exigem novas estruturas jurdicas de resposta. Presente em todo o processo de formao histrica do direito ocidental, com as caractersticas prprias de cada fase, sua definio foi sempre problemtica, tendo a doutrina jurdica e nos cdigos civis sempre optados pela indicao do seu contedo, no obstante defini-la como um conceito unitrio, do que exemplo o Cdigo Civil francs. No Cdigo Civil brasileiro de 1916, assim como no de 2002, sua descrio analtica, indicando-se as diversas faculdades jurdicas que compem o direito subjetivo de propriedade, isto , o jus utendi (direito de usar), o ius fruendi (direito de fruir, gozar, de perceber seus frutos) e o ius abutendi (direito de dispor). A par desses poderes, sempre se reconheceu que o proprietrio tambm tem deveres, pelo que o direito de propriedade mais se apresenta como uma situao jurdica complexa, compreensiva de poderes e deveres, cujo exerccio pode afetar terceiros, a implicar o reconhecimento de sua funo social. Como instituto jurdico, a propriedade um dos que mais diretamente refletem as mudanas nas condies econmicas e sociais, sendo, por isso, objeto de particular ateno. Interessa aos juristas que a disciplinam, aos historiadores que a estudam na sua evoluo, aos filsofos que apontam os seus valores fundantes, aos economistas que avaliam a sua importncia nos sistemas de produo, aos socilogos que a contemplam nas diversas funes. De tudo isso decorre que a propriedade no tenha um s significado. Tem-se a propriedade-instituto, a propriedade-direito subjetivo, a propriedade sob o ponto de vista econmico, poltico, sociolgico, a propriedade

5

Jos Luis de los Mozos. El derecho de propriedade: crisis y retorno a la tradicion jurdica, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1993, XIII. 6 Cdigo Civil, arts. 1.228 a 1.368. 7 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, art. 5, XXII. 8 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, art. 170, II. 9 Constituio da Repblica Federativa do Brasil, art. 5, XXIII e Cdigo Civil, art. 1.228, 1.

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Parte I

constitucional, a propriedade de direito civil10. Identificam-se ainda, na sua evoluo, outras espcies, como a propriedade coletiva, familiar, dos primrdios, seja a individualista do direito romano clssico, seja a do Cdigo Civil francs de 1804, ambos de grande influncia no direito brasileiro; a propriedade dividida, do feudalismo, em que se distinguia o domnio direto do domnio til; a propriedade comunitria, dos cls, das tribos, da aldeia, do direito germnico, no caso de propriedade fundiria; a propriedade coletivista, dos Estados totalitrios. Essas formas de sociedade no se sucederam, necessariamente, no tempo, elas podem ter coexistido11, conforme as condies polticas e econmicas de cada sociedade. A poca moderna considerava a propriedade um poder pleno e exclusivo do titular e um princpio da organizao poltica e econmica da sociedade liberal. Defendendo uma concepo ideolgica, a Revoluo Francesa incluiu-a na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789 (art. 17) como direito inviolvel e sagrado. O Cdigo de Napoleo12, que consagrou o individualismo liberal13, defendeu-a como um direito unitrio, no sentido de haver um s tipo de propriedade, embora passvel de contedos diversos, absoluto, por deixar ao seu titular a deciso sobre a convenincia e modo de seu aproveitamento, perptuo, por no se extinguir pelo no uso14, exclusivo, porque com eficcia erga omnes, tendo o proprietrio direito de impedir qualquer invaso na esfera do seu poder, ilimitado, no sentido da indeterminao do exerccio das faculdades que o compem, e por isso mesmo elstica, porque suscetvel de contrao e distenso, conforme destituda ou no, de qualquer das suas faculdades. Desse modo, a propriedade passou a considerar-se projeo da personalidade individual, protegida como direito e como atributo pessoal 15. No sculo XX, a grande diversidade dos bens e, consequentemente, dos seus regimes, levou a um declnio da noo unitria, desenvolvendo-se a idia de um instituto plural. No a propriedade, mas as propriedades (urbana, rural, imobiliria, intelectual, industrial,

10

Stefano Rodot. Il terribile diritto. Studi sulla propriet privata, Bolonha, Il Mulino, 1981, p.163, nota

7.11

John Gilissen. Introduo histrica ao direito, 2 edio, traduo de A.M Hespanha e L.M. Macasta Malheiros, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1995, p. 636. 12 Cdigo Civil francs, art. 544. 13 Jacques GHESTIN e Gilles GOUBEAUX. Trait de droit civil. Introduction gnrale, 4e dition, Paris, LGDJ, 1994, p. 104. 14 Vicent L. Monts. La propriedade privada en el sistema del derecho civil contemporaneo, Madrid, p. 75. 15 Francisco Amaral. Direito Civil. Introduo, 7 edio, Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p.180.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente

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tecnolgica etc), objeto de leis especiais. Nessa especializao insere-se a temtica do meio ambiente16, considerado patrimnio pblico que abrange a terra, com seus recursos minerais, a atmosfera, as guas interiores, superficiais e subterrneas, os esturios, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora17. Aspecto a destacar, tambm, a relatividade do direito e a variabilidade do contedo da nova propriedade, com o predomnio da idia do social sobre a do individual.

1. A experincia jurdica romana.

O conceito, a natureza e a importncia da propriedade na sociedade contempornea e no direito ocidental, resultam de um longo processo evolutivo, com perodos distintos, nos quais a propriedade apresenta diferenas especficas. O conhecimento dessa evoluo leva a uma perspectiva de natureza crtica, no sentido de permitir verificar as mudanas ocorridas, suas causas e seus fatores de transformao 18, assim como o sentido e a funo das diversas sucederam na histria do nosso pas. Parta-se do pressuposto de que o direito faz parte da cultura brasileira, e de que esta se formou e desenvolveu a partir da matriz ocidental europia, cuja influncia ainda hoje evidente. Essa matriz , assim, a primeira referncia a considerar em um breve percurso histrico. E nesse repensar a nossa tradio jurdica, impe-se comear pelo direito romano, no s no que diz respeito dogmtica jurdica mas tambm ao processo metodolgico de realizao da justia pois, diversamente do que defendia a racionalidade jurdica moderna, ainda hoje dominante, no sentido de ser o direito uma cincia teortica, com um raciocnio lgico-dedutivo, o direito romano era uma cincia prtica, que se valia de um raciocnio dialtico para resolver casos concretos. Tomemos a nossa primeira codificao civil. Se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Cdigo Civil, verificaremos que mais de quatro quintos deles, ou sejam, 1.445, so produto de cultura romana, ou espcies de propriedade que se

16 17

Lei n 6.938, de 31 de agosto de 1981. Francisco Amaral. Esprito e tcnicas romanos no direito ambiental brasileiro, in Revista Brasileira de Direito Comparado, nmero 14, Rio de Janeiro, 1993, p. 27 e sg. 18 Paulo Grossi, p. 3 e 38.

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diretamente aprendidos nas fontes da organizao justiniania, ou indiretamente das legislaes que ali foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, a Alemanha, a Frana e a Itlia, que fizeram do Direito Romano o manancial mais largo e mais profundo para mitigar sua sede de saber.19 No que respeita ao instituto da propriedade, nas fontes romanas no se encontra uma definio sinttica, quer pela averso dos juristas romanos abstrao conceitual, quer pela dificuldade de um conceito nico que pudesse abranger as espcies j existentes. Reconhecia-se, porm, a existncia de situaes de fato que permitiam considerar a propriedade um poder sobre coisas corpreas, composto de vrias (hoje) faculdades, como as de usar, fruir e dispor (ius utendi, fruendi, abutendi), poder esse protegido pela ao reivindicatria (rei vindicatio) e limitado pelo interesse pblico, por motivos religiosos e morais, e por interesses privados20. O direito de propriedade no aparece nas fontes romanas como um poder absoluto, ilimitado, exclusivo ou perptuo. A noo romana de propriedade era flexvel, o que lhe permitiu ser a base de diferentes concepes que se desenvolveram tanto na tradio romanista, a partir do sculo XII, quanto no direito feudal, no direito natural moderno e nos direitos codificados21. Inicialmente dominium, depois proprietas, esse termo exprimia uma situao jurdica subjetiva em que algum exercia um poder geral sobre uma coisa material. Sob o ponto de vista poltico, reduzia-se propriedade da terra que, durante sculos, tem sido quase o nico bem de produo e a base de todo o poder22. Sujeitos ativos do dominium eram, exclusivamente, os cidados romanos e os estrangeiros (peregrini), aos quais fosse reconhecido o direito de comercializar (ius commercii). Sujeitos passivos, no sentido de que deviam respeitar esse direito, eram todas as pessoas que viviam no espao romano. De qualquer modo, reconhece-se que aos juristas romanos se deve a construo dogmtica do direito de propriedade. Quanto relao propriedade-meio ambiente, reconhece-se hoje que o direito romano j se constitua em um primeiro estgio, ou ncleo normativo, em matria de dano ambiental, particularmente no que se referia contaminao das guas e aos danos

Abelardo Lobo. Curso de Direito Romano, Braslia, Edies do Senado Federal, Braslia, 2006, p. 17. A. Santos Justo. Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 221. 21 Peter Stein. Le droit romain et l Europe. Essai d interprtation historique, Bruxelles, Bruylant, 2003, p. XXIV. 22 Jean-Philippe Lvy e Andre Castaldo. Histoire du droit civil, Paris, Dalloz, 2002, p 289.20

19

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flora. Contavam com uma regulao pioneira23, com disposies especficas sobre o problema da contaminao das guas24 e de cisternas25, despejos industriais, instalao de lavadouros26, proteo de aquedutos, rios, mares, instalaes hidrulicas, obras de limpeza e depurao das fontes e das cloacas visando garantir a pureza das guas canalizadas27, proibio do corte ilcito de rvores, assim como de outros danos flora28, alm de disposies gerais sobre a consequente responsabilidade civil29. Alm desses preceitos, trs institutos jurdicos permitiam ainda a limitao dos direitos individuais por interesses sociais, nos quais j se inseriam preocupaes ecolgicas. Eram as relaes de vizinhana, o abuso de direito e a responsabilidade civil objetiva. Quanto s relaes de vizinhana, o direito romano limitava o direito de propriedade por meio de princpios reguladores das relaes entre imveis de proprietrios diversos30, do que eram exemplo a actio aquae pluviae arcendae, ao concedida ao proprietrio de um terreno para reclamar do vizinho a demolio de uma obra que altere o curso normal das guas. No direito clssico existia o princpio de que as guas deviam seguir o seu curso normal, sem alterao31, e a actio arborum furtim caesarum , ao j prevista na Lei das XII Tbuas contra o corte furtivo de rvores na propriedade de outrem32. Tema controvertido eram os atos ad emulationem, atos praticados no exerccio do prprio direito com inteno de prejudicar terceiros33, como os das emisses (immissio), atos de ingerncia na esfera jurdica de outrem, causando prejuzo, por exemplo, a emisso de fumaa, odor, guas etc. Desde que no excedessem o limite normal e ordinrio, deviam ser tolerados pelo proprietrio que as sofresse. Se ultrapassassem os limites estabelecidos, podia o prejudicado usar o interdito uti

23

Jos Luiz Zamora Manzano. Precedentes romanos sobre el Derecho Ambiental. La contaminacin de aguas, canalizacin de aguas, canalizacin de las aguas fecales y la tala ilcita forestal, Madrid, EDISOFER, 2003, p.104. 24 D. 47, 11, 1, 1. 25 D. 43, 24, 11, pr. 26 D. 39, 3, 3, pr. 27 D.43.22.16; D. 43,22,1,10; D.43.23,1 28 D.47, 7, 3 29 C. 3, 35,1 30 Pietro Bonfante. Corso di diritto romano, Milano, Giuffr Editore, 1966, p. 321. 31 D. 39, 3. 32 D. 47,7. 33 D. 50, 17, 55.

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possidetis, e se o dono do prdio causador da emisso alegasse o direito a produzi-la, uma ao negatoria34. Quanto ao abuso de direito, era proibido por meio de legislao casustica e especfica35, desconhecendo-se uma teoria do abuso de direito36. Reconhecia-se que nullus videtur dolo facere qui suo iure utitur (no se considera que obra com dolo quem usa de seu direito)37 mas tambm se condenava o abuso no exerccio do prprio direito, no como princpio geral mas como interveno pretoriana destinada a corrigir o exerccio dos direitos subjetivos, sempre que seu exerccio se tornasse abusivo38. Pode afirmar-se, de modo geral, que o direito romano no conhecia limites ao exerccio do direito de propriedade, salvo aqueles impostos por absoluta e imprescindvel necessidade da vida econmica da sociedade. Nesse caso, predominava o sentido da moralidade e da conscincia popular, acentuando-se o esprito do social sobre o particular. Pode-se dizer, portanto, com preciso, que em Roma os limites ao exerccio dos direitos estavam na conscincia social, nos costumes, na moral do povo romano, onde se criavam idias fundamentais do ordenamento jurdico, como a aequitas e a bona fides. Em matria de responsabilidade civil, tema de ricas sugestes em favor da socialidade do direito romano, as idias sociais e objetivas superavam o elemento espiritual na fixao da responsabilidade. O predomnio da teoria do risco indicava que, para o direito clssico, o fundamento da obrigao de indenizar no decorria da culpa do agente, mas de um princpio de eqidade e de justia comutativa, segundo o qual todo aquele que, na defesa dos seus interesses, prejudicasse o direito de outrem, ainda que de forma autorizada, devia indenizar o dano causado. Esses princpios presidem, ainda hoje, a responsabilidade pelo dano ambiental. Algumas das disposies romanas citadas vieram a integrar-se no direito ibrico, por meio do direito visigtico, encontrando-se vestgios no Fuero Juzgo, livro VIII, ttulo 3, leis 1 e 5, na Lei das Siete Partidas39, em matria de limpeza e recomposio de valas, canais e limpeza das cloacas40. Na Partida VII, lei XVIII, dispunha-se sobre o

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Ulpiano, D. 8, 5 ,8, 5, 7. D. 24, 1, 63; D. 30, 1, 43, 1. 36 Francesco De Martino. Diritto e societ nell antica Roma, Roma, Editori Riuniti, 1979, p. 291. 37 D. 50, 17,55. 38 D. 8, 5, 8, 5. 39 Partida III, ttulo XXXII, Lei VII. 40 D. 43, 21, 1.

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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente corte ilcito de rvores, de modo semelhante ao vigente no direito romano41 42.

Parte I

Passando-se era da codificao, pode afirmar-se que a trilogia de Gaio, pessoas, coisas e aes, estava ainda na base da matria privada que se sistematizou nos cdigos civis da Europa continental43. Nesses cdigos, a propriedade ocupa um papel central, que varia conforme as suas relaes com outros institutos da esfera civil. Temos assim que, no Cdigo de Napoleo, de grande influncia no Cdigo Bevilqua, o eixo principal o que liga a propriedade ao contrato, pelo que a grande contribuio desse cdigo no foi a de liberar a propriedade de seus impedimentos feudais, permitindo-lhe o acesso da burguesia, mas a sua insero no processo de produo e circulao dos bens por meio de outro notvel instituto, o contrato44, expresso da soberania individual na atividade econmica das pessoas. Propriedade, contrato e responsabilidade civil so, assim, reconhecidamente, institutos fundamentais do direito civil que se relacionam diretamente com o ambiente, bem jurdico que, por sua importncia, tem hoje uma posio central, permitindo reconhecer-se no s um direito ao ambiente como tambm um direito do ambiente45.

2. A propriedade no Brasil Colnia.

O regime das sesmarias marcou a propriedade no Brasil Colnia, desde sua implantao, em 1530, at ao advento da Resoluo de 17 de junho de 1822, que suspendeu a concesso de novas sesmarias e a confirmao das j existentes. Pela diviso do Tratado de Tordesilhas, as terras brasileiras pertenciam ao Estado portugus (terras da Coroa), mais propriamente ao Reino de Portugal, cabendo Ordem de Cristo a jurisdio espiritual46. Depois tambm ao Rei (reguengos) e a particulares (herdamentos), que as doavam, no propriamente a terra, mas o seu usufruto, o benefcio47. A posse e a propriedade da terra resultavam, assim, de simples

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D.47, 7, 7, 2 Jos Luis Zamora Manzano, p. 104. 43 Umberto Vincenti. Diritto senza identit. La crisi delle categorie guiridicha tradizionali, Bari, Laterza, 2007, p. XIV. 44 Stefano Rodot. Il diritto privato nella societ moderna, Bolonha, Il Mulino, 1971, p. 313. 45 Francisco Amaral. Esprito e tcnicas romanos no direito ambiental brasileiro, in Revista Brasileira de Direito Comparado, nmero 14, Rio de Janeiro, 1993, p. 27 e sg. 46 Jos da Costa Porto. Formao territorial do Brasil, Braslia, Fundao Petrnio Portella, 1982, p.26. 47 Vicente Cavalcanti Cysneiros. Propriedade territorial no Brasil, in Enciclopdia Saraiva de Direito, n 62, So Paulo, Saraiva, 1977, p. 233.

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concesso de terras pblicas, na forma de sesmaria, sem restries de maior importncia que no fosse a obrigao do sesmeiro de cultiv-la e de nela fixar a sua morada habitual. Cumpridas essas exigncias, adquiria-se o domnio efetivo sobre as terras concedidas. Portugal procurava, com esse regime, trasladar, para as nascentes colnias, as caractersticas que nortearam as concesses predominantes na sua idade mdia, e j adotadas nos Aores, Cabo Verde e ilha da Madeira, com a finalidade de enfrentar o problema da falta de alimentos, garantindo o abastecimento das populaes locais. No havia essa necessidade, porm, na nova colnia, onde o objetivo era, predominantemente, o povoamento e a grande plantao. Concediam-se as terras, originariamente pblicas, visando-se ocupar o solo com a lavoura, o plantio da cana de acar, a criao de gado. E distribuam-se sem grande rigor porque havia pouca gente para ocup-la48. A primeira medida do rei D. Manuel, o monarca dos descobrimentos, foi dar as terras, em arrendamento para a explorao do pau-brasil. Deveu-se, porm, a D. Joo III, que instituiu em 1530 o regime das capitanias ou donatarias, a obra sistemtica de colonizao. Constituam-se as capitanias por uma carta de doao, outorgando ao donatrio uma certa extenso de terra, com a respectiva jurisdio civil e criminal. Acompanhava essa carta um foral, contrato de aforamento, pelo qual os colonos que recebessem terras tornavam-se tributrios perptuos da Coroa. Esta reservava para si o monoplio do pau-brasil e das especiarias, pertencendo-lhe ainda o quinto dos metais e pedras preciosas que se viessem a descobrir, e o dzimo de todos os tributos lanados pelos donatrios, ficando livre para os donatrios e colonos, o trfico dos demais produtos, especialmente o acar, o algodo e o fumo. Segundo as Ordenaes Filipinas49, sesmarias eram as dadas de terras, casas ou pardieiros que foram ou so de alguns senhorios da terra e que j em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o no so. O termo seria derivado de sesmo ou sesma, a sexta parte de alguma coisa50. De origem romana, instituram-se em Portugal pelo rei D. Fernando, por meio da lei de 26 de junho de 1.375, a chamada Lei das

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Costa Porto. Estudo sobre o sistema sesmarial, Recife, Editora Universitria, 1965, p.81. Livro 4, Ttulo XLIII. 50 Paulo Carneiro Maia. Sesmarias I, in Enciclopdia Saraiva de Direito, n 68, So Paulo, Saraiva, 1977, p. 478.

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Sesmarias, posteriormente recolhida pelas Ordenaes. As terras assim chamadas eram concedidas por meio de cartas de sesmarias, ttulos distribudos inicialmente sem rigor, pois havia pouca gente para ocupar a terra, desenvolvendo-se, assim, uma poltica latifundiria com doao de terras que outorgavam direitos de uso e fruio, no de propriedade. Pode-se, portanto, afirmar, que o regime da propriedade fundiria no Brasil tem origem no perodo colonial, nas chamadas sesmarias, o que levou instituio da grande propriedade rural, o latifndio, destinada monocultura, sustentada pelo trabalho escravo. O poder de conceder sesmarias foi extinto pela lei n 601, de 18 de setembro de 1850, a chamada lei de terras.

3. A propriedade no Brasil Imprio.

Dois fatos importantes marcaram a histria da propriedade no Brasil Imprio: a extino do regime das sesmarias, e a regularizao da propriedade fundiria com o advento da lei n 601, de 1850. A Resoluo de 17 de junho de 1822 do Prncipe Regente D. Pedro de Bragana suspendeu a concesso de novas sesmarias e a confirmao das j existentes, por sua inadequao aos objetivos visados. O regime das sesmarias no atingira os resultados pretendidos, quer pelo seu abandono pelos respectivos titulares, quer pelo inadimplemento destes no tocante s suas obrigaes51. Verificava-se, assim, que a distribuio de terras pela Coroa produzira resultado diverso do alcanado em Portugal, onde essa prtica visava garantir o abastecimento da populao, que no Brasil era ainda incipiente, o objetivo era o povoamento. Alm disso, a concesso de terras levara a uma verdadeira aristocratizao da propriedade. As elites urbanas, vivendo nas capitais e conhecendo os meandros da burocracia oficial, obtinham o domnio legal das terras que pediam, restando aos habitantes do interior a possibilidade, apenas, de ocupar o solo, sem outra garantia que no a decorrente da posse, simples situao de fato. Desenvolveu-se, assim, o regime de posses, um verdadeiro costume jurdico52, segundo o qual a posse da terra, com cultura efetiva e morada habitual do possuidor, eram

51 52

Vicente Cavalcanti Cysneiros, p. 241. Ruy Cirne Lima. Pequena histria territorial do Brasil, So Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, 1991, p. 57.

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requisitos necessrios e suficientes para a aquisio da propriedade, como ainda hoje ocorre. Enquanto que no regime das sesmarias o beneficirio recebia o ttulo e a terra para depois cultiv-la, no regime da posse, o posseiro cultivava primeiro a terra para depois obter a sua respectiva titularidade. A necessidade de regularizar-se o regime da posse, exercida sobre terras devolutas, assim chamadas as terras suscetveis de serem devolvidas ao patrimnio pblico, por no se acharem no domnio privado, ou por no terem sido dadas por sesmarias ou outras concesses governamentais, ou ainda por no se acharem ocupadas por meio de posses, levou promulgao da lei n. 601, de 1850, a Lei das Terras do Imprio, tambm conhecida como o estatuto das terras devolutas. Disciplinava as glebas no utilizadas, sem titularidade legtima de posse ou de propriedade, devolvidas nao pelo desuso dos particulares e as terras ainda inexploradas53. A denominao terras devolutas estava no artigo 3 dessa lei, que dispunha: So terras devolutas: 1as que no se acharem aplicadas a algum uso pblico nacional, provincial ou municipal; 2- as que no se acharem no domnio particular por qualquer ttulo legtimo, nem forem havidas por sesmaria ou outras concesses do Governo Geral ou Provincial, no incursas em comisso por falta do cumprimento das condies de medio, confirmao e cultura; 3- as que no se acharem dadas por sesmarias, ou outras concesses do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei; 4- as que no se acharem ocupadas por posses, que, apesar de no se fundarem em ttulo legal, forem legitimadas por esta lei. A lei n 601, de 1850, teve mritos. Entre outros, valorizou a posse legtima da terra que, efetivamente cultivada, levava ao reconhecimento da propriedade dos posseiros sobre os terrenos ocupados. E foi precursor do processo discriminatrio de terras no Brasil, ensejando a devoluo das terras devolutas ao patrimnio nacional.

4. A propriedade no Cdigo Civil de 1916.

Na elaborao do Cdigo Civil brasileiro de 1916 imperou, como seria de esperar, uma viso europia do mundo e do direito, que se condicionou, por sua vez, pelas circunstncias fsicas e tnicas do novo domnio colonial. Clvis Bevilqua pde,

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Messias Junqueira. O instituto brasileiro das terras devolutas, So Paulo, LAEL, 1976, p. 78

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assim, afirmar, que o Cdigo Civil era expresso da alma brasileira, e, ao mesmo tempo, rebento da cultura jurdica dos romanos e lusos, e fruto da poca 54. Tinha, na sua formao, preceitos de direito romano, germnico, cannico e medieval, sistematizados sob a influncia espiritual do direito francs e da tcnica do cdigo alemo. Refletia as concees filosficas dos grupos dominantes, detentores do poder poltico e social da poca, por sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econmicos, polticos e sociais. Do ponto de vista ideolgico, consagrava os princpios do liberalismo, defendido por uma classe mdia conservadora que absorvia contradies j existentes entre a burguesia mercantil, defensora da mais ampla liberdade de ao, e a burguesia agrria, receosa dos efeitos desse liberalismo55. Em matria de propriedade, adotou os princpios do individualismo, por achar o legislador, necessrio vincular o homem ao solo56, assegurando ampla liberdade contratual, na forma mais pura do liberalismo econmico. Refletia, assim, o ideal de justia de uma classe dirigente europia por origem e formao, constituindo um direito afastado das condies de vida do interior do pas, traduzindo mais as aspiraes civilizadoras dessa elite, embora progressista, do que os sentimentos e necessidades da grande massa da populao, em condies de completo atraso57. Tecnicamente um dos mais perfeitos, quer na sua estrutura dogmtica, quer na sua redao, escorreita, segura, precisa, o Cdigo Civil brasileiro de 1916 era um diploma conciso, contendo apenas 1.807 artigos, nmero bem inferior ao do francs (2.281), ao do alemo (2.383), ao do italiano (2.969), ao do portugus (2.334). No instituto da propriedade compreendia vrias espcies. Quanto aos titulares, distinguia-se a propriedade pblica, que tinha por objeto bens pblicos58, da propriedade particular. Esta podia ser de um s dono, ou, simultaneamente, de vrios (o condomnio). Quanto ao contedo, distinguia-se a propriedade plena, se todos os seus direitos elementares se achavam reunidos no do proprietrio, da propriedade limitada, se tinha nus real ou era

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Clvis Bevilqua. O Cdigo Civil, in Linhas e Perfis Jurdicos, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1930, p. 178. 55 Orlando Gomes. Razes Histricas e Sociolgicas do Cdigo Civil Brasileiro, Salvador, Livraria Progresso Editora, 1958, p. 42. 56 Clvis Bevilqua. Linhas gerais da evoluo do direito constitucional, da famlia e da propriedade durante a centria de 1827 a 1927, in Linhas e Perfis Jurdicos, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1930, p. 91 57 Orlando Gomes, p. 34. 58 Cdigo Civil, art. 66.

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resolvel59. Quanto ao objeto, distinguia-se a propriedade imobiliria, a mais importante devido ao princpio da publicidade, que se realizava pela instituio dos registros pblicos, da propriedade mobiliria, que tinha por objeto coisas mveis (coisas fungveis e consumveis, divisveis e indivisveis, singulares e coletivas). E ainda os bens reciprocamente considerados (bens principais e acessrios,

compreendendo estes os frutos, os produtos, os rendimentos, os acessrios de solo, e as benfeitorias). O Cdigo Civil de 1916 garantia o direito de propriedade, mas no de modo absoluto, pois seu individualismo subordinava-se s necessidades sociais, como indicam as restries que o prprio cdigo previa, em matria de usucapio, desapropriao por utilidade pblica e direitos de vizinhana. Estes compreendiam regras sobre o uso nocivo da propriedade, sobre o regime das guas e sobre as limitaes ao direito de construir. precisamente nessas disposies j que se vislumbrava o que se viria a ser, meio sculo depois, matria de direito ambiental. Reconhecia-se, assim, o poder que o proprietrio tinha de proibir atos prejudiciais, assim como a possibilidade de preveno de determinados perigos e ainda garantir a manuteno da ordem natural60. Os arts. 554 e 555 do cdigo dispunham sobre o uso nocivo da propriedade, que poderia causar ofensas segurana pessoal ou dos bens, ao sossego (rudos, emisses de fumaa ou fuligem) ou sade (emanao de gases txicos, poluio de guas, estbulos)61, pelo que se concedia ao proprietrio o poder de pedir que cessasse o dano ou fosse reparado o j produzido62. Estatua, tambm, regras sobre o uso de guas correntes particulares, das guas pluviais e das fontes, em relao ao estado de vizinhana entre prdios63 matria posteriormente regulada em lei especial, o Cdigo das guas, decreto n 24.643, de 10 de julho de 1934. As disposies do cdigo visavam, assim, a

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Cdigo Civil, art. 525. Antnio Menezes Cordeiro. Tutela do Ambiente e Direito Civil, in Direito do Ambiente, Lisboa, Instituto Nacional de Administrao, 1994, p. 386. 61 Clvis Bevilqua. Direito das Coisas, edio histrica, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 188. 62 Cdigo Civil de 1916 - Art. 554 - O proprietrio, ou inquilino de um prdio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurana, o sossego e a sade dos que o habitam. Art. 555 - O proprietrio tem direito a exigir do dono do prdio vizinho a demolio, ou reparao necessria, quando este ameace runa, bem como que preste cauo pelo dano iminente. Vedava-se tambm a construo de estrebarias, currais, pocilgas, estrumeiras que contrariassem os regulamentos de higiene. Art. 578 - As estrebarias, currais, pocilgas, estrumeiras, e, em geral, as construes que incomodam ou prejudicam a vizinhana, guardaro a distncia fixada nas posturas municipais e regulamentos de higiene. 63 Clvis Bevilqua, p.195.

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manuteno da ordem natural, estabelecendo a obrigatoriedade do prdio inferior de receber as guas que corressem naturalmente do superior. E se o dono deste fizesse obras de arte, para facilitar o escoamento, procederia de modo a no piorar a condio natural e anterior do outro64. Em matria de direito de construir, ainda quanto s guas, dispunha o cdigo serem proibidas as construes capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinrio, a gua de poo ou fonte alheia, a elas preexistente65. Proibidas tambm eram as escavaes que tirassem ao poo ou fonte de outrem a gua necessria66. Ocorrendo a violao dessas regras, causando o dano que hoje se classificaria como ambiental, nascia a obrigao de indenizar, ou seja, a responsabilidade civil prevista no art. 159 do Cdigo Civil67. de concluir-se, portanto, que, guardadas as caractersticas e dimenses dos respectivos sistemas sociais, e as mudanas decorrentes da evoluo histrica, principalmente as provocadas pelo desenvolvimento da sociedade industrial, a relao que hoje se verifica entre a propriedade e meio ambiente, no difere, na sua essncia, daquilo que o direito romano j estabelecia e que o cdigo brasileiro recepcionou.

5. Concluses.

De tudo o que exposto foi, podem-se tirar as seguintes concluses. A propriedade um dos institutos fundamentais do direito civil patrimonial, como expresso jurdica da relao histrica entre o ser humano e as coisas da realidade externa. A compreenso de sua estrutura e funo no direito contemporneo, particularmente na ordem jurdica brasileira, pressupe uma perspectiva histrica e, consequentemente, uma perspectiva crtica, que permite identificar de modo racional e objetivo, os fatores ou circunstncias que provocaram a sua evoluo, tanto na sua

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Cdigo Civil de 1916 - Art. 563 - O dono do prdio inferior obrigado a receber as guas que correm naturalmente do superior. Se o dono deste fizer obras de arte, para facilitar o escoamento, proceder de modo que no piore a condio natural e anterior do outro. 65 Cdigo Civil de 1916 Art. 584 - So proibidas construes capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinrio, a gua de poo ou fonte alheia, a elas preexistente 66 Cdigo Civil de 1916 - Art. 585 - No permitido fazer escavaes que tirem ao poo ou fonte de outrem a gua necessria. , porm, permitido faz-las, se apenas diminurem o suprimento do poo ou da fonte do vizinho, e no forem mais profundas que as deste, em relao ao nvel do lenol dgua 67 Cdigo Civil de 1916 - Art. 159 - Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia, ou imprudncia, violar direito, ou causar prejuzo a outrem, fica obrigado a reparar o dano

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estrutura, como no seu fundamento e funo nos diversos perodos da histria nacional, a colnia, o imprio e a repblica do incio do sculo XX. A propriedade, desde os primrdios da civilizao, um conceito polidrico. Apresenta vrias facetas e espcies, de acordo com as necessidades sociais a que responde. A perspectiva histrica que orienta a presente comunicao, revela que o direito subjetivo e o instituto jurdico da propriedade, como expresses normativas da relao pessoa-coisa do mundo externo, nunca se manifestou como categoria unitria, geral e abstrata. Pelo contrrio, sempre foi mltipla e variada, quer quanto ao seu titular, quer quanto ao seu objeto, quer quanto ao seu contedo. Uma viso crtica, proporcionada pelo conhecimento histrico, revela que a importncia e funo da propriedade no so idnticos em uma economia agrria e em uma de capitalismo avanado 68. Conforme a poca, as necessidades sociais e os interesses da pessoa humana, vrios foram os tipos de propriedade que surgiram, pelo que hoje pode-se reconhecer a existncia histrica no da propriedade mas das propriedades, a implicar a ruptura do tradicional conceito unitrio e a configurao da propriedade como um conceito plurifacetado. Isso no impede, porm, que continue a ser uma das categorias fundamentais do direito privado. O direito romano, que teve o mrito de sistematizar o conjunto de seus preceitos e de classific-la conforme a pessoa do seu titular e conforme o seu objeto, o primeiro a manifestar o esprito individualista que veio a caracterizar, historicamente a propriedade. Nesse direito existem, porm, matizes sociais, como os que se encontram na disciplina das relaes de vizinhana, do abuso de direito e da responsabilidade civil. No direito medieval, a propriedade decomps-se em direitos paralelos que a construo doutrinria denominou de dominium directum e dominium utile, diversos graus do direito do proprietrio regime feudal, que veio a ser superado pelo esprito burgus da revoluo francesa. No que respeita ao direito brasileiro, o perodo colonial caracterizou-se pelo predomnio do latifndio, a grande propriedade base da economia de exportao de produtos primrios, (acar, algodo, fumo), sistema que se manteve at o processo de industrializao do sculo XX.

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Stefano Rodot. Il diritto privato nella societ moderna, Bologna, Il Mulino, 1971, p. 314.

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Quanto relao da propriedade com o meio ambiente, semelhana do que ocorreu no direito romano, guardadas as necessrias propores, no Cdigo Civil de 1916 j se encontravam normas que relativizavam o individualismo do direito de propriedade, principalmente em matria de direitos da vizinhana, abuso de direito e responsabilidade civil. Isso abriu caminho para a profunda mudana que se veio a verificar posteriormente, quando o direito de propriedade deixou de ser apreciado na sua estrutura para ser considerado na sua funo social, do que um dos melhores exemplos so as limitaes impostas ao direito de propriedade por um novo direito, o direito do ambiente, que visa garantir proteger a vida em todas as suas manifestaes.

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A PROPRIEDADE PS-MODERNA: conceito e classificao

Jos Isaac Pilati1

SUMRIO 1. Introduo. 2. Propriedade comum e especial: dois perfis e um paradigma a construir. 2.1. A Propriedade comum. 3. As propriedades especiais. 4. Propriedades especiais: classificao. 4.1. Propriedades especiais particulares. 4.2. A propriedade especial pblico privada. 4.3 Propriedades especiais coletivas: patrimoniais (tnicas) e extrapatrimoniais (coletivas propriamente ditas). 5. Propriedade coletiva

extrapatrimonial ou coletiva propriamente dita: base constitucional da funo social. 6. Concluso. 7. Referncias.

RESUMO Enfoca-se a propriedade especial constitucional, que se destaca da propriedade comum corprea tradicional (dos cdigos), afirmando-se como base das transformaes do Direito, na Ps-Modernidade.

1. Introduo

A propriedade a instituio central da civilizao, no s por constituir o conjunto bsico de valores2 uma mentalidade, como diz Grossi3 com que se orientam e pautam pessoas e coisas, mas tambm por determinar e materializar a estrutura com que historicamente se regem e reproduzem as relaes de Estados e de

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Professor do Curso de Ps-Graduao em direito da Universidade Federal de Santa Catarina. REALE, Miguel. Introduo filosofia. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 181 et seq. Toda cultura histrica e no pode ser concebida fora da histria. Em cada tempo predomina um valor em relao a outros...Os valores no esto isolados uns dos outros,...mas se ordenam de forma gradativa, hierarquizando-se entre subordinantes e subordinados, ou fundamentais e secundrios. A tica proprietria assenta no ter a Moral individual e social (Direito) do bem fundamental, que a propriedade. 3 GROSSI, Paolo. La propiedad e las propiedades: un anlisis histrico. Traduccin de Angel M. Lpez y Lpez. Madrid: Civitas, 1992 .

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indivduos e de Sociedades. Na Ps-modernidade4 confrontam-se dois modelos: o da propriet napolenica, reproduzida no art. 1228 do CCB criticada pelo pioneiro discurso de funo social de Duguit; e o das propriedades especiais constitucionais de 1988, que despontam sob a gide jurdica do coletivo e a aura poltica da participao. A Modernidade e as codificaes trabalharam com um conceito estrito de propriedade, limitado ao mbito das coisas corpreas; o capital financeiro correu por fora desse mbito, num buraco-negro jurdico que o punha a salvo de qualquer enquadramento ou compromisso de funo social. J a Ps-Modernidade dever trabalhar com um conceito amplo de propriedade5, incluindo todo poder patrimonial oponvel ao grupo social. Isso coloca ao alcance da funo social todo o poder, individual e social, seja ele poltico, econmico, de que natureza for. Com isso no o conceito de propriedade que se modifica, mas o arcabouo, o paradigma. Rodot6 diz que a Propriedade carrega um enigma, perante a desigualdade social renitente, que o Estado e os instrumentos da ordem jurdica no conseguem resolver. Este o ponto que importa: at aonde vai o mrito proprietrio? Locke7 justifica a apropriao com fundamento no trabalho, porm no para aambarcar a terra e sim para usufruirmos. Assim de incio, arremata: Direito e convenincia andando juntos, sendo intil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o necessrio. O

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RUSSO, Eduardo Angel. Teoria general del derecho: en la modernidad y en la posmodernidad. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [1995?], p. 317 et seq. La posmodernidad parece ser, entre otras cosas, el lugar para las nuevas utopas. Desde el antolgico mayo francs pedir lo imposible se tiene por uma forma de hacer que o imposible sea real. Na p. 318 alerta: La posmodernidad es, en primer lugar, una moda. Es decir, algo que alguien crea y que muchos usan sin saber de que se trata. Uma moda que algum cria e que muitos utilizam sem saber de que se trata. DIAS, Maria da Graa dos Santos. Direito e ps-modernidade. In: DIAS, M. G. S; MELO, O. F; SILVA, M.M. Poltica jurdica e ps-modernidade. Florianpolis: Conceito, 2009, p. 11-34, destaca que, na Modernidade, o parlamento representa o povo e o governo das leis, no dos homens. 5 MACKELDEY, F. Elementos del derecho romano. 4 ed. Madrid: L. Lpez, 1886, p. 151, chama ateno, como romanista, para a propriedade em sentido amplo, que inclui toda a fortuna e tudo o que pertence a algum; a propriedade de bens corpreos propriedade em sentido estrito. As propridades especiais da Ps-Modernidade devem devolver importncia propriedade en el sentido extenso de la palabra. 6 RODOT, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla propriet privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, inaugura a obra referindo a questo proprietria, que sempre se prope, mas que no (ou nunca) se soluciona, restando intacto perante ns lenigma della propriet (p. 15). Pode-se dizer o mesmo da corrupo, que