identidade, espaÇo e estratÉgias narrativas em …
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
Alice Botelho Peixoto
IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES
AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA
Belo Horizonte
2020
Alice Botelho Peixoto
IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES
AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa.
Orientadora: Professora Doutora Maria Nazareth Soares Fonseca
Linha de pesquisa: Identidade e Alteridade na Literatura
Belo Horizonte
2020
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Peixoto, Alice Botelho P379i Identidade, espaço e estratégias em romances africanos do Mali,
Moçambique e Nigéria / Alice Botelho Peixoto. Belo Horizonte, 2020. 136 f.
Orientadora: Maria Nazareth Soares Fonseca Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras
1. Literatura africana. 2. Pós-colonialismo na literatura. 3. Identidade. 4.Espaço na literatura. 5. Narração. 6. Colônias. 7. Ficção africana. I. Fonseca, Maria Nazareth Soares. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 896-3
Ficha catalográfica elaborada por Renata Diniz Guimarães de Oliveira - CRB 6/2646
Alice Botelho Peixoto
IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES
AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras.
Linha de pesquisa: Identidade e Alteridade na Literatura
_________________________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Nazareth Soares Fonseca – PUC Minas (Orientadora)
_________________________________________________________________________ Prof. Drª. Cristiane Felipe Ribeiro de Araújo Cortês – CEFET MG (Banca Examinadora)
_________________________________________________________________________ Prof. Drª. Terezinha Taborda Moreira – PUC Minas (Banca Examinadora)
_________________________________________________________________________ Prof. Drª. Roberta Maria Alves – UFVJM (Banca Examinadora)
_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Elcio Loureiro Cornelsen – UFMG (Banca Examinadora)
_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Félix Ulombe Kaputu – Fordham University – EE UU (Banca Examinadora)
Belo Horizonte
2020
Aos meus avós.
AGRADECIMENTOS
À Capes e à FAPEMIG pelas bolsas de estudos.
À tia Lúcia Helena, por ter me mostrado o á-bê-cê. A Consuelo, por ter colocado the
book on the table.
A Margarida, pelo bonjour, e a Madame Beaurieux, por ter me ter feito ler poesia.
A Catherine, pelo Oui. A Arielle, pela amizade.
À professora Nazareth, por todas as palavras na nossa língua portuguesa, numa
orientação firme e segura, agradeço por nunca ter me soltado a mão.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras, pelas aulas ministradas
sempre com gosto e dedicação. Obrigada Audemaro, Alexandre, Ivete, Johnny, Márcia,
Terezinha, Raquel!
Ao professor Félix, pelas conversas inspiradoras.
A todo o pessoal da secretaria: Berenice, Rosária, Jefferson, Giovanni, grata pelos
cafés e por fazerem tudo funcionar.
Aos amigos do Geed, Grupo de Estudos “Estéticas Diaspóricas”, por estenderem as
conversas das salas de aula às salas de casa. Agradeço com carinho a Adriana, Assunção,
Bruna, Consuelo, Elaine, Eni, Erinaldo, Francy, Helen, Karina, Léo, Lilian, Lino, Luciana,
Jorge, Roberta, Wellington.
A outros e mais ainda às amigas fiéis: Bruna, Consuelo, Eni, Helen, Janaína, Moema.
Sou grata por tudo, sempre. A Ana, sempre com fones de ouvido plugados.
Agradeço aos meus treinadores, Norberto e Karina, por me ajudarem a estender os
limites do corpo e da mente. A todos da Albatroz por brincarem e rirem comigo, me ajudando
a não perder a alegria de viver. Até amanhã!
A todos dos meus eternos grupos do Amor e Nosso Grupo, pelo companheirismo.
Aos grupos de formação em Yoga Integral de BH e de Ilhabela, por me acolherem. A
Lili Lakshmi e Sat Prema, pela luz.
Agradeço aos meus pais, pelos ensinamentos sem fronteiras e pelo apoio de sempre.
Ao Daniel, meu irmão, e sua companheira Desirée, irmãzinha, por onde o amor é maior que o
mundo. Ao Gustavo e a Layla, por me renovarem as esperanças.
Om gum gurubyo namah. Sri Aurobindo om. Mirra Matri om.
Ah! Tenho meu Amor a todos para dar
do que sou.
Eu!
Homem qualquer
Cidadão de uma Nação que ainda não existe.
(CRAVEIRINHA, 2010, p. 19).
RESUMO
As discussões encaminhadas por esta tese procuram demonstrar como os romances, O
bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos (1952), do
nigeriano Amos Tutuola, L’Étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète
africain (1973), do malinês Amadou Hampaté Bâ, e Terra sonâmbula (1992), do
moçambicano Mia Couto, encenam questões sobre identidade, espaço, e como subvertem
determinadas estratégias narrativas próprias do gênero romance, dando a elas feições
africanas. Ao serem discutidas, as questões propostas abordam aspectos relativos à violência
do colonialismo no continente africano e às sequelas deixadas por ele, dentre várias, as
guerras civis que eclodiram no pós-independência de muitas das novas nações africanas. Ao
inscrever a análise dos romances na vertente pós-colonial, é construída uma base
argumentativa que acentua o conflito de epistemologias provocado pela presença do
colonialismo europeu nos territórios africanos de origem dos escritores e obras investigadas.
A tese demonstra, num primeiro momento, como os personagens de cada romance podem ser
vistos como metonímia dos sistemas políticos encenados e como as identidades, fragmentadas
pela violência colonial e pela guerra civil, no caso de Moçambique, são reconstruídas a partir
de novas relações, assumindo características fluidas que desmancham a fixidez. A tese
também apresenta uma discussão sobre o espaço encenado nos romances, demonstrando
como a política colonial atua na captura dos territórios e na subjugação dos sujeitos
colonizados. A reflexão acentua que a estreita relação do indivíduo com o espaço participa da
constituição de sua identidade. Finalmente, é demonstrado que os três romances apresentam
interseções que permitem percebê-los como formas de representação alternativas ao
paradigma moderno, que desobedecem à epistemologia imposta pelo sistema colonial. As
obras apresentam, assim, em suas estratégias narrativas, características dos espaços africanos
de onde são originadas e reformulam, a partir do conteúdo e da forma, o gênero romance.
Palavras-chave: Literaturas africanas. Pós-colonialidade. Identidade. Espaço. Estratégias
narrativas.
ABSTRACT
The discussions leaded by this thesis seeks to demonstrates how the novels, The Palm-Wine
Drinkard and his Dead Palm-Wine Tapster in the Dead’s Town (1952), by Nigerian
Amos Tutuola, The fortunes of Wangrin (1973) by Malinese Amadou Hampaté Bâ, and
Sleepwalking Land (1992), by Mozambican Mia Couto, perform questions about identity
and space, as they overturn some narrative strategies, particular to the novel as a genre, giving
them African features. As they are debated, the proposed questions discuss aspects related to
the colonialism violence, in African continent and their aftereffects, among others, the civil
wars that erupted in the pos-independence period in many new African nations. Inscribing the
novel analyses in the pos-colonial studies, this thesis builds on an argumentative bases that
accentuates the epistemological conflict provoked by European colonialist presence in
African territories where these novels and their writes are from. This thesis demonstrates, in a
first moment, how the characters from each novel can be seen as a metonymy of the staged
political systems metonymy and how the identities broke up by the colonial violence and the
civil war, in the Mozambican case, are rebuild from the new relationships as they put on fluid
characteristics that disintegrated the occidental fixity. This thesis also presents a discussion
about the space as it is performed by the novels, showing how colonial politics acts in the
captured territories and in the colonized individual subjugations. This critical reflection
accentuates that the narrow relation between the individual and the space takes part in his
construction identity. Finally, this work demonstrate that the tree novels have intersections
allowing us to perceive them as representation alternatives forms of to the modern paradigm,
as they disobey the epistemology imposed by the colonial system. These novels thus present,
in their narrative strategies, African spaces characteristics from which they are originated,
recreating, from the content and form, the novel genre.
Keywords: African literature. Postcolonialism. Identity. Space. Narrative strategies.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 AS CONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS ENCENADAS NOS ROMANCES AFRICANOS ........................................................................................................................ 23
2.1 Identidade e violência ....................................................................................................... 23
2.2 A identidade colonial de Wangrin ................................................................................... 26
2.3 A identidade em O bebedor de vinho de palmeira ........................................................ 35
2.4 Identidade em Terra sonâmbula ..................................................................................... 49
3 O ESPAÇO E AS ESPACIALIDADES ENCENADOS PELOS ROMANCES ............ 58
3.1 O espaço mitológico em O bebedor de vinho de palmeira ............................................ 59
3.2 Espaço e imaginário colonial nos romances ................................................................... 61
3.3 Espaço, espacialidade, errância ....................................................................................... 78
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS .............................. 91
4.1 Africanos como sujeitos dos romances ........................................................................... 91
4.2 O trabalho heroico: do individual para o coletivo ......................................................... 95
4.3 Autoria e narração em L’étrange destin de Wangrin ................................................... 99
4.4 Autoria em Amos Tutuola ............................................................................................. 104
4.5 Um jeito africano de narrar ........................................................................................... 110
4.6 O absurdo europeu e o exotismo africano .................................................................... 114
4.7 O encontro africano: a descolonização em Terra sonâmbula .................................... 119
4.8 Espelho e representação ................................................................................................. 122
4.9 A transgressão do romance africano ............................................................................ 124
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 127
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 132
9
1 INTRODUÇÃO
Alguns temas das literaturas africanas são brevemente elencados no volume VIII da
coleção História geral da África, editada pela Unesco, no capítulo sobre o “desenvolvimento
da literatura moderna” (MAZRUI, 1998, p. 348). Dentre os temas citados, “poesia e política”,
“autenticidade”, “guerra” e “herança cultural” combinam “os valores autóctones, as
influências islâmicas e o impacto da cultura ocidental” (MAZRUI, 1998, p. 363). É válido
destacar o esforço do volume para situar, no continente africano, o florescer de projetos
literários modernos em relação a uma tradição literária autóctone que se caracteriza por
gêneros como poesia, conto e práticas oratórias milenares. No cenário das literaturas
africanas, o romance, gênero ocidental moderno por excelência, aparece como estranho às
formas literárias autóctones. Vale salientar, que também no Ocidente, o romance é uma forma
narrativa tardia em relação a outras expressões literárias. Esse gênero é um produto do século
XIX e da Revolução Industrial.
Nos últimos tempos, a abordagem das obras literárias africanas vem sendo marcada
por uma perspectiva pós-colonial que procura ultrapassar as tensões produzidas pela
modernidade, sobretudo as que consideram a produção literária desvinculada do contexto de
sua produção. Com a intenção de analisar as literaturas periféricas como manifestações
culturais, a abordagem pós-colonial tenta superar a tensão “africanidade versus
universalidade” sem deixar de encenar os sujeitos regionais e locais inseridos num contexto
global, como o fazem os pesquisadores Inocência Mata e Jean-Marc Moura. Para Mata, as
literaturas africanas expressam uma autorreflexão dos sujeitos nacionais que pensam sobre si,
no sentido de um conjunto plural e não mais no sentido da unidade individual, que constituía
a utopia do corpo nacional. Justificando seu caminho teórico, Mata expõe o seu entendimento
do conceito de pós-colonial:
O pós-colonial pressupõe, por conseguinte, uma nova visão da sociedade que reflete sobre a sua própria condição periférica, tanto a nível estrutural como conjuntural. Não tendo o termo necessariamente a ver com a linearidade do tempo cronológico, embora dele decorra, pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de descolonização e independência política - o que não quer dizer, a priori, tempo de independência real e de liberdade, como o prova a literatura, que tem revelado e denunciado a internalização do outro no pós-independência. (MATA, 2006, p. 40).
No sentido de tentar identificar e analisar, na encenação literária, manifestações que
nos possibilitem uma maior compreensão do pós-colonial, adotamos a perspectiva que assume
10
essa “nova visão da sociedade”, considerando a “condição periférica” dos antigos espaços
colonizados que se inserem numa “temporalidade que agencia sua experiência”, não somente
após a colonização, mas também durante a vigência do processo colonial. Assumimos que
essa abordagem permite uma prática de leitura que assume o conceito de pós-colonial, mesmo
quando são discutidas obras produzidas durante o período colonial.
Consideramos, com Jean-Marc Moura, pesquisador das literaturas africanas
francófonas, que a literatura pós-colonial deve ser lida como originada e marcada por um
contexto de colonização e descolonização e não somente como produção relativa ao tempo
posterior às independências dos países africanos. Para Moura, o termo “póscolonial1 refere-se
às práticas de leitura e de escrita que se interessam pelos fenômenos de dominação e,
particularmente, pelas estratégias que evidenciam, analisam e se esquivam do funcionamento
binário das ideologias imperialistas”2 (MOURA, 2007, p. 11).3 Ainda segundo Moura, uma
perspectiva puramente cronológica veria o colonialismo como um marco histórico e, ao
considerar a dicotomia colonial versus pós-colonial, faria com que a análise literária recaísse
na linearidade ocidental, marcada pela teleologia do “progresso” e da “civilização”. Nesse
sentido o pesquisador afirma:
A dificuldade é integrar o fato colonial, massivo e irrefutável, aos nossos estudos literários, ou seja, evidenciar um conjunto de questões interdependentes, ao mesmo tempo ideológicas, institucionais e formais, que orientam a atividade literária numa determinada época e região, evitando um funcionamento binário que opõe colonial/póscolonial para privilegiar uma abordagem transnacional. (MOURA, 2007, p. 3).4
As reflexões de Mata e Moura incitam uma abordagem transnacional no quadro da
teoria pós-colonial. Essa feição é importante para que possamos delinear a proposta desta tese
que se fundamenta com a leitura de três romances africanos produzidos em países e
temporalidades diferentes. Com a intenção de refletir sobre questões identitárias e espaciais, a
1 Jean-Marc Moura distingue “pós-colonial”, com hífen, de “póscolonial”, sem hífen. A primeira palavra tem o
sentido cronológico de “posterior ao período colonial” e a segunda tem o sentido citado no texto. Não utilizaremos essa distinção gráfica, mas propomos abranger o significado de pós-colonial e abarcar, na palavra com hífen, a perspectiva sugerida por Moura.
2 Sempre que a tradução for nossa, o texto original virá em nota de rodapé. Evitamos citar a cada parêntese que a tradução é nossa para evitar a repetição.
3 “[...] ‘postcolonial’ se réfère à des pratiques de lecture et d’écriture intéressées par les phénomènes de domination, et plus particulièrement par les stratégies de mise en évidence, d’analyse e d’esquive du fonctionnement binaire des idéologies impérialistes.” (MOURA, 2007, p. 11).
4 “La difficulté est d’intégrer le fait colonial, massif et irréfutable, à nos études littéraires, c’est-à-dire de mettre en évidence un ensemble de questions interdépendantes, tout à la fois idéologiques, institutionnelles et formelles, qui orientent l’activité littéraire à une époque et dans une région données, tout en évitant un fonctionnement binaire opposant colonial/postcolonial pour privilégier une approche transnationale.” (MOURA, 2007, p. 3).
11
tese também se volta à indagação de como o romance, gênero europeu por excelência, é
transformado pelas particularidades dessas regiões africanas. Essas temáticas, nos três
romances enfocados, são tratadas com atenção ao trabalho específico com a linguagem
literária.
Os romances que integram o nosso corpus de análise são: O bebedor de vinho de
palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos, do nigeriano Amos Tutuola
(1970), publicado pela primeira vez em 1952; L’Étrange destin de Wangrin ou les roueries
d’un interprète africain, do malinês Amadou Hampaté5 Bâ (1992), de 1973, e Terra
sonâmbula, do moçambicano Mia Couto (2007), de 1992. Perpassam os romances os
problemas decorrentes da relação entre colonizador e colonizado, mais evidentes nas obras de
Hampaté Bâ e Tutuola, bem como os relacionados ao pós-independência e com a guerra civil
de Moçambique, como encenado em Terra sonâmbula. Os três romances remetem a
questões características do contexto extraficcional em que se inserem, o que faz com que
determinadas estratégias narrativas sejam ressaltadas no âmbito de uma abordagem pós-
colonial. Dentro da periodização linear da história africana, o romance do nigeriano Amos
Tutuola é o único dos três a ser escrito durante o regime colonial. Moçambique e Mali já eram
independentes, quando os romances de Hampaté Bâ e de Mia Couto foram lançados, ainda
que o romance malinês enfoque o período colonial.
Pensamos ser importante considerar o fato de, desde a Partilha da África6 efetivada por
países europeus, no século XIX, entre final de 1884 e princípio de 1885, o continente africano
ter passado por grandes transformações que alteraram irremediavelmente os costumes e a vida
dos povos que o habitam. A colonização europeia atinge, após esse evento, novas feições
impulsionadas, sobretudo, pelos ideais de modernidade levados ao continente africano. No
centro dessa discussão, ainda sob domínio inglês e em solo hoje nigeriano, Amos Tutuola
publicou O Bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos,
em 1952, pela editora inglesa Faber and Faber. Foi o primeiro romance africano a ter
repercussão internacional, tendo sido traduzido em onze idiomas. Na época do aparecimento
do romance, alguns críticos consideraram que o escritor apresentava um fraco domínio do
inglês, abusava da oralidade e escrevia influenciado pelo ioruba. As falhas apontadas,
5 Encontramos duas grafias para o sobrenome do autor: Hampâté ou Hampaté. Optamos pela segunda opção por
ser a adotada na edição consultada. 6 A Conferência de Berlim realizou um acordo entre as 18 potencias europeias participantes que ficou conhecido
como a Partilha da África. Nesse encontro, foram definidas as regras do jogo que permitiram as operações de dominação e anexação dos territórios africanos, cada potência europeia estava autorizada a fincar bandeira sobre o maior número de territórios africanos possíveis. Nesse processo, os povos africanos, seus reinados, tribos e sociedades, foram desconsiderados pelos europeus. (FERRO, 1994, p. 122).
12
sobretudo pelos críticos nigerianos, são indiretamente atribuídas à curta escolaridade que o
escritor recebeu, embora decorram de intencional imersão na oralidade e na ludicidade das
histórias ouvidas em sua infância. Diante das várias críticas sofridas pelo romance, Wole
Soyinka (apud QUEIROZ; BORGES, 2017), o Nobel nigeriano, citando a crítica feita ao
romance na época de seu lançamento, na introdução da edição de 2014, da mesma Faber and
Faber, indaga: “Seria [esse romance] literatura? Ou apenas um longo conto popular em busca
de sintaxe?”.
Amos Tutuola nasceu em Abeokuta, no oeste da Nigéria, em 1920. Filho de
agricultores, frequentou a escola apenas por seis anos. Exerceu diferentes ofícios, como o de
ferreiro. Atuou, de 1942 a 1945, na Royal Air Force. Depois foi funcionário público no
Departamento do Trabalho, quando começou a escrever.
O título do romance de Amos Tutuola, O bebedor de vinho de palmeira e seu
vinhateiro morto na Cidade dos Mortos, funciona como uma brevíssima sinopse da
narrativa feita em primeira pessoa, pelo protagonista, que empreende uma viagem fantástica
para resgatar seu vinhateiro morto. No início do romance, o personagem sem nome, que será,
na análise, referido como “o bebedor”, apresenta-se como o mais velho dos oito filhos do
homem mais rico da cidade. Colocando-se como o único entre os irmãos que não era apto ao
trabalho, sua ocupação era beber o vinho de palmeira que lhe era fornecido à vontade.
Infelizmente, o vinhateiro morre ao cair de uma palmeira, quando buscava a matéria-prima
para preparar o vinho para o seu amo. O bebedor, não encontrando um substituto que
atendesse à sua demanda de vinho, decide empreender uma viagem à Cidade dos Mortos para
resgatar o único homem capaz de produzir vinho de forma a saciá-lo. Ao sair das terras do
pai, o jovem bebedor entra em território desconhecido, um mundo delineado por criaturas
mágicas e estranhas que a mitologia ioruba torna corriqueiras.
O percurso do protagonista é cheio de obstáculos, todos vencidos por ele com a ajuda
de seus jujus, amuletos mágicos que lhe permitem mudar a sua forma humana. Ao longo do
caminho, o jovem bebedor se casa, tem um filho mágico, encontra as mais fantásticas
criaturas e, quando finalmente chega a seu destino, a Cidade dos Mortos, decide voltar às
terras do pai, sem o vinhateiro, levando consigo um objeto mágico. Durante a viagem, o
protagonista se autodenomina um deus todo poderoso, o “pai dos deuses”. Seus superpoderes,
no entanto, não conseguem evitar que ele seja submetido a diversas formas de violência. Ao
longo do percurso, encontra estranhos seres cuja identidade é sempre posta em questão: são
espíritos ou humanos? Estão vivos ou mortos?
13
As peripécias do protagonista incorporam elementos do universo mitológico da cultura
ioruba e de algumas etnias africanas. Essa incorporação justifica o nascimento de seu filho,
uma criança com superpoderes, que é gestada no polegar da mãe. Esse aspecto, entretanto,
não será privilegiado em nossas indagações sobre o romance, porque foge ao nosso objetivo.
Estaremos mais atentos aos simbolismos e metáforas que nos permitem perceber os processos
de encenação da realidade colonial feitos pelo romance, bem como as estratégias de
construção narrativa utilizadas pelo escritor, quando mescla ambientes da cultura tradicional
autóctone do espaço nigeriano e percepções do mundo colonizado pelos ingleses.
Pretendemos considerar que o tom poético que caracteriza o romance pode ser atribuído à
intenção de assumir as modulações mitológicas que instauram um ambiente sobrenatural e
mágico típico das narrativas da oralidade africana. Procuraremos também ressaltar que
características da violência decorrente do encontro turbulento entre colonizadores e
colonizados estão presentes em todo o romance, sem interferir em seu caráter poético e
mitológico. Vale ressaltar, como discutiremos ao longo da tese, que a narrativa de Tutuola
encena ainda eventos típicos da cultura ioruba a qual pertence, como, por exemplo, o encontro
entre o céu e a terra. Esses eventos contribuem para que o romance se valha da encenação de
um ambiente fantasmal como referência à cosmogonia da cultura à qual essa encenação faz
parte.
Apesar das controvérsias, esse primeiro livro de Tutuola se tornou um clássico da
literatura africana, com uma narrativa ainda hoje considerada inovadora, como arte “cult”. À
época de seu lançamento, recebeu acolhida entusiástica do poeta inglês Dylan Thomas. A esse
primeiro romance seguiu-se Minha vida na mata dos fantasmas, logo em 1954, também
editado pela Faber and Faber. Esses dois primeiros são seus romances de maior sucesso,
considerados os mais bem-sucedidos artisticamente. Ainda pela editora londrina saíram The
Witch Herbalist of the Remote Town (1981), Pauper, Brawler & Slanderer (1987), The
Village Witch Doctor and Other Stories (1990). Por outras editoras publicou Simbi and
the Satyr of the Dark Jungle (1955), The Brave African (1958), Huntress (1962), Feather
Woman of the Jungle, Ajaaiyi and his Inherited Poverty, em 1967, Wild Hunter in the
Bush of the Ghosts, em 1982, e Yoruba Folktales, em 1986.
Geoffrey Parrinder (apud QUEIROZ; BORGES, 2017), no prefácio da primeira edição
inglesa de seu segundo livro, em 1954, afirma que os romances de Tutuola representam uma
crítica à colonização e à situação pós-colonial, embora o autor não assuma a postura crítica de
seus conterrâneos, como Wole Soyinka e Chinua Achebe (apud QUEIROZ; BORGES, 2017).
Queiroz e Borges informam que “Tutuola registrou em seus romances a situação da Nigéria
14
pós-colonial, por meio de referências implícitas, refletindo sobre a situação dos africanos sob
o impacto das aldeias e das formas de governo europeu.” (QUEIROZ; BORGES, 2017, p. 6).
Na análise do romance de Amos Tutuola7, O bebedor de vinho de palmeira,
consultamos, basicamente, a tradução de Eliane Fontenelle para o português, lançada no
Brasil pelo Círculo do livro, na década de 1970. Voltamo-nos sempre que se fez necessário ao
original em inglês, para melhor apreender o trabalho com a língua, uma das principais
características do escritor.
De forma mais explícita, as críticas ao sistema colonial francês estão impressas no
romance do malinês Amadou Hampaté Bâ. O título do que é tido como seu o único romance,
L’étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète africain, anuncia as
peripécias de Wangrin, um intérprete a serviço da administração colonial na África Ocidental
Francesa (AOF), no atual Mali. O romance é apresentado pelo autor como o resultado de uma
promessa feita ao homem que viveu as peripécias delegadas ao herói da história. Como bom
contador de histórias que é, Hampaté Bâ transforma em romance a história vivida por
Wangrin, pseudônimo escolhido por ele para manter o anonimato e preservar outros
envolvidos. A obra é o relato da vida desse malinês durante a colonização francesa, nessa
região da AOF. O autor faz questão de ratificar a veracidade do relato, adicionando a ele um
prefácio e um posfácio, escritos em primeira pessoa. O compromisso com a realidade
encenada fica comprovado pela abundância de descrições sobre os costumes do povo e pela
referência às práticas coloniais francesas. Não faltam ainda dados históricos e geográficos que
possibilitam localizar a situação exposta no cenário da colonização francesa no continente
africano.
A narrativa se inicia com o nascimento de Wangrin, no seio da cultura bambara. A
explicação sobre o deus protetor escolhido pelo jovem personagem funciona como definidor
do caráter do homem que se delineia nas páginas do romance. Devoto de Gongoloma Soké,
deus tido como bizarro e capaz de unir os contrários, Wangrin é representado como a imagem
de seu deus protetor. O personagem, por seu caráter, cria várias inimizades, mas, precavido,
tece uma rede de apoiadores entre os homens mais importantes da tradição local, em todos os
lugares por onde passa, no exercício de seu posto de intérprete colonial. Malicioso, o hábil
intérprete acumula riqueza valendo-se de golpes aplicados ao sistema colonial, aproveitando-
se, sobretudo, da crise provocada pela Segunda Guerra Mundial.
7 É importante citar, por sua relevância, o trabalho de tradução intitulado Algumas traduções de O bebedor de
vinho de palmeira, coordenado pelas professoras Cristina Borges e Sônia Queiroz.
15
Embora sua vida pessoal não mereça muita atenção no romance, sabemos que ele tem
uma extensa família, pois segue as tradições da poligamia. No desempenho da função de
intérprete, em várias localidades de seu país, torna-se um rico comerciante. Rico e
reconhecido por sua função, sucumbe à paixão por uma mulher francesa, entregando a ela a
administração de toda a sua riqueza, porque se rende ao vício do álcool. A narrativa acentua
que essa má fase do protagonista decorre do fato de ele ter abandonado as práticas bambaras e
muçulmanas, o que o faz terminar a vida pobre, vítima de um golpe aplicado pela francesa
junto com um comparsa. O romance transforma a sua morte em retorno simbólico às práticas
tradicionais de sua origem bambara, recurso que afirma o caráter africanista da obra. Esse
aspecto é defendido pelo escritor Hampaté Bâ, grande defensor da tradição ancestral e um dos
intelectuais africanos mais importantes.
Amadou Hampaté Bâ nasceu em 1900, em Bandiagara, no Mali. Seus pais descendiam
de famílias nobres da etnia fula8. Com a morte de seu pai, o menino de apenas dois anos foi
adotado por um rei de sua cidade. Sob a proteção de seu pai adotivo, recebeu uma educação
tradicional de um importante contador de histórias que vivia em sua corte. Também teve uma
educação formadora dentro da tradição religiosa islâmica e frequentou a Escola Primária
Francesa, conhecida como escola “des Otages”. Hampaté Bâ trabalhou em diversos postos
durante a administração colonial francesa. Paralelamente, o escritor realizou um importante
trabalho de pesquisa coletando material das tradições orais africanas pelos territórios da AOF,
apoiado pelo professor Théodore Monod, fundador do Instituto francês da África Negra. Sua
primeira obra, L’empire Peul du Macina, é publicada em 1955 como resultado de suas
pesquisas. Em 1958, fundou e dirigiu o Instituto de Ciências Humanas do Mali e, em 1962,
foi eleito membro do Conselho Executivo da Unesco. A partir da década de 1970, Hampaté
Bâ se dedicou inteiramente às suas pesquisas sobre as tradições africanas religiosas, literárias,
etnográficas e históricas, tendo publicado diversos contos tradicionais. Suas memórias foram
publicadas, postumamente, em dois volumes: Amkoullel, l’enfant peul (1992) lançado no
Brasil como Amkoullel, o menino fula (2003), e Oui mon commandant! (1994), ainda sem
tradução no país.
8 Adotamos o termo fula como tradução do termo peul, em francês, por ser essa a tradução adotada na
publicação brasileira do primeiro volume das memórias do escritor, Amkoullel, o menino fula para Amkoulle
l’enfant peul. Vale reproduzir aqui a nota do tradutor dessa edição brasileira, a título de esclarecimento: “Cabe ainda explicitar a opção pelo termo fula e não peul como no original francês. A sociedade à qual pertence o autor é conhecida por nomes muito diferentes. Eles se auto-referem tanto como FullBe quanto como Haal-
Pular e nomeiam sua língua fulfulde ou pular. Entre os uolofes são chamados peul; entre os bambaras, fula e entre os hauçás, fillani. Na literatura de língua inglesa são conhecidos como fulani, na francesa como peul. Na Guiné Bissau, país de língua portuguesa, são denominados fula, grafia adotada nesta tradução, e que tem sido utilizada em publicações brasileiras recentes.” (BÂ, 2003, p. 22).
16
L’étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète africain é
considerado seu único romance, sendo visto por muitos como tendo um viés autobiográfico.
A obra recebeu o Grand Prix Littéraire de l’Afrique Noire, em 1974. Até o momento, não
encontramos nenhuma tradução em português, mas existem traduções em inglês e em
espanhol, embora não tenham sido consultadas para a execução desta tese.
Traduzido e publicado em mais de 20 países, o moçambicano Mia Couto é hoje um
dos autores africanos mais conhecidos. O título de seu primeiro romance, Terra sonâmbula
(1992), diferentemente dos romances de Tutuola e Hampaté Bâ, assume um viés metafórico,
embora de sentido não menos elucidativo com relação à trama escolhida pelo escritor. A
personificação da Terra, desde o título, anuncia o caráter poético da narrativa situada no
contexto da guerra civil moçambicana. Marcando diferença em relação ao contexto colonial
presente nos romances de Tutuola e de Hampaté Bâ, Mia Couto, ao escrever Terra
sonâmbula, privilegia um evento específico de seu país, a guerra civil, sem deixar de
considerar a situação de um continente que procura se reconstruir a partir de seu passado
colonial.
A guerra civil que eclode após a independência não é uma particularidade de
Moçambique. Na Nigéria, a violenta guerra civil, conhecida como a guerra de Biafra, foi
durante anos manchete internacional, com destaque para a fome que assolou o território
separatista (HEERTEN; MOSES, 2014). Os conflitos étnicos, na Nigéria, foram endêmicos
desde os primeiros anos da independência acordada pelos britânicos, em 1960. A guerra civil
eclodiu em 1967. O Mali enfrenta rebeliões tuaregues desde sua independência da França,
também em 1960. O último conflito a chamar a atenção mundial9 se deu nos anos 2012 e
2013, identificado como a quarta rebelião tuaregue que marca o contexto dos conflitos pós-
independência e que se desenrolam desde a década de 1960 (DUARTE, 2013).
Mais discretamente, mas também presente no noticiário internacional, Moçambique
passou por recentes eleições legislativas, tendo de conviver com destruições provocadas pela
passagem de um ciclone devastador, em 2019. A situação do país continua tensa entre o
partido do governo, FRELIMO, e seu opositor, a RENAMO, em luta desde os tempos da
guerra contra o colonialismo português, no período de 1965 a 1975, quando, finalmente,
conseguiu a independência. Como já dito, o início do pós-independência coincide com a
guerra civil, terminada, oficialmente, em 1992. Ainda hoje, os diversos episódios de violência
9 Os noticiários continuam sendo estampados por problemas ainda atravessados pelo Mali, e também pela
Nigéria, com a insurgência e ataques violentos de grupos jihadistas. O extremismo islâmico traz o contexto religioso para a pauta da atualidade, além dos conflitos étnicos e territoriais.
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vividos pelo país acentuam sua instabilidade quanto a sua situação de paz (DEUSTCHE
WELL, 2019). Esses conflitos, muitas vezes encenados pela literatura do país, acabam por
expor as sequelas deixadas pela colonização europeia que, ao desmantelar a organização
social autóctone, não foi capaz de assegurar a necessária estabilidade ansiada por seus
habitantes.
Terra sonâmbula, publicado em 1992, é o primeiro romance de Mia Couto
considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX, pelo júri da Feira do Livro
do Zimbabue. Entre os diversos prêmios recebidos pelo escritor moçambicano até agora,
destacamos o prêmio Vergílio Ferreira, em 1999, o prêmio União Latina de Literaturas
Românticas, em 2007, e o Prêmio Camões, 2013. Em 2014, Couto recebeu o Neustadt Prize.
Biólogo em exercício, tendo também atuado como jornalista, o autor tem mais de trinta livros
publicados, entre romance, poesia e contos. É correspondente estrangeiro da Academia
Brasileira de Letras.
Na leitura do romance de Mia Couto, destacamos os três personagens principais que,
como andarilhos, espelham o movimento da Terra anunciado no título. Muidinga e Tuahir,
um menino e um velho, sem laços de parentesco, desenvolvem uma amizade com contornos
de uma verdadeira relação entre pai e filho, enquanto buscam sobreviver em meio aos
destroços deixados pela guerra civil, andando, sem rumo, por uma estrada “mestiçada de
tristezas nunca vistas” (COUTO, 2007, p. 9). Na estrada, encontram um ônibus que passa a
lhes servir de abrigo. No ônibus, junto a corpos de soldados carbonizados, encontram uma
mala que guarda cadernos com anotações feitas pelo jovem soldado Kindzu. Muidinga lê as
histórias de Kindzu para Tuahir, acrescentando uma outra dimensão à trama. Nas andanças
em torno do machimbombo e pelas páginas dos cadernos de Kindzu, o velho e o menino se
deparam com outros personagens que encenam situações típicas de culturas locais de
Moçambique.
A leitura dos caderninhos de Kindzu permite conhecer a vida do jovem soldado com
sua família, a morte do pai, a chegada dos bandos armados, o sumiço de seu irmão Junito, sua
amizade com o indiano Surendra e a partida em busca dos tradicionais guerreiros naparamas.
Conhecemos também as peripécias do seu encontro com Farida, personagem de peso que
encena as relações complexas entre colonizadores e colonizados. A encenação do romance
acentua o jogo de espelhamento entre personagens: Muidinga se vê em Kindzu, especula
sobre ser ele o seu irmão sumido, e busca um pai em Tuahir. Por sua vez, as narrativas de
Kindzu refletem o movimento da terra que o velho e o menino também observam. O tom
poético da escrita de Mia Couto ressalta o lirismo da narrativa. Tal trabalho poético envolve a
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língua portuguesa na atmosfera da oralidade marcada pelas diferentes feições das línguas
moçambicanas. A habilidade de poeta do escritor, que maneja a língua para tratar de temáticas
relacionadas a assuntos do contexto tradicional e contemporâneo de seu país, tem sido
destacada como uma peculiaridade de seu estilo.
Assim, guardando as devidas distâncias entre os romances escritos em línguas,
espaços e tempos diferentes, observamos que o estilo de Mia Couto é hoje reconhecido por
apresentar características similares àquelas que provocaram, na Nigéria, a condenação do
estilo de Amos Tutuola. Podemos dizer, esperando que as reflexões que apresentaremos no
decorrer do trabalho esclareçam, que ambos apresentam narrativas que exploram a força da
oralidade e ambientes culturais atravessados pela magia, próprios das culturas autóctones de
seus países. No esforço por encenar questões próprias de sua terra, ambos os escritores
transformam poeticamente a língua levada à África pelos colonizadores europeus.
Ressaltando as características específicas a cada obra, vale dizer que, em diferentes
níveis, todas comportam um forte teor de violência que caracteriza momentos traumáticos da
história de cada país. Essa violência tanto pode estar atrelada ao modo como Tutuola descreve
a imposição de normas e valores estrangeiros ao espaço de colonização francesa, na África,
como nas descrições feitas sobre a devastação da terra e de seus habitantes, em Moçambique,
por Mia Couto. Por outro lado, podemos dizer que Hampaté Bâ, ao focalizar a violência posta
em prática durante a colonização de espaços africanos, não deixa de revelar a maestria de um
perfeito domínio da língua francesa. O escritor imprime um sotaque estrangeiro no seu
romance, sutilmente perceptível no ritmo que marca uma cadência peculiar na história que
conta. Essa cadência fica mais visível no uso do discurso indireto livre e, principalmente, no
registro feito, em discurso direto, da fala dos personagens africanos. O estilo sóbrio da
descrição de viés realista é quebrado pela ironia com que registra sua denúncia ao sistema
colonial francês. O tom rocambolesco das peripécias, muitas vezes classificadas como
estranhas, apontam, desde o título, um certo humor característico do estilo do escritor numa
trama tida como histórica, etnográfica e compromissada com a realidade.
É importante registrar que, nesta tese, o olhar que visa comparar uma obra com outra,
uma realidade com outras, percorre os três romances e procura, sobretudo, ressaltar questões
relativas às configurações identitárias e espaciais encenadas. Ao mesmo tempo, o mesmo
olhar pretende apreender as estratégias de escrita romanesca escolhidas por cada um dos
autores. Essas questões, pensamos, poderão explicitar as estratégias de escrita de cada
romance, possibilitando uma melhor compreensão do modo como o romance, gênero europeu
por natureza, foi assumido pelos escritores africanos, sobretudo, a partir de um diálogo efetivo
19
com a oralidade. Podemos dizer que o gênero se ajusta às características locais de contação e
de encenação de realidades diversas.
No capítulo “As configurações identitárias encenadas nos romances africanos”, a
discussão acerca da temática proposta se estrutura com auxílio das reflexões de Achille
Mbembe e Franz Fanon, principalmente. Tentamos ler os romances a partir da afirmação de
Mbembe de que “a identidade africana não existe como substância” (MBEMBE, 2001, p.
199). Nesse sentido, a identidade africana não pode ser definida por uma única visão baseada
em um estereótipo criado pelo ocidente. As considerações do teórico permitem que
interroguemos como os processos de formação das identidades como representados nas obras
podem ser discutidos a contrapelo do entendimento da razão cartesiana. Para aprofundar a
discussão da questão e dos modos como ela se encena nos romances, perguntamos ainda
como são encenadas as negociações identitárias, na sociedade colonial, e como esses
processos tão subjetivos se dão nos momentos de tensão pós-colonial, quando os valores
ditados pelo nacionalismo precisam ser reinventados. Ao refletirmos sobre a identidade dos
personagens, nos romances, ressaltamos o quanto a situação colonial estende seus tentáculos
para além de uma periodização determinada.
No capítulo “Espaço e espacialidades encenados pelos romances”, procuramos discutir
a maneira como os romances constroem seus próprios espaços, encenando uma experiência
territorial de África proveniente, muitas vezes, de um imaginário construído pelo olhar do
outro, na situação dicotômica do colonialismo e na vivência de situações provocadas pela
guerra. Procuramos demonstrar que a configuração espacial é também uma questão
deflagrada por subjetividades, assim como a construção identitária. As abordagens teóricas
dos pesquisadores Luiz Alberto Brandão, Harry Garuba, Édouard Glissant, Achille Mbembe e
Doreen Massey, principalmente, amparam a discussão sobre espaços e espacialidades
presentes nos romances. Com o intuito de estabelecer uma ligação entre identidade e espaço,
apropriamo-nos do pensamento de Glissant quando diz: “Abra ao mundo o campo de sua
identidade” (GLISSANT, 1993, p. 185), identificando, nessa afirmação, uma diretriz
interpretativa que, ao expandir a concepção de identidade, mostra que uma outra concepção
de espaço se faz também necessária.
No último capítulo, “Considerações sobre as estratégias narrativas”, pretendemos
trabalhar as estratégias narrativas assumidas pelas obras, destacando os recursos utilizados
para dar conta de escritas literárias que não escondem as relações que fazem com
peculiaridades da tradição oral característica de cada país. Discutimos sobre a constituição
dos narradores como contadores de histórias, explicitando o agenciamento das vozes
20
narrativas. Como fizemos nos dois capítulos precedentes, estabelecemos pontos em que as
três obras, produzidas em espaços culturais e linguísticos diferentes, demonstram ser possível
estabelecer os diálogos entre elas, procurando entender como cada um dos romances
consegue abordar as tensões que dão corpo às narrativas. Analisamos como os personagens
africanos personificam heróis que desafiam a estreiteza de conceitos canônicos. Discutiremos,
enfim, como essas narrativas assumem expressões estéticas próprias do gênero romance,
ainda que se mantendo de acordo com a tradição de gêneros orais de seus diferentes
contextos.
Queremos acentuar que a reflexão proposta pela tese se vale, sempre que possível, de
uma produção teórica africana que possibilita o deslocamento do eixo reflexivo, antes
exclusivamente amparado por obras de origem europeia. Embora muitos intelectuais africanos
atuem majoritariamente em países europeus, intencionamos ouvir vozes que anunciam uma
mudança de paradigma, estruturando sua enunciação em outros locais e não apenas nos
grandes centros de poder. Por isso, ressaltamos, o nosso interesse em trazer para os nossos
capítulos pontos de vista de intelectuais como Homi Bhabha, Achille Mbembe, J.Y Mudimbe,
Édouard Glissant, Harry Garuba e Inocência Mata, e também de estudiosos das literaturas
africanas de várias nacionalidades. Esperamos conseguir construir uma visão crítica que se
afaste do estudo das literaturas africanas que se delineiam com privilégio do olhar europeu,
muitas vezes ainda contaminado por visões e percepções voltadas ao exotismo ou à
focalização de um viés dicotômico e maniqueísta.
Dessa forma esperamos responder a algumas questões que norteiam este trabalho,
sendo que nossa principal intenção é discutir, com as obras literárias, a longevidade e
violência do processo colonial. A paulatina subjugação dos povos africanos deixa sequelas,
sendo a luta pela sobrevivência ainda primordial.
Assim, perguntamo-nos em que medida as três obras advindas de três espaços
culturais e linguísticos diferentes podem ser postas em diálogo atento às similitudes e
diferenças advindas dos processos coloniais que se passaram nos três territórios africanos
encenados pelos romances. Como tais romances dão conta do choque colonial? Discutiremos,
também, como essas narrativas se expressam esteticamente e como as expressões estéticas
variam em contextos diferentes. E, ainda, como conseguem lidar com as demandas literárias
na construção das histórias que contam. Diante de tais colocações gerais, indagamo-nos sobre
o lugar ocupado pelo romance nas culturas africanas. Teriam os africanos uma forma própria
de contar? Quais as possíveis transformações pelas quais passa o gênero romance em África?
21
Nossa investigação é sustentada por uma sólida pesquisa bibliográfica teórica e
literária. Os resultados a serem apresentados na tese serão produzidos pelo diálogo
estabelecido entre a análise do material teórico e o estudo aprofundado das obras selecionadas
para o corpus. No entanto, reconhecemos que o estilo de escrita aqui apresentado talvez
escape à segmentação de ideais e capítulos normalmente apresentada numa tese padrão.
Valemo-nos do pensamento do filosofo francês Gaston Bachelard ao dizer que a “ciência
contemporânea é cada vez mais uma reflexão sobre a reflexão” (BACHELARD, 1996, p.
307), na tentativa de justificar um estilo que talvez se aproxime mais de um ensaio do que um
relatório de análises de dados, em que se configura uma forma argumentativa baseada na
reflexão das ideias. Como consta em verbete do Le dictionnaire du littéraire (ARON, SAINT-
JACQUES, VIALA, 2010), a forma ensaio vem de uma tradição argumentativa antiga que
permite o desenvolvimento de uma reflexão pessoal. Enquadramo-nos no movimento atual
das ciências humanas que, cada vez mais, assume que a subjetividade do pesquisador
inevitavelmente se imiscui ao seu objeto de pesquisa. No entanto, não vamos ao extremo de
nos colocarmos à prova como proposto por Montaigne, tido como fundador do gênero ensaio,
nem mesmo fazer o uso da primeira pessoa do singular, que seria sua marca definidora. Não
pretendemos defender nenhuma forma de expressão, apenas reconhecemos que ciência,
verdade e estilo são passíveis de interpretação.
No intuito de atestar a seriedade de nossa pesquisa e dos resultados esperados –
sempre passíveis de interpretação e questionamentos, muitas vezes constituindo a necessária
prova de atestação do trabalho científico proposto –, afirmamos nossa pretensão de coerência
entre corpus, análise e suporte teórico, esperando alcançar algum sucesso nas interpretações
apresentadas. Trazemos para nosso contexto de análise o dito pelo geografo brasileiro Milton
Santos:
Nossa ambição é fornecer, ao mesmo tempo, a explicação da realidade espacial e os instrumentos para sua análise. Acreditamos que uma teoria que não gera, ao mesmo tempo, sua própria epistemologia, é inútil porque não é operacional, do mesmo modo que uma epistemologia que não se baseie numa teoria é maléfica, porque oferece instrumentos de análise que desconhecem ou deformam a realidade. A coerência científica, que deve ser o objetivo final da reflexão, não pode ser obtida de outra forma. (SANTOS, 2012, p.23).
Em nossa humilde pretensão, intentamos, portanto, traçar de forma coerente uma
ideia, posta através das estratégias literárias, de como a colonização europeia do continente
africano afetou de forma permanente os africanos de ontem e de hoje. Dessa forma,
observamos as sequelas deixadas pela duradoura violência colonial.
22
23
2 AS CONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS ENCENADAS NOS ROMANCES
AFRICANOS
2.1 Identidade e violência
Os questionamentos identitários suscitados pelos romances O bebedor de vinho de
palmeira e seu vinhateiro morto na cidade dos mortos, de Amos Tutuola (1970),
L’étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète africain, de Amadou
Hampaté Bâ (1992), e Terra sonâmbula, de Mia Couto (2007), nascem a partir de
personagens que se inserem no contexto colonial da África subsaariana, e, no caso do
romance moçambicano, no período da guerra civil, no pós-independência. Os personagens
dos romances de Amos Tutuola e Hampaté Bâ transitam por cenários construídos pelo
sistema colonial, em África, exibindo a engrenagem que os europeus colocaram em prática
para dominar e explorar outros povos, sobretudo acentuado no século XX, no período que se
encerra com as independências dos espaços colonizados. O romance de Mia Couto deixa claro
que, em África, o sistema colonial não cessa com os acordos de independência. A dominação
e a exploração coloniais permanecem no continente, ainda que se transformando e atuando
com outras feições. Essa permanência do sistema colonial se mostra, principalmente, na
eclosão das guerras civis, no caso de Moçambique, travada como um prolongamento da
guerra de independência.
Em O bebedor de vinho de palmeira, o protagonista transita por um ambiente
demarcado por elementos mitológicos de raiz ioruba, mesclando-o com elementos da
colonização britânica. Novas relações se configuram, enquanto a viagem iniciática do
protagonista se desenrola. Em L’étrange destin de Wangrin, o personagem principal, que dá
título ao romance, vivencia a dicotomia colonial. Hábil intérprete, enquanto funcionário da
colonização francesa, Wangrin joga com malícia e perspicácia para ter sucesso profissional,
sem perder os vínculos com suas raízes fincadas na tradição bambara a que pertence. Como
hábil jogador, estabelece alianças que lhe permitem tirar vantagem dos dois lados. Em Terra
sonâmbula, a interação entre os personagens propõe novas possibilidades de reconstrução de
uma terra despedaçada pela guerra civil e por sequelas irreversíveis deixadas pela colonização
portuguesa.
As indagações propostas pela análise dos romances amparam-se em pontos de vista da
teoria pós-colonial, na perspectiva sugerida por Jean-Marc Moura, Inocência Mata e outros
teóricos. Moura (2007) sugere que a literatura pós-colonial deve ser considerada como
24
oriunda de um contexto de colonização e descolonização, e não somente como produto
posterior às independências. O “paradigma pós-colonial”, discutido também por Stuart Hall,
refere-se a uma dinâmica de leitura em que a identidade, tema escolhido para ser abordado
neste capítulo, emerge como uma construção de uma situação em que “o ‘colonial’ não está
morto, já que sobrevive através de seus ‘efeitos secundários’.” (HALL, 2013, p. 120).
Eliane Lourenço de Lima Reis sintetiza o pensamento de Hall acerca do conceito pós-
colonial, quando afirma que
a chamada literatura pós-colonial não consegue, assim, escapar ao neocolonialismo. Como críticas mais recentes têm demonstrado, o prefixo pós, de pós-colonialismo, não significa o fim do colonialismo, mas a inserção num contexto de internacionalização do mercado – inclusive do mercado de bens culturais. Afinal, depois do processo de globalização iniciado pelo imperialismo, não há como separar a história das antigas metrópoles das histórias dos povos colonizados e nem como manter o antigo conceito de Estado-Nação. (REIS, 2011, p. 12).
Consideramos que a ideia pós-colonial agencia uma variedade de contextos que devem
ser levados em consideração na análise literária das obras propostas. Advindas dos antigos
espaços colonizados, elas se inserem nesse contexto de “internacionalização do mercado”, em
que uma abordagem transcultural evidencia a negociação identitária administrada pelos
sujeitos – coloniais e pós-coloniais – encenados em cada romance.
Nesse sentido, pensamos ser necessário retomarmos algumas colocações referentes ao
processo colonial, sobretudo as propostas por Albert Memmi e Franz Fanon, que lançaram as
bases do que hoje são os estudos pós-coloniais. Ainda no contexto colonial, as negociações de
poder impuseram novas dinâmicas para a formação da identidade do colonizado. Como
observa Memmi, a identidade do sujeito colonial foi forjada por um processo violento, dado
que a colonização implica uma ideologia de dominação de um povo sobre outro (MEMMI,
2012,
p. 107). Nesse sentido, os papéis que atestam a identidade colonial são institucionais e fruto
de uma burocracia que situa os indivíduos em determinados espaços, por sua vez,
circunscritos na periodização linear das “comunidades imaginadas” e impostas pelo
imperialismo europeu (ANDERSON, 2008). As relações de poder que se formam no âmbito
de sociedades extremas, como foram as colônias europeias na África subsaariana, fomentam
um complexo processo psicológico que se expressa na identidade de seus sujeitos, como
tentaremos demonstrar, ao longo da tese, com o estudo de passagens em que os personagens
do romance são considerados.
25
Para entendermos o que foi característico do período colonial segundo a visão da
teoria pós-colonial, é pertinente considerarmos o pensamento do filósofo camaronês, Achille
Mbembe, para quem a questão identitária africana é “quase” ontológica. O filósofo questiona
constantemente, em seus estudos, os fundamentos do pensamento moderno ocidental, que
erigiram a razão como uma das formas de saber: “o pensamento moderno repousa,
essencialmente, sobre a afirmação da soberania do sujeito e da razão.” (MBEMBE, 2003, p.
792).10 E após uma breve explanação sobre o conceito de identidade na história ocidental,
conclui:
Embora [a reflexão contemporânea] conceba a identidade como uma invenção ou como uma ilusão, a crítica contemporânea continua apoiando-se na afirmação – implícita no pensamento clássico – sobre a impossibilidade de uma única e mesma coisa ou de um único e mesmo ser ter várias origens diferentes e de existir simultaneamente em diferentes lugares e sob diferentes signos. (MBEMBE, 2003, p. 794).
11
Mbembe explica assim que, embora haja críticas, o princípio da individuação continua
inseparável do princípio da invariabilidade. Nesse sentido, perguntamo-nos como abordar a
identidade nos romances selecionados sem cairmos em concepções identitárias que
aprisionam o sujeito em uma única forma de ser. Para iniciarmos nossa reflexão, torna-se
necessário ampliar o escopo e considerar a possibilidade de outras manifestações identitárias
que não se enquadram na concepção ocidental de identidade, e, às vezes, nem na de literatura.
Nos três romances, observamos como a violência extrema compromete a subjetividade
dos personagens, no tocante à sua capacidade de significar o mundo ao redor, afetando,
portanto, sua maneira de se colocar nesse mundo. Ao perder suas referências, o sujeito perde a
si mesmo. A violência cala, aniquila e despedaça os sujeitos, sobretudo quando expostos ao
nefasto jogo do racismo. Essa questão é analisada por Sartre, no prefácio da obra de Albert
Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, quando explicita a
dicotomia branco versus negro, no mundo colonial:
O colonialismo recusa os direitos humanos a homens que ele submete por violência, que ele mantém pela força na miséria e na ignorância, logo, como diria Marx, em estado de ‘sub-humanidade’. [...] O racismo já está aí, levado pela práxis colonialista, engendrado a cada minuto pelo aparelho colonial, sustentado por essas
10 “[…] la pensée moderne repose, pour l’essentiel, sur l’affirmation de la souveraineté du sujet et de la raison.”
(MBEMBE, 2003, p. 792). 11 “Qu’elle conçoive l’identité comme une invention ou comme une illusion, la critique contemporaine continue
de reposer sur l’affirmation – implicite dans la pensée classique – de l’impossibilité, pour une seule et même chose ou un seul et même être, d’avoir plusieurs origines différentes et d’exister simultanément en différents lieux et sous des signes différents.” (MBEMBE, 2003, p. 794).
26
relações de produção que definem dois tipos de indivíduos: para um, o privilégio e a humanidade são um; ele se faz homem pelo livre exercício de seus direitos; para o outro, a ausência de direito sanciona sua miséria, sua fome crônica, sua ignorância, em suma sua sub-humanidade. (SARTRE apud MEMMI, 2012, p. 23).
12
A violência da lógica colonial racista é maquiada pela ideia da falsa missão
civilizatória que imbui de humanidade a ideologia colonial e seduz, assim, o colonizado,
dando-lhe também a falsa impressão de que é possível ser um desses homens que têm acesso
aos privilégios da humanidade. Em muitos aspectos, percebemos o romance de Hampaté Bâ,
L’étrange destin de Wangrin, como uma encenação literária do funcionamento do sistema
colonial. Wangrin constrói sua identidade de acordo com os cargos que ocupa na
administração colonial francesa, deslocando-se entre os dois extremos apontados por Sartre:
ser humano ou sub-humano.
2.2 A identidade colonial de Wangrin
Nessa situação em que o poder é um jogo polarizado, Wangrin modela sua identidade
de acordo com o que melhor lhe convém. Ao narrar as peripécias desse personagem, a priori
cindido pela administração colonial, o romance denuncia os meandros da colonização, vendo-
a como uma máquina em modo de funcionamento perpétuo. Essa máquina coloca os
colonizados sempre numa situação desfavorável, exigindo sua submissão ao que lhe foi
imposto pela missão civilizatória francesa, quando cria o conceito de “pessoa ocidental”. Esse
conceito aprisiona o colonizado numa rede de “traiçoeiros estereótipos de primitivismo e
degeneração”, impondo-lhe uma “imagem de identidade que é questionada na dialética
mente/corpo e resolvida na epistemologia da aparência e realidade.” Como acentua Bhabha:
“Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem negro e nesse ato de violência
epistemológica seu próprio quadro de referência é transgredido, seu campo de visão
perturbado.” (BHABHA, 1998, p. 80).
As considerações de Bhabha nos permitem perceber essa violência epistemológica na
relação de Wangrin e seu comandante. No início de sua carreira como funcionário colonial, o
personagem é enviado a Diagaramba para assumir o cargo de primeiro monitor do ensino,
12 “Le colonialisme refuse les droits de l’homme à des hommes qu’il a soumis par la violence, qu’il maintient de
force dans la misère et l’ignorance, donc, comme dirait Marx, en état de ‘sous-humanité’. […] Le racisme est déjà là, porté par la praxis colonialiste, engendré à chaque minute par l’appareil colonial, soutenu par ces relations de production qui définissent deux sortes d’individus : pour l’un, le privilège et l’humanité ne font qu’un ; il se fait homme par le libre exercice de ses droits ; pour l’autre, l’absence de droit sanctionne sa misère, sa faim chronique, son ignorance, bref sa sous-humanité.” (MEMMI, 2012, p. 23).
27
nessa região do território colonial francês, no atual Mali. O personagem é assim recebido pelo
comandante do círculo:
Meu jovem, você não é como os outros indígenas. Você frequentou a escola francesa. [...] Você deve pagar as benesses que deve à França, amando-a e espalhando sua língua e civilização. Esses são os dois mais belos presentes que a história da humanidade fez aos Negros da África. Sim, nós temos a missão de fazer a felicidade dos Negros, conforme necessário e apesar deles. (BÂ, 1992, pp. 33-34). 13
A ordem do comandante, ao nomear seu subordinado, o coloca imediatamente numa
situação devedora em relação à nação francesa. Afirmando sua missão colonial, o colonizador
situa os “Negros da África” como inferiores aos valores da “sua civilização”. Ao considerar
os “Negros da África” como desprovidos de cultura, a nação colonizadora obriga esses povos
a aceitar a língua e a civilização que lhe são impostas. Dessa forma, a colonização instaura um
mecanismo violento de supressão da cultura local.
No caso da colonização francesa, encenada nesse romance malinês, observamos que a
língua e a civilização são valores que andam juntos, um veículo do outro. A língua francesa é
exaltada como valor supremo da civilização e, por conseguinte, da colonização que, nessa
perspectiva, é tida como uma missão civilizatória. Falar uma determinada língua, como
explica Fanon, “é usar uma certa sintaxe, dominar a morfologia de tal ou tal língua, mas
sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.” (FANON, 1971, p.13).14
Ora, é justamente o domínio da língua francesa que permite a Wangrin ser destacado dentro
do sistema colonial, já que o cargo de intérprete é o mais alto que um “indígena”15 podia
ocupar dentro desse mecanismo. Ao mesmo tempo, observamos o quanto a colonização
molda o colonizado, obrigando-o a assumir valores e uma educação formal estranhos a ele.
13 “Jeune homme, tu n’es pas comme les autres indigènes. Tu es allé à l’école française. […] Il faut que tu payes
les bienveillances que tu dois à la France en la faisant aimer et en répandant sa langue et sa civilisation. Ce sont là les deux plus beaux cadeaux que l’histoire humaine ait faits aux Noirs de l’Afrique. Oui, nous avons mission de faire le bonheur des Noirs, au besoin malgré eux.” (BÂ, 1992, p. 33).
14 “Parler, c’est être à même d’employer une certaine syntaxe, posséder la morphologie de telle ou telle langue, mais surtout assumer une culture, supporter le poids d’une civilisation.” (FANON, 1971, p.13)
15 Os termos indígena, nativo e aborígine foram usados pelos colonizadores para designar os autóctones de suas colônias. Tais substantivos são impregnados de um sentido pejorativo dentro do sistema colonial, implicando a condição subalterna dessas pessoas. Como tentativa de escapar do preconceituoso maniqueísmo colonial, o termo autóctone nos parece o mais neutro. No entanto, temos consciência de que a total imparcialidade é impossível. Temos, portanto, a intenção de marcar nossa postura crítica ao optarmos, sempre que possível, por “autóctone”. Quando usamos “indígena”, “nativo” ou “aborígene” será para denunciar, o mais explicitamente possível, o preconceito colonial. Algumas vezes, no entanto, não conseguimos evitar a ironia subjacente ao reproduzirmos a terminologia colonial. Outras vezes, para evitar a cansativa repetição, optamos indistintamente por sinônimos do termo.
28
Ao destacar Wangrin dos outros, “você não é como os outros indígenas”, a fala do
comandante revela-se altamente sedutora. Ratificando a dicotomia colonial, o comandante
induz seu subordinado a acreditar numa falsa promessa, a de que, não sendo como “os outros
indígenas”, talvez ele possa alcançar os privilégios dos civilizados. No entanto, na fala do
comandante permanecem nítidos os signos da separação: de um lado, os indígenas “Negros da
África”, e de outro, os colonizadores, brancos e detentores da civilização.
Percebemos, na fala do comandante, a legitimidade de uma afirmação que perpetua o
discurso da dominação colonial. Sua fala assume um tom institucional que se assemelha ao
discurso de instituições – como o da Igreja Católica, por exemplo – que impõem o amor e o
temor. O mecanismo colonial exige dos indígenas uma espécie de devoção que se traduz pela
fidelidade do súdito Wangrin ao sistema colonial francês.
Memmi (2012) afirma que a colonização francesa estabeleceu, nos espaços
colonizados, os lugares a serem ocupados pelos brancos europeus e pelos indígenas. Essa
organização espacial fica evidente na preocupação do comandante em deixar claro que
Wangrin, mesmo reconhecido como o melhor dos indígenas, não deixa de ser indígena. A
expressão “Negros da África”, ao ser grafada com as iniciais maiúsculas, nos permite
perceber um modo de dizer institucional do sistema colonial que demarca a predominância do
superior ao seu subordinado e os espaços a serem ocupados por eles. “Negros da África”
funciona como um nome próprio de valor coletivo: serve não a um indivíduo, mas à
coletividade que a colonização subjugou. A estratégia do narrador de dar a palavra a Wangrin
para relatar a cena é pontuada pela ironia. Ao repetir a fala do comandante, Wangrin não
deixa de acentuar o seu lugar de fala, isto é, de ser devedor perante o sistema colonial que lhe
deu a língua e a civilização francesas.
Usufruindo de um lugar de destaque entre os seus por conta de seu exemplar domínio
da língua francesa, Wangrin astuciosamente usa do mecanismo colonial para conseguir poder
e riquezas. Com agilidade e ética duvidosa, chega à função de intérprete. Esse cargo o força a
mudar constantemente de região e de chefe. Ao ser nomeado intérprete no círculo de
Dioussola, mais uma vez o personagem é posto diante de um novo comandante:
Aqui estou para servi-lo conforme lhe der prazer em ser servido. Eu não tenho outra religião que o meu serviço. Agradar ao meu comandante equivale, para mim, a agradar a força superior lá de cima. Eu faço “salamaleico”, mas não sou intolerante. Não gosto dos chauvinistas, sou a favor da civilização e particularmente entusiasta
29
da civilização francesa, mãe dos direitos do homem e antiescravagista! (BÂ, 1992, p. 220). 16
A essa altura dos acontecimentos, a história de Wangrin já mostrou como o
personagem é hábil em manipular as pessoas e contornar os fatos para que as situações lhe
sejam favoráveis. A fala do personagem ratifica sua posição dentro do mecanismo colonial,
sem deixar de expressar sua astúcia e habilidade de se colocar, aparentemente, à disposição do
chefe: “estou aqui para servi-lo”, diz o personagem. Ao comparar a religião ao trabalho: “não
tenho outra religião que o meu trabalho”, Wangrin parece assumir uma posição de servidão
perante “seu comandante”, chegando ao ápice de compará-lo a Deus: “agradar ao meu
comandante equivale, para mim, a agradar à força superior”.
Ao referir-se à civilização francesa como “mãe dos direitos do homem e
antiescravagista”, Wangrin é irônico, já que não deixa de reconhecer ser ele mesmo um desses
servos. A apresentação de Wangrin a seu novo chefe em tom de crescente enaltecimento à
civilização francesa, por fim, valoriza o sistema colonial. Toda essa bajulação acaba por ser
um jogo de manipulação que propicia a Wangrin ganhar a confiança de seu novo chefe,
valorizando seu próprio trabalho. Ao se mostrar como “um indígena não como os outros”
(BÂ, 1992, p. 33), com pleno domínio da cultura e da língua do colonizador, Wangrin se
aproxima de seu comandante, assumindo que ambos têm o mesmo valor moral e, em última
instância, trabalham pela mesma causa: os direitos humanos, a civilização francesa e Deus.
Ao jogar com sua devoção e servidão perante o império colonial, Wangrin segue dando
testemunho de que sua moral é duvidosa e sua ética questionável. A ironia soa, assim, como
uma denúncia ao sistema, pois sabemos que, por trás de toda essa devoção, Wangrin joga, na
maioria das vezes, com seu duplo pertencimento e não abandona suas raízes africanas.
Assim, enquanto o personagem manobra as situações para conseguir riquezas e atingir
seus objetivos, um sistema de crenças e costumes é descrito. Como o próprio personagem se
define diante de seu novo comandante, na citação já analisada, ao jogar com sua devoção de
súdito em relação à metrópole colonizadora, ele revela seu pertencimento às das culturas por
onde transita. Wangrin se assume muçulmano, confirmando seu hábito de referenciar Alá. No
entanto, o protagonista não cumpre com rigidez as imposições dogmáticas de nenhuma
religião.
16 “Je suis venu ici pour vous servir comme il vous plaira d’être servi. Je ne connais de religion que mon service.
Plaire à mon commandant équivaut pour moi à plaire à la force supérieure d’en haut. Je ‘fais salame’, mais je ne suis pas bigot. Je n’aime pas les chauvins, je suis pour la civilisation et particulièrement enthousiaste pour la civilisation française, mère des droits de l’homme et anti-esclavagiste !” (BÂ, 1992, p. 220).
30
O narrador explica o ecumenismo interesseiro de Wangrin: “‘faz salamaleico’, mas
isso não o impede em nada de recorrer de vez em quando aos deuses tradicionais de seu
território e aos manes eficazes de seus ancestrais.” (BÂ, 1992, p. 170).17 Os trânsitos por
diversas religiões fazem parte de sua habilidade de administrar, sempre a seu favor, as
diferentes culturas por onde transita. Aliando a função de intérprete a esses trânsitos, Wangrin
age com a tática de um diplomata: “Eu não tenho religião bem definida [...]. Como intérprete,
eu devo conciliar todo mundo. Fico tão à vontade numa mesquita quanto num bosque sagrado
dos vilarejos animistas.” (BÂ, 1992, p. 112).18 Na função de intérprete, ele deve gerir todo
mundo sem distinção, sem julgamento, deve assim conhecer as práticas e religiões para
explicar os costumes de um a outro.
A prática dos saberes tradicionais africanos tem um papel de destaque na trajetória do
personagem. Sua derrocada é prevista por um adivinho de acordo com os saberes e práticas da
etnia haoussa (“geomancien haoussa”), justo quando tinha alcançado o “zênite de sua glória e
cúmulo de sua fortuna” (BÂ, 1992, p. 311). 19 Mas, antes que o adivinho mostrasse sua leitura
do futuro, o narrador pontua: “É nesta época que uma mudança sutil acontece no
comportamento de Wangrin.” (BÂ, 1992, p. 312).20 O protagonista deixa de cumprir vários
preceitos de sua tradição, como o de distribuir dinheiro aos pobres, com a mesma
generosidade de antes. Além disso, passa a praticar a caça por puro prazer, deixando de
considerar os costumes que autorizam a caça de animais apenas de forma utilitária e
ritualística.
As mudanças de atitude do personagem funcionam como anúncios de sua derrocada e
culminam com um acontecimento que marca o ponto de virada em sua vida: o encontro com
Madame Terreau, chamada também de Madame Branca-branca21, o único caso de amor de
Wangrin. Embora em algumas passagens seja feita menção à sua vida familiar, não há
referência a nenhum caso de amor passional na vida do personagem. Desde o início fica claro
que sua vida amorosa não tem grande peso no desenrolar do romance. Tal característica torna
mais relevante a chegada da mulher branca à narrativa, logo após a previsão do adivinho
17 “Wangrin ‘faisait salame’, mais cela ne l’empêchait point de recourir de temps à autre aux dieux traditionnels
de son terroir et aux mânes efficaces de ses ancêtres.” (BÂ, 1992, p. 170). 18 “Je n’en [religion] ai pas de bien définie [...]. En tant qu’interprète, je dois ménager tout le monde. Aussi suis-
je autant à mon aise dans la mosquée que dans les bois sacrés des villages animistes.” (BÂ, 1992, p. 112). 19 “En ce temps-là, Wangrin était parvenu au zénith de sa gloire et au comble de sa fortune.” (BÂ, 1992, p. 311). 20 “C’est à cette époque qu’un changement subtil s’opéra dans le comportement de Wangrin.” (BÂ, 1992, p.
312). 21 De acordo com o narrador, no início do romance, as pessoas são classificadas dentro do contexto colonial
levando-se em conta a cor de sua pele, por isso, a francesa Madame Terreau é referida como Branca-branca, que significa o mais alto grau de pureza étnica nesse sistema.
31
sobre seus infortúnios vindouros. Esse momento é situado na história de Wangrin pela
imprecisão dos marcadores de tempo, como “naquele tempo”, “nesta época” (en ce temps-là,
à cette époque). Referindo-se a uma época e um tempo indefinidos, a história assume um
caráter mítico, e o personagem toma contornos de herói.
Nesse sentido, vale destacar que a imprecisão da marcação do tempo, como na cena
referida, alterna-se com referências claras a fatos históricos precisos. Alguns episódios são
determinados por datas históricas, como a referência à Segunda Guerra Mundial, período em
que Wangrin se enriquece com o negócio dos bois. Em outros momentos, não sabemos quanto
tempo se passa de um evento a outro e nem mesmo são dadas explicações sobre a identidade
do personagem. Por vezes, o relato se torna atemporal, aproximando-se da estrutura dos
relatos míticos. Essa estrutura é enfatizada pela referência ao nascimento de Wangrin como
abençoado por um deus bizarro e pelo sentido fatalista do percurso do personagem, acentuado
por elementos que representam o oráculo como o adivinho haoussa e acentuam a falha trágica
do herói, que deixa de cumprir os preceitos de sua tradição. Sua derrocada fica mais explícita
à medida que ele se deixa seduzir pela mulher branca francesa, fazendo dela sua amante e
administradora de sua fortuna. O mesmo Wangrin que se mostrara capaz de trapacear o
sistema e os comandantes é, por sua vez, trapaceado pela amante. O que parece advir da força
mítica de sua tradição traduz-se em incapacidade de gerenciar os percalços da paixão. Esse
episódio nos permite pensar em situações analisadas por Fanon sobre a relação dos autóctones
negros com os brancos. Como indaga Fanon, quem pode reconhecer o homem negro como
um branco, a não ser a “Branca”? “Amando-me, ela me prova que sou digno de um amor
branco. Amam-me como um Branco. Eu sou um Branco. [...] é a civilização e a dignidade
brancas que eu faço minhas.” (FANON, 1971, p. 51).22
Wangrin, que antes se enaltecera com o reconhecimento do comandante que o vê
diferente dos demais indígenas, busca se identificar ainda mais com os brancos, quando se
une a Madame Terreau. No entanto, sua fascinação pela branquitude o torna cego ao fato de
que nunca será como um branco, pois continua sendo um “Negro da África”, embora seja um
“indígena não como os outros”. Já em processo de declínio, Wangrin entrega seus negócios
aos cuidados de Madame Terreau, por quem é saqueado. Dominado pela paixão, Wangrin não
percebe quando a Madame Branca se desfaz da pedra que simboliza sua aliança com o
sagrado, com o mundo das crenças tradicionais africanas. A perda da pedra simboliza seu fim
inevitável.
22 “En m’aimant, elle me prouve que je suis digne d’un amour blanc. On m’aime comme un Blanc. Je suis un
Blanc. [...] c’est la civilisation et la dignité blanches que je fais miennes.” (FANON, 1971, p. 51).
32
A derrocada do personagem é acentuada pela sua transformação de muçulmano
abstêmio a alcoólatra inveterado. Suas várias transformações são marcadas por uma mudança
de tom na narrativa. Enquanto sua ascensão é narrada com ares das aventuras dos grandes
mitos, seu declínio é narrado em tons tragicômicos, e sua aventura amorosa é rocambolesca.
O tom moralista do narrador, ao considerar os diversos sinais de distanciamento que o
personagem toma de sua tradição bambara como anúncios de sua falência, acompanha o
personagem até sua derrocada final, contando-nos linearmente o desenrolar das peripécias de
Wangrin.
Os vários tons da narrativa, ao alternar os discursos do narrador e dos personagens,
acentuam as transições de Wangrin que, metaforicamente, toma contorno de herói e de
malandro, assumindo ainda, por seus atos, traços identitários do personagem lendário Robin
Wood, o que tira dos ricos para dar aos pobres. No final, o narrador reconhece as várias
transformações do personagem esclarecendo: “Wangrin se tornou então um filósofo contador
de histórias sempre meio bêbado, um esfarrapado animador de rua que não lembrava nunca
seu esplendoroso passado e não culpava a ninguém.” (BÂ, 1992, p. 348).23
O narrador, no desfecho do romance, conclui definindo o personagem como “o louco
da praça”, alguém entre o arlequim e o pierrô, com ares circenses. A visão do narrador quer
acentuar na história do personagem o momento que ele deixa de ser o bajulador do sistema
colonial, ficando à margem de tudo. Quando decadente, em plena falência, Wangrin tira o
dinheiro das mulheres abastadas da sociedade, doando parte dele para os mais necessitados.
Consideremos que, em suas irônicas transformações, o personagem exibe identidades
em trânsito das quais se destaca, ironicamente, a do narrador experiente, aquele que, segundo
Benjamin (1994), sabe narrar suas experiências. Como o próprio personagem se explica:
Façam-me perguntas sobre a vida! Eu os responderei, pois sou um grande viajante. Eu conheço as estradas, as montanhas, as cavernas, as florestas, os cursos d’água e os desertos. Eu conheço as vilas, os vilarejos e as aldeias, eu conheço as ruas, ruelas e becos. Aproveitem da minha experiência e me façam perguntas enquanto ainda estou vivo. (BÂ, 1992, p. 347).
24
Como o narrador de experiências, mostra-se profundo conhecedor das vilas, vilarejos e
aldeias de sua terra, integrando-se na realidade do seu mundo tradicional.
23 “Wangrin était donc devenu le philosophe conteur toujours à moitié ivre, l’amuseur public loqueteux qui ne
rappelait jamais sa splendeur passée et ne reprochait rien à personne.” (BÂ, 1992, p. 348). 24 “Posse-moi des questions sur la vie ! Je vous répondrai, car je suis un grand voyageur. J’en connais les
grandes routes, les montagnes, les cavernes, les forêts, les cours d’eau et les déserts. J’en connais les villes, villages et hameaux, j’en connais les rues, ruelles et venelles. Profitez de mon expérience et posez-moi des questions pendant que je vis encore.” (BÂ, 1992, p. 347).
33
Ao chegarmos ao final da narrativa, indagamo-nos sobre a intenção da história contada
por Hampaté Bâ. No prefácio da obra, o escritor nos revela que Wangrin teria lhe pedido para
escrever sua história. Essa estratégia garante a verossimilhança do enredo e permite que se
pergunte se haveria, no romance, uma moral a ser tirada das tragédias vividas pelo
personagem, como nas fábulas e nas narrativas de sabedoria africanas.
No romance, o narrador em terceira pessoa, ao narrar os acontecimentos com clareza e
objetividade, adotando muitas vezes o discurso direto, assume uma pretensa neutralidade,
passando a palavra a seus personagens. Mas é ele, o narrador, que conduz a narrativa e,
eximindo-se de qualquer interferência na história, aguça a todo momento o leitor a inferir
sobre a história e sobre o personagem. Estrategicamente, o narrador é claro ao explicar as
formas de enriquecimento de Wangrin, destacando sua habilidade em tirar proveito das
situações, sem jamais o condenar ou criticar seus atos ilícitos. Prefere salientar como Wangrin
sempre teve compaixão pelos menos favorecidos ou como jogou com o seu duplo
pertencimento, ora devoto da civilização francesa ora leal às suas tradições africanas. Fica
claro que o narrador descreve Wangrin como filho da colonização, inscrito na dicotomia que
esse sistema instaura.
Entretanto, quando consideramos as peripécias do personagem, percebemos que a
contrapelo da intenção do narrador sua identidade é sempre móvel. Como acentua Mbembe
(2003), a identidade do ser não é fixa. Ou ainda, como afirma Glissant (2013), a identidade do
sujeito só toma forma quando posta em relação e deve ser vista em devir, “o ser como sendo”,
assim como também sugere Mbembe. De certa forma, a visão de Wangrin sobre si mesmo
ilustra alguns elementos teorizados pelos dois filósofos: “Eu, Wangrin, antigo intérprete,
antigo ricaço, antigo escritor público, contador de histórias em exercício e animador de rua
sem patente [...]”. (BÂ, 1992, p. 348).25
Assim, como se vê, Wangrin é um sujeito em devir. As peripécias encenadas pelo
romance nos convidam a prestarmos atenção ao caminho, ao estado do gerúndio como
apontado por Glissant (2013): “o ser como sendo”. A definição de quem é Wangrin está no
processo. Não na estabilidade, mas na instabilidade, como sugere o subtítulo do romance: les
roueries d’un interprète africain. Trata-se de um destino fora do comum, “estranho” ou dos
“truques de um intérprete africano”. Como a palavra truque sugere, o que está em jogo nessa
narrativa é aquilo que parece ser, mas não é. Trata-se de uma estratégia, em que a manobra
interessa mais do que a permanência. O sujeito se dá, nesse sentido, como um contínuo em
25 “Moi, Wangrin, ancien interprète, ancien richard, ancien écrivain public, conteur en exercice et amuseur
public sans patente [...]”. (BÂ, 1992, p. 348).
34
transformação. E esse constante devir nega a rigidez. Como crítica ao contexto colonial, o
romance acentua a importância de essa história sobre Wangrin ser inscrita na perspectiva de
um mundo ambivalente próprio do sistema colonial, ao mesmo tempo que apresenta o
personagem como alguém que escapa à permanência.
Nessa perspectiva de interpretação da lógica dicotômica e fragmentada da
colonização, observamos que a identidade de um sujeito colonial como Wangrin é múltipla,
ao contrário da imposição colonial. Temos um indivíduo que se compõe a partir de vários
elementos de culturas diferentes. Esse trânsito é produzido pela civilização colonizadora que,
por sua vez, contraditoriamente, decreta a impossibilidade de esse personagem exercer seu
multiculturalismo em ambiente que exige a rigidez da identidade fixa. Ao mostrar-se sempre
em devir, o personagem do romance desloca a ordem do sistema colonial que não permite que
o sujeito se encaixe, já que a etapa final da assimilação é impossível de ser atingida. Uma vez
expulso da lógica colonial, Wangrin se torna um “amuseur public”, ou seja, um personagem
similar aos artistas mambembes. Nesse momento, no seu final, ao se tornar um pária da
sociedade colonial, ele retorna à suas origens, integrando-se na tradição da oratória africana
dos contadores de história.
Dentro de um modo convencional de narrar, o romance de Hampaté Bâ apresenta o
tom seco dos relatos descritivos que pretendem ser fiéis aos fatos acontecidos, como o autor
faz questão de avisar no prefácio e no posfácio do livro. Ao se valer de elementos de um
realismo tido como clássico, por exemplo, a valorização de pormenores da vida do
personagem colonial, o escritor encena a violência do mecanismo de opressão característico
do sistema em que ele está inserido, muitas vezes aludindo a aspectos da tradição ancestral e a
elementos da mitologia haoussa. Com essa estratégia, o tom irônico da denúncia social
sobressaí à objetividade descritiva. Wangrin, um sujeito colonial, inserido na lógica nefasta
do colonialismo, mostra-se de caráter duvidoso, como acentuado pelo narrador que pondera e
não julga, preferindo relatar objetivamente as peripécias desse herói (quase) sem nenhum
caráter (CHRISTIAN, 2007).
O teórico sul-africano Harry Garuba (2018) discute a necessidade de uma
epistemologia que seja capaz de pensar uma nova conceitualização para as experiências
vindas dos contextos africanos, tais como as trazidas pelas obras literárias. Ao nos apresentar
outras formas de conhecimento, a obra de Amadou Hampaté Bâ mostra, através da encenação
de seus personagens, outros caminhos e novas possibilidades de expressão das identidades.
Procuraremos demonstrar que essa característica também está presente nos outros romances
que estudamos nesta tese.
35
2.3 A identidade em O bebedor de vinho de palmeira
Muitas das estratégias legitimadas pela lógica colonizadora encenadas no romance de
Hampaté Bâ estão presentes no romance O bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro
morto na Cidade dos Mortos, de Amos Tutuola. Antes de iniciarmos a análise desse
romance, pensamos ser pertinente retomar algumas visões teóricas que nos ajudarão a
embasar o estudo pretendido.
Na perspectiva da lógica colonial, observamos uma prática de subjugação do homem
colonizado que atua desconstruindo o corpo do colonizado para que este possa ser utilizado
como força de trabalho. Tornado parte da máquina de produção moderna, o homem negro e
colonizado é apto a executar qualquer trabalho. Como peça dessa engrenagem, ele pode ser
descartável. Nessa lógica, como explicado por Memmi, “desmoronam-se todas as qualidades
que fazem do colonizado um homem”. A tal ponto que “a humanidade do colonizado,
recusada pelo colonizador, lhe torna opaca”. (MEMMI, 2012, p.104).
Mbembe, ao erigir seu pensamento sobre os estados de exceção que lançam as bases
do seu conceito de “necropolítica”, situa o longo processo de desumanização do negro desde
as situações coloniais do plantation. As práticas adotadas nas plantações, segundo o teórico,
são políticas que legitimam a execução de uma classe de gente considerada “matável”.
Segundo sua época e contexto, vários grupos podem ser enquadrados nessa lógica nefasta, a
saber, judeus, palestinos, sírios, ciganos, pobres em geral, e negros. Em diversos momentos
históricos, os negros continuam sendo classificados como “matáveis”. Segundo o filósofo
italiano, Giorgio Agamben, em sua análise sobre o direito de viver, ou de morrer, fixado pelos
Estados, em especial pelo Nazismo de Hitler “toda sociedade fixa esse limite”:
É como se toda valorização e toda “politização” da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente “vida sacra” e, como tal, pode ser impunemente eliminada. (AGAMBEN, 2012, p. 135).
Os considerados descartáveis, na lógica de Mbembe que também retoma a visão de
Agamben, ocupam um lugar semelhante ao dos colonizados desumanizados descritos por
Memmi. Ambos os estudiosos atentaram para um mesmo fenômeno: como seres humanos
tornam-se produtos descartados pelo sistema. Enquanto Memmi centra sua análise no
36
momento colonial, Mbembe, alguns anos depois, com um pouco de distanciamento histórico,
é capaz de perceber o fenômeno de forma mais ampla e atualizá-lo.
Em seu artigo, Mbembe explica “As formas africanas de auto-inscrição”, que a
“identidade africana não existe como substância. Ela é constituída, de várias formas, através
de uma série de práticas, notavelmente as práticas do self.” (MBEMBE, 2001, p. 199). O
filósofo camaronês desenvolve, nesse artigo, um pensamento crítico em busca de significados
sobre a identidade africana a partir dos “significantes abertos”, que são a escravidão, a
colonização e o apartheid, responsáveis, segundo o filósofo, pela divisão do eu africano
(“divisão do self”). Essa divisão resultaria em “perda de familiaridade consigo mesmo, a
ponto de o sujeito, tendo se tornado um estranho para si mesmo, ser relegado a uma forma
inanimada de identidade (objetificação).” (MBEMBE, 2001, p. 174). Ao criticar as formas
modernas de se pensar a identidade africana, Mbembe descarta a definição do homem
africano de forma essencialista, a partir de um único termo. Para o filósofo, pensar a África
hoje requer novos paradigmas. Para tanto, é preciso considerar a possibilidade de “múltiplas
ancestralidades” (MBEMBE, 2001, p. 187), além de um trabalho sobre a memória, o que leva
a uma revisão das concepções de espaço e tempo “em sua relação com a memória e a
subjetividade.” (MBEMBE, 2001, p. 199). As ideias do teórico africano sustentam reflexões
sobre a construção de uma identidade não substancial, sem deixar de ser caracteristicamente
africana.
Na encenação literária feita na obra de Amos Tutuola, observamos como a
desconstrução do sujeito colonial está associada à imposição da lógica do trabalho, do
dinheiro e do acúmulo de riquezas, de acordo com os modos operantes do sistema
mercantilista capitalista. Essa lógica se encaixa com estranheza no ambiente tradicional da
oralidade, das lendas mitológicas, que são o fio condutor da narrativa de Tutuola. A narrativa
mitopoética de Amos Tutuola, O bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na
Cidade dos Mortos, é feita pelo próprio bebedor de vinho de palmeira, que viaja por matas
fantasmagóricas em busca de seu vinhateiro morto. Esse percurso do jovem protagonista pode
ser entendido como uma viagem iniciática, através da qual a questão identitária está sempre
trabalhada. David Whittaker, em seu artigo sobre o romance de Amos Tutuola, assinala,
citando a antropóloga Magaret Thompson Drewal, que:
a noção de “jornada” é um símbolo organizador importante no pensamento e nas crenças religiosas ioruba. Drewal argumenta que a jornada significa tanto um movimento físico ou uma trajetória pelo espaço quanto uma jornada ontológica que
37
engendra uma transformação no entendimento do indivíduo, em relação a sua experiência e conhecimento anteriores. (WHITTAKER, 2001, p. 9).
26
Na perspectiva de um sentido ontológico, a jornada do bebedor de vinho de palmeira
pode ser interpretada como uma representação literária do que Harry Garuba (2018) considera
ser o animismo. O professor da Universidade de Cape Town explica que “o pensamento
animista espiritualiza continuamente o mundo-objeto” e acrescenta: “Refiro-me a esse código,
a essa lógica do pensamento animista, como o ‘inconsciente animista’, um inconsciente que
opera basicamente numa recusa de bordas, binarismos, demarcações e linearidade da
modernidade.” (GARUBA, 2018, p. 130). Nesse contexto, notamos que o entendimento
universalista que molda o mundo tal qual o conhecemos pode não ser válido para todas as
culturas. Entramos na literatura nigeriana de Amos Tutuola sabendo que tempo e espaço não
são medidos segundo nossa tradição cartesiana. A lógica animista é uma recusa de conceitos
modernos legitimados.
Na viagem empreendida pelo protagonista do romance de Tutuola, cada aventura
vivida por ele parece ser uma unidade narrativa quase independente, o que assegura a
percepção do romance como uma sequência de pequenos contos, de acordo com as narrativas
da tradição oral, cujo interesse maior é a própria contação. No entanto, essas unidades
narrativas, muitas de caráter mitológico, não são realmente independentes. Apesar de cada
unidade ter o seu próprio título e se passarem em lugares diferenciados, elas estão atreladas ao
processo de amadurecimento do herói, que sai da casa do pai como um jovem inexperiente e
retorna como um homem maduro.
Durante sua viagem, o bebedor experimenta os desafios de mudanças de forma como
se elas fossem naturais, uma coisa ordinária a se fazer. Assim, mesmo quando se transforma
em pássaro, em canoa, em lagarto, ou até mesmo em ar, ele o faz para vencer os desafios
colocados no seu caminho e atingir o seu objetivo. O herói nos leva a questionar sua
identidade a cada vez que escapa de um perigo. Ele prova, de fato, ser um deus que pode fazer
tudo e qualquer coisa. Ao mesmo tempo, ser um deus não tira dele a obrigação de vivenciar
todas as provas que são colocadas em seu caminho. Esse é o sofrimento intrínseco ao ritual de
passagem vivido pelo herói.
Embora o romance de Tutuola abale a concepção linear de tempo e espaço, os eventos
narrativos que relatam a sequência de aventuras vividas pelo personagem são cronológicos. 26 “the notion of ‘the journey’ is an important organizing symbol in Yoruba thought and religious belief. Drewal
argues that it signifies both a physical movement or trajectory through the landscape and ontological journey that engenders a transformation in the individual’s understanding, in relation to their prior experience and knowledge”. (WHITTAKER, 2001, p. 9).
38
Nesse sentido, é possível dizer que o romance retoma um tema abordado no mito de Orfeu e
Eurídice e na epopeia latina Eneida, de Virgílio: a jornada de um personagem em busca de
um morto. No romance, o protagonista se lança num longo caminho para resgatar seu
vinhateiro, que caiu de uma palmeira e morreu, deixando-o sem seu precioso vinho, o único
líquido que ele podia beber.
Sobre a estrutura da narrativa, é importante observar que o narrador é o protagonista
que nos conta a sua história em primeira pessoa, à medida que os fatos acontecem. O que
pode ser significativo, pois o próprio personagem é quem tem o controle sobre a história que é
contada, entregando-nos um relato a partir de seu ponto de vista. Desse modo, ele é o sujeito
da ação em duas instâncias: ao compor a narrativa como um protagonista ativo e ao relatá-la
em primeira pessoa.
Num primeiro momento, o narrador se apresenta como um especialista na arte de
beber vinho de palmeira:
Ele [meu pai] tinha oito filhos, e eu era o mais velho. Os outros eram trabalhadores esforçados, mas eu era apenas um perito bebedor de vinho de palmeira. Começava a beber de manhã e continuava pela noite adentro. Àquela altura já não conseguia beber água comum, mas apenas vinho de palmeira. (TUTUOLA, 1970, p. 5).
Como alguém não apto ao trabalho, ao se apresentar na primeira página do romance, o
protagonista argumenta a favor de si mesmo, justificando, de certa forma, sua ação futura de
partir em busca do vinhateiro. Ele se lançará na jornada rumo ao mundo dos mortos como se
não houvesse outra coisa a fazer, uma vez que “já não conseguia beber água comum” e não
trabalhava como os outros irmãos.
O enredo, como anunciado nessas primeiras páginas, necessita de um leitor que
compactue com uma narrativa que não é realista, no sentido estrito do termo. Os limites do
mundo material, tal como o conhecemos, não têm efeito nessa história, pois desde o início nos
é dito que o protagonista irá resgatar seu vinhateiro da Cidade dos Mortos. O bebedor
apresenta uma justificativa razoavelmente lógica para sua empreitada: “[...] lembrei que os
velhos costumavam dizer que todas as pessoas que morriam não iam diretamente para o céu,
que ficavam morando em algum lugar deste mundo.” (TUTUOLA, 1970, p. 7). O personagem
explica sua ação como óbvia, e continua argumentando: “Sendo assim, resolvi que iria
descobrir onde estava o meu preparador de vinho de palmeira.” (TUTUOLA, 1970, p. 7).
Nesse momento, o discurso do narrador estabelece o pacto de leitura. Para prosseguir na
narrativa, o leitor deve acreditar que a viagem anunciada é possível porque a fronteira entre
39
vida e morte não é fixa. No mundo narrado, não existem barreiras intransponíveis, o que
permite que o bebedor procure por seu vinhateiro morto “em algum lugar” em que vivos e
mortos ainda habitam o mesmo mundo.
Podemos dizer que a partir da proposta do protagonista fica legitimado o que Mbembe
chama de espaço fantasmal, “onde tudo se passa num presente indefinido. O antes e o depois
são abolidos, as lembranças são desestabilizadas e a multiplicação domina. Em suma, a vida
mostra-se através de ranhuras e mutilações” (MBEMBE, 2003, p. 798). Nesse sentido, não há
lembrança, os eventos se acumulam e se sucedem nesse espaço que, a rigor, é tudo o que
ultrapassa as terras do pai do bebedor de vinho. Também não há oposição nesse domínio, a
contradição entre mortos e vivos é abolida, e as criaturas existem, estando vivas ou mortas,
sendo espíritos ou humanos.
Vale destacar que, na versão original em inglês, a cidade em que ele vive é
especificada como sendo a cidade natal do pai do protagonista. A versão original diz: “[...] I
left my father’s hometown [...]”. Uma tradução literal seria: “e saí da cidade natal de meu
pai”. Essa informação é importante para observamos que a mudança de identidade se dá com
a saída do personagem de seu mundo seguro, as terras do pai. A saída da casa do pai reforça a
interpretação dessa jornada como uma viagem iniciática, do amadurecimento do jovem
bebedor.
Mbembe, ao analisar o romance, considera que a “morte brutal e prematura do
vinhateiro constitui, de muitas maneiras, uma castração fantástica: a acoplagem entre o licor
seminal e poder narcisista é, de repente, abolido.” (MBEMBE, 2003, p. 800).27 A ferida
narcísica necessária para o processo de individuação do sujeito que constitui a separação da
criança de seus progenitores é representada nessa narrativa pela morte do vinhateiro. Mbembe
explica ainda:
De maneira geral, uma tragédia tendo por objeto central a fratura, até mesmo a perda do “ego”, situa-se na origem de tudo. A incapacidade do sujeito de dominar seus desejos e de assumir a falta – a ausência do prazer que estava, antes, associada à realização do desejo – estão na origem desta fratura e desta perda. (MBEMBE, 2003, p. 799).
28
27 “La mort brutale et prématurée du cueilleur de vin constitue, à bien des égards, une fantastique castration : le
couplage entre la liqueur séminale et la puissance narcissique est, soudain, aboli.” (MBEMBE, 2003, p.800). 28 “De manière générale, une tragédie ayant pour objet central la fracture, voire la perte de l’ ‘ego’ se situe à
l’origine de tout. Cette fracture et cette perte ont pour origine l’incapacité du sujet à maîtriser ses désirs et à assumer le manque – l’absence de la jouissance qui était, au préalable, associée à l’accomplissement du désir.” (MBEMBE, 2003, p. 799).
40
A insatisfação do personagem ao se deparar com a falta é clara. Logo após a
constatação da morte do vinhateiro, ele relata: “No dia seguinte, logo de manhã cedo, já não
tinha vinho de palmeira para beber, e durante todo aquele dia não me senti feliz como de
costume.” (TUTUOLA, 1970, p. 7). A frustração do sujeito é clara e imediata. Algo se
rompeu no paraíso onde o personagem tinha satisfação plena. A interpretação de Mbembe
elucida a situação: “Nessa troca entre o desejo e a satisfação, o vinhateiro representava a
metáfora viva do órgão fálico e a mediação sem a qual não existia nenhum contentamento. É
efetivamente o trabalho do vinhateiro que dava ao sujeito o meio de se amar: sua potência
narcísica.” (MBEMBE, 2003, p. 800).29
A partir desse rompimento, a viagem do bebedor de vinho em busca de seu vinhateiro
morto delineia os contornos de uma viagem de individuação de um personagem que assume o
arquétipo de herói.
A jornada de muitos Heróis é a história dessa separação da família ou da tribo, equivalente ao sentido de separação da mãe, que uma criança vivencia. O arquétipo do Herói representa a busca de identidade e totalidade do ego. [...] A tarefa psicológica que todos enfrentamos é integrar essas partes separadas em uma entidade completa e equilibrada. O ego — isto é, o Herói que acha que é separado de todas essas partes de si mesmo — deve incorporá-las para se tornar um ser integral. (VOGLER, 2006, p. 52).
A morte do vinhateiro pode ser entendida, levando-se também em consideração a
interpretação de Mbembe, como a separação da mãe, essa fonte que alimenta todos os desejos
da criança, mas da qual sua separação é inevitável como condição de desenvolvimento do
indivíduo. Nesse contexto, o bebedor pode ser entendido como um arquétipo de herói,
segundo as teorias de Vogler e Mbembe.
A trajetória do bebedor de vinho de palmeira é composta de eventos míticos que fazem
parte da cosmogonia ioruba, como, por exemplo, a história do bebê que nasce do polegar da
mulher. Sendo o mais velho dos irmãos e o único que não trabalhava, o protagonista, ao se
lançar nessa estrada mítica para resgatar seu vinhateiro morto, passa a se nomear “Pai dos
deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo” (TUTUOLA, 1970, p. 9). Há, portanto,
logo no início da narrativa, uma mudança na identidade do protagonista. O personagem migra
da imagem de bebedor de vinho para a autonomeação de um deus todo poderoso. Essa é uma
primeira transformação simbólica: de um ser inútil, ele se torna capaz de todas as ações.
29 “Dans cet échange entre le désir et sa satisfaction, le cueilleur représentait la métaphore vivante de l’organe
phallique et la médiation sans laquelle il n’existait point de contentement. C’est en effet le travail du cueilleur qui procurait au sujet le moyen de s’aimer soi-même : sa puissance narcissique.” (MBEMBE, 2003, p. 800).
41
Quando sai à procura de seu vinhateiro, o protagonista embrenha-se em matas e florestas, em
cidades e aldeias, sempre à procura daquele incumbido de preparar-lhe o vinho. Após sete
meses de caminhada, ele encontra um velho que exige dele a recuperação de um objeto que
está em poder de um ferreiro, para provar que ele é mesmo o “Pai dos deuses” (TUTUOLA,
1970, p. 10). Em troca, ele receberá a informação de onde está seu vinhateiro morto. O
protagonista explica: “[O velho] acrescentou que, se fosse capaz de trazer a coisa certa, ele
então acreditaria que eu era o ‘Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo’, e
me revelaria onde estava o meu vinhateiro.” (TUTUOLA, 1970, p. 9). Esse é o primeiro
desafio do herói, que deverá vencer os diversos obstáculos que lhe serão apresentados até
alcançar seu objetivo final. O desafio é a resolução de uma charada e se dá, portanto, entre o
bebedor que se considera deus, porque possui os jujus seus e de seu pai, e o velho, que
também “não era um homem de verdade, era um deus.” (TUTUOLA, 1970, p. 8). O bebedor,
como “Pai dos deuses”, precisa adivinhar qual é o objeto a ser resgatado e entregá-lo ao
“velho (deus)”. Na cena, a natureza do ser, se é deus ou humano, é questionada quando a
capacidade do herói de executar determinada tarefa é posta à prova.
Nessa jornada em que a identidade do sujeito está sendo amadurecida, é importante
considerar que a conexão do protagonista com sua linhagem e seus ancestrais,
simbolicamente, representa uma tomada de poder. O personagem relata: “Então, numa linda
manhã, peguei todos os meu jujus e também os jujus de meu pai, e saí da cidade disposto a
descobrir o paradeiro do meu vinhateiro.” (TUTUOLA, 1970, p. 8). Esse ato é simbólico,
pois, ao tomar para si os amuletos do pai morto, é como se ele tomasse a bênção de seu
ancestral. Assim, mesmo que ele vá sozinho nessa viagem de busca pessoal, há um sentido de
pertencimento a uma comunidade, no simbolismo da tomada dos jujus de seu pai e na
explicação de fazer como “os velhos costumavam dizer” (TUTUOLA, 1970, p. 7). Esses jujus
são os amuletos, os elementos mágicos que possibilitam as transformações físicas pelas quais
o personagem passará para enfrentar os obstáculos de sua jornada. Desde que um obstáculo se
interponha entre o herói e seu objetivo, ele usa um dos seus jujus e se transforma: “usei um
dos meus jujus e no mesmo instante me transformei num enorme pássaro”. (TUTUOLA,
1970, p. 9).
Assim, não importa o animal ou mesmo a coisa em que o personagem é capaz de se
transformar, o objetivo é transpor uma etapa. Como mais adiante, em outra situação, o
personagem relata: “Eu, que o estava seguindo, mas não queria que ele percebesse, usei um
dos meus jujus e me transformei num lagarto.” (TUTUOLA, 1970, p. 25). O jovem bebedor
se define, então, como sendo um homem que possui jujus, amuletos que lhe conferem
42
superpoderes, e, ao mesmo tempo, um deus: “Mas eu também era um deus e tinha meus
jujus.” (TUTUOLA, 1970, p. 9). A aparente instabilidade das mudanças de forma é
assegurada pela posse e por sua condição especial de ser um deus. Como um deus, o bebedor
pode fazer qualquer coisa com os jujus, pode vencer os obstáculos, transformando-se em
animais e em objetos.
A primeira vez que o protagonista usa de tal artifício é para descobrir qual é a “coisa
certa” que deve entregar ao velho. O narrador se transforma em pássaro e de cima do telhado
escuta uma conversa entre o velho e sua mulher, conseguindo a informação de que a “coisa
certa” era um sino que ele deveria recuperar do ferreiro. Entregando o sino ao velho, ele
consegue provar sua identidade de deus e obter a informação sobre o paradeiro de seu
vinhateiro morto.
Devemos considerar que a saída da casa do pai em busca do vinhateiro
simbolicamente se relaciona com a decisão de levar consigo a marca da linhagem familiar que
o conecta com sua origem, os amuletos de seu pai. Esse ato é simbólico, pois, ao tomar para si
os amuletos do pai morto, ficam legitimadas sua jornada e a afirmação de seu pertencimento a
uma comunidade que respeita aquilo que “os velhos costumavam dizer” (TUTUOLA, 1970,
p. 7). A ligação que o protagonista estabelece com seus ancestrais se dá também através da
memória, num exercício de reflexão interna. No original, o bebedor diz: “[…] then I thought
within myself that old people were saying that the whole people who had died in this world
[…]” (TUTUOLA, 2014, p. 5, grifo nosso). O que o personagem descreve como um
pensamento reflexivo, traduzindo literalmente o sublinhado como “pensei comigo mesmo”, é
traduzido, na versão brasileira, pelo verbo “lembrar”, que substitui bem esse ato de reflexão
interna descrito pelo personagem como uma rememoração de um ensinamento: “lembrei que
os velhos costumavam dizer que [...].” (TUTUOLA, 1970 p. 7). A memória é o elo entre o
passado, que explica e justifica sua decisão, e a atitude futura de se lançar na estrada.
Ainda em consideração ao original em inglês, é importante considerar que o tempo
verbal “were saying”, traduzido por “costumavam dizer”, expressa a permissão dos mais
velhos para a realização da viagem ao mundo dos mortos. Nesse processo de mudança de
identidade de um bebedor que se torna deus, “pegar” os jujus de seu pai é também assumir o
poder paterno para si.
A fala dos mais velhos também confere um sentido ritualístico à viagem do
protagonista, que pode ser interpretada de acordo com o que diz Campbell:
43
Os chamados ritos [ou rituais] de passagem [...] têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido. (CAMPBELL, 2007, pp. 20-21.)
A decisão do protagonista está de certa forma atrelada ao que diz Leda Martins sobre o
entrelaçamento entre os tempos promovido pela memória:
A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, contingências naturais, necessários na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. [...] Nessa sincronia, o passado pode ser definido como o lugar de um saber e de uma experiência acumulativos, que habitam o presente e o futuro, sendo também por eles habitado [...] a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo mas a sua concepção linear e consecutiva. (MARTINS, 2002, pp. 84-85).
Esse movimento espiralar, de um “pretérito contínuo”, como dito por Martins, está em
acordo com a leitura de Mbembe sobre a obra de Tutuola, quando o filósofo observa que, no
domínio fantasmal, impera um “presente indefinido”, em que as “lembranças são borradas”;
na espiralidade temporal que abole a linearidade, a “multiplicação domina” (MBEMBE, 2003,
p. 789). Os eventos se sucedem, e as possibilidades de existência parecem ser infinitas, nesse
reino de criaturas e transformações.
No entanto, mesmo num romance em que predomina o ambiente mítico e
fantasmagórico por onde o bebedor caminha em busca de seu vinhateiro morto, existem
referências específicas à presença colonial britânica nas terras iorubas. Ao marcar seus passos
pelas matas fantasmagóricas com as unidades de medida do sistema anglo-saxão, o
personagem mescla elementos da colonização britânica ao ambiente tradicional da cultura
ioruba. Por exemplo, notamos que o sentido de trabalho impõe novas formas de
relacionamento entre as culturas tradicional e colonizadora, sendo uma noção perturbadora no
mundo tradicional ioruba. Trabalhar não é um esforço para atingir um objetivo ou a realização
de uma tarefa necessária, mas implica um esforço que necessita ser recompensado. Trabalhar
para alguém e ser pago por isso é estranho para a lógica ioruba. No romance, o trabalho pode
ser interpretado como algo abstrato. Mas, mais do que isso, o trabalho é uma das formas
institucionais do sistema colonial de subjugar o homem negro.
44
As transformações físicas do personagem em outras formas que lhe permitam
sobreviver aos perigos que se interpõem ao seu caminho não deixam de ser uma
demonstração de força do herói. Do mesmo modo, seus superpoderes alcançados através do
seu amuleto mágico – os jujus – lhe dão condição de vencer os perigos e transpor os
obstáculos. No âmbito da narrativa mítica, essas estratégias estão legitimadas. No entanto, a
exigência de dinheiro para comprar comida surge como uma quebra da lógica desse mundo
em que se situa o protagonista. Ele precisa de dinheiro para comprar comida, pois não pode se
transformar nela. É exigido dele o atendimento de uma outra lógica em que se inscrevem
termos como trabalho e dinheiro.
Como estávamos sem dinheiro, fiquei imaginando como poderia consegui-lo para comprar a nossa comida, etc. Foi aí que eu me lembrei que o meu nome era “Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo”. [...] Chegando ao rio, cortei um pedaço de uma árvore e com ele fiz um remo. [...] Quando já estávamos dentro da água, eu dei uma ordem ao meu juju (que um espírito bondoso, que era meu amigo, havia me dado), e imediatamente ele me transformou numa grande canoa. Então a minha mulher entrou na canoa, e remando, ela usou o barco para transportar os passageiros pelo rio. O preço da passagem para adultos era de três cents, e as crianças pagavam apenas meia passagem. À noite, eu me transformei novamente num homem, e ao conferirmos o dinheiro que havíamos ganho naquele dia, havia sete libras, cinco xelins e três pence. Em seguida fomos para a cidade, e compramos tudo de que precisávamos. (TUTUOLA, 1970, pp. 41-42).
É interessante notar, nas peripécias do herói, que a necessidade de dinheiro para ter
acesso à comida tem mais destaque do que a própria fome que deveria ser o motor para
encontrar meios de saciá-la. Nessa passagem, como em outras do romance, a fome é
assinalada como um problema a ser resolvido. A resolução do problema se dá pelo
enfrentamento da questão de como conseguir dinheiro e pela obediência ao sistema de
trabalho remunerado, que atribui uma função a cada um: o homem transformando-se em
canoa apta à travessia do rio, a mulher cobrando pela travessia de passageiros. A solução
mágica de permitir que o protagonista se transforme em canoa não abole inteiramente o
obstáculo. É preciso que novas ordens sejam obedecidas para que o problema seja resolvido,
como a obtenção de dinheiro para comprar a comida.
O preço cobrado pela travessia do rio é especificado na narrativa ressaltando a
importância do dinheiro como moeda de troca no serviço de transporte. Não nos é possível
saber quanto valeriam os “cinco xelins e três pence” mencionados, basta-nos notar que, na
travessia, adultos e crianças pagavam um valor diferente, e que a soma dessa transação
resolveu toda a necessidade que os personagens tinham naquele momento.
45
Assim, é o dinheiro que resolve tudo: compra a comida para matar a fome. Nesse
episódio, elementos da colonização britânica se mesclam ao ambiente da cultura autóctone. O
que a cena descreve é uma situação em que o trabalho se torna a solução do problema da
fome, sendo valorizada a função do dinheiro. É interessante ressaltar que, sendo o bebedor um
“pai dos deuses”, seria de se esperar que pudesse solucionar o problema da fome sem precisar
de dinheiro. A mistura de elementos advindos de processos culturais diferentes esclarece a
dinâmica narrativa escolhida pelo autor do romance.
Assim, de acordo com a perspectiva filosófica de Mbembe, na narrativa de Tutuola:
Toda a estrutura da existência é tal que, para viver, deve-se constantemente escapar à permanência. Pois esta carrega a precariedade. Ela expõe à vulnerabilidade. A instabilidade e a mobilidade, ao contrário, oferecem possibilidades de fuga e de escapada. Mas a fuga e a escapada carregam também o perigo. (MBEMBE, 2003, p. 820).
30
As formas que o personagem assume são, portanto, sua possiblidade de sobreviver aos
perigos que se entrepõem no seu caminho. Mas toda essa capacidade de transformar comporta
seus próprios riscos, como na seguinte situação: “Foi aí que me lembrei de um dos meus jujus
e ordenei que ele nos fizesse parar, porém em vez disso começamos a nos mover mais
depressa ainda.” (TUTUOLA, 1970, p.63). Percebe-se então que as tradições africanas se
mesclam aos valores da colonização, fazendo com que o personagem assuma uma identidade
entrelaçada.
Essa identidade entrelaçada – própria de um processo que se efetiva ao longo da
viagem à Cidade dos Mortos e à volta à casa do pai – impõe-se ao mesmo tempo que
fronteiras estáveis precisam ser ultrapassadas. O mundo dos mortos não se separa
inteiramente do mundo dos vivos. Ao mesmo tempo que a identidade do herói é
constantemente posta à prova pelos diversos obstáculos, ao transpô-los com a ajuda dos
amuletos, os jujus, ou com a assunção de valores da lógica colonial, ele reafirma seu
pertencimento a uma determinada tradição, ao mesmo tempo que a ultrapassa.
Percebemos, portanto, que a viagem iniciática do bebedor ao mundo dos mortos
promove um deslocamento de conceitos a princípio considerados estáveis. Se levarmos em
consideração que o romance foi publicado em 1952, no final da presença dos colonizadores
britânicos que chegam às terras iorubas com a missão civilizadora, é possível notar os
30 “Toute la structure de l’existence est telle que, pour vivre, il faut constamment échapper à la permanence. Car
celle-ci est porteuse de précarité. Elle expose à la vulnérabilité. L’instabilité et la mobilité en revanche offrent des possibilités de fuite et d’échappée. Mais la fuite et l’échappée sont, elles aussi, porteuses de danger.” (MBEMBE, 2003, p. 820.)
46
processos de misturas que o romance encena. Os colonizadores leem os costumes culturais
iorubas como estranhos e não os legitimam. O romance mostra que a recíproca também é
verdadeira. Ao misturar elementos da cultura britânica com as lendas iorubas, o romance
causa estranheza quando, por exemplo, insere a lógica do trabalho remunerado e do valor do
dinheiro, pences e xelins, numa história formatada pelas lendas da tradição oral ioruba. Dessa
maneira, o romance questiona o sentido da lógica do trabalho, o valor do dinheiro e, em
última instância, a lógica colonial, ao mesmo tempo que afirma uma outra concepção de
mundo que, por exemplo, permite a transição entre o mundo dos mortos e o dos vivos e
pratica um modo de identidade fluida.
Nessa interseção cultural, o trabalho e a riqueza são questionados, apesar de serem
assumidos como prática. Como vimos, na apresentação que o protagonista faz de si mesmo,
ressalta sua incapacidade para o trabalho em oposição aos outros irmãos trabalhadores. Em
outro momento, a acumulação de posses é questionada diretamente por um personagem
chamado de “devedor invisível”, quando este pede emprego ao bebedor, nessa altura um rico
fazendeiro. “Contou-me que estava sempre ouvindo a palavra ‘pobre’, mas não sabia qual o
seu significado, e gostaria de saber. Pediu-me emprestada certa quantia de dinheiro, e em
troca trabalharia para mim como um empregado permanente.” (TUTUOLA, 1970, p. 96).
Nessa citação, a referência feita ao dinheiro destaca os que não o têm, fazendo de “pobre”
uma palavra estranha ao ambiente tradicional do herói, comprovando nossa interpretação de
que o mundo colonial britânico era estranho para os colonizados.
Algumas questões podem ser postas a partir das relações criadas pelas encenações do
trabalho e dinheiro na narrativa. Pode o esforço humano ser trocado por quantos cauris ou
xelins ou pences? Como uma determinada quantia de dinheiro “equivale” a um trabalho feito,
a um bem, uma coisa, ou mesmo um sentimento? Consideremos a seguinte passagem: “Antes
de entramos na árvore branca, ‘vendemos a nossa morte’ para alguém à porta, pela quantia de
setenta libras, dezoito xelins e seis pence, e ‘emprestamos o nosso medo’ a juros de três libras
e dez xelins por mês.” (TUTUOLA, 1970, p. 74). Assim, a colonização aparece como
assunto importante, mesmo que em vários episódios esteja referida apenas nas entrelinhas
desse romance assumidamente de caráter mitopoético. É então válido notar como o trabalho a
ser desempenhado pelo protagonista, no exercício de sua trajetória pelo mundo fantasmal, é
pago pelo dinheiro inglês, fazendo com que uma peripécia do mundo tradicional seja
contabilizada em dinheiro britânico. Para entrar na Árvore Branca, saindo da Cidade das
criaturas cruéis, o protagonista e sua mulher precisam vender alguns pertences: a morte e o
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medo são trocados pelo dinheiro inglês. Tudo indica que a moeda corrente nesse mundo
mitológico está definida pela cultura inglesa.
Em outro momento, o narrador faz referência ao que pode ser visto como uma crítica à
imposição de trabalho no mundo colonial, destacando que “A verdade é que nenhuma criatura
é pequena demais para ser escolhida para trabalhar.” (TUTUOLA, 1970, p. 53). Percebemos
como a desconstrução do homem, simbolicamente chamado de criatura, passa pela
desumanização. Trata-se do que é considerado humano ou não pelo imperialismo colonial, de
acordo com a análise de Memmi sobre o processo de desumanização dos colonizados
realizado pelo colonialismo na África. Desse modo, a violência do mundo colonial é
simbolicamente referida na seguinte passagem do romance. Assim, o narrador relata sua
entrada na cidade:
Ao entrar, vimos criaturas que nunca tínhamos visto antes na vida e eu não posso descrevê-las aqui; no entanto, posso contar algumas de suas histórias: a cidade era muito grande e repleta de criaturas estranhas, e tanto os adultos como as crianças eram muito cruéis com os seres humanos. Apesar disso, elas procuravam encontrar novas maneiras para tornar as suas crueldades ainda piores. (TUTUOLA, 1970, p. 64).
A crueldade é explícita na “cidade das criaturas cruéis” e não há meio possível de
explicar ou descrever a que ponto essas criaturas eram violentas. Na tentativa de “contar
algumas de suas histórias”, o que se sucede é a descrição de situações de nonsense absoluto.
Ao fazermos uma analogia com o terror cometido contra as populações africanas nos diversos
períodos em que os europeus exploraram o continente, não é possível ler descrições como as
que são colocadas pelo narrador na pauta da ironia. O que fica é mesmo a falta de sentido da
violência gratuita e a falta de humanidade daqueles que praticam os atos de violência. Seria a
impossibilidade do encontro com o Real, segundo Lacan. A violência é tal que escapa a
qualquer possibilidade representativa. Os sujeitos se tornam fantasmas, ou apenas criaturas.
Assim, no mundo fantasmal do bebedor de vinho de palmeira, eles são criaturas cruéis e
estranhas: “Se algum ser humano entrasse ali por engano, as estranhas criaturas o pegariam e
começariam a cortar o seu corpo em pedacinhos. Algumas vezes, com uma faca afiada elas
furavam os olhos das pessoas e assim as deixavam até que morressem de tanta dor.”
(TUTUOLA, 1970, p. 65).
Nesse mundo fantasmal, podemos entender que a exigência de trabalho trazido pela
colonização britânica é o que desumaniza o homem negro. O corpo negro é despedaçado para
ser significado apenas como força para o trabalho. A identidade mágica e mitológica do
48
protagonista se confronta com situações em que o sujeito colonial assume uma identidade
despedaçada. De um lado, o protagonista, de outro, o corpo coletivo representado pelas
diversas criaturas que ora remetem os colonizados ora os colonizadores.
Há ainda outros exemplos em que o protagonista associa a fome ao dinheiro e ao
trabalho. Ao destacar essas situações, o romance acentua novas formas de interação com o
ambiente criado pela colonização britânica. O dinheiro e o trabalho, assim como suas causas
ou consequências, a riqueza e a pobreza, são pontuados ao longo da trajetória do herói que
começa se apresentando da seguinte forma:
Desde menino, com dez anos de idade, eu já era bebedor de vinho de palmeira. Não fazia outra coisa senão beber vinho de palmeira. Naquela época não conhecíamos outro dinheiro a não ser o cauri, de maneira que tudo era muito barato, e meu pai era o homem mais rico de nossa cidade. (TUTUOLA, 1970, p. 5).
Na leitura que faz do romance, Mbembe refere-se a um “sujeito de trabalho” e ao
significado que essa relação tem na obra. Nas palavras do filósofo:
Num tal universo, o sujeito aparece, não como uma entidade feita de uma vez por todas, mas como um sujeito para o “trabalho”. O trabalho ele mesmo é uma atividade permanente. A vida se esquiva sob figuras sucessivas que constituem tantas “experiências”. Ela corre como um fluxo. O sujeito da vida é um sujeito de trabalho. [...] O “trabalho pela vida” consiste então em capturar a morte e trocá-la por outra coisa. Desse ponto de vista, a moeda da vida é a morte.
31 (MBEMBE,
2003, p. 813).
De acordo com a análise de Mbembe, o que está sendo descrito, a partir da violência
fantasmal e do corpo desse sujeito fantasmático, é a desumanização do sujeito colonial, nesse
caso, do negro. Uma vez que lhe é retirada toda humanidade, esse homem pode se tornar
qualquer coisa, passível de qualquer trabalho e, até mesmo, descartável.
Vê-se, portanto, que assim como faz Hampâté Bâ, em L’étrange destin de Wangrin,
as contradições do colonialismo se mesclam ao mundo tradicional africano também n’O
bebedor de vinho de palmeira. No romance francófono, com uma narrativa de caráter
realista, ressaltam-se as características da administração colonial francesa, com a contratação
do intérprete africano como peça dessa máquina colonial. No romance de Amos Tutuola, os
valores do colonialismo, principalmente os referentes à lógica do trabalho remunerado e à
31 “Dans un tel univers, le sujet apparaît, non comme une entité faite une fois pour toutes, mais comme un sujet
au ‘travail’. Le travail lui-même est une activité permanente. La vie s’esquisse sous des figures successives qui constituent autant de ‘vécus’. Elle coule à la manière d’un flux. Le sujet de la vie est un sujet au travail. […] Le ‘travail pour la vie’ consiste donc à capturer la mort et à l’échanger contre autre chose. De ce point de vue, la monnaie de la vie est la mort.” (MBEMBE, 2003, p. 813).
49
divisão de classe, permeiam o universo mitológico das histórias orais autóctones. Nos dois
romances, embora seja evidente a defesa de uma identidade ancestral africana, demonstra-se
que ela é atravessada por valores e concepções próprios da colonização francesa e inglesa.
2.4 Identidade em Terra sonâmbula
O romance Terra sonâmbula, de Mia Couto, também instiga a reflexão acerca do
tema da identidade. De pronto, percebemos que a representação dos personagens desafia
conceitos mais rígidos já consolidados sobre o tema, que presumem unidade e fixidez. O
romance nos apresenta sujeitos fragmentados à procura de reconstruir sua própria história,
juntando destroços, histórias e memórias, estratégia confirmada pela estrutura não linear do
romance.
O personagem Kindzu, cujas memórias são acessadas por Muidinga e Tuahir, é um
exemplo de identidade fragmentada. Pela leitura dos cadernos deixados por ele, temos
conhecimento do seu desejo de ir ao encontro dos naparamas, a fim de, como eles, tornar-se
um guerreiro. Pelos mesmos escritos, temos conhecimento de que faz parte da história do
jovem soldado encontrado morto o sentimento de orfandade, em consequência das muitas
perdas com que teve de conviver ao longo de sua curta existência: “Eu agora estava órfão da
família e da amizade. Sem família, o que somos? Menos que poeira de um grão. Sem família,
sem amigos: o que me restava fazer? Única saída era sozinhar-me, por minha conta, antes que
me empurrassem para esse fogo que, lá fora, consumia tudo.” (COUTO, 2007, p. 28).
Observamos nessa fala de Kindzu que sua representação é feita pela desconstrução.
Kindzu se descreve como alguém que existe na falta, “sem família, sem amigos”, portanto,
sem vínculos e sem afetos. Estar sozinho aparece como uma condição inevitável imposta não
como opção do personagem, mas pela situação de guerra que destruiu sua vida. Sendo assim,
não lhe resta opção viável, já que escolher o fogo é se entregar à morte, que é o fim de tudo, a
aniquilação total do sujeito. A metáfora “esse fogo que, lá fora, consumia tudo” alude à guerra
e, consequentemente, à própria morte. Esse é o caminho que o personagem tenta evitar.
Com essa passagem, notamos como a representação da identidade do personagem
delineia-se a partir de um princípio de desconstrução daquilo que a modernidade legitimou
como relativo à família e ao indivíduo. Por isso, em suas memórias, fica patente que a solidão
foi a saída ditada pela necessidade de sobrevivência, de fugir da guerra. A fuga da guerra
implicará contatos múltiplos, em convivência com a diversidade. De certa forma, pela
memória do personagem ficam explícitas formas de desconstrução/construção de movimentos
50
que consideramos característicos do conceito “Todo-mundo”, do teórico Édouard Glissant.
Para o teórico, o “Todo-mundo” aceita novas configurações identitárias que subvertem uma
visão de identidade delineada a partir de uma raiz única. O pensamento do teórico concretiza-
se na visão de mundo do personagem Bezaudin, do seu romance Tout-monde:
Deste modo, o que eles têm em comum, o antigo senhor e o antigo oprimido, é precisamente a crença que a identidade é um tronco, que o tronco é único, e que ele deve prevalecer. Vá além de tudo isso. Vá! Exploda essa rocha. Recolha os pedaços e distribua-os estendidos. Nossas identidades se alternam e, somente dessa forma caem em vã pretensão essas hierarquias escondidas, ou que forçam sub-repticiamente a se manter sob o louvor. Não consinta a essas manobras do idêntico... Abra ao mundo o campo de sua identidade. (GLISSANT, 1993, p. 185).32
Aceitando a diretriz de Glissant, que propõe ir além, observamos como deslocamentos
e trânsitos estão presentes no romance Terra sonâmbula como estratégia de construção
identitária. Kindzu se depara com a brutalidade da guerra que destruiu o país e parte à procura
dos guerreiros naparama. Do mesmo modo, Tuahir e Muidinga são apresentados, no início do
romance, como seres deslocados que vagam pelos destroços dessa mesma guerra. Muidinga,
Tuahir e Kindzu são, portanto, sujeitos despedaçados cujas subjetividades foram sequestradas
pela guerra. Como desdobramento dessa fragmentação identitária, notamos que, nas histórias
relatadas nos cadernos de Kindzu, alguns personagens, para escaparem da guerra, assumem a
representação de seres inumanos, por exemplo, os personagens Junhito, Taímo e, em certa
medida, Farida.
Esses personagens se metamorfoseiam no contexto de guerra em que vivem. O caso
mais explícito é o de Junhito, irmão de Kindzu. Para impedir que ele seja aprisionado pelos
bandos armados, os pais o escondem no galinheiro. Convivendo com as aves, o menino se
torna galo, ultrapassando a fronteira do humano. Ele desaparece da concretude da vida e vira
lenda nas histórias de Kindzu. Taímo e Farida, cada um com a especificidade de sua história,
viram espectros, fantasmas que margeiam a fronteira entre a vida e a morte. Taímo, o pai
morto, aparece para o filho Kindzu durante sua fuga. A tradição em que vivem possibilita que
o morto converse com os vivos, que os mortos surjam para os vivos em momentos de grande
aflição, quer como fantasma, quer como personagem de um sonho. Essa tradição legitima, no
romance, a presença de seres espectrais, nem vivos nem mortos. Farida, por sua vez, ainda
32 “Ce qu’ils ont en commun, ancien maître et ancien opprimé de cette sorte, c’est la croyance précisément que
l’identité est souche, que la souche est unique, et qu’elle doit prévaloir. Allez au-devant de tout ça. Allez ! Faites exploser cette roche. Ramassez-en les morceaux et les distribuez sur l’étendue. Nos identités se relaient, et par là seulement tombent en vaine prétention ces hiérarchies cachées, ou qui forcent par subreptice à se maintenir sous l’éloge. Ne consentez pas à ces manœuvres de l’identique… Ouvrez au monde le champ de votre identité.” (GLISSANT, 1993, p. 185).
51
que viva, assume uma existência fantasmal, vivendo afastada de todos no navio encalhado.
Todos esses personagens, de uma forma ou de outra, trazem a destruição em si.
Percebemos que os personagens tiveram suas rotas violentamente alteradas. As
ligações afetivas, os laços de parentescos e círculos sociais de cada um foram destruídos. Tal
ruptura afetiva caracteriza, por exemplo, o menino Muidinga e o velho Tuhair. No início do
romance, só os vemos como personagens que perambulam por uma estrada deserta, repleta de
destroços de guerra. Em suas andanças, eles são, principalmente, um velho e uma criança. Ao
se acercarem de um ônibus incendiado, encontram, em meio aos cadáveres insepultos, os
cadernos de Kindzu. A leitura desses cadernos humaniza a relação entre os dois. O velho
Tuahir, que parece desconectado de sua história, não demonstrando vínculos com o passado
ou com futuro, acaba por estabelecer uma forte ligação afetiva com o menino.
Notamos como esses personagens fragmentados pela experiência violenta da guerra
tentam se reconstruir pelos laços de afetividade. Kindzu, o soldado morto, autor dos cadernos,
torna-se um espelho para o menino Muidinga, que busca em Tuahir a figura de um pai
perdido. Do mesmo modo, nos relatos dos cadernos, percebemos que Kindzu também
buscava estabelecer um laço com seu pai, Taímo. As diferentes situações distendem o
aparente jogo de espelhamento em que o eu se projeta no outro. A leitura das histórias escritas
por Kindzu cria novas configurações afetivas entre o velho e o menino resgatado de um
campo de refugiados.
A necessidade de contar e de criar uma história faz-se condição para se fortalecer a
construção subjetiva dos personagens. É através do ritual de leitura que Muidinga demonstra
interesse de saber quem é: “- Me conte sobre a minha vida. Quem eu era, antes do senhor me
apanhar? [...] Conte, lhe peço.” (COUTO, 2007, p. 34). Ao pedido do menino Tuahir,
responde: “- Você nem tem estória nenhuma. Lhe apanhei no campo, ganhei pena de lhe ver
aranhiçar, com pernas que já nem conheciam andamento...” (COUTO, 2007, p. 34). E o
menino insiste: “- Mas o senhor me conhecia, sabia quem eu era? / - Nada. Você nunca me foi
visto. Agora, acabou-se a conversa. Apague a fogueira.” (COUTO, 2007, p. 35).
O menino pede por um passado que lhe constitua, para que ele possa se situar no
momento presente. Incapaz de se imaginar e de se dizer, sua identidade, como uma
construção subjetiva, fica comprometida. O menino sofre por não se lembrar de sua vida
anterior, por não saber de seus pais, finalmente, por haver perdido qualquer referência do que
é ser humano. O conflito de Muidinga fica explícito quando eles encontram um cabrito. Esse
encontro possibilita ao menino acessar uma lembrança e estabelecer um vínculo consigo
mesmo, ao ter um lampejo sobre o que possa ter sido o seu passado: “estremece: aquela era
52
uma primeira lembrança.” (COUTO, 2007, p. 37). Podemos dizer que o cabrito tem, na cena
do romance, o mesmo valor simbólico que tem a Madeleine de Proust, funcionando como um
elemento detonador da rememoração: “O cabrito lhe dá um sentimento de estar em aldeia,
longe daquele lugar perdido. No facto, se passava o inacreditável: um bicho lhe trazia de volta
o sentimento da família humana.” (COUTO, 2007, p. 36). A visão do cabrito distende as
cenas lidas nos cadernos de Kindzu e permite que “Muidinga imagina como será uma aldeia,
essas de antigamente, cheinhas de tonalidades. As colorações que devia haver na vila de
Kindzu antes da guerra desbotar as esperanças?! Quando é que cores voltariam a florir, a terra
arco-iriscando?” (COUTO, 2007, p. 37). As lembranças e a imaginação se unem e tornam o
menino capaz de se perceber: “Fica a olhar o desenho, com a cabeça inclinada sobre o ombro.
Afinal, ele também sabia escrever? Averiguou as mãos quase com medo. Que pessoa estaria
em si e lhe ia chegando com o tempo? Esse outro gostaria dele? Chamar-se-ia Muidinga?”
(COUTO, 2007, p. 37). São questões que o menino coloca para si mesmo.
Como ressalta Mbembe, a autopercepção é fundamental para reconstruir uma
identidade que foi fraturada. Segundo o teórico, “viver e gozar a vida é, estritamente falando,
a mesma coisa que si imaginar, si dizer e contar sobre si.” (MBEMBE, 2003, p. 791).33 A
capacidade de contar, de dizer delineia a subjetividade que faz do indivíduo um ser pensante e
lhe confere o que é próprio do humano. E o jogo de espelhamento entre os personagens do
romance em estudo se estabelece a partir do contato com o outro, ainda que este outro só
esteja nos escritos deixados por Kindzu. Enquanto Muidinga, mais de uma vez, pede para que
o velho lhe conte sua história, o menino lê para Tuahir as histórias de Kindzu.
Nesse emaranhado de histórias, algumas são carregadas de violências, marcadas pela
busca do afeto e pela necessidade de criar novos laços. A guerra civil que assolou
Moçambique após a independência do país, período em que se situa o romance, aparece como
causa principal do esfacelamento social e afetivo que os personagens enfrentam, como fica
confirmado pela fala de um feiticeiro, no final do romance.
Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. [...] Vós vos converteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. (COUTO, 2007, p. 201).
33 “Vivre et jouir de la vie est, strictement parlant, la même chose que s’imaginer, se dire et se raconter.”
(MBEMBE, 2003, p. 791).
53
No contexto dessa guerra, a brutalidade dos acontecimentos é tamanha que, muitas
vezes, compromete a construção subjetiva que o indivíduo faz de si, afetando seu
entendimento do mundo e de si mesmo, por comprometer sua capacidade imaginativa. Kindzu
relata: “Pouco a pouco nos tornávamos outros, desconhecíveis.” Ao longo do romance, a
perda da capacidade de sonhar é apontada como uma consequência do comprometimento
dessa construção subjetiva necessária aos indivíduos. O sequestro da subjetividade se dá pela
violência da guerra, como dito na citação. Kindzu reflete sobre o esfacelamento de sua família
causado pela guerra que a deixa pobre, tanto material quanto subjetivamente:
A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saímos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. / Aos poucos, eu sentia a nossa família quebrar-se como um pote lançado no chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado meu refúgio já não restava nada. Nós estávamos mais pobres que nunca. (COUTO, 2007, p. 17).
Sem sonhos e sem ter o que comer, é, finalmente, na busca estrita pela sobrevivência
que se perde o que é humano. O pai de Kindzu, um bêbado sonhador que gostava de contar
histórias aos filhos, morre. A mãe se entrega aos devaneios, um outro modo de expressar as
rachaduras em sua identidade. O espaço deambula, sem eixo, desafiando qualquer perspectiva
de rigidez. Como já indicado no título do romance, trata-se de uma terra sonâmbula. Kindzu
se descreve como um ser destruído: “Tantas infelicidades me tinham aleijado: o
desaparecimento de meu irmão, a morte de meu pai, a loucura de minha família. Mas nada me
afectou tanto como a partida do indiano.” (COUTO, 2007, p. 27). O personagem descreve a
perda dos laços afetivos que o constituíam, família e amigos, principalmente o grande amigo
Surendra, o comerciante indiano.
Nesse processo de esfacelamento das relações, as marcas de passagem do tempo ficam
comprometidas. O tempo se alonga numa gravidez infinita, como explica a mãe de Kindzu,
no diálogo a seguir: “- Estou grávida, filho. Não é de agora, é já de muito tempo. / - Muito
tempo, quanto? / - São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer nesse tempo.
Fica assim dentro de mim, me companha o coração.” (COUTO, 2007, p. 33, itálico original).
A mulher se entrega à função de apenas esperar. Ela se faz esperar eternamente, gestando um
filho que nunca virá. Nessa guerra, o tempo torna-se longo e indefinido. Nesse tempo, não há
mais lugar para a vida. A gravidez, momento máximo de fertilidade, é transformado numa
gestação impossível. A geração da vida é improvável e até melhor que não aconteça.
Percebemos uma situação similar na fala do velho Tuahir, quando este conversa com o
54
menino Muidinga, que busca os pais: “- E me diga: você quer encontrar seus pais porquê? / -
Já expliquei tantas vezes. / - Desconsigo de entender. Vou-lhe contar uma coisa: seus pais
não lhe vão querer nem vivo./ - Porquê? / - Em tempos de guerra filhos são um peso que
trapalha maningue.” (COUTO, 2007, p.11, itálico no original).
Como dissemos em outro momento, a história de Farida é também a de uma vida
despedaçada. A personagem, gêmea de outra irmã, tem sua família destruída pela imposição
da tradição seguida na comunidade em que nasce. Segundo os preceitos de sua tradição, os
gêmeos são causa de mau agouro. Separada de sua irmã e de sua mãe, Farida cresce à revelia
da própria vida. Acolhida por um casal de portugueses, é relativamente bem cuidada pela
senhora que a adota até ser enviada à missão católica. Farida foge da missão e é estuprada por
seu pai adotivo. Dessa relação, ela tem um filho, que, no entanto, não lhe desperta nenhum
sentimento maternal: “Esse menino nasceu sem que ela nascesse mãe.” (COUTO, 2007, p.
79). Farida é assim uma filha que não deveria ter nascido e torna-se uma mãe de um filho que
também não foi desejado.
Gaspar, o filho de Farida, perde-se pelo mundo até ser reencontrado pela senhora
portuguesa, Virgínia. O menino cumpre um círculo completo ao sair e voltar ao mesmo ponto,
sem, no entanto, nunca estabelecer vínculos, ficando sempre órfão. Virgínia tenta estabelecer
conexão com o menino. Apela para uma relação de parentesco permitida pelo casamento com
o marido, o verdadeiro pai da criança. Através dessa aliança, ela imagina construir uma
maternidade impossível: “- Porque tu és meu filho. Teu pai foi o meu falecido homem, tu és
quase-quase do meu sangue.” (COUTO, 2007, p. 164, itálico original). A velha senhora
portuguesa confirma, nessa fala, que o menino nasceu do estupro de Farida pelo marido dela,
Romão. No entanto, o menino não fica por muito tempo com a velha Virgínia, incapaz de lhe
dar o acolhimento de uma mãe.
Com essas passagens do romance, percebemos como o ciclo da vida é interrompido
pela guerra. Já não há mais nem começo, nem fim. O filho nasce já sem mãe. A outra mãe
espera, sem ter o filho junto de si. Kindzu se diz cansado, enquanto devaneia, esperando um
fim que não chega: “Minhas visões se vazavam e eu despertava, cansado, quem sabe, de não
morrer.” (COUTO, 2007, p. 47). Nem a morte que encerra a vida parece chegar na hora certa,
assim como a vida não é mais o começo de nada. A guerra altera a percepção do tempo e
borra a fronteira entre vida e morte. Como reflete o narrador ao relatar a história de Farida:
“Uma coisa a guerra faz acontecer: tudo se vai tornando verdade. Está-se pisando a fronteira,
morte e vida nos trocáveis lados de um mesmo risco.” (COUTO, 2007, p. 80).
55
Esses processos de fragmentação identitários promovidos pela violência da guerra
afetam a percepção que os indivíduos têm de si e do mundo a sua volta. Farida, ao se isolar no
barco, desloca-se de si mesma. Ainda viva, ela se pensa como morta: “Sei que sou um deles,
um espírito que vagueia em desordem por não saber a exacta fronteira que nos separa de
vocês, os viventes.” (COUTO, 2007, p. 83, itálico original). O personagem assume para si a
identidade de um espírito. Ela não se identifica mais com o mundo dos vivos, justamente por
“pisar” essa fronteira entre a vida e a morte. Confirmando tal percepção, Kindzu, ao avistar
Farida pela primeira vez, também a coloca nesse lugar, conferindo-lhe uma identidade
fantasmal, no sentido dado por Mbembe: “Foi então que encontrei a mulher. No princípio, era
só um vulto no meio das cordas. Seria mais um fantasma.” (COUTO, 2007, p. 62).
A primeira visão que Kindzu tem de Farida, antes de se impressionar com sua beleza,
é essa confusão entre vida e morte; ele a vê como um algo entre os mundos, como um
fantasma. De certa forma, Farida cumpre sua sina de gêmea. Seu nascimento, ao contrário de
trazer vida ao mundo, é interpretado dentro de sua cultura como um sinal de morte: “Cumpria
um castigo ditado pelos milénios: era filha-gémea, tinha nascido de uma morte.” (COUTO,
2007, p. 70). Farida cresce com o peso da morte ao seu lado, acreditando que sua irmã, por
exigência da tradição, havia sido morta, até que sua tia Euzinha lhe revela o segredo de sua
mãe que, incapaz de matar a própria filha, entrega-a a um casal. Mais uma vez, seguindo os
preceitos da tradição, a mãe de Farida é afastada da aldeia para não contaminá-la com seu
sangue impuro, concretizando a ruptura familiar que deixa Farida à deriva de sua própria
existência.
Em meio aos escombros de guerra, os sujeitos se reformulam a partir dos novos
encontros. Os personagens entrecruzam suas histórias e, assim, entrelaçam suas identidades.
Nesse sentido, destaca-se a amizade entre o indiano Surendra e Kindzu. De um lado, a
amizade é valorizada como o encontro, que permite o vínculo por laços afetivos que se criam;
de outro, a relação explicita as fissuras da sociedade em que ambos se encontram, expondo a
desunião criada pela ideia de raça. O jovem Kindzu deixa registrado em seu caderno sua
amizade com o indiano:
Surendra sabia que minha gente não perdoava aquela convivência. Mas ele não podia compreender a razão. Problema não era ele nem a raça dele. Problema era eu. Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre, o pastor Afonso. Suas lições continuavam mesmo depois da escola. Com ele aprendia outros saberes, feitiçarias dos brancos, como chamava meu pai. Com ele ganhara esta paixão das letras, escrevinhador de papéis como se neles pudessem despertar os tais feitiços que falava o velho Taímo. Mas esse era um mal até desejado. Falar bem, escrever muito bem e, sobretudo, contar ainda melhor. Eu
56
devia receber esses expedientes para um bom futuro. Pior, pior era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em mestiçagem de baixa qualidade. (COUTO, 2007, pp. 24-25).
Esse relato descreve de forma relativamente sucinta o contexto geral em que se situam
esses personagens de identidades despedaçadas, como Muidinga, Thuair e Farida. Assim
como Kindzu, todos trazem em si a marca do processo colonial que inseriu, misturou e
excluiu costumes, o que significa que a fragmentação identitária, como observamos aqui,
exacerbada pela violência da guerra civil moçambicana, era algo que já podia ser constatado
em certos casos. O paradigma racial instaurado pela colonização europeia abala a estrutura
social das sociedades autóctones como a moçambicana, nesse romance de Mia Couto, bem
como a nigeriana, no romance de Amos Tutuola, e a malinesa, no romance de Hampâté Bâ.
Por um lado, a relação homem e mulher explicita, em Terra sonâmbula, a brutalidade
da colonização portuguesa em solo moçambicano. Em certa medida, o estupro de Farida por
Romão Pinto não deixa de ser uma metáfora desse processo colonial. Por outro lado, a
presença das missões e mesmo da escola, que institucionaliza a imposição do português
falado e escrito, expõe a complexidade desse processo como “um mal desejado”. É a escrita
de Kindzu que permite a reconstrução, a estruturação das histórias contadas por ele, além de
sua própria. Nessa perspectiva, a dicotomização oralidade e escrita fica invalidada. A escrita
é, ao mesmo tempo, perturbação e redenção. O ato de escrever e ler deixa de ser apenas
perturbação no universo da oralidade, porque, alimentando-se dela, permite, como os
caderninhos de Kindzu, o registro de um mundo que a guerra destruiu.
Nesse sentido, a relação entre oralidade e escrita, no romance, acompanha os
questionamentos identitários abordados pelos personagens, sobretudo na relação entre Kindzu
e Surendra. Todas essas indagações se ajustam de certa forma ao pensamento de Glissant,
quando coloca em pauta o conceito de crioulização.
A crioulização, que é um dos modos do emaranhamento – e não apenas uma resultante linguística –, só tem de exemplar os seus processos e certamente não os seus “conteúdos”, a partir dos quais aqueles funcionariam. [...] O que nos move não é apenas a definição das nossas identidades, mas também a sua relação com todo o possível: as transformações mútuas que esse jogo de relações gera. As crioulizações introduzem à Relação, mas não para universalizar; a “crioulidade”, no seu princípio, regressaria às negritudes, às francidades, às latinidades, todas elas generalizantes – mais ou menos inocentemente. (GLISSANT, 2011, p. 89).
A reflexão de Glissant sobre a crioulização possibilita pensar as construções
identitárias a partir dos elos afetivos que se constroem ao longo da existência. Esse modo de
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“emaranhamento” de culturas, histórias e, finalmente, de identidades está presente no
romance de Mia Couto e de Hampaté Bâ, na encenação do entrelaçamento de culturas e na
reinvenção dos laços afetivos que possibilitam o engendramento de novas configurações
identitárias.
A reconstituição dessas identidades despedaçadas em novos arranjos só é possível a
partir da reinvenção dos laços afetivos que, como sugere a crioulização, introduz “à Relação,
mas não para universalizar”. Pode-se dizer que o romance de Mia Couto, ao encenar
realidades do pós-independência moçambicano, anuncia elementos da crioulização, a
reinvenção de laços afetivos que engendram novas configurações identitárias.
Para concluir a reflexão sobre identidade apresentada neste capítulo, podemos ressaltar
que os personagens de cada romance podem ser lidos como uma metonímia dos sistemas
políticos encenados. Enquanto o personagem de Tutuola mostra-se um sujeito imerso em
mitos ancestrais que se vale de referências da colonização inglesa para se comunicar, o
personagem do romance de Bâ tem domínio impecável das estratégias utilizadas pelo sistema
colonial, sem deixar de transitar pelos espaços da tradição, assumindo um lugar de poder,
ainda que pague um preço alto por isso. No romance de Mia Couto, voltado a questões do
pós-independência, os personagens encenam um processo de reconfiguração identitária na
qual se inscreve, entretanto, a permanência de vários elementos da colonização, demonstrando
que o sistema colonial estende seus tentáculos para além das independências. Nesse sentido,
percebemos como esses personagens, estabelecem uma correspondência com seus respectivos
sistemas políticos numa relação de contiguidade entre os objetos dados. Observamos a relação
metonímica entre os indivíduos de um país e o sistema político vigente. Os personagens
encenam as condições histórico-sociais das culturas a que remetem. Essa relação ficará ainda
mais evidente ao analisarmos algumas questões relacionadas ao espaço colonial no capítulo
seguinte.
58
3 O ESPAÇO E AS ESPACIALIDADES ENCENADOS PELOS ROMANCES
O espaço, como categoria de análise literária, não pode ser resumido a uma única
abordagem. Em Teorias do espaço literário, Luis Alberto Brandrão (2013) esclarece a
respeito das diversas abordagens possíveis sobre a categoria espaço na literatura. Dentre elas,
destacamos duas formas que nos servem como operadores de leitura para este capítulo. De um
lado, a partir das obras estudadas, percebemos o espaço, principalmente, como uma
representação social, “ou seja, como conteúdo social – reconhecível extratextualmente – que
se projeta no texto.” (BRANDÃO, 2013, p. 48). Segundo Brandão, essa é uma corrente
sociológica ou culturalista que não se preocupa em definir conceitualmente “espaço”, mas
opera com um uma noção de espaço. De outro lado, por se tratar de uma análise literária, ou
seja, de um trabalho com o texto, não deixamos de esbarrar em alguns questionamentos
próprios da linguagem literária. Perceber a espacialidade da própria linguagem é defesa de
uma corrente formalista e estruturalista, ainda segundo Brandão. A princípio, identificamo-
nos com a abordagem da primeira corrente dita culturalista, ao vermos representada, nos
romances, dentre outras configurações espaciais, uma noção de África construída pelo
imaginário da presença colonial no continente. No entanto, ao investigarmos nos romances
como essa figuração se delineia, tocamos em estratégias próprias da linguagem literária,
aproximando-nos de um viés mais voltado à materialidade do texto.
O teórico Harry Garuba explica como a mediação europeia do território físico
africano, desde seu mapeamento até a ocupação dos locais, estabelece uma apropriação
cognitiva dos sujeitos que são subjugados ao discurso europeu que estrategicamente se torna
hegemônico (GARUBA, 2002, p. 95). De tal forma que “não é acidental que mapas e
metáforas sobre mapeamento sejam abundantes nos estudos pós-coloniais, porque o
colonialismo como um regime de poder foi amplamente organizado pela espacialidade e
subjetividade: espaços a capturar e sujeitos a controlar” (GARUBA, 2002, p. 87). Essa
afirmação é feita pelo teórico, ao iniciar seu artigo intitulado “Mapeando a terra/ corpo/
sujeito: geografias coloniais e pós-coloniais na narrativa africana”. Nesse sentido, Terra
sonâmbula, O bebedor de vinho de palmeira, assim como L’étrange destin de Wangrin,
servem de exemplo para as considerações de Garuba sobre espacialidade e subjetividade.
Observamos que tanto identidade quanto espaço são concepções subjetivas e
historicamente construídas. Cada narrativa encena uma realidade que lhe é específica, sendo
uma forma de percepção do mundo afetada pelos processos identitários e pelos espaços por
onde os personagens circulam. Assim, em cada narrativa encontramos uma realidade que lhe
59
é específica. As relações – sejam entre personagens como Muidinga, Tuahir e Kindzu, em
Terra sonâmbula, ou a relação com o dinheiro, como explicitado por Wangrin em busca de
poder, ou os trânsitos do protagonista por diferentes lugares, como exposto pela trajetória do
protagonista em O bebedor de vinho de palmeira – afetam e até podem determinar a relação
do homem com o espaço e o tempo. Assim, perguntamo-nos como o elemento espaço está
trabalhado nas trajetórias das personagens principais dos romances em estudo.
De forma sucinta, no romance L’étrange destin de Wangrin, percebemos o quanto o
protagonista está fixado em um território que caracteriza uma situação específica de sua
época, uma vez que se desenha, ficcionalmente, uma carta geopolítica da região colonial
francesa. O espaço de Wangrin se constitui, então, como lugar geopolítico, onde as relações
de poder atuam sobre o território. Em contraposição ao eixo cartesiano da carta geográfica por
onde transita Wangrin, o mundo fantasmal do Bebedor de vinho de palmeira delineia um
espaço fluido, quase sem bordas, no limiar da vida. O espaço, no romance de Tutuola, se
estrutura como devaneio imaginado de difícil categorização, porque sua composição subverte
qualquer lógica axial. Terra sonâmbula traz, no título, a representação espacial de um
território que se constrói, na visão dos personagens, como um país imaginado. Ao mesmo
tempo, o romance encena territórios de experiências vividas pelos diferentes personagens.
Muidinga, Tuahir e Kindzu tentam ressignificar o espaço em guerra em que se transformou
seu país. A visão de uma terra sem eixo, como evocada pelo adjetivo sonâmbula, é em
decorrência de uma situação geopolítica específica, que é a experiência da guerra civil do
período após a independência colonial de Moçambique.
3.1 O espaço mitológico em O bebedor de vinho de palmeira
De acordo com o verbete “espaço” em Le dictionnaire du littéraire, segundo
Blanchot, o espaço literário, no romance, usufrui de uma completa liberdade de representação,
chegando ao absoluto da fascinação, cuja figura principal é a imagem. Nesse sentido, o
espaço fantasmal do romance O bebedor de vinho de palmeira é construído no limiar entre
a vida e a morte, sendo detalhada uma espacialização mitológica que, de certa maneira,
remete a concepções difundidas pela cultura grega: “A subjugação do mito é total,
internalizando no espaço do corpo a imortalidade dos deuses e a mortalidade dos homens.”
(MIRANDA, 2008, p. 46). A mitologia, que busca a origem do mundo, se transforma na
apreensão desse espaço em que a presença da morte é uma ameaça constante. A representação
60
do espaço torna-se, no romance, uma experimentação concreta de um mundo imaginado,
ficcionalizado por sua aparência mitológica.
Em O bebedor de vinho de palmeira, a profusão de imagens problematiza os limites
e as possibilidades de representação, incitando questionamentos sobre a mimésis poética. Essa
questão é posta por Mbembe, quando considera que o mundo fantasmal é
mais do que um espaço geográfico, o espaço fantasmal pertence, primeiramente, ao campo visual, àquele das imagens e visões: fantasmas, domínios estranhos, máscaras, surpresas e espanto, em suma, um comércio permanente com famílias de signos que se entrecruzam, se contradizem, se anulam, se relançam, se distanciam em seus próprios limites. (MBEMBE, 2003, p. 797).34
Entre esses diversos signos que vinculam a narrativa à tradição autóctone, sem
desconsiderar a influência da colonização britânica, destaca-se a tentativa de criação de um
espaço que permite o encontro entre vivos e mortos. Nesse espaço, em que tudo é possível, é
exercitada a liberdade de representação proporcionada pela linguagem verbal. Enfatiza-se a
estrutura narrativa do mito que delineia os obstáculos a serem vencidos pelo protagonista.
Nessa narrativa, tenta-se explicar, metaforicamente, a origem do mundo. O desfecho da
jornada do bebedor traz a simbologia do significante ovo, aludindo a origem do mundo ao
simbolizar a origem da vida. Depois da peregrinação por espaços inusitados, o protagonista
encontra seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos. No entanto, ele retorna a sua cidade
natal, levando consigo não o vinhateiro, mas um ovo mágico, que simboliza a origem do
mundo. Dessa forma, a jornada se encerra, resumindo: “E é assim que, de todas as
dificuldades, sofrimentos e tantos anos de viagem, havia restado apenas um ovo.”
(TUTUOLA, 1970, p. 135). Um ovo, no entanto, que simboliza a vida: “UM OVO QUE
ALIMENTOU O MUNDO INTEIRO” (TUTUOLA, 1970, p. 137, em destaque no original).
Esse título é dado ao trecho final do romance quando se refere aos milagres proporcionados
pelo ovo mágico que soluciona os problemas da seca. Na tentativa de encontrar a solução para
a falta de chuva, a narrativa, valendo-se da metáfora do ovo, termina por unir céu e terra, na
busca pela origem do mundo, simbolizando a criação.
Miranda, em “Geografias imaginárias da Terra”, aborda a espacialidade e sua relação
com a mitologia, estabelecendo uma relação entre terra e corpo. A reflexão do autor,
fundamentada em Marx, é válida para explicar que “a apropriação da Terra passa basicamente
34 “Plus qu’un espace géographique, l’espace fantômal appartient, d’abord, au champ visuel, celui des images et
des visions : fantasmes, étranges domaines, masques, surprises et étonnement, bref, commerce permanent avec des familles de signes qui s’entrecroisent, se contredisent, s’annulent, se relancent, s’égarent dans leurs propres limites.” (MBEMBE, 2003, p. 797).
61
pelo domínio e exploração dos corpos”. (MIRANDA, 2008, p. 62). As considerações do
estudioso permitem perceber que, no livro de Tutuola, a morte é a motivação do romance.
Afinal, é a busca pelo vinhateiro morto que desencadeia a narrativa. Unindo morte e vida, o
bebedor exercita muitas formas de vida, trazendo essa experiência para o espaço do corpo,
desafiando concepções de representação canônicas e confirmando, no final do romance, o
caráter mítico da narrativa, ao unir terra e céu e revelando a busca mítica pela gênese da
existência.
3.2 Espaço e imaginário colonial nos romances
Ao refletirmos, no capítulo anterior, sobre a construção da identidade dos sujeitos,
levando em consideração os romances que constituem nosso corpus de análise, procuramos
considerar, sobretudo, como a extensão do fato colonial afetou a constituição subjetiva dos
personagens. O fato colonial ressignifica o contexto e as tradições do continente africano,
afetando o imaginário cultural de diferentes povos, mesmo após as independências. Isso pode
ser visto, por exemplo, em Terra sonâmbula. Kindzu deixa registradas em seus cadernos
suas reflexões tiradas a partir de suas vivências. O personagem mostra ter uma percepção
crítica da situação de seu país. Seu olhar crítico denuncia, através de alusões e analogias, o
estado de desespero do povo que ataca as carnes de uma baleia que está à beira da morte,
encalhada na praia. Diante da cena, Kindzu conclui com a seguinte comparação: “Agora, eu
via meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia.” (COUTO, 2007, p. 23).
Fica, dessa forma, constado pelo personagem o estado de calamidade em que se encontram o
país e o povo, no pós-independência.
O estado da guerra deflagrada na Moçambique de Terra sonâmbula respinga na voz
de Kindzu e nos remete a outros tempos, deixando a colonização portuguesa nas entrelinhas
da guerra civil. Em trecho do romance, a seguir, o contexto da guerra civil moçambicana fica
delineado, sobretudo, pela referência à ação dos bandos armados: “Os bandos disparavam
contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem sabe alvejassem não as casas mas o
tempo, esse tempo que trouxera o cimento e as residências que duravam mais que a vida dos
homens.” (COUTO, 2007, p. 23). Kindzu especula sobre o verdadeiro alvo daqueles que
atiravam, ao que parece aleatoriamente, nas casas. Ao destacar que essas eram construções de
cimento e estabelecendo a relação de durabilidade do material de construção com o tempo da
vida humana, o narrador coloca em questão a forma de o homem se relacionar com o tempo,
ao construir residências que permanecem para além da vida. Inquirindo de forma indireta e
62
poética com o uso de “quem sabe”, o personagem faz do tempo sujeito da ação: “esse tempo
que trouxera o cimento”. Inferimos que o narrador traz, nas entrelinhas, a permanência da
colonização, através do demonstrativo “esse” que, ao pretender explicar “o tempo”, remete a
algo anterior, não na frase, mas na história de Moçambique. No contexto da guerra civil
moçambicana encenado pelo romance, entendemos que o espaço moçambicano é referido,
metaforicamente, pela alusão ao cimento e, dessa forma, remete ao tempo em que os
portugueses colonizaram o país. A guerra descrita por Kindzu é permeada desse imaginário
colonial, mostrando a permanência de um “tempo” que não vai embora, mesmo com a partida
oficial dos portugueses, com a independência de Moçambique, marcando o fim da
colonização, em 1975.
Retomando a comparação entre o país e a baleia moribunda, o personagem se refere ao
país em estado de guerra sendo também atacado pelo seu povo. A subjetividade de Kindzu é
construída com as marcas deixadas pela colonização no espaço nacional. A fala do
personagem estabelece uma relação entre a baleia, o país, o povo e ele próprio, ao dizer:
“Estou condenado a uma terra perpétua, como a baleia que esfalece na praia. Se um dia me
arriscar num outro lugar, hei-de levar comigo a estrada que não me deixa sair de mim.”
(COUTO, 2007, p. 23). Estendendo o tempo e a violência numa terra infinita, Kindzu
impregna sua terra e a si mesmo do imaginário colonial que não passa. O espaço em Terra
sonâmbula é, portanto, constantemente revisitado por elementos desse imaginário. Assim,
alguns questionamentos relativos a uma noção de espaço fazem-se pertinentes, neste capítulo,
quando procuramos entender os romances estudados numa relação entre o tempo colonial –
que termina, mas não passa – e o espaço, configurado e reconfigurado pela colonização e pós-
colonização.
Ao contrário de Kindzu, que, ao expor sua percepção sobre o espaço ao redor,
apresenta uma configuração espacial construída a partir de sua subjetividade, o personagem
Wangrin, de Hampaté Bâ, transita pelos espaços africanos ressignificados pela presença
colonial. Nesses espaços, é possível perceber, de um lado, a circulação social feita por meio
de redes de relações tecidas pela tradição de marabouts35, curandeiros, griôs, contadores de
histórias e associações diversas. De outro, a categorização imposta pela colonização, através
de seus valores, estagna o trânsito social. A trama do romance esclarece como a administração
35 Os marabouts são originalmente mestres religiosos, tidos como homens santo na tradição sufi, na cultura
muçulmana. Em diversas culturas africanas, se tornaram curandeiros incorporando outras tradições a suas práticas místicas. Como guias espirituais, são conselheiros para todos assuntos. São ainda curandeiros e adivinhos. Com seus feitiços e amuletos, fornecem apoio e esperança a seus clientes fiéis em troca de algum tipo de pagamento, presentes ou dinheiro, já que dedicam suas vidas aos assuntos espirituais.
63
colonial, além de demarcar fronteiras, se vale de uma escala de valores preestabelecida de
acordo com a origem de cada parcela da população.
Na época, o grau de moralidade de um indivíduo media-se em parte devido à importância dos serviços que ele havia rendido à penetração francesa e, em parte, devido à situação geográfica de seu país de origem. É assim que o mais moral dos homens eram os europeus brancos. Depois deles vinham os martiniquenses e guadalupenses, em seguida os senegaleses autóctones das quatro comunas – Saint-Louis, Goreia, Rusfique e Dakar –, os antigos militares indígenas e, enfim, por último, o restante da população. (BÂ, 1992, p. 49).
36
A “época” a que a citação se refere é a da colonização francesa, em que um
comandante francês governa uma região administrativa chamada de círculo (cercle). No
momento específico da trama, os personagens Wangrin e Racoutié se encontram no círculo de
Diagaramba, localidade fictícia, mas que poderia ser situada em alguma parte do atual Mali.
O narrador explica que a briga entre Racoutié e Wangrin é julgada pelo comandante, que
busca se informar com as pessoas, levando em consideração o seu “grau de moralidade”,
determinado pelo território de origem. O julgamento das querelas é feito levando-se em
consideração esse ranque que classifica as pessoas. A palavra que tem mais peso é a do
sujeito com mais alto grau de moralidade, determinado “pela situação geográfica de seu país
de origem”.
Na cena do romance, o tom seco e direto do narrador nos informa sobre a situação
social em que a querela se dá: embora os adversários pertençam ao mesmo espaço moral, o
julgamento leva em conta a visão de um informante que tem o mais alto grau de moralidade e
é simpatizante de Wangrin. O narrador esclarece que, por trás dos valores impostos pela
administração francesa, existe uma rede de relações formada previamente entres os autóctones
mais importantes da região. É essa articulação que assegura a vitória de Wangrin. Amparado
por seu griô Koutena, Wangrin pede conselho ao velho da etnia Jaawanndo37
, Abougui
Mansou, influente em todos os negócios e pessoas da região. Seguindo conselho do ancião,
sempre acompanhado de seu griô, Wangrin procura o marabout Tierno Siddi, para
encomendar suas rezas. Além disso, ao chegar a Diagaramba, Wangrin já havia sido aceito
pela associação de jovens de sua faixa etária chamada waaldé Wenndou, cujos membros eram 36 “A l’époque, le degré de moralité d’un individu se mesurait d’une part à l’importance des services qu’il avait
rendus à la pénétration française et, d’autre part, à la situation géographique de son pays d’origine. C’est ainsi que les plus moraux des hommes étaient les Européens blancs. Après eux venaient progressivement les Martiniquais et Guadeloupéens, puis les Sénégalais autochtones des quatres communes – Saint-Louis, Gorée, Rusfique et Dakar -, les anciens militaires indigènes et enfin, en dernier lieu, le restant de la population.” (BÂ, 1992, p. 49).
37 Jaawanndo: “etnia bem próxima aos fulas e reputada por sua inteligência e malignidade”. (BÂ, 1992, p. 368, tradução nossa). Reproduzimos aqui a nota do autor.
64
conhecidos como os “vingadores”, por protegerem os autóctones contra as injustiças da
administração. (BÂ, 1992, p. 37). Essa rede de relações permite que Wangrin enfrente
publicamente Racotié e conquiste seu lugar como tradutor numa sociedade hierarquizada pela
colonização. Com essa malícia, Wangrin transita entre os espaços cindidos pelo sistema
colonial, desarticulando, de certa forma, o que diz Fanon a respeito da incomunicabilidade
existente entre “a cidade do colonizador e a cidade do colonizado.” A ficção de Hampaté Bâ
relativiza o que Fanon constata em sua análise histórica sobre o sistema colonial feita no livro
Os condenados da terra, de que “o mundo colonial é um mundo compartimentado.”
(FANON, 2002, p. 41).38
Nessa leitura, a configuração espacial, assim como a percepção identitária, se
apresenta como uma problemática subjetiva e social. Essa afirmação retoma considerações
feitas sobre a identidade dos personagens, tal como encenada nos romances selecionados. Na
discussão sobre identidade, nas obras, ressaltamos o quanto a situação colonial estende seus
tentáculos para além de uma periodização determinada. Do mesmo modo, para além da
periodização que alinha tempo e espaço, pretendemos considerar o espaço, tal como
encenado, como “um produto de inter-relações” (MASSEY, 2015, p. 30), atuando como
elemento estrutural da encenação narrativa.
A íntima associação entre o espaço e a situação colonial, acentuada pela descrição
geográfica precisa, contribui para o efeito de real causado pelo romance do malinês Hampaté
Bâ. Por exemplo, Diagaramba, onde Wangrin assume seu primeiro posto como funcionário
colonial, é uma cidade bem fixada no mapa ficcional criado pela narrativa, com seu povo,
história e rio. O bairro Hinstsi, onde Wangrin se instala, é descrito como consequência da
tomada da cidade, em 1893, época que coincide com a invasão colonial francesa naquela
região da África. Hinstsi se torna sede da ocupação francesa, segundo o romance.
Foi assim que Wangrin atravessou pela primeira vez a cidade de Diagaramba. Ele se dirigiu diretamente a Hintsi, bairro situado atrás do Maayé, rio caracterizado por uma grande bolsa d’água chamada Iwaldo [...] O rio Maayé, que os cantores fula batizaram por mimo de “Maayel”, era popular em Eldika e Telerké, e em toda a região onde se forma o que se convencionou chamar a “curva do Niger”. (BÂ, 1992, p. 27). 39
38 “Le monde colonial est un monde compartimenté.” (FANON, 2002, p. 41). 39 C’est ainsi que Wangrin traversa pour la première fois la ville de Diagaramba. Il se dirigea droit vers Hintsi,
quartier situé derrière la Maayé, rivière caractérisée par une grande poche d’eau appelée Iwaldo, […] La rivière Maayé, que les chanteurs peuls avaient baptisés par mignardise ‘Maayel’, était aussi populaire qu’Eldika et Telerké, et ce dans toute la région formant ce qu’il est convenu d’appeler la “boucle du Niger”. (BÂ, 1992, p. 27).
65
O romance de Hampaté Bâ situa Wangrin em parte do que foi a África Ocidental
Francesa (AOF), ao longo do rio Niger, no “que se convencionou chamar de ‘curva do
Niger’”. A menção a esse acidente geográfico remete à história de um rio de grande
importância, ao sul do deserto do Saara, e à data de ocupação da localidade, 1893. Essas
informações situam a disputa colonial europeia com precisão. A bacia do rio Niger, região
fértil, foi território de disputa entre os colonizadores europeus, franceses e ingleses. Apesar de
ser uma localidade fictícia, Diagaramba assume todas as características de uma cidade
colonial da AOF. De fato, no romance, a cidade, ao ser comparada a qualquer outra cidade
colonial, embaralha a ficção com a história real: “Todos estavam de acordo para reconhecer
que Diagaramba era uma cidade agradável. Lá vivíamos melhor do que em Kayes e mesmo
do que em Bamako, as duas capitais, antiga e nova, da colônia.” (BÂ, 1992, p. 56).40 A
comparação entre Diagaramba e outras cidades coloniais, inidentificáveis no mapa, é exemplo
da estratégia narrativa que procura construir “efeitos de realidade” no texto literário de
Hampaté Bâ.
A aproximação entre ficção e realidade permite que Wangrin também seja construído
com base na realidade empírica do escritor. Mariko e Touré identificam algumas das
referências geográficas e espaciais feitas pelo romance:
O contexto histórico bem como a situação colonial são também elementos interessantes do componente histórico, assim como o espaço geográfico da evolução do personagem de Wangrin. Trata-se do Sudão francês (o Mali atual) com o império Namaci, anagrama de Macina, com as cidades de Bamako, Kayes, Ségou, Tombouctou, Djenné, Bandiagrara (deformada em Diagaramba). (MARIKO; TOURÉ, 2005, p. 194).41
As informações de Mariko e Touré trazem esclarecimentos que mostram como o
romance de Hampaté Bâ ficcionaliza a geografia. A intenção do autor, como dito por ele no
prólogo do romance, é de fazer um relato fiel das peripécias de Wangrin, alterando apenas o
nome do personagem e o de algumas localidades, a fim de preservar seu anonimato e evitar
qualquer constrangimento a seus parentes. Pelo uso que faz da estratégia realista que oferece
descrições ricas em detalhes sobre os povos, a história e a geografia local, o romance é
considerado, muitas vezes, como um romance etnográfico ou histórico. No entanto,
40 “Tout le monde était d’accord pour reconnaître que Diagaramba était une ville agréable. On y vivait mieux
qu’a Kayes et même qu’à Bamako, les deux capitales, ancienne et nouvelle, de la colonie.” (BÂ, 1992, p. 56). 41 "Le contexte historique ainsi que la situation coloniale sont aussi des éléments intéressants de la composante
historique tout comme l’espace géographique d’évolution du personnage de Wangrin. Il s’agit du Soudan français (le Mali actuel) avec l’empire de Namaci, anagramme de Macina, avec les villes de Bamako, Kayes, Ségou, Tombouctou, Djenné, Bandiagrara (déformé en Diagaramba).” (MARIKO; TOURÉ, 2005, p. 194).
66
identificamos essa estratégia de confundir realidade e ficção como um artifício romanesco
que, ao ficcionalizar a realidade, coloca em evidência elementos que denunciam o sistema
colonial. No caso, os trânsitos de Wangrin marcam a apropriação do espaço africano pelo
colonizador quando instala seus círculos administrativos em diferentes regiões, desfigurando-
as e ressignificando-as.
A representação do espaço, como a de uma realidade extradiegética, aparece no texto
como a figuração de um território de experiência. Diagaramba existe porque existe
Bandiagrara. O escritor, com essa apropriação, estabelece um vínculo entre as localidades
reais, ao contrário do que afirma a voz narrativa do prólogo. O pacto narrativo, nesse
romance, implica que as fronteiras sejam borradas para que o texto se torne uma encenação de
uma realidade – geográfica, cultural, social, colonial – que sustenta a ficção. A imediata
correspondência entre a geografia criada pelo romance e a geografia do espaço africano
potencializa a estratégia narrativa de um efeito de realidade e valoriza a crítica colonial
implícita no romance.
Em seu didático artigo sobre as diferentes formas de tratamento do espaço na
literatura, Brandão destaca a tensão criada no jogo de transposição que se torna a
representação literária:
O tensionamento da representação espacial – enfim, do efeito obtido pela aceitação tácita de que espaços podem ser transpostos do mundo para o texto – se dá precisamente pela radicalização do sentido da ação de transpor, a qual passa a ser vista como de interferência, dinamização, provocação, desestabilização: como ação, portanto, política. (BRANDÃO, 2007, p. 214).
Dentro dessa representação espacial, associada, ainda segundo Brandão (2007), à
perspectiva dos Estudos Culturais, “o espaço é vinculado a uma identidade social”. O
resultado dessa ação “de transpor”, assumida como “ação política”, enfatiza o teor crítico que
destacamos do romance de Hampaté Bâ. O excesso descritivo não é gratuito na economia do
romance. A transfiguração do espaço captura o discurso de poder colonial concretizado no
mapeamento do espaço e na apreensão dos sujeitos nele inscritos. Mbembe, ao discutir o
paradigma racista, associa espaço à formação do “self africano”. O teórico discute o mito da
polis racial baseando-se no que denomina “identidade territorializada” e “geografia
racializada”, sem esquecer o papel nefasto do capitalismo e a instituição da propriedade
privada pelo colonialismo. É importante ressaltar que Mbembe não deixa de responsabilizar
“o fracasso africano em controlar sua própria ânsia predatória e sua própria crueldade”
67
(MBEMBE, 2001, p. 186), o que está, de certa forma, encenado, mesmo que indiretamente,
nos romances de Hampaté Bâ e Tutuola e, explicitamente, no de Mia Couto.
Como observamos, no romance de Hampaté Bâ, as demarcações dos círculos
administrativos permitem que se vejam rastros deixados pela escravidão e subjugação.
Mbembe segue argumentando sobre como a África se torna uma “ficção do Outro”:
a África só existe na base de uma biblioteca preexistente que intervém e se imiscui por toda parte, mesmo no discurso que afirma refutá-la, a tal ponto que, com relação à tradição e à identidade africanas, hoje é impossível distinguir o ‘original’ da cópia, ou mesmo de um simulacro. (MBEMBE, 2001, p. 186).
Assim, como Diagaramba pode ser considerada um duplo fictício de Bandiagrara, toda
narrativa de Hampaté Bâ poderia ser interpretada como um duplo da dinâmica colonial. Por
isso, alguns críticos consideram o romance como autobiográfico, vendo-o calcado nas
experiências vividas pelo próprio escritor. Mas essa especulação foge do nosso escopo no
momento. Já o tensionamento do processo de representação, como duplicação ou como
simulacro, na narrativa, reflete a necessidade colonial de mapeamento das terras africanas.
Segundo explica o pesquisador Garuba, o mapeamento europeu da “selva africana”, numa
cartografia que se pretende uma representação mimética do real, cria e estabelece a autoridade
narrativa do europeu que, através desse mapeamento, aprisiona “a terra, os corpos e os
sujeitos” da “área capturada no mapa”. (GARUBA, 2002).
Nesse sentido, vemos como terra e indivíduos são mapeados e aprisionados pela
administração colonial francesa. A menor unidade administrativa dessa colonização eram,
como já mencionado, os círculos, administrados por um comandante vindo da metrópole.
Nessa economia, Diagaramba era a capital da localidade que circunscrevia um círculo. Logo,
nessa lógica colonial, os autóctones habitantes da região eram também propriedade da
metrópole, assim como a terra. O narrador explica da seguinte forma essa relação de
pertencimento entre os nativos, a terra e a metrópole colonizadora:
Aproveitando da mão de obra colocada a sua disposição pela administração, Wangrin aumentou sua casa. De fato, deve-se salientar que, na África ocidental, cada “sujeito francês”, quer dizer, cada autóctone da colônia era obrigado a quinze dias de prestação de serviço bruto. O círculo de Diagaramba dispunha, para esse efeito, de dois mil trabalhadores permanentes e gratuitos. (BÂ, 1992, p. 52).42
42 “Il faut signaler en effet qu’en Afrique occidentale, chaque « sujet français », c’est-à-dire chaque autochtone
de la colonie, était astreint à quinze jours de prestations en nature. Le cercle de Diagaramba disposait, à ce titre, de deux mille travailleurs permanents et gratuits.” (BÂ, 1992, p. 52).
68
O romance descreve como, efetivamente, os indivíduos circunscritos pelo círculo
administrativo colonial tornam-se propriedade da metrópole, além de demonstrar como
Wangrin, em toda sua malícia, não tem escrúpulos em se servir da mão de obra de seus
conterrâneos, tornados escravos. Garuba – dialogando com Foucault sobre o sentido de
instituições que, como a prisão, servem tanto para prender quanto para criar prisioneiros –
afirma que “os perigos que os mapas (re)presentam são mais sentidos por aqueles que sofrem
sob seu poder porque os mapas não apenas contêm, mas também constituem ativamente seus
sujeitos.” (GARUBA, 2002, p. 89). No caso, o romance explicita como o mapeamento de
Diagaramba, que se torna burocraticamente um círculo administrativo, concretiza a efetiva
ocupação local e a sua subsequente exploração. O espaço pode ser entendido, nos exemplos
do romance de Hampaté Bâ, como um elemento estruturador da trama romanesca, ao
organizar e hierarquizar os personagens, colocando-os como súditos coloniais, como vimos
ressaltando desde os processos de construção da identidade de Wangrin.
Nesse sentido, a organização espacial do romance de Bâ pode ser interpretada a partir
das reflexões de Francisco Noa, crítico moçambicano, que, em sua pesquisa acerca do
romance colonial, destaca o espaço como elemento gerenciador desse tipo de romance.
Vejamos o que diz o crítico:
Significando desestabilizar, portanto, um lugar comum nos estudos narratológicos que reservam um momento para o reconhecimento do espaço nos segmentos descritivos, a análise do romance colonial levar-nos-á a concluir que o espaço quer como lugar, quer como não lugar, quer por outro lado, como representação, signo ou símbolo, preside de forma decisiva à construção, significação e ao desenvolvimento de toda a narrativa. (NOA, 2015, p. 104).
O espaço torna-se, portanto, uma questão crucial nos romances africanos, uma vez que
a própria definição do que é África passa pela construção de uma concepção espacial. A
colonização é marcada pela partilha do continente entre as potências europeias que, pela
conquista predatória de territórios, desenharam o que seria África. A partir de então, África
passa a ser um objeto de fabricação estrangeira. Os romances coloniais e pós-coloniais
tentam, através da elaboração da linguagem narrativa, definir também o que é ser África,
levando em conta as relações entre os diferentes sujeitos e seus trânsitos por esse espaço que
foi inventado por uns, mesmo já sendo experimentado por muitos.
Nesse sentido, a representação de tipo realista que o romance de Hampaté Bâ faz do
espaço africano explicita a crítica ao sistema colonial ao encenar o jogo da colonização
francesa transpondo cidades e caricaturando personagens. O próprio protagonista, sujeito de
69
identidade maleável, usufrui da mão de obra oferecida pelo sistema e não hesita em lhe tirar
vantagem quando é de seu interesse. Nesse sentido, Wangrin representa o indivíduo
“constituído ativamente” pelas bordas da colonização. Escapar da subjugação imposta pela
colonização é o desafio que o personagem enfrenta, porque, segundo Garuba:
A produção do espaço colonial era vinculada de diferentes maneiras com a produção do nativo colonizado. De fato, a própria categoria de nativo dependia das noções de um lugar fixo dentro de um mapa (uma terra demarcada) e um lugar fixo no mundo (adesão a um sistema de parentesco fixo, clã, tribo e uma orientação predefinida para o mundo). O mapeamento colonial representava paisagens de mobilidade para o colonizador, mas para o colonizado apresentava uma paisagem circunscrita de coação. (GARUBA, 2002, p. 96). 43
Para Garuba (2002, p. 95), no momento da ocupação colonial, a própria percepção do
terreno físico se torna mediada pelo discurso hegemônico europeu, que desloca, ou mesmo
suprime, as narrativas das experiências locais. Tal discurso instala a fixação da propriedade
privada enrijecendo a terra, o sujeito e mesmo o tempo.
No romance de Tutuola, o bebedor de vinho de palmeira, em sua constante
peregrinação por uma floresta sem traçado fixo, sem estrada, adotando o movimento e a
transformação como um trabalho pela vida (Mbembe), metaforiza, talvez, a fuga, como uma
estratégia de resistência ao invasor (Garuba). O discurso extremamente metafórico e o teor
mitológico do romance de Tutuola, ao encenar a viagem de iniciação do protagonista e ao
fazer referência à fluidez como um elemento da tradição, exemplifica a ameaça de uma nova
estrutura discursiva que Garuba chama de um coup d’état epistemológico. O presente
narrativo do romance de Tutuola ilustra a tentativa de aprisionamento de um espaço entendido
e experimentado a priori pelo narrador como sendo fluido. O incomum não é ir até a cidade
dos mortos, mas capturar a morte. O incomum não é se transformar em diversos outros seres,
mas ter de usar essa estratégia para sobreviver, como quando o protagonista se transforma em
canoa para trabalhar e assim conseguir dinheiro para comprar comida. A configuração
espacial do romance explicita a estranheza do sistema de troca que se faz por compra e venda.
Tal sistema legitima a propriedade privada que se apropria da terra e aprisiona os corpos,
impondo uma nova lógica discursiva. Por esse viés, as normas do sistema colonial são
criticadas. A apropriação do corpo do colonizado por um outro, metaforicamente expressa na
43 “The production of colonial space was thus tied up in many ways with the production of the colonized native.
Indeed, the very category of native depended upon notions of a fixed place within the map (a demarcated land) and a fixed place in the world (membership of a fixed kinship system/clan/tribe and a pre-defined orientation to the world). Colonial mapping represented landscapes of mobility for the colonizer, but for the colonized it presented a circumscribed landscape of constraint.” (GARUBA, 2002, p. 96).
70
cena em que o protagonista segue o “cavalheiro de fato completo”, indica como o processo de
despessoalização foi levado aos espaços colonizados. Essa questão está clara em cena do
romance quando o “cavalheiro de fato completo” devolve as partes do corpo alugadas para ter
o direito de transitar livremente pelo espaço público: “Depois de termos viajado umas vinte e
cinco milhas, ele começou a arrancar todas as partes do seu corpo, devolvendo-as a seus
donos e pagando os aluguéis.” (TUTUOLA, 1970, p. 25). A situação se encaixa no que diz
Garuba, ao analisar obras literárias africanas sob a perspectiva da representação espacial em
territórios africanos. O teórico destaca a necessidade de mapear e demarcar esses territórios
como uma estratégia colonial:
Esse desejo colonial significava introduzir novos conceitos de terra, propriedade e posse que eram basicamente estranhos a essas comunidades. A fluidez e ambiguidade das noções nativas de posse e propriedade da terra tiveram que ser substituídas pela fixidez e certeza dos conceitos europeus. (GARUBA, 2002, p. 98).44
A fluidez que o bebedor experimenta no espaço fantasmal corresponde, como
relacionado por Garuba, a noções africanas de espaço. No entanto, as demarcações do espaço
percorrido, como as expressas por “vinte e cinco milhas”, parecem não fazer muito sentido
num ambiente em que as delimitações rígidas não existem. O traçado imposto pelos europeus
demarca arbitrariamente esse espaço, e o uso das unidades de medida inglesa, aplicadas a uma
realidade que provavelmente não era mensurada nesses valores, pode fazer referência à
arbitrariedade da demarcação do território pelos colonizadores, como foi experimentada pelos
nativos.
O espaço flutuante criado por Amos Tutuola, no romance O bebedor de vinho de
palmeira, cria, portanto um mundo fantasmal, segundo expressão de Achille Mbembe em
suas análises sobre a obra do escritor nigeriano, já mencionadas. O limiar desse mundo se
desenha, a princípio, como “[...] um lugar coberto por matas e florestas. [...] as cidades e as
aldeias não ficavam tão próximas umas das outras como hoje em dia.” (TUTUOLA, 1970,
p.8). A sucessão de eventos nos mostra um espaço em constante transformação. Embora os
eventos sejam localizados nessas cidades e florestas, muitas vezes, com as distâncias e o
tempo mensurados, não há limites claros entre os espaços percorridos; há uma sucessão de
entrar e sair das matas, das vilas, de onde quer que seja. De tal forma, a fluidez do sujeito
reflete e é refletida pela sucessão das paisagens. 44 “But then this colonial desire meant introducing new conceptions of land, property and ownership that were
basically alien to the communities. The fluidity and ambiguity of native notions of land ownership and property had to be replaced with the fixity and certainty of European concepts.” (GARUBA, 2002, p. 98).
71
Mbembe, ao analisar o romance de Tutuola, em seu livro Crítica da razão negra,
afirma: “Entrando pela borda, somos projetados num horizonte em movimento, no núcleo de
uma realidade cujo centro está em todos os lados e em lugar nenhum; e onde cada evento gera
outros.” (MBEMBE, 2015, p. 205).45 A metamorfose do sujeito assim como a transitoriedade
do caminho são constantes. O importante é estar em movimento continuamente. Nem sempre
o destino é levado em consideração, e voltar nunca é uma opção. O filósofo entende que esse
espaço fantasmal está “à beira da vida”, mas que, uma vez nesse espaço, as linhas somem: “O
domínio fantasmal é uma cena na qual os eventos acontecem permanentemente sem jamais se
coagularem a ponto de formar uma história.” (MBEMBE, 2015, p. 204).46
No entanto, as referências espaciais de um mundo físico que precisa ser atravessado
para chegar à cidade dos mortos se sucedem. O personagem segue sua viagem, atravessando
matas e enfrentando grandes obstáculos, como no exemplo seguinte:
NENHUMA ESTRADA – É PRECISO VIAJAR DE MATA EM MATA PARA CHEGAR À CIDADE DOS MORTOS. // Viajamos umas quarenta milhas pelo interior da mata; às seis e meia da tarde chegamos a uma mata muito fechada. Era tão espessa que nem cobra poderia passar por ela sem se machucar. // Paramos ali mesmo, pois estava muito escuro e não conseguíamos enxergar direito. (TUTUOLA, 1970, p. 44, maiúsculas no original).
O destaque é dado ao percurso com o narrador enfatizando a falta de estrada. Os
personagens, o Bebedor acompanhado de sua mulher, andam e param sem um plano
predefinido ou porque encontram algum obstáculo no percurso, como no exemplo citado, ou
porque estão cansados ou com fome, ou ainda porque encontram algum outro ser. Notamos
que essa ênfase na falta da estrada é acentuada mais de uma vez no discurso do personagem
narrador, como que explicando o trajeto, mas também possivelmente fazendo uma analogia ao
emaranhado dessas aventuras que não obedecem a uma rota precisa. Assim como as próprias
matas são emaranhadas, as aventuras se sucedem umas às outras, sem que haja preocupação
lógica com a ancoragem numa realidade qualquer.
Nesse sentido, o bebedor de vinho de palmeira e seu mundo fantasmal nos fazem
questionar sobre a encenação que torna complexa a articulação metafórica contida entre a
ficcionalização e o objeto focalizado. No caso, acreditamos que as pistas para interpretação de
45 “Rentré par la bordure, on est donc projeté dans un horizon mouvant, au cœur d’une réalité dont le centre est
partout et nulle part; et où chaque événement en engendre d’autres.” (MBEMBE, 2015, p. 205). 46 “Le domaine fantomal est une scène où s’accomplissent en permanence des événements qui ne semblent
jamais se coaguler au point de faire histoire.” (MBEMBE, 2015, p. 204).
72
certas metáforas encontram correlação no sistema colonial de extrema violência, como temos
visto, mas onde um trabalho maior com a língua poderia trazer mais elucidações.
A análise da espacialidade literária está também associada a um trabalho da
linguagem. Nesse sentido, Brandão, dialogando com Iser, no tópico que chama de “espaços
de indeterminação”, debate sobre questões especificas do que chama de “cerne da
linguagem”. Ao se referir à espacialidade da linguagem, observa a criação de diversos
imaginários de inspiração mitológica, afirmando: “o espaço literário se apresenta como
paisagem, mas é a irrealidade da paisagem que importa, aquilo que se esquiva do processo
segundo o qual a forma culturaliza a matéria.” (BRANDÃO, 2007, p. 217). Esse é o desafio
em Amos Tutuola, o de inquirir sobre “a viabilidade de um modelo, amplamente
antropológico, que conceba a literatura em função, justamente, de seus fortes laços com a
indeterminação (ou seja, com o imaginário).” (BRANDÃO, 2007, p. 218).
Porém, a estratégia do narrador de pontuar sua fala com determinadas explicações que
extrapolam o plano enunciativo revela uma preocupação em situar a arbitrariedade dos
eventos no mundo concreto da leitura. Ao explicar a história num movimento metanarrativo,
o narrador comenta a história que ele mesmo conta. Por um lado, o movimento repetido e
constante de se embrenhar cada vez mais mata adentro pode representar a estratégia usada
como resistência à dominação colonial. A falta de estrada assinalaria a incerteza do caminho
tomado e do que seria o futuro, o rumo ao desconhecido, embora o destino final seja a Cidade
dos Mortos. Por outro lado, quando a primeira pessoa invade o enunciado, mais uma vez
trazemos a atenção para os limites da literatura, que, segundo Tadié, “deve trabalhar
justamente sobre as fronteiras entre os gêneros, sobre os limites da literatura.” (TADIÉ, 1994,
p. 6). Sem nos preocuparmos com as classificações de gêneros, sobre as quais debate Tadié,
vimos observando em Tutuola determinadas pontuações sobre os limites da representação
literária.
A hipótese inicial será que a narrativa poética conserve a ficção de um romance: personagens que sofrem uma história em um ou mais lugares. Mas que, ao mesmo tempo, os procedimentos da narração remetem ao poema: existe aí um conflito constante entre a função referencial, com suas obrigações de evocação e representação, e a função poética, que chama a atenção sobre a forma mesmo da mensagem. (TADIÉ, 1994, p.7).47
47 “L'hypothèse de départ sera que le récit poétique conserve la fiction d'un roman: des personnages auxquels il
arrive une histoire en un ou plusieurs lieux. Mais, en même temps, des procédés de narration renvoient au poème: il y a là un conflit constant entre la fonction référentielle, avec ses tâches d'évocation et de représentation, et la fonction poétique, qui attire l'attention sur la forme même du message.” (TADIÉ, 1994, p.7).
73
Nesse movimento, a prosa mitopoética de Tutuola se torna uma narrativa
metarreflexiva, chamando a atenção para a linguagem metaforizada pelo narrador na própria
língua usada: “me transformei num pássaro muito pequeno que descreveria como um ‘pardal’
na língua inglesa.” (TUTUOLA, 2014, p. 25).48 Procedimento irônico da voz narrativa,
quando analisamos sob o ponto de vista de Garuba, que explica que o golpe epistemológico
da colonização passa por uma estratégia discursiva acionada também na imposição de uma
língua que muitas vezes não serve para descrever uma certa realidade. A representação, em
Tutuola, apresenta assim seus estreitos laços com o imaginário, expondo até mesmo para uma
certa indeterminação, como exposto por Brandão. Ao expor a forma, podemos dizer, ainda
com Brandão que “considera-se que o texto literário é tão mais espacial quanto mais a
dimensão formal, ou do significante, é capaz de se destacar da dimensão conteudística, ou do
significado.” (BRANDÃO, 2013, p. 213).
O uso do imperativo serve para interpelar o leitor, objetivamente: “Tínhamos gostado
de tudo que havia na Ilha do Fantasma, entretanto ainda faltavam muitas outras etapas para
cumprir. Continuamos então nossa viagem por uma outra mata, mas lembrem-se de que por lá
não havia nenhuma estrada.” (TUTUOLA, 1970, p. 56). Ou ainda, no exemplo a seguir, o
narrador explica a situação utilizando um referencial externo ao texto. Para explicar a
arbitrariedade dos acontecimentos, o narrador compara situações completamente distintas à
atividade corriqueira de dormir num quarto e a outra, excepcional, de estar numa mata de
fantasmas. Assim, lemos o relato:
Depois, acompanhou-nos, mas o que nos causou espanto foi que a árvore se abriu como se fosse uma grande porta e, inesperadamente, encontramo-nos na mata. A porta se fechou no mesmo instante e a árvore tomou a aparência de uma árvore comum, que nunca poderia se abrir daquela maneira. No momento em que vimos que nos encontrávamos ao pé daquela Árvore Branca, nós dois (minha mulher e eu) dissemos: “Estamos novamente na mata”. Era como se simplesmente uma pessoa dormisse em seu quarto e, ao acordar, se encontrasse dentro de uma grande mata. (TUTUOLA, 1970, p. 79).
Essas poderiam ser as feições do espaço fantasmal a que Mbembe se refere. A cada
etapa cumprida, a cada volta do personagem à mata surge o lembrete do narrador para mostrar
que o mundo fantasmal está ali e por toda parte. Dessa forma, fica claro que no espaço desse
mundo fantasmal não há fronteiras, as criaturas se mesclam nos diversos espaços mostrando
48 “I changed myself to a very small bird which I could describe as a ‘sparrow’ in English language.”
(TUTUOLA, 2014, p. 25).
74
que os limites não são bem definidos. Há apenas um “horizonte em movimento” (MBEMBE,
2015, p. 205).
Mbembe destaca a ênfase no percurso como algo que constitui o sujeito como
itinerante e, de certa forma, associa espaço à construção identitária. O filósofo analisa:
Esta é a razão pela qual apenas há sujeito itinerante. O sujeito itinerante vai de um lugar ao outro. A viagem enquanto tal pode não ter destinação precisa: assim ele pode entrar e sair à sua maneira. [...] O caminho não leva, entretanto, sempre ao lugar desejado. O que é importante não é a destinação, mas o que é atravessado ao longo do percurso [...]. (MEMBE, 2015, p. 210).49
Desse modo, podemos dizer que tentar delinear a cartografia do mundo fantasmal é
tarefa árdua. Embora o romance seja a história de uma viagem iniciática, cujos espaços são
indicados pela sucessão de paisagens, o que prevalece é o movimento em si. Por isso, muitas
vezes, o ponto de partida e o destino não são importantes. Sem estradas, como enfatiza o
narrador, as cidades ou localidades, quaisquer que sejam elas, habitadas pelas mais diversas
criaturas não obedecem a plano nenhum. Os personagens passam por lugares que são pontos
para estadias temporárias, sejam mais curtas ou mais longas. O trecho a seguir é mais um
exemplo dessa contínua situação de trânsito, em que o personagem vive.
Retomamos nosso caminho, e ainda não havíamos percorrido nem uma milha, quando nos deparamos com um grande rio que impedia a nossa passagem. Não podíamos atravessá-lo porque era muito fundo e notamos que não havia nenhuma canoa ou coisa parecida para usarmos como transporte. Ficamos ali parados por alguns minutos, até que decidimos seguir para o lado direito, sempre acompanhando a margem do rio, achando que assim talvez chegássemos ao seu final. Entretanto, andamos mais de quatro milhas sem atingi-lo. Decidimos porém continuar andando ao longo do rio, ainda achando que poderíamos encontrar uma saída, ou então um lugar seguro para descansar e dormir aquela noite. Tínhamos caminhado cerca de um terço de milha, quando vimos uma enorme árvore de mil e cinquenta pés de comprimento e duzentos pés de diâmetro. (TUTUOLA, 1970, pp. 71-72).
A falta de estrada aponta para a dificuldade do caminho detalhado e de uma rota
precisa. Assim, o destino final pode parecer desconsiderado, como no caso da travessia do rio,
no intuito de se chegar à Cidade dos Mortos. Tanto faz ir para a direita ou para a esquerda.
Assim, durante o percurso, o acaso prevalece. Os encontros se sucedem, embora a narrativa
pareça um exercício do arbitrário. O exercício da leitura desse romance de Amos Tutuola
49 “C’est la raison pour laquelle il n’y a de sujet qu’itinérant. Le sujet itinérant va d’un endroit à un autre. Le
voyage en tant que tel peut ne pas avoir de destination précise : aussi peut-il entrer et sortir à sa guise. […] Le chemin ne mène cependant pas toujours au lieu désiré. Ce qui est important, ce n’est donc pas la destination, mais ce que l’on traverse au long du parcours […]”. (MBEMBE, 2015, p. 210).
75
implica aceitar a imprevisibilidade dos eventos, além da inverossimilhança que escamoteia a
alusão a referentes da realidade contextual.
O bebedor, no entanto, como afirma Mbembe, navega num espaço fluido constituído
de “signos que se entrecruzam, se contradizem, se anulam”, sendo traduzido em medidas
ocidentais, em milhas, e o tempo marcado pelo relógio. Tais estratégias refletem, de alguma
maneira, as bordas da configuração do espaço colonial e os elementos de um imaginário que o
sustentam.
Mais do que um espaço geográfico, o domínio fantasmal pertence simultaneamente ao campo órfico e ao campo visual, aquele das visões e imagens, de estranhas criaturas, de fantasmas delirantes, de máscaras surpreendentes – um comércio permanente com os signos que se entrecruzam, se contradizem, se anulam, se relançam, se distanciam em seus próprios movimentos. Esta é, talvez, a razão pela qual ele escapa à síntese e à geometria. (MBEMBE, 2015, p. 203). 50
A intromissão das unidades de medida que marcam tempo e espaço chamam atenção
quando aparecem nessa narrativa, que nega as fronteiras estáveis, temporais e físicas. Essas
pontuações pertencem a um eixo axial e demonstram a necessidade de controle e mapeamento
de um mundo que, entretanto, não obedece à lógica moderna. O espaço e o tempo fantasmal
são fluidos, já que morte e vida se interconectam. Nesse sentido, não há um plano linear de
acontecimentos, mas uma sucessividade de ações.
De acordo com a análise de Harry Garuba sobre romance do também nigeriano Chinua
Achebe, “a lógica fundacional de sua cultura fala do mundo como móvel, inconstante e
continuamente móvel.” (GARUBA, 2002, p. 90). É essa lógica que percebemos prevalecer no
romance de Amos Tutuola. No entanto, como também explicado por Garuba, o processo de
colonização implica o controle do espaço e do tempo, quando “mapas se tornam instrumentos
para a produção colonial e pós-colonial das subjetividades ao constituir e aprisionar o que
poderia ser enunciado no seu espaço discursivo.” (GARUBA, 2002, p. 90).51 Quando o
personagem de Tutuola percorre as florestas sem estradas e sem delimitações precisas,
insistindo em trazer informações que circunscrevem esse território numa outra visão de
50 “Plus qu’un espace géographique, le domaine fantomal appartient simultanément au champ orphique et au
champ visuel, celui des visions et des images, d’étranges créatures, de fantasmes délirants, de masques surprenants – un commerce permanent avec des signes qui s’entrecroisent, se contredisent, s’annulent, se relancent, s’égarent dans leurs propres mouvements. C’est peut-être la raison pour laquelle il échappe à la synthèse et à la géométrie.” (MBEMBE, 2015, p. 203).
51 “[…] the maps became instruments for the production of colonial and postcolonial subjectivities by constituting and constraining what could be enunciated within their discursive space.” (GARUBA, 2002, p. 90).
76
espaço, identificamos a forma irônica como o romance alude à tentativa de aprisionamento
desse espaço na lógica axial da modernidade colonial.
Os exemplos a seguir mostram alguns desses momentos e, justapostos, sugerem um
pouco da arbitrariedade dessas marcações no mundo fantasmal. Vejamos: “Viajamos umas
quarenta milhas pelo interior da mata; às seis e meia da tarde chegamos a uma mata muito
fechada.” (TUTUOLA, 1970, p. 44). A medida aproximada da distância percorrida está
associada ao horário preciso de chegada a esse ponto que, na prática, é apenas um ponto
qualquer: “uma mata muito fechada” pode ser qualquer lugar dentro de qualquer território.
Nesse contexto, “umas quarenta milhas” parece medir uma distância aleatória. No exemplo
seguinte, a informação sobre a duração da estadia dos personagens nessa etapa do percurso,
na Árvore Branca com a Mãe-Devota, parece arbitrária de tão precisa. “Mas, certa noite,
depois de estarmos morando há um ano e duas semanas com a Mãe-Devotada, ela nos
chamou e disse que havia chegado a hora de partirmos e seguir nosso caminho.” (TUTUOLA,
1970, p. 78). Na sequência dos acontecimentos, “um ano e duas semanas” não parece uma
informação relevante, apenas quer dizer que era hora de partirem. Num outro momento,
indica-se que “Depois de percorremos umas doze milhas na Mata Vermelha com a jovem
vermelha, chegamos à Cidade Vermelha e vimos que lá tanto as pessoas como os animais
domésticos eram vermelhos.” (TUTUOLA, 1970, p. 81). Nesse exemplo, embora a medida do
percurso seja aproximada “umas doze milhas”, a distância do percurso tem certa ênfase.
Nesses momentos da leitura, indagamo-nos sobre o motivo dessas indicações que
marcam o espaço percorrido em milhas e jardas e colocam o tempo no relógio, referências
que não parecem ter nenhuma influência concreta no mundo fantasmal. No entanto, essas
informações, ao se mostrarem quase dispensáveis ao andamento da narrativa, marcando horas
e milhas, ironicamente, só querem indicar que a duração da jornada é longa e que caracteriza
o período de amadurecimento do protagonista, que parte das terras do pai como um jovem
rapaz, e ganha mulher e filho ao longo do percurso, onde enfrenta diversos obstáculos para
sobreviver.
Além disso, colocar hora e contar os passos seria uma primeira forma de controle
explícito do ambiente ao redor, que é na verdade imprevisível e perigoso.
Depois de estarmos vivendo havia cinco meses e alguns dias naquela casa, achamos que voltar para a cidade do pai de minha mulher seria perigoso por causa das várias provações que encontraríamos pela frente [...]. Voltar seria difícil e seguir adiante seria ainda mais, mas apesar disso resolvemos prosseguir. (TUTUOLA, 1970, p. 71).
77
O mundo fantasmal de Amos Tutuola, em O bebedor de vinho de palmeira, traz uma
outra perspectiva para os questionamentos acerca da representação espacial do continente
africano, via literatura. Que África, afinal, se manifesta no romance? No romance de Mia
Couto, uma terra sonâmbula vagueia por experiências esquecidas. Os limites impostos pelos
portugueses ao espaço moçambicano e o caos da guerra civil, quando todos os sonhos ou
possibilidades de futuro parecem ter acabado, motivam uma reconfiguração da terra. Já no
romance de Hampaté Bâ, um estranho destino representa ainda o momento da imposição do
traçado europeu. Wangrin mostra que essa incorporação nunca atingiu uma plenitude, o que
significaria o completo apagamento de uma cultura pela outra, como pretendido pelo sistema
colonial. O movimento do intérprete colonial por diferentes culturas e diferentes espaços
acentua traços realistas da narrativa e legitima a intenção de caricaturar a realidade encenada.
Essa estratégia expõe a astúcia de Wangrin ao exacerbar sua obediência ao sistema para
marcar o questionamento à hegemonia colonial francesa sobre o território em que atua.
78
3.3 Espaço, espacialidade, errância
Na teoria do martiniquense Édouard Glissant, a errância é o pensamento da circulação
e da imprevisibilidade. Mbembe, na conclusão de Crítica da razão negra, discute
especificamente a necessidade de “um pensamento em circulação, um pensamento da
travessia, um pensamento-mundo.” (MBEMBE, 2015, p. 258). Com apoio das reflexões de
Mbembe, recuperamos o pensamento de Glissant e trazemos um outro olhar para nossos
romances, sobretudo para melhor compreender o que neles é expresso com relação à
espacialidade e identidade.
Ao repensar os trânsitos do mundo e rever as configurações identitárias deles
decorrentes, Glissant aposta na perspectiva da Relação e do Diverso, lançando novos
caminhos para pensarmos as misturas dos povos, considerando a imprevisibilidade da
crioulização e da errância. A errância permite as misturas identificadas com o que o teórico
chama de crioulização e aparece como abertura do/ao mundo, interferindo, portanto, nas
configurações identitárias.
Essa questão está presente na fala do personagem principal do romance filosófico
Tout-monde, de Glissant, que, no espaço da ficção, lança uma reflexão instigante para
pensarmos as questões espaciais:
O pensamento da errância desbloqueia o imaginário, ele nos projeta para fora dessa caverna que emprisiona onde estávamos trancados, que é o porão ou a ilhota da dita unidade. Nós somos maiores, de todo a grandeza do mundo! [...] O que é essa viagem, que encerrará seu fim em si mesmo? Que tropeça em um fim! O ser nem a errância têm um prazo – a mudança é sua permanência, ho! – Eles sempre continuam.52 (GLISSANT, 1993, p. 145).
De um lado, entendemos que a errância é o que desbloqueia o imaginário da fixidez,
porque desconstrói o centro, o uno e, certamente, o fixo, abrindo uma nova possibilidade de
pensarmos a identidade e o espaço. De outro, podemos entender a errância como um
procedimento romanesco que aposta nos trânsitos e deslocamentos. Tal procedimento, como
vimos acentuando, pode ser notado tanto em O bebedor de vinho de palmeira como em
Terra sonâmbula, quando manipulam o espaço e o tempo, assumindo a fluidez das
construções identitárias como um devir em permanência.
52 “La pensée de l’errance débloque l’imaginaire, elle nous projette hors de cette grotte en prison où nous étions
enfermés, qui est la cale ou la caye de la soi-disant unicité. Nous sommes plus grands, de toute la grandeur du monde! [...] Quel est ce voyage, qui serra sa fin en lui-même? Qui bute dans une fin! L’être ni l’errance n’ont de terme – et le changement est leur permanence, ho! – Ils continuent toujours.” (GLISSANT, 1993, p. 145).
79
Uma vez desfeita a comunidade imaginária do nacionalismo colonialista, o espaço e o
indivíduo se abrem novamente para a percepção da amplitude dos trânsitos. As fronteiras
impostas pela colonização da África são postas em questão, quando as narrativas das
experiências locais insistem em vir à tona, mesmo que de forma fragmentada e dispersa. A
terra é ela mesma sonâmbula. O espaço é ele mesmo transformado em um ser errante.
Nesse sentido, a percepção de errância em Glissant ajuda-nos a aproximarmos
identidade e espaço. Como sugerido por Garuba, ainda há muito o que se estudar sobre tal
enlaçamento. A representação de um espaço limitado configurado no desenho dos círculos
administrativos nos quais Wangrin deve exercer sua função, no auge do império colonial
francês, mostra-se em diferença nos trânsitos assumidos pelo personagem Kindzu, em Terra
sonâmbula.
Uma vez “negada a ilusão das origens na qual o nacionalismo prospera”, Kindzu,
como o personagem Askar analisado por Garuba, “se esforça para assegurar o instável mapa
de sua identidade”. (GARUBA, 2002, p. 108). O vaguear dos personagens de Terra
sonâmbula, no contexto da guerra civil moçambicana, permite a aproximação entre a
espacialidade ali representada e a busca pela construção de uma identidade que possa se
reconstituir no espaço do trânsito, da circulação, do movimento. Assim, quando Édouard
Glissant, pela boca de um personagem, conclama: “Abra ao mundo o campo de sua
identidade” (GLISSANT, 1993, p. 185), pensamos que a via é de mão dupla, um mundo
também deve se abrir à identidade dos sujeitos. Kindzu busca essa abertura quando, em seu
encontro com a amante Farida, questiona sobre seu lugar no mundo, buscando uma expansão
do significado do continente africano. A explicação, no trecho seguinte, esclarece que Kindzu
joga metaforicamente buscando a construção de sentido para a África. Kindzu narra seus
próprios pensamentos, em seu quinto caderno: “Ambos queríamos partir. Ela queria sair para
um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu
queria encontrar um outro continente dentro de África.” (COUTO, 2007, pp. 92-93). Com a
metáfora de uma outra África dentro de África, Kindzu blefa sobre seu desejo de partir. Seus
questionamentos nos permitem refletir sobre o imaginário construído a respeito do continente
africano que o personagem refuta. A princípio, podemos entender que Kindzu e Farida
queriam partir de onde estavam, como denotam os verbos “sair” e “desembarcar”. No entanto,
o sentido vago das metáforas poéticas de “novo mundo” e “outra vida” indica uma diferença
de perspectiva entre os personagens. Farida apresenta um olhar direcionado para fora, ela quer
o mundo, enquanto Kindzu mostra um olhar interior, a partir de sua própria construção
80
subjetiva. Para ele é preciso reinventar a vida. A visão de cada um aponta para a possibilidade
de um significado plural para o continente África. Trata-se, portanto, na literatura, de
reconstruir um determinado imaginário, de questionar uma forma de representação. Este sair,
que não é propriamente um ir para fora nem para outro lugar, aponta para a possibilidade de
(re)construção a partir de uma perspectiva de dentro que, no entanto, seja transformadora a
ponto de gerar novos sentidos.
Ao especularmos sobre o sentido ficcionalmente criado pelo romance de Mia Couto
para discutir as relações entre espaço e identidade, nessa cena do romance Terra sonâmbula,
vale retrocedermos um pouco no pensamento de Kindzu. O personagem explica:
A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. (COUTO, 2007, p. 92).
A vontade de partir está, pela sequência dos pensamentos de Kindzu, associada a uma
sensação de grandes perdas que interferem na construção identitária. Dentre essas perdas,
situam-se os espaços das aldeias e todas as referências identitárias que eles legitimam. À
perda das aldeias se somam outras, como a das línguas locais e as previsões de um futuro
incerto delineado pela situação colonial. Entendemos que o personagem tem consciência das
várias perdas sofridas por ele e pelo povo de sua aldeia, perdas advindas da intromissão de
novos valores e significantes trazidos não apenas pela presença portuguesa ao seu espaço, mas
também pela igreja e por estrangeiros, como a portuguesa Virgínia e o indiano Surendra.
Notamos, a partir desse desenho feito pelo pensamento de Kindzu, que o colonialismo
português mudou as configurações espaciais de grande parte da África, da África sonhada por
ele, sobretudo porque, ao se extinguirem os espaços específicos das aldeias, significados por
costumes tradicionais, os referentes identitários também se alteraram, se dissolveram, embora
outras realidades tenham sido criadas.
Nessa cena do romance de Mia Couto, percebemos como a representação espacial do
continente africano é importante para reconstrução de um imaginário a respeito do que é
África. A parte fala pelo todo, a percepção local de Kindzu se expande, abraçando toda
África. Esse lugar onde o português já não deixa espaço para as línguas indígenas, onde não
há aldeias, pode representar qualquer região do continente africano em que o colonizador
tenha se apossado dos espaços de culturas autóctones. O desejo dos personagens de partir,
posto em paralelo com os sentidos de “sair” e “desembarcar” e também com os indicados
81
pelas referências a “novo mundo” e a “outra vida”, formata-se a partir da obsessão de “sair de
África” ou “encontrar um outro continente dentro de África”, utopicamente imaginada como
um espaço que preserve as suas características originais, embora a todo instante a narrativa
acentue os trânsitos e as errâncias. O desejo de Kindzu permite-nos interrogar, então, sobre
espaços e expressões de identidade que se deseja, utopicamente, encontrar. Que África, afinal,
se delineia com os sentimentos de Kindzu?
Em Terra sonâmbula, como acentua o narrador, o imaginário se amplia no momento
de errância imaginária que permite que o menino Muidinga e o velho Tuhair assumam os
espaços e as viagens textualmente indicados nos cadernos do jovem Kindzu. Um espaço de
contínuas alterações se descortina nas páginas dos cadernos e, nelas:
A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? [...] Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (COUTO, 2007, p. 99).
Muidinga e Tuahir perambulam em torno do machimbombo transformado em abrigo,
desenrolando aventuras e histórias guardadas no acervo da oralidade, as quais evocam saberes
das culturas tradicionais moçambicanas. As estratégias textualmente construídas alcançam a
sensação de uma viagem que desloca identidade, espaços e tempo.
Nesse contexto, quando “o pensamento da errância desbloqueia o imaginário”
(GLISSANT, 1993, p. 145), deve haver uma nova abordagem da literatura, como propõe o
martiniquense: “E então eu sonho, por mim, porque sou escritor, sonho com uma nova
abordagem da literatura nessa desmesura que é o Todo-mundo.” (GLISSANT, 2013, p. 92).53
O tensionamento da representação exige, portanto, um caminho interpretativo possível que
considere os questionamentos relativos à encenação literária e à construção do imaginário
poético como estratégia.
A teorização feita por Glissant a respeito do conceito de errância pode ser entendida
como uma forma de interpretação das questões espaciais como as consideram os geógrafos
Doreen Massey e Milton Santos, quando discutem a confluência do espaço e do tempo e o
trânsito de pessoas no globo. A errância, como sugerido por Glissant, pode também ser
entendida como um procedimento do pensamento, não mais como uma interpretação do
mundo. Nesse sentido, como uma atitude de pensamento, ela é uma poética. Como uma
poética, a errância pode ser entendida como estratégia que desmancha a fixidez, tornando-se
53 “Et alors je rêve, pour ma part, puisque je suis un écrivain, je rêve une nouvelle approche de la littérature dans
cette démesure qu’est le Tout-monde.” (GLISSANT, 2013, p. 92).
82
um conceito operacional para discussão das configurações espaciais que vimos
desenvolvendo.
Nesse caminho encontramos de fato, em Terra sonâmbula, a afirmação de uma terra
que “sozinha, deambula em errâncias” (COUTO, 2007, p. 99). O romance destemporalizando
o espaço, de certa forma, assume a sugestão de Doreen Massey, próxima ao pensamento de
Milton Santos: “E se nos recusássemos a expressar espaço em tempo? E se ampliássemos a
imaginação da única narrativa para oferecer espaço (literalmente) a uma multiplicidade de
trajetórias?” (MASSEY, 2015, p. 24). Percebemos o quanto a proposta de Massey está em
acordo com a perspectiva de errância de Glissant. Ambos propõem uma ampliação de
horizontes. Proposta que está, de certa forma, acolhida pelos deslocamentos presentes nos
romances analisados.
Embora os romances de nosso corpus não possam ser considerados narrativas de
viagem, identificamos neles movimentos e trânsitos constantes que afetam a vida dos
personagens e fazem com que o espaço seja visto como ativador da constituição da trama
romanesca. Os romances são marcados por deslocamentos espaciais e por encontros entre
personagens que vão agregando novas feições às histórias contadas e, desse modo, tecendo
entrelaçamentos narrativos, como vimos demonstrando ao longo dos capítulos.
Assim, todos os personagens circulam e se encontram com outros lugares, pessoas,
criaturas. Nesses movimentos e lugares de encontro proporcionados pelas situações de
trânsito, observamos, muitas vezes, a reincidência do questionamento que coloca face a face o
eu e o outro. O trânsito alarga a percepção dos sujeitos e aponta para a percepção de locais e
sujeitos periféricos, resultantes dos processos de exploração colonial e pós-colonial. Os
deslocamentos propiciam uma reflexão sobre o espaço, vendo-o como um lugar “de inter-
relações”, de “conexões e desconexões”, tal como afirma Massey:
Tanto espaço quanto tempo estão em jogo aqui. As especificidades do espaço são um produto de inter-relações – conexões e desconexões – e seus efeitos (combinatórios). Nem sociedade nem lugares são vistos como tendo qualquer autenticidade atemporal. Eles são e sempre foram interconectados e dinâmicos. Como Althusser costumava dizer, “não há ponto de partida”. (MASSEY, 2015, p. 106).
Portanto, sob o viés político, as demarcações do espaço podem ser vistas como mais
uma forma de construção das identidades. Essa questão está sempre encenada nos romances,
como vimos apontando.
83
No romance de Hampaté Bâ, Wangrin é um personagem político por excelência. Ao
transitar pelos espaços do sistema colonial francês, ele demonstra a complexidade de
fenômenos que associam identidade e território. A noção de pertencimento está atrelada a um
território, mesmo quando extrapolada pelo sentido de “nacionalidade”, dado pelo
colonialismo. Wangrin é da etnia bambara, nascido no país de Noubigou, na cidade de
Ninkoro-Sira. Suas andanças pelo território da AOF marcam, a cada passo, a estreita relação
com uma política de pertencimento que manipula a ligação do sujeito e seu território. Nos
interesses da colonização, o espaço é visto como um território de feição nacional, já que
regido por normas estipuladas pela “nação colonizadora”. Indivíduos como Wangrin, sujeitos
cujo pertencimento se liga a tradições e culturas específicas, são forçados a assumir, muitas
vezes com sua própria conivência, normas e regras de uma cultura estranha a eles, como no
exemplo seguinte.
Assim, todos os documentos de Faboukari foram precedidos do título de “Senhor” de grande honra para todos os sujeitos franceses cujos nomes deveriam ser invariavelmente precedidos das palavras: “o nomeado”. O título de senhor era, de fato, dado apenas aos europeus e aos indígenas originários das quatro comunas do Senegal: Dakar, Goreia, Saint-Louis e Rufisque, que beneficiavam do status de cidadãos franceses. (BÂ, 1992, p. 235).54
Faboukari é um falso comerciante. O personagem é um fantoche de Wangrin, que o
usa para atingir seus objetivos comerciais. Para tal, não importa que sejam adulterados os
quadros de controle da câmara de comércio para que seja atribuído ao personagem o título de
“Senhor”, mecanismo de vinculação dos sujeitos coloniais no espaço legitimado pela
metrópole. O romance aponta para os critérios de categorização que atribuem à titulação
“Senhor”, quase sempre só permitida aos franceses. Ao delegar o título a determinados
africanos nascidos nos espaços colonizados pela França, na África, o título, politicamente,
quer destacar o quanto é honroso para os africanos receber o status de cidadão francês
atribuído pela colonização.
Entendemos que o romance de Hampaté Bâ encena os conflitos de identidade e de
espacialidade que circunscrevem a noção de comunidade nacional instaurada pela
colonização. Redesenha uma comunidade imaginada que se situa numa geografia desenhada
por conceituações de espaço e de tempo, que atuam na construção de uma forma particular de
54 Ainsi, tous les papiers de Faboukari furent précédés du titre de “Monsieur” grandement honorifique pour tout
sujet français dont le nom devait invariablement être précédé des mots: “le nommé”. Le titre de monsieur n’était en effet donné qu’aux Européens et aux indigènes originaires des quatre communes du Sénégal: Dakar, Gorée, Saint-Louis et Rufisque, qui bénéficiaient du statut de citoyen français. (BÂ, 1992, p. 235).
84
poder e conhecimento, no caso, o colonialismo (HALL apud MASSEY, 2015, p. 108).
Segundo Massey, que, além de assumir o pensamento de Stuart Hall, cita o antropólogo
Johannes Fabian, a repressão a uma multiplicidade de trajetórias se torna a negativa real da
diferença dos outros. Essa repressão estabelece, portanto, uma geografia do poder. A
nacionalidade, colonialmente imaginada, torna-se poderosa a partir da possibilidade de um
deslocamento que forneceria a identidade/nacionalidade francesa a africanos, desprezando o
seu pertencimento étnico. Nesse processo, o espaço identitário se torna projeção do
imaginário do colonizador, enquanto as colônias passam a figurar como nações descolocadas
de seu ponto geográfico natal.
As relações entre espaço e tempo integram as discussões de Milton Santos (2012),
Dorreen Massey (2015) e mesmo as de Walter Benjamin (1994), quando instiga o pensamento
sobre a construção da história e das identidades. Entendemos, com Milton Santos, que
História e Geografia não estão dissociadas. Muito pelo contrário, a construção do espaço
geográfico está intrinsecamente associada ao curso da História. Nesse sentido, Santos afirma a
utilização de critérios da Geografia por geógrafos ligados às políticas colonialistas:
A utilização da geografia como instrumento de conquista colonial não foi uma orientação isolada, particular a um país. Em todos os países colonizadores, houve geógrafos empenhados nessa tarefa, readaptadas segundo as condições e renovada sob novos artifícios cada vez que a marcha da História conhecia uma inflexão. (SANTOS, 2012, p. 31).
As palavras de Milton Santos nos relembram que a conquista e administração do
território é sempre uma questão estratégica e, portanto, política, como também dito por
Massey (2015). Podemos dizer que a questão é também estratégica na organização do espaço
da literatura.
Considerando esse viés de interpretação, voltemos à Conferência de Berlim, que, em
1884-1885, ditou as regras do jogo segundo as quais as potências europeias se apropriariam
do território africano. As fronteiras delimitaram territórios imaginados de acordo com o
poderio das nações europeias que desconsideraram o sentido de espaço para os povos
africanos. O imaginário da África pós-partilha se constrói, assim, a partir de uma história de
poder, dominação, exploração e subjugação.
Nos exemplos citados do romance de Hampaté Bâ, fica explicita a encenação de um
“nós” versus um “outro” e os modos como o Ocidente colonizador impôs sua universalidade,
derrubando todas as particularidades daquele considerado Outro, o africano. Como se vem
demonstrando, Wangrin, muitas vezes, traduz e incorpora uma visão imaginada sobre si. No
85
entanto, os seus trânsitos, que acabam por revelar a intrincada máquina administrativa que foi
o sistema colonial francês, não o desligam dos espaços de sua terra natal. Acompanhamos o
personagem em suas peripécias por diferentes lugares, exercendo a profissão de monitor de
ensino a intérprete do Haut-Sénégal et Niger, passando pelas localidades de Diagaramba,
Goudougaoua, Yagouwahi, Danfa Mourga, por viagens a Bamako e a Dakar, a comerciante
de sucesso, até sua derrocada final em Dioussola. Tendo atingido o reconhecimento dentro do
sistema colonial francês, sendo, portanto, quase um cidadão francês, sua morte redesenha os
espaços da tradição e de sua origem étnica.
Quando o imã da cidade chegou, disse à família: “Os restos de Wangrin, segundo a tradição, pertencem aos originários de Noubigou, sua cidade natal, atualmente presentes em Dioussola. Antes de proceder aos arranjos mortuários, deve-se buscar o decano dos concidadãos de Wangrin e o avisar.” (BÂ, 1992, p. 354).55
O laço de pertencimento à terra natal prevalece, ao final de todos os trânsitos de
Wangrin, ancorando o personagem na sua tradição bambara.
Por outro lado, é possível apontar uma possível desconstrução espacial no romance de
Tutuola. O romance trata de forma irônica a questão do pertencimento ao território e da
origem das criaturas. “O rei nos fez as seguintes perguntas: ‘De onde vocês estão vindo?’ Eu
respondi que vínhamos da Terra.” (TUTUOLA, 1970, p. 65). Lendo o romance também como
uma metáfora de muitas práticas impostas pelo sistema colonial, podemos entender a pergunta
do rei no sentido permitido pela ideia de uma “geografia racializada” conforme as
considerações de Mbembe. Nessa geografia, a experiência vivida do negro, como relatada por
Fanon, nos permite estabelecer uma analogia com a cena do romance. Essa experiência diz
respeito à dúvida que coloca em questão a humanidade do negro. A comprovação de que “o
negro é um ser humano”56 (FANON, 1971, p. 96) precisa vir da ciência, uma vez que “os
cientistas, depois de muitas reticências, admitiram que o negro era um ser humano, in vivo e
in vitro o negro foi revelado como análogo ao Branco; mesma morfologia e mesma histologia.
A razão garantia sua vitória em todos os planos.” (FANON, 1971, p. 96).57 É importante
considerar que o sistema colonial e, antes dele, a escravatura não consideraram os oriundos do
espaço africano como humanos, chegando ao absurdo de ser necessária uma comprovação
55 “Quand l’imam de la ville arriva, il dit à la famille: ‘La dépouille de Wangrin, selon la tradition, appartient aux
originaires de Noubigou, sa ville natale, actuellement présents à Dioussola. Avant de procéder à la toilette mortuaire, il faut chercher le doyen des concitoyens de Wangrin et le prévenir.’” (BÂ, 1992, p. 354).
56 “le nègre est un être humain”. (FANON, 1971, p. 96). 57 “Les scientifiques, après beaucoup de réticences, avaient admis que le nègre était un être humain; in vivo et in
vitro le nègre s’était révélé analogue au Blanc; même morphologie, même histologie. La raison s’assurait la victoire sur tous les plans.” (FANON, 1971, p. 96).
86
que tivesse respaldo científico. Tais fatos reafirmam o quanto a concepção espacial é uma
realização política, assim como é a produção desse imaginário sobre a África.
Francisco Noa, ao estabelecer uma sistematização da literatura colonial moçambicana,
esclarece que “a emergência da literatura colonial acontece na esteira da literatura de viagens
e de exploração” (NOA, 2015, p. 24). É possível supor que os relatos de viajantes sobre a
África fornecem elementos para a construção do imaginário sobre o que seria “o
autenticamente africano”, do ponto de vista dos europeus.
Nesse sentido, é pertinente conhecer o que diz o jornalista e escritor Albert Londres,
que dá nome a um dos prêmios mais prestigiosos do jornalismo francófono. Londres viaja à
“África Negra” num momento de apogeu da colonização do império francês e, no seu relato,
Terre d’ébene aponta: “Aqui estão os Negros, os verdadeiros, os puros, não os filhos do
sufrágio universal, mas os do velho Cam.” (LONDRES, 2006, p. 31). 58 Na primeira edição
do livro, em 1929, o jornalista esclarece: “Vinte milhões de Negros, sujeitos franceses. Dois
impérios.” (LONDRES, 2006, p. 29).59 Entendemos que não é gratuito quando o jornalista
aponta os habitantes do continente africano como “Negros”, com ênfase na sua pureza e
origem. A afirmativa confirma uma ideia que se tem da África, quando é afirmada como
diferente da Europa, espaço de onde se origina o jornalista.
Ainda considerando a questão das configurações espaciais nos romances estudados, é
importante destacar que Doreen Massey sugere uma visão espacial que se desvincule da
concepção moderna e linear de evolução que elenca os eventos um após o outro numa
cronologia entendida como a evolução do progresso humano, segundo a classificação das
potências econômicas. Como contraponto a essa concepção, a geógrafa sugere para a
compreensão do espaço uma perspectiva que considere a possibilidade de “coexistências
simultâneas” numa “imbricação de trajetórias” (MASSEY, 2015). Assim, o espaço e a
história tornam-se lugar do encontro, possibilitando a multiplicidade de narrativas produzidas
“até agora”, como dito por Massey, num tempo “saturado de agoras”, como teorizado por
Benjamin (1994). Nesse contexto, percebemos que o movimento da errância e da crioulização
podem ser vistos como manifestação dessas “coexistências simultâneas” que acontecem num
lugar tornado espaço de encontro.
Os encontros fazem as histórias, como os que se dão entre Muidinga e Tuahir, em
Terra sonâmbula. Diferentes personagens inserem na trajetória do velho e do menino lendas
58 “Voici les Noirs, les vrais, les purs, non les enfants du suffrage universel, mais ceux du vieux Cham.”
(LONDRES, 2006, p. 31). 59 “Vingt millions de Noirs, sujets français. Deux empires.” (LONDRES, 2006, p. 29).
87
de outros tempos. Muitas das passagens do romance, seja na narração dos cadernos de Kindzu
ou no desenrolar da trama entre o menino e o velho, enfatizam a importância do caminhar, da
errância como um movimento que pode ser entendido como um deslocamento contínuo. O
jogo narrativo, em Terra sonâmbula, faz com que o espaço seja percebido e experimentado
nele mesmo como algo transitório: “Há dias que não se arredam do machimbombo. No
entanto, a paisagem em volta vai negando a aparente imobilidade da estrada.” (COUTO,
2007, p. 174). Por sua vez, Kindzu busca pelos naparamas, por um país e por uma África,
chamando a atenção para o caminhar: “O problema não é o lugar, disse, mas o caminho.”
(COUTO, 2007, p. 31, em itálico no original), como lhe é aconselhado pelo curandeiro, no
início de sua jornada. Conselho que, mais uma vez, aponta para uma concepção espacial não
fixa. A metáfora da escrita reforça o jogo narrativo e o espelhamento entre paisagem e
personagens, presente no romance. Essa estratégia reforça as possibilidades de construção de
sentidos para o espaço e se adapta à busca de Kindzu por uma ideia de África em aberto. Os
espaços em mudança, os trânsitos, os deslocamentos acabam por acolher elementos das
considerações de Glissant, quando afirma: “Ora, o movimento é aquilo que se realiza
absolutamente. A Relação é movimento.” (GLISSANT, 2011, p. 163). “Avançámos que a
Relação é totalidade aberta, em movimento sobre si mesma.” (GLISSANT, 2011, p. 181). O
horizonte em movimento, como descrito por Mbembe na narrativa de Tutuola, também pode
ser identificado, literalmente, no modo como a paisagem é vista pelos andarilhos do romance
de Couto.
Em Terra sonâmbula, a estrada atravessa a história de Muidinga e Tuahir,
proporcionando encontros com espaços que guardam resquícios de uma cultura destroçada
pela guerra. Assim como Kindzu, os personagens perambulam pelo país. São tantas voltas que
já não faz diferença se a terra gira ou se a estrada é que viaja. Eles parecem perder a
referência de onde estão constantemente. De forma mais contundente do que em Amos
Tutuola, o movimento é constante, bem como as alterações das configurações espaciais.
“Então se admira: aquela árvore, um djambalaueiro, estava ali no dia anterior? Não, não
estava. Como podia ter-lhe escapado a presença de tão distinta árvore? E onde estava a
palmeira pequena que, na véspera, dava graça aos arredores do machimbombo?
Desaparecera!” (COUTO, 2007, p. 36). Quem anda? Eles ou a estrada? Onde está África
pensada pelas personagens? O que Kindzu procura afinal, em seus deslocamentos espaciais:
naparamas, seu pai ou uma ideia de África?
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- Mas você, meu filho, não se meta a mudar os destinos. // Afinal, eu contrariava suas mandanças. Fossem os naparamas, fosse o filho de Farida: eu não estava a deixar o tempo quieto. Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera. Ou como aquelas fogueiras por entre as quais eu abria caminho no areal. (COUTO, 2007, p. 107, itálico original).
Enquanto para Muidinga e Tuahir a estrada é que anda, “sonambulante”, o jovem
Kindzu assume para si a qualidade de sonâmbulo e entra em confluência com sua terra.
Ambos sonâmbulos. No romance poético de Mia Couto, a noção de pertencimento pela
ligação com a terra se mescla à própria identidade na projeção que o sujeito faz de si em sua
terra. Ao entrar em confluência com sua terra, Kindzu a personifica. Concluímos, pois, que
identidade e espaço, de uma forma ou de outra, são noções intrinsecamente ligadas. Para além
do confronto entre o eu e o outro, afirmam-se os deslocamentos que proporcionam os mais
diversos encontros.
Diferentemente de Terra sonâmbula, o fluxo de paisagens e as sucessivas
transformações do personagem principal de O bebedor de vinho de palmeira fazem dessa
narrativa uma trama de difícil “coagulação”, como explicado por Mbembe, ao considerar a
obra como um espaço de trânsito que privilegia o encontro. Se o movimento é contínuo, os
encontros também o são. O espaço do romance se torna um lugar de encontro com as mais
diversas criaturas. Qualquer lugar ou hora é propício ao encontro, como já demonstrado nos
diversos exemplos citados ao longo dos capítulos desta tese. Basta que o protagonista esteja
em trânsito para que as criaturas surjam; os encontros acontecem desencadeando os eventos.
A falta de estrada, como também apontado, acentua o deslocamento que não exige uma
direção precisa. Até que o destino final, a Cidade dos Mortos, e o encontro com o vinhateiro
morto se tornam mais um ponto de passagem, a viagem continua de volta à terra do pai, de
volta à origem. Finalmente, o encontro que encerra o romance é a união entre o Céu e a Terra,
o que ressalta o caráter mítico da narrativa. Assim, o romance permite uma leitura metafísica,
se entendemos que ela joga “sobre as formas de vida”, construindo uma estratégia de
afastamento da morte, em que a “subjugação do mito é total, internalizando no espaço do
corpo a imortalidade dos deuses e a mortalidade dos homens.” (MIRANDA, 2008, p.46).
Como acentua Miranda, “ao mesmo tempo se garant[e] um espaço simultaneamente terrestre
e divino, real e fantástico, que permitiria localizar com precisão a morada das almas imortais
e dos corpos mortais.” (MIRANDA, 2008, p.46).
Vale assinalar que o percurso do bebedor de vinho tem certa semelhança com o
desenvolvido por Wangrin, no romance de Hampaté Bâ. Ambos representam um retorno às
89
origens. No caso do romance de Amos Tutuola, como dissemos, a origem é simbolizada pela
cena final de viés mitológico e pelo retorno do personagem às terras do pai. No caso de
Wangrin, o retorno às origens é marcado pelo fato de ele se transformar em amuseur public,
voltando, portanto, ao seio da tradição.
É importante ressaltar que a representação do espaço, no romance de Bâ, é marcada
pela luta entre o poder do colonizador e a resistência dos colonizados que, a exemplo de
Wangrin, mesmo que adotem certos costumes do colonizador, mantêm fortes laços com suas
origens. Ao longo do romance é tecida a derrocada do personagem que, ao final, sucumbe à
paixão pela mulher branca e ao alcoolismo. Quanto mais ele tenta driblar a potência colonial,
mais ele cai em sua malha (GARUBA, 2002, p. 104). Como explica Garuba, a respeito do
contexto em que se inscreve o romance de Chinua Achebe (1986), e por extensão o de
Hampaté Bâ: “Dentro da economia cultural do discurso colonial, [a] liberdade de pegar e
escolher, de reter e descartar, é limitada pela estrutura do discurso e do poder. [A] mobilidade
física e posicional como um ‘corpo’ e ‘sujeito’ é circunscrita e constantemente sob
vigilância.” (GARUBA, 2002, p. 103).
As considerações de Garuba servem de apoio para nossa interpretação da situação de
Wangrin, que ao longo de sua vida se esforça para driblar, com malícia, o mundo colonial e
transitar por ele, tirando proveito pessoal de sua profissão de intérprete, o que, a princípio,
ratificaria seu duplo pertencimento ao espaço colonial. No entanto, ao final de sua vida,
vemos que a comunicação entre o espaço da tradição e o ressignificado pela colonização não
se dá sem grandes conflitos. O deslize de Wangrin – sua paixão por uma mulher francesa e o
vício do álcool – vem de sua excessiva confiança de pertencer a um espaço ao qual ele não
pertence realmente. Sua morte confirma que sua aceitação só poderia advir do lugar de
nascimento. Logo, embora o romance confirme o trânsito entre as culturas, mostrando através
da função de intérprete que as fronteiras não são tão fixas, as separações próprias do mundo
colonial – um espaço cindido como visto por Fanon – prevalecem. Wangrin, ao morrer,
abraça sua origem, mas não tem nenhum reconhecimento do sistema ao qual ele “serviu”
acreditando que, como excelente tradutor, mereceria as benesses destinadas “aos Negros da
África”, como diversas vezes ouviu de seus comandantes.
Como procuramos demostrar ao longo deste capítulo, a categoria espaço é importante
para entendermos o modo como os três romances articulam os espaços ficcionalmente
construídos. As configurações espaciais permitem considerar as inter-relações entre os
espaços encenados e os contextos em que os romances foram produzidos. Se nos romances de
Hampaté Bâ e de Tutuola fica clara a interferência da colonização nas terras africanas, no
90
romance de Couto vemos o desmantelamento desse espaço africano que não se adapta ao que
foi configurado pela colonização e nem mesmo ao imaginariamente legitimado pela tradição.
Assim, notamos o movimento constante dos personagens em busca de espaços e
espacialidades que reconfigurem a feição múltipla do país.
91
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS
Neste último capítulo pretendemos discutir as estratégias narrativas assumidas pelas
obras em análise, destacando os recursos utilizados para dar conta de escritas literárias que
não escondem as relações que fazem com os contextos de onde são provenientes. Nessa
discussão será enfocada a constituição dos narradores como contadores de histórias, bem
como cada um dos romances consegue abordar as tensões que dão corpo às narrativas.
Discutiremos, sobretudo, como essas narrativas assumem expressões estéticas próprias do
gênero romance, ainda que mantendo características dos gêneros orais de seus diferentes
contextos.
Os romances africanos instalam, com narrativas que não atentem às expectativas do
cânone ocidental, outros paradigmas literários. De tal forma que, para sua análise crítica, eles
exigem uma outra epistemologia da teoria literária como vem sendo discutido por pensadores
como Achille Mbembe, Franz Fanon, Harry Garuba, Édouard Glissant, Inocência Mata e J.Y
Mudimbe, entre outros teóricos africanos e africanistas. Ao longo dos capítulos anteriores,
procuramos demonstrar, através da discussão da temática da identidade e do espaço, que os
romances do nosso corpus encenam aspectos relativos a uma outra perspectiva do mundo.
Essa outra cosmogonia africana representa, muitas vezes, o choque entre dois mundos e sofre
para se fazer entender nesse entre-lugar. Enquanto a teoria literária continua representada
fortemente pelo eixo norte, as literaturas africanas pedem uma epistemologia literária capaz
de considerar os aspectos narrativos e extraliterários que lhe são próprios. Estas são algumas
premissas com as quais trabalhamos neste último capítulo, com o suporte da teoria pós-
colonial, por entendermos que essa feição da crítica literária não se apresenta somente como
uma discussão conceitual, mas proporciona também um enfoque que considera seu próprio
fazer crítico. De acordo com os estudos da pesquisadora são-tomense Inocência Mata, as
várias abordagens dos estudos pós-coloniais acabam por compor uma tentativa comum de
“construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos.”
(MATA, 2014, p. 31).
4.1 Africanos como sujeitos dos romances
Direcionando a afirmação de Mata (2014) para a investigação das obras selecionadas,
observamos que a construção dos personagens como heróis deslocam, em certos aspectos, a
concepção de herói como considerada pelo cânone do romance moderno. Percebemos como
92
as identidades dos sujeitos africanos encenadas afetam sua constituição heroica sem, no
entanto, prejudicar seu desempenho formal dentro da economia romanesca.
Assim, como vimos demonstrando, a identidade dos personagens do Bebedor de
vinho de palmeira, de Amos Tutuola, Wangrin, de Amadou Hampaté Bâ, e também de
Kindzu, Muidinga, Tuahir e Farida, de Terra Sonâmbula, de Mia Couto, se constitui de
momentos conturbados. Nesses momentos, a violência do meio externo faz com que o
processo de constituição da identidade do sujeito não se dê segundo a teoria moderna que
preconiza uma identidade única e fixa. Os sujeitos negros que nascem do processo colonial
expressam personalidades múltiplas e habitam um entre-lugar em que a concepção de
identidade única imposta pelo modelo europeu entra em colapso. No entanto, pretendemos
discutir como esses sujeitos, como protagonistas dos romances estudados, ocupam o lugar de
“heróis”, mesmo os desafiando, em seus respectivos romances.
De que forma eles e seus romances desafiam as concepções literárias atreladas à
modernidade europeia? Para tanto, não devemos perder de vista que os romances são
estudados como uma estratégia linguística e, como tal, são construídos através da linguagem.
Francisco Noa, em seu trabalho sobre o romance colonial moçambicano, para quem a
discussão sobre a representação literária incorre no risco da tautologia, enfatiza a construção
da linguagem como criação, ressaltando que é preciso passar da possibilidade da
representação para a realização da criação, considerando o desempenho da linguagem. (NOA,
2015).
Na mesma linha, conferindo especial atenção à linguagem, Bakhtin considera:
O gênero romanesco não é a imagem do homem em si que é característica, mas justamente a imagem de sua linguagem. Mas para que esta linguagem se torne precisamente uma imagem de arte literária, deve se tornar discurso das bocas que falam, unir-se à imagem do sujeito que fala. (BAKHTIN, 1993, p.137).
O teórico russo coloca a linguagem, no sentido do discurso que é produzido pelo
romance, como a representação que é encenada pela narrativa como o cerne do que é o gênero
romance.
Nesse sentido, como uma construção discursiva, os romances estudados colocam no
lugar reservado pela modernidade, capitalista e burguesa, protagonistas que, como sujeitos
advindos do processo colonial, perturbam a estreiteza da heroicidade moderna, por não
corresponderem ao modelo que a burguesia entende e impõe como “homem” ou “indivíduo”.
No entanto, esses protagonistas não deixam de ocupar, em seus respectivos romances, o lugar
93
de herói dentro da estrutura da obra literária, assumindo características próprias em suas
respectivas trajetórias.
Do ponto de vista da estrutura narrativa, o norte-americano Christopher Vogler se
apropria dos estudos do russo Vladimir Propp, apoiando-se nos arquétipos do psicanalista
suíço Carl Gustav Young, para decifrar um percurso comum a todas as histórias, e entende
que a “jornada do herói é uma armação, um esqueleto, que deve ser preenchido com os
detalhes e surpresas de cada história individual.” (VOGLER, 2006, p. 47). Em seu estudo
intitulado A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores, Vogler (2006) identifica os
elementos que constituem o que denomina narrativa mítica como sendo uma narrativa
ancestral que trata da jornada do herói. Segundo o estudioso, os escritores perseguem “eternos
padrões” narrativos que perduram na maneira do homem contar histórias, e se mantêm quase
que em qualquer história. A universalidade da fórmula detalhada por Vogler encontra
respaldo na teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos de Young. O teórico brasileiro
André Vieira condensa assim os estudos dos teóricos apontados:
Estudando uma quantidade muito grande de sonhos, Jung reparou que o sonho tende a se organizar como um drama. [...] É interessante notar que Jung (1945/1984) não irá empregar o termo narrativa, mas drama, utilizando, assim, a mesma terminologia empregada por Aristóteles. Tal fato se explica pelo estado da arte na época. De qualquer maneira, a unanimidade entre os estudiosos da narrativa em apontar Aristóteles como seu principal precursor nos autoriza a entender, neste caso, drama como narrativa. Outro ponto que deve ser salientado é o fato de que Jung organiza sua estrutura narrativa a partir de quatro macro-proposições: Exposição,
Desenvolvimento, Peripécia e Resultado. (VIEIRA, 2001, p. 602).
Vogler (2006) aponta 12 etapas que o herói atravessa em sua jornada que podem ser
vistas como uma derivação das quatro principais etapas descritas por Young. Em termos de
estrutura essencial da narrativa e da trajetória do herói, em um aspecto ou em outro, os
protagonistas dos romances estudados se aproximam, mas também se distanciam dessa
espécie de modelo universal, em que o “arquétipo do Herói representa a busca de identidade e
totalidade do ego” e que “no âmago de toda história existe um confronto com a morte”.
(VOGLER, 2006, p. 52).
Diante do exposto, observamos que as trajetórias dos protagonistas estudados são
específicas. Os romances colocam o homem negro lutando para sobreviver à guerra, em
Terra sonâmbula, tentando vencer as barreiras impostas pela administração colonial, em
L’étrange Destin de Wangrin, enfrentando a própria morte, em O bebedor de vinho de
palmeira. No entanto, em Terra sonâmbula, a luta de Kindzu, Muidinga e Tuhair descarta
uma percepção individualista, já que o almejado por eles é perseguir uma luta coletiva, a do
94
povo moçambicano. Wangrin mostra-se, ao final, depois de um percurso individualista e
burguês, um defensor da tradição africana ao assumir-se como contador de histórias (amuseur
public). O bebedor de vinho, no romance de Tutuola, desafia a heroicidade moderna ao
metaforizar, através de suas histórias mitológicas, a violência do mundo colonial.
A busca pela identidade, nesses casos, como observa Frantz Fanon, ao teorizar sobre o
que podemos considerar um arquétipo do homem negro, acentua a impossibilidade de
realização de uma identidade que, embora prometida pelo sistema colonial através das
políticas de assimilação, é sempre impossível de ser alcançada. O homem que se vale de uma
máscara branca é representado, no nosso corpus, principalmente, pelo personagem de
Wangrin. Nele vemos explicitamente como a identidade pretensamente europeia de um
assimilado nunca passará de uma máscara branca sobre uma pele irremediavelmente negra. O
desejo de branqueamento se torna um fantasma perseguido infinitamente.
De acordo com análise feita por Achille Mbembe, em Crítica da razão negra, “a
colonização é uma prodigiosa máquina produtora de desejos e de fantasmas”60 (MBEMBE,
2015, p. 168). Os romances estudados encenam metaforicamente a luta do homem colonizado
com os fantasmas aludidos por Mbembe. Nesse sentido, a África colonizada surge para a
modernidade fadada ao fracasso, pois é inventada a partir de um paradigma impossível de ser
realizado. Segundo Mbembe, “O nascimento do sujeito de raça – e então do Negro – está
ligado à história do capitalismo.”61 (MBEMBE, 2015, p. 257). Temos visto que é como uma
empreitada capitalista que a máquina colonial é posta em ação. A identidade do negro é,
portanto, indissociável desse modo de produção.
Ao arquétipo do herói de romance, como teorizado por Vogler, deve ser incluído o
arquétipo do homem negro, como teorizado por Fanon. A encenação desse sujeito na
economia romanesca afeta o gênero, transformando-o, quando, a partir do embate das culturas
do processo colonial, a identidade do homem negro se expressa na multiplicidade, numa
tensão promovida pelo jogo colonial. A identidade negra, fomentada pelo desejo de consumo
e alimentada por fantasmas promovidos pelo capitalismo colonial, é fadada ao fracasso. Pela
impossibilidade de sua realização, ela torna-se uma fantasia, uma neurose sempre estimulada,
como analisada por Fanon. Como sujeitos, dentro de tal contexto, entendemos que nossos
heróis desafiam o entendimento moderno de identidade fixa. No entanto, permanecem
“heróis” do romance, pois ocupam o lugar de destaque no desenrolar das peripécias
romanescas. Acrescentando outra dimensão ou mudando a perspectiva de certas etapas
60 p. 168: «La colonisation est une prodigieuse machine productrice de désirs et de fantasmes.» 61 p. 257: «La naissance du sujet de race – et donc du Nègre – est liée à l’histoire du capitalisme.»
95
destacadas por Vogler, como o confronto com a morte, que se torna uma luta pela
sobrevivência, o que sobressai é ação da função heroica: “agir ou fazer. O Herói, geralmente,
é a pessoa mais ativa do roteiro. Sua vontade, seu desejo, é que empurram as histórias para a
frente.” (VOGLER, 2006, p. 55). Nessa perspectiva que considera a estrutura da narrativa,
observamos o protagonismo de nossos heróis como comandantes de suas ações.
Adotando uma visão mais ampla, que considera a participação do herói como um
tópico de destaque dentro do gênero, entendemos que a ausência de convenções formais do
romance permite sua plasticidade e sua adaptação ao longo do tempo, ao curso de diversas
realidades, sendo possível que se torne a expressão não só da epistemologia da modernidade,
ainda que surgindo dela. Embora o romance como gênero literário e objeto de estudo sofra
com a necessidade de definição, demanda típica de qualquer ciência, diante da teoria
principalmente de Ian Watt, Mikhail Bakhtin e Marthe Robert, como discutiremos a seguir, é
possível entender o gênero como:
[...] revolucionário e burguês, democrático por opção e animado por um espírito totalitário que o leva a romper obstáculos e fronteiras, o romance é livre, livre até o arbitrário e até o último grau da anarquia. Paradoxalmente, todavia, essa liberdade sem contrapartida não deixa de lembrar muito a do parasita, pois, por uma necessidade de sua natureza, ele vive ao mesmo tempo na dependência das formas escritas e à custa das coisas reais cuja verdade pretende “enunciar”. E esse duplo parasitismo, longe de restringir suas possibilidades de ação, parece aumentar suas forças e ampliar ainda mais seus limites. (ROBERT, 2007, p. 13).
A explicação da pesquisadora francesa Marthe Robert nos permite perceber o gênero
como um exercício de uma narrativa livre que insere, no centro da ação como apontado por
Vogler, os sujeitos negros de identidades múltiplas que atuam como heróis dentro da
economia literária dos romances estudados.
4.2 O trabalho heroico: do individual para o coletivo
O confronto do(s) herói(s) com a morte é explícito nos romances estudados e pode ser
lido como uma metáfora da escravização do negro africano dentro do processo colonial, no
exemplo específico trazido pelo romance de Amos Tutuola, quando a individualidade se
concretiza no espaço físico do corpo violentado. O teórico inglês Ian Watt, em seu estudo
sobre a ascensão do romance, assinala que os heróis, ao modelo de Robson Crusoé,
personificam nos romances o individualismo do mundo. O herói, ainda segundo Watt, é o que
promove a ação no romance. Mas, para explicar sua legibilidade, o teórico inglês estabelece
96
sua relação com o contexto social externo: “O individualismo econômico explica grande parte
do caráter de Crusoé; a especialização econômica e sua ideologia ajudam a esclarecer o
fascínio de suas aventuras; mas o que domina seu ser espiritual é o individualismo puritano.”
(WATT, 2010, p. 78). O teórico destaca o caráter individualista do herói de romance como a
celebração de umas das principais características da modernidade, o individualismo
capitalista. Esse caráter individual pode ser associado diretamente à luta pela sobrevivência.
Como personificação de um certo modelo de individualismo, encontramos no
personagem de Wangrin um exemplo mais evidente desse homem que encarnaria um ideal de
autorrealização e sucesso social, em acordo com os heróis dos romances modernos. Mesmo
que, ao final, Wangrin não seja exatamente esse herói bem-sucedido, ele é ao longo de toda a
narrativa o protagonista dentro dessa economia literária do romance que encena suas
aspirações individuais.
Os exemplos já citados, nos capítulos anteriores, da obra de Hampaté Bâ mostram
como o protagonista Wangrin se insere no contexto colonial e capitalista através do valor de
sua mão de obra. É primeiro como monitor de ensino, depois como intérprete colonial e,
finalmente, como comerciante, que o protagonista se destaca socialmente. Seu trabalho
compra, a princípio, seu status social. O romance mostra a escalada social de Wangrin, que
com o conhecimento da cultura do colonizador, dominando a língua, os gestos, e mesmo
alcançando altos cargos na administração e comércio local, não se contenta. Sua ganância não
tem limites, tudo faz parte de um plano de enriquecimento (p. 62), onde esbanjar sua riqueza
com jantares e festas não é suficiente (p. 64), até ser finalmente visto como alguém que “sua
dinheiro por todos os poros de sua pele”62 (p. 318). A conquista da mulher branca é mais uma
etapa de sua luta por reconhecimento num quadro delineado pelos desejos e fantasmas da
máquina colonial. Esse modelo de herói que traz uma personalidade às avessas também se
encaixa numa concepção estruturalista de herói. Segundo Vogler, mesmo os chamados anti-
heróis seriam apenas um tipo especial de herói que pode “ser um marginal ou um vilão, do
ponto de vista da sociedade, mas com quem a plateia se solidariza, basicamente.” Ou, ainda,
seriam “Heróis com defeitos, que nunca conseguem ultrapassar seus demônios íntimos, e são
derrotados e destruídos por eles.” (VOGLER, 2006, p. 58).
No entanto, o individualismo heroico, dentro dos romances africanos estudados, não
se liga expressamente ao individualismo burguês como caracterizado por Watt. O trabalho é a
luta pela vida, e nesse sentido representa o confronto com a morte, ao contrário da lógica
62 “Il sue l’argent par tous les pores de sa peau.” (BÂ, 1992, p. 318).
97
individualista moderna, em que o trabalho é a busca pelo sucesso representado pelo poder e
pelo acúmulo de capital.
Mbembe interpreta o trabalho – na obra de Amos Tutuola, que lhe serve de exemplo
em sua análise sobre a “razão negra” – como uma atividade desempenhada para assegurar a
sobrevivência do indivíduo dentro do mecanismo colonial. Nesse extremo, quando o poder
colonial se impõe pela força e o corpo do homem negro torna-se uma peça, entendemos que
se trata do trabalho escravo. Mbembe diz: “No centro do trabalho pela vida está,
evidentemente, o corpo, esta matéria evidente a qual se ligam, em seguida, várias
propriedades, um número, uma cifra.”63 (MBEMBE, 2015, p. 209). Um corpo que, Mbembe
explica, “não significa nada”. Esse corpo destituído de sua humanidade, um sujeito sem
subjetividade, fica desprovido de significado, está pronto a desempenhar um trabalho que é
uma “atividade permanente”. Entendemos que a interpretação de Mbembe sobre o corpo
negro, a partir das situações encenadas na obra de Amos Tutuola, apresenta uma definição da
escravidão, por descrever o processo pelo qual esse corpo se transforma apenas em
instrumento e força de trabalho permanentes.
A percepção do corpo negro como peça comercializável fica clara em O bebedor de
vinho de palmeira, quando é descrita uma das criaturas do ambiente fantasmal: “Era um belo
e completo cavalheiro, vestido com roupas bonitas e caras. Era alto e forte, e todas as partes
de seu corpo eram completas. Se esse cavalheiro fosse uma mercadoria ou um animal que
estivesse à venda, certamente seria vendido a duas mil libras.” (TUTUOLA, 1970, p. 18). A
comparação entre o homem “alto e forte”, com destaque para o fato de as “partes de seu
corpo” estarem completas nos remete à forma como os escravos eram vendidos, destacando-
se a qualidade dos dentes, o tônus muscular etc. Os escravos eram comercializados como
produtos, destituídos de sua humanidade, com atenção a sua forma física, que indicaria sua
capacidade para desempenhar o trabalho.
Nessa linha de interpretação posta por Mbembe, percebemos um sentido mais
completo para as diversas descrições dos corpos dos personagens, desde as cenas de
violência, em que eles têm suas cabeças raspadas, até as descrições sobre os corpos das
criaturas estranhas, que apresentam características impossíveis de serem relacionadas com
qualquer ser vivo, como joelhos voltados para trás, olhos em partes inusitadas ou mesmo esse
corpo montado com partes alugadas. Ao perceber que o corpo está no centro de um trabalho
realizado pela sobrevivência e considerando que a luta pela sobrevivência comporta o risco da
63 “Au centre du travail pour la vie se trouve, de toute évidence, le corps, cette matière d’évidence à laquelle se
rattachent ensuite nombre de propriétés, un nombre, un chiffre.” (MBEMBE, 2015, p. 209).
98
morte, entendemos a necessidade da afirmação de uma diferença entre a vida e a morte, sendo
essa separação o próprio motivo da jornada do protagonista em busca de seu vinhateiro morto.
Consideramos que esse trabalho comporta intrinsecamente o risco da morte, mesmo que a
diferença entre vida e morte esteja inscrita no espaço fantasmal, como estudamos, um espaço
liminar (liminal space), e não uma fronteira intransponível. Nesse espaço, o sujeito afirma sua
condição: “Eu ainda estou vivo e não sou um homem morto.” (TUTUOLA, 1970, p. 11). Na
encenação desses corpos partidos e violentados, com as elucidações das análises de Mbembe,
percebemos a representação das forças coloniais atuantes na África e, de forma ainda mais
ampla, destaca-se a atuação do sistema escravocrata com o aniquilamento do homem negro.
Dessa forma, a metaforização promovida pelo romance alcança um sentido mais amplo e
coletivo, abalando a concepção individualista de um herói no romance.
De forma mais nítida, em Terra sonâmbula, o sentido de coletividade aparece no
contexto da guerra civil moçambicana. A luta pela sobrevivência implica reconstruir os
relacionamentos, inclusive pelas situações de trabalho que devem ser reinventadas, como no
caso da cadeira de rodas do personagem Assane, que, aleijado pela guerra, passa a alugar seu
meio de transporte pessoal para divertimento dos outros, transformando aquela situação
individual em algo coletivo. No romance, em contraposição ao ambiente colonial
metaforizado em O bebedor de vinho de palmeira, o mundo pós-apocalíptico mostra a
sociedade esfacelada e, como consequência, personagens que encenam o extremo, com suas
vidas já destruídas, lutando pela sobrevivência. A quase completa desorganização social
permite, no entanto, que as relações sociais sejam reformuladas. Antoninho, ex-empregado do
indiano Surendra, aluga a cadeira de rodas de Assane, funcionário da administração colonial
que mora com o indiano Surendra, que colocou sua mulher numa canoa de volta à Índia,
encontrada na praia por Kindzu, que está em busca do filho desaparecido de Farida, por sua
vez, exilada num navio atolado no mar. Gaspar, o filho de Farida, não é encontrado por
Kindzu, mas ele encontra Dona Virgínia, viúva de seu pai Romão Pinto.
A partir dos relacionamentos estabelecidos pelos personagens, em que ora se destacam
as fraturas ora os encontros, observamos que o lugar dos protagonistas, em suas respectivas
narrativas, delineia-se pelo de “heróis” dentro da economia literária do romance. Quando
observamos os dois romances que abordam situações anteriores às independências, L’étrange
destin de Wangrin e O bebedor de vinho de palmeira, concluímos que as tramas são
consequência direta do desenrolar das ações individuais de Wangrin e do bebedor de vinho de
palmeira. No entanto, em Terra sonâmbula, o papel solitário e individual do protagonismo
da ação dilui-se nas ações que enfocam diferentes personagens; a diluição do caráter
99
individual reflete-se na organização da trama. No entanto, ainda percebemos nitidamente que
as ações e os vários personagens giram em torno dos núcleos principais, que são
protagonizados por Kindzu, nos relatos feitos em primeira pessoa anotados em seus cadernos,
e por Muidinga e Tuhair, quando um narrador nos conta em terceira pessoa os
acontecimentos.
Assim, apropriando-se do gênero romance, que é maleável, os romances africanos
encenam heróis que, ao mesmo tempo que ocupam o lugar de protagonista na cena, não
encarnam a figura do herói individualista, moderno e capitalista, como apresentado por
escritores como Defoe e Richardson e tal como analisado por Ian Watt (2010). O romance é,
portanto, um gênero literário que se reinventa. Nas obras africanas estudadas, o gênero
assume contradições, reafirmando seu caráter maleável como uma de suas maiores
características. Enquanto Watt (2010) e o filósofo alemão Walter Benjamin (1994) colocam o
romance como um gênero de expressão individual atrelado ao individualismo moderno, os
romances africanos estudados, mesmo quando encenam heróis que parecem atuar apenas em
causa própria, como no caso de Wangrin e do bebedor de vinho de palmeira, subvertem a
noção de indivíduo e de coletividade, seja pelo desfecho de suas trajetórias, seja pela
metaforização que fazem da história coletiva a partir de suas experiências individuais, como
em Terra sonâmbula.
Embora o romance, como teorizado por Benjamin, tenha sua origem no “indivíduo
isolado” e, nesse sentido, estaria em oposição à narrativa, pois esta seria advinda da
experiência da coletividade, esse gênero, na mesma teoria benjaminiana, é preconizado como
sendo fadado à autossuperação. O filósofo afirma: “Escrever um romance significa, na
descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza
dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem
a vive.” (BENJAMIN, 1994, p. 201). Segundo Benjamin, portanto, se, por um lado, o
romance acaba com a narrativa, por outro, ele é capaz de enorme distensão. O filósofo alemão
percebe o gênero como capaz de abarcar a perplexidade da vida, senão de forma narrativa, em
sua forma descritiva. As considerações de Benjamin nos permitem discutir questões tratadas
por ele, sobretudo a respeito da narração, o que nos leva a considerar também questões
relativas à autoria.
4.3 Autoria e narração em L’étrange destin de Wangrin
100
Em L’étrange destin de Wangrin, a presença do autor na introdução da narrativa se
faz pela exposição de uma voz que assume a autoria do texto e declara a veracidade dos fatos
encenados. A tensão entre ficção e realidade emerge, na introdução, a partir da relação entre
narrador e autor.
Em certa medida, a crítica pós-colonial retoma a discussão posta por Michel Foucault
(1995), em sua análise da “função do autor”, como uma configuração da produção textual que
estabelece a coerência do texto escrito. Para Foucault (1995), a noção de autor está associada
ao processo de individualização na história do pensamento ocidental. O filósofo francês
desenvolve sua reflexão a partir dessa ideia da individualização promovida pela coerência
sobre um certo discurso produzido. Foucault resume: “Em suma, o autor é uma espécie de
foco de expressão, que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta da mesma maneira,
e com o mesmo valor, nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos fragmentos, etc.”
(FOUCAULT, 1995, p. 53).
Nesse sentido, o romance começa com um aviso ao leitor (“Avertissement”) que
pretende esclarecer sobre a origem e a função do relato que se segue. Trata-se do
cumprimento de um dever entre amigos. Amadou Hampaté Bâ, que assina a capa do livro, se
coloca em primeira pessoa nesse aviso, responsabilizando-se pela veracidade dos fatos
narrados, como resultado do compromisso assumido com o protagonista dessa história já
anunciada como incomum desde o título. O livro é, portanto, o resultado do relato oral feito
por Wangrin a Hampaté Bâ. Assim, simulando o contato intencional com o antigo funcionário
da administração colonial, o autor declara:
(...) cada noite, após o jantar, de 20 às 23 horas, às vezes até meia-noite, Wangrin me contava sua vida. A conversação acontecia ao som de um violão, tocado com excelência e incansavelmente por Dieli-Madi, seu griô. Foi assim durante três meses.64 (BÂ, 1992, p. 8).
A narrativa surge, portanto, a partir do relato das experiências pessoais de Wangrin,
que nutrem o autor do romance.
Walter Benjamin, na discussão que apresenta sobre a obra de Nikolai Leskov, aborda
aspectos que constituem a narrativa e lhe permitem questionar o gênero romance e a função
moderna do narrador. Benjamin sustenta que “[a] experiência que passa de pessoa a pessoa é
a fonte a que recorreram todos os narradores.” Nessa perspectiva, a narrativa de Hampaté Bâ
64 “Chaque nuit, après le dîner, de 20 à 23 heures, parfois jusqu’à minuit, Wangrin me racontait sa vie. La
conversation se déroulait aux sons d’une guitare, dont jouait excellemment et infatigablement Dieli-Madi, son griot. Il en fut ainsi durant trois mois.” (BÂ, 1992, p. 8).
101
põe em cena esse narrador tradicional descrito por Benjamin. O filósofo afirma ainda que
“[o]s narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em
que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa
história a uma experiência autobiográfica.” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Exatamente como
dito pelo filosofo alemão, Hampaté Bâ constrói um narrador que narrará a história que lhe foi
contada pelo próprio Wangrin. Com o jogo que mistura autoria e direito de narrar, o romance
se configura como transmissão de experiência. Estamos diante de um narrador da tradição,
segundo o filósofo alemão e também segundo o autor africano.
Portanto, é como um narrador que tem a experiência como fonte que o autor fixa sua
cena na tradição africana da contação de história para estabelecer assim a veracidade do
relato. Amadou Hampaté Bâ coloca-se em primeira pessoa nesse preâmbulo, falando sobre si
mesmo não só para descrever minuciosamente a situação em que lhe foi passada a
experiência, mas assumindo a autoridade sobre o relato, como dito por Jonathan Culler:
“Narrar uma história é reivindicar uma certa autoridade, que os ouvintes concedem.”
(CULLER, 1999, p. 89).
Assim, o autor, Amadou Hampaté Bâ, revela ser o romance resultado da promessa
feita a um homem, em 1912, e reafirma os laços de parentesco estendido a partir de uma
amizade que se forma em conformidade aos hábitos da “tradição malinesa”. O autor explica:
“Ele se tornou meu amigo por duas razões. Em primeiro lugar, porque ele era muito ligado ao
meu tio materno, Hammadoun Pâté, e em segundo lugar, por causa do grande número de
contos que eu lhe relatava, sob encomenda.”65 (BÂ, 1992, p. 7). Mais tarde, os amigos se
reencontram. Hampaté Bâ, já adulto, ouve o pedido do velho conhecido, que o tem como um
verdadeiro sobrinho. Wangrin lhe “pede expressamente para não mencionar seu verdadeiro
nome” e faz a encomenda do livro que temos em mãos. Assim Wangrin se dirige ao jovem
Hampaté Bâ, que relata em discurso direto:
Meu pequeno Amkullel, antigamente, você era um bom contador de histórias. Agora que você sabe escrever, você vai tomar nota do que eu te contarei da minha vida. E quando eu não for mais deste mundo, você fará um livro que não apenas divertirá os homens, mas lhes servirá de ensinamento.66 (BÂ, 1992, p.8).
65 “Il se prit d’amitié pour moi pour deux raisons. En premier lieu, parce qu’il était très lié avec mon oncle
maternel, Hammadoun Pâté, et en second lieu, à cause du grand nombre de contes que je lui rapportait, sur sa demande.” (BÂ, 1992, p. 7).
66 “Mon petit Amkullel, autrefois, tu savais bien conter. Maintenant que tu sais écrire, tu vas noter ce que je conterai de ma vie. Et lorsque je ne serai plus de ce monde, tu en feras un livre qui mon seulement divertira les hommes, mais leur servira d’enseignement.” (BÂ, 1992, p.8).
102
Ao traçar sua linhagem genealógica para explicar os laços que o ligam ao personagem
Wangrin, homem real e verdadeiro autor do relato, Hampaté Bâ filia-se mais uma vez à forma
tradicional africana de se apresentar. O teórico ganês Simon Kofi Appiah, em seu artigo sobre
a ética no processo de continuidade e descontinuidade da tradição nas narrativas africanas,
diz: “podemos observar que em algumas comunidades, a autoapresentação frequentemente
toma forma de uma genealogia, ou o que pode ser chamado de uma narrativa clã-reflexiva.”67
(APPIAH, 2013, p. 48). Não se trata, no caso do romance de Bâ, desse tipo de narrativa
reflexiva de clã, apenas identificamos, no preâmbulo feito pelo autor, elementos que remetem
à forma tradicional africana de contar histórias.
Trazer informações genealógicas para o relato é um desses elementos que remetem
para uma continuidade da tradição, mesmo que adaptada, ao ser transposta para o gênero
romance, forma moderna e europeia de contar. Com essa declaração de autoria que se
aproxima da realidade pela experiência, usando também do respaldo genealógico, a voz que
fala no preâmbulo confere a si autoridade para contar a história que se segue. No âmbito do
gênero escolhido, essa voz se confundirá com a do narrador.
Conferindo para si ainda mais autoridade sobre o relato e reforçando o argumento de
que o romance extrai do mundo sua matéria-prima, o autor completa que teve a oportunidade
de servir nos mesmos postos por “onde Wangrin também havia passado, podendo completar
as informações com todos aqueles que estiveram em campo implicados às suas aventuras.”68
(BÂ, 1992, p. 8). Assim, duplamente experimentado, o autor atesta ter respaldo para fazer seu
relato. A forma do texto corrobora sua intenção de problematizar as incongruências e abusos
do sistema colonial ao jogar com as vozes de autor, narrador e personagem apelando para a
tradição da experiência como experimentação da realidade transposta para o livro.
Assim, a obra de Hampaté Bâ, ao colocar em cena a autoridade narrativa, reitera um
dos questionamentos essenciais colocados pelo gênero romance que considera a
“correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita” (WATT, 2010, p. 11).
Segundo Ian Watt, o esforço em definir a “natureza do realismo no romance” é “um problema
essencialmente epistemológico”, que seria de competência daqueles que são responsáveis por
discutir os conceitos, ou seja, os filósofos. Esbarramos mais uma vez num questionamento
acerca da representação que, com Aristóteles, deixa de ser uma questão apenas filosófica para
se tornar matéria da poética. Nessa nova e específica ciência chamada poética, a noção de
67 “First, we can observe that in some communities, self-introduction often takes the form of a genealogy, or
what might be called a clan-reflexive narrative.” (APPIAH, 2013, p. 48). 68 “d’être amené à servir dans tous les postes où Wangrin était passé, pouvant ainsi largement compléter mes
informations auprès de tous ceux qui avaient été mêlés sur place à ses aventures.” (BÂ, 1992, p. 8).
103
verossimilhança passa a regulamentar a própria ideia de representação que “busca produzir
não uma exatidão absoluta, mas uma verdade possível do real”69 (GEFEN, 2003, p. 41).
Como verdades possíveis de uma determinada realidade, entendemos que “na verdade,
porém, certamente [o romance] procura retratar todo tipo de experiência humana e não só as
que se prestam a determinada perspectiva literária: seu realismo não está na espécie de vida
apresentada, e sim na maneira como a apresenta.” (WATT, 2010, p. 11). Theodor Adorno
(2003) e Walter Benjamin (1994) refletem sobre a impossibilidade narrativa diante dos
horrores da guerra na perspectiva de quem as viveu, questionando não apenas a capacidade
daqueles que deveriam relatar os acontecimentos, mas como tais horrores poderiam ser
apresentados. A problematização da possibilidade de se narrar o horror se estende a sua
representação nas artes, quando se pensa na forma como o homem percebe a realidade e
transforma as formas de representação.
Com a leitura dos três romances, observamos o quanto essa representação da realidade
pode ser elástica ao se apropriar de elementos próprios ao material de criação que é a
linguagem. Bakhtin, como nos referimos anteriormente, enfatiza o questionamento
linguístico, considerando a “representação literária da linguagem”. Assim diz Bakhtin:
Se o objeto específico do gênero romanesco é a pessoa que fala e seu discurso, o qual aspira a uma significação social e a uma difusão, como uma linguagem especial do plurilingüismo – então o problema central da estilística do romance pode ser formulado como o problema da representação literária da linguagem, o problema
da imagem da linguagem. (BAKTHIN, 1993, p. 138).
Observamos que o estudo da estilística do romance não está dissociado de uma
“significação social”. O teórico russo chama de plurilinguismo quando diversos discursos
convergem na representação da fala de um personagem, o que explicitaria a necessidade de
questionar a representação literária a partir das imagens construídas pelas linguagens que
formam os discursos. Aliando essa formação discursiva a uma significação social, poderíamos
questionar a intenção que o texto literário constrói a partir do agenciamento da representação
da linguagem.
O caráter realista, na perspectiva do realismo formal assumido pela obra de Hampaté
Bâ, mostra-se desde o início abundante nos detalhes que descrevem minuciosamente cada
69 “En faisant de sa pratique l’une des définitions de la nature humaine, en la canalisant et l’encadrant par des
catégories rhétoriques, Aristote dédramatise la mimèsis et en délègue l’analyse à une science nouvelle et spécifique appelée ‘poétique’, et non à la philosophie. Soustraire à la fascination du domaine pictural et du mirage identitaire, et régulée par la notion de ‘vraisemblable’, la représentation cherche à produire non une exactitude absolue mais une vérité possible du réel.” (GEFEN, 2003, p. 41).
104
situação, sem economizar nas notas de rodapé que servem ainda para esclarecer o leitor sobre
determinadas expressões e costumes africanos, que, mesmo traduzidos no idioma europeu,
ainda não conseguem alcançar seu sentido original e necessitam de mais explicações. Como
vimos, no aviso ao leitor, anuncia-se o caráter da narrativa, sendo apresentadas as
justificativas necessárias como prova de sua veracidade e fidelidade históricas. Ao final do
relato, temos ainda um posfácio, em que o autor assume novamente a primeira pessoa para
esclarecer, após a publicação da primeira edição, o que possa não ter ficado claro com o
primeiro aviso. Nesse posfácio, ele se exime de qualquer habilidade romanesca, se afasta de
sua obra negando sua natureza artística, para classificar seu relato como “autêntico”, anulando
seu teor de “criação literária”, apresentando-o mais uma vez como uma reprodução da
realidade (BÂ, 1992, p. 359). O autor com a apresentação do posfácio coloca mais uma peça
na interpretação possível do romance.
Nessa perspectiva de um autor que se coloca em cena, o texto de Bâ apresenta, com
sua descrição, a encenação da palavra falada. A narração instaura, portanto, a fala no quadro
descritivo, tornando-a imagem. Ela faz da palavra oral material de descrição narrativa.
(MOREIRA, 2005). Dessa maneira, com o uso da técnica de escrita que utiliza aspectos que
remetem ao realismo formal, a oralidade da tradição africana malinesa bambara aparece, no
romance, como tema do conteúdo descrito, não sendo apenas estratégia estética da narrativa.
O realismo praticado por Hampaté Bâ inclui o universo mitológico que faz parte da
cosmogonia dos povos dessa região da África Ocidental Francesa, onde se passam as ações do
romance. Nesse sentido, a oralidade é matéria e assunto da narração: ela aparece como objeto
descrito. O livro de Hampaté Bâ se torna, portanto, a encenação da tradição do mundo oral
enfocado. Sendo assim, enquanto Benjamin via a extinção do narrador tradicional e da
narrativa, com a “evolução secular das forças produtivas” (BENJAMIN, 1994, p. 201), o
narrador tradicional e a narrativa aparecem revigorados no relato de Hampaté Bâ. O romance
L’étrange destin de Wangrin mergulha no universo da oralidade, apropriando-se de seus
mitos e lendas. Ao encenar a contação africana, problematiza as figuras de narrador e autor.
4.4 Autoria em Amos Tutuola
O bebedor de vinho de palmeira incorpora a tal ponto a oralidade que seu status
como romance também parece frágil. O estudante nigeriano Onabiyi, em seu trabalho de
conclusão de curso para uma universidade nigeriana, aponta, resumidamente, alguns
questionamentos que envolvem a classificação da obra como romance.
105
Uma obra de referência, foi o primeiro romance a ser publicado por um autor nigeriano e também o primeiro romance a ser escrito em inglês por um africano negro. A obra é classificada como um romance, mas há um debate a respeito da exatidão dessa designação, uma vez que O bebedor de vinho incorpora tanto da tradição oral. De fato, esse romance dá a muitos um primeiro deslumbre com o folclore Yoruba. O bebedor de vinho baseia-se fortemente em contos populares tradicionais, o que tem sido outra fonte de controvérsia, incitando algumas alegações de que o trabalho plagiaria a propriedade intelectual do povo Yoruba.70 (ONABIYI, 2011, p. 18).
Percebemos, na fala de Onabiyi, um questionamento acerca da autoria do texto, que
colocaria a legitimidade do romance de Amos Tutuola em xeque. Essas questões apontadas
por ele não foram introduzidas de forma aleatória no debate. Há de se considerar que, como
ressaltado, trata-se de um escritor africano negro publicando pela primeira vez em inglês. A
apropriação do gênero e da língua pelo colonizado africano abre o questionamento sobre a
obra ser, ou não, literatura. Segundo Onabiyi, Tutuola passa a ser questionado em seu país
porque não observou uma das leis do capitalismo: a propriedade, já que cometeria um plágio
contra uma “propriedade” coletiva. Fica patente, nessa discussão política mais que literária, a
relevância da noção de propriedade individual sobre o bem intelectual produzido. Nesse
sentido, como acentuado, Foucault destaca que a “função autor” faz parte de como a
sociedade agencia certos discursos. Assim:
O nome de autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular. [...] A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade. (FOUCAULT, 1995, p. 46).
O pensador francês alia a posse de determinadas ideias a um único sujeito responsável
pela defesa delas. Essa aliança entre o indivíduo e a produção discursiva é permitida por uma
cultura que tem uma sólida percepção de propriedade privada que se estende até a bens como
a narrativa. A propriedade intelectual denotaria a autoria, sendo uma forma de propriedade
sobre o pensamento desenvolvido. Associando, assim, a autoria à individualização, Foucault
afirma: “A noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das
ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências.”
70 “A landmark work, it was the first novel to be published by a Nigerian author, and also the first novel by a
black African to be written in English. The work is classified as a novel, but there has been some debate about whether this designation is accurate, since “The palm-wine Drinkard” incorporates so much oral tradition. Indeed, this novel has provided many with their first glimpse into Yoruba folklore “The Palm-wine Drinkard” draws heavily on traditional folktales, which has been another source of controversy, prompting some claim that the work plagiarizes the intellectual property of the Yoruba people.” (ONABIYI, 2011, p. 18).
106
(FOUCAULT, 1995, p. 33). Na defesa feita à obra de Amos Tutuola, a tradição oral
incorporada à sua narrativa não obedeceria à necessária individualização das ideias, como
colocado pelo teórico francês, porque se colocaria numa ordem cultural.
Ao refletirmos sobre o narrador da experiência e, a partir de então, sobre a autoridade
que esse possui sobre o discurso proferido, como vimos com Benjamin, passando por
questões suscitadas pelo exercício de uma tradição, como vimos ilustrando com Bâ, vemos
que, no caso do romance de Amos Tutuola, a autoria e o valor da autoridade da voz narrativa
sobre o discurso são questionados segundo parâmetros alheios à cultura que os produziu. O
professor e pesquisador de literaturas africanas, o nigeriano Ayo Kehinde, destaca:
A teoria da intertextualidade, apesar de sua origem euro-ocidental, não é totalmente estranha à prática da literatura oral africana. De fato, a literatura oral africana, entre muitas outras características, é marcada por seu status de não-autoria. Isto significa que, mais frequentemente do que não, os gêneros literários orais na África são tomados como não tendo autores individuais como é o caso da literatura escrita. Em vez disso, a literatura oral é concebida como um artefato comunitário. É de propriedade coletiva e é transmitida de geração para geração.71 (KEHINDE, 2003, p. 374).
Assim, consideramos que, ao discutir autoria nas literaturas africanas, esbarramos em
conceitos que são estranhos a essas culturas, como a noção de posse sobre a criação. No caso
de Amos Tutuola, o teor de oralidade em sua narrativa indica mais uma deliberada intenção
de remissão às narrativas orais como uma prática comunitária do que uma apropriação
indevida das histórias orais do povo ioruba. Kehinde continua:
Além das preocupações a respeito da temática da intertextualidade, os romances de Tutuola e Liyong também se assemelham quanto a dicção. Ambos favorecem uma linguagem simples. O que tem uma ligação com as estratégias narrativas orais. Seus romances estão repletos de elementos da tradição oral como contos populares, lendas, enigmas e provérbios que os permitem comunicar eficientemente. Eles se re-apropriam de um gênero emprestado (o romance) e adaptam a língua da elite (o inglês) para servir ao ambiente africano. (KEHINDE, 2003, p. 379).72
71 “The theory of intertextuality, despite its Euro-western origin, is not entirely alien to African oral literary
practice. In fact, African oral literature, among many other features, is marked by its status of non-authorship. That is, more often than not, oral literary genres in Africa are taken as having no individual authors as is the case of written literature. Rather, oral literature is conceived as a communal artifact. It is communally owned and transmitted from generation to generation.” (KEHINDE, 2003, p. 374).
72 “Apart from intertextuality in thematic preocupations, Tutuola and Liyong’s novels also intersect in diction. Both favor simple language. This has a link with African oral narrative strategies. Their novels are suffesed with oral traditional elements such as folktales, legends, riddles and proverbs that enable them to communicate effectively. They re-appropriate a borrowed genre (novel) and adapt the language of the elite (English) to suit African surroundings.” (KEHINDE, 2003, p. 379).
107
Nesse ponto, quando se trata de explicitar a “re-apropriação” e “adaptação” do gênero,
discutimos a “validação estética” do gênero como executado pelos “negros africanos” para as
línguas da elite: o inglês, o francês ou o português, ficando fora desse circuito as narrativas
orais e aquelas escritas em línguas africanas.
No exercício da comparação, notamos que os romances de Tutuola e de Hampaté Bâ
trazem paratextos assinados por seus respectivos autores. Considerando todas as partes da
obra como integradas à história que se conta, podemos dizer que os prefácios e posfácios
constituem mais uma camada diegética. Percebemos que, em ambos, há uma preocupação
com a legitimação de cada obra especificamente, e do romance africano, mais amplamente. É
importante dizer que a necessidade de explicação feita em prefácios não aparece nos
romances do escritor moçambicano Mia Couto, embora sua obra não possa deixar de ser lida
na esteira de seus predecessores.
Amos Tutuola assina seu “afterword”, não incluído na edição brasileira com a qual
trabalhamos, em abril de 1952, ano de publicação da obra pela Faber & Faber, na Inglaterra.
Na nota, o autor relata na primeira pessoa, aparentemente de forma espontânea, o seu
percurso escolar e profissional até ali. O tom desse relato autoral, ao assumir a autoridade da
primeira pessoa, se assemelha ao tom empregado nos parênteses explicativos ao longo da
ficção, em que o narrador, imbuindo-se também da autoridade do texto escrito em primeira
pessoa, explica ou justifica algum aspecto relativo ao extraordinário que acontece no relato do
bebedor de vinho de palmeira. A simplicidade sintática é, talvez, o primeiro aspecto a chamar
a atenção para as demais características que fazem dessa narrativa um romance africano, no
sentido dado pela discussão apresentada no romance do sul-africano J.M. Coetzee, Elizabeth
Costello: oito palestras, quando essa questão teórica é ficcionalizada pelo personagem de um
romancista nigeriano.
Na primeira frase do livro de Amos Tutuola, o narrador se apresenta referindo-se a um
tempo no passado: “Eu era um bebedor, desde que eu era um menino de dez anos de idade”.
(TUTUOLA, 2014, p. 3). O início do romance mostra de imediato a autoridade assumida pelo
narrador ao longo de toda a narrativa, por sua franqueza e objetividade, com o protagonista se
apresentando com uma frase simples, construída na ordem direta, sujeito, verbo e
complemento, na versão original. Apresentando-se como um bebedor inveterado de vinho de
palmeira, o personagem, de certa forma, se assume como um bêbado, condição a princípio
marginal. No entanto, devido ao seu status familiar, essa condição não lhe causa desconforto
nem prejuízo, ao contrário, proporciona-lhe o direito de viver como lhe agrada.
108
Desde o início, observamos como o suceder dos fatos é narrado através das
subordinadas construídas, na maioria das vezes, com uma sintaxe simples e direta. Notamos
que a sintaxe do texto se dá de forma a gerar um efeito de que o encadeamento das ideias é
espontâneo, sugerindo a forma oral de narrar que acontece sempre no momento presente, ao
contrário do texto escrito que necessita de um uma organização prévia e premeditada das
ideias.
O trecho a seguir nos serve de exemplo. Assim, o narrador continua introduzindo sua
história:
Porém, depois de quinze anos que meu tirador de çmu trabalhava pra mim, meu pai morreu de repente, e no sexto mês da morte do meu pai, o tirador foi até a plantação de palmeiras numa manhã de domingo pra tirar çmu pra mim. Quando chegou lá, ele subiu numa das palmeiras mais altas que tinha, mas enquanto trabalhava, caiu de supetão e morreu no pé da palmeira por causa dos machucados. (BORGES: QUEIROZ, 2017
Optamos, nesse momento, por uma tradução alternativa, por perceber nela as marcas
da oralidade presentes no texto original em inglês. Notamos esse encadeamento espontâneo
de ideias marcadas pelas vírgulas que encadeiam a sucessão dos fatos ligados apenas pelas
conjunções que fortalecem os sentidos essenciais, a adição (“e” ou “then”), a oposição
(“porém” ou “mas”, para “but”) e pela marcação do tempo: o uso de “quando” para “when”.
Esse estilo perdura ao longo de toda a narrativa.
Quando o autor, Amos Tutuola, se apresenta no posfácio, a semelhança de estilo é
flagrante. Vejamos:
Sou nativo de Abeokuta e nasci no ano de 1920. Quanto eu tinha uns 7 anos, um dos primos do meu pai, de nome Dalley, enfermeiro no hospital africano, me levou do meu pai para viver com seu amigo, o senhor F. O. Monu, um homem Ibo, como seu empregado e para que este me enviasse à escola ao invés de me pagar em dinheiro. / Eu comecei meus estudos na escola do Salvation Army, em Abeokuta, no ano de 1934 [...].73 (TUTUOLA, 2014, p. 131).
Observamos em ambas as passagens, tanto no romance quanto no posfácio, o mesmo
tom do relato oral de um narrador em primeira pessoa que se dirige a um interlocutor/leitor.
Identificamos, nessas narrativas, um tom de relato confessional que sobrevém de uma
73 “I am the native of Abeokuta, and I was born in the year 1920. When I was about 7 years old, one of my
father’s cousins whose name is Dalley, a nurse in the African hospital, took me from my father to live with him as a servant and to send me to school instead of paying me money. / I starded my first education at the Salvation Army School, Abeokuta, in the year 1934, and Mr Monu was paying my school fees regularly […] and also buying the school materials, etc., for me. / But as I had the quicker brain than the other boys […].” (TUTUOLA, 2014, p. 131).
109
proximidade entre o narrador e o interlocutor/leitor. Notamos também que as frases são
marcadas por um ritmo bem similar, sincopadas pela sucessão de vírgulas e alinhavadas pelas
mesmas conjunções que adicionam os fatos na sequência, marcam uma oposição e se
relacionam sucessivamente no tempo. As diversas interpelações do narrador aproximam o
leitor do texto, criando uma cumplicidade narrativa entre essas instâncias textuais: narrador e
leitor, além de explicitar o caráter oral da narrativa, devido ao tom de conversa que o texto
assume.
A estratégia narrativa que usa da oralidade pode ainda ser identificada quando as
criaturas são nomeadas pelas características que as descrevem. Essa maneira de nomear, que
exime o uso do nome próprio, como o do protagonista que fica sendo apenas aquele que bebe,
ressalta o teor de oralidade do discurso. Na comunicação oral cabem mais generalizações, as
explicações podem ser dadas de forma mais estendida e descritiva, ao contrário do registro
escrito, que exige a condensação proporcionada por um nome próprio. Assim, a título de
exemplo, temos as indicações das características dos personagens que substituem o nome: “o
cavaleiro de fato completo”, as criaturas vermelhas da cidade vermelha, o devedor invisível, a
mãe-devota, entre outros. “Então ela disse que se chamava Mãe-Devota, [...]. Ela aí nos
revelou o seu nome: Mãos-Amigas [...].” (TUTUOLA, 1970, p. 74). Ou ainda: “Eu disse que
me chamava ‘Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo’.” (TUTUOLA,
1970, p. 16). Essas descrições obedecem à lógica do mundo fantasmal, como vimos
discutindo. Nesse ambiente, o encadeamento das ideias reflete o imediatismo da linguagem
oral, que não é premeditada, o dizer pode ser precipitado e os rumos, inesperados.
(ONABIYI, 2011).
Dentro desse contexto, não é incomum que a crítica feita ao romance de Tutuola, na
época de sua publicação, seja tomada como defesa do valor literário da obra. O embate surge
por uma necessidade de provar que, embora o texto ficcional em questão apresente
características estranhas às que consagram os gêneros europeus, elas são intrínsecas aos tipos
de texto considerados como romance, conto, poema ou drama e, assim sendo, devem ser lidos
e estudados como tal. Via de regra, a oralidade ou a sonoridade da obra africana incomodam.
O embate surge, portanto, de uma concepção dualista, vigente na época da publicação do
romance, que a priori não permite que um texto escrito tenha sotaque e ritmo que evoquem
pontuações presentes na fala. A dicotomia cartesiana se sobrepõe de forma excludente, uma
obra escrita não pode se imiscuir com o mundo oral para ser dignamente literária. Essa visão
crítica permanece com relação a obras literárias africanas. Muitas vezes, as literaturas
africanas são criticadas por seu teor de irrealidade ou inverossimilhança. São taxadas de
110
mágicas, maravilhosas, fantásticas ou animistas, na tentativa desesperada de resolver a
questão de classificação das obras segundo parâmetros da crítica europeia. As literaturas
africanas resistem aos encaixes, enquanto proliferam. Esses textos literários continuam a
fazer-se presentes como romances, contos e poesias que, ao fim e ao cabo, vêm revigorar e
reafirmar os já consagrados gêneros. A falha está, portanto, na forma dualista de interpretação
e análise e não nas características plurais apresentadas pelos textos.
Em nossa proposta de interpretação pós-colonial, oralidade e escrita não constituem
oposição, assim como o indivíduo não é oposto à coletividade, mas um alimenta e constitui o
outro. Assim, o romance africano, ou os romances produzidos, escritos, editados e publicados,
mundo afora por escritores originários desse continente, não sem luta, revigoram o gênero ao
mostrar a amplitude do movimento artístico literário.
4.5 Um jeito africano de narrar
No romance de J.M. Coetzee (2004), a discussão que vem sendo apresentada sobre o
romance africano é retomada em uma palestra proferida por um personagem, o escritor
nigeriano fictício, Emmanuel Egudu. Com o título de “O romance na África”, a fala do
personagem, feita para o entretenimento de passageiros durante um cruzeiro, levanta
questionamentos pontuais e pertinentes para questões apontadas por pesquisadores de
romances africanos.
Em sua palestra, o escritor personagem, respondendo a uma pergunta sobre o modo
como Tutuola absorve as narrativas orais, escrevendo em língua inglesa, explica:
Não, responde Egudu, Tutuola não foi mais traduzido, na verdade nunca foi traduzido, pelo menos não para o inglês. Por que não? Porque não precisa ser traduzido. Porque sempre escreveu em inglês. E isso está na raiz da questão levantada pela mulher. “A língua de Amos Tutuola é o inglês, mas não o inglês-padrão, não o inglês aprendido pelos nigerianos que foram à escola, à faculdade nos anos 1950. É a língua de um funcionário burocrático semi-educado, um homem que não tem mais que a escola elementar, mal compreensível para alguém de fora, corrigido para a publicação pelos editores ingleses. Nos pontos em que a escrita de Tutuola era francamente iletrada, eles a corrigiram; o que deixaram de corrigir foi o que lhes pareceu autenticamente nigeriano, isto é, o que a seus ouvidos soava pitoresco, exótico, folclórico. (COETZEE, 2004, p. 54).
De acordo com a defesa que o personagem de Coetzee faz da literatura africana como
uma literatura essencialmente oral, Tutuola seria um caso exemplar: “O caso de Amos
Tutuola é muito simples, muito cabal” (COETZEE, 2004, p. 56), pois é um “autor oral”, que
produziu, portanto, um “típico” romance africano. É o que podemos inferir, seguindo o
111
raciocínio do personagem Egudu, que vê o romance africano como a expressão de um jeito
essencialmente africano. Como explica o personagem: “O romance africano, o verdadeiro
romance africano, é um romance oral. Na página ele é inerte, apenas meio vivo; ele desperta
quando a voz, vinda do fundo do corpo, inspira vida a suas palavras, as enuncia em voz alta.”
(COETZEE, 2004, p. 52).
Fica patente, na análise do romance O bebedor de vinho de palmeira, que a língua
de Tutuola é tão flexível quanto o universo fantasmagórico que ele apresenta. O caráter oral
do romance fica tanto por conta desse ato performático que se torna a escrita quanto pela
flexibilidade permitida pela apropriação e transformação do inglês do colonizador, no ato da
escrita. Portanto, o romance africano seria a performance escrita desse jeito especialmente
africano.
Nesse sentido, a pesquisadora brasileira Maria Nazareth Soares Fonseca ressalta:
É pertinente ainda considerar que a defesa à herança calcada na oralidade que seria assumida, de alguma forma, pelas literaturas africanas faz parte de um processo de afirmação da identidade dessas literaturas, em oposição aos valores defendidos pelas literaturas ocidentais. (FONSECA, 2016, p. 15).
Notamos que a aclimatação do gênero romance nessas regiões da África inclui assumir
as marcas da oralidade nas narrativas e, assim, forjar a identidade desse gênero plural e livre,
reforçando sua autenticidade e promovendo sua legitimação. Essa postura afirmativa “pode
ser entendid[a] como uma proposta de autenticidade literária – aliás, presente em movimentos
como a Negritude e o Negrismo cubano – [...]”. (FONSECA, 2016, p. 15). Esse processo de
afirmação entendemos também sob o aspecto da necessidade de legitimação do romance e da
afirmação de uma identidade africana e negra.
Mbembe (s.d.), em palestra em defesa da descolonização das universidades africanas e
do saber, ressalta que colonialismo rima com monolinguismo. Percebemos que a legitimação
das literaturas africanas passa, não por acaso, pela apropriação da língua europeia e sua
adaptação ao se fazer ferramenta usada na revigoração do romance. Diante do que vem sendo
exposto, consideramos a linguagem como um espaço em que batalhas epistemológicas vêm
sendo travadas. As literaturas africanas nos fazem questionar as fronteiras estabelecidas pelo
cânone ocidental, que “atribui a verdade apenas para a maneira ocidental de se produzir
conhecimento” (MBEMBE, s.d.).
De acordo com esse cânone, a política é o campo em que a arte está estabelecida.
Segundo Benjamin, “no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à
112
produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual,
ela passa a fundar-se em outra práxis: a política.” (BENJAMIN, 1994, p.171). Tomando os
romances estudados como representantes das literaturas africanas, percebemos o quanto eles
explicitam que “a verdade” é uma construção do Ocidente, excludente de outras múltiplas
verdades. A política se impõe sobre a função social da arte no momento em que as relações de
poder se sobrepõem à fruição da criação artística. As literaturas africanas, muitas vezes,
resgatam a noção de autenticidade em Benjamin (1994) quando elas se mostram imiscuídas
ao ritual, fazendo-se nesse momento plenamente autênticas e legitimando o ato da criação
pela palavra.
Tendo em vista o diálogo que vimos estabelecendo entre o filósofo alemão, com o
resgate do narrador da experiência, as questões de autoria com o semiótico francês, Foucault,
e aqueles pesquisadores que pensam as questões africanas de dentro, como Mbembe e Mata,
propondo rupturas de paradigma, percebemos que não basta apenas atentarmos para as
relações de poder envolvidas na produção artística e na crítica. De certa forma, a teoria pós-
colonial, por si só, não propõe nada tão novo, se apenas observamos e não transmutamos, com
nossas práticas de leitura, interpretação e crítica, o modo de se produzir o saber. Seja como
for, não escapamos de ressaltar que estamos num meio em que a função social da arte é
política, e dificilmente será de outra forma, apenas porque esse é o campo em que a arte pode
ser absorvida, nessa sociedade de valores materialistas. No sentido dado por Terry Eagleton,
na conclusão de seu livro sobre a teoria literária:
Quero dizer por político não mais do que a maneira como organizamos juntos nossa vida social, incluindo as relações de poder que isso envolve; e o que tentei mostrar ao longo deste livro é que a história da teoria da literatura moderna é parte da história política e ideológica de nossa época.74 (EAGLETON, 2008, p. 169).
Atentar para os diversos níveis nos quais as relações de poder se estabelecem através
de um texto literário não é, portanto, tarefa nova, mas obrigatória, enquanto houver validação
estética pelo mercado.
Inocência Mata, em artigo já referido, destaca o critério editorial como norteador da
validação dessas obras africanas como literatura. A teórica são-tomense afirma:
Muitas são as modalidades dessa “validação” estética sendo a que se segue a mais superficial, embora muito eficaz nos danos que provoca: se foi publicado em
74 “I mean by the political no more than the way we organize our social life together, and the power-relations
which this involves; and what I have tried to show throughtout this book is that history of modern literary theory is part of the political and ideological history of our epoch.” (EAGLETON, 2008, p. 169).
113
Portugal ou no Brasil, é porque a obra tem qualidade, se não o foi, é porque não tem, afinal, o “critério editorial” é a qualidade, e quaisquer outras considerações revelam fantasmogorias e complexos. (MATA, 2014, p. 37).
Se de acordo com Mata o critério editorial é que valida as produções literárias
africanas, as obras aqui estudadas são literatura, uma vez que foram publicadas na Europa e
em diversos países com uma economia de mercado que permite e promove a sua circulação.
No entanto, o contato que as obras africanas proporcionam com um saber e uma prática
ritualística tradicionais, referindo-nos ainda ao pensamento de Benjamin (1994) acerca da
tradição na narração e da arte que se funda na política em detrimento do ritual, promove um
confronto epistêmico que desorienta. O confronto linguístico do português, do francês e do
inglês, com o ritual da corporeidade africana, expressado nas narrativas, principalmente
através das características orais, desorienta. Porque o ritual, pela oralidade, desconstrói a
percepção acostumada a práxis apenas política, abalando os conceitos de texto literário e de
autoria, por exemplo, como visto. A função social da literatura, política, sem dúvida, apela a
um reposicionamento de leitura e crítica, ao recolocar a arte em contato com sua dimensão
ritualística, o que se torna, potencialmente, um problema, já que pelo ritual não há razão. E
não há a separação entre o conhecimento e o teórico. “As tradições epistemológicas ocidentais
são tradições que impõem a separação entre o saber e o pesquisador”75, como dito por
Mbembe (s.d). Percebemos tanto pela temática quanto pela forma que os romances africanos
desconstroem a razão ocidental, ao proporcionarem o encontro de outras epistemologias.
Nesse espaço, a autenticidade expõe a arte africana a outra práxis, como a ritualística
tradicional, em que se encontram as práticas oratórias, que não obedecem à lógica de
mercado. Esse confronto acentua, no entanto, seu caráter político.
Não é que uma cultura oral só possa produzir um romance oral, no sentido trazido pelo
personagem Elisabeth, no romance de Coetzee sobre a busca de definição do romance
africano pelo personagem nigeriano: “Um romance sobre gente que vive numa cultura oral,
gostaria de dizer, não é um romance oral. Assim como um romance sobre mulheres não é um
romance de mulher.” (COETZEE, 2004, p. 61). E o narrador segue trazendo seu pensamento
para a cena:
Em sua opinião, todo esse discurso de Emmanuel sobre um romance oral, um romance que se manteve em contato com a voz humana e, portanto, com o corpo humano, um romance que não é desencarnado como o romance ocidental, mas expressa o corpo e a verdade do corpo, é apenas outra maneira de expor a mística do
75 “Western epistemic traditions are traditions that claim detachment of the known form the knower.”
(MBEMBE, s.d).
114
africano como último repositório das energias primais humanas. Emmanuel culpa seus editores ocidentais e seus leitores ocidentais por levá-lo a exorcizar a África; mas Emmanuel tem interesse em exorcizar a si mesmo. (COETZEE, 2004, p. 61).
Mas o que essa crítica explicita, mais uma vez, é a relação entre africanos e ocidentais
em torno de uma “mística”, um exotismo. Afinal, como discute a pesquisadora brasileira das
literaturas africanas Maria Nazareth Soares Fonseca:
A afirmação de que a oralidade seja essencialmente africana acaba por reiterar a de que a escrita seja a marca essencial da cultura europeia. As duas afirmações implicam uma valoração ideológica de percepções pautadas na oposição oralidade e escrita, sem levar em conta a existência da escrita antes da chegada dos colonizadores europeus. (FONSECA, 2016, p. 16).
Portanto, além de não considerar dados históricos, a oposição oralidade e escrita
aponta para a situação política promovida pelo choque entre as culturas que não se deu da
mesma maneira para cada sociedade envolvida.
4.6 O absurdo europeu e o exotismo africano
No entanto, observamos que o esforço em teorizar essa(s) separação(ões) indica a
adesão ao pensamento ocidental. A luta pela sobrevivência, como encenada principalmente no
romance de Amos Tutuola, pode ser interpretada como o símbolo do pensamento ocidental,
enquanto os acontecimentos dessa jornada rumo à Cidade dos Mortos representam o que o
teórico argentino Walter Mignolo chama de desobediência epistêmica, ilustrando, de certa
forma, um tipo de pensamento descolonial76. Mignolo afirma:
Pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais; quando você entra no campo do quíchua e quéchua, aymara e tojolabal, árabe e bengali, etc. categorias de pensamento confrontadas, claro, com a expansão implacável dos fundamentos do conhecimento do Ocidente (ou seja latim, grego, etc.), digamos, epistemologia. (MIGNOLO, 2008, p. 291).
Se considerarmos o dito por Mignolo, não haveria exotismo na obra de Tutuola.
Entrando no campo do espaço fantasmal, que serve de ambiente para o desenrolar das ações,
76 Neste momento, escolhemos não entrar no debate que envolve os conceitos decolonial ou descolonial.
Optamos pela grafia da palavra como o prefixo “des”, mais corrente na língua portuguesa, sendo o vocábulo “descolonização” registrado na nossa língua. Procuramos demonstrar o ponto de vista dos autores Mignolo e Mbembe, ao usarem os termos que nos servem em nossa argumentação pós-colonial.
115
além de ser o eixo condutor da sequência narrativa, percebemos como esse campo funciona
como um abalizador para o absurdo do relato. O exótico existiria apenas na distinção moderna
entre a teoria e a prática, que são, como dito por Mignolo, os fundamentos do conhecimento
ocidental.
O romance de Mia Couto chama a atenção pontualmente para esse confronto entre
“categorias de pensamento”. O narrador de Terra sonâmbula, no início da narrativa, diz:
“Naquele território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade.” (COUTO,
2007, p. 10). A “razão” não é o imperativo, nem é o que dá sentido, pontuando também
aquela situação específica daquele lugar sem luz. Entendemos que essa “razão” nomeada no
romance faz referência à categoria de pensamento ocidental: um modo operador que atua em
detrimento dos outros, como temos visto com situações romanescas que ilustram como a
colonização atua no pensamento africano. A partir desses romances, portanto, com o apoio
das teorias que vimos abordando, vemos a “razão” encenada como mais uma categoria de
pensamento, entre outras.
Assim, seguindo a diretriz apontada pelo narrador de Mia Couto como uma chave de
leitura também para as outras obras, observamos que existe um fio condutor entre elas que
nos permite as comparações que vêm sendo feitas até agora. À luz das teorias expostas, nesses
romances africanos não se trata de estabelecer um padrão de pensamento, nem de
comportamento, mas de compreender uma forma de representação/encenação estética em que
não há obediência à “razão”. Como discutido por Mignolo, Mata e Mbembe, procuramos por
um novo paradigma, no intuito de perceber outras formas de pensar, outras epistemologias.
Nesse sentido, Inocência Mata ilustra com uma anedota como a diferença de perspectiva gera
um entendimento de mundo diferente. No início de seu artigo: “Estudos pós-coloniais:
desconstruindo genealogias eurocêntricas” (2014), a anedota sobre a cor da zebra e suas
listras é significativa: elas são pretas sobre um fundo branco, quando referida pelos turistas
ocidentais, e são brancas sobre um fundo preto, na ótica do guia africano. Acreditamos que o
intuito da pesquisadora é chamar a atenção sobre como a construção de sentidos, do mundo e
da vida, é feita de acordo com a perspectiva de quem conta a história. Acrescentamos ainda
um outro grau de percepção se nos preocupamos como a construção de sentido é feita pelo
agenciamento da linguagem. Nas obras literárias, fica explícito como essa perspectiva é
construída pela linguagem.
Francisco Noa, ao analisar a obra do poeta moçambicano Filimone Meigos, estabelece
uma relação com os princípios do teatro europeu do absurdo para interpretar uma poética que
trata de mostrar a “absurdidade da existência” (NOA, 2005, p. 163). Considerando que as
116
obras do nosso corpus comportam uma estranheza que pode remeter a um certo grau de
“absurdo”, vale estabelecermos aqui um breve contraponto entre as estéticas africanas e a do
absurdo, com o foco na relação entre a linguagem e o contexto extraliterário, na intenção de
percebermos de que lado as histórias vêm sendo construídas e contadas. Enquanto na Europa
as sequelas da Segunda Guerra Mundial aguçavam a angústia de viver diante do
incomunicável, do inexplicável e do grotesco, a arte a transformava em vanguardas estéticas,
como o teatro do absurdo, questionando assumidamente a supremacia da racionalidade
moderna que condenou o homem aos horrores da guerra. Nas literaturas africanas,
observamos que a desumanização do homem negro é frequentemente encoberta pela visão
crítica ocidental, pela visão de um exotismo, animista ou mágico, do mundo tradicional
africano que pauta as interpretações dessas obras, escamoteando assim uma abordagem
estética da linguagem poética, que, também na África, teria de dar conta do “incomunicável”
da experiência colonial.
Por exemplo, a poesia presente na sequência em que a Dança, o Tambor e o Canto, na
obra de Amos Tutuola, salvam o protagonista de seu monstruoso bebê é facilmente lida e
interpretada como uma cena de origem mitológica, quando não exótica, mas sofre para
encontrar respaldo como uma estética literária. Ou seja, penamos para desvendar os
mecanismos da linguagem que seriam capazes de torná-la uma estratégia estilística, em que o
absurdo é expresso a partir de recursos de linguagem evidentes. Se o caráter mitológico da
cena não coloca em xeque a qualidade da narrativa, não seríamos reducionistas em considerar
que as estratégias narrativas assumidas pelo escritor, na cena, refletem apenas as
características orais das culturas africanas? Por que não ver na cena a intenção do escritor de
configurar o absurdo como estratégia de construção literária? Mia Couto, exatos 40 anos
depois de Tutuola, ainda carrega o estigma de produzir uma literatura exótica calcada na
oralidade. O interessante é que ele seja consagrado como um escritor de uma prosa tida como
poética, e que o aspecto oral que caracteriza essa poética remete às tradições africanas.
Diante do exposto, entendemos que, através do teatro do absurdo, escritores como o
romeno Eugène Ionesco procuraram representar a falência da racionalidade moderna, dentro
do contexto europeu. Do lado africano, obras como Terra sonâmbula e O bebedor de vinho
de palmeira também assumem, como dito por Mignolo, uma outra “categoria de
pensamento”. O modo como são estudadas evidencia um posicionamento político, como
ressaltado pela crítica pós-colonial que chama atenção para as relações de poder entre o Norte
e o Sul.
117
Inocência Mata, no referido artigo sobre a teoria pós-colonial e suas genealogias
eurocêntricas, chama a atenção para a espacialidade do poder, dizendo que é fundamental
levar em consideração o aprisionamento e o desenho do espaço colonial, como vimos
ressaltando também com Harry Garuba. A crítica pós-colonial se mostra como um olhar
crítico que é capaz de voltar-se sobre o seu próprio fazer teórico. Nesse sentido, Mata trata
dos estudos pós-coloniais como uma ideologia, cujo objetivo seria “desvelar, afinal, trópicos
do discurso epistemológico cujos paradigmas são marcadamente eurocêntricos, portanto, [...]
percorrer os trilhos que levam a uma geocrítica do eurocentrismo” (MATA, 2014, p. 37). É
nesse sentido que classificar uma obra africana como exótica, ou qualquer termo que daí
decorra, pode expressar um ponto de vista que se adapta aos paradigmas ocidentais. A crítica
também se posiciona no jogo de poder instituído.
No intuito de ampliarmos o olhar para além da razão eurocêntrica, mas considerando
sua permanente imposição, notamos como as obras do nosso corpus expõem o encontro e a
convivência de racionalidades diferentes. No romance de Hampaté Bâ, a convivência entre as
estruturas de pensamento africana e francesa aparece quando a forma de narrar parece estar
legitimada pelas exigências ditadas pelo realismo, considerando a explicação do escritor ao
dizer, no prefácio da obra, que se trata de um personagem real. Mas, ao mesmo tempo, a
forma de narrar recorre a elementos e personagens que pertencem e encenam um outro
sistema, sendo o referido personagem, o protagonista Wangrin, um exemplo dessa outra
ordem.
No início do romance, o narrador nos apresenta Wangrin como filho da mitologia
bambara, valendo-se de estratégias descritivas que detalham as semelhanças entre o
personagem e o deus. No seio da tradição bambara, Wangrin é apadrinhado pelo deus
Gongoloma-Sookée, assumindo as características duais desse deus. Surpreendentemente para
a lógica cartesiana, os contrários coabitam um mesmo ser, sem que isso represente um
impedimento para sua ação. A dualidade se faz em convivência harmônica, abolindo a
maneira ocidental de concebê-la como oposição, conflito e geradora de instabilidade. A união
do impossível é o que define o personagem. A coerência da narração se sustenta com a
propriedade do escritor de estender à descrição do personagem características de um deus
bizarro, que se servia de sua narina para absorver as bebidas, e do ânus para se alimentar.
A descrição de Wangrin, a partir das semelhanças que o homem assume com seu deus
protetor, responde às inquietações colocadas pelo autor no aviso que antecede o início do
romance propriamente dito. Ao apresentar a obra como um relato real, o autor coloca a
seguinte advertência ao leitor: “Quem era Wangrin? Era um homem profundamente bizarro
118
em quem as qualidades e defeitos contraditórios estavam tão misturados que não poderíamos,
a princípio, defini-lo e menos ainda situá-lo.” (BÂ, 1992, p. 20). Essa necessidade de explicar
trazida pelo autor, logo no início do romance, nos remete ao “demônio explicativo” de Gérard
Genette, como dito por Francisco Noa sobre o romance colonial, em que
a verossimilhança implica a legibilidade da obra, sempre que o autor se apercebe que introduz elementos novos e que escapam ao domínio dos seus destinatários, ou que transgridem o quadro normativo em que se integram, adota uma atitude pedagógica, didática, produzindo, a partir daí um “verossímil artificial”. (NOA, 2015, p. 86).
Essa “atitude pedagógica” do autor, a que se refere Noa, nós entendemos como uma
postura “didática” que tenta estabelecer uma ponte entre as “categorias de pensamento”
(MIGNOLO, 2008, p. 291), explicando ou traduzindo algumas situações mais inverossímeis,
chamando os leitores de volta ao acordo tácito, que é ler uma obra literária. Essas explanações
dos narradores jogam com motivações extraliterárias ou com as leis da própria narrativa e não
estão lá para fazer teoria, mas sim a serviço da narrativa, como explica Noa, apoiando-se na
teoria narrativa de Genette (NOA, 2015, p. 86).
Embora nesse aviso ao leitor o autor defenda a veracidade de seu relato, Bâ não está
com essa obra em defesa de nenhum ponto de vista. Sua clamada imparcialidade nos faz
questionar a presença, no romance, de características do realismo clássico, como explicado
por Ian Watt, ao traçar a ascensão do romance como um gênero que encarnaria as
características do homem moderno. Esse realismo assume um compromisso com a verdade,
ou com a realidade, em oposição a um “ideal poético”. O romancista diz: “Que não se busque,
então, nas páginas seguintes, a menor tese, de qualquer ordem que seja – política, religiosa ou
outra. Trata-se simplesmente, aqui, do relato da vida de um homem”. (BÂ, 1992, p. 9).
Confrontamos essa explicação com o dito pelo teórico inglês:
[...] o realismo formal – tende a ignorar tudo que não seja avalizado pelos sentidos: o júri normalmente não aceita a intervenção divina como explicação para as ações humanas. Assim, é provável que uma certa dose de secularização constituísse uma condição indispensável para o surgimento do novo gênero. O romance só podia se concentrar nas relações humanas, pois a maioria dos escritores e leitores acreditava que os seres humanos individuais, e não as coletividades como a Igreja ou os atores transcendentes, como as Pessoas da Trindade, detinham o papel supremo no palco do mundo. O romance, escreveu Georg Lukás, é a epopeia de um mundo esquecido por Deus; segundo o marquês de Sade, apresenta ‘le tableau des mœurs séculaires’ [o quadro dos costumes seculares]. (WATT, 2010, p. 89).
119
Watt, no esforço de explicar como o romance “se concentra [prioritariamente] nas
relações humanas”, coloca o gênero como distante de qualquer transcendência e cita Sade de
forma resumitiva: trata-se de um “quadro de costumes”. Balzac diz algo semelhante. Na
mesma linha, Hampaté Bâ não se distancia dessas premissas quando diz que sua obra é apenas
“o relato da vida de um homem”, mesmo que seja preciso assinalar que esses “relato[s] da
vida de um homem” são construções motivadas por percepções de mundos diferentes e por
contextos culturais também diferentes.
Ao lermos o romance de Bâ, observamos o quanto a vida de Wangrin implica também
o quadro de costumes da época colonial em que viveu. Embora o romancista pretenda dizer
apenas da vida desse homem, sua narrativa engloba a situação colonial. A orquestração desses
costumes e princípios, muitas vezes antagônicos, é posta em cena por um narrador que afirma
sua pretensão de apenas contar. Mas, ao contrário do que tenta defender o autor, no prefácio,
o relato não é tão despretensioso, pois vai além dos costumes da época, ao mostrar o jogo de
poder embutido nas relações. O ponto de vista do escritor aparece na maneira como ele
organiza as diferentes vozes que falam no romance e compõem esse teatro, que é a vida de
Wangrin.
Teóricos como Wolfang Iser (2002), Mikhail Bakhtin (1993) e Roland Barthes (1988),
entre outros, discutem os limites da representação, colocando a encenação literária como uma
estratégia assumida pelo manejo com a linguagem. Bakhtin trata o romance como gênero
discursivo, diferenciando-o da linguagem poética ou épica. O teórico russo chama a atenção
para o aspecto discursivo da narrativa: “O discurso exige procedimentos formais especiais do
enunciado e da representação.” (BAKHTIN, 1993, p. 135). Para o teórico, o discurso é
também um elemento representado pelo “autor”, logo “o discurso se torna objeto de
representação no romance”. (BAKHTIN, 1993, p. 135). Como “objeto de representação”,
entendemos que, no jogo do texto encenado no “aviso ao leitor”, o autor Hampaté Bâ assume
a voz do narrador como uma instância narrativa que coloca em cena a sua “linguagem social”.
Dessa forma, consideramos o posicionamento dos narradores nos romances em estudo como
um elemento central dentro do jogo da representação literária.
4.7 O encontro africano: a descolonização em Terra sonâmbula
Assim, mesmo que o exotismo possa ser festejado por todos, como critica o
personagem Elizabeth, no romance de Coetzee, a imagem da África e do africano existe como
uma construção de sentido a partir de uma relação de poder, a favor, claro, do detentor desse
120
poder. Perceber os meandros dessa relação contribui para esclarecer, na linha proposta por
Mbembe como descolonização, uma ideia de África de forma mais satisfatória, a fim de
ultrapassar mecanismos opressores. O filósofo camaronês afirma: “Descolonização é a
eliminação da distância entre imagem e essência. É sobre a ‘restituição’ da essência à imagem
assim que o que existe pode existir em si e não em algo exterior a si, algo distorcido,
desajeitado, degradado e desprezível”77. (MBEMBE, s.d, p. 12). Trata-se de se apropriar de si,
sem esquecer que “a identidade africana não existe como substância”. (MBEMBE, 2001, p.
199).
A frase do filósofo, que afasta qualquer definição estanque de identidade africana,
ressoa no momento em que investigamos voz, estilo e gênero como características dos
romances africanos. Tendo sido negada previamente a existência de uma identidade africana
fixa e rígida, assumimos a descolonização como derrubada do paradigma que instaurou a
supremacia da epistemologia ocidental sobre todas as outras. O pensamento de Mbembe faz
surgir a possibilidade de eliminação da distância entre uma imagem construída a posteriori e
uma essência genuína. Propomo-nos a investigar um pouco mais sobre a diminuição dessa
distância, com o cuidado de não assumirmos a posição moderna da identidade fixa já
combatida.
Assim, no sentido da investigação que aponta mais possibilidades do que soluções,
retornamos às obras, na tentativa de perceber como uma ideia de África se configura nos
textos literários em estudo. No intuito de evitar o posicionamento que promove distorções,
como apontado por Mbembe, buscamos ver a África não como algo exterior a si. Os
romances africanos, postos em comparação, apontam caminhos que nos permitem considerar
o enfoque de olhares internos. O personagem do bebedor se embrenha em uma mata de mitos,
fantasmas, violências, milhas, pences e xelins, enquanto o personagem de Hampaté Bâ,
Wangrin, termina por encarnar um modelo próximo à figura do contador de histórias da
tradição malinesa. O personagem de Mia Couto, Kindzu, também termina por se encontrar
com a tradição de sua terra, ao se tornar um guerreiro naparama.
Então, Junhito me chamou. Eu me olhei, sem confiança. Mas o que em mim vi foi de dar surpresa, mesmo em sonho: porque em meus braços se exibiam lenços e enfeites. Minhas mãos seguravam uma zagaia. Me certifiquei: eu era um naparama! Ao me verem, em minha nova figura, aqueles que maltratam o meu irmão se extinguiram num fechar de olhos. (COUTO, 2007, p. 203).
77 “Decolononization is the elimination of this gap between image and essence. It is about the “restitution” of the
essence to the image so that which exists can exist in itself and not in something other than itself, something distorted, clumsy, debased an unworthy”. (MBEMBE, s.d, p. 12).
121
Entre encontros e desencontros, Kindzu, o escritor de caderninhos que narra sua
perambulação no romance Terra sonâmbula, finalmente encontra seu irmão Junhito,
transformado em galo pela família, como estratégia de sobrevivência à guerra civil que
assolava o país. Esse encontro pode ser lido como uma ilustração do processo de
descolonização, como teorizado por Mbembe.
Buscando uma aproximação entre aparência e essência, o filósofo se remete à raiz
latina de alguns termos para entender o que Fanon dizia sobre “uma nova espécie de homens”,
concluindo que essa nova categoria de “homens” implica o reconhecimento de si mesmo, sem
que haja predeterminação pela imagem como algo exterior a si. Assim, como trazido por
Mbembe, a raiz latina do
termo espécie significa “olhar”, “ver”, trazendo o sentido de “aparência” ou “visão”, ou ainda “aspecto”. A mesma raiz é encontrada em “speculum”, que significa “espelho”, ou em “spectrum”, que significa “imagem”; em “specimen”, que significa “signo” / “sinal”, e em “spetaculum”, que se refere a “espetáculo”. (MBEMBE, s.d, p. 12).
Entre imagem e essência, o jogo de espelhamento sempre presente na dialética do
olhar que constitui o indivíduo, o eu e o outro, está presente no encontro descrito por Kindzu
que se enxerga: “me olhei, sem confiança”, “me certifiquei”. Até que, finalmente, Kindzu vê
a si mesmo no olhar do outro: “ao me verem, em minha nova figura”. Na realização da
transformação concretizada pelo jogo de olhares, Kindzu se vê e vê que os outros o veem da
mesma forma como ele se viu. É nesse momento que a relação de opressão se esfacela: “Ao
me verem, em minha nova figura, aqueles que maltratam o meu irmão se extinguiram num
fechar de olhos”.
Mbembe, citando a teoria de Franz Fanon, destaca aspectos importantes no processo
de descolonização. No sentido que vimos abordando, a descolonização é um ato de
reconhecer-se a si mesmo, que caminha no sentido de restituir a humanidade ao colonizado
homem negro. Trata-se de um tornar-se humano, enquanto se restitui a humanidade ao
“humanismo cúmplice do racismo colonial”. Trata-se ainda de se “redefinir um tempo
nativo”, no sentido espaciotemporal de reposicionar a[s] África[s] no mapa do malfadado
progresso evolucionista da modernidade predatória de outras temporalidades. É nesse sentido
que entendemos a possibilidade de uma “essência” africana apenas como a descoberta de algo
que não seja imposto de fora, mas trabalhado, com os diversos componentes já em pauta, a
partir de uma perspectiva interna. O encontro dessa forma de ser diminuiria a maquiagem do
homem negro e da África como promovidas pela colonização.
122
O jogo de espelhamento em Terra sonâmbula está presente em diferentes instâncias e
momentos da narrativa. Observado como assunto, ele revela a identidade dos personagens,
seus relacionamentos e abre a discussão para diversas temáticas relacionais. Observado como
uma estratégia narrativa, mesmo que tema e forma sejam indissociáveis, ao fim e ao cabo, a
estratégia de representação acaba por ratificar e expressar, muitas vezes, as angústias trazidas
numa primeira abordagem pelo tema exposto.
4.8 Espelho e representação
Assim, o jogo narrativo que se faz com a alternância entre as duas histórias – ora as
aventuras do menino e do velho, ora as contadas nos cadernos de Kindzu – permite o
cruzamento de narrativas que se realizam em abismo: uma história dentro da outra, uma
leitura dentro da outra. Esse procedimento cria camadas diegéticas que enriquecem a
discussão do romance em torno de sua encenação. Somos levados a desvendar junto com os
próprios personagens, no presente da leitura, questões que também se tornam nossas, e, por
isso, são adicionadas novas camadas ao jogo proposto pelo romance. O conceito de encenação
em abismo acentua a discussão sobre a crise da representação.
Quando o narrador interpela o leitor, um certo grau de artificialidade do discurso
narrativo fica exposto pelo desvelamento do processo de representação, que provoca o
procedimento conhecido como encenação em abismo. Entendemos que esse processo, ao
expor as camadas do texto, revela a encenação da escrita no texto literário. O próprio
narrador, ao interpelar o leitor, atua na fronteira do discurso mesclando, a favor da literatura,
as camadas diegéticas. No geral, o termo francês mise en abyme, que traduzimos por
encenação em abismo, refere-se:
aos casos em que a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele próprio. A representação pode propor o que é chamado de “reduplicação repetida”, ou “ao infinito”, na qual o fragmento posto no procedimento de “mise en abyme” comporta nele mesmo uma relação de similitude com o todo. [...] Oferecendo ocasiões para uma reflexão metadiscursiva, a obra pode refletir sobre o desenvolvimento complexo, que é sua própria elaboração, sobre o efeito que ela provoca no espectador, ou ainda sobre a artificialidade da referência “realista” do mundo (quando a mise en abyme adota como referente não a realidade mas o relato/narrativa do qual ela procede).[...] podemos dizer que essas representações especulares são sintomáticas de períodos de crise da representação, ou seja, de momentos onde a mimésis duvida de sua própria aptidão de falar verdadeiramente do mundo, e se volta para o que toda representação comporta de ilusão e de enganação.
(GEFEN, 2003, pp. 211-212, tradução nossa)78.
78 “[...] on parlera « mise en abyme » pour caractériser tous les cas où une œuvre représente dans le texte sa
123
Quando o narrador discute abertamente sobre o fazer literário, expondo os rumos da
trama e suas escolhas como escritor, entendemos que se trata do procedimento que coloca a
narrativa em abismo, pois “a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele
próprio.” Assim, Kindzu, ao se mostrar como escritor, nos convida a refletir também sobre o
processo de representação da leitura e, principalmente, da escrita.
No romance de Mia Couto, assim como no de Amos Tutuola, a encenação em abismo
aparece para questionar a capacidade de representação do discurso, além de, pela exposição
do caráter de artificialidade da ficção, também expor a artificialidade do mundo. Já no
romance de Hampaté Bâ, a encenação em abismo comporta um “espelhamento entre facto e
ficto” (DUTRA, 2007, p. 98), na mescla entre ficção e história, costumes e geografia,
acrescentando uma dimensão metarreflexiva ao romance. “Essas representações especulares”
não seriam necessariamente sintomas de “crise da representação”, mas chamam a atenção
para a espacialidade da escrita entendida como uma poética, no sentido estudado por Tadié
(1994), que investigue sobre limites da literatura.
Nas palavras de Glissant, “O imaginário não comanda as exigências limitadoras da
ideia. Prefigura o real, sem o determinar a priori.” (GLISSANT, 2011, p. 182). Mbembe, em
sua análise da obra de Amos Tutuola, ressalta em certo momento que a caracterização das
criaturas e os eventos, no romance, perdem o referente: “Elas não são mais referentes do que
quer que seja.”79 (MBEMBE, 2015, p. 208). Observamos a seguinte descrição: “Tinha dois
olhos no joelho; dois braços presos nas coxas que de tão compridos podiam alcançar a parte
mais alta de qualquer árvore. Segurava um enorme chicote.” (TUTUOLA, 1970, p. 61).
Notamos, como explica Mbembe, que tal criatura não encontra nenhuma sustentação numa
experiência de real. Muitas vezes, o romance torna-se uma descrição de um mundo
indescritível que se sustenta na verossimilhança narrativa do ambiente fantasmal. A perda de
referencial provocada por Amos Tutuola chega quase a uma negação da representação.
lecture ou son écriture […]. À la limite, la représentation peut proposer ce que l’on nomme réduplication
répétée, ou à l’infini, dans laquelle le fragment mis « en abyme » comporte lui-même une représentation ayant cette relation de similitude avec le tout. […]. En offrant des occasions de réflexion métadiscursive, l’œuvre peut réfléchir au cheminement complexe dont relève son élaboration […]. Par-delà sa dimension ludique, aptitude à produire une infinité de « trompe-l’œil » […] on peut avancer que ces représentations spéculaires sont symptomatiques de périodes de crise de la représentation, c’est-à-dire de moments où la mimèsis se met à douter de son aptitude à parler véritablement du monde, pour se replier sur ce que toute représentation comporte d’illusion et de mensonge. […] Jean Ricardou a montré dans les Problèmes du nouveau roman (1967) comment ce courant littéraire avait usé de procédés variés de mise en abyme pour se situer au plus près du geste même de la création littéraire, saisie comme dans son mouvement même par la réflexivité d’un texte devenu ‘métatexte’”. (GEFEN, 2003, pp. 211-212).
79 “Elles ne sont plus, en retour, des référents de quoi que ce soit.” (MBEMBE, 2015, p. 208).
124
Paralelamente, no romance de Mia Couto, a descrição de figuras inusitadas não desafia os
limites da representação como em Amos Tutuola, mas demanda uma distensão da imaginação
e dos limites do que comumente se entende por realidade.
Depois, caminhei nas dunas, passeando os olhos por aqueles imensos. Foi quando, num súbito, vi uma mão sair da terra. Subiu no espaço e, avançando no desajeito de um cego, me agarrou a perna. Tombei, gritando. Consegui me soltar. [...] Pois, daquele areal foram saindo outras mãos, mãos e mais mãos. Pareciam estacas de carne, os dedos remexendo com desespero de passaritos pedindo comida. (COUTO, 2007, p. 41).
A cena descreve a aparição de um “xipoco”, um ser que transita entre o mundo dos
vivos e dos mortos, que chega assombrando Kindzu durante seus devaneios, quando se
instala, na narrativa, um ambiente semelhante ao do bebedor de vinho, um mundo fantasmal
sem fronteiras entre vivos e mortos. Dessa forma, entre a autoridade da palavra impressa e a
ilusão, a voz narrativa do romance permite o trânsito entre a pura imaginação, um devaneio
completo, e a expressão de uma realidade qualquer, em que cada contexto produz sua feição
de realismo, sendo as nomenclaturas abundantes e exteriores ao texto. Ian Watt destaca a
flexibilidade do romance em acordo com a liberdade que lhe é atribuída também por outros
teóricos como Marthe Robert. Watt afirma:
A palavra impressa na comunicação literária tem duas características que derivam de sua total impessoalidade: podemos chamá-las a autoridade e a ilusão, que proporcionam ao romancista uma abordagem narrativa extremamente flexível, pois lhe permitem passar, sem esforço, da voz pública para a voz privada, das realidades da Bolsa de Valores para as realidades do devaneio. (WATT, 2010, p. 208).
Diante do exposto, percebemos que um dos esforços da teoria do romance é identificar
a construção da realidade através dos constructos da ficção. Fica patente que o gênero permite
a flexibilidade do escrito aberto às infinitas transmutações do devaneio.
Assim, o romance ultrapassa a época que o criou e deixa de ser apenas um produto da
modernidade. Sem a obrigação da representação de uma cópia que tende à imagem ilusória de
um real inalcançável, o romance se torna livre e expressa a distensão do tempo. Na sua
relação com a linguagem, a escrita, também como uma possível transfiguração do oral,
assume seu caráter ilusionista. Em seu exercício autorreflexivo entre a escrita e o passar do
tempo, o sujeito (re)constrói a sua história, no sentido descolonial de Mbembe e Fanon, no ato
de reconhecer-se a si mesmo.
4.9 A transgressão do romance africano
125
Sobre representação da África dentro de nossa discussão literária, destacamos a
importância de sempre voltarmos aos questionamentos acerca da representação:
Muito já foi feito para ressignificar a ideia de África projetada pela biblioteca colonial, mas cabe ao intelectual lembrar-se constantemente de que falar da África é, ao mesmo tempo, não falar, já que muito mais permanece desconhecido que sabido, ou seja, é preciso cuidado para que, de uma forma ou de outra, não se repita a violência epistemológica de que fala Mudimbe. Está claramente posto aqui um problema que envolve a crise da representação. Em termos gerais, a crise revela a impossibilidade de se reapresentar ou de falar sobre o objeto ausente sem distorções. (RODRIGUES, 2011, p. 12).
Perguntamo-nos se haveria, então, formas alternativas de conceitualização que nos
libertem das estruturas epistêmicas e das linguagens da modernidade.
Pois embora pareça haver condições possíveis de conceitualizações alternativas, permanecemos aprisionados pelas estruturas epistêmicas e pelas linguagens da modernidade, sendo que nossas tentativas de falar fora delas invariavelmente nos levam de volta ao mesmo dispositivo discursivo, embora por meios contestatórios e subversivos. (GARUBA, 2018, p. 125).
No sentido de buscarmos por “conceitualizações alternativas”, a desmesura e o Todo-
mundo, teorizados por Glissant (2013), aparecem como conceitos que impulsionam uma outra
abordagem da literatura que pretende ir ainda além, talvez até mesmo do enquadramento pós-
colonial. Considerando o classicismo como uma medida, porque profundo e de intenção
universal, e o barroco como uma desmedida, por renunciar a essas pretensões, Glissant chega
ao pensamento que desenvolve a percepção do que chama de Todo-mundo, em que coloca as
literaturas francófonas, pela sua desmesura e diversidade, sem a “denegação operada pelo
barroco, nem a profundidade do classicismo”80 (GLISSANT, 2013, p. 95). Nesse quadro
inserimos também as literaturas periféricas de modo geral e especificamente os romances que
temos analisado. Tal percepção da literatura extrapola as medidas, ou seja, quaisquer bordas
que cercam o trabalho artístico e literário, e alcança uma desmesura da desmesura para além
da diversidade que já havia instaurado a desmesura no conceito de Todo-mundo. O teórico
explica:
Desmesura não porque seja anárquico, mas porque não há mais a pretensão ao profundo, ao universal, só há a pretensão à diversidade. Desmesura da desmesura.
80 “Et qu’elles n’ont pas à prétendre à la dénégation opérée par le baroque, ni à la profondeur du classicisme,
parce qu’elles vivent la diversité et la démesure du Tout-monde.” (GLISSANT, 2013, p. 95).
126
Aquela desmesura é a abertura total e esta desmesura é o Todo-mundo. A literatura seguiu esse caminho. (GLISSANT, 2013, p. 94, itálico original, tradução nossa)81.
As reflexões desenvolvidas por Glissant ilustram o que Walter Mignolo entende por
“desobediência epistêmica”. Nesse sentido, entendemos que o pensamento descolonial se
torna uma ação, pois consideramos, com Mignolo, que
uma das realizações da razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero) e de expeli-los para fora da esfera normativa do “real”. Concordo que hoje não há agora fora do sistema; mas há muitas exterioridades, quer dizer, o exterior
construído a partir do interior para limpar e manter seu espaço imperial. É da exterioridade pluriversais que circundam a modernidade imperial ocidental (quer dizer, grego, latino, etc.), que as opções descoloniais se reposicionaram e emergiram com força. (MIGNOLO, 2008, p. 291).
Assim, ao apresentarem uma outra forma de apreensão do mundo, as narrativas
africanas nos dão notícias de um outro mundo, apresentando-nos realidades diversas das que
seriam comumente encenadas pelas histórias que compõem o dito cânone ocidental com o
qual estamos acostumados. Os romances africanos, pelo que demonstramos neste capítulo,
exigem de seus leitores uma outra forma de compreensão.
É diante dessa nova perspectiva proposta por autores como Mignolo, Mbembe e
Garuba, na esteira de Franz Fanon, Mudimbe e Glissant, que desenvolvemos nossa reflexão
sobre os romances africanos e o lugar das literaturas africanas no contexto global.
81 “Démesure non pas parce que c’est anarchique, mais parce qu’il n’y a plus la prétention à la profondeur, la
prétention à l’universel, il n’y a plus que la prétention à la diversité. Démesure de la démesure. Cette démesure-là c’est l’ouverture totale et cette démesure-ci c’est le Tout-monde. La littérature a suivi ce chemin.” (GLISSANT, 2013, p. 94).
127
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise comparatista entre as obras propostas em nosso corpus nos permite constatar
que um certo imaginário sobre a África vem sendo construído em detrimento dos próprios
africanos. De acordo com os posicionamentos teóricos expostos, rechaçamos as
generalizações que emanam da necessidade do enquadramento universalista. Entendemos que
o universalismo moderno ocidental tolhe as diferenças, configurando-se num princípio que
aniquila o ser humano africano. A partir das leituras e análises feitas, constatamos que os
romances estudados conversam entre si e nos dão notícias, por semelhanças e diferenças, do
contínuo e violento processo de colonização, seja inglês, francês ou português. Nesse sentido,
vimos como os moçambicanos Kindzu, Tuahir e Muidinga contam sobre o nigeriano bebedor
de vinho de palmeira, que conta sobre o malinês Wangrin, que também conta sobre todos
esses outros e outros tantos africanos ainda. “Toda essa desordem de gente! Todas essas
histórias que vocês dizem não entender nada, ô gente!” (GLISSANT, 1993, p. 153). Uma
proposta de ordenação para esse esquema seria visualizá-los em interseções como na teoria da
geometria dos conjuntos. O olhar que nos permite fazer tal inferência não é aquele que
resume, mas o que considera o Todo-mundo, como dito por Édouard Glissant, na perspectiva
da poética da Relação.
A diferença entre Relação e totalidade vem do facto de que a Relação age por si mesma, quando a totalidade, no seu conceito, é ameaçada de imobilidade. A Relação é totalidade aberta, a totalidade seria relação em repouso. A totalidade é virtual. Mas só o repouso – em si mesmo – poderia ser válido ou totalmente virtual. Ora, o movimento é aquilo que se realiza absolutamente. A Relação é movimento. (GLISSANT, 2011, p. 163).
Glissant propõe o movimento: a Relação em oposição à totalidade estática do
universalismo excludente da colonização. Nesse todo mundo, as pessoas e os territórios
entram em confluência, não há mais fronteira (partage), e o que resta é a Relação, em que é
necessário ultrapassar qualquer ponto fixo. Como romanceado por Glissant:
[...] nós os [essa desordem de gente] reprimimos e os excluímos da potência do Território, mas, escutem, eles são a própria terra que jamais será território, eles vão à frente de nós, seus sofrimentos nos abrem novos espaços, eles são os profetas da Relação, eles vivem esse turbilhão, eles veem, longe adiante, esse ponto fixo que é preciso ultrapassar mais uma vez.82 (GLISSANT, 1993, p. 482).
82[…] on les refoule et les exclut de la puissance du Territoire mais écoutez, ils sont la terre elle-même qui
jamais ne sera territoire, ils vont au-devant de nous, leurs souffrances nous ouvrent des espaces nouveaux, ils
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No sentido de ultrapassar, transgredir e descolonizar, como conclusão, assumimos que
o viés teórico adotado para embasar a análise das obras estudadas nesta tese constitui também
um ponto de argumentação. Com o suporte de teóricos de diversas localidades e trânsitos,
para além do resumido Eixo Norte, entendemos, entre a análise dos textos literários e o
estudo das teorias propostas, que o Todo-mundo, o Diverso e a Relação permitem que
Africanos e Áfricas assumam o significado dessa nova categoria de homens, como teorizado
pelo antilhano Franz Fanon, tal como retomado pelo camaronês Achille Mbembe, em sua
defesa da descolonização (MBEMBE, s.d.).
A violência colonial, descrita pelo franco-tunisiano Albert Memmi, que torna os
africanos colonizados sub-humanos, está presente nos três romances. Enquanto Wangrin
termina por sucumbir à máquina de desejo do sistema colonial em busca de uma máscara
branca com sua morte tragicômica, e o personagem do bebedor de vinho de palmeira pontua
sua trajetória com as diversas metáforas sobre a violência colonial, os personagens de Terra
sonâmbula caminham por entre os destroços das guerras. Observamos como esses
personagens, nos três romances, tentam lidar com as diversas influências a que são
submetidos, e como a colonização é algo violento, por não permitir nenhuma conciliação
entre as culturas. A colonização é da ordem da imposição, assim como as guerras. Ambas
suprimem o encontro. A captura do território africano é mais uma forma de violência que
recai sobre os colonizados. A partir da relação de subjugação expressa pelas bordas
territoriais, os sujeitos, sub-humanos, são circunscritos pela dinâmica colonial que os
aprisiona. Mais uma vez, constatamos que o processo colonial e suas sequelas operam de
forma a restringir os trânsitos e os encontros e como, nesses romances, a circulação se mostra
como transgressão da ordem, uma forma de resistência, ou mesmo de sobrevivência, como em
Terra sonâmbula.
Enquanto Fanon, Memmi e mesmo Mbembe, entre outros, esmiúçam em suas análises
a violência do sistema colonial em aniquilar o homem, por exemplo pela animalização do
negro (FANON, 2002), a obra de Mia Couto se torna um exemplo poético, não sem explicitar
a crueldade do processo que se instala no pós-independência, na transfiguração do caráter
humano. Sendo assim, o texto literário serve tanto para denunciar a violência quanto para
ilustrar a possibilidade de reapropriação de si pelo homem colonizado, provendo assim sua
(des)colonização. A previsão de um futuro apocalíptico, no cenário da guerra civil
sont les prophètes de la Relation, ils vivent ce tourbillon ils voient, loin devant, ce point fixe qu’il faudra dépasser une fois encore.” (GLISSANT, 1993, p. 482).
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moçambicana em que se situa o romance, termina com uma solução, é preciso voltar a ser
humano: “Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez
animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que
esta guerra nos converteu.” (COUTO, 2007, p. 202).
Mais uma vez, diante das análises feitas apresentadas pela tese, entendemos que o
tempo a que se refere o feiticeiro que fala no trecho citado é certamente o período da guerra
civil. No entanto, nossa percepção é mais abrangente e inclui também a colonização
portuguesa, e outras, quando esse “animal” estava sendo gestado. Segundo Fanon: “Às vezes
este maniqueísmo [colonial] vai ao fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. Estritamente
falando, ele o animaliza. E, de fato, a linguagem do colono, quando ele fala do colonizado, é
uma linguagem zoológica.”83 (FANON, 2002, p. 45). É contra essa imagem construída a
priori, a partir do exterior, no intuito de subjugação colonial, que Kindzu finalmente se torna
um guerreiro da tradição naparama. A partir do jogo de olhares, como analisado
anteriormente, ele se reconhece e encontra sua África dentro de si. Para tanto, uma operação
da ordem da linguagem acontece. Kindzu é aquele que conta, que busca construir a sua
história:
Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz. (COUTO, 2007, p. 15).
O pesquisador ganês Simon Kofi Appiah chama a atenção para a importância das
narrativas para a constituição da identidade dos sujeitos. Appiah afirma:
As histórias que contamos sobre nós mesmos, e aquela que outros contam sobre nós são tão importantes na formação de nossa identidade e no que nós fazemos pela virtude em nossa identidade. De modo similar a um indivíduo que perde a memória, existem muitas maneiras em que a perda de uma narrativa comunitária autêntica pode afetar a identidade e a ética de um grupo.84 (APPIAH, 2013, p. 46).
83 “Parfois ce manichéisme va jusqu’au bout de sa logique et déshumanise le colonisé. À proprement parler, il
l’animalise. Et, de fait, le langage du colon, quand il parle du colonisé, est un langage zoologique.” (FANON, 2002, p. 45).
84 “The stories we tell about ourselves, and those that others tell about us are so important in the formation of our identity and in what we do with and by virtue of that identity. Similar to the effects on an individual who loses memory, there are many ways in which the loss of an authentic communal narrative can affect group identity and ethics.” (APPIAH, 2013, p. 46).
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Finalmente, não há como dissociar identidade, espaço e romance, quando entendemos
que a “mente humana é, primeiro e antes de tudo, um veículo de contar histórias.”85
(APPIAH, 2013, p. 48). Um elemento constitui o outro nesse caso, sendo a forma de contar, o
romance, uma tentativa de estabelecer a continuidade das relações, refazendo as identidades e
reconfigurando os espaços, justamente pela narrativa.
Dessa forma, os textos literários estudados nos permitiram perceber como uma ideia
de África se configura a partir deles, ao mesmo tempo que expõem que uma certa ideia de
África se impõe a eles. As estratégias narrativas empregadas, como procuramos demonstrar
com cada obra analisada, é a forma que possibilita tal configuração.
Assim, consideramos, com o moçambicano Francisco Noa, que cada momento
histórico constrói seu tipo de realismo:
Um fator constitutivo e definidor da literatura de ficção é que ela participa da composição de mundos possíveis e convoca, para cada um destes mundos, uma ideia de realidade que acaba por se articular, por semelhança ou por contiguidade, com o mundo empírico no qual nos movemos. (NOA, 2015, p.77).
Haverá sempre uma lacuna entre o que se pretende representar e a representação final
que lemos na forma da literatura, no processo de tradução de uma língua, um universo para
outro. Por isso é tão importante analisar não só o conteúdo quanto a forma desses romances.
Se entendemos que representar é um problema da língua, como acentua a teoria de Bakhtin.
Iser afirma:
Como ato negador do imaginário, o fictício oferece-lhe agora que se faça presente no produto verbal do texto, na medida em que a própria língua é transgredida e enganada, para que, no engano da língua, o imaginário, como causa possibilitadora do texto, se torne presente. (ISER, 2002, p. 984).
A linguagem já simboliza. E a encenação, como mais uma expressão da realidade,
sempre subjetiva, pois na impossibilidade do encontro com o real, não reflete o mundo, mas
cria o próprio mundo. Esses romances constituem conjuntos em interseções, em que a
comparação atua como um princípio que confronta uma obra com outra, um estilo com outro,
85 “Thus McAdams cites some scholars (Howard 1989; Landau 1984; Sarbin 1986) to confirm the growing belief
that ‘the human mind is first and foremost a vehicle form storytelling. Like the plot of a story, human beings persistently piece together the sporadic episodes of life into an organic whole, thus [conferring] upon the world and our conduct in it a storied quality (McAdams 27). Citing psychologist Burnner’s theory (Brunner 1990) that human understanding divides into paradigmatic and narrative modes, McAdams shows how narrative is the most natural way for humans to explain events as actions over time. This perspective of time answers for human fascination for narrative (McAdams 30).” (APPIAH, 2013, p. 48).
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numa linha de análise, principalmente, mas não exclusivamente, culturalista, como assumido
pelo enfoque dos estudos pós-coloniais sobre literatura. Ao atribuir importância ao contexto
exterior das obras, vimos que os questionamentos suscitados pelos romances estabelecem elos
temáticos entre eles. No campo estilístico, observamos como a formalidade da narração de
Hampaté Bâ contrasta com a informalidade de Tutuola e aponta para a liberdade da linguagem
que encontramos em Mia Couto.
Finalmente, os romances africanos, ao encenarem a violência colonial e da guerra civil
moçambicana a partir da perspectiva africana, se tornam um exemplo de “desobediência
epistêmica”, instaurando na linguagem uma nova epistemologia, uma vez que, como dito por
Bakhtin, o romance está na linguagem. A língua se torna um espaço epistêmico. Nessa
perspectiva, podemos responder afirmativamente à pergunta do sul-africano Harry Garuba,
quando o pesquisador indaga se haveria “formas alternativas que nos libertem das estruturas
epistêmicas e das linguagens da modernidade” (GARUBA, 2018, p. 125). As obras estudadas
indicam que sim. No entanto, é preciso um olhar cuidadoso que, atento às armadilhas, não nos
deixe presos a velhas estruturas, uma vez que estamos nelas inseridos e que assim não
fiquemos cegos ao novo e transgressor. Como dito pelo argentino Walter Mignolo:
Felizmente, a opção descolonial concede à concepção da reprodução da vida que vem de damnés, na terminologia de Frantz Fanon, ou seja, da perspectiva da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como força de trabalho: reprodução de vida aqui é um conceito que emerge dos afros escravizados e dos indígenas na formação de uma economia capitalista, e que se estende à reprodução da morte através da expansão imperial do ocidente e do crescimento da economia capitalista. (MIGNOLO, 2008, p. 296).
Assim, as literaturas africanas são a tentativa, e o sucesso dessa tentativa depende mais
do leitor, de uma nova ordem epistêmica que combate paulatinamente o “golpe
epistemológico”, que é a colonização.
Esperamos que nossas reflexões tenham conseguido alcançar o seu intento.
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