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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Alice Botelho Peixoto IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA Belo Horizonte 2020

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Alice Botelho Peixoto

IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES

AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA

Belo Horizonte

2020

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Alice Botelho Peixoto

IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES

AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Professora Doutora Maria Nazareth Soares Fonseca

Linha de pesquisa: Identidade e Alteridade na Literatura

Belo Horizonte

2020

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Peixoto, Alice Botelho P379i Identidade, espaço e estratégias em romances africanos do Mali,

Moçambique e Nigéria / Alice Botelho Peixoto. Belo Horizonte, 2020. 136 f.

Orientadora: Maria Nazareth Soares Fonseca Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras

1. Literatura africana. 2. Pós-colonialismo na literatura. 3. Identidade. 4.Espaço na literatura. 5. Narração. 6. Colônias. 7. Ficção africana. I. Fonseca, Maria Nazareth Soares. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 896-3

Ficha catalográfica elaborada por Renata Diniz Guimarães de Oliveira - CRB 6/2646

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Alice Botelho Peixoto

IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM ROMANCES

AFRICANOS DO MALI, MOÇAMBIQUE E NIGÉRIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras.

Linha de pesquisa: Identidade e Alteridade na Literatura

_________________________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Nazareth Soares Fonseca – PUC Minas (Orientadora)

_________________________________________________________________________ Prof. Drª. Cristiane Felipe Ribeiro de Araújo Cortês – CEFET MG (Banca Examinadora)

_________________________________________________________________________ Prof. Drª. Terezinha Taborda Moreira – PUC Minas (Banca Examinadora)

_________________________________________________________________________ Prof. Drª. Roberta Maria Alves – UFVJM (Banca Examinadora)

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Elcio Loureiro Cornelsen – UFMG (Banca Examinadora)

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Félix Ulombe Kaputu – Fordham University – EE UU (Banca Examinadora)

Belo Horizonte

2020

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Aos meus avós.

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AGRADECIMENTOS

À Capes e à FAPEMIG pelas bolsas de estudos.

À tia Lúcia Helena, por ter me mostrado o á-bê-cê. A Consuelo, por ter colocado the

book on the table.

A Margarida, pelo bonjour, e a Madame Beaurieux, por ter me ter feito ler poesia.

A Catherine, pelo Oui. A Arielle, pela amizade.

À professora Nazareth, por todas as palavras na nossa língua portuguesa, numa

orientação firme e segura, agradeço por nunca ter me soltado a mão.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras, pelas aulas ministradas

sempre com gosto e dedicação. Obrigada Audemaro, Alexandre, Ivete, Johnny, Márcia,

Terezinha, Raquel!

Ao professor Félix, pelas conversas inspiradoras.

A todo o pessoal da secretaria: Berenice, Rosária, Jefferson, Giovanni, grata pelos

cafés e por fazerem tudo funcionar.

Aos amigos do Geed, Grupo de Estudos “Estéticas Diaspóricas”, por estenderem as

conversas das salas de aula às salas de casa. Agradeço com carinho a Adriana, Assunção,

Bruna, Consuelo, Elaine, Eni, Erinaldo, Francy, Helen, Karina, Léo, Lilian, Lino, Luciana,

Jorge, Roberta, Wellington.

A outros e mais ainda às amigas fiéis: Bruna, Consuelo, Eni, Helen, Janaína, Moema.

Sou grata por tudo, sempre. A Ana, sempre com fones de ouvido plugados.

Agradeço aos meus treinadores, Norberto e Karina, por me ajudarem a estender os

limites do corpo e da mente. A todos da Albatroz por brincarem e rirem comigo, me ajudando

a não perder a alegria de viver. Até amanhã!

A todos dos meus eternos grupos do Amor e Nosso Grupo, pelo companheirismo.

Aos grupos de formação em Yoga Integral de BH e de Ilhabela, por me acolherem. A

Lili Lakshmi e Sat Prema, pela luz.

Agradeço aos meus pais, pelos ensinamentos sem fronteiras e pelo apoio de sempre.

Ao Daniel, meu irmão, e sua companheira Desirée, irmãzinha, por onde o amor é maior que o

mundo. Ao Gustavo e a Layla, por me renovarem as esperanças.

Om gum gurubyo namah. Sri Aurobindo om. Mirra Matri om.

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Ah! Tenho meu Amor a todos para dar

do que sou.

Eu!

Homem qualquer

Cidadão de uma Nação que ainda não existe.

(CRAVEIRINHA, 2010, p. 19).

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RESUMO

As discussões encaminhadas por esta tese procuram demonstrar como os romances, O

bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos (1952), do

nigeriano Amos Tutuola, L’Étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète

africain (1973), do malinês Amadou Hampaté Bâ, e Terra sonâmbula (1992), do

moçambicano Mia Couto, encenam questões sobre identidade, espaço, e como subvertem

determinadas estratégias narrativas próprias do gênero romance, dando a elas feições

africanas. Ao serem discutidas, as questões propostas abordam aspectos relativos à violência

do colonialismo no continente africano e às sequelas deixadas por ele, dentre várias, as

guerras civis que eclodiram no pós-independência de muitas das novas nações africanas. Ao

inscrever a análise dos romances na vertente pós-colonial, é construída uma base

argumentativa que acentua o conflito de epistemologias provocado pela presença do

colonialismo europeu nos territórios africanos de origem dos escritores e obras investigadas.

A tese demonstra, num primeiro momento, como os personagens de cada romance podem ser

vistos como metonímia dos sistemas políticos encenados e como as identidades, fragmentadas

pela violência colonial e pela guerra civil, no caso de Moçambique, são reconstruídas a partir

de novas relações, assumindo características fluidas que desmancham a fixidez. A tese

também apresenta uma discussão sobre o espaço encenado nos romances, demonstrando

como a política colonial atua na captura dos territórios e na subjugação dos sujeitos

colonizados. A reflexão acentua que a estreita relação do indivíduo com o espaço participa da

constituição de sua identidade. Finalmente, é demonstrado que os três romances apresentam

interseções que permitem percebê-los como formas de representação alternativas ao

paradigma moderno, que desobedecem à epistemologia imposta pelo sistema colonial. As

obras apresentam, assim, em suas estratégias narrativas, características dos espaços africanos

de onde são originadas e reformulam, a partir do conteúdo e da forma, o gênero romance.

Palavras-chave: Literaturas africanas. Pós-colonialidade. Identidade. Espaço. Estratégias

narrativas.

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ABSTRACT

The discussions leaded by this thesis seeks to demonstrates how the novels, The Palm-Wine

Drinkard and his Dead Palm-Wine Tapster in the Dead’s Town (1952), by Nigerian

Amos Tutuola, The fortunes of Wangrin (1973) by Malinese Amadou Hampaté Bâ, and

Sleepwalking Land (1992), by Mozambican Mia Couto, perform questions about identity

and space, as they overturn some narrative strategies, particular to the novel as a genre, giving

them African features. As they are debated, the proposed questions discuss aspects related to

the colonialism violence, in African continent and their aftereffects, among others, the civil

wars that erupted in the pos-independence period in many new African nations. Inscribing the

novel analyses in the pos-colonial studies, this thesis builds on an argumentative bases that

accentuates the epistemological conflict provoked by European colonialist presence in

African territories where these novels and their writes are from. This thesis demonstrates, in a

first moment, how the characters from each novel can be seen as a metonymy of the staged

political systems metonymy and how the identities broke up by the colonial violence and the

civil war, in the Mozambican case, are rebuild from the new relationships as they put on fluid

characteristics that disintegrated the occidental fixity. This thesis also presents a discussion

about the space as it is performed by the novels, showing how colonial politics acts in the

captured territories and in the colonized individual subjugations. This critical reflection

accentuates that the narrow relation between the individual and the space takes part in his

construction identity. Finally, this work demonstrate that the tree novels have intersections

allowing us to perceive them as representation alternatives forms of to the modern paradigm,

as they disobey the epistemology imposed by the colonial system. These novels thus present,

in their narrative strategies, African spaces characteristics from which they are originated,

recreating, from the content and form, the novel genre.

Keywords: African literature. Postcolonialism. Identity. Space. Narrative strategies.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

2 AS CONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS ENCENADAS NOS ROMANCES AFRICANOS ........................................................................................................................ 23

2.1 Identidade e violência ....................................................................................................... 23

2.2 A identidade colonial de Wangrin ................................................................................... 26

2.3 A identidade em O bebedor de vinho de palmeira ........................................................ 35

2.4 Identidade em Terra sonâmbula ..................................................................................... 49

3 O ESPAÇO E AS ESPACIALIDADES ENCENADOS PELOS ROMANCES ............ 58

3.1 O espaço mitológico em O bebedor de vinho de palmeira ............................................ 59

3.2 Espaço e imaginário colonial nos romances ................................................................... 61

3.3 Espaço, espacialidade, errância ....................................................................................... 78

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS .............................. 91

4.1 Africanos como sujeitos dos romances ........................................................................... 91

4.2 O trabalho heroico: do individual para o coletivo ......................................................... 95

4.3 Autoria e narração em L’étrange destin de Wangrin ................................................... 99

4.4 Autoria em Amos Tutuola ............................................................................................. 104

4.5 Um jeito africano de narrar ........................................................................................... 110

4.6 O absurdo europeu e o exotismo africano .................................................................... 114

4.7 O encontro africano: a descolonização em Terra sonâmbula .................................... 119

4.8 Espelho e representação ................................................................................................. 122

4.9 A transgressão do romance africano ............................................................................ 124

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 127

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 132

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1 INTRODUÇÃO

Alguns temas das literaturas africanas são brevemente elencados no volume VIII da

coleção História geral da África, editada pela Unesco, no capítulo sobre o “desenvolvimento

da literatura moderna” (MAZRUI, 1998, p. 348). Dentre os temas citados, “poesia e política”,

“autenticidade”, “guerra” e “herança cultural” combinam “os valores autóctones, as

influências islâmicas e o impacto da cultura ocidental” (MAZRUI, 1998, p. 363). É válido

destacar o esforço do volume para situar, no continente africano, o florescer de projetos

literários modernos em relação a uma tradição literária autóctone que se caracteriza por

gêneros como poesia, conto e práticas oratórias milenares. No cenário das literaturas

africanas, o romance, gênero ocidental moderno por excelência, aparece como estranho às

formas literárias autóctones. Vale salientar, que também no Ocidente, o romance é uma forma

narrativa tardia em relação a outras expressões literárias. Esse gênero é um produto do século

XIX e da Revolução Industrial.

Nos últimos tempos, a abordagem das obras literárias africanas vem sendo marcada

por uma perspectiva pós-colonial que procura ultrapassar as tensões produzidas pela

modernidade, sobretudo as que consideram a produção literária desvinculada do contexto de

sua produção. Com a intenção de analisar as literaturas periféricas como manifestações

culturais, a abordagem pós-colonial tenta superar a tensão “africanidade versus

universalidade” sem deixar de encenar os sujeitos regionais e locais inseridos num contexto

global, como o fazem os pesquisadores Inocência Mata e Jean-Marc Moura. Para Mata, as

literaturas africanas expressam uma autorreflexão dos sujeitos nacionais que pensam sobre si,

no sentido de um conjunto plural e não mais no sentido da unidade individual, que constituía

a utopia do corpo nacional. Justificando seu caminho teórico, Mata expõe o seu entendimento

do conceito de pós-colonial:

O pós-colonial pressupõe, por conseguinte, uma nova visão da sociedade que reflete sobre a sua própria condição periférica, tanto a nível estrutural como conjuntural. Não tendo o termo necessariamente a ver com a linearidade do tempo cronológico, embora dele decorra, pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de descolonização e independência política - o que não quer dizer, a priori, tempo de independência real e de liberdade, como o prova a literatura, que tem revelado e denunciado a internalização do outro no pós-independência. (MATA, 2006, p. 40).

No sentido de tentar identificar e analisar, na encenação literária, manifestações que

nos possibilitem uma maior compreensão do pós-colonial, adotamos a perspectiva que assume

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essa “nova visão da sociedade”, considerando a “condição periférica” dos antigos espaços

colonizados que se inserem numa “temporalidade que agencia sua experiência”, não somente

após a colonização, mas também durante a vigência do processo colonial. Assumimos que

essa abordagem permite uma prática de leitura que assume o conceito de pós-colonial, mesmo

quando são discutidas obras produzidas durante o período colonial.

Consideramos, com Jean-Marc Moura, pesquisador das literaturas africanas

francófonas, que a literatura pós-colonial deve ser lida como originada e marcada por um

contexto de colonização e descolonização e não somente como produção relativa ao tempo

posterior às independências dos países africanos. Para Moura, o termo “póscolonial1 refere-se

às práticas de leitura e de escrita que se interessam pelos fenômenos de dominação e,

particularmente, pelas estratégias que evidenciam, analisam e se esquivam do funcionamento

binário das ideologias imperialistas”2 (MOURA, 2007, p. 11).3 Ainda segundo Moura, uma

perspectiva puramente cronológica veria o colonialismo como um marco histórico e, ao

considerar a dicotomia colonial versus pós-colonial, faria com que a análise literária recaísse

na linearidade ocidental, marcada pela teleologia do “progresso” e da “civilização”. Nesse

sentido o pesquisador afirma:

A dificuldade é integrar o fato colonial, massivo e irrefutável, aos nossos estudos literários, ou seja, evidenciar um conjunto de questões interdependentes, ao mesmo tempo ideológicas, institucionais e formais, que orientam a atividade literária numa determinada época e região, evitando um funcionamento binário que opõe colonial/póscolonial para privilegiar uma abordagem transnacional. (MOURA, 2007, p. 3).4

As reflexões de Mata e Moura incitam uma abordagem transnacional no quadro da

teoria pós-colonial. Essa feição é importante para que possamos delinear a proposta desta tese

que se fundamenta com a leitura de três romances africanos produzidos em países e

temporalidades diferentes. Com a intenção de refletir sobre questões identitárias e espaciais, a

1 Jean-Marc Moura distingue “pós-colonial”, com hífen, de “póscolonial”, sem hífen. A primeira palavra tem o

sentido cronológico de “posterior ao período colonial” e a segunda tem o sentido citado no texto. Não utilizaremos essa distinção gráfica, mas propomos abranger o significado de pós-colonial e abarcar, na palavra com hífen, a perspectiva sugerida por Moura.

2 Sempre que a tradução for nossa, o texto original virá em nota de rodapé. Evitamos citar a cada parêntese que a tradução é nossa para evitar a repetição.

3 “[...] ‘postcolonial’ se réfère à des pratiques de lecture et d’écriture intéressées par les phénomènes de domination, et plus particulièrement par les stratégies de mise en évidence, d’analyse e d’esquive du fonctionnement binaire des idéologies impérialistes.” (MOURA, 2007, p. 11).

4 “La difficulté est d’intégrer le fait colonial, massif et irréfutable, à nos études littéraires, c’est-à-dire de mettre en évidence un ensemble de questions interdépendantes, tout à la fois idéologiques, institutionnelles et formelles, qui orientent l’activité littéraire à une époque et dans une région données, tout en évitant un fonctionnement binaire opposant colonial/postcolonial pour privilégier une approche transnationale.” (MOURA, 2007, p. 3).

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tese também se volta à indagação de como o romance, gênero europeu por excelência, é

transformado pelas particularidades dessas regiões africanas. Essas temáticas, nos três

romances enfocados, são tratadas com atenção ao trabalho específico com a linguagem

literária.

Os romances que integram o nosso corpus de análise são: O bebedor de vinho de

palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos, do nigeriano Amos Tutuola

(1970), publicado pela primeira vez em 1952; L’Étrange destin de Wangrin ou les roueries

d’un interprète africain, do malinês Amadou Hampaté5 Bâ (1992), de 1973, e Terra

sonâmbula, do moçambicano Mia Couto (2007), de 1992. Perpassam os romances os

problemas decorrentes da relação entre colonizador e colonizado, mais evidentes nas obras de

Hampaté Bâ e Tutuola, bem como os relacionados ao pós-independência e com a guerra civil

de Moçambique, como encenado em Terra sonâmbula. Os três romances remetem a

questões características do contexto extraficcional em que se inserem, o que faz com que

determinadas estratégias narrativas sejam ressaltadas no âmbito de uma abordagem pós-

colonial. Dentro da periodização linear da história africana, o romance do nigeriano Amos

Tutuola é o único dos três a ser escrito durante o regime colonial. Moçambique e Mali já eram

independentes, quando os romances de Hampaté Bâ e de Mia Couto foram lançados, ainda

que o romance malinês enfoque o período colonial.

Pensamos ser importante considerar o fato de, desde a Partilha da África6 efetivada por

países europeus, no século XIX, entre final de 1884 e princípio de 1885, o continente africano

ter passado por grandes transformações que alteraram irremediavelmente os costumes e a vida

dos povos que o habitam. A colonização europeia atinge, após esse evento, novas feições

impulsionadas, sobretudo, pelos ideais de modernidade levados ao continente africano. No

centro dessa discussão, ainda sob domínio inglês e em solo hoje nigeriano, Amos Tutuola

publicou O Bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos,

em 1952, pela editora inglesa Faber and Faber. Foi o primeiro romance africano a ter

repercussão internacional, tendo sido traduzido em onze idiomas. Na época do aparecimento

do romance, alguns críticos consideraram que o escritor apresentava um fraco domínio do

inglês, abusava da oralidade e escrevia influenciado pelo ioruba. As falhas apontadas,

5 Encontramos duas grafias para o sobrenome do autor: Hampâté ou Hampaté. Optamos pela segunda opção por

ser a adotada na edição consultada. 6 A Conferência de Berlim realizou um acordo entre as 18 potencias europeias participantes que ficou conhecido

como a Partilha da África. Nesse encontro, foram definidas as regras do jogo que permitiram as operações de dominação e anexação dos territórios africanos, cada potência europeia estava autorizada a fincar bandeira sobre o maior número de territórios africanos possíveis. Nesse processo, os povos africanos, seus reinados, tribos e sociedades, foram desconsiderados pelos europeus. (FERRO, 1994, p. 122).

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sobretudo pelos críticos nigerianos, são indiretamente atribuídas à curta escolaridade que o

escritor recebeu, embora decorram de intencional imersão na oralidade e na ludicidade das

histórias ouvidas em sua infância. Diante das várias críticas sofridas pelo romance, Wole

Soyinka (apud QUEIROZ; BORGES, 2017), o Nobel nigeriano, citando a crítica feita ao

romance na época de seu lançamento, na introdução da edição de 2014, da mesma Faber and

Faber, indaga: “Seria [esse romance] literatura? Ou apenas um longo conto popular em busca

de sintaxe?”.

Amos Tutuola nasceu em Abeokuta, no oeste da Nigéria, em 1920. Filho de

agricultores, frequentou a escola apenas por seis anos. Exerceu diferentes ofícios, como o de

ferreiro. Atuou, de 1942 a 1945, na Royal Air Force. Depois foi funcionário público no

Departamento do Trabalho, quando começou a escrever.

O título do romance de Amos Tutuola, O bebedor de vinho de palmeira e seu

vinhateiro morto na Cidade dos Mortos, funciona como uma brevíssima sinopse da

narrativa feita em primeira pessoa, pelo protagonista, que empreende uma viagem fantástica

para resgatar seu vinhateiro morto. No início do romance, o personagem sem nome, que será,

na análise, referido como “o bebedor”, apresenta-se como o mais velho dos oito filhos do

homem mais rico da cidade. Colocando-se como o único entre os irmãos que não era apto ao

trabalho, sua ocupação era beber o vinho de palmeira que lhe era fornecido à vontade.

Infelizmente, o vinhateiro morre ao cair de uma palmeira, quando buscava a matéria-prima

para preparar o vinho para o seu amo. O bebedor, não encontrando um substituto que

atendesse à sua demanda de vinho, decide empreender uma viagem à Cidade dos Mortos para

resgatar o único homem capaz de produzir vinho de forma a saciá-lo. Ao sair das terras do

pai, o jovem bebedor entra em território desconhecido, um mundo delineado por criaturas

mágicas e estranhas que a mitologia ioruba torna corriqueiras.

O percurso do protagonista é cheio de obstáculos, todos vencidos por ele com a ajuda

de seus jujus, amuletos mágicos que lhe permitem mudar a sua forma humana. Ao longo do

caminho, o jovem bebedor se casa, tem um filho mágico, encontra as mais fantásticas

criaturas e, quando finalmente chega a seu destino, a Cidade dos Mortos, decide voltar às

terras do pai, sem o vinhateiro, levando consigo um objeto mágico. Durante a viagem, o

protagonista se autodenomina um deus todo poderoso, o “pai dos deuses”. Seus superpoderes,

no entanto, não conseguem evitar que ele seja submetido a diversas formas de violência. Ao

longo do percurso, encontra estranhos seres cuja identidade é sempre posta em questão: são

espíritos ou humanos? Estão vivos ou mortos?

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As peripécias do protagonista incorporam elementos do universo mitológico da cultura

ioruba e de algumas etnias africanas. Essa incorporação justifica o nascimento de seu filho,

uma criança com superpoderes, que é gestada no polegar da mãe. Esse aspecto, entretanto,

não será privilegiado em nossas indagações sobre o romance, porque foge ao nosso objetivo.

Estaremos mais atentos aos simbolismos e metáforas que nos permitem perceber os processos

de encenação da realidade colonial feitos pelo romance, bem como as estratégias de

construção narrativa utilizadas pelo escritor, quando mescla ambientes da cultura tradicional

autóctone do espaço nigeriano e percepções do mundo colonizado pelos ingleses.

Pretendemos considerar que o tom poético que caracteriza o romance pode ser atribuído à

intenção de assumir as modulações mitológicas que instauram um ambiente sobrenatural e

mágico típico das narrativas da oralidade africana. Procuraremos também ressaltar que

características da violência decorrente do encontro turbulento entre colonizadores e

colonizados estão presentes em todo o romance, sem interferir em seu caráter poético e

mitológico. Vale ressaltar, como discutiremos ao longo da tese, que a narrativa de Tutuola

encena ainda eventos típicos da cultura ioruba a qual pertence, como, por exemplo, o encontro

entre o céu e a terra. Esses eventos contribuem para que o romance se valha da encenação de

um ambiente fantasmal como referência à cosmogonia da cultura à qual essa encenação faz

parte.

Apesar das controvérsias, esse primeiro livro de Tutuola se tornou um clássico da

literatura africana, com uma narrativa ainda hoje considerada inovadora, como arte “cult”. À

época de seu lançamento, recebeu acolhida entusiástica do poeta inglês Dylan Thomas. A esse

primeiro romance seguiu-se Minha vida na mata dos fantasmas, logo em 1954, também

editado pela Faber and Faber. Esses dois primeiros são seus romances de maior sucesso,

considerados os mais bem-sucedidos artisticamente. Ainda pela editora londrina saíram The

Witch Herbalist of the Remote Town (1981), Pauper, Brawler & Slanderer (1987), The

Village Witch Doctor and Other Stories (1990). Por outras editoras publicou Simbi and

the Satyr of the Dark Jungle (1955), The Brave African (1958), Huntress (1962), Feather

Woman of the Jungle, Ajaaiyi and his Inherited Poverty, em 1967, Wild Hunter in the

Bush of the Ghosts, em 1982, e Yoruba Folktales, em 1986.

Geoffrey Parrinder (apud QUEIROZ; BORGES, 2017), no prefácio da primeira edição

inglesa de seu segundo livro, em 1954, afirma que os romances de Tutuola representam uma

crítica à colonização e à situação pós-colonial, embora o autor não assuma a postura crítica de

seus conterrâneos, como Wole Soyinka e Chinua Achebe (apud QUEIROZ; BORGES, 2017).

Queiroz e Borges informam que “Tutuola registrou em seus romances a situação da Nigéria

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pós-colonial, por meio de referências implícitas, refletindo sobre a situação dos africanos sob

o impacto das aldeias e das formas de governo europeu.” (QUEIROZ; BORGES, 2017, p. 6).

Na análise do romance de Amos Tutuola7, O bebedor de vinho de palmeira,

consultamos, basicamente, a tradução de Eliane Fontenelle para o português, lançada no

Brasil pelo Círculo do livro, na década de 1970. Voltamo-nos sempre que se fez necessário ao

original em inglês, para melhor apreender o trabalho com a língua, uma das principais

características do escritor.

De forma mais explícita, as críticas ao sistema colonial francês estão impressas no

romance do malinês Amadou Hampaté Bâ. O título do que é tido como seu o único romance,

L’étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète africain, anuncia as

peripécias de Wangrin, um intérprete a serviço da administração colonial na África Ocidental

Francesa (AOF), no atual Mali. O romance é apresentado pelo autor como o resultado de uma

promessa feita ao homem que viveu as peripécias delegadas ao herói da história. Como bom

contador de histórias que é, Hampaté Bâ transforma em romance a história vivida por

Wangrin, pseudônimo escolhido por ele para manter o anonimato e preservar outros

envolvidos. A obra é o relato da vida desse malinês durante a colonização francesa, nessa

região da AOF. O autor faz questão de ratificar a veracidade do relato, adicionando a ele um

prefácio e um posfácio, escritos em primeira pessoa. O compromisso com a realidade

encenada fica comprovado pela abundância de descrições sobre os costumes do povo e pela

referência às práticas coloniais francesas. Não faltam ainda dados históricos e geográficos que

possibilitam localizar a situação exposta no cenário da colonização francesa no continente

africano.

A narrativa se inicia com o nascimento de Wangrin, no seio da cultura bambara. A

explicação sobre o deus protetor escolhido pelo jovem personagem funciona como definidor

do caráter do homem que se delineia nas páginas do romance. Devoto de Gongoloma Soké,

deus tido como bizarro e capaz de unir os contrários, Wangrin é representado como a imagem

de seu deus protetor. O personagem, por seu caráter, cria várias inimizades, mas, precavido,

tece uma rede de apoiadores entre os homens mais importantes da tradição local, em todos os

lugares por onde passa, no exercício de seu posto de intérprete colonial. Malicioso, o hábil

intérprete acumula riqueza valendo-se de golpes aplicados ao sistema colonial, aproveitando-

se, sobretudo, da crise provocada pela Segunda Guerra Mundial.

7 É importante citar, por sua relevância, o trabalho de tradução intitulado Algumas traduções de O bebedor de

vinho de palmeira, coordenado pelas professoras Cristina Borges e Sônia Queiroz.

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Embora sua vida pessoal não mereça muita atenção no romance, sabemos que ele tem

uma extensa família, pois segue as tradições da poligamia. No desempenho da função de

intérprete, em várias localidades de seu país, torna-se um rico comerciante. Rico e

reconhecido por sua função, sucumbe à paixão por uma mulher francesa, entregando a ela a

administração de toda a sua riqueza, porque se rende ao vício do álcool. A narrativa acentua

que essa má fase do protagonista decorre do fato de ele ter abandonado as práticas bambaras e

muçulmanas, o que o faz terminar a vida pobre, vítima de um golpe aplicado pela francesa

junto com um comparsa. O romance transforma a sua morte em retorno simbólico às práticas

tradicionais de sua origem bambara, recurso que afirma o caráter africanista da obra. Esse

aspecto é defendido pelo escritor Hampaté Bâ, grande defensor da tradição ancestral e um dos

intelectuais africanos mais importantes.

Amadou Hampaté Bâ nasceu em 1900, em Bandiagara, no Mali. Seus pais descendiam

de famílias nobres da etnia fula8. Com a morte de seu pai, o menino de apenas dois anos foi

adotado por um rei de sua cidade. Sob a proteção de seu pai adotivo, recebeu uma educação

tradicional de um importante contador de histórias que vivia em sua corte. Também teve uma

educação formadora dentro da tradição religiosa islâmica e frequentou a Escola Primária

Francesa, conhecida como escola “des Otages”. Hampaté Bâ trabalhou em diversos postos

durante a administração colonial francesa. Paralelamente, o escritor realizou um importante

trabalho de pesquisa coletando material das tradições orais africanas pelos territórios da AOF,

apoiado pelo professor Théodore Monod, fundador do Instituto francês da África Negra. Sua

primeira obra, L’empire Peul du Macina, é publicada em 1955 como resultado de suas

pesquisas. Em 1958, fundou e dirigiu o Instituto de Ciências Humanas do Mali e, em 1962,

foi eleito membro do Conselho Executivo da Unesco. A partir da década de 1970, Hampaté

Bâ se dedicou inteiramente às suas pesquisas sobre as tradições africanas religiosas, literárias,

etnográficas e históricas, tendo publicado diversos contos tradicionais. Suas memórias foram

publicadas, postumamente, em dois volumes: Amkoullel, l’enfant peul (1992) lançado no

Brasil como Amkoullel, o menino fula (2003), e Oui mon commandant! (1994), ainda sem

tradução no país.

8 Adotamos o termo fula como tradução do termo peul, em francês, por ser essa a tradução adotada na

publicação brasileira do primeiro volume das memórias do escritor, Amkoullel, o menino fula para Amkoulle

l’enfant peul. Vale reproduzir aqui a nota do tradutor dessa edição brasileira, a título de esclarecimento: “Cabe ainda explicitar a opção pelo termo fula e não peul como no original francês. A sociedade à qual pertence o autor é conhecida por nomes muito diferentes. Eles se auto-referem tanto como FullBe quanto como Haal-

Pular e nomeiam sua língua fulfulde ou pular. Entre os uolofes são chamados peul; entre os bambaras, fula e entre os hauçás, fillani. Na literatura de língua inglesa são conhecidos como fulani, na francesa como peul. Na Guiné Bissau, país de língua portuguesa, são denominados fula, grafia adotada nesta tradução, e que tem sido utilizada em publicações brasileiras recentes.” (BÂ, 2003, p. 22).

Page 18: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

16

L’étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète africain é

considerado seu único romance, sendo visto por muitos como tendo um viés autobiográfico.

A obra recebeu o Grand Prix Littéraire de l’Afrique Noire, em 1974. Até o momento, não

encontramos nenhuma tradução em português, mas existem traduções em inglês e em

espanhol, embora não tenham sido consultadas para a execução desta tese.

Traduzido e publicado em mais de 20 países, o moçambicano Mia Couto é hoje um

dos autores africanos mais conhecidos. O título de seu primeiro romance, Terra sonâmbula

(1992), diferentemente dos romances de Tutuola e Hampaté Bâ, assume um viés metafórico,

embora de sentido não menos elucidativo com relação à trama escolhida pelo escritor. A

personificação da Terra, desde o título, anuncia o caráter poético da narrativa situada no

contexto da guerra civil moçambicana. Marcando diferença em relação ao contexto colonial

presente nos romances de Tutuola e de Hampaté Bâ, Mia Couto, ao escrever Terra

sonâmbula, privilegia um evento específico de seu país, a guerra civil, sem deixar de

considerar a situação de um continente que procura se reconstruir a partir de seu passado

colonial.

A guerra civil que eclode após a independência não é uma particularidade de

Moçambique. Na Nigéria, a violenta guerra civil, conhecida como a guerra de Biafra, foi

durante anos manchete internacional, com destaque para a fome que assolou o território

separatista (HEERTEN; MOSES, 2014). Os conflitos étnicos, na Nigéria, foram endêmicos

desde os primeiros anos da independência acordada pelos britânicos, em 1960. A guerra civil

eclodiu em 1967. O Mali enfrenta rebeliões tuaregues desde sua independência da França,

também em 1960. O último conflito a chamar a atenção mundial9 se deu nos anos 2012 e

2013, identificado como a quarta rebelião tuaregue que marca o contexto dos conflitos pós-

independência e que se desenrolam desde a década de 1960 (DUARTE, 2013).

Mais discretamente, mas também presente no noticiário internacional, Moçambique

passou por recentes eleições legislativas, tendo de conviver com destruições provocadas pela

passagem de um ciclone devastador, em 2019. A situação do país continua tensa entre o

partido do governo, FRELIMO, e seu opositor, a RENAMO, em luta desde os tempos da

guerra contra o colonialismo português, no período de 1965 a 1975, quando, finalmente,

conseguiu a independência. Como já dito, o início do pós-independência coincide com a

guerra civil, terminada, oficialmente, em 1992. Ainda hoje, os diversos episódios de violência

9 Os noticiários continuam sendo estampados por problemas ainda atravessados pelo Mali, e também pela

Nigéria, com a insurgência e ataques violentos de grupos jihadistas. O extremismo islâmico traz o contexto religioso para a pauta da atualidade, além dos conflitos étnicos e territoriais.

Page 19: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

17

vividos pelo país acentuam sua instabilidade quanto a sua situação de paz (DEUSTCHE

WELL, 2019). Esses conflitos, muitas vezes encenados pela literatura do país, acabam por

expor as sequelas deixadas pela colonização europeia que, ao desmantelar a organização

social autóctone, não foi capaz de assegurar a necessária estabilidade ansiada por seus

habitantes.

Terra sonâmbula, publicado em 1992, é o primeiro romance de Mia Couto

considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX, pelo júri da Feira do Livro

do Zimbabue. Entre os diversos prêmios recebidos pelo escritor moçambicano até agora,

destacamos o prêmio Vergílio Ferreira, em 1999, o prêmio União Latina de Literaturas

Românticas, em 2007, e o Prêmio Camões, 2013. Em 2014, Couto recebeu o Neustadt Prize.

Biólogo em exercício, tendo também atuado como jornalista, o autor tem mais de trinta livros

publicados, entre romance, poesia e contos. É correspondente estrangeiro da Academia

Brasileira de Letras.

Na leitura do romance de Mia Couto, destacamos os três personagens principais que,

como andarilhos, espelham o movimento da Terra anunciado no título. Muidinga e Tuahir,

um menino e um velho, sem laços de parentesco, desenvolvem uma amizade com contornos

de uma verdadeira relação entre pai e filho, enquanto buscam sobreviver em meio aos

destroços deixados pela guerra civil, andando, sem rumo, por uma estrada “mestiçada de

tristezas nunca vistas” (COUTO, 2007, p. 9). Na estrada, encontram um ônibus que passa a

lhes servir de abrigo. No ônibus, junto a corpos de soldados carbonizados, encontram uma

mala que guarda cadernos com anotações feitas pelo jovem soldado Kindzu. Muidinga lê as

histórias de Kindzu para Tuahir, acrescentando uma outra dimensão à trama. Nas andanças

em torno do machimbombo e pelas páginas dos cadernos de Kindzu, o velho e o menino se

deparam com outros personagens que encenam situações típicas de culturas locais de

Moçambique.

A leitura dos caderninhos de Kindzu permite conhecer a vida do jovem soldado com

sua família, a morte do pai, a chegada dos bandos armados, o sumiço de seu irmão Junito, sua

amizade com o indiano Surendra e a partida em busca dos tradicionais guerreiros naparamas.

Conhecemos também as peripécias do seu encontro com Farida, personagem de peso que

encena as relações complexas entre colonizadores e colonizados. A encenação do romance

acentua o jogo de espelhamento entre personagens: Muidinga se vê em Kindzu, especula

sobre ser ele o seu irmão sumido, e busca um pai em Tuahir. Por sua vez, as narrativas de

Kindzu refletem o movimento da terra que o velho e o menino também observam. O tom

poético da escrita de Mia Couto ressalta o lirismo da narrativa. Tal trabalho poético envolve a

Page 20: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

18

língua portuguesa na atmosfera da oralidade marcada pelas diferentes feições das línguas

moçambicanas. A habilidade de poeta do escritor, que maneja a língua para tratar de temáticas

relacionadas a assuntos do contexto tradicional e contemporâneo de seu país, tem sido

destacada como uma peculiaridade de seu estilo.

Assim, guardando as devidas distâncias entre os romances escritos em línguas,

espaços e tempos diferentes, observamos que o estilo de Mia Couto é hoje reconhecido por

apresentar características similares àquelas que provocaram, na Nigéria, a condenação do

estilo de Amos Tutuola. Podemos dizer, esperando que as reflexões que apresentaremos no

decorrer do trabalho esclareçam, que ambos apresentam narrativas que exploram a força da

oralidade e ambientes culturais atravessados pela magia, próprios das culturas autóctones de

seus países. No esforço por encenar questões próprias de sua terra, ambos os escritores

transformam poeticamente a língua levada à África pelos colonizadores europeus.

Ressaltando as características específicas a cada obra, vale dizer que, em diferentes

níveis, todas comportam um forte teor de violência que caracteriza momentos traumáticos da

história de cada país. Essa violência tanto pode estar atrelada ao modo como Tutuola descreve

a imposição de normas e valores estrangeiros ao espaço de colonização francesa, na África,

como nas descrições feitas sobre a devastação da terra e de seus habitantes, em Moçambique,

por Mia Couto. Por outro lado, podemos dizer que Hampaté Bâ, ao focalizar a violência posta

em prática durante a colonização de espaços africanos, não deixa de revelar a maestria de um

perfeito domínio da língua francesa. O escritor imprime um sotaque estrangeiro no seu

romance, sutilmente perceptível no ritmo que marca uma cadência peculiar na história que

conta. Essa cadência fica mais visível no uso do discurso indireto livre e, principalmente, no

registro feito, em discurso direto, da fala dos personagens africanos. O estilo sóbrio da

descrição de viés realista é quebrado pela ironia com que registra sua denúncia ao sistema

colonial francês. O tom rocambolesco das peripécias, muitas vezes classificadas como

estranhas, apontam, desde o título, um certo humor característico do estilo do escritor numa

trama tida como histórica, etnográfica e compromissada com a realidade.

É importante registrar que, nesta tese, o olhar que visa comparar uma obra com outra,

uma realidade com outras, percorre os três romances e procura, sobretudo, ressaltar questões

relativas às configurações identitárias e espaciais encenadas. Ao mesmo tempo, o mesmo

olhar pretende apreender as estratégias de escrita romanesca escolhidas por cada um dos

autores. Essas questões, pensamos, poderão explicitar as estratégias de escrita de cada

romance, possibilitando uma melhor compreensão do modo como o romance, gênero europeu

por natureza, foi assumido pelos escritores africanos, sobretudo, a partir de um diálogo efetivo

Page 21: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

19

com a oralidade. Podemos dizer que o gênero se ajusta às características locais de contação e

de encenação de realidades diversas.

No capítulo “As configurações identitárias encenadas nos romances africanos”, a

discussão acerca da temática proposta se estrutura com auxílio das reflexões de Achille

Mbembe e Franz Fanon, principalmente. Tentamos ler os romances a partir da afirmação de

Mbembe de que “a identidade africana não existe como substância” (MBEMBE, 2001, p.

199). Nesse sentido, a identidade africana não pode ser definida por uma única visão baseada

em um estereótipo criado pelo ocidente. As considerações do teórico permitem que

interroguemos como os processos de formação das identidades como representados nas obras

podem ser discutidos a contrapelo do entendimento da razão cartesiana. Para aprofundar a

discussão da questão e dos modos como ela se encena nos romances, perguntamos ainda

como são encenadas as negociações identitárias, na sociedade colonial, e como esses

processos tão subjetivos se dão nos momentos de tensão pós-colonial, quando os valores

ditados pelo nacionalismo precisam ser reinventados. Ao refletirmos sobre a identidade dos

personagens, nos romances, ressaltamos o quanto a situação colonial estende seus tentáculos

para além de uma periodização determinada.

No capítulo “Espaço e espacialidades encenados pelos romances”, procuramos discutir

a maneira como os romances constroem seus próprios espaços, encenando uma experiência

territorial de África proveniente, muitas vezes, de um imaginário construído pelo olhar do

outro, na situação dicotômica do colonialismo e na vivência de situações provocadas pela

guerra. Procuramos demonstrar que a configuração espacial é também uma questão

deflagrada por subjetividades, assim como a construção identitária. As abordagens teóricas

dos pesquisadores Luiz Alberto Brandão, Harry Garuba, Édouard Glissant, Achille Mbembe e

Doreen Massey, principalmente, amparam a discussão sobre espaços e espacialidades

presentes nos romances. Com o intuito de estabelecer uma ligação entre identidade e espaço,

apropriamo-nos do pensamento de Glissant quando diz: “Abra ao mundo o campo de sua

identidade” (GLISSANT, 1993, p. 185), identificando, nessa afirmação, uma diretriz

interpretativa que, ao expandir a concepção de identidade, mostra que uma outra concepção

de espaço se faz também necessária.

No último capítulo, “Considerações sobre as estratégias narrativas”, pretendemos

trabalhar as estratégias narrativas assumidas pelas obras, destacando os recursos utilizados

para dar conta de escritas literárias que não escondem as relações que fazem com

peculiaridades da tradição oral característica de cada país. Discutimos sobre a constituição

dos narradores como contadores de histórias, explicitando o agenciamento das vozes

Page 22: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

20

narrativas. Como fizemos nos dois capítulos precedentes, estabelecemos pontos em que as

três obras, produzidas em espaços culturais e linguísticos diferentes, demonstram ser possível

estabelecer os diálogos entre elas, procurando entender como cada um dos romances

consegue abordar as tensões que dão corpo às narrativas. Analisamos como os personagens

africanos personificam heróis que desafiam a estreiteza de conceitos canônicos. Discutiremos,

enfim, como essas narrativas assumem expressões estéticas próprias do gênero romance,

ainda que se mantendo de acordo com a tradição de gêneros orais de seus diferentes

contextos.

Queremos acentuar que a reflexão proposta pela tese se vale, sempre que possível, de

uma produção teórica africana que possibilita o deslocamento do eixo reflexivo, antes

exclusivamente amparado por obras de origem europeia. Embora muitos intelectuais africanos

atuem majoritariamente em países europeus, intencionamos ouvir vozes que anunciam uma

mudança de paradigma, estruturando sua enunciação em outros locais e não apenas nos

grandes centros de poder. Por isso, ressaltamos, o nosso interesse em trazer para os nossos

capítulos pontos de vista de intelectuais como Homi Bhabha, Achille Mbembe, J.Y Mudimbe,

Édouard Glissant, Harry Garuba e Inocência Mata, e também de estudiosos das literaturas

africanas de várias nacionalidades. Esperamos conseguir construir uma visão crítica que se

afaste do estudo das literaturas africanas que se delineiam com privilégio do olhar europeu,

muitas vezes ainda contaminado por visões e percepções voltadas ao exotismo ou à

focalização de um viés dicotômico e maniqueísta.

Dessa forma esperamos responder a algumas questões que norteiam este trabalho,

sendo que nossa principal intenção é discutir, com as obras literárias, a longevidade e

violência do processo colonial. A paulatina subjugação dos povos africanos deixa sequelas,

sendo a luta pela sobrevivência ainda primordial.

Assim, perguntamo-nos em que medida as três obras advindas de três espaços

culturais e linguísticos diferentes podem ser postas em diálogo atento às similitudes e

diferenças advindas dos processos coloniais que se passaram nos três territórios africanos

encenados pelos romances. Como tais romances dão conta do choque colonial? Discutiremos,

também, como essas narrativas se expressam esteticamente e como as expressões estéticas

variam em contextos diferentes. E, ainda, como conseguem lidar com as demandas literárias

na construção das histórias que contam. Diante de tais colocações gerais, indagamo-nos sobre

o lugar ocupado pelo romance nas culturas africanas. Teriam os africanos uma forma própria

de contar? Quais as possíveis transformações pelas quais passa o gênero romance em África?

Page 23: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

21

Nossa investigação é sustentada por uma sólida pesquisa bibliográfica teórica e

literária. Os resultados a serem apresentados na tese serão produzidos pelo diálogo

estabelecido entre a análise do material teórico e o estudo aprofundado das obras selecionadas

para o corpus. No entanto, reconhecemos que o estilo de escrita aqui apresentado talvez

escape à segmentação de ideais e capítulos normalmente apresentada numa tese padrão.

Valemo-nos do pensamento do filosofo francês Gaston Bachelard ao dizer que a “ciência

contemporânea é cada vez mais uma reflexão sobre a reflexão” (BACHELARD, 1996, p.

307), na tentativa de justificar um estilo que talvez se aproxime mais de um ensaio do que um

relatório de análises de dados, em que se configura uma forma argumentativa baseada na

reflexão das ideias. Como consta em verbete do Le dictionnaire du littéraire (ARON, SAINT-

JACQUES, VIALA, 2010), a forma ensaio vem de uma tradição argumentativa antiga que

permite o desenvolvimento de uma reflexão pessoal. Enquadramo-nos no movimento atual

das ciências humanas que, cada vez mais, assume que a subjetividade do pesquisador

inevitavelmente se imiscui ao seu objeto de pesquisa. No entanto, não vamos ao extremo de

nos colocarmos à prova como proposto por Montaigne, tido como fundador do gênero ensaio,

nem mesmo fazer o uso da primeira pessoa do singular, que seria sua marca definidora. Não

pretendemos defender nenhuma forma de expressão, apenas reconhecemos que ciência,

verdade e estilo são passíveis de interpretação.

No intuito de atestar a seriedade de nossa pesquisa e dos resultados esperados –

sempre passíveis de interpretação e questionamentos, muitas vezes constituindo a necessária

prova de atestação do trabalho científico proposto –, afirmamos nossa pretensão de coerência

entre corpus, análise e suporte teórico, esperando alcançar algum sucesso nas interpretações

apresentadas. Trazemos para nosso contexto de análise o dito pelo geografo brasileiro Milton

Santos:

Nossa ambição é fornecer, ao mesmo tempo, a explicação da realidade espacial e os instrumentos para sua análise. Acreditamos que uma teoria que não gera, ao mesmo tempo, sua própria epistemologia, é inútil porque não é operacional, do mesmo modo que uma epistemologia que não se baseie numa teoria é maléfica, porque oferece instrumentos de análise que desconhecem ou deformam a realidade. A coerência científica, que deve ser o objetivo final da reflexão, não pode ser obtida de outra forma. (SANTOS, 2012, p.23).

Em nossa humilde pretensão, intentamos, portanto, traçar de forma coerente uma

ideia, posta através das estratégias literárias, de como a colonização europeia do continente

africano afetou de forma permanente os africanos de ontem e de hoje. Dessa forma,

observamos as sequelas deixadas pela duradoura violência colonial.

Page 24: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

22

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23

2 AS CONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS ENCENADAS NOS ROMANCES

AFRICANOS

2.1 Identidade e violência

Os questionamentos identitários suscitados pelos romances O bebedor de vinho de

palmeira e seu vinhateiro morto na cidade dos mortos, de Amos Tutuola (1970),

L’étrange destin de Wangrin ou les roueries d’un interprète africain, de Amadou

Hampaté Bâ (1992), e Terra sonâmbula, de Mia Couto (2007), nascem a partir de

personagens que se inserem no contexto colonial da África subsaariana, e, no caso do

romance moçambicano, no período da guerra civil, no pós-independência. Os personagens

dos romances de Amos Tutuola e Hampaté Bâ transitam por cenários construídos pelo

sistema colonial, em África, exibindo a engrenagem que os europeus colocaram em prática

para dominar e explorar outros povos, sobretudo acentuado no século XX, no período que se

encerra com as independências dos espaços colonizados. O romance de Mia Couto deixa claro

que, em África, o sistema colonial não cessa com os acordos de independência. A dominação

e a exploração coloniais permanecem no continente, ainda que se transformando e atuando

com outras feições. Essa permanência do sistema colonial se mostra, principalmente, na

eclosão das guerras civis, no caso de Moçambique, travada como um prolongamento da

guerra de independência.

Em O bebedor de vinho de palmeira, o protagonista transita por um ambiente

demarcado por elementos mitológicos de raiz ioruba, mesclando-o com elementos da

colonização britânica. Novas relações se configuram, enquanto a viagem iniciática do

protagonista se desenrola. Em L’étrange destin de Wangrin, o personagem principal, que dá

título ao romance, vivencia a dicotomia colonial. Hábil intérprete, enquanto funcionário da

colonização francesa, Wangrin joga com malícia e perspicácia para ter sucesso profissional,

sem perder os vínculos com suas raízes fincadas na tradição bambara a que pertence. Como

hábil jogador, estabelece alianças que lhe permitem tirar vantagem dos dois lados. Em Terra

sonâmbula, a interação entre os personagens propõe novas possibilidades de reconstrução de

uma terra despedaçada pela guerra civil e por sequelas irreversíveis deixadas pela colonização

portuguesa.

As indagações propostas pela análise dos romances amparam-se em pontos de vista da

teoria pós-colonial, na perspectiva sugerida por Jean-Marc Moura, Inocência Mata e outros

teóricos. Moura (2007) sugere que a literatura pós-colonial deve ser considerada como

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24

oriunda de um contexto de colonização e descolonização, e não somente como produto

posterior às independências. O “paradigma pós-colonial”, discutido também por Stuart Hall,

refere-se a uma dinâmica de leitura em que a identidade, tema escolhido para ser abordado

neste capítulo, emerge como uma construção de uma situação em que “o ‘colonial’ não está

morto, já que sobrevive através de seus ‘efeitos secundários’.” (HALL, 2013, p. 120).

Eliane Lourenço de Lima Reis sintetiza o pensamento de Hall acerca do conceito pós-

colonial, quando afirma que

a chamada literatura pós-colonial não consegue, assim, escapar ao neocolonialismo. Como críticas mais recentes têm demonstrado, o prefixo pós, de pós-colonialismo, não significa o fim do colonialismo, mas a inserção num contexto de internacionalização do mercado – inclusive do mercado de bens culturais. Afinal, depois do processo de globalização iniciado pelo imperialismo, não há como separar a história das antigas metrópoles das histórias dos povos colonizados e nem como manter o antigo conceito de Estado-Nação. (REIS, 2011, p. 12).

Consideramos que a ideia pós-colonial agencia uma variedade de contextos que devem

ser levados em consideração na análise literária das obras propostas. Advindas dos antigos

espaços colonizados, elas se inserem nesse contexto de “internacionalização do mercado”, em

que uma abordagem transcultural evidencia a negociação identitária administrada pelos

sujeitos – coloniais e pós-coloniais – encenados em cada romance.

Nesse sentido, pensamos ser necessário retomarmos algumas colocações referentes ao

processo colonial, sobretudo as propostas por Albert Memmi e Franz Fanon, que lançaram as

bases do que hoje são os estudos pós-coloniais. Ainda no contexto colonial, as negociações de

poder impuseram novas dinâmicas para a formação da identidade do colonizado. Como

observa Memmi, a identidade do sujeito colonial foi forjada por um processo violento, dado

que a colonização implica uma ideologia de dominação de um povo sobre outro (MEMMI,

2012,

p. 107). Nesse sentido, os papéis que atestam a identidade colonial são institucionais e fruto

de uma burocracia que situa os indivíduos em determinados espaços, por sua vez,

circunscritos na periodização linear das “comunidades imaginadas” e impostas pelo

imperialismo europeu (ANDERSON, 2008). As relações de poder que se formam no âmbito

de sociedades extremas, como foram as colônias europeias na África subsaariana, fomentam

um complexo processo psicológico que se expressa na identidade de seus sujeitos, como

tentaremos demonstrar, ao longo da tese, com o estudo de passagens em que os personagens

do romance são considerados.

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25

Para entendermos o que foi característico do período colonial segundo a visão da

teoria pós-colonial, é pertinente considerarmos o pensamento do filósofo camaronês, Achille

Mbembe, para quem a questão identitária africana é “quase” ontológica. O filósofo questiona

constantemente, em seus estudos, os fundamentos do pensamento moderno ocidental, que

erigiram a razão como uma das formas de saber: “o pensamento moderno repousa,

essencialmente, sobre a afirmação da soberania do sujeito e da razão.” (MBEMBE, 2003, p.

792).10 E após uma breve explanação sobre o conceito de identidade na história ocidental,

conclui:

Embora [a reflexão contemporânea] conceba a identidade como uma invenção ou como uma ilusão, a crítica contemporânea continua apoiando-se na afirmação – implícita no pensamento clássico – sobre a impossibilidade de uma única e mesma coisa ou de um único e mesmo ser ter várias origens diferentes e de existir simultaneamente em diferentes lugares e sob diferentes signos. (MBEMBE, 2003, p. 794).

11

Mbembe explica assim que, embora haja críticas, o princípio da individuação continua

inseparável do princípio da invariabilidade. Nesse sentido, perguntamo-nos como abordar a

identidade nos romances selecionados sem cairmos em concepções identitárias que

aprisionam o sujeito em uma única forma de ser. Para iniciarmos nossa reflexão, torna-se

necessário ampliar o escopo e considerar a possibilidade de outras manifestações identitárias

que não se enquadram na concepção ocidental de identidade, e, às vezes, nem na de literatura.

Nos três romances, observamos como a violência extrema compromete a subjetividade

dos personagens, no tocante à sua capacidade de significar o mundo ao redor, afetando,

portanto, sua maneira de se colocar nesse mundo. Ao perder suas referências, o sujeito perde a

si mesmo. A violência cala, aniquila e despedaça os sujeitos, sobretudo quando expostos ao

nefasto jogo do racismo. Essa questão é analisada por Sartre, no prefácio da obra de Albert

Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, quando explicita a

dicotomia branco versus negro, no mundo colonial:

O colonialismo recusa os direitos humanos a homens que ele submete por violência, que ele mantém pela força na miséria e na ignorância, logo, como diria Marx, em estado de ‘sub-humanidade’. [...] O racismo já está aí, levado pela práxis colonialista, engendrado a cada minuto pelo aparelho colonial, sustentado por essas

10 “[…] la pensée moderne repose, pour l’essentiel, sur l’affirmation de la souveraineté du sujet et de la raison.”

(MBEMBE, 2003, p. 792). 11 “Qu’elle conçoive l’identité comme une invention ou comme une illusion, la critique contemporaine continue

de reposer sur l’affirmation – implicite dans la pensée classique – de l’impossibilité, pour une seule et même chose ou un seul et même être, d’avoir plusieurs origines différentes et d’exister simultanément en différents lieux et sous des signes différents.” (MBEMBE, 2003, p. 794).

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26

relações de produção que definem dois tipos de indivíduos: para um, o privilégio e a humanidade são um; ele se faz homem pelo livre exercício de seus direitos; para o outro, a ausência de direito sanciona sua miséria, sua fome crônica, sua ignorância, em suma sua sub-humanidade. (SARTRE apud MEMMI, 2012, p. 23).

12

A violência da lógica colonial racista é maquiada pela ideia da falsa missão

civilizatória que imbui de humanidade a ideologia colonial e seduz, assim, o colonizado,

dando-lhe também a falsa impressão de que é possível ser um desses homens que têm acesso

aos privilégios da humanidade. Em muitos aspectos, percebemos o romance de Hampaté Bâ,

L’étrange destin de Wangrin, como uma encenação literária do funcionamento do sistema

colonial. Wangrin constrói sua identidade de acordo com os cargos que ocupa na

administração colonial francesa, deslocando-se entre os dois extremos apontados por Sartre:

ser humano ou sub-humano.

2.2 A identidade colonial de Wangrin

Nessa situação em que o poder é um jogo polarizado, Wangrin modela sua identidade

de acordo com o que melhor lhe convém. Ao narrar as peripécias desse personagem, a priori

cindido pela administração colonial, o romance denuncia os meandros da colonização, vendo-

a como uma máquina em modo de funcionamento perpétuo. Essa máquina coloca os

colonizados sempre numa situação desfavorável, exigindo sua submissão ao que lhe foi

imposto pela missão civilizatória francesa, quando cria o conceito de “pessoa ocidental”. Esse

conceito aprisiona o colonizado numa rede de “traiçoeiros estereótipos de primitivismo e

degeneração”, impondo-lhe uma “imagem de identidade que é questionada na dialética

mente/corpo e resolvida na epistemologia da aparência e realidade.” Como acentua Bhabha:

“Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem negro e nesse ato de violência

epistemológica seu próprio quadro de referência é transgredido, seu campo de visão

perturbado.” (BHABHA, 1998, p. 80).

As considerações de Bhabha nos permitem perceber essa violência epistemológica na

relação de Wangrin e seu comandante. No início de sua carreira como funcionário colonial, o

personagem é enviado a Diagaramba para assumir o cargo de primeiro monitor do ensino,

12 “Le colonialisme refuse les droits de l’homme à des hommes qu’il a soumis par la violence, qu’il maintient de

force dans la misère et l’ignorance, donc, comme dirait Marx, en état de ‘sous-humanité’. […] Le racisme est déjà là, porté par la praxis colonialiste, engendré à chaque minute par l’appareil colonial, soutenu par ces relations de production qui définissent deux sortes d’individus : pour l’un, le privilège et l’humanité ne font qu’un ; il se fait homme par le libre exercice de ses droits ; pour l’autre, l’absence de droit sanctionne sa misère, sa faim chronique, son ignorance, bref sa sous-humanité.” (MEMMI, 2012, p. 23).

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27

nessa região do território colonial francês, no atual Mali. O personagem é assim recebido pelo

comandante do círculo:

Meu jovem, você não é como os outros indígenas. Você frequentou a escola francesa. [...] Você deve pagar as benesses que deve à França, amando-a e espalhando sua língua e civilização. Esses são os dois mais belos presentes que a história da humanidade fez aos Negros da África. Sim, nós temos a missão de fazer a felicidade dos Negros, conforme necessário e apesar deles. (BÂ, 1992, pp. 33-34). 13

A ordem do comandante, ao nomear seu subordinado, o coloca imediatamente numa

situação devedora em relação à nação francesa. Afirmando sua missão colonial, o colonizador

situa os “Negros da África” como inferiores aos valores da “sua civilização”. Ao considerar

os “Negros da África” como desprovidos de cultura, a nação colonizadora obriga esses povos

a aceitar a língua e a civilização que lhe são impostas. Dessa forma, a colonização instaura um

mecanismo violento de supressão da cultura local.

No caso da colonização francesa, encenada nesse romance malinês, observamos que a

língua e a civilização são valores que andam juntos, um veículo do outro. A língua francesa é

exaltada como valor supremo da civilização e, por conseguinte, da colonização que, nessa

perspectiva, é tida como uma missão civilizatória. Falar uma determinada língua, como

explica Fanon, “é usar uma certa sintaxe, dominar a morfologia de tal ou tal língua, mas

sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.” (FANON, 1971, p.13).14

Ora, é justamente o domínio da língua francesa que permite a Wangrin ser destacado dentro

do sistema colonial, já que o cargo de intérprete é o mais alto que um “indígena”15 podia

ocupar dentro desse mecanismo. Ao mesmo tempo, observamos o quanto a colonização

molda o colonizado, obrigando-o a assumir valores e uma educação formal estranhos a ele.

13 “Jeune homme, tu n’es pas comme les autres indigènes. Tu es allé à l’école française. […] Il faut que tu payes

les bienveillances que tu dois à la France en la faisant aimer et en répandant sa langue et sa civilisation. Ce sont là les deux plus beaux cadeaux que l’histoire humaine ait faits aux Noirs de l’Afrique. Oui, nous avons mission de faire le bonheur des Noirs, au besoin malgré eux.” (BÂ, 1992, p. 33).

14 “Parler, c’est être à même d’employer une certaine syntaxe, posséder la morphologie de telle ou telle langue, mais surtout assumer une culture, supporter le poids d’une civilisation.” (FANON, 1971, p.13)

15 Os termos indígena, nativo e aborígine foram usados pelos colonizadores para designar os autóctones de suas colônias. Tais substantivos são impregnados de um sentido pejorativo dentro do sistema colonial, implicando a condição subalterna dessas pessoas. Como tentativa de escapar do preconceituoso maniqueísmo colonial, o termo autóctone nos parece o mais neutro. No entanto, temos consciência de que a total imparcialidade é impossível. Temos, portanto, a intenção de marcar nossa postura crítica ao optarmos, sempre que possível, por “autóctone”. Quando usamos “indígena”, “nativo” ou “aborígene” será para denunciar, o mais explicitamente possível, o preconceito colonial. Algumas vezes, no entanto, não conseguimos evitar a ironia subjacente ao reproduzirmos a terminologia colonial. Outras vezes, para evitar a cansativa repetição, optamos indistintamente por sinônimos do termo.

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28

Ao destacar Wangrin dos outros, “você não é como os outros indígenas”, a fala do

comandante revela-se altamente sedutora. Ratificando a dicotomia colonial, o comandante

induz seu subordinado a acreditar numa falsa promessa, a de que, não sendo como “os outros

indígenas”, talvez ele possa alcançar os privilégios dos civilizados. No entanto, na fala do

comandante permanecem nítidos os signos da separação: de um lado, os indígenas “Negros da

África”, e de outro, os colonizadores, brancos e detentores da civilização.

Percebemos, na fala do comandante, a legitimidade de uma afirmação que perpetua o

discurso da dominação colonial. Sua fala assume um tom institucional que se assemelha ao

discurso de instituições – como o da Igreja Católica, por exemplo – que impõem o amor e o

temor. O mecanismo colonial exige dos indígenas uma espécie de devoção que se traduz pela

fidelidade do súdito Wangrin ao sistema colonial francês.

Memmi (2012) afirma que a colonização francesa estabeleceu, nos espaços

colonizados, os lugares a serem ocupados pelos brancos europeus e pelos indígenas. Essa

organização espacial fica evidente na preocupação do comandante em deixar claro que

Wangrin, mesmo reconhecido como o melhor dos indígenas, não deixa de ser indígena. A

expressão “Negros da África”, ao ser grafada com as iniciais maiúsculas, nos permite

perceber um modo de dizer institucional do sistema colonial que demarca a predominância do

superior ao seu subordinado e os espaços a serem ocupados por eles. “Negros da África”

funciona como um nome próprio de valor coletivo: serve não a um indivíduo, mas à

coletividade que a colonização subjugou. A estratégia do narrador de dar a palavra a Wangrin

para relatar a cena é pontuada pela ironia. Ao repetir a fala do comandante, Wangrin não

deixa de acentuar o seu lugar de fala, isto é, de ser devedor perante o sistema colonial que lhe

deu a língua e a civilização francesas.

Usufruindo de um lugar de destaque entre os seus por conta de seu exemplar domínio

da língua francesa, Wangrin astuciosamente usa do mecanismo colonial para conseguir poder

e riquezas. Com agilidade e ética duvidosa, chega à função de intérprete. Esse cargo o força a

mudar constantemente de região e de chefe. Ao ser nomeado intérprete no círculo de

Dioussola, mais uma vez o personagem é posto diante de um novo comandante:

Aqui estou para servi-lo conforme lhe der prazer em ser servido. Eu não tenho outra religião que o meu serviço. Agradar ao meu comandante equivale, para mim, a agradar a força superior lá de cima. Eu faço “salamaleico”, mas não sou intolerante. Não gosto dos chauvinistas, sou a favor da civilização e particularmente entusiasta

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da civilização francesa, mãe dos direitos do homem e antiescravagista! (BÂ, 1992, p. 220). 16

A essa altura dos acontecimentos, a história de Wangrin já mostrou como o

personagem é hábil em manipular as pessoas e contornar os fatos para que as situações lhe

sejam favoráveis. A fala do personagem ratifica sua posição dentro do mecanismo colonial,

sem deixar de expressar sua astúcia e habilidade de se colocar, aparentemente, à disposição do

chefe: “estou aqui para servi-lo”, diz o personagem. Ao comparar a religião ao trabalho: “não

tenho outra religião que o meu trabalho”, Wangrin parece assumir uma posição de servidão

perante “seu comandante”, chegando ao ápice de compará-lo a Deus: “agradar ao meu

comandante equivale, para mim, a agradar à força superior”.

Ao referir-se à civilização francesa como “mãe dos direitos do homem e

antiescravagista”, Wangrin é irônico, já que não deixa de reconhecer ser ele mesmo um desses

servos. A apresentação de Wangrin a seu novo chefe em tom de crescente enaltecimento à

civilização francesa, por fim, valoriza o sistema colonial. Toda essa bajulação acaba por ser

um jogo de manipulação que propicia a Wangrin ganhar a confiança de seu novo chefe,

valorizando seu próprio trabalho. Ao se mostrar como “um indígena não como os outros”

(BÂ, 1992, p. 33), com pleno domínio da cultura e da língua do colonizador, Wangrin se

aproxima de seu comandante, assumindo que ambos têm o mesmo valor moral e, em última

instância, trabalham pela mesma causa: os direitos humanos, a civilização francesa e Deus.

Ao jogar com sua devoção e servidão perante o império colonial, Wangrin segue dando

testemunho de que sua moral é duvidosa e sua ética questionável. A ironia soa, assim, como

uma denúncia ao sistema, pois sabemos que, por trás de toda essa devoção, Wangrin joga, na

maioria das vezes, com seu duplo pertencimento e não abandona suas raízes africanas.

Assim, enquanto o personagem manobra as situações para conseguir riquezas e atingir

seus objetivos, um sistema de crenças e costumes é descrito. Como o próprio personagem se

define diante de seu novo comandante, na citação já analisada, ao jogar com sua devoção de

súdito em relação à metrópole colonizadora, ele revela seu pertencimento às das culturas por

onde transita. Wangrin se assume muçulmano, confirmando seu hábito de referenciar Alá. No

entanto, o protagonista não cumpre com rigidez as imposições dogmáticas de nenhuma

religião.

16 “Je suis venu ici pour vous servir comme il vous plaira d’être servi. Je ne connais de religion que mon service.

Plaire à mon commandant équivaut pour moi à plaire à la force supérieure d’en haut. Je ‘fais salame’, mais je ne suis pas bigot. Je n’aime pas les chauvins, je suis pour la civilisation et particulièrement enthousiaste pour la civilisation française, mère des droits de l’homme et anti-esclavagiste !” (BÂ, 1992, p. 220).

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30

O narrador explica o ecumenismo interesseiro de Wangrin: “‘faz salamaleico’, mas

isso não o impede em nada de recorrer de vez em quando aos deuses tradicionais de seu

território e aos manes eficazes de seus ancestrais.” (BÂ, 1992, p. 170).17 Os trânsitos por

diversas religiões fazem parte de sua habilidade de administrar, sempre a seu favor, as

diferentes culturas por onde transita. Aliando a função de intérprete a esses trânsitos, Wangrin

age com a tática de um diplomata: “Eu não tenho religião bem definida [...]. Como intérprete,

eu devo conciliar todo mundo. Fico tão à vontade numa mesquita quanto num bosque sagrado

dos vilarejos animistas.” (BÂ, 1992, p. 112).18 Na função de intérprete, ele deve gerir todo

mundo sem distinção, sem julgamento, deve assim conhecer as práticas e religiões para

explicar os costumes de um a outro.

A prática dos saberes tradicionais africanos tem um papel de destaque na trajetória do

personagem. Sua derrocada é prevista por um adivinho de acordo com os saberes e práticas da

etnia haoussa (“geomancien haoussa”), justo quando tinha alcançado o “zênite de sua glória e

cúmulo de sua fortuna” (BÂ, 1992, p. 311). 19 Mas, antes que o adivinho mostrasse sua leitura

do futuro, o narrador pontua: “É nesta época que uma mudança sutil acontece no

comportamento de Wangrin.” (BÂ, 1992, p. 312).20 O protagonista deixa de cumprir vários

preceitos de sua tradição, como o de distribuir dinheiro aos pobres, com a mesma

generosidade de antes. Além disso, passa a praticar a caça por puro prazer, deixando de

considerar os costumes que autorizam a caça de animais apenas de forma utilitária e

ritualística.

As mudanças de atitude do personagem funcionam como anúncios de sua derrocada e

culminam com um acontecimento que marca o ponto de virada em sua vida: o encontro com

Madame Terreau, chamada também de Madame Branca-branca21, o único caso de amor de

Wangrin. Embora em algumas passagens seja feita menção à sua vida familiar, não há

referência a nenhum caso de amor passional na vida do personagem. Desde o início fica claro

que sua vida amorosa não tem grande peso no desenrolar do romance. Tal característica torna

mais relevante a chegada da mulher branca à narrativa, logo após a previsão do adivinho

17 “Wangrin ‘faisait salame’, mais cela ne l’empêchait point de recourir de temps à autre aux dieux traditionnels

de son terroir et aux mânes efficaces de ses ancêtres.” (BÂ, 1992, p. 170). 18 “Je n’en [religion] ai pas de bien définie [...]. En tant qu’interprète, je dois ménager tout le monde. Aussi suis-

je autant à mon aise dans la mosquée que dans les bois sacrés des villages animistes.” (BÂ, 1992, p. 112). 19 “En ce temps-là, Wangrin était parvenu au zénith de sa gloire et au comble de sa fortune.” (BÂ, 1992, p. 311). 20 “C’est à cette époque qu’un changement subtil s’opéra dans le comportement de Wangrin.” (BÂ, 1992, p.

312). 21 De acordo com o narrador, no início do romance, as pessoas são classificadas dentro do contexto colonial

levando-se em conta a cor de sua pele, por isso, a francesa Madame Terreau é referida como Branca-branca, que significa o mais alto grau de pureza étnica nesse sistema.

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31

sobre seus infortúnios vindouros. Esse momento é situado na história de Wangrin pela

imprecisão dos marcadores de tempo, como “naquele tempo”, “nesta época” (en ce temps-là,

à cette époque). Referindo-se a uma época e um tempo indefinidos, a história assume um

caráter mítico, e o personagem toma contornos de herói.

Nesse sentido, vale destacar que a imprecisão da marcação do tempo, como na cena

referida, alterna-se com referências claras a fatos históricos precisos. Alguns episódios são

determinados por datas históricas, como a referência à Segunda Guerra Mundial, período em

que Wangrin se enriquece com o negócio dos bois. Em outros momentos, não sabemos quanto

tempo se passa de um evento a outro e nem mesmo são dadas explicações sobre a identidade

do personagem. Por vezes, o relato se torna atemporal, aproximando-se da estrutura dos

relatos míticos. Essa estrutura é enfatizada pela referência ao nascimento de Wangrin como

abençoado por um deus bizarro e pelo sentido fatalista do percurso do personagem, acentuado

por elementos que representam o oráculo como o adivinho haoussa e acentuam a falha trágica

do herói, que deixa de cumprir os preceitos de sua tradição. Sua derrocada fica mais explícita

à medida que ele se deixa seduzir pela mulher branca francesa, fazendo dela sua amante e

administradora de sua fortuna. O mesmo Wangrin que se mostrara capaz de trapacear o

sistema e os comandantes é, por sua vez, trapaceado pela amante. O que parece advir da força

mítica de sua tradição traduz-se em incapacidade de gerenciar os percalços da paixão. Esse

episódio nos permite pensar em situações analisadas por Fanon sobre a relação dos autóctones

negros com os brancos. Como indaga Fanon, quem pode reconhecer o homem negro como

um branco, a não ser a “Branca”? “Amando-me, ela me prova que sou digno de um amor

branco. Amam-me como um Branco. Eu sou um Branco. [...] é a civilização e a dignidade

brancas que eu faço minhas.” (FANON, 1971, p. 51).22

Wangrin, que antes se enaltecera com o reconhecimento do comandante que o vê

diferente dos demais indígenas, busca se identificar ainda mais com os brancos, quando se

une a Madame Terreau. No entanto, sua fascinação pela branquitude o torna cego ao fato de

que nunca será como um branco, pois continua sendo um “Negro da África”, embora seja um

“indígena não como os outros”. Já em processo de declínio, Wangrin entrega seus negócios

aos cuidados de Madame Terreau, por quem é saqueado. Dominado pela paixão, Wangrin não

percebe quando a Madame Branca se desfaz da pedra que simboliza sua aliança com o

sagrado, com o mundo das crenças tradicionais africanas. A perda da pedra simboliza seu fim

inevitável.

22 “En m’aimant, elle me prouve que je suis digne d’un amour blanc. On m’aime comme un Blanc. Je suis un

Blanc. [...] c’est la civilisation et la dignité blanches que je fais miennes.” (FANON, 1971, p. 51).

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32

A derrocada do personagem é acentuada pela sua transformação de muçulmano

abstêmio a alcoólatra inveterado. Suas várias transformações são marcadas por uma mudança

de tom na narrativa. Enquanto sua ascensão é narrada com ares das aventuras dos grandes

mitos, seu declínio é narrado em tons tragicômicos, e sua aventura amorosa é rocambolesca.

O tom moralista do narrador, ao considerar os diversos sinais de distanciamento que o

personagem toma de sua tradição bambara como anúncios de sua falência, acompanha o

personagem até sua derrocada final, contando-nos linearmente o desenrolar das peripécias de

Wangrin.

Os vários tons da narrativa, ao alternar os discursos do narrador e dos personagens,

acentuam as transições de Wangrin que, metaforicamente, toma contorno de herói e de

malandro, assumindo ainda, por seus atos, traços identitários do personagem lendário Robin

Wood, o que tira dos ricos para dar aos pobres. No final, o narrador reconhece as várias

transformações do personagem esclarecendo: “Wangrin se tornou então um filósofo contador

de histórias sempre meio bêbado, um esfarrapado animador de rua que não lembrava nunca

seu esplendoroso passado e não culpava a ninguém.” (BÂ, 1992, p. 348).23

O narrador, no desfecho do romance, conclui definindo o personagem como “o louco

da praça”, alguém entre o arlequim e o pierrô, com ares circenses. A visão do narrador quer

acentuar na história do personagem o momento que ele deixa de ser o bajulador do sistema

colonial, ficando à margem de tudo. Quando decadente, em plena falência, Wangrin tira o

dinheiro das mulheres abastadas da sociedade, doando parte dele para os mais necessitados.

Consideremos que, em suas irônicas transformações, o personagem exibe identidades

em trânsito das quais se destaca, ironicamente, a do narrador experiente, aquele que, segundo

Benjamin (1994), sabe narrar suas experiências. Como o próprio personagem se explica:

Façam-me perguntas sobre a vida! Eu os responderei, pois sou um grande viajante. Eu conheço as estradas, as montanhas, as cavernas, as florestas, os cursos d’água e os desertos. Eu conheço as vilas, os vilarejos e as aldeias, eu conheço as ruas, ruelas e becos. Aproveitem da minha experiência e me façam perguntas enquanto ainda estou vivo. (BÂ, 1992, p. 347).

24

Como o narrador de experiências, mostra-se profundo conhecedor das vilas, vilarejos e

aldeias de sua terra, integrando-se na realidade do seu mundo tradicional.

23 “Wangrin était donc devenu le philosophe conteur toujours à moitié ivre, l’amuseur public loqueteux qui ne

rappelait jamais sa splendeur passée et ne reprochait rien à personne.” (BÂ, 1992, p. 348). 24 “Posse-moi des questions sur la vie ! Je vous répondrai, car je suis un grand voyageur. J’en connais les

grandes routes, les montagnes, les cavernes, les forêts, les cours d’eau et les déserts. J’en connais les villes, villages et hameaux, j’en connais les rues, ruelles et venelles. Profitez de mon expérience et posez-moi des questions pendant que je vis encore.” (BÂ, 1992, p. 347).

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33

Ao chegarmos ao final da narrativa, indagamo-nos sobre a intenção da história contada

por Hampaté Bâ. No prefácio da obra, o escritor nos revela que Wangrin teria lhe pedido para

escrever sua história. Essa estratégia garante a verossimilhança do enredo e permite que se

pergunte se haveria, no romance, uma moral a ser tirada das tragédias vividas pelo

personagem, como nas fábulas e nas narrativas de sabedoria africanas.

No romance, o narrador em terceira pessoa, ao narrar os acontecimentos com clareza e

objetividade, adotando muitas vezes o discurso direto, assume uma pretensa neutralidade,

passando a palavra a seus personagens. Mas é ele, o narrador, que conduz a narrativa e,

eximindo-se de qualquer interferência na história, aguça a todo momento o leitor a inferir

sobre a história e sobre o personagem. Estrategicamente, o narrador é claro ao explicar as

formas de enriquecimento de Wangrin, destacando sua habilidade em tirar proveito das

situações, sem jamais o condenar ou criticar seus atos ilícitos. Prefere salientar como Wangrin

sempre teve compaixão pelos menos favorecidos ou como jogou com o seu duplo

pertencimento, ora devoto da civilização francesa ora leal às suas tradições africanas. Fica

claro que o narrador descreve Wangrin como filho da colonização, inscrito na dicotomia que

esse sistema instaura.

Entretanto, quando consideramos as peripécias do personagem, percebemos que a

contrapelo da intenção do narrador sua identidade é sempre móvel. Como acentua Mbembe

(2003), a identidade do ser não é fixa. Ou ainda, como afirma Glissant (2013), a identidade do

sujeito só toma forma quando posta em relação e deve ser vista em devir, “o ser como sendo”,

assim como também sugere Mbembe. De certa forma, a visão de Wangrin sobre si mesmo

ilustra alguns elementos teorizados pelos dois filósofos: “Eu, Wangrin, antigo intérprete,

antigo ricaço, antigo escritor público, contador de histórias em exercício e animador de rua

sem patente [...]”. (BÂ, 1992, p. 348).25

Assim, como se vê, Wangrin é um sujeito em devir. As peripécias encenadas pelo

romance nos convidam a prestarmos atenção ao caminho, ao estado do gerúndio como

apontado por Glissant (2013): “o ser como sendo”. A definição de quem é Wangrin está no

processo. Não na estabilidade, mas na instabilidade, como sugere o subtítulo do romance: les

roueries d’un interprète africain. Trata-se de um destino fora do comum, “estranho” ou dos

“truques de um intérprete africano”. Como a palavra truque sugere, o que está em jogo nessa

narrativa é aquilo que parece ser, mas não é. Trata-se de uma estratégia, em que a manobra

interessa mais do que a permanência. O sujeito se dá, nesse sentido, como um contínuo em

25 “Moi, Wangrin, ancien interprète, ancien richard, ancien écrivain public, conteur en exercice et amuseur

public sans patente [...]”. (BÂ, 1992, p. 348).

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34

transformação. E esse constante devir nega a rigidez. Como crítica ao contexto colonial, o

romance acentua a importância de essa história sobre Wangrin ser inscrita na perspectiva de

um mundo ambivalente próprio do sistema colonial, ao mesmo tempo que apresenta o

personagem como alguém que escapa à permanência.

Nessa perspectiva de interpretação da lógica dicotômica e fragmentada da

colonização, observamos que a identidade de um sujeito colonial como Wangrin é múltipla,

ao contrário da imposição colonial. Temos um indivíduo que se compõe a partir de vários

elementos de culturas diferentes. Esse trânsito é produzido pela civilização colonizadora que,

por sua vez, contraditoriamente, decreta a impossibilidade de esse personagem exercer seu

multiculturalismo em ambiente que exige a rigidez da identidade fixa. Ao mostrar-se sempre

em devir, o personagem do romance desloca a ordem do sistema colonial que não permite que

o sujeito se encaixe, já que a etapa final da assimilação é impossível de ser atingida. Uma vez

expulso da lógica colonial, Wangrin se torna um “amuseur public”, ou seja, um personagem

similar aos artistas mambembes. Nesse momento, no seu final, ao se tornar um pária da

sociedade colonial, ele retorna à suas origens, integrando-se na tradição da oratória africana

dos contadores de história.

Dentro de um modo convencional de narrar, o romance de Hampaté Bâ apresenta o

tom seco dos relatos descritivos que pretendem ser fiéis aos fatos acontecidos, como o autor

faz questão de avisar no prefácio e no posfácio do livro. Ao se valer de elementos de um

realismo tido como clássico, por exemplo, a valorização de pormenores da vida do

personagem colonial, o escritor encena a violência do mecanismo de opressão característico

do sistema em que ele está inserido, muitas vezes aludindo a aspectos da tradição ancestral e a

elementos da mitologia haoussa. Com essa estratégia, o tom irônico da denúncia social

sobressaí à objetividade descritiva. Wangrin, um sujeito colonial, inserido na lógica nefasta

do colonialismo, mostra-se de caráter duvidoso, como acentuado pelo narrador que pondera e

não julga, preferindo relatar objetivamente as peripécias desse herói (quase) sem nenhum

caráter (CHRISTIAN, 2007).

O teórico sul-africano Harry Garuba (2018) discute a necessidade de uma

epistemologia que seja capaz de pensar uma nova conceitualização para as experiências

vindas dos contextos africanos, tais como as trazidas pelas obras literárias. Ao nos apresentar

outras formas de conhecimento, a obra de Amadou Hampaté Bâ mostra, através da encenação

de seus personagens, outros caminhos e novas possibilidades de expressão das identidades.

Procuraremos demonstrar que essa característica também está presente nos outros romances

que estudamos nesta tese.

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35

2.3 A identidade em O bebedor de vinho de palmeira

Muitas das estratégias legitimadas pela lógica colonizadora encenadas no romance de

Hampaté Bâ estão presentes no romance O bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro

morto na Cidade dos Mortos, de Amos Tutuola. Antes de iniciarmos a análise desse

romance, pensamos ser pertinente retomar algumas visões teóricas que nos ajudarão a

embasar o estudo pretendido.

Na perspectiva da lógica colonial, observamos uma prática de subjugação do homem

colonizado que atua desconstruindo o corpo do colonizado para que este possa ser utilizado

como força de trabalho. Tornado parte da máquina de produção moderna, o homem negro e

colonizado é apto a executar qualquer trabalho. Como peça dessa engrenagem, ele pode ser

descartável. Nessa lógica, como explicado por Memmi, “desmoronam-se todas as qualidades

que fazem do colonizado um homem”. A tal ponto que “a humanidade do colonizado,

recusada pelo colonizador, lhe torna opaca”. (MEMMI, 2012, p.104).

Mbembe, ao erigir seu pensamento sobre os estados de exceção que lançam as bases

do seu conceito de “necropolítica”, situa o longo processo de desumanização do negro desde

as situações coloniais do plantation. As práticas adotadas nas plantações, segundo o teórico,

são políticas que legitimam a execução de uma classe de gente considerada “matável”.

Segundo sua época e contexto, vários grupos podem ser enquadrados nessa lógica nefasta, a

saber, judeus, palestinos, sírios, ciganos, pobres em geral, e negros. Em diversos momentos

históricos, os negros continuam sendo classificados como “matáveis”. Segundo o filósofo

italiano, Giorgio Agamben, em sua análise sobre o direito de viver, ou de morrer, fixado pelos

Estados, em especial pelo Nazismo de Hitler “toda sociedade fixa esse limite”:

É como se toda valorização e toda “politização” da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente “vida sacra” e, como tal, pode ser impunemente eliminada. (AGAMBEN, 2012, p. 135).

Os considerados descartáveis, na lógica de Mbembe que também retoma a visão de

Agamben, ocupam um lugar semelhante ao dos colonizados desumanizados descritos por

Memmi. Ambos os estudiosos atentaram para um mesmo fenômeno: como seres humanos

tornam-se produtos descartados pelo sistema. Enquanto Memmi centra sua análise no

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36

momento colonial, Mbembe, alguns anos depois, com um pouco de distanciamento histórico,

é capaz de perceber o fenômeno de forma mais ampla e atualizá-lo.

Em seu artigo, Mbembe explica “As formas africanas de auto-inscrição”, que a

“identidade africana não existe como substância. Ela é constituída, de várias formas, através

de uma série de práticas, notavelmente as práticas do self.” (MBEMBE, 2001, p. 199). O

filósofo camaronês desenvolve, nesse artigo, um pensamento crítico em busca de significados

sobre a identidade africana a partir dos “significantes abertos”, que são a escravidão, a

colonização e o apartheid, responsáveis, segundo o filósofo, pela divisão do eu africano

(“divisão do self”). Essa divisão resultaria em “perda de familiaridade consigo mesmo, a

ponto de o sujeito, tendo se tornado um estranho para si mesmo, ser relegado a uma forma

inanimada de identidade (objetificação).” (MBEMBE, 2001, p. 174). Ao criticar as formas

modernas de se pensar a identidade africana, Mbembe descarta a definição do homem

africano de forma essencialista, a partir de um único termo. Para o filósofo, pensar a África

hoje requer novos paradigmas. Para tanto, é preciso considerar a possibilidade de “múltiplas

ancestralidades” (MBEMBE, 2001, p. 187), além de um trabalho sobre a memória, o que leva

a uma revisão das concepções de espaço e tempo “em sua relação com a memória e a

subjetividade.” (MBEMBE, 2001, p. 199). As ideias do teórico africano sustentam reflexões

sobre a construção de uma identidade não substancial, sem deixar de ser caracteristicamente

africana.

Na encenação literária feita na obra de Amos Tutuola, observamos como a

desconstrução do sujeito colonial está associada à imposição da lógica do trabalho, do

dinheiro e do acúmulo de riquezas, de acordo com os modos operantes do sistema

mercantilista capitalista. Essa lógica se encaixa com estranheza no ambiente tradicional da

oralidade, das lendas mitológicas, que são o fio condutor da narrativa de Tutuola. A narrativa

mitopoética de Amos Tutuola, O bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na

Cidade dos Mortos, é feita pelo próprio bebedor de vinho de palmeira, que viaja por matas

fantasmagóricas em busca de seu vinhateiro morto. Esse percurso do jovem protagonista pode

ser entendido como uma viagem iniciática, através da qual a questão identitária está sempre

trabalhada. David Whittaker, em seu artigo sobre o romance de Amos Tutuola, assinala,

citando a antropóloga Magaret Thompson Drewal, que:

a noção de “jornada” é um símbolo organizador importante no pensamento e nas crenças religiosas ioruba. Drewal argumenta que a jornada significa tanto um movimento físico ou uma trajetória pelo espaço quanto uma jornada ontológica que

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37

engendra uma transformação no entendimento do indivíduo, em relação a sua experiência e conhecimento anteriores. (WHITTAKER, 2001, p. 9).

26

Na perspectiva de um sentido ontológico, a jornada do bebedor de vinho de palmeira

pode ser interpretada como uma representação literária do que Harry Garuba (2018) considera

ser o animismo. O professor da Universidade de Cape Town explica que “o pensamento

animista espiritualiza continuamente o mundo-objeto” e acrescenta: “Refiro-me a esse código,

a essa lógica do pensamento animista, como o ‘inconsciente animista’, um inconsciente que

opera basicamente numa recusa de bordas, binarismos, demarcações e linearidade da

modernidade.” (GARUBA, 2018, p. 130). Nesse contexto, notamos que o entendimento

universalista que molda o mundo tal qual o conhecemos pode não ser válido para todas as

culturas. Entramos na literatura nigeriana de Amos Tutuola sabendo que tempo e espaço não

são medidos segundo nossa tradição cartesiana. A lógica animista é uma recusa de conceitos

modernos legitimados.

Na viagem empreendida pelo protagonista do romance de Tutuola, cada aventura

vivida por ele parece ser uma unidade narrativa quase independente, o que assegura a

percepção do romance como uma sequência de pequenos contos, de acordo com as narrativas

da tradição oral, cujo interesse maior é a própria contação. No entanto, essas unidades

narrativas, muitas de caráter mitológico, não são realmente independentes. Apesar de cada

unidade ter o seu próprio título e se passarem em lugares diferenciados, elas estão atreladas ao

processo de amadurecimento do herói, que sai da casa do pai como um jovem inexperiente e

retorna como um homem maduro.

Durante sua viagem, o bebedor experimenta os desafios de mudanças de forma como

se elas fossem naturais, uma coisa ordinária a se fazer. Assim, mesmo quando se transforma

em pássaro, em canoa, em lagarto, ou até mesmo em ar, ele o faz para vencer os desafios

colocados no seu caminho e atingir o seu objetivo. O herói nos leva a questionar sua

identidade a cada vez que escapa de um perigo. Ele prova, de fato, ser um deus que pode fazer

tudo e qualquer coisa. Ao mesmo tempo, ser um deus não tira dele a obrigação de vivenciar

todas as provas que são colocadas em seu caminho. Esse é o sofrimento intrínseco ao ritual de

passagem vivido pelo herói.

Embora o romance de Tutuola abale a concepção linear de tempo e espaço, os eventos

narrativos que relatam a sequência de aventuras vividas pelo personagem são cronológicos. 26 “the notion of ‘the journey’ is an important organizing symbol in Yoruba thought and religious belief. Drewal

argues that it signifies both a physical movement or trajectory through the landscape and ontological journey that engenders a transformation in the individual’s understanding, in relation to their prior experience and knowledge”. (WHITTAKER, 2001, p. 9).

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38

Nesse sentido, é possível dizer que o romance retoma um tema abordado no mito de Orfeu e

Eurídice e na epopeia latina Eneida, de Virgílio: a jornada de um personagem em busca de

um morto. No romance, o protagonista se lança num longo caminho para resgatar seu

vinhateiro, que caiu de uma palmeira e morreu, deixando-o sem seu precioso vinho, o único

líquido que ele podia beber.

Sobre a estrutura da narrativa, é importante observar que o narrador é o protagonista

que nos conta a sua história em primeira pessoa, à medida que os fatos acontecem. O que

pode ser significativo, pois o próprio personagem é quem tem o controle sobre a história que é

contada, entregando-nos um relato a partir de seu ponto de vista. Desse modo, ele é o sujeito

da ação em duas instâncias: ao compor a narrativa como um protagonista ativo e ao relatá-la

em primeira pessoa.

Num primeiro momento, o narrador se apresenta como um especialista na arte de

beber vinho de palmeira:

Ele [meu pai] tinha oito filhos, e eu era o mais velho. Os outros eram trabalhadores esforçados, mas eu era apenas um perito bebedor de vinho de palmeira. Começava a beber de manhã e continuava pela noite adentro. Àquela altura já não conseguia beber água comum, mas apenas vinho de palmeira. (TUTUOLA, 1970, p. 5).

Como alguém não apto ao trabalho, ao se apresentar na primeira página do romance, o

protagonista argumenta a favor de si mesmo, justificando, de certa forma, sua ação futura de

partir em busca do vinhateiro. Ele se lançará na jornada rumo ao mundo dos mortos como se

não houvesse outra coisa a fazer, uma vez que “já não conseguia beber água comum” e não

trabalhava como os outros irmãos.

O enredo, como anunciado nessas primeiras páginas, necessita de um leitor que

compactue com uma narrativa que não é realista, no sentido estrito do termo. Os limites do

mundo material, tal como o conhecemos, não têm efeito nessa história, pois desde o início nos

é dito que o protagonista irá resgatar seu vinhateiro da Cidade dos Mortos. O bebedor

apresenta uma justificativa razoavelmente lógica para sua empreitada: “[...] lembrei que os

velhos costumavam dizer que todas as pessoas que morriam não iam diretamente para o céu,

que ficavam morando em algum lugar deste mundo.” (TUTUOLA, 1970, p. 7). O personagem

explica sua ação como óbvia, e continua argumentando: “Sendo assim, resolvi que iria

descobrir onde estava o meu preparador de vinho de palmeira.” (TUTUOLA, 1970, p. 7).

Nesse momento, o discurso do narrador estabelece o pacto de leitura. Para prosseguir na

narrativa, o leitor deve acreditar que a viagem anunciada é possível porque a fronteira entre

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vida e morte não é fixa. No mundo narrado, não existem barreiras intransponíveis, o que

permite que o bebedor procure por seu vinhateiro morto “em algum lugar” em que vivos e

mortos ainda habitam o mesmo mundo.

Podemos dizer que a partir da proposta do protagonista fica legitimado o que Mbembe

chama de espaço fantasmal, “onde tudo se passa num presente indefinido. O antes e o depois

são abolidos, as lembranças são desestabilizadas e a multiplicação domina. Em suma, a vida

mostra-se através de ranhuras e mutilações” (MBEMBE, 2003, p. 798). Nesse sentido, não há

lembrança, os eventos se acumulam e se sucedem nesse espaço que, a rigor, é tudo o que

ultrapassa as terras do pai do bebedor de vinho. Também não há oposição nesse domínio, a

contradição entre mortos e vivos é abolida, e as criaturas existem, estando vivas ou mortas,

sendo espíritos ou humanos.

Vale destacar que, na versão original em inglês, a cidade em que ele vive é

especificada como sendo a cidade natal do pai do protagonista. A versão original diz: “[...] I

left my father’s hometown [...]”. Uma tradução literal seria: “e saí da cidade natal de meu

pai”. Essa informação é importante para observamos que a mudança de identidade se dá com

a saída do personagem de seu mundo seguro, as terras do pai. A saída da casa do pai reforça a

interpretação dessa jornada como uma viagem iniciática, do amadurecimento do jovem

bebedor.

Mbembe, ao analisar o romance, considera que a “morte brutal e prematura do

vinhateiro constitui, de muitas maneiras, uma castração fantástica: a acoplagem entre o licor

seminal e poder narcisista é, de repente, abolido.” (MBEMBE, 2003, p. 800).27 A ferida

narcísica necessária para o processo de individuação do sujeito que constitui a separação da

criança de seus progenitores é representada nessa narrativa pela morte do vinhateiro. Mbembe

explica ainda:

De maneira geral, uma tragédia tendo por objeto central a fratura, até mesmo a perda do “ego”, situa-se na origem de tudo. A incapacidade do sujeito de dominar seus desejos e de assumir a falta – a ausência do prazer que estava, antes, associada à realização do desejo – estão na origem desta fratura e desta perda. (MBEMBE, 2003, p. 799).

28

27 “La mort brutale et prématurée du cueilleur de vin constitue, à bien des égards, une fantastique castration : le

couplage entre la liqueur séminale et la puissance narcissique est, soudain, aboli.” (MBEMBE, 2003, p.800). 28 “De manière générale, une tragédie ayant pour objet central la fracture, voire la perte de l’ ‘ego’ se situe à

l’origine de tout. Cette fracture et cette perte ont pour origine l’incapacité du sujet à maîtriser ses désirs et à assumer le manque – l’absence de la jouissance qui était, au préalable, associée à l’accomplissement du désir.” (MBEMBE, 2003, p. 799).

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40

A insatisfação do personagem ao se deparar com a falta é clara. Logo após a

constatação da morte do vinhateiro, ele relata: “No dia seguinte, logo de manhã cedo, já não

tinha vinho de palmeira para beber, e durante todo aquele dia não me senti feliz como de

costume.” (TUTUOLA, 1970, p. 7). A frustração do sujeito é clara e imediata. Algo se

rompeu no paraíso onde o personagem tinha satisfação plena. A interpretação de Mbembe

elucida a situação: “Nessa troca entre o desejo e a satisfação, o vinhateiro representava a

metáfora viva do órgão fálico e a mediação sem a qual não existia nenhum contentamento. É

efetivamente o trabalho do vinhateiro que dava ao sujeito o meio de se amar: sua potência

narcísica.” (MBEMBE, 2003, p. 800).29

A partir desse rompimento, a viagem do bebedor de vinho em busca de seu vinhateiro

morto delineia os contornos de uma viagem de individuação de um personagem que assume o

arquétipo de herói.

A jornada de muitos Heróis é a história dessa separação da família ou da tribo, equivalente ao sentido de separação da mãe, que uma criança vivencia. O arquétipo do Herói representa a busca de identidade e totalidade do ego. [...] A tarefa psicológica que todos enfrentamos é integrar essas partes separadas em uma entidade completa e equilibrada. O ego — isto é, o Herói que acha que é separado de todas essas partes de si mesmo — deve incorporá-las para se tornar um ser integral. (VOGLER, 2006, p. 52).

A morte do vinhateiro pode ser entendida, levando-se também em consideração a

interpretação de Mbembe, como a separação da mãe, essa fonte que alimenta todos os desejos

da criança, mas da qual sua separação é inevitável como condição de desenvolvimento do

indivíduo. Nesse contexto, o bebedor pode ser entendido como um arquétipo de herói,

segundo as teorias de Vogler e Mbembe.

A trajetória do bebedor de vinho de palmeira é composta de eventos míticos que fazem

parte da cosmogonia ioruba, como, por exemplo, a história do bebê que nasce do polegar da

mulher. Sendo o mais velho dos irmãos e o único que não trabalhava, o protagonista, ao se

lançar nessa estrada mítica para resgatar seu vinhateiro morto, passa a se nomear “Pai dos

deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo” (TUTUOLA, 1970, p. 9). Há, portanto,

logo no início da narrativa, uma mudança na identidade do protagonista. O personagem migra

da imagem de bebedor de vinho para a autonomeação de um deus todo poderoso. Essa é uma

primeira transformação simbólica: de um ser inútil, ele se torna capaz de todas as ações.

29 “Dans cet échange entre le désir et sa satisfaction, le cueilleur représentait la métaphore vivante de l’organe

phallique et la médiation sans laquelle il n’existait point de contentement. C’est en effet le travail du cueilleur qui procurait au sujet le moyen de s’aimer soi-même : sa puissance narcissique.” (MBEMBE, 2003, p. 800).

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41

Quando sai à procura de seu vinhateiro, o protagonista embrenha-se em matas e florestas, em

cidades e aldeias, sempre à procura daquele incumbido de preparar-lhe o vinho. Após sete

meses de caminhada, ele encontra um velho que exige dele a recuperação de um objeto que

está em poder de um ferreiro, para provar que ele é mesmo o “Pai dos deuses” (TUTUOLA,

1970, p. 10). Em troca, ele receberá a informação de onde está seu vinhateiro morto. O

protagonista explica: “[O velho] acrescentou que, se fosse capaz de trazer a coisa certa, ele

então acreditaria que eu era o ‘Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo’, e

me revelaria onde estava o meu vinhateiro.” (TUTUOLA, 1970, p. 9). Esse é o primeiro

desafio do herói, que deverá vencer os diversos obstáculos que lhe serão apresentados até

alcançar seu objetivo final. O desafio é a resolução de uma charada e se dá, portanto, entre o

bebedor que se considera deus, porque possui os jujus seus e de seu pai, e o velho, que

também “não era um homem de verdade, era um deus.” (TUTUOLA, 1970, p. 8). O bebedor,

como “Pai dos deuses”, precisa adivinhar qual é o objeto a ser resgatado e entregá-lo ao

“velho (deus)”. Na cena, a natureza do ser, se é deus ou humano, é questionada quando a

capacidade do herói de executar determinada tarefa é posta à prova.

Nessa jornada em que a identidade do sujeito está sendo amadurecida, é importante

considerar que a conexão do protagonista com sua linhagem e seus ancestrais,

simbolicamente, representa uma tomada de poder. O personagem relata: “Então, numa linda

manhã, peguei todos os meu jujus e também os jujus de meu pai, e saí da cidade disposto a

descobrir o paradeiro do meu vinhateiro.” (TUTUOLA, 1970, p. 8). Esse ato é simbólico,

pois, ao tomar para si os amuletos do pai morto, é como se ele tomasse a bênção de seu

ancestral. Assim, mesmo que ele vá sozinho nessa viagem de busca pessoal, há um sentido de

pertencimento a uma comunidade, no simbolismo da tomada dos jujus de seu pai e na

explicação de fazer como “os velhos costumavam dizer” (TUTUOLA, 1970, p. 7). Esses jujus

são os amuletos, os elementos mágicos que possibilitam as transformações físicas pelas quais

o personagem passará para enfrentar os obstáculos de sua jornada. Desde que um obstáculo se

interponha entre o herói e seu objetivo, ele usa um dos seus jujus e se transforma: “usei um

dos meus jujus e no mesmo instante me transformei num enorme pássaro”. (TUTUOLA,

1970, p. 9).

Assim, não importa o animal ou mesmo a coisa em que o personagem é capaz de se

transformar, o objetivo é transpor uma etapa. Como mais adiante, em outra situação, o

personagem relata: “Eu, que o estava seguindo, mas não queria que ele percebesse, usei um

dos meus jujus e me transformei num lagarto.” (TUTUOLA, 1970, p. 25). O jovem bebedor

se define, então, como sendo um homem que possui jujus, amuletos que lhe conferem

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superpoderes, e, ao mesmo tempo, um deus: “Mas eu também era um deus e tinha meus

jujus.” (TUTUOLA, 1970, p. 9). A aparente instabilidade das mudanças de forma é

assegurada pela posse e por sua condição especial de ser um deus. Como um deus, o bebedor

pode fazer qualquer coisa com os jujus, pode vencer os obstáculos, transformando-se em

animais e em objetos.

A primeira vez que o protagonista usa de tal artifício é para descobrir qual é a “coisa

certa” que deve entregar ao velho. O narrador se transforma em pássaro e de cima do telhado

escuta uma conversa entre o velho e sua mulher, conseguindo a informação de que a “coisa

certa” era um sino que ele deveria recuperar do ferreiro. Entregando o sino ao velho, ele

consegue provar sua identidade de deus e obter a informação sobre o paradeiro de seu

vinhateiro morto.

Devemos considerar que a saída da casa do pai em busca do vinhateiro

simbolicamente se relaciona com a decisão de levar consigo a marca da linhagem familiar que

o conecta com sua origem, os amuletos de seu pai. Esse ato é simbólico, pois, ao tomar para si

os amuletos do pai morto, ficam legitimadas sua jornada e a afirmação de seu pertencimento a

uma comunidade que respeita aquilo que “os velhos costumavam dizer” (TUTUOLA, 1970,

p. 7). A ligação que o protagonista estabelece com seus ancestrais se dá também através da

memória, num exercício de reflexão interna. No original, o bebedor diz: “[…] then I thought

within myself that old people were saying that the whole people who had died in this world

[…]” (TUTUOLA, 2014, p. 5, grifo nosso). O que o personagem descreve como um

pensamento reflexivo, traduzindo literalmente o sublinhado como “pensei comigo mesmo”, é

traduzido, na versão brasileira, pelo verbo “lembrar”, que substitui bem esse ato de reflexão

interna descrito pelo personagem como uma rememoração de um ensinamento: “lembrei que

os velhos costumavam dizer que [...].” (TUTUOLA, 1970 p. 7). A memória é o elo entre o

passado, que explica e justifica sua decisão, e a atitude futura de se lançar na estrada.

Ainda em consideração ao original em inglês, é importante considerar que o tempo

verbal “were saying”, traduzido por “costumavam dizer”, expressa a permissão dos mais

velhos para a realização da viagem ao mundo dos mortos. Nesse processo de mudança de

identidade de um bebedor que se torna deus, “pegar” os jujus de seu pai é também assumir o

poder paterno para si.

A fala dos mais velhos também confere um sentido ritualístico à viagem do

protagonista, que pode ser interpretada de acordo com o que diz Campbell:

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43

Os chamados ritos [ou rituais] de passagem [...] têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido. (CAMPBELL, 2007, pp. 20-21.)

A decisão do protagonista está de certa forma atrelada ao que diz Leda Martins sobre o

entrelaçamento entre os tempos promovido pela memória:

A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, contingências naturais, necessários na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. [...] Nessa sincronia, o passado pode ser definido como o lugar de um saber e de uma experiência acumulativos, que habitam o presente e o futuro, sendo também por eles habitado [...] a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo mas a sua concepção linear e consecutiva. (MARTINS, 2002, pp. 84-85).

Esse movimento espiralar, de um “pretérito contínuo”, como dito por Martins, está em

acordo com a leitura de Mbembe sobre a obra de Tutuola, quando o filósofo observa que, no

domínio fantasmal, impera um “presente indefinido”, em que as “lembranças são borradas”;

na espiralidade temporal que abole a linearidade, a “multiplicação domina” (MBEMBE, 2003,

p. 789). Os eventos se sucedem, e as possibilidades de existência parecem ser infinitas, nesse

reino de criaturas e transformações.

No entanto, mesmo num romance em que predomina o ambiente mítico e

fantasmagórico por onde o bebedor caminha em busca de seu vinhateiro morto, existem

referências específicas à presença colonial britânica nas terras iorubas. Ao marcar seus passos

pelas matas fantasmagóricas com as unidades de medida do sistema anglo-saxão, o

personagem mescla elementos da colonização britânica ao ambiente tradicional da cultura

ioruba. Por exemplo, notamos que o sentido de trabalho impõe novas formas de

relacionamento entre as culturas tradicional e colonizadora, sendo uma noção perturbadora no

mundo tradicional ioruba. Trabalhar não é um esforço para atingir um objetivo ou a realização

de uma tarefa necessária, mas implica um esforço que necessita ser recompensado. Trabalhar

para alguém e ser pago por isso é estranho para a lógica ioruba. No romance, o trabalho pode

ser interpretado como algo abstrato. Mas, mais do que isso, o trabalho é uma das formas

institucionais do sistema colonial de subjugar o homem negro.

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As transformações físicas do personagem em outras formas que lhe permitam

sobreviver aos perigos que se interpõem ao seu caminho não deixam de ser uma

demonstração de força do herói. Do mesmo modo, seus superpoderes alcançados através do

seu amuleto mágico – os jujus – lhe dão condição de vencer os perigos e transpor os

obstáculos. No âmbito da narrativa mítica, essas estratégias estão legitimadas. No entanto, a

exigência de dinheiro para comprar comida surge como uma quebra da lógica desse mundo

em que se situa o protagonista. Ele precisa de dinheiro para comprar comida, pois não pode se

transformar nela. É exigido dele o atendimento de uma outra lógica em que se inscrevem

termos como trabalho e dinheiro.

Como estávamos sem dinheiro, fiquei imaginando como poderia consegui-lo para comprar a nossa comida, etc. Foi aí que eu me lembrei que o meu nome era “Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo”. [...] Chegando ao rio, cortei um pedaço de uma árvore e com ele fiz um remo. [...] Quando já estávamos dentro da água, eu dei uma ordem ao meu juju (que um espírito bondoso, que era meu amigo, havia me dado), e imediatamente ele me transformou numa grande canoa. Então a minha mulher entrou na canoa, e remando, ela usou o barco para transportar os passageiros pelo rio. O preço da passagem para adultos era de três cents, e as crianças pagavam apenas meia passagem. À noite, eu me transformei novamente num homem, e ao conferirmos o dinheiro que havíamos ganho naquele dia, havia sete libras, cinco xelins e três pence. Em seguida fomos para a cidade, e compramos tudo de que precisávamos. (TUTUOLA, 1970, pp. 41-42).

É interessante notar, nas peripécias do herói, que a necessidade de dinheiro para ter

acesso à comida tem mais destaque do que a própria fome que deveria ser o motor para

encontrar meios de saciá-la. Nessa passagem, como em outras do romance, a fome é

assinalada como um problema a ser resolvido. A resolução do problema se dá pelo

enfrentamento da questão de como conseguir dinheiro e pela obediência ao sistema de

trabalho remunerado, que atribui uma função a cada um: o homem transformando-se em

canoa apta à travessia do rio, a mulher cobrando pela travessia de passageiros. A solução

mágica de permitir que o protagonista se transforme em canoa não abole inteiramente o

obstáculo. É preciso que novas ordens sejam obedecidas para que o problema seja resolvido,

como a obtenção de dinheiro para comprar a comida.

O preço cobrado pela travessia do rio é especificado na narrativa ressaltando a

importância do dinheiro como moeda de troca no serviço de transporte. Não nos é possível

saber quanto valeriam os “cinco xelins e três pence” mencionados, basta-nos notar que, na

travessia, adultos e crianças pagavam um valor diferente, e que a soma dessa transação

resolveu toda a necessidade que os personagens tinham naquele momento.

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Assim, é o dinheiro que resolve tudo: compra a comida para matar a fome. Nesse

episódio, elementos da colonização britânica se mesclam ao ambiente da cultura autóctone. O

que a cena descreve é uma situação em que o trabalho se torna a solução do problema da

fome, sendo valorizada a função do dinheiro. É interessante ressaltar que, sendo o bebedor um

“pai dos deuses”, seria de se esperar que pudesse solucionar o problema da fome sem precisar

de dinheiro. A mistura de elementos advindos de processos culturais diferentes esclarece a

dinâmica narrativa escolhida pelo autor do romance.

Assim, de acordo com a perspectiva filosófica de Mbembe, na narrativa de Tutuola:

Toda a estrutura da existência é tal que, para viver, deve-se constantemente escapar à permanência. Pois esta carrega a precariedade. Ela expõe à vulnerabilidade. A instabilidade e a mobilidade, ao contrário, oferecem possibilidades de fuga e de escapada. Mas a fuga e a escapada carregam também o perigo. (MBEMBE, 2003, p. 820).

30

As formas que o personagem assume são, portanto, sua possiblidade de sobreviver aos

perigos que se entrepõem no seu caminho. Mas toda essa capacidade de transformar comporta

seus próprios riscos, como na seguinte situação: “Foi aí que me lembrei de um dos meus jujus

e ordenei que ele nos fizesse parar, porém em vez disso começamos a nos mover mais

depressa ainda.” (TUTUOLA, 1970, p.63). Percebe-se então que as tradições africanas se

mesclam aos valores da colonização, fazendo com que o personagem assuma uma identidade

entrelaçada.

Essa identidade entrelaçada – própria de um processo que se efetiva ao longo da

viagem à Cidade dos Mortos e à volta à casa do pai – impõe-se ao mesmo tempo que

fronteiras estáveis precisam ser ultrapassadas. O mundo dos mortos não se separa

inteiramente do mundo dos vivos. Ao mesmo tempo que a identidade do herói é

constantemente posta à prova pelos diversos obstáculos, ao transpô-los com a ajuda dos

amuletos, os jujus, ou com a assunção de valores da lógica colonial, ele reafirma seu

pertencimento a uma determinada tradição, ao mesmo tempo que a ultrapassa.

Percebemos, portanto, que a viagem iniciática do bebedor ao mundo dos mortos

promove um deslocamento de conceitos a princípio considerados estáveis. Se levarmos em

consideração que o romance foi publicado em 1952, no final da presença dos colonizadores

britânicos que chegam às terras iorubas com a missão civilizadora, é possível notar os

30 “Toute la structure de l’existence est telle que, pour vivre, il faut constamment échapper à la permanence. Car

celle-ci est porteuse de précarité. Elle expose à la vulnérabilité. L’instabilité et la mobilité en revanche offrent des possibilités de fuite et d’échappée. Mais la fuite et l’échappée sont, elles aussi, porteuses de danger.” (MBEMBE, 2003, p. 820.)

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processos de misturas que o romance encena. Os colonizadores leem os costumes culturais

iorubas como estranhos e não os legitimam. O romance mostra que a recíproca também é

verdadeira. Ao misturar elementos da cultura britânica com as lendas iorubas, o romance

causa estranheza quando, por exemplo, insere a lógica do trabalho remunerado e do valor do

dinheiro, pences e xelins, numa história formatada pelas lendas da tradição oral ioruba. Dessa

maneira, o romance questiona o sentido da lógica do trabalho, o valor do dinheiro e, em

última instância, a lógica colonial, ao mesmo tempo que afirma uma outra concepção de

mundo que, por exemplo, permite a transição entre o mundo dos mortos e o dos vivos e

pratica um modo de identidade fluida.

Nessa interseção cultural, o trabalho e a riqueza são questionados, apesar de serem

assumidos como prática. Como vimos, na apresentação que o protagonista faz de si mesmo,

ressalta sua incapacidade para o trabalho em oposição aos outros irmãos trabalhadores. Em

outro momento, a acumulação de posses é questionada diretamente por um personagem

chamado de “devedor invisível”, quando este pede emprego ao bebedor, nessa altura um rico

fazendeiro. “Contou-me que estava sempre ouvindo a palavra ‘pobre’, mas não sabia qual o

seu significado, e gostaria de saber. Pediu-me emprestada certa quantia de dinheiro, e em

troca trabalharia para mim como um empregado permanente.” (TUTUOLA, 1970, p. 96).

Nessa citação, a referência feita ao dinheiro destaca os que não o têm, fazendo de “pobre”

uma palavra estranha ao ambiente tradicional do herói, comprovando nossa interpretação de

que o mundo colonial britânico era estranho para os colonizados.

Algumas questões podem ser postas a partir das relações criadas pelas encenações do

trabalho e dinheiro na narrativa. Pode o esforço humano ser trocado por quantos cauris ou

xelins ou pences? Como uma determinada quantia de dinheiro “equivale” a um trabalho feito,

a um bem, uma coisa, ou mesmo um sentimento? Consideremos a seguinte passagem: “Antes

de entramos na árvore branca, ‘vendemos a nossa morte’ para alguém à porta, pela quantia de

setenta libras, dezoito xelins e seis pence, e ‘emprestamos o nosso medo’ a juros de três libras

e dez xelins por mês.” (TUTUOLA, 1970, p. 74). Assim, a colonização aparece como

assunto importante, mesmo que em vários episódios esteja referida apenas nas entrelinhas

desse romance assumidamente de caráter mitopoético. É então válido notar como o trabalho a

ser desempenhado pelo protagonista, no exercício de sua trajetória pelo mundo fantasmal, é

pago pelo dinheiro inglês, fazendo com que uma peripécia do mundo tradicional seja

contabilizada em dinheiro britânico. Para entrar na Árvore Branca, saindo da Cidade das

criaturas cruéis, o protagonista e sua mulher precisam vender alguns pertences: a morte e o

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medo são trocados pelo dinheiro inglês. Tudo indica que a moeda corrente nesse mundo

mitológico está definida pela cultura inglesa.

Em outro momento, o narrador faz referência ao que pode ser visto como uma crítica à

imposição de trabalho no mundo colonial, destacando que “A verdade é que nenhuma criatura

é pequena demais para ser escolhida para trabalhar.” (TUTUOLA, 1970, p. 53). Percebemos

como a desconstrução do homem, simbolicamente chamado de criatura, passa pela

desumanização. Trata-se do que é considerado humano ou não pelo imperialismo colonial, de

acordo com a análise de Memmi sobre o processo de desumanização dos colonizados

realizado pelo colonialismo na África. Desse modo, a violência do mundo colonial é

simbolicamente referida na seguinte passagem do romance. Assim, o narrador relata sua

entrada na cidade:

Ao entrar, vimos criaturas que nunca tínhamos visto antes na vida e eu não posso descrevê-las aqui; no entanto, posso contar algumas de suas histórias: a cidade era muito grande e repleta de criaturas estranhas, e tanto os adultos como as crianças eram muito cruéis com os seres humanos. Apesar disso, elas procuravam encontrar novas maneiras para tornar as suas crueldades ainda piores. (TUTUOLA, 1970, p. 64).

A crueldade é explícita na “cidade das criaturas cruéis” e não há meio possível de

explicar ou descrever a que ponto essas criaturas eram violentas. Na tentativa de “contar

algumas de suas histórias”, o que se sucede é a descrição de situações de nonsense absoluto.

Ao fazermos uma analogia com o terror cometido contra as populações africanas nos diversos

períodos em que os europeus exploraram o continente, não é possível ler descrições como as

que são colocadas pelo narrador na pauta da ironia. O que fica é mesmo a falta de sentido da

violência gratuita e a falta de humanidade daqueles que praticam os atos de violência. Seria a

impossibilidade do encontro com o Real, segundo Lacan. A violência é tal que escapa a

qualquer possibilidade representativa. Os sujeitos se tornam fantasmas, ou apenas criaturas.

Assim, no mundo fantasmal do bebedor de vinho de palmeira, eles são criaturas cruéis e

estranhas: “Se algum ser humano entrasse ali por engano, as estranhas criaturas o pegariam e

começariam a cortar o seu corpo em pedacinhos. Algumas vezes, com uma faca afiada elas

furavam os olhos das pessoas e assim as deixavam até que morressem de tanta dor.”

(TUTUOLA, 1970, p. 65).

Nesse mundo fantasmal, podemos entender que a exigência de trabalho trazido pela

colonização britânica é o que desumaniza o homem negro. O corpo negro é despedaçado para

ser significado apenas como força para o trabalho. A identidade mágica e mitológica do

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48

protagonista se confronta com situações em que o sujeito colonial assume uma identidade

despedaçada. De um lado, o protagonista, de outro, o corpo coletivo representado pelas

diversas criaturas que ora remetem os colonizados ora os colonizadores.

Há ainda outros exemplos em que o protagonista associa a fome ao dinheiro e ao

trabalho. Ao destacar essas situações, o romance acentua novas formas de interação com o

ambiente criado pela colonização britânica. O dinheiro e o trabalho, assim como suas causas

ou consequências, a riqueza e a pobreza, são pontuados ao longo da trajetória do herói que

começa se apresentando da seguinte forma:

Desde menino, com dez anos de idade, eu já era bebedor de vinho de palmeira. Não fazia outra coisa senão beber vinho de palmeira. Naquela época não conhecíamos outro dinheiro a não ser o cauri, de maneira que tudo era muito barato, e meu pai era o homem mais rico de nossa cidade. (TUTUOLA, 1970, p. 5).

Na leitura que faz do romance, Mbembe refere-se a um “sujeito de trabalho” e ao

significado que essa relação tem na obra. Nas palavras do filósofo:

Num tal universo, o sujeito aparece, não como uma entidade feita de uma vez por todas, mas como um sujeito para o “trabalho”. O trabalho ele mesmo é uma atividade permanente. A vida se esquiva sob figuras sucessivas que constituem tantas “experiências”. Ela corre como um fluxo. O sujeito da vida é um sujeito de trabalho. [...] O “trabalho pela vida” consiste então em capturar a morte e trocá-la por outra coisa. Desse ponto de vista, a moeda da vida é a morte.

31 (MBEMBE,

2003, p. 813).

De acordo com a análise de Mbembe, o que está sendo descrito, a partir da violência

fantasmal e do corpo desse sujeito fantasmático, é a desumanização do sujeito colonial, nesse

caso, do negro. Uma vez que lhe é retirada toda humanidade, esse homem pode se tornar

qualquer coisa, passível de qualquer trabalho e, até mesmo, descartável.

Vê-se, portanto, que assim como faz Hampâté Bâ, em L’étrange destin de Wangrin,

as contradições do colonialismo se mesclam ao mundo tradicional africano também n’O

bebedor de vinho de palmeira. No romance francófono, com uma narrativa de caráter

realista, ressaltam-se as características da administração colonial francesa, com a contratação

do intérprete africano como peça dessa máquina colonial. No romance de Amos Tutuola, os

valores do colonialismo, principalmente os referentes à lógica do trabalho remunerado e à

31 “Dans un tel univers, le sujet apparaît, non comme une entité faite une fois pour toutes, mais comme un sujet

au ‘travail’. Le travail lui-même est une activité permanente. La vie s’esquisse sous des figures successives qui constituent autant de ‘vécus’. Elle coule à la manière d’un flux. Le sujet de la vie est un sujet au travail. […] Le ‘travail pour la vie’ consiste donc à capturer la mort et à l’échanger contre autre chose. De ce point de vue, la monnaie de la vie est la mort.” (MBEMBE, 2003, p. 813).

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49

divisão de classe, permeiam o universo mitológico das histórias orais autóctones. Nos dois

romances, embora seja evidente a defesa de uma identidade ancestral africana, demonstra-se

que ela é atravessada por valores e concepções próprios da colonização francesa e inglesa.

2.4 Identidade em Terra sonâmbula

O romance Terra sonâmbula, de Mia Couto, também instiga a reflexão acerca do

tema da identidade. De pronto, percebemos que a representação dos personagens desafia

conceitos mais rígidos já consolidados sobre o tema, que presumem unidade e fixidez. O

romance nos apresenta sujeitos fragmentados à procura de reconstruir sua própria história,

juntando destroços, histórias e memórias, estratégia confirmada pela estrutura não linear do

romance.

O personagem Kindzu, cujas memórias são acessadas por Muidinga e Tuahir, é um

exemplo de identidade fragmentada. Pela leitura dos cadernos deixados por ele, temos

conhecimento do seu desejo de ir ao encontro dos naparamas, a fim de, como eles, tornar-se

um guerreiro. Pelos mesmos escritos, temos conhecimento de que faz parte da história do

jovem soldado encontrado morto o sentimento de orfandade, em consequência das muitas

perdas com que teve de conviver ao longo de sua curta existência: “Eu agora estava órfão da

família e da amizade. Sem família, o que somos? Menos que poeira de um grão. Sem família,

sem amigos: o que me restava fazer? Única saída era sozinhar-me, por minha conta, antes que

me empurrassem para esse fogo que, lá fora, consumia tudo.” (COUTO, 2007, p. 28).

Observamos nessa fala de Kindzu que sua representação é feita pela desconstrução.

Kindzu se descreve como alguém que existe na falta, “sem família, sem amigos”, portanto,

sem vínculos e sem afetos. Estar sozinho aparece como uma condição inevitável imposta não

como opção do personagem, mas pela situação de guerra que destruiu sua vida. Sendo assim,

não lhe resta opção viável, já que escolher o fogo é se entregar à morte, que é o fim de tudo, a

aniquilação total do sujeito. A metáfora “esse fogo que, lá fora, consumia tudo” alude à guerra

e, consequentemente, à própria morte. Esse é o caminho que o personagem tenta evitar.

Com essa passagem, notamos como a representação da identidade do personagem

delineia-se a partir de um princípio de desconstrução daquilo que a modernidade legitimou

como relativo à família e ao indivíduo. Por isso, em suas memórias, fica patente que a solidão

foi a saída ditada pela necessidade de sobrevivência, de fugir da guerra. A fuga da guerra

implicará contatos múltiplos, em convivência com a diversidade. De certa forma, pela

memória do personagem ficam explícitas formas de desconstrução/construção de movimentos

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que consideramos característicos do conceito “Todo-mundo”, do teórico Édouard Glissant.

Para o teórico, o “Todo-mundo” aceita novas configurações identitárias que subvertem uma

visão de identidade delineada a partir de uma raiz única. O pensamento do teórico concretiza-

se na visão de mundo do personagem Bezaudin, do seu romance Tout-monde:

Deste modo, o que eles têm em comum, o antigo senhor e o antigo oprimido, é precisamente a crença que a identidade é um tronco, que o tronco é único, e que ele deve prevalecer. Vá além de tudo isso. Vá! Exploda essa rocha. Recolha os pedaços e distribua-os estendidos. Nossas identidades se alternam e, somente dessa forma caem em vã pretensão essas hierarquias escondidas, ou que forçam sub-repticiamente a se manter sob o louvor. Não consinta a essas manobras do idêntico... Abra ao mundo o campo de sua identidade. (GLISSANT, 1993, p. 185).32

Aceitando a diretriz de Glissant, que propõe ir além, observamos como deslocamentos

e trânsitos estão presentes no romance Terra sonâmbula como estratégia de construção

identitária. Kindzu se depara com a brutalidade da guerra que destruiu o país e parte à procura

dos guerreiros naparama. Do mesmo modo, Tuahir e Muidinga são apresentados, no início do

romance, como seres deslocados que vagam pelos destroços dessa mesma guerra. Muidinga,

Tuahir e Kindzu são, portanto, sujeitos despedaçados cujas subjetividades foram sequestradas

pela guerra. Como desdobramento dessa fragmentação identitária, notamos que, nas histórias

relatadas nos cadernos de Kindzu, alguns personagens, para escaparem da guerra, assumem a

representação de seres inumanos, por exemplo, os personagens Junhito, Taímo e, em certa

medida, Farida.

Esses personagens se metamorfoseiam no contexto de guerra em que vivem. O caso

mais explícito é o de Junhito, irmão de Kindzu. Para impedir que ele seja aprisionado pelos

bandos armados, os pais o escondem no galinheiro. Convivendo com as aves, o menino se

torna galo, ultrapassando a fronteira do humano. Ele desaparece da concretude da vida e vira

lenda nas histórias de Kindzu. Taímo e Farida, cada um com a especificidade de sua história,

viram espectros, fantasmas que margeiam a fronteira entre a vida e a morte. Taímo, o pai

morto, aparece para o filho Kindzu durante sua fuga. A tradição em que vivem possibilita que

o morto converse com os vivos, que os mortos surjam para os vivos em momentos de grande

aflição, quer como fantasma, quer como personagem de um sonho. Essa tradição legitima, no

romance, a presença de seres espectrais, nem vivos nem mortos. Farida, por sua vez, ainda

32 “Ce qu’ils ont en commun, ancien maître et ancien opprimé de cette sorte, c’est la croyance précisément que

l’identité est souche, que la souche est unique, et qu’elle doit prévaloir. Allez au-devant de tout ça. Allez ! Faites exploser cette roche. Ramassez-en les morceaux et les distribuez sur l’étendue. Nos identités se relaient, et par là seulement tombent en vaine prétention ces hiérarchies cachées, ou qui forcent par subreptice à se maintenir sous l’éloge. Ne consentez pas à ces manœuvres de l’identique… Ouvrez au monde le champ de votre identité.” (GLISSANT, 1993, p. 185).

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que viva, assume uma existência fantasmal, vivendo afastada de todos no navio encalhado.

Todos esses personagens, de uma forma ou de outra, trazem a destruição em si.

Percebemos que os personagens tiveram suas rotas violentamente alteradas. As

ligações afetivas, os laços de parentescos e círculos sociais de cada um foram destruídos. Tal

ruptura afetiva caracteriza, por exemplo, o menino Muidinga e o velho Tuhair. No início do

romance, só os vemos como personagens que perambulam por uma estrada deserta, repleta de

destroços de guerra. Em suas andanças, eles são, principalmente, um velho e uma criança. Ao

se acercarem de um ônibus incendiado, encontram, em meio aos cadáveres insepultos, os

cadernos de Kindzu. A leitura desses cadernos humaniza a relação entre os dois. O velho

Tuahir, que parece desconectado de sua história, não demonstrando vínculos com o passado

ou com futuro, acaba por estabelecer uma forte ligação afetiva com o menino.

Notamos como esses personagens fragmentados pela experiência violenta da guerra

tentam se reconstruir pelos laços de afetividade. Kindzu, o soldado morto, autor dos cadernos,

torna-se um espelho para o menino Muidinga, que busca em Tuahir a figura de um pai

perdido. Do mesmo modo, nos relatos dos cadernos, percebemos que Kindzu também

buscava estabelecer um laço com seu pai, Taímo. As diferentes situações distendem o

aparente jogo de espelhamento em que o eu se projeta no outro. A leitura das histórias escritas

por Kindzu cria novas configurações afetivas entre o velho e o menino resgatado de um

campo de refugiados.

A necessidade de contar e de criar uma história faz-se condição para se fortalecer a

construção subjetiva dos personagens. É através do ritual de leitura que Muidinga demonstra

interesse de saber quem é: “- Me conte sobre a minha vida. Quem eu era, antes do senhor me

apanhar? [...] Conte, lhe peço.” (COUTO, 2007, p. 34). Ao pedido do menino Tuahir,

responde: “- Você nem tem estória nenhuma. Lhe apanhei no campo, ganhei pena de lhe ver

aranhiçar, com pernas que já nem conheciam andamento...” (COUTO, 2007, p. 34). E o

menino insiste: “- Mas o senhor me conhecia, sabia quem eu era? / - Nada. Você nunca me foi

visto. Agora, acabou-se a conversa. Apague a fogueira.” (COUTO, 2007, p. 35).

O menino pede por um passado que lhe constitua, para que ele possa se situar no

momento presente. Incapaz de se imaginar e de se dizer, sua identidade, como uma

construção subjetiva, fica comprometida. O menino sofre por não se lembrar de sua vida

anterior, por não saber de seus pais, finalmente, por haver perdido qualquer referência do que

é ser humano. O conflito de Muidinga fica explícito quando eles encontram um cabrito. Esse

encontro possibilita ao menino acessar uma lembrança e estabelecer um vínculo consigo

mesmo, ao ter um lampejo sobre o que possa ter sido o seu passado: “estremece: aquela era

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52

uma primeira lembrança.” (COUTO, 2007, p. 37). Podemos dizer que o cabrito tem, na cena

do romance, o mesmo valor simbólico que tem a Madeleine de Proust, funcionando como um

elemento detonador da rememoração: “O cabrito lhe dá um sentimento de estar em aldeia,

longe daquele lugar perdido. No facto, se passava o inacreditável: um bicho lhe trazia de volta

o sentimento da família humana.” (COUTO, 2007, p. 36). A visão do cabrito distende as

cenas lidas nos cadernos de Kindzu e permite que “Muidinga imagina como será uma aldeia,

essas de antigamente, cheinhas de tonalidades. As colorações que devia haver na vila de

Kindzu antes da guerra desbotar as esperanças?! Quando é que cores voltariam a florir, a terra

arco-iriscando?” (COUTO, 2007, p. 37). As lembranças e a imaginação se unem e tornam o

menino capaz de se perceber: “Fica a olhar o desenho, com a cabeça inclinada sobre o ombro.

Afinal, ele também sabia escrever? Averiguou as mãos quase com medo. Que pessoa estaria

em si e lhe ia chegando com o tempo? Esse outro gostaria dele? Chamar-se-ia Muidinga?”

(COUTO, 2007, p. 37). São questões que o menino coloca para si mesmo.

Como ressalta Mbembe, a autopercepção é fundamental para reconstruir uma

identidade que foi fraturada. Segundo o teórico, “viver e gozar a vida é, estritamente falando,

a mesma coisa que si imaginar, si dizer e contar sobre si.” (MBEMBE, 2003, p. 791).33 A

capacidade de contar, de dizer delineia a subjetividade que faz do indivíduo um ser pensante e

lhe confere o que é próprio do humano. E o jogo de espelhamento entre os personagens do

romance em estudo se estabelece a partir do contato com o outro, ainda que este outro só

esteja nos escritos deixados por Kindzu. Enquanto Muidinga, mais de uma vez, pede para que

o velho lhe conte sua história, o menino lê para Tuahir as histórias de Kindzu.

Nesse emaranhado de histórias, algumas são carregadas de violências, marcadas pela

busca do afeto e pela necessidade de criar novos laços. A guerra civil que assolou

Moçambique após a independência do país, período em que se situa o romance, aparece como

causa principal do esfacelamento social e afetivo que os personagens enfrentam, como fica

confirmado pela fala de um feiticeiro, no final do romance.

Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. [...] Vós vos converteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. (COUTO, 2007, p. 201).

33 “Vivre et jouir de la vie est, strictement parlant, la même chose que s’imaginer, se dire et se raconter.”

(MBEMBE, 2003, p. 791).

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53

No contexto dessa guerra, a brutalidade dos acontecimentos é tamanha que, muitas

vezes, compromete a construção subjetiva que o indivíduo faz de si, afetando seu

entendimento do mundo e de si mesmo, por comprometer sua capacidade imaginativa. Kindzu

relata: “Pouco a pouco nos tornávamos outros, desconhecíveis.” Ao longo do romance, a

perda da capacidade de sonhar é apontada como uma consequência do comprometimento

dessa construção subjetiva necessária aos indivíduos. O sequestro da subjetividade se dá pela

violência da guerra, como dito na citação. Kindzu reflete sobre o esfacelamento de sua família

causado pela guerra que a deixa pobre, tanto material quanto subjetivamente:

A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saímos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. / Aos poucos, eu sentia a nossa família quebrar-se como um pote lançado no chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado meu refúgio já não restava nada. Nós estávamos mais pobres que nunca. (COUTO, 2007, p. 17).

Sem sonhos e sem ter o que comer, é, finalmente, na busca estrita pela sobrevivência

que se perde o que é humano. O pai de Kindzu, um bêbado sonhador que gostava de contar

histórias aos filhos, morre. A mãe se entrega aos devaneios, um outro modo de expressar as

rachaduras em sua identidade. O espaço deambula, sem eixo, desafiando qualquer perspectiva

de rigidez. Como já indicado no título do romance, trata-se de uma terra sonâmbula. Kindzu

se descreve como um ser destruído: “Tantas infelicidades me tinham aleijado: o

desaparecimento de meu irmão, a morte de meu pai, a loucura de minha família. Mas nada me

afectou tanto como a partida do indiano.” (COUTO, 2007, p. 27). O personagem descreve a

perda dos laços afetivos que o constituíam, família e amigos, principalmente o grande amigo

Surendra, o comerciante indiano.

Nesse processo de esfacelamento das relações, as marcas de passagem do tempo ficam

comprometidas. O tempo se alonga numa gravidez infinita, como explica a mãe de Kindzu,

no diálogo a seguir: “- Estou grávida, filho. Não é de agora, é já de muito tempo. / - Muito

tempo, quanto? / - São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer nesse tempo.

Fica assim dentro de mim, me companha o coração.” (COUTO, 2007, p. 33, itálico original).

A mulher se entrega à função de apenas esperar. Ela se faz esperar eternamente, gestando um

filho que nunca virá. Nessa guerra, o tempo torna-se longo e indefinido. Nesse tempo, não há

mais lugar para a vida. A gravidez, momento máximo de fertilidade, é transformado numa

gestação impossível. A geração da vida é improvável e até melhor que não aconteça.

Percebemos uma situação similar na fala do velho Tuahir, quando este conversa com o

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menino Muidinga, que busca os pais: “- E me diga: você quer encontrar seus pais porquê? / -

Já expliquei tantas vezes. / - Desconsigo de entender. Vou-lhe contar uma coisa: seus pais

não lhe vão querer nem vivo./ - Porquê? / - Em tempos de guerra filhos são um peso que

trapalha maningue.” (COUTO, 2007, p.11, itálico no original).

Como dissemos em outro momento, a história de Farida é também a de uma vida

despedaçada. A personagem, gêmea de outra irmã, tem sua família destruída pela imposição

da tradição seguida na comunidade em que nasce. Segundo os preceitos de sua tradição, os

gêmeos são causa de mau agouro. Separada de sua irmã e de sua mãe, Farida cresce à revelia

da própria vida. Acolhida por um casal de portugueses, é relativamente bem cuidada pela

senhora que a adota até ser enviada à missão católica. Farida foge da missão e é estuprada por

seu pai adotivo. Dessa relação, ela tem um filho, que, no entanto, não lhe desperta nenhum

sentimento maternal: “Esse menino nasceu sem que ela nascesse mãe.” (COUTO, 2007, p.

79). Farida é assim uma filha que não deveria ter nascido e torna-se uma mãe de um filho que

também não foi desejado.

Gaspar, o filho de Farida, perde-se pelo mundo até ser reencontrado pela senhora

portuguesa, Virgínia. O menino cumpre um círculo completo ao sair e voltar ao mesmo ponto,

sem, no entanto, nunca estabelecer vínculos, ficando sempre órfão. Virgínia tenta estabelecer

conexão com o menino. Apela para uma relação de parentesco permitida pelo casamento com

o marido, o verdadeiro pai da criança. Através dessa aliança, ela imagina construir uma

maternidade impossível: “- Porque tu és meu filho. Teu pai foi o meu falecido homem, tu és

quase-quase do meu sangue.” (COUTO, 2007, p. 164, itálico original). A velha senhora

portuguesa confirma, nessa fala, que o menino nasceu do estupro de Farida pelo marido dela,

Romão. No entanto, o menino não fica por muito tempo com a velha Virgínia, incapaz de lhe

dar o acolhimento de uma mãe.

Com essas passagens do romance, percebemos como o ciclo da vida é interrompido

pela guerra. Já não há mais nem começo, nem fim. O filho nasce já sem mãe. A outra mãe

espera, sem ter o filho junto de si. Kindzu se diz cansado, enquanto devaneia, esperando um

fim que não chega: “Minhas visões se vazavam e eu despertava, cansado, quem sabe, de não

morrer.” (COUTO, 2007, p. 47). Nem a morte que encerra a vida parece chegar na hora certa,

assim como a vida não é mais o começo de nada. A guerra altera a percepção do tempo e

borra a fronteira entre vida e morte. Como reflete o narrador ao relatar a história de Farida:

“Uma coisa a guerra faz acontecer: tudo se vai tornando verdade. Está-se pisando a fronteira,

morte e vida nos trocáveis lados de um mesmo risco.” (COUTO, 2007, p. 80).

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Esses processos de fragmentação identitários promovidos pela violência da guerra

afetam a percepção que os indivíduos têm de si e do mundo a sua volta. Farida, ao se isolar no

barco, desloca-se de si mesma. Ainda viva, ela se pensa como morta: “Sei que sou um deles,

um espírito que vagueia em desordem por não saber a exacta fronteira que nos separa de

vocês, os viventes.” (COUTO, 2007, p. 83, itálico original). O personagem assume para si a

identidade de um espírito. Ela não se identifica mais com o mundo dos vivos, justamente por

“pisar” essa fronteira entre a vida e a morte. Confirmando tal percepção, Kindzu, ao avistar

Farida pela primeira vez, também a coloca nesse lugar, conferindo-lhe uma identidade

fantasmal, no sentido dado por Mbembe: “Foi então que encontrei a mulher. No princípio, era

só um vulto no meio das cordas. Seria mais um fantasma.” (COUTO, 2007, p. 62).

A primeira visão que Kindzu tem de Farida, antes de se impressionar com sua beleza,

é essa confusão entre vida e morte; ele a vê como um algo entre os mundos, como um

fantasma. De certa forma, Farida cumpre sua sina de gêmea. Seu nascimento, ao contrário de

trazer vida ao mundo, é interpretado dentro de sua cultura como um sinal de morte: “Cumpria

um castigo ditado pelos milénios: era filha-gémea, tinha nascido de uma morte.” (COUTO,

2007, p. 70). Farida cresce com o peso da morte ao seu lado, acreditando que sua irmã, por

exigência da tradição, havia sido morta, até que sua tia Euzinha lhe revela o segredo de sua

mãe que, incapaz de matar a própria filha, entrega-a a um casal. Mais uma vez, seguindo os

preceitos da tradição, a mãe de Farida é afastada da aldeia para não contaminá-la com seu

sangue impuro, concretizando a ruptura familiar que deixa Farida à deriva de sua própria

existência.

Em meio aos escombros de guerra, os sujeitos se reformulam a partir dos novos

encontros. Os personagens entrecruzam suas histórias e, assim, entrelaçam suas identidades.

Nesse sentido, destaca-se a amizade entre o indiano Surendra e Kindzu. De um lado, a

amizade é valorizada como o encontro, que permite o vínculo por laços afetivos que se criam;

de outro, a relação explicita as fissuras da sociedade em que ambos se encontram, expondo a

desunião criada pela ideia de raça. O jovem Kindzu deixa registrado em seu caderno sua

amizade com o indiano:

Surendra sabia que minha gente não perdoava aquela convivência. Mas ele não podia compreender a razão. Problema não era ele nem a raça dele. Problema era eu. Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre, o pastor Afonso. Suas lições continuavam mesmo depois da escola. Com ele aprendia outros saberes, feitiçarias dos brancos, como chamava meu pai. Com ele ganhara esta paixão das letras, escrevinhador de papéis como se neles pudessem despertar os tais feitiços que falava o velho Taímo. Mas esse era um mal até desejado. Falar bem, escrever muito bem e, sobretudo, contar ainda melhor. Eu

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devia receber esses expedientes para um bom futuro. Pior, pior era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em mestiçagem de baixa qualidade. (COUTO, 2007, pp. 24-25).

Esse relato descreve de forma relativamente sucinta o contexto geral em que se situam

esses personagens de identidades despedaçadas, como Muidinga, Thuair e Farida. Assim

como Kindzu, todos trazem em si a marca do processo colonial que inseriu, misturou e

excluiu costumes, o que significa que a fragmentação identitária, como observamos aqui,

exacerbada pela violência da guerra civil moçambicana, era algo que já podia ser constatado

em certos casos. O paradigma racial instaurado pela colonização europeia abala a estrutura

social das sociedades autóctones como a moçambicana, nesse romance de Mia Couto, bem

como a nigeriana, no romance de Amos Tutuola, e a malinesa, no romance de Hampâté Bâ.

Por um lado, a relação homem e mulher explicita, em Terra sonâmbula, a brutalidade

da colonização portuguesa em solo moçambicano. Em certa medida, o estupro de Farida por

Romão Pinto não deixa de ser uma metáfora desse processo colonial. Por outro lado, a

presença das missões e mesmo da escola, que institucionaliza a imposição do português

falado e escrito, expõe a complexidade desse processo como “um mal desejado”. É a escrita

de Kindzu que permite a reconstrução, a estruturação das histórias contadas por ele, além de

sua própria. Nessa perspectiva, a dicotomização oralidade e escrita fica invalidada. A escrita

é, ao mesmo tempo, perturbação e redenção. O ato de escrever e ler deixa de ser apenas

perturbação no universo da oralidade, porque, alimentando-se dela, permite, como os

caderninhos de Kindzu, o registro de um mundo que a guerra destruiu.

Nesse sentido, a relação entre oralidade e escrita, no romance, acompanha os

questionamentos identitários abordados pelos personagens, sobretudo na relação entre Kindzu

e Surendra. Todas essas indagações se ajustam de certa forma ao pensamento de Glissant,

quando coloca em pauta o conceito de crioulização.

A crioulização, que é um dos modos do emaranhamento – e não apenas uma resultante linguística –, só tem de exemplar os seus processos e certamente não os seus “conteúdos”, a partir dos quais aqueles funcionariam. [...] O que nos move não é apenas a definição das nossas identidades, mas também a sua relação com todo o possível: as transformações mútuas que esse jogo de relações gera. As crioulizações introduzem à Relação, mas não para universalizar; a “crioulidade”, no seu princípio, regressaria às negritudes, às francidades, às latinidades, todas elas generalizantes – mais ou menos inocentemente. (GLISSANT, 2011, p. 89).

A reflexão de Glissant sobre a crioulização possibilita pensar as construções

identitárias a partir dos elos afetivos que se constroem ao longo da existência. Esse modo de

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“emaranhamento” de culturas, histórias e, finalmente, de identidades está presente no

romance de Mia Couto e de Hampaté Bâ, na encenação do entrelaçamento de culturas e na

reinvenção dos laços afetivos que possibilitam o engendramento de novas configurações

identitárias.

A reconstituição dessas identidades despedaçadas em novos arranjos só é possível a

partir da reinvenção dos laços afetivos que, como sugere a crioulização, introduz “à Relação,

mas não para universalizar”. Pode-se dizer que o romance de Mia Couto, ao encenar

realidades do pós-independência moçambicano, anuncia elementos da crioulização, a

reinvenção de laços afetivos que engendram novas configurações identitárias.

Para concluir a reflexão sobre identidade apresentada neste capítulo, podemos ressaltar

que os personagens de cada romance podem ser lidos como uma metonímia dos sistemas

políticos encenados. Enquanto o personagem de Tutuola mostra-se um sujeito imerso em

mitos ancestrais que se vale de referências da colonização inglesa para se comunicar, o

personagem do romance de Bâ tem domínio impecável das estratégias utilizadas pelo sistema

colonial, sem deixar de transitar pelos espaços da tradição, assumindo um lugar de poder,

ainda que pague um preço alto por isso. No romance de Mia Couto, voltado a questões do

pós-independência, os personagens encenam um processo de reconfiguração identitária na

qual se inscreve, entretanto, a permanência de vários elementos da colonização, demonstrando

que o sistema colonial estende seus tentáculos para além das independências. Nesse sentido,

percebemos como esses personagens, estabelecem uma correspondência com seus respectivos

sistemas políticos numa relação de contiguidade entre os objetos dados. Observamos a relação

metonímica entre os indivíduos de um país e o sistema político vigente. Os personagens

encenam as condições histórico-sociais das culturas a que remetem. Essa relação ficará ainda

mais evidente ao analisarmos algumas questões relacionadas ao espaço colonial no capítulo

seguinte.

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3 O ESPAÇO E AS ESPACIALIDADES ENCENADOS PELOS ROMANCES

O espaço, como categoria de análise literária, não pode ser resumido a uma única

abordagem. Em Teorias do espaço literário, Luis Alberto Brandrão (2013) esclarece a

respeito das diversas abordagens possíveis sobre a categoria espaço na literatura. Dentre elas,

destacamos duas formas que nos servem como operadores de leitura para este capítulo. De um

lado, a partir das obras estudadas, percebemos o espaço, principalmente, como uma

representação social, “ou seja, como conteúdo social – reconhecível extratextualmente – que

se projeta no texto.” (BRANDÃO, 2013, p. 48). Segundo Brandão, essa é uma corrente

sociológica ou culturalista que não se preocupa em definir conceitualmente “espaço”, mas

opera com um uma noção de espaço. De outro lado, por se tratar de uma análise literária, ou

seja, de um trabalho com o texto, não deixamos de esbarrar em alguns questionamentos

próprios da linguagem literária. Perceber a espacialidade da própria linguagem é defesa de

uma corrente formalista e estruturalista, ainda segundo Brandão. A princípio, identificamo-

nos com a abordagem da primeira corrente dita culturalista, ao vermos representada, nos

romances, dentre outras configurações espaciais, uma noção de África construída pelo

imaginário da presença colonial no continente. No entanto, ao investigarmos nos romances

como essa figuração se delineia, tocamos em estratégias próprias da linguagem literária,

aproximando-nos de um viés mais voltado à materialidade do texto.

O teórico Harry Garuba explica como a mediação europeia do território físico

africano, desde seu mapeamento até a ocupação dos locais, estabelece uma apropriação

cognitiva dos sujeitos que são subjugados ao discurso europeu que estrategicamente se torna

hegemônico (GARUBA, 2002, p. 95). De tal forma que “não é acidental que mapas e

metáforas sobre mapeamento sejam abundantes nos estudos pós-coloniais, porque o

colonialismo como um regime de poder foi amplamente organizado pela espacialidade e

subjetividade: espaços a capturar e sujeitos a controlar” (GARUBA, 2002, p. 87). Essa

afirmação é feita pelo teórico, ao iniciar seu artigo intitulado “Mapeando a terra/ corpo/

sujeito: geografias coloniais e pós-coloniais na narrativa africana”. Nesse sentido, Terra

sonâmbula, O bebedor de vinho de palmeira, assim como L’étrange destin de Wangrin,

servem de exemplo para as considerações de Garuba sobre espacialidade e subjetividade.

Observamos que tanto identidade quanto espaço são concepções subjetivas e

historicamente construídas. Cada narrativa encena uma realidade que lhe é específica, sendo

uma forma de percepção do mundo afetada pelos processos identitários e pelos espaços por

onde os personagens circulam. Assim, em cada narrativa encontramos uma realidade que lhe

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59

é específica. As relações – sejam entre personagens como Muidinga, Tuahir e Kindzu, em

Terra sonâmbula, ou a relação com o dinheiro, como explicitado por Wangrin em busca de

poder, ou os trânsitos do protagonista por diferentes lugares, como exposto pela trajetória do

protagonista em O bebedor de vinho de palmeira – afetam e até podem determinar a relação

do homem com o espaço e o tempo. Assim, perguntamo-nos como o elemento espaço está

trabalhado nas trajetórias das personagens principais dos romances em estudo.

De forma sucinta, no romance L’étrange destin de Wangrin, percebemos o quanto o

protagonista está fixado em um território que caracteriza uma situação específica de sua

época, uma vez que se desenha, ficcionalmente, uma carta geopolítica da região colonial

francesa. O espaço de Wangrin se constitui, então, como lugar geopolítico, onde as relações

de poder atuam sobre o território. Em contraposição ao eixo cartesiano da carta geográfica por

onde transita Wangrin, o mundo fantasmal do Bebedor de vinho de palmeira delineia um

espaço fluido, quase sem bordas, no limiar da vida. O espaço, no romance de Tutuola, se

estrutura como devaneio imaginado de difícil categorização, porque sua composição subverte

qualquer lógica axial. Terra sonâmbula traz, no título, a representação espacial de um

território que se constrói, na visão dos personagens, como um país imaginado. Ao mesmo

tempo, o romance encena territórios de experiências vividas pelos diferentes personagens.

Muidinga, Tuahir e Kindzu tentam ressignificar o espaço em guerra em que se transformou

seu país. A visão de uma terra sem eixo, como evocada pelo adjetivo sonâmbula, é em

decorrência de uma situação geopolítica específica, que é a experiência da guerra civil do

período após a independência colonial de Moçambique.

3.1 O espaço mitológico em O bebedor de vinho de palmeira

De acordo com o verbete “espaço” em Le dictionnaire du littéraire, segundo

Blanchot, o espaço literário, no romance, usufrui de uma completa liberdade de representação,

chegando ao absoluto da fascinação, cuja figura principal é a imagem. Nesse sentido, o

espaço fantasmal do romance O bebedor de vinho de palmeira é construído no limiar entre

a vida e a morte, sendo detalhada uma espacialização mitológica que, de certa maneira,

remete a concepções difundidas pela cultura grega: “A subjugação do mito é total,

internalizando no espaço do corpo a imortalidade dos deuses e a mortalidade dos homens.”

(MIRANDA, 2008, p. 46). A mitologia, que busca a origem do mundo, se transforma na

apreensão desse espaço em que a presença da morte é uma ameaça constante. A representação

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60

do espaço torna-se, no romance, uma experimentação concreta de um mundo imaginado,

ficcionalizado por sua aparência mitológica.

Em O bebedor de vinho de palmeira, a profusão de imagens problematiza os limites

e as possibilidades de representação, incitando questionamentos sobre a mimésis poética. Essa

questão é posta por Mbembe, quando considera que o mundo fantasmal é

mais do que um espaço geográfico, o espaço fantasmal pertence, primeiramente, ao campo visual, àquele das imagens e visões: fantasmas, domínios estranhos, máscaras, surpresas e espanto, em suma, um comércio permanente com famílias de signos que se entrecruzam, se contradizem, se anulam, se relançam, se distanciam em seus próprios limites. (MBEMBE, 2003, p. 797).34

Entre esses diversos signos que vinculam a narrativa à tradição autóctone, sem

desconsiderar a influência da colonização britânica, destaca-se a tentativa de criação de um

espaço que permite o encontro entre vivos e mortos. Nesse espaço, em que tudo é possível, é

exercitada a liberdade de representação proporcionada pela linguagem verbal. Enfatiza-se a

estrutura narrativa do mito que delineia os obstáculos a serem vencidos pelo protagonista.

Nessa narrativa, tenta-se explicar, metaforicamente, a origem do mundo. O desfecho da

jornada do bebedor traz a simbologia do significante ovo, aludindo a origem do mundo ao

simbolizar a origem da vida. Depois da peregrinação por espaços inusitados, o protagonista

encontra seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos. No entanto, ele retorna a sua cidade

natal, levando consigo não o vinhateiro, mas um ovo mágico, que simboliza a origem do

mundo. Dessa forma, a jornada se encerra, resumindo: “E é assim que, de todas as

dificuldades, sofrimentos e tantos anos de viagem, havia restado apenas um ovo.”

(TUTUOLA, 1970, p. 135). Um ovo, no entanto, que simboliza a vida: “UM OVO QUE

ALIMENTOU O MUNDO INTEIRO” (TUTUOLA, 1970, p. 137, em destaque no original).

Esse título é dado ao trecho final do romance quando se refere aos milagres proporcionados

pelo ovo mágico que soluciona os problemas da seca. Na tentativa de encontrar a solução para

a falta de chuva, a narrativa, valendo-se da metáfora do ovo, termina por unir céu e terra, na

busca pela origem do mundo, simbolizando a criação.

Miranda, em “Geografias imaginárias da Terra”, aborda a espacialidade e sua relação

com a mitologia, estabelecendo uma relação entre terra e corpo. A reflexão do autor,

fundamentada em Marx, é válida para explicar que “a apropriação da Terra passa basicamente

34 “Plus qu’un espace géographique, l’espace fantômal appartient, d’abord, au champ visuel, celui des images et

des visions : fantasmes, étranges domaines, masques, surprises et étonnement, bref, commerce permanent avec des familles de signes qui s’entrecroisent, se contredisent, s’annulent, se relancent, s’égarent dans leurs propres limites.” (MBEMBE, 2003, p. 797).

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pelo domínio e exploração dos corpos”. (MIRANDA, 2008, p. 62). As considerações do

estudioso permitem perceber que, no livro de Tutuola, a morte é a motivação do romance.

Afinal, é a busca pelo vinhateiro morto que desencadeia a narrativa. Unindo morte e vida, o

bebedor exercita muitas formas de vida, trazendo essa experiência para o espaço do corpo,

desafiando concepções de representação canônicas e confirmando, no final do romance, o

caráter mítico da narrativa, ao unir terra e céu e revelando a busca mítica pela gênese da

existência.

3.2 Espaço e imaginário colonial nos romances

Ao refletirmos, no capítulo anterior, sobre a construção da identidade dos sujeitos,

levando em consideração os romances que constituem nosso corpus de análise, procuramos

considerar, sobretudo, como a extensão do fato colonial afetou a constituição subjetiva dos

personagens. O fato colonial ressignifica o contexto e as tradições do continente africano,

afetando o imaginário cultural de diferentes povos, mesmo após as independências. Isso pode

ser visto, por exemplo, em Terra sonâmbula. Kindzu deixa registradas em seus cadernos

suas reflexões tiradas a partir de suas vivências. O personagem mostra ter uma percepção

crítica da situação de seu país. Seu olhar crítico denuncia, através de alusões e analogias, o

estado de desespero do povo que ataca as carnes de uma baleia que está à beira da morte,

encalhada na praia. Diante da cena, Kindzu conclui com a seguinte comparação: “Agora, eu

via meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia.” (COUTO, 2007, p. 23).

Fica, dessa forma, constado pelo personagem o estado de calamidade em que se encontram o

país e o povo, no pós-independência.

O estado da guerra deflagrada na Moçambique de Terra sonâmbula respinga na voz

de Kindzu e nos remete a outros tempos, deixando a colonização portuguesa nas entrelinhas

da guerra civil. Em trecho do romance, a seguir, o contexto da guerra civil moçambicana fica

delineado, sobretudo, pela referência à ação dos bandos armados: “Os bandos disparavam

contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem sabe alvejassem não as casas mas o

tempo, esse tempo que trouxera o cimento e as residências que duravam mais que a vida dos

homens.” (COUTO, 2007, p. 23). Kindzu especula sobre o verdadeiro alvo daqueles que

atiravam, ao que parece aleatoriamente, nas casas. Ao destacar que essas eram construções de

cimento e estabelecendo a relação de durabilidade do material de construção com o tempo da

vida humana, o narrador coloca em questão a forma de o homem se relacionar com o tempo,

ao construir residências que permanecem para além da vida. Inquirindo de forma indireta e

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poética com o uso de “quem sabe”, o personagem faz do tempo sujeito da ação: “esse tempo

que trouxera o cimento”. Inferimos que o narrador traz, nas entrelinhas, a permanência da

colonização, através do demonstrativo “esse” que, ao pretender explicar “o tempo”, remete a

algo anterior, não na frase, mas na história de Moçambique. No contexto da guerra civil

moçambicana encenado pelo romance, entendemos que o espaço moçambicano é referido,

metaforicamente, pela alusão ao cimento e, dessa forma, remete ao tempo em que os

portugueses colonizaram o país. A guerra descrita por Kindzu é permeada desse imaginário

colonial, mostrando a permanência de um “tempo” que não vai embora, mesmo com a partida

oficial dos portugueses, com a independência de Moçambique, marcando o fim da

colonização, em 1975.

Retomando a comparação entre o país e a baleia moribunda, o personagem se refere ao

país em estado de guerra sendo também atacado pelo seu povo. A subjetividade de Kindzu é

construída com as marcas deixadas pela colonização no espaço nacional. A fala do

personagem estabelece uma relação entre a baleia, o país, o povo e ele próprio, ao dizer:

“Estou condenado a uma terra perpétua, como a baleia que esfalece na praia. Se um dia me

arriscar num outro lugar, hei-de levar comigo a estrada que não me deixa sair de mim.”

(COUTO, 2007, p. 23). Estendendo o tempo e a violência numa terra infinita, Kindzu

impregna sua terra e a si mesmo do imaginário colonial que não passa. O espaço em Terra

sonâmbula é, portanto, constantemente revisitado por elementos desse imaginário. Assim,

alguns questionamentos relativos a uma noção de espaço fazem-se pertinentes, neste capítulo,

quando procuramos entender os romances estudados numa relação entre o tempo colonial –

que termina, mas não passa – e o espaço, configurado e reconfigurado pela colonização e pós-

colonização.

Ao contrário de Kindzu, que, ao expor sua percepção sobre o espaço ao redor,

apresenta uma configuração espacial construída a partir de sua subjetividade, o personagem

Wangrin, de Hampaté Bâ, transita pelos espaços africanos ressignificados pela presença

colonial. Nesses espaços, é possível perceber, de um lado, a circulação social feita por meio

de redes de relações tecidas pela tradição de marabouts35, curandeiros, griôs, contadores de

histórias e associações diversas. De outro, a categorização imposta pela colonização, através

de seus valores, estagna o trânsito social. A trama do romance esclarece como a administração

35 Os marabouts são originalmente mestres religiosos, tidos como homens santo na tradição sufi, na cultura

muçulmana. Em diversas culturas africanas, se tornaram curandeiros incorporando outras tradições a suas práticas místicas. Como guias espirituais, são conselheiros para todos assuntos. São ainda curandeiros e adivinhos. Com seus feitiços e amuletos, fornecem apoio e esperança a seus clientes fiéis em troca de algum tipo de pagamento, presentes ou dinheiro, já que dedicam suas vidas aos assuntos espirituais.

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colonial, além de demarcar fronteiras, se vale de uma escala de valores preestabelecida de

acordo com a origem de cada parcela da população.

Na época, o grau de moralidade de um indivíduo media-se em parte devido à importância dos serviços que ele havia rendido à penetração francesa e, em parte, devido à situação geográfica de seu país de origem. É assim que o mais moral dos homens eram os europeus brancos. Depois deles vinham os martiniquenses e guadalupenses, em seguida os senegaleses autóctones das quatro comunas – Saint-Louis, Goreia, Rusfique e Dakar –, os antigos militares indígenas e, enfim, por último, o restante da população. (BÂ, 1992, p. 49).

36

A “época” a que a citação se refere é a da colonização francesa, em que um

comandante francês governa uma região administrativa chamada de círculo (cercle). No

momento específico da trama, os personagens Wangrin e Racoutié se encontram no círculo de

Diagaramba, localidade fictícia, mas que poderia ser situada em alguma parte do atual Mali.

O narrador explica que a briga entre Racoutié e Wangrin é julgada pelo comandante, que

busca se informar com as pessoas, levando em consideração o seu “grau de moralidade”,

determinado pelo território de origem. O julgamento das querelas é feito levando-se em

consideração esse ranque que classifica as pessoas. A palavra que tem mais peso é a do

sujeito com mais alto grau de moralidade, determinado “pela situação geográfica de seu país

de origem”.

Na cena do romance, o tom seco e direto do narrador nos informa sobre a situação

social em que a querela se dá: embora os adversários pertençam ao mesmo espaço moral, o

julgamento leva em conta a visão de um informante que tem o mais alto grau de moralidade e

é simpatizante de Wangrin. O narrador esclarece que, por trás dos valores impostos pela

administração francesa, existe uma rede de relações formada previamente entres os autóctones

mais importantes da região. É essa articulação que assegura a vitória de Wangrin. Amparado

por seu griô Koutena, Wangrin pede conselho ao velho da etnia Jaawanndo37

, Abougui

Mansou, influente em todos os negócios e pessoas da região. Seguindo conselho do ancião,

sempre acompanhado de seu griô, Wangrin procura o marabout Tierno Siddi, para

encomendar suas rezas. Além disso, ao chegar a Diagaramba, Wangrin já havia sido aceito

pela associação de jovens de sua faixa etária chamada waaldé Wenndou, cujos membros eram 36 “A l’époque, le degré de moralité d’un individu se mesurait d’une part à l’importance des services qu’il avait

rendus à la pénétration française et, d’autre part, à la situation géographique de son pays d’origine. C’est ainsi que les plus moraux des hommes étaient les Européens blancs. Après eux venaient progressivement les Martiniquais et Guadeloupéens, puis les Sénégalais autochtones des quatres communes – Saint-Louis, Gorée, Rusfique et Dakar -, les anciens militaires indigènes et enfin, en dernier lieu, le restant de la population.” (BÂ, 1992, p. 49).

37 Jaawanndo: “etnia bem próxima aos fulas e reputada por sua inteligência e malignidade”. (BÂ, 1992, p. 368, tradução nossa). Reproduzimos aqui a nota do autor.

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conhecidos como os “vingadores”, por protegerem os autóctones contra as injustiças da

administração. (BÂ, 1992, p. 37). Essa rede de relações permite que Wangrin enfrente

publicamente Racotié e conquiste seu lugar como tradutor numa sociedade hierarquizada pela

colonização. Com essa malícia, Wangrin transita entre os espaços cindidos pelo sistema

colonial, desarticulando, de certa forma, o que diz Fanon a respeito da incomunicabilidade

existente entre “a cidade do colonizador e a cidade do colonizado.” A ficção de Hampaté Bâ

relativiza o que Fanon constata em sua análise histórica sobre o sistema colonial feita no livro

Os condenados da terra, de que “o mundo colonial é um mundo compartimentado.”

(FANON, 2002, p. 41).38

Nessa leitura, a configuração espacial, assim como a percepção identitária, se

apresenta como uma problemática subjetiva e social. Essa afirmação retoma considerações

feitas sobre a identidade dos personagens, tal como encenada nos romances selecionados. Na

discussão sobre identidade, nas obras, ressaltamos o quanto a situação colonial estende seus

tentáculos para além de uma periodização determinada. Do mesmo modo, para além da

periodização que alinha tempo e espaço, pretendemos considerar o espaço, tal como

encenado, como “um produto de inter-relações” (MASSEY, 2015, p. 30), atuando como

elemento estrutural da encenação narrativa.

A íntima associação entre o espaço e a situação colonial, acentuada pela descrição

geográfica precisa, contribui para o efeito de real causado pelo romance do malinês Hampaté

Bâ. Por exemplo, Diagaramba, onde Wangrin assume seu primeiro posto como funcionário

colonial, é uma cidade bem fixada no mapa ficcional criado pela narrativa, com seu povo,

história e rio. O bairro Hinstsi, onde Wangrin se instala, é descrito como consequência da

tomada da cidade, em 1893, época que coincide com a invasão colonial francesa naquela

região da África. Hinstsi se torna sede da ocupação francesa, segundo o romance.

Foi assim que Wangrin atravessou pela primeira vez a cidade de Diagaramba. Ele se dirigiu diretamente a Hintsi, bairro situado atrás do Maayé, rio caracterizado por uma grande bolsa d’água chamada Iwaldo [...] O rio Maayé, que os cantores fula batizaram por mimo de “Maayel”, era popular em Eldika e Telerké, e em toda a região onde se forma o que se convencionou chamar a “curva do Niger”. (BÂ, 1992, p. 27). 39

38 “Le monde colonial est un monde compartimenté.” (FANON, 2002, p. 41). 39 C’est ainsi que Wangrin traversa pour la première fois la ville de Diagaramba. Il se dirigea droit vers Hintsi,

quartier situé derrière la Maayé, rivière caractérisée par une grande poche d’eau appelée Iwaldo, […] La rivière Maayé, que les chanteurs peuls avaient baptisés par mignardise ‘Maayel’, était aussi populaire qu’Eldika et Telerké, et ce dans toute la région formant ce qu’il est convenu d’appeler la “boucle du Niger”. (BÂ, 1992, p. 27).

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O romance de Hampaté Bâ situa Wangrin em parte do que foi a África Ocidental

Francesa (AOF), ao longo do rio Niger, no “que se convencionou chamar de ‘curva do

Niger’”. A menção a esse acidente geográfico remete à história de um rio de grande

importância, ao sul do deserto do Saara, e à data de ocupação da localidade, 1893. Essas

informações situam a disputa colonial europeia com precisão. A bacia do rio Niger, região

fértil, foi território de disputa entre os colonizadores europeus, franceses e ingleses. Apesar de

ser uma localidade fictícia, Diagaramba assume todas as características de uma cidade

colonial da AOF. De fato, no romance, a cidade, ao ser comparada a qualquer outra cidade

colonial, embaralha a ficção com a história real: “Todos estavam de acordo para reconhecer

que Diagaramba era uma cidade agradável. Lá vivíamos melhor do que em Kayes e mesmo

do que em Bamako, as duas capitais, antiga e nova, da colônia.” (BÂ, 1992, p. 56).40 A

comparação entre Diagaramba e outras cidades coloniais, inidentificáveis no mapa, é exemplo

da estratégia narrativa que procura construir “efeitos de realidade” no texto literário de

Hampaté Bâ.

A aproximação entre ficção e realidade permite que Wangrin também seja construído

com base na realidade empírica do escritor. Mariko e Touré identificam algumas das

referências geográficas e espaciais feitas pelo romance:

O contexto histórico bem como a situação colonial são também elementos interessantes do componente histórico, assim como o espaço geográfico da evolução do personagem de Wangrin. Trata-se do Sudão francês (o Mali atual) com o império Namaci, anagrama de Macina, com as cidades de Bamako, Kayes, Ségou, Tombouctou, Djenné, Bandiagrara (deformada em Diagaramba). (MARIKO; TOURÉ, 2005, p. 194).41

As informações de Mariko e Touré trazem esclarecimentos que mostram como o

romance de Hampaté Bâ ficcionaliza a geografia. A intenção do autor, como dito por ele no

prólogo do romance, é de fazer um relato fiel das peripécias de Wangrin, alterando apenas o

nome do personagem e o de algumas localidades, a fim de preservar seu anonimato e evitar

qualquer constrangimento a seus parentes. Pelo uso que faz da estratégia realista que oferece

descrições ricas em detalhes sobre os povos, a história e a geografia local, o romance é

considerado, muitas vezes, como um romance etnográfico ou histórico. No entanto,

40 “Tout le monde était d’accord pour reconnaître que Diagaramba était une ville agréable. On y vivait mieux

qu’a Kayes et même qu’à Bamako, les deux capitales, ancienne et nouvelle, de la colonie.” (BÂ, 1992, p. 56). 41 "Le contexte historique ainsi que la situation coloniale sont aussi des éléments intéressants de la composante

historique tout comme l’espace géographique d’évolution du personnage de Wangrin. Il s’agit du Soudan français (le Mali actuel) avec l’empire de Namaci, anagramme de Macina, avec les villes de Bamako, Kayes, Ségou, Tombouctou, Djenné, Bandiagrara (déformé en Diagaramba).” (MARIKO; TOURÉ, 2005, p. 194).

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66

identificamos essa estratégia de confundir realidade e ficção como um artifício romanesco

que, ao ficcionalizar a realidade, coloca em evidência elementos que denunciam o sistema

colonial. No caso, os trânsitos de Wangrin marcam a apropriação do espaço africano pelo

colonizador quando instala seus círculos administrativos em diferentes regiões, desfigurando-

as e ressignificando-as.

A representação do espaço, como a de uma realidade extradiegética, aparece no texto

como a figuração de um território de experiência. Diagaramba existe porque existe

Bandiagrara. O escritor, com essa apropriação, estabelece um vínculo entre as localidades

reais, ao contrário do que afirma a voz narrativa do prólogo. O pacto narrativo, nesse

romance, implica que as fronteiras sejam borradas para que o texto se torne uma encenação de

uma realidade – geográfica, cultural, social, colonial – que sustenta a ficção. A imediata

correspondência entre a geografia criada pelo romance e a geografia do espaço africano

potencializa a estratégia narrativa de um efeito de realidade e valoriza a crítica colonial

implícita no romance.

Em seu didático artigo sobre as diferentes formas de tratamento do espaço na

literatura, Brandão destaca a tensão criada no jogo de transposição que se torna a

representação literária:

O tensionamento da representação espacial – enfim, do efeito obtido pela aceitação tácita de que espaços podem ser transpostos do mundo para o texto – se dá precisamente pela radicalização do sentido da ação de transpor, a qual passa a ser vista como de interferência, dinamização, provocação, desestabilização: como ação, portanto, política. (BRANDÃO, 2007, p. 214).

Dentro dessa representação espacial, associada, ainda segundo Brandão (2007), à

perspectiva dos Estudos Culturais, “o espaço é vinculado a uma identidade social”. O

resultado dessa ação “de transpor”, assumida como “ação política”, enfatiza o teor crítico que

destacamos do romance de Hampaté Bâ. O excesso descritivo não é gratuito na economia do

romance. A transfiguração do espaço captura o discurso de poder colonial concretizado no

mapeamento do espaço e na apreensão dos sujeitos nele inscritos. Mbembe, ao discutir o

paradigma racista, associa espaço à formação do “self africano”. O teórico discute o mito da

polis racial baseando-se no que denomina “identidade territorializada” e “geografia

racializada”, sem esquecer o papel nefasto do capitalismo e a instituição da propriedade

privada pelo colonialismo. É importante ressaltar que Mbembe não deixa de responsabilizar

“o fracasso africano em controlar sua própria ânsia predatória e sua própria crueldade”

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(MBEMBE, 2001, p. 186), o que está, de certa forma, encenado, mesmo que indiretamente,

nos romances de Hampaté Bâ e Tutuola e, explicitamente, no de Mia Couto.

Como observamos, no romance de Hampaté Bâ, as demarcações dos círculos

administrativos permitem que se vejam rastros deixados pela escravidão e subjugação.

Mbembe segue argumentando sobre como a África se torna uma “ficção do Outro”:

a África só existe na base de uma biblioteca preexistente que intervém e se imiscui por toda parte, mesmo no discurso que afirma refutá-la, a tal ponto que, com relação à tradição e à identidade africanas, hoje é impossível distinguir o ‘original’ da cópia, ou mesmo de um simulacro. (MBEMBE, 2001, p. 186).

Assim, como Diagaramba pode ser considerada um duplo fictício de Bandiagrara, toda

narrativa de Hampaté Bâ poderia ser interpretada como um duplo da dinâmica colonial. Por

isso, alguns críticos consideram o romance como autobiográfico, vendo-o calcado nas

experiências vividas pelo próprio escritor. Mas essa especulação foge do nosso escopo no

momento. Já o tensionamento do processo de representação, como duplicação ou como

simulacro, na narrativa, reflete a necessidade colonial de mapeamento das terras africanas.

Segundo explica o pesquisador Garuba, o mapeamento europeu da “selva africana”, numa

cartografia que se pretende uma representação mimética do real, cria e estabelece a autoridade

narrativa do europeu que, através desse mapeamento, aprisiona “a terra, os corpos e os

sujeitos” da “área capturada no mapa”. (GARUBA, 2002).

Nesse sentido, vemos como terra e indivíduos são mapeados e aprisionados pela

administração colonial francesa. A menor unidade administrativa dessa colonização eram,

como já mencionado, os círculos, administrados por um comandante vindo da metrópole.

Nessa economia, Diagaramba era a capital da localidade que circunscrevia um círculo. Logo,

nessa lógica colonial, os autóctones habitantes da região eram também propriedade da

metrópole, assim como a terra. O narrador explica da seguinte forma essa relação de

pertencimento entre os nativos, a terra e a metrópole colonizadora:

Aproveitando da mão de obra colocada a sua disposição pela administração, Wangrin aumentou sua casa. De fato, deve-se salientar que, na África ocidental, cada “sujeito francês”, quer dizer, cada autóctone da colônia era obrigado a quinze dias de prestação de serviço bruto. O círculo de Diagaramba dispunha, para esse efeito, de dois mil trabalhadores permanentes e gratuitos. (BÂ, 1992, p. 52).42

42 “Il faut signaler en effet qu’en Afrique occidentale, chaque « sujet français », c’est-à-dire chaque autochtone

de la colonie, était astreint à quinze jours de prestations en nature. Le cercle de Diagaramba disposait, à ce titre, de deux mille travailleurs permanents et gratuits.” (BÂ, 1992, p. 52).

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O romance descreve como, efetivamente, os indivíduos circunscritos pelo círculo

administrativo colonial tornam-se propriedade da metrópole, além de demonstrar como

Wangrin, em toda sua malícia, não tem escrúpulos em se servir da mão de obra de seus

conterrâneos, tornados escravos. Garuba – dialogando com Foucault sobre o sentido de

instituições que, como a prisão, servem tanto para prender quanto para criar prisioneiros –

afirma que “os perigos que os mapas (re)presentam são mais sentidos por aqueles que sofrem

sob seu poder porque os mapas não apenas contêm, mas também constituem ativamente seus

sujeitos.” (GARUBA, 2002, p. 89). No caso, o romance explicita como o mapeamento de

Diagaramba, que se torna burocraticamente um círculo administrativo, concretiza a efetiva

ocupação local e a sua subsequente exploração. O espaço pode ser entendido, nos exemplos

do romance de Hampaté Bâ, como um elemento estruturador da trama romanesca, ao

organizar e hierarquizar os personagens, colocando-os como súditos coloniais, como vimos

ressaltando desde os processos de construção da identidade de Wangrin.

Nesse sentido, a organização espacial do romance de Bâ pode ser interpretada a partir

das reflexões de Francisco Noa, crítico moçambicano, que, em sua pesquisa acerca do

romance colonial, destaca o espaço como elemento gerenciador desse tipo de romance.

Vejamos o que diz o crítico:

Significando desestabilizar, portanto, um lugar comum nos estudos narratológicos que reservam um momento para o reconhecimento do espaço nos segmentos descritivos, a análise do romance colonial levar-nos-á a concluir que o espaço quer como lugar, quer como não lugar, quer por outro lado, como representação, signo ou símbolo, preside de forma decisiva à construção, significação e ao desenvolvimento de toda a narrativa. (NOA, 2015, p. 104).

O espaço torna-se, portanto, uma questão crucial nos romances africanos, uma vez que

a própria definição do que é África passa pela construção de uma concepção espacial. A

colonização é marcada pela partilha do continente entre as potências europeias que, pela

conquista predatória de territórios, desenharam o que seria África. A partir de então, África

passa a ser um objeto de fabricação estrangeira. Os romances coloniais e pós-coloniais

tentam, através da elaboração da linguagem narrativa, definir também o que é ser África,

levando em conta as relações entre os diferentes sujeitos e seus trânsitos por esse espaço que

foi inventado por uns, mesmo já sendo experimentado por muitos.

Nesse sentido, a representação de tipo realista que o romance de Hampaté Bâ faz do

espaço africano explicita a crítica ao sistema colonial ao encenar o jogo da colonização

francesa transpondo cidades e caricaturando personagens. O próprio protagonista, sujeito de

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identidade maleável, usufrui da mão de obra oferecida pelo sistema e não hesita em lhe tirar

vantagem quando é de seu interesse. Nesse sentido, Wangrin representa o indivíduo

“constituído ativamente” pelas bordas da colonização. Escapar da subjugação imposta pela

colonização é o desafio que o personagem enfrenta, porque, segundo Garuba:

A produção do espaço colonial era vinculada de diferentes maneiras com a produção do nativo colonizado. De fato, a própria categoria de nativo dependia das noções de um lugar fixo dentro de um mapa (uma terra demarcada) e um lugar fixo no mundo (adesão a um sistema de parentesco fixo, clã, tribo e uma orientação predefinida para o mundo). O mapeamento colonial representava paisagens de mobilidade para o colonizador, mas para o colonizado apresentava uma paisagem circunscrita de coação. (GARUBA, 2002, p. 96). 43

Para Garuba (2002, p. 95), no momento da ocupação colonial, a própria percepção do

terreno físico se torna mediada pelo discurso hegemônico europeu, que desloca, ou mesmo

suprime, as narrativas das experiências locais. Tal discurso instala a fixação da propriedade

privada enrijecendo a terra, o sujeito e mesmo o tempo.

No romance de Tutuola, o bebedor de vinho de palmeira, em sua constante

peregrinação por uma floresta sem traçado fixo, sem estrada, adotando o movimento e a

transformação como um trabalho pela vida (Mbembe), metaforiza, talvez, a fuga, como uma

estratégia de resistência ao invasor (Garuba). O discurso extremamente metafórico e o teor

mitológico do romance de Tutuola, ao encenar a viagem de iniciação do protagonista e ao

fazer referência à fluidez como um elemento da tradição, exemplifica a ameaça de uma nova

estrutura discursiva que Garuba chama de um coup d’état epistemológico. O presente

narrativo do romance de Tutuola ilustra a tentativa de aprisionamento de um espaço entendido

e experimentado a priori pelo narrador como sendo fluido. O incomum não é ir até a cidade

dos mortos, mas capturar a morte. O incomum não é se transformar em diversos outros seres,

mas ter de usar essa estratégia para sobreviver, como quando o protagonista se transforma em

canoa para trabalhar e assim conseguir dinheiro para comprar comida. A configuração

espacial do romance explicita a estranheza do sistema de troca que se faz por compra e venda.

Tal sistema legitima a propriedade privada que se apropria da terra e aprisiona os corpos,

impondo uma nova lógica discursiva. Por esse viés, as normas do sistema colonial são

criticadas. A apropriação do corpo do colonizado por um outro, metaforicamente expressa na

43 “The production of colonial space was thus tied up in many ways with the production of the colonized native.

Indeed, the very category of native depended upon notions of a fixed place within the map (a demarcated land) and a fixed place in the world (membership of a fixed kinship system/clan/tribe and a pre-defined orientation to the world). Colonial mapping represented landscapes of mobility for the colonizer, but for the colonized it presented a circumscribed landscape of constraint.” (GARUBA, 2002, p. 96).

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cena em que o protagonista segue o “cavalheiro de fato completo”, indica como o processo de

despessoalização foi levado aos espaços colonizados. Essa questão está clara em cena do

romance quando o “cavalheiro de fato completo” devolve as partes do corpo alugadas para ter

o direito de transitar livremente pelo espaço público: “Depois de termos viajado umas vinte e

cinco milhas, ele começou a arrancar todas as partes do seu corpo, devolvendo-as a seus

donos e pagando os aluguéis.” (TUTUOLA, 1970, p. 25). A situação se encaixa no que diz

Garuba, ao analisar obras literárias africanas sob a perspectiva da representação espacial em

territórios africanos. O teórico destaca a necessidade de mapear e demarcar esses territórios

como uma estratégia colonial:

Esse desejo colonial significava introduzir novos conceitos de terra, propriedade e posse que eram basicamente estranhos a essas comunidades. A fluidez e ambiguidade das noções nativas de posse e propriedade da terra tiveram que ser substituídas pela fixidez e certeza dos conceitos europeus. (GARUBA, 2002, p. 98).44

A fluidez que o bebedor experimenta no espaço fantasmal corresponde, como

relacionado por Garuba, a noções africanas de espaço. No entanto, as demarcações do espaço

percorrido, como as expressas por “vinte e cinco milhas”, parecem não fazer muito sentido

num ambiente em que as delimitações rígidas não existem. O traçado imposto pelos europeus

demarca arbitrariamente esse espaço, e o uso das unidades de medida inglesa, aplicadas a uma

realidade que provavelmente não era mensurada nesses valores, pode fazer referência à

arbitrariedade da demarcação do território pelos colonizadores, como foi experimentada pelos

nativos.

O espaço flutuante criado por Amos Tutuola, no romance O bebedor de vinho de

palmeira, cria, portanto um mundo fantasmal, segundo expressão de Achille Mbembe em

suas análises sobre a obra do escritor nigeriano, já mencionadas. O limiar desse mundo se

desenha, a princípio, como “[...] um lugar coberto por matas e florestas. [...] as cidades e as

aldeias não ficavam tão próximas umas das outras como hoje em dia.” (TUTUOLA, 1970,

p.8). A sucessão de eventos nos mostra um espaço em constante transformação. Embora os

eventos sejam localizados nessas cidades e florestas, muitas vezes, com as distâncias e o

tempo mensurados, não há limites claros entre os espaços percorridos; há uma sucessão de

entrar e sair das matas, das vilas, de onde quer que seja. De tal forma, a fluidez do sujeito

reflete e é refletida pela sucessão das paisagens. 44 “But then this colonial desire meant introducing new conceptions of land, property and ownership that were

basically alien to the communities. The fluidity and ambiguity of native notions of land ownership and property had to be replaced with the fixity and certainty of European concepts.” (GARUBA, 2002, p. 98).

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Mbembe, ao analisar o romance de Tutuola, em seu livro Crítica da razão negra,

afirma: “Entrando pela borda, somos projetados num horizonte em movimento, no núcleo de

uma realidade cujo centro está em todos os lados e em lugar nenhum; e onde cada evento gera

outros.” (MBEMBE, 2015, p. 205).45 A metamorfose do sujeito assim como a transitoriedade

do caminho são constantes. O importante é estar em movimento continuamente. Nem sempre

o destino é levado em consideração, e voltar nunca é uma opção. O filósofo entende que esse

espaço fantasmal está “à beira da vida”, mas que, uma vez nesse espaço, as linhas somem: “O

domínio fantasmal é uma cena na qual os eventos acontecem permanentemente sem jamais se

coagularem a ponto de formar uma história.” (MBEMBE, 2015, p. 204).46

No entanto, as referências espaciais de um mundo físico que precisa ser atravessado

para chegar à cidade dos mortos se sucedem. O personagem segue sua viagem, atravessando

matas e enfrentando grandes obstáculos, como no exemplo seguinte:

NENHUMA ESTRADA – É PRECISO VIAJAR DE MATA EM MATA PARA CHEGAR À CIDADE DOS MORTOS. // Viajamos umas quarenta milhas pelo interior da mata; às seis e meia da tarde chegamos a uma mata muito fechada. Era tão espessa que nem cobra poderia passar por ela sem se machucar. // Paramos ali mesmo, pois estava muito escuro e não conseguíamos enxergar direito. (TUTUOLA, 1970, p. 44, maiúsculas no original).

O destaque é dado ao percurso com o narrador enfatizando a falta de estrada. Os

personagens, o Bebedor acompanhado de sua mulher, andam e param sem um plano

predefinido ou porque encontram algum obstáculo no percurso, como no exemplo citado, ou

porque estão cansados ou com fome, ou ainda porque encontram algum outro ser. Notamos

que essa ênfase na falta da estrada é acentuada mais de uma vez no discurso do personagem

narrador, como que explicando o trajeto, mas também possivelmente fazendo uma analogia ao

emaranhado dessas aventuras que não obedecem a uma rota precisa. Assim como as próprias

matas são emaranhadas, as aventuras se sucedem umas às outras, sem que haja preocupação

lógica com a ancoragem numa realidade qualquer.

Nesse sentido, o bebedor de vinho de palmeira e seu mundo fantasmal nos fazem

questionar sobre a encenação que torna complexa a articulação metafórica contida entre a

ficcionalização e o objeto focalizado. No caso, acreditamos que as pistas para interpretação de

45 “Rentré par la bordure, on est donc projeté dans un horizon mouvant, au cœur d’une réalité dont le centre est

partout et nulle part; et où chaque événement en engendre d’autres.” (MBEMBE, 2015, p. 205). 46 “Le domaine fantomal est une scène où s’accomplissent en permanence des événements qui ne semblent

jamais se coaguler au point de faire histoire.” (MBEMBE, 2015, p. 204).

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certas metáforas encontram correlação no sistema colonial de extrema violência, como temos

visto, mas onde um trabalho maior com a língua poderia trazer mais elucidações.

A análise da espacialidade literária está também associada a um trabalho da

linguagem. Nesse sentido, Brandão, dialogando com Iser, no tópico que chama de “espaços

de indeterminação”, debate sobre questões especificas do que chama de “cerne da

linguagem”. Ao se referir à espacialidade da linguagem, observa a criação de diversos

imaginários de inspiração mitológica, afirmando: “o espaço literário se apresenta como

paisagem, mas é a irrealidade da paisagem que importa, aquilo que se esquiva do processo

segundo o qual a forma culturaliza a matéria.” (BRANDÃO, 2007, p. 217). Esse é o desafio

em Amos Tutuola, o de inquirir sobre “a viabilidade de um modelo, amplamente

antropológico, que conceba a literatura em função, justamente, de seus fortes laços com a

indeterminação (ou seja, com o imaginário).” (BRANDÃO, 2007, p. 218).

Porém, a estratégia do narrador de pontuar sua fala com determinadas explicações que

extrapolam o plano enunciativo revela uma preocupação em situar a arbitrariedade dos

eventos no mundo concreto da leitura. Ao explicar a história num movimento metanarrativo,

o narrador comenta a história que ele mesmo conta. Por um lado, o movimento repetido e

constante de se embrenhar cada vez mais mata adentro pode representar a estratégia usada

como resistência à dominação colonial. A falta de estrada assinalaria a incerteza do caminho

tomado e do que seria o futuro, o rumo ao desconhecido, embora o destino final seja a Cidade

dos Mortos. Por outro lado, quando a primeira pessoa invade o enunciado, mais uma vez

trazemos a atenção para os limites da literatura, que, segundo Tadié, “deve trabalhar

justamente sobre as fronteiras entre os gêneros, sobre os limites da literatura.” (TADIÉ, 1994,

p. 6). Sem nos preocuparmos com as classificações de gêneros, sobre as quais debate Tadié,

vimos observando em Tutuola determinadas pontuações sobre os limites da representação

literária.

A hipótese inicial será que a narrativa poética conserve a ficção de um romance: personagens que sofrem uma história em um ou mais lugares. Mas que, ao mesmo tempo, os procedimentos da narração remetem ao poema: existe aí um conflito constante entre a função referencial, com suas obrigações de evocação e representação, e a função poética, que chama a atenção sobre a forma mesmo da mensagem. (TADIÉ, 1994, p.7).47

47 “L'hypothèse de départ sera que le récit poétique conserve la fiction d'un roman: des personnages auxquels il

arrive une histoire en un ou plusieurs lieux. Mais, en même temps, des procédés de narration renvoient au poème: il y a là un conflit constant entre la fonction référentielle, avec ses tâches d'évocation et de représentation, et la fonction poétique, qui attire l'attention sur la forme même du message.” (TADIÉ, 1994, p.7).

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Nesse movimento, a prosa mitopoética de Tutuola se torna uma narrativa

metarreflexiva, chamando a atenção para a linguagem metaforizada pelo narrador na própria

língua usada: “me transformei num pássaro muito pequeno que descreveria como um ‘pardal’

na língua inglesa.” (TUTUOLA, 2014, p. 25).48 Procedimento irônico da voz narrativa,

quando analisamos sob o ponto de vista de Garuba, que explica que o golpe epistemológico

da colonização passa por uma estratégia discursiva acionada também na imposição de uma

língua que muitas vezes não serve para descrever uma certa realidade. A representação, em

Tutuola, apresenta assim seus estreitos laços com o imaginário, expondo até mesmo para uma

certa indeterminação, como exposto por Brandão. Ao expor a forma, podemos dizer, ainda

com Brandão que “considera-se que o texto literário é tão mais espacial quanto mais a

dimensão formal, ou do significante, é capaz de se destacar da dimensão conteudística, ou do

significado.” (BRANDÃO, 2013, p. 213).

O uso do imperativo serve para interpelar o leitor, objetivamente: “Tínhamos gostado

de tudo que havia na Ilha do Fantasma, entretanto ainda faltavam muitas outras etapas para

cumprir. Continuamos então nossa viagem por uma outra mata, mas lembrem-se de que por lá

não havia nenhuma estrada.” (TUTUOLA, 1970, p. 56). Ou ainda, no exemplo a seguir, o

narrador explica a situação utilizando um referencial externo ao texto. Para explicar a

arbitrariedade dos acontecimentos, o narrador compara situações completamente distintas à

atividade corriqueira de dormir num quarto e a outra, excepcional, de estar numa mata de

fantasmas. Assim, lemos o relato:

Depois, acompanhou-nos, mas o que nos causou espanto foi que a árvore se abriu como se fosse uma grande porta e, inesperadamente, encontramo-nos na mata. A porta se fechou no mesmo instante e a árvore tomou a aparência de uma árvore comum, que nunca poderia se abrir daquela maneira. No momento em que vimos que nos encontrávamos ao pé daquela Árvore Branca, nós dois (minha mulher e eu) dissemos: “Estamos novamente na mata”. Era como se simplesmente uma pessoa dormisse em seu quarto e, ao acordar, se encontrasse dentro de uma grande mata. (TUTUOLA, 1970, p. 79).

Essas poderiam ser as feições do espaço fantasmal a que Mbembe se refere. A cada

etapa cumprida, a cada volta do personagem à mata surge o lembrete do narrador para mostrar

que o mundo fantasmal está ali e por toda parte. Dessa forma, fica claro que no espaço desse

mundo fantasmal não há fronteiras, as criaturas se mesclam nos diversos espaços mostrando

48 “I changed myself to a very small bird which I could describe as a ‘sparrow’ in English language.”

(TUTUOLA, 2014, p. 25).

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que os limites não são bem definidos. Há apenas um “horizonte em movimento” (MBEMBE,

2015, p. 205).

Mbembe destaca a ênfase no percurso como algo que constitui o sujeito como

itinerante e, de certa forma, associa espaço à construção identitária. O filósofo analisa:

Esta é a razão pela qual apenas há sujeito itinerante. O sujeito itinerante vai de um lugar ao outro. A viagem enquanto tal pode não ter destinação precisa: assim ele pode entrar e sair à sua maneira. [...] O caminho não leva, entretanto, sempre ao lugar desejado. O que é importante não é a destinação, mas o que é atravessado ao longo do percurso [...]. (MEMBE, 2015, p. 210).49

Desse modo, podemos dizer que tentar delinear a cartografia do mundo fantasmal é

tarefa árdua. Embora o romance seja a história de uma viagem iniciática, cujos espaços são

indicados pela sucessão de paisagens, o que prevalece é o movimento em si. Por isso, muitas

vezes, o ponto de partida e o destino não são importantes. Sem estradas, como enfatiza o

narrador, as cidades ou localidades, quaisquer que sejam elas, habitadas pelas mais diversas

criaturas não obedecem a plano nenhum. Os personagens passam por lugares que são pontos

para estadias temporárias, sejam mais curtas ou mais longas. O trecho a seguir é mais um

exemplo dessa contínua situação de trânsito, em que o personagem vive.

Retomamos nosso caminho, e ainda não havíamos percorrido nem uma milha, quando nos deparamos com um grande rio que impedia a nossa passagem. Não podíamos atravessá-lo porque era muito fundo e notamos que não havia nenhuma canoa ou coisa parecida para usarmos como transporte. Ficamos ali parados por alguns minutos, até que decidimos seguir para o lado direito, sempre acompanhando a margem do rio, achando que assim talvez chegássemos ao seu final. Entretanto, andamos mais de quatro milhas sem atingi-lo. Decidimos porém continuar andando ao longo do rio, ainda achando que poderíamos encontrar uma saída, ou então um lugar seguro para descansar e dormir aquela noite. Tínhamos caminhado cerca de um terço de milha, quando vimos uma enorme árvore de mil e cinquenta pés de comprimento e duzentos pés de diâmetro. (TUTUOLA, 1970, pp. 71-72).

A falta de estrada aponta para a dificuldade do caminho detalhado e de uma rota

precisa. Assim, o destino final pode parecer desconsiderado, como no caso da travessia do rio,

no intuito de se chegar à Cidade dos Mortos. Tanto faz ir para a direita ou para a esquerda.

Assim, durante o percurso, o acaso prevalece. Os encontros se sucedem, embora a narrativa

pareça um exercício do arbitrário. O exercício da leitura desse romance de Amos Tutuola

49 “C’est la raison pour laquelle il n’y a de sujet qu’itinérant. Le sujet itinérant va d’un endroit à un autre. Le

voyage en tant que tel peut ne pas avoir de destination précise : aussi peut-il entrer et sortir à sa guise. […] Le chemin ne mène cependant pas toujours au lieu désiré. Ce qui est important, ce n’est donc pas la destination, mais ce que l’on traverse au long du parcours […]”. (MBEMBE, 2015, p. 210).

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implica aceitar a imprevisibilidade dos eventos, além da inverossimilhança que escamoteia a

alusão a referentes da realidade contextual.

O bebedor, no entanto, como afirma Mbembe, navega num espaço fluido constituído

de “signos que se entrecruzam, se contradizem, se anulam”, sendo traduzido em medidas

ocidentais, em milhas, e o tempo marcado pelo relógio. Tais estratégias refletem, de alguma

maneira, as bordas da configuração do espaço colonial e os elementos de um imaginário que o

sustentam.

Mais do que um espaço geográfico, o domínio fantasmal pertence simultaneamente ao campo órfico e ao campo visual, aquele das visões e imagens, de estranhas criaturas, de fantasmas delirantes, de máscaras surpreendentes – um comércio permanente com os signos que se entrecruzam, se contradizem, se anulam, se relançam, se distanciam em seus próprios movimentos. Esta é, talvez, a razão pela qual ele escapa à síntese e à geometria. (MBEMBE, 2015, p. 203). 50

A intromissão das unidades de medida que marcam tempo e espaço chamam atenção

quando aparecem nessa narrativa, que nega as fronteiras estáveis, temporais e físicas. Essas

pontuações pertencem a um eixo axial e demonstram a necessidade de controle e mapeamento

de um mundo que, entretanto, não obedece à lógica moderna. O espaço e o tempo fantasmal

são fluidos, já que morte e vida se interconectam. Nesse sentido, não há um plano linear de

acontecimentos, mas uma sucessividade de ações.

De acordo com a análise de Harry Garuba sobre romance do também nigeriano Chinua

Achebe, “a lógica fundacional de sua cultura fala do mundo como móvel, inconstante e

continuamente móvel.” (GARUBA, 2002, p. 90). É essa lógica que percebemos prevalecer no

romance de Amos Tutuola. No entanto, como também explicado por Garuba, o processo de

colonização implica o controle do espaço e do tempo, quando “mapas se tornam instrumentos

para a produção colonial e pós-colonial das subjetividades ao constituir e aprisionar o que

poderia ser enunciado no seu espaço discursivo.” (GARUBA, 2002, p. 90).51 Quando o

personagem de Tutuola percorre as florestas sem estradas e sem delimitações precisas,

insistindo em trazer informações que circunscrevem esse território numa outra visão de

50 “Plus qu’un espace géographique, le domaine fantomal appartient simultanément au champ orphique et au

champ visuel, celui des visions et des images, d’étranges créatures, de fantasmes délirants, de masques surprenants – un commerce permanent avec des signes qui s’entrecroisent, se contredisent, s’annulent, se relancent, s’égarent dans leurs propres mouvements. C’est peut-être la raison pour laquelle il échappe à la synthèse et à la géométrie.” (MBEMBE, 2015, p. 203).

51 “[…] the maps became instruments for the production of colonial and postcolonial subjectivities by constituting and constraining what could be enunciated within their discursive space.” (GARUBA, 2002, p. 90).

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espaço, identificamos a forma irônica como o romance alude à tentativa de aprisionamento

desse espaço na lógica axial da modernidade colonial.

Os exemplos a seguir mostram alguns desses momentos e, justapostos, sugerem um

pouco da arbitrariedade dessas marcações no mundo fantasmal. Vejamos: “Viajamos umas

quarenta milhas pelo interior da mata; às seis e meia da tarde chegamos a uma mata muito

fechada.” (TUTUOLA, 1970, p. 44). A medida aproximada da distância percorrida está

associada ao horário preciso de chegada a esse ponto que, na prática, é apenas um ponto

qualquer: “uma mata muito fechada” pode ser qualquer lugar dentro de qualquer território.

Nesse contexto, “umas quarenta milhas” parece medir uma distância aleatória. No exemplo

seguinte, a informação sobre a duração da estadia dos personagens nessa etapa do percurso,

na Árvore Branca com a Mãe-Devota, parece arbitrária de tão precisa. “Mas, certa noite,

depois de estarmos morando há um ano e duas semanas com a Mãe-Devotada, ela nos

chamou e disse que havia chegado a hora de partirmos e seguir nosso caminho.” (TUTUOLA,

1970, p. 78). Na sequência dos acontecimentos, “um ano e duas semanas” não parece uma

informação relevante, apenas quer dizer que era hora de partirem. Num outro momento,

indica-se que “Depois de percorremos umas doze milhas na Mata Vermelha com a jovem

vermelha, chegamos à Cidade Vermelha e vimos que lá tanto as pessoas como os animais

domésticos eram vermelhos.” (TUTUOLA, 1970, p. 81). Nesse exemplo, embora a medida do

percurso seja aproximada “umas doze milhas”, a distância do percurso tem certa ênfase.

Nesses momentos da leitura, indagamo-nos sobre o motivo dessas indicações que

marcam o espaço percorrido em milhas e jardas e colocam o tempo no relógio, referências

que não parecem ter nenhuma influência concreta no mundo fantasmal. No entanto, essas

informações, ao se mostrarem quase dispensáveis ao andamento da narrativa, marcando horas

e milhas, ironicamente, só querem indicar que a duração da jornada é longa e que caracteriza

o período de amadurecimento do protagonista, que parte das terras do pai como um jovem

rapaz, e ganha mulher e filho ao longo do percurso, onde enfrenta diversos obstáculos para

sobreviver.

Além disso, colocar hora e contar os passos seria uma primeira forma de controle

explícito do ambiente ao redor, que é na verdade imprevisível e perigoso.

Depois de estarmos vivendo havia cinco meses e alguns dias naquela casa, achamos que voltar para a cidade do pai de minha mulher seria perigoso por causa das várias provações que encontraríamos pela frente [...]. Voltar seria difícil e seguir adiante seria ainda mais, mas apesar disso resolvemos prosseguir. (TUTUOLA, 1970, p. 71).

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O mundo fantasmal de Amos Tutuola, em O bebedor de vinho de palmeira, traz uma

outra perspectiva para os questionamentos acerca da representação espacial do continente

africano, via literatura. Que África, afinal, se manifesta no romance? No romance de Mia

Couto, uma terra sonâmbula vagueia por experiências esquecidas. Os limites impostos pelos

portugueses ao espaço moçambicano e o caos da guerra civil, quando todos os sonhos ou

possibilidades de futuro parecem ter acabado, motivam uma reconfiguração da terra. Já no

romance de Hampaté Bâ, um estranho destino representa ainda o momento da imposição do

traçado europeu. Wangrin mostra que essa incorporação nunca atingiu uma plenitude, o que

significaria o completo apagamento de uma cultura pela outra, como pretendido pelo sistema

colonial. O movimento do intérprete colonial por diferentes culturas e diferentes espaços

acentua traços realistas da narrativa e legitima a intenção de caricaturar a realidade encenada.

Essa estratégia expõe a astúcia de Wangrin ao exacerbar sua obediência ao sistema para

marcar o questionamento à hegemonia colonial francesa sobre o território em que atua.

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3.3 Espaço, espacialidade, errância

Na teoria do martiniquense Édouard Glissant, a errância é o pensamento da circulação

e da imprevisibilidade. Mbembe, na conclusão de Crítica da razão negra, discute

especificamente a necessidade de “um pensamento em circulação, um pensamento da

travessia, um pensamento-mundo.” (MBEMBE, 2015, p. 258). Com apoio das reflexões de

Mbembe, recuperamos o pensamento de Glissant e trazemos um outro olhar para nossos

romances, sobretudo para melhor compreender o que neles é expresso com relação à

espacialidade e identidade.

Ao repensar os trânsitos do mundo e rever as configurações identitárias deles

decorrentes, Glissant aposta na perspectiva da Relação e do Diverso, lançando novos

caminhos para pensarmos as misturas dos povos, considerando a imprevisibilidade da

crioulização e da errância. A errância permite as misturas identificadas com o que o teórico

chama de crioulização e aparece como abertura do/ao mundo, interferindo, portanto, nas

configurações identitárias.

Essa questão está presente na fala do personagem principal do romance filosófico

Tout-monde, de Glissant, que, no espaço da ficção, lança uma reflexão instigante para

pensarmos as questões espaciais:

O pensamento da errância desbloqueia o imaginário, ele nos projeta para fora dessa caverna que emprisiona onde estávamos trancados, que é o porão ou a ilhota da dita unidade. Nós somos maiores, de todo a grandeza do mundo! [...] O que é essa viagem, que encerrará seu fim em si mesmo? Que tropeça em um fim! O ser nem a errância têm um prazo – a mudança é sua permanência, ho! – Eles sempre continuam.52 (GLISSANT, 1993, p. 145).

De um lado, entendemos que a errância é o que desbloqueia o imaginário da fixidez,

porque desconstrói o centro, o uno e, certamente, o fixo, abrindo uma nova possibilidade de

pensarmos a identidade e o espaço. De outro, podemos entender a errância como um

procedimento romanesco que aposta nos trânsitos e deslocamentos. Tal procedimento, como

vimos acentuando, pode ser notado tanto em O bebedor de vinho de palmeira como em

Terra sonâmbula, quando manipulam o espaço e o tempo, assumindo a fluidez das

construções identitárias como um devir em permanência.

52 “La pensée de l’errance débloque l’imaginaire, elle nous projette hors de cette grotte en prison où nous étions

enfermés, qui est la cale ou la caye de la soi-disant unicité. Nous sommes plus grands, de toute la grandeur du monde! [...] Quel est ce voyage, qui serra sa fin en lui-même? Qui bute dans une fin! L’être ni l’errance n’ont de terme – et le changement est leur permanence, ho! – Ils continuent toujours.” (GLISSANT, 1993, p. 145).

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Uma vez desfeita a comunidade imaginária do nacionalismo colonialista, o espaço e o

indivíduo se abrem novamente para a percepção da amplitude dos trânsitos. As fronteiras

impostas pela colonização da África são postas em questão, quando as narrativas das

experiências locais insistem em vir à tona, mesmo que de forma fragmentada e dispersa. A

terra é ela mesma sonâmbula. O espaço é ele mesmo transformado em um ser errante.

Nesse sentido, a percepção de errância em Glissant ajuda-nos a aproximarmos

identidade e espaço. Como sugerido por Garuba, ainda há muito o que se estudar sobre tal

enlaçamento. A representação de um espaço limitado configurado no desenho dos círculos

administrativos nos quais Wangrin deve exercer sua função, no auge do império colonial

francês, mostra-se em diferença nos trânsitos assumidos pelo personagem Kindzu, em Terra

sonâmbula.

Uma vez “negada a ilusão das origens na qual o nacionalismo prospera”, Kindzu,

como o personagem Askar analisado por Garuba, “se esforça para assegurar o instável mapa

de sua identidade”. (GARUBA, 2002, p. 108). O vaguear dos personagens de Terra

sonâmbula, no contexto da guerra civil moçambicana, permite a aproximação entre a

espacialidade ali representada e a busca pela construção de uma identidade que possa se

reconstituir no espaço do trânsito, da circulação, do movimento. Assim, quando Édouard

Glissant, pela boca de um personagem, conclama: “Abra ao mundo o campo de sua

identidade” (GLISSANT, 1993, p. 185), pensamos que a via é de mão dupla, um mundo

também deve se abrir à identidade dos sujeitos. Kindzu busca essa abertura quando, em seu

encontro com a amante Farida, questiona sobre seu lugar no mundo, buscando uma expansão

do significado do continente africano. A explicação, no trecho seguinte, esclarece que Kindzu

joga metaforicamente buscando a construção de sentido para a África. Kindzu narra seus

próprios pensamentos, em seu quinto caderno: “Ambos queríamos partir. Ela queria sair para

um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu

queria encontrar um outro continente dentro de África.” (COUTO, 2007, pp. 92-93). Com a

metáfora de uma outra África dentro de África, Kindzu blefa sobre seu desejo de partir. Seus

questionamentos nos permitem refletir sobre o imaginário construído a respeito do continente

africano que o personagem refuta. A princípio, podemos entender que Kindzu e Farida

queriam partir de onde estavam, como denotam os verbos “sair” e “desembarcar”. No entanto,

o sentido vago das metáforas poéticas de “novo mundo” e “outra vida” indica uma diferença

de perspectiva entre os personagens. Farida apresenta um olhar direcionado para fora, ela quer

o mundo, enquanto Kindzu mostra um olhar interior, a partir de sua própria construção

Page 82: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

80

subjetiva. Para ele é preciso reinventar a vida. A visão de cada um aponta para a possibilidade

de um significado plural para o continente África. Trata-se, portanto, na literatura, de

reconstruir um determinado imaginário, de questionar uma forma de representação. Este sair,

que não é propriamente um ir para fora nem para outro lugar, aponta para a possibilidade de

(re)construção a partir de uma perspectiva de dentro que, no entanto, seja transformadora a

ponto de gerar novos sentidos.

Ao especularmos sobre o sentido ficcionalmente criado pelo romance de Mia Couto

para discutir as relações entre espaço e identidade, nessa cena do romance Terra sonâmbula,

vale retrocedermos um pouco no pensamento de Kindzu. O personagem explica:

A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. (COUTO, 2007, p. 92).

A vontade de partir está, pela sequência dos pensamentos de Kindzu, associada a uma

sensação de grandes perdas que interferem na construção identitária. Dentre essas perdas,

situam-se os espaços das aldeias e todas as referências identitárias que eles legitimam. À

perda das aldeias se somam outras, como a das línguas locais e as previsões de um futuro

incerto delineado pela situação colonial. Entendemos que o personagem tem consciência das

várias perdas sofridas por ele e pelo povo de sua aldeia, perdas advindas da intromissão de

novos valores e significantes trazidos não apenas pela presença portuguesa ao seu espaço, mas

também pela igreja e por estrangeiros, como a portuguesa Virgínia e o indiano Surendra.

Notamos, a partir desse desenho feito pelo pensamento de Kindzu, que o colonialismo

português mudou as configurações espaciais de grande parte da África, da África sonhada por

ele, sobretudo porque, ao se extinguirem os espaços específicos das aldeias, significados por

costumes tradicionais, os referentes identitários também se alteraram, se dissolveram, embora

outras realidades tenham sido criadas.

Nessa cena do romance de Mia Couto, percebemos como a representação espacial do

continente africano é importante para reconstrução de um imaginário a respeito do que é

África. A parte fala pelo todo, a percepção local de Kindzu se expande, abraçando toda

África. Esse lugar onde o português já não deixa espaço para as línguas indígenas, onde não

há aldeias, pode representar qualquer região do continente africano em que o colonizador

tenha se apossado dos espaços de culturas autóctones. O desejo dos personagens de partir,

posto em paralelo com os sentidos de “sair” e “desembarcar” e também com os indicados

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81

pelas referências a “novo mundo” e a “outra vida”, formata-se a partir da obsessão de “sair de

África” ou “encontrar um outro continente dentro de África”, utopicamente imaginada como

um espaço que preserve as suas características originais, embora a todo instante a narrativa

acentue os trânsitos e as errâncias. O desejo de Kindzu permite-nos interrogar, então, sobre

espaços e expressões de identidade que se deseja, utopicamente, encontrar. Que África, afinal,

se delineia com os sentimentos de Kindzu?

Em Terra sonâmbula, como acentua o narrador, o imaginário se amplia no momento

de errância imaginária que permite que o menino Muidinga e o velho Tuhair assumam os

espaços e as viagens textualmente indicados nos cadernos do jovem Kindzu. Um espaço de

contínuas alterações se descortina nas páginas dos cadernos e, nelas:

A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? [...] Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (COUTO, 2007, p. 99).

Muidinga e Tuahir perambulam em torno do machimbombo transformado em abrigo,

desenrolando aventuras e histórias guardadas no acervo da oralidade, as quais evocam saberes

das culturas tradicionais moçambicanas. As estratégias textualmente construídas alcançam a

sensação de uma viagem que desloca identidade, espaços e tempo.

Nesse contexto, quando “o pensamento da errância desbloqueia o imaginário”

(GLISSANT, 1993, p. 145), deve haver uma nova abordagem da literatura, como propõe o

martiniquense: “E então eu sonho, por mim, porque sou escritor, sonho com uma nova

abordagem da literatura nessa desmesura que é o Todo-mundo.” (GLISSANT, 2013, p. 92).53

O tensionamento da representação exige, portanto, um caminho interpretativo possível que

considere os questionamentos relativos à encenação literária e à construção do imaginário

poético como estratégia.

A teorização feita por Glissant a respeito do conceito de errância pode ser entendida

como uma forma de interpretação das questões espaciais como as consideram os geógrafos

Doreen Massey e Milton Santos, quando discutem a confluência do espaço e do tempo e o

trânsito de pessoas no globo. A errância, como sugerido por Glissant, pode também ser

entendida como um procedimento do pensamento, não mais como uma interpretação do

mundo. Nesse sentido, como uma atitude de pensamento, ela é uma poética. Como uma

poética, a errância pode ser entendida como estratégia que desmancha a fixidez, tornando-se

53 “Et alors je rêve, pour ma part, puisque je suis un écrivain, je rêve une nouvelle approche de la littérature dans

cette démesure qu’est le Tout-monde.” (GLISSANT, 2013, p. 92).

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um conceito operacional para discussão das configurações espaciais que vimos

desenvolvendo.

Nesse caminho encontramos de fato, em Terra sonâmbula, a afirmação de uma terra

que “sozinha, deambula em errâncias” (COUTO, 2007, p. 99). O romance destemporalizando

o espaço, de certa forma, assume a sugestão de Doreen Massey, próxima ao pensamento de

Milton Santos: “E se nos recusássemos a expressar espaço em tempo? E se ampliássemos a

imaginação da única narrativa para oferecer espaço (literalmente) a uma multiplicidade de

trajetórias?” (MASSEY, 2015, p. 24). Percebemos o quanto a proposta de Massey está em

acordo com a perspectiva de errância de Glissant. Ambos propõem uma ampliação de

horizontes. Proposta que está, de certa forma, acolhida pelos deslocamentos presentes nos

romances analisados.

Embora os romances de nosso corpus não possam ser considerados narrativas de

viagem, identificamos neles movimentos e trânsitos constantes que afetam a vida dos

personagens e fazem com que o espaço seja visto como ativador da constituição da trama

romanesca. Os romances são marcados por deslocamentos espaciais e por encontros entre

personagens que vão agregando novas feições às histórias contadas e, desse modo, tecendo

entrelaçamentos narrativos, como vimos demonstrando ao longo dos capítulos.

Assim, todos os personagens circulam e se encontram com outros lugares, pessoas,

criaturas. Nesses movimentos e lugares de encontro proporcionados pelas situações de

trânsito, observamos, muitas vezes, a reincidência do questionamento que coloca face a face o

eu e o outro. O trânsito alarga a percepção dos sujeitos e aponta para a percepção de locais e

sujeitos periféricos, resultantes dos processos de exploração colonial e pós-colonial. Os

deslocamentos propiciam uma reflexão sobre o espaço, vendo-o como um lugar “de inter-

relações”, de “conexões e desconexões”, tal como afirma Massey:

Tanto espaço quanto tempo estão em jogo aqui. As especificidades do espaço são um produto de inter-relações – conexões e desconexões – e seus efeitos (combinatórios). Nem sociedade nem lugares são vistos como tendo qualquer autenticidade atemporal. Eles são e sempre foram interconectados e dinâmicos. Como Althusser costumava dizer, “não há ponto de partida”. (MASSEY, 2015, p. 106).

Portanto, sob o viés político, as demarcações do espaço podem ser vistas como mais

uma forma de construção das identidades. Essa questão está sempre encenada nos romances,

como vimos apontando.

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83

No romance de Hampaté Bâ, Wangrin é um personagem político por excelência. Ao

transitar pelos espaços do sistema colonial francês, ele demonstra a complexidade de

fenômenos que associam identidade e território. A noção de pertencimento está atrelada a um

território, mesmo quando extrapolada pelo sentido de “nacionalidade”, dado pelo

colonialismo. Wangrin é da etnia bambara, nascido no país de Noubigou, na cidade de

Ninkoro-Sira. Suas andanças pelo território da AOF marcam, a cada passo, a estreita relação

com uma política de pertencimento que manipula a ligação do sujeito e seu território. Nos

interesses da colonização, o espaço é visto como um território de feição nacional, já que

regido por normas estipuladas pela “nação colonizadora”. Indivíduos como Wangrin, sujeitos

cujo pertencimento se liga a tradições e culturas específicas, são forçados a assumir, muitas

vezes com sua própria conivência, normas e regras de uma cultura estranha a eles, como no

exemplo seguinte.

Assim, todos os documentos de Faboukari foram precedidos do título de “Senhor” de grande honra para todos os sujeitos franceses cujos nomes deveriam ser invariavelmente precedidos das palavras: “o nomeado”. O título de senhor era, de fato, dado apenas aos europeus e aos indígenas originários das quatro comunas do Senegal: Dakar, Goreia, Saint-Louis e Rufisque, que beneficiavam do status de cidadãos franceses. (BÂ, 1992, p. 235).54

Faboukari é um falso comerciante. O personagem é um fantoche de Wangrin, que o

usa para atingir seus objetivos comerciais. Para tal, não importa que sejam adulterados os

quadros de controle da câmara de comércio para que seja atribuído ao personagem o título de

“Senhor”, mecanismo de vinculação dos sujeitos coloniais no espaço legitimado pela

metrópole. O romance aponta para os critérios de categorização que atribuem à titulação

“Senhor”, quase sempre só permitida aos franceses. Ao delegar o título a determinados

africanos nascidos nos espaços colonizados pela França, na África, o título, politicamente,

quer destacar o quanto é honroso para os africanos receber o status de cidadão francês

atribuído pela colonização.

Entendemos que o romance de Hampaté Bâ encena os conflitos de identidade e de

espacialidade que circunscrevem a noção de comunidade nacional instaurada pela

colonização. Redesenha uma comunidade imaginada que se situa numa geografia desenhada

por conceituações de espaço e de tempo, que atuam na construção de uma forma particular de

54 Ainsi, tous les papiers de Faboukari furent précédés du titre de “Monsieur” grandement honorifique pour tout

sujet français dont le nom devait invariablement être précédé des mots: “le nommé”. Le titre de monsieur n’était en effet donné qu’aux Européens et aux indigènes originaires des quatre communes du Sénégal: Dakar, Gorée, Saint-Louis et Rufisque, qui bénéficiaient du statut de citoyen français. (BÂ, 1992, p. 235).

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poder e conhecimento, no caso, o colonialismo (HALL apud MASSEY, 2015, p. 108).

Segundo Massey, que, além de assumir o pensamento de Stuart Hall, cita o antropólogo

Johannes Fabian, a repressão a uma multiplicidade de trajetórias se torna a negativa real da

diferença dos outros. Essa repressão estabelece, portanto, uma geografia do poder. A

nacionalidade, colonialmente imaginada, torna-se poderosa a partir da possibilidade de um

deslocamento que forneceria a identidade/nacionalidade francesa a africanos, desprezando o

seu pertencimento étnico. Nesse processo, o espaço identitário se torna projeção do

imaginário do colonizador, enquanto as colônias passam a figurar como nações descolocadas

de seu ponto geográfico natal.

As relações entre espaço e tempo integram as discussões de Milton Santos (2012),

Dorreen Massey (2015) e mesmo as de Walter Benjamin (1994), quando instiga o pensamento

sobre a construção da história e das identidades. Entendemos, com Milton Santos, que

História e Geografia não estão dissociadas. Muito pelo contrário, a construção do espaço

geográfico está intrinsecamente associada ao curso da História. Nesse sentido, Santos afirma a

utilização de critérios da Geografia por geógrafos ligados às políticas colonialistas:

A utilização da geografia como instrumento de conquista colonial não foi uma orientação isolada, particular a um país. Em todos os países colonizadores, houve geógrafos empenhados nessa tarefa, readaptadas segundo as condições e renovada sob novos artifícios cada vez que a marcha da História conhecia uma inflexão. (SANTOS, 2012, p. 31).

As palavras de Milton Santos nos relembram que a conquista e administração do

território é sempre uma questão estratégica e, portanto, política, como também dito por

Massey (2015). Podemos dizer que a questão é também estratégica na organização do espaço

da literatura.

Considerando esse viés de interpretação, voltemos à Conferência de Berlim, que, em

1884-1885, ditou as regras do jogo segundo as quais as potências europeias se apropriariam

do território africano. As fronteiras delimitaram territórios imaginados de acordo com o

poderio das nações europeias que desconsideraram o sentido de espaço para os povos

africanos. O imaginário da África pós-partilha se constrói, assim, a partir de uma história de

poder, dominação, exploração e subjugação.

Nos exemplos citados do romance de Hampaté Bâ, fica explicita a encenação de um

“nós” versus um “outro” e os modos como o Ocidente colonizador impôs sua universalidade,

derrubando todas as particularidades daquele considerado Outro, o africano. Como se vem

demonstrando, Wangrin, muitas vezes, traduz e incorpora uma visão imaginada sobre si. No

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entanto, os seus trânsitos, que acabam por revelar a intrincada máquina administrativa que foi

o sistema colonial francês, não o desligam dos espaços de sua terra natal. Acompanhamos o

personagem em suas peripécias por diferentes lugares, exercendo a profissão de monitor de

ensino a intérprete do Haut-Sénégal et Niger, passando pelas localidades de Diagaramba,

Goudougaoua, Yagouwahi, Danfa Mourga, por viagens a Bamako e a Dakar, a comerciante

de sucesso, até sua derrocada final em Dioussola. Tendo atingido o reconhecimento dentro do

sistema colonial francês, sendo, portanto, quase um cidadão francês, sua morte redesenha os

espaços da tradição e de sua origem étnica.

Quando o imã da cidade chegou, disse à família: “Os restos de Wangrin, segundo a tradição, pertencem aos originários de Noubigou, sua cidade natal, atualmente presentes em Dioussola. Antes de proceder aos arranjos mortuários, deve-se buscar o decano dos concidadãos de Wangrin e o avisar.” (BÂ, 1992, p. 354).55

O laço de pertencimento à terra natal prevalece, ao final de todos os trânsitos de

Wangrin, ancorando o personagem na sua tradição bambara.

Por outro lado, é possível apontar uma possível desconstrução espacial no romance de

Tutuola. O romance trata de forma irônica a questão do pertencimento ao território e da

origem das criaturas. “O rei nos fez as seguintes perguntas: ‘De onde vocês estão vindo?’ Eu

respondi que vínhamos da Terra.” (TUTUOLA, 1970, p. 65). Lendo o romance também como

uma metáfora de muitas práticas impostas pelo sistema colonial, podemos entender a pergunta

do rei no sentido permitido pela ideia de uma “geografia racializada” conforme as

considerações de Mbembe. Nessa geografia, a experiência vivida do negro, como relatada por

Fanon, nos permite estabelecer uma analogia com a cena do romance. Essa experiência diz

respeito à dúvida que coloca em questão a humanidade do negro. A comprovação de que “o

negro é um ser humano”56 (FANON, 1971, p. 96) precisa vir da ciência, uma vez que “os

cientistas, depois de muitas reticências, admitiram que o negro era um ser humano, in vivo e

in vitro o negro foi revelado como análogo ao Branco; mesma morfologia e mesma histologia.

A razão garantia sua vitória em todos os planos.” (FANON, 1971, p. 96).57 É importante

considerar que o sistema colonial e, antes dele, a escravatura não consideraram os oriundos do

espaço africano como humanos, chegando ao absurdo de ser necessária uma comprovação

55 “Quand l’imam de la ville arriva, il dit à la famille: ‘La dépouille de Wangrin, selon la tradition, appartient aux

originaires de Noubigou, sa ville natale, actuellement présents à Dioussola. Avant de procéder à la toilette mortuaire, il faut chercher le doyen des concitoyens de Wangrin et le prévenir.’” (BÂ, 1992, p. 354).

56 “le nègre est un être humain”. (FANON, 1971, p. 96). 57 “Les scientifiques, après beaucoup de réticences, avaient admis que le nègre était un être humain; in vivo et in

vitro le nègre s’était révélé analogue au Blanc; même morphologie, même histologie. La raison s’assurait la victoire sur tous les plans.” (FANON, 1971, p. 96).

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que tivesse respaldo científico. Tais fatos reafirmam o quanto a concepção espacial é uma

realização política, assim como é a produção desse imaginário sobre a África.

Francisco Noa, ao estabelecer uma sistematização da literatura colonial moçambicana,

esclarece que “a emergência da literatura colonial acontece na esteira da literatura de viagens

e de exploração” (NOA, 2015, p. 24). É possível supor que os relatos de viajantes sobre a

África fornecem elementos para a construção do imaginário sobre o que seria “o

autenticamente africano”, do ponto de vista dos europeus.

Nesse sentido, é pertinente conhecer o que diz o jornalista e escritor Albert Londres,

que dá nome a um dos prêmios mais prestigiosos do jornalismo francófono. Londres viaja à

“África Negra” num momento de apogeu da colonização do império francês e, no seu relato,

Terre d’ébene aponta: “Aqui estão os Negros, os verdadeiros, os puros, não os filhos do

sufrágio universal, mas os do velho Cam.” (LONDRES, 2006, p. 31). 58 Na primeira edição

do livro, em 1929, o jornalista esclarece: “Vinte milhões de Negros, sujeitos franceses. Dois

impérios.” (LONDRES, 2006, p. 29).59 Entendemos que não é gratuito quando o jornalista

aponta os habitantes do continente africano como “Negros”, com ênfase na sua pureza e

origem. A afirmativa confirma uma ideia que se tem da África, quando é afirmada como

diferente da Europa, espaço de onde se origina o jornalista.

Ainda considerando a questão das configurações espaciais nos romances estudados, é

importante destacar que Doreen Massey sugere uma visão espacial que se desvincule da

concepção moderna e linear de evolução que elenca os eventos um após o outro numa

cronologia entendida como a evolução do progresso humano, segundo a classificação das

potências econômicas. Como contraponto a essa concepção, a geógrafa sugere para a

compreensão do espaço uma perspectiva que considere a possibilidade de “coexistências

simultâneas” numa “imbricação de trajetórias” (MASSEY, 2015). Assim, o espaço e a

história tornam-se lugar do encontro, possibilitando a multiplicidade de narrativas produzidas

“até agora”, como dito por Massey, num tempo “saturado de agoras”, como teorizado por

Benjamin (1994). Nesse contexto, percebemos que o movimento da errância e da crioulização

podem ser vistos como manifestação dessas “coexistências simultâneas” que acontecem num

lugar tornado espaço de encontro.

Os encontros fazem as histórias, como os que se dão entre Muidinga e Tuahir, em

Terra sonâmbula. Diferentes personagens inserem na trajetória do velho e do menino lendas

58 “Voici les Noirs, les vrais, les purs, non les enfants du suffrage universel, mais ceux du vieux Cham.”

(LONDRES, 2006, p. 31). 59 “Vingt millions de Noirs, sujets français. Deux empires.” (LONDRES, 2006, p. 29).

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87

de outros tempos. Muitas das passagens do romance, seja na narração dos cadernos de Kindzu

ou no desenrolar da trama entre o menino e o velho, enfatizam a importância do caminhar, da

errância como um movimento que pode ser entendido como um deslocamento contínuo. O

jogo narrativo, em Terra sonâmbula, faz com que o espaço seja percebido e experimentado

nele mesmo como algo transitório: “Há dias que não se arredam do machimbombo. No

entanto, a paisagem em volta vai negando a aparente imobilidade da estrada.” (COUTO,

2007, p. 174). Por sua vez, Kindzu busca pelos naparamas, por um país e por uma África,

chamando a atenção para o caminhar: “O problema não é o lugar, disse, mas o caminho.”

(COUTO, 2007, p. 31, em itálico no original), como lhe é aconselhado pelo curandeiro, no

início de sua jornada. Conselho que, mais uma vez, aponta para uma concepção espacial não

fixa. A metáfora da escrita reforça o jogo narrativo e o espelhamento entre paisagem e

personagens, presente no romance. Essa estratégia reforça as possibilidades de construção de

sentidos para o espaço e se adapta à busca de Kindzu por uma ideia de África em aberto. Os

espaços em mudança, os trânsitos, os deslocamentos acabam por acolher elementos das

considerações de Glissant, quando afirma: “Ora, o movimento é aquilo que se realiza

absolutamente. A Relação é movimento.” (GLISSANT, 2011, p. 163). “Avançámos que a

Relação é totalidade aberta, em movimento sobre si mesma.” (GLISSANT, 2011, p. 181). O

horizonte em movimento, como descrito por Mbembe na narrativa de Tutuola, também pode

ser identificado, literalmente, no modo como a paisagem é vista pelos andarilhos do romance

de Couto.

Em Terra sonâmbula, a estrada atravessa a história de Muidinga e Tuahir,

proporcionando encontros com espaços que guardam resquícios de uma cultura destroçada

pela guerra. Assim como Kindzu, os personagens perambulam pelo país. São tantas voltas que

já não faz diferença se a terra gira ou se a estrada é que viaja. Eles parecem perder a

referência de onde estão constantemente. De forma mais contundente do que em Amos

Tutuola, o movimento é constante, bem como as alterações das configurações espaciais.

“Então se admira: aquela árvore, um djambalaueiro, estava ali no dia anterior? Não, não

estava. Como podia ter-lhe escapado a presença de tão distinta árvore? E onde estava a

palmeira pequena que, na véspera, dava graça aos arredores do machimbombo?

Desaparecera!” (COUTO, 2007, p. 36). Quem anda? Eles ou a estrada? Onde está África

pensada pelas personagens? O que Kindzu procura afinal, em seus deslocamentos espaciais:

naparamas, seu pai ou uma ideia de África?

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- Mas você, meu filho, não se meta a mudar os destinos. // Afinal, eu contrariava suas mandanças. Fossem os naparamas, fosse o filho de Farida: eu não estava a deixar o tempo quieto. Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera. Ou como aquelas fogueiras por entre as quais eu abria caminho no areal. (COUTO, 2007, p. 107, itálico original).

Enquanto para Muidinga e Tuahir a estrada é que anda, “sonambulante”, o jovem

Kindzu assume para si a qualidade de sonâmbulo e entra em confluência com sua terra.

Ambos sonâmbulos. No romance poético de Mia Couto, a noção de pertencimento pela

ligação com a terra se mescla à própria identidade na projeção que o sujeito faz de si em sua

terra. Ao entrar em confluência com sua terra, Kindzu a personifica. Concluímos, pois, que

identidade e espaço, de uma forma ou de outra, são noções intrinsecamente ligadas. Para além

do confronto entre o eu e o outro, afirmam-se os deslocamentos que proporcionam os mais

diversos encontros.

Diferentemente de Terra sonâmbula, o fluxo de paisagens e as sucessivas

transformações do personagem principal de O bebedor de vinho de palmeira fazem dessa

narrativa uma trama de difícil “coagulação”, como explicado por Mbembe, ao considerar a

obra como um espaço de trânsito que privilegia o encontro. Se o movimento é contínuo, os

encontros também o são. O espaço do romance se torna um lugar de encontro com as mais

diversas criaturas. Qualquer lugar ou hora é propício ao encontro, como já demonstrado nos

diversos exemplos citados ao longo dos capítulos desta tese. Basta que o protagonista esteja

em trânsito para que as criaturas surjam; os encontros acontecem desencadeando os eventos.

A falta de estrada, como também apontado, acentua o deslocamento que não exige uma

direção precisa. Até que o destino final, a Cidade dos Mortos, e o encontro com o vinhateiro

morto se tornam mais um ponto de passagem, a viagem continua de volta à terra do pai, de

volta à origem. Finalmente, o encontro que encerra o romance é a união entre o Céu e a Terra,

o que ressalta o caráter mítico da narrativa. Assim, o romance permite uma leitura metafísica,

se entendemos que ela joga “sobre as formas de vida”, construindo uma estratégia de

afastamento da morte, em que a “subjugação do mito é total, internalizando no espaço do

corpo a imortalidade dos deuses e a mortalidade dos homens.” (MIRANDA, 2008, p.46).

Como acentua Miranda, “ao mesmo tempo se garant[e] um espaço simultaneamente terrestre

e divino, real e fantástico, que permitiria localizar com precisão a morada das almas imortais

e dos corpos mortais.” (MIRANDA, 2008, p.46).

Vale assinalar que o percurso do bebedor de vinho tem certa semelhança com o

desenvolvido por Wangrin, no romance de Hampaté Bâ. Ambos representam um retorno às

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origens. No caso do romance de Amos Tutuola, como dissemos, a origem é simbolizada pela

cena final de viés mitológico e pelo retorno do personagem às terras do pai. No caso de

Wangrin, o retorno às origens é marcado pelo fato de ele se transformar em amuseur public,

voltando, portanto, ao seio da tradição.

É importante ressaltar que a representação do espaço, no romance de Bâ, é marcada

pela luta entre o poder do colonizador e a resistência dos colonizados que, a exemplo de

Wangrin, mesmo que adotem certos costumes do colonizador, mantêm fortes laços com suas

origens. Ao longo do romance é tecida a derrocada do personagem que, ao final, sucumbe à

paixão pela mulher branca e ao alcoolismo. Quanto mais ele tenta driblar a potência colonial,

mais ele cai em sua malha (GARUBA, 2002, p. 104). Como explica Garuba, a respeito do

contexto em que se inscreve o romance de Chinua Achebe (1986), e por extensão o de

Hampaté Bâ: “Dentro da economia cultural do discurso colonial, [a] liberdade de pegar e

escolher, de reter e descartar, é limitada pela estrutura do discurso e do poder. [A] mobilidade

física e posicional como um ‘corpo’ e ‘sujeito’ é circunscrita e constantemente sob

vigilância.” (GARUBA, 2002, p. 103).

As considerações de Garuba servem de apoio para nossa interpretação da situação de

Wangrin, que ao longo de sua vida se esforça para driblar, com malícia, o mundo colonial e

transitar por ele, tirando proveito pessoal de sua profissão de intérprete, o que, a princípio,

ratificaria seu duplo pertencimento ao espaço colonial. No entanto, ao final de sua vida,

vemos que a comunicação entre o espaço da tradição e o ressignificado pela colonização não

se dá sem grandes conflitos. O deslize de Wangrin – sua paixão por uma mulher francesa e o

vício do álcool – vem de sua excessiva confiança de pertencer a um espaço ao qual ele não

pertence realmente. Sua morte confirma que sua aceitação só poderia advir do lugar de

nascimento. Logo, embora o romance confirme o trânsito entre as culturas, mostrando através

da função de intérprete que as fronteiras não são tão fixas, as separações próprias do mundo

colonial – um espaço cindido como visto por Fanon – prevalecem. Wangrin, ao morrer,

abraça sua origem, mas não tem nenhum reconhecimento do sistema ao qual ele “serviu”

acreditando que, como excelente tradutor, mereceria as benesses destinadas “aos Negros da

África”, como diversas vezes ouviu de seus comandantes.

Como procuramos demostrar ao longo deste capítulo, a categoria espaço é importante

para entendermos o modo como os três romances articulam os espaços ficcionalmente

construídos. As configurações espaciais permitem considerar as inter-relações entre os

espaços encenados e os contextos em que os romances foram produzidos. Se nos romances de

Hampaté Bâ e de Tutuola fica clara a interferência da colonização nas terras africanas, no

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romance de Couto vemos o desmantelamento desse espaço africano que não se adapta ao que

foi configurado pela colonização e nem mesmo ao imaginariamente legitimado pela tradição.

Assim, notamos o movimento constante dos personagens em busca de espaços e

espacialidades que reconfigurem a feição múltipla do país.

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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS

Neste último capítulo pretendemos discutir as estratégias narrativas assumidas pelas

obras em análise, destacando os recursos utilizados para dar conta de escritas literárias que

não escondem as relações que fazem com os contextos de onde são provenientes. Nessa

discussão será enfocada a constituição dos narradores como contadores de histórias, bem

como cada um dos romances consegue abordar as tensões que dão corpo às narrativas.

Discutiremos, sobretudo, como essas narrativas assumem expressões estéticas próprias do

gênero romance, ainda que mantendo características dos gêneros orais de seus diferentes

contextos.

Os romances africanos instalam, com narrativas que não atentem às expectativas do

cânone ocidental, outros paradigmas literários. De tal forma que, para sua análise crítica, eles

exigem uma outra epistemologia da teoria literária como vem sendo discutido por pensadores

como Achille Mbembe, Franz Fanon, Harry Garuba, Édouard Glissant, Inocência Mata e J.Y

Mudimbe, entre outros teóricos africanos e africanistas. Ao longo dos capítulos anteriores,

procuramos demonstrar, através da discussão da temática da identidade e do espaço, que os

romances do nosso corpus encenam aspectos relativos a uma outra perspectiva do mundo.

Essa outra cosmogonia africana representa, muitas vezes, o choque entre dois mundos e sofre

para se fazer entender nesse entre-lugar. Enquanto a teoria literária continua representada

fortemente pelo eixo norte, as literaturas africanas pedem uma epistemologia literária capaz

de considerar os aspectos narrativos e extraliterários que lhe são próprios. Estas são algumas

premissas com as quais trabalhamos neste último capítulo, com o suporte da teoria pós-

colonial, por entendermos que essa feição da crítica literária não se apresenta somente como

uma discussão conceitual, mas proporciona também um enfoque que considera seu próprio

fazer crítico. De acordo com os estudos da pesquisadora são-tomense Inocência Mata, as

várias abordagens dos estudos pós-coloniais acabam por compor uma tentativa comum de

“construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos.”

(MATA, 2014, p. 31).

4.1 Africanos como sujeitos dos romances

Direcionando a afirmação de Mata (2014) para a investigação das obras selecionadas,

observamos que a construção dos personagens como heróis deslocam, em certos aspectos, a

concepção de herói como considerada pelo cânone do romance moderno. Percebemos como

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92

as identidades dos sujeitos africanos encenadas afetam sua constituição heroica sem, no

entanto, prejudicar seu desempenho formal dentro da economia romanesca.

Assim, como vimos demonstrando, a identidade dos personagens do Bebedor de

vinho de palmeira, de Amos Tutuola, Wangrin, de Amadou Hampaté Bâ, e também de

Kindzu, Muidinga, Tuahir e Farida, de Terra Sonâmbula, de Mia Couto, se constitui de

momentos conturbados. Nesses momentos, a violência do meio externo faz com que o

processo de constituição da identidade do sujeito não se dê segundo a teoria moderna que

preconiza uma identidade única e fixa. Os sujeitos negros que nascem do processo colonial

expressam personalidades múltiplas e habitam um entre-lugar em que a concepção de

identidade única imposta pelo modelo europeu entra em colapso. No entanto, pretendemos

discutir como esses sujeitos, como protagonistas dos romances estudados, ocupam o lugar de

“heróis”, mesmo os desafiando, em seus respectivos romances.

De que forma eles e seus romances desafiam as concepções literárias atreladas à

modernidade europeia? Para tanto, não devemos perder de vista que os romances são

estudados como uma estratégia linguística e, como tal, são construídos através da linguagem.

Francisco Noa, em seu trabalho sobre o romance colonial moçambicano, para quem a

discussão sobre a representação literária incorre no risco da tautologia, enfatiza a construção

da linguagem como criação, ressaltando que é preciso passar da possibilidade da

representação para a realização da criação, considerando o desempenho da linguagem. (NOA,

2015).

Na mesma linha, conferindo especial atenção à linguagem, Bakhtin considera:

O gênero romanesco não é a imagem do homem em si que é característica, mas justamente a imagem de sua linguagem. Mas para que esta linguagem se torne precisamente uma imagem de arte literária, deve se tornar discurso das bocas que falam, unir-se à imagem do sujeito que fala. (BAKHTIN, 1993, p.137).

O teórico russo coloca a linguagem, no sentido do discurso que é produzido pelo

romance, como a representação que é encenada pela narrativa como o cerne do que é o gênero

romance.

Nesse sentido, como uma construção discursiva, os romances estudados colocam no

lugar reservado pela modernidade, capitalista e burguesa, protagonistas que, como sujeitos

advindos do processo colonial, perturbam a estreiteza da heroicidade moderna, por não

corresponderem ao modelo que a burguesia entende e impõe como “homem” ou “indivíduo”.

No entanto, esses protagonistas não deixam de ocupar, em seus respectivos romances, o lugar

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93

de herói dentro da estrutura da obra literária, assumindo características próprias em suas

respectivas trajetórias.

Do ponto de vista da estrutura narrativa, o norte-americano Christopher Vogler se

apropria dos estudos do russo Vladimir Propp, apoiando-se nos arquétipos do psicanalista

suíço Carl Gustav Young, para decifrar um percurso comum a todas as histórias, e entende

que a “jornada do herói é uma armação, um esqueleto, que deve ser preenchido com os

detalhes e surpresas de cada história individual.” (VOGLER, 2006, p. 47). Em seu estudo

intitulado A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores, Vogler (2006) identifica os

elementos que constituem o que denomina narrativa mítica como sendo uma narrativa

ancestral que trata da jornada do herói. Segundo o estudioso, os escritores perseguem “eternos

padrões” narrativos que perduram na maneira do homem contar histórias, e se mantêm quase

que em qualquer história. A universalidade da fórmula detalhada por Vogler encontra

respaldo na teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos de Young. O teórico brasileiro

André Vieira condensa assim os estudos dos teóricos apontados:

Estudando uma quantidade muito grande de sonhos, Jung reparou que o sonho tende a se organizar como um drama. [...] É interessante notar que Jung (1945/1984) não irá empregar o termo narrativa, mas drama, utilizando, assim, a mesma terminologia empregada por Aristóteles. Tal fato se explica pelo estado da arte na época. De qualquer maneira, a unanimidade entre os estudiosos da narrativa em apontar Aristóteles como seu principal precursor nos autoriza a entender, neste caso, drama como narrativa. Outro ponto que deve ser salientado é o fato de que Jung organiza sua estrutura narrativa a partir de quatro macro-proposições: Exposição,

Desenvolvimento, Peripécia e Resultado. (VIEIRA, 2001, p. 602).

Vogler (2006) aponta 12 etapas que o herói atravessa em sua jornada que podem ser

vistas como uma derivação das quatro principais etapas descritas por Young. Em termos de

estrutura essencial da narrativa e da trajetória do herói, em um aspecto ou em outro, os

protagonistas dos romances estudados se aproximam, mas também se distanciam dessa

espécie de modelo universal, em que o “arquétipo do Herói representa a busca de identidade e

totalidade do ego” e que “no âmago de toda história existe um confronto com a morte”.

(VOGLER, 2006, p. 52).

Diante do exposto, observamos que as trajetórias dos protagonistas estudados são

específicas. Os romances colocam o homem negro lutando para sobreviver à guerra, em

Terra sonâmbula, tentando vencer as barreiras impostas pela administração colonial, em

L’étrange Destin de Wangrin, enfrentando a própria morte, em O bebedor de vinho de

palmeira. No entanto, em Terra sonâmbula, a luta de Kindzu, Muidinga e Tuhair descarta

uma percepção individualista, já que o almejado por eles é perseguir uma luta coletiva, a do

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povo moçambicano. Wangrin mostra-se, ao final, depois de um percurso individualista e

burguês, um defensor da tradição africana ao assumir-se como contador de histórias (amuseur

public). O bebedor de vinho, no romance de Tutuola, desafia a heroicidade moderna ao

metaforizar, através de suas histórias mitológicas, a violência do mundo colonial.

A busca pela identidade, nesses casos, como observa Frantz Fanon, ao teorizar sobre o

que podemos considerar um arquétipo do homem negro, acentua a impossibilidade de

realização de uma identidade que, embora prometida pelo sistema colonial através das

políticas de assimilação, é sempre impossível de ser alcançada. O homem que se vale de uma

máscara branca é representado, no nosso corpus, principalmente, pelo personagem de

Wangrin. Nele vemos explicitamente como a identidade pretensamente europeia de um

assimilado nunca passará de uma máscara branca sobre uma pele irremediavelmente negra. O

desejo de branqueamento se torna um fantasma perseguido infinitamente.

De acordo com análise feita por Achille Mbembe, em Crítica da razão negra, “a

colonização é uma prodigiosa máquina produtora de desejos e de fantasmas”60 (MBEMBE,

2015, p. 168). Os romances estudados encenam metaforicamente a luta do homem colonizado

com os fantasmas aludidos por Mbembe. Nesse sentido, a África colonizada surge para a

modernidade fadada ao fracasso, pois é inventada a partir de um paradigma impossível de ser

realizado. Segundo Mbembe, “O nascimento do sujeito de raça – e então do Negro – está

ligado à história do capitalismo.”61 (MBEMBE, 2015, p. 257). Temos visto que é como uma

empreitada capitalista que a máquina colonial é posta em ação. A identidade do negro é,

portanto, indissociável desse modo de produção.

Ao arquétipo do herói de romance, como teorizado por Vogler, deve ser incluído o

arquétipo do homem negro, como teorizado por Fanon. A encenação desse sujeito na

economia romanesca afeta o gênero, transformando-o, quando, a partir do embate das culturas

do processo colonial, a identidade do homem negro se expressa na multiplicidade, numa

tensão promovida pelo jogo colonial. A identidade negra, fomentada pelo desejo de consumo

e alimentada por fantasmas promovidos pelo capitalismo colonial, é fadada ao fracasso. Pela

impossibilidade de sua realização, ela torna-se uma fantasia, uma neurose sempre estimulada,

como analisada por Fanon. Como sujeitos, dentro de tal contexto, entendemos que nossos

heróis desafiam o entendimento moderno de identidade fixa. No entanto, permanecem

“heróis” do romance, pois ocupam o lugar de destaque no desenrolar das peripécias

romanescas. Acrescentando outra dimensão ou mudando a perspectiva de certas etapas

60 p. 168: «La colonisation est une prodigieuse machine productrice de désirs et de fantasmes.» 61 p. 257: «La naissance du sujet de race – et donc du Nègre – est liée à l’histoire du capitalisme.»

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destacadas por Vogler, como o confronto com a morte, que se torna uma luta pela

sobrevivência, o que sobressai é ação da função heroica: “agir ou fazer. O Herói, geralmente,

é a pessoa mais ativa do roteiro. Sua vontade, seu desejo, é que empurram as histórias para a

frente.” (VOGLER, 2006, p. 55). Nessa perspectiva que considera a estrutura da narrativa,

observamos o protagonismo de nossos heróis como comandantes de suas ações.

Adotando uma visão mais ampla, que considera a participação do herói como um

tópico de destaque dentro do gênero, entendemos que a ausência de convenções formais do

romance permite sua plasticidade e sua adaptação ao longo do tempo, ao curso de diversas

realidades, sendo possível que se torne a expressão não só da epistemologia da modernidade,

ainda que surgindo dela. Embora o romance como gênero literário e objeto de estudo sofra

com a necessidade de definição, demanda típica de qualquer ciência, diante da teoria

principalmente de Ian Watt, Mikhail Bakhtin e Marthe Robert, como discutiremos a seguir, é

possível entender o gênero como:

[...] revolucionário e burguês, democrático por opção e animado por um espírito totalitário que o leva a romper obstáculos e fronteiras, o romance é livre, livre até o arbitrário e até o último grau da anarquia. Paradoxalmente, todavia, essa liberdade sem contrapartida não deixa de lembrar muito a do parasita, pois, por uma necessidade de sua natureza, ele vive ao mesmo tempo na dependência das formas escritas e à custa das coisas reais cuja verdade pretende “enunciar”. E esse duplo parasitismo, longe de restringir suas possibilidades de ação, parece aumentar suas forças e ampliar ainda mais seus limites. (ROBERT, 2007, p. 13).

A explicação da pesquisadora francesa Marthe Robert nos permite perceber o gênero

como um exercício de uma narrativa livre que insere, no centro da ação como apontado por

Vogler, os sujeitos negros de identidades múltiplas que atuam como heróis dentro da

economia literária dos romances estudados.

4.2 O trabalho heroico: do individual para o coletivo

O confronto do(s) herói(s) com a morte é explícito nos romances estudados e pode ser

lido como uma metáfora da escravização do negro africano dentro do processo colonial, no

exemplo específico trazido pelo romance de Amos Tutuola, quando a individualidade se

concretiza no espaço físico do corpo violentado. O teórico inglês Ian Watt, em seu estudo

sobre a ascensão do romance, assinala que os heróis, ao modelo de Robson Crusoé,

personificam nos romances o individualismo do mundo. O herói, ainda segundo Watt, é o que

promove a ação no romance. Mas, para explicar sua legibilidade, o teórico inglês estabelece

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sua relação com o contexto social externo: “O individualismo econômico explica grande parte

do caráter de Crusoé; a especialização econômica e sua ideologia ajudam a esclarecer o

fascínio de suas aventuras; mas o que domina seu ser espiritual é o individualismo puritano.”

(WATT, 2010, p. 78). O teórico destaca o caráter individualista do herói de romance como a

celebração de umas das principais características da modernidade, o individualismo

capitalista. Esse caráter individual pode ser associado diretamente à luta pela sobrevivência.

Como personificação de um certo modelo de individualismo, encontramos no

personagem de Wangrin um exemplo mais evidente desse homem que encarnaria um ideal de

autorrealização e sucesso social, em acordo com os heróis dos romances modernos. Mesmo

que, ao final, Wangrin não seja exatamente esse herói bem-sucedido, ele é ao longo de toda a

narrativa o protagonista dentro dessa economia literária do romance que encena suas

aspirações individuais.

Os exemplos já citados, nos capítulos anteriores, da obra de Hampaté Bâ mostram

como o protagonista Wangrin se insere no contexto colonial e capitalista através do valor de

sua mão de obra. É primeiro como monitor de ensino, depois como intérprete colonial e,

finalmente, como comerciante, que o protagonista se destaca socialmente. Seu trabalho

compra, a princípio, seu status social. O romance mostra a escalada social de Wangrin, que

com o conhecimento da cultura do colonizador, dominando a língua, os gestos, e mesmo

alcançando altos cargos na administração e comércio local, não se contenta. Sua ganância não

tem limites, tudo faz parte de um plano de enriquecimento (p. 62), onde esbanjar sua riqueza

com jantares e festas não é suficiente (p. 64), até ser finalmente visto como alguém que “sua

dinheiro por todos os poros de sua pele”62 (p. 318). A conquista da mulher branca é mais uma

etapa de sua luta por reconhecimento num quadro delineado pelos desejos e fantasmas da

máquina colonial. Esse modelo de herói que traz uma personalidade às avessas também se

encaixa numa concepção estruturalista de herói. Segundo Vogler, mesmo os chamados anti-

heróis seriam apenas um tipo especial de herói que pode “ser um marginal ou um vilão, do

ponto de vista da sociedade, mas com quem a plateia se solidariza, basicamente.” Ou, ainda,

seriam “Heróis com defeitos, que nunca conseguem ultrapassar seus demônios íntimos, e são

derrotados e destruídos por eles.” (VOGLER, 2006, p. 58).

No entanto, o individualismo heroico, dentro dos romances africanos estudados, não

se liga expressamente ao individualismo burguês como caracterizado por Watt. O trabalho é a

luta pela vida, e nesse sentido representa o confronto com a morte, ao contrário da lógica

62 “Il sue l’argent par tous les pores de sa peau.” (BÂ, 1992, p. 318).

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individualista moderna, em que o trabalho é a busca pelo sucesso representado pelo poder e

pelo acúmulo de capital.

Mbembe interpreta o trabalho – na obra de Amos Tutuola, que lhe serve de exemplo

em sua análise sobre a “razão negra” – como uma atividade desempenhada para assegurar a

sobrevivência do indivíduo dentro do mecanismo colonial. Nesse extremo, quando o poder

colonial se impõe pela força e o corpo do homem negro torna-se uma peça, entendemos que

se trata do trabalho escravo. Mbembe diz: “No centro do trabalho pela vida está,

evidentemente, o corpo, esta matéria evidente a qual se ligam, em seguida, várias

propriedades, um número, uma cifra.”63 (MBEMBE, 2015, p. 209). Um corpo que, Mbembe

explica, “não significa nada”. Esse corpo destituído de sua humanidade, um sujeito sem

subjetividade, fica desprovido de significado, está pronto a desempenhar um trabalho que é

uma “atividade permanente”. Entendemos que a interpretação de Mbembe sobre o corpo

negro, a partir das situações encenadas na obra de Amos Tutuola, apresenta uma definição da

escravidão, por descrever o processo pelo qual esse corpo se transforma apenas em

instrumento e força de trabalho permanentes.

A percepção do corpo negro como peça comercializável fica clara em O bebedor de

vinho de palmeira, quando é descrita uma das criaturas do ambiente fantasmal: “Era um belo

e completo cavalheiro, vestido com roupas bonitas e caras. Era alto e forte, e todas as partes

de seu corpo eram completas. Se esse cavalheiro fosse uma mercadoria ou um animal que

estivesse à venda, certamente seria vendido a duas mil libras.” (TUTUOLA, 1970, p. 18). A

comparação entre o homem “alto e forte”, com destaque para o fato de as “partes de seu

corpo” estarem completas nos remete à forma como os escravos eram vendidos, destacando-

se a qualidade dos dentes, o tônus muscular etc. Os escravos eram comercializados como

produtos, destituídos de sua humanidade, com atenção a sua forma física, que indicaria sua

capacidade para desempenhar o trabalho.

Nessa linha de interpretação posta por Mbembe, percebemos um sentido mais

completo para as diversas descrições dos corpos dos personagens, desde as cenas de

violência, em que eles têm suas cabeças raspadas, até as descrições sobre os corpos das

criaturas estranhas, que apresentam características impossíveis de serem relacionadas com

qualquer ser vivo, como joelhos voltados para trás, olhos em partes inusitadas ou mesmo esse

corpo montado com partes alugadas. Ao perceber que o corpo está no centro de um trabalho

realizado pela sobrevivência e considerando que a luta pela sobrevivência comporta o risco da

63 “Au centre du travail pour la vie se trouve, de toute évidence, le corps, cette matière d’évidence à laquelle se

rattachent ensuite nombre de propriétés, un nombre, un chiffre.” (MBEMBE, 2015, p. 209).

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morte, entendemos a necessidade da afirmação de uma diferença entre a vida e a morte, sendo

essa separação o próprio motivo da jornada do protagonista em busca de seu vinhateiro morto.

Consideramos que esse trabalho comporta intrinsecamente o risco da morte, mesmo que a

diferença entre vida e morte esteja inscrita no espaço fantasmal, como estudamos, um espaço

liminar (liminal space), e não uma fronteira intransponível. Nesse espaço, o sujeito afirma sua

condição: “Eu ainda estou vivo e não sou um homem morto.” (TUTUOLA, 1970, p. 11). Na

encenação desses corpos partidos e violentados, com as elucidações das análises de Mbembe,

percebemos a representação das forças coloniais atuantes na África e, de forma ainda mais

ampla, destaca-se a atuação do sistema escravocrata com o aniquilamento do homem negro.

Dessa forma, a metaforização promovida pelo romance alcança um sentido mais amplo e

coletivo, abalando a concepção individualista de um herói no romance.

De forma mais nítida, em Terra sonâmbula, o sentido de coletividade aparece no

contexto da guerra civil moçambicana. A luta pela sobrevivência implica reconstruir os

relacionamentos, inclusive pelas situações de trabalho que devem ser reinventadas, como no

caso da cadeira de rodas do personagem Assane, que, aleijado pela guerra, passa a alugar seu

meio de transporte pessoal para divertimento dos outros, transformando aquela situação

individual em algo coletivo. No romance, em contraposição ao ambiente colonial

metaforizado em O bebedor de vinho de palmeira, o mundo pós-apocalíptico mostra a

sociedade esfacelada e, como consequência, personagens que encenam o extremo, com suas

vidas já destruídas, lutando pela sobrevivência. A quase completa desorganização social

permite, no entanto, que as relações sociais sejam reformuladas. Antoninho, ex-empregado do

indiano Surendra, aluga a cadeira de rodas de Assane, funcionário da administração colonial

que mora com o indiano Surendra, que colocou sua mulher numa canoa de volta à Índia,

encontrada na praia por Kindzu, que está em busca do filho desaparecido de Farida, por sua

vez, exilada num navio atolado no mar. Gaspar, o filho de Farida, não é encontrado por

Kindzu, mas ele encontra Dona Virgínia, viúva de seu pai Romão Pinto.

A partir dos relacionamentos estabelecidos pelos personagens, em que ora se destacam

as fraturas ora os encontros, observamos que o lugar dos protagonistas, em suas respectivas

narrativas, delineia-se pelo de “heróis” dentro da economia literária do romance. Quando

observamos os dois romances que abordam situações anteriores às independências, L’étrange

destin de Wangrin e O bebedor de vinho de palmeira, concluímos que as tramas são

consequência direta do desenrolar das ações individuais de Wangrin e do bebedor de vinho de

palmeira. No entanto, em Terra sonâmbula, o papel solitário e individual do protagonismo

da ação dilui-se nas ações que enfocam diferentes personagens; a diluição do caráter

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individual reflete-se na organização da trama. No entanto, ainda percebemos nitidamente que

as ações e os vários personagens giram em torno dos núcleos principais, que são

protagonizados por Kindzu, nos relatos feitos em primeira pessoa anotados em seus cadernos,

e por Muidinga e Tuhair, quando um narrador nos conta em terceira pessoa os

acontecimentos.

Assim, apropriando-se do gênero romance, que é maleável, os romances africanos

encenam heróis que, ao mesmo tempo que ocupam o lugar de protagonista na cena, não

encarnam a figura do herói individualista, moderno e capitalista, como apresentado por

escritores como Defoe e Richardson e tal como analisado por Ian Watt (2010). O romance é,

portanto, um gênero literário que se reinventa. Nas obras africanas estudadas, o gênero

assume contradições, reafirmando seu caráter maleável como uma de suas maiores

características. Enquanto Watt (2010) e o filósofo alemão Walter Benjamin (1994) colocam o

romance como um gênero de expressão individual atrelado ao individualismo moderno, os

romances africanos estudados, mesmo quando encenam heróis que parecem atuar apenas em

causa própria, como no caso de Wangrin e do bebedor de vinho de palmeira, subvertem a

noção de indivíduo e de coletividade, seja pelo desfecho de suas trajetórias, seja pela

metaforização que fazem da história coletiva a partir de suas experiências individuais, como

em Terra sonâmbula.

Embora o romance, como teorizado por Benjamin, tenha sua origem no “indivíduo

isolado” e, nesse sentido, estaria em oposição à narrativa, pois esta seria advinda da

experiência da coletividade, esse gênero, na mesma teoria benjaminiana, é preconizado como

sendo fadado à autossuperação. O filósofo afirma: “Escrever um romance significa, na

descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza

dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem

a vive.” (BENJAMIN, 1994, p. 201). Segundo Benjamin, portanto, se, por um lado, o

romance acaba com a narrativa, por outro, ele é capaz de enorme distensão. O filósofo alemão

percebe o gênero como capaz de abarcar a perplexidade da vida, senão de forma narrativa, em

sua forma descritiva. As considerações de Benjamin nos permitem discutir questões tratadas

por ele, sobretudo a respeito da narração, o que nos leva a considerar também questões

relativas à autoria.

4.3 Autoria e narração em L’étrange destin de Wangrin

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Em L’étrange destin de Wangrin, a presença do autor na introdução da narrativa se

faz pela exposição de uma voz que assume a autoria do texto e declara a veracidade dos fatos

encenados. A tensão entre ficção e realidade emerge, na introdução, a partir da relação entre

narrador e autor.

Em certa medida, a crítica pós-colonial retoma a discussão posta por Michel Foucault

(1995), em sua análise da “função do autor”, como uma configuração da produção textual que

estabelece a coerência do texto escrito. Para Foucault (1995), a noção de autor está associada

ao processo de individualização na história do pensamento ocidental. O filósofo francês

desenvolve sua reflexão a partir dessa ideia da individualização promovida pela coerência

sobre um certo discurso produzido. Foucault resume: “Em suma, o autor é uma espécie de

foco de expressão, que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta da mesma maneira,

e com o mesmo valor, nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos fragmentos, etc.”

(FOUCAULT, 1995, p. 53).

Nesse sentido, o romance começa com um aviso ao leitor (“Avertissement”) que

pretende esclarecer sobre a origem e a função do relato que se segue. Trata-se do

cumprimento de um dever entre amigos. Amadou Hampaté Bâ, que assina a capa do livro, se

coloca em primeira pessoa nesse aviso, responsabilizando-se pela veracidade dos fatos

narrados, como resultado do compromisso assumido com o protagonista dessa história já

anunciada como incomum desde o título. O livro é, portanto, o resultado do relato oral feito

por Wangrin a Hampaté Bâ. Assim, simulando o contato intencional com o antigo funcionário

da administração colonial, o autor declara:

(...) cada noite, após o jantar, de 20 às 23 horas, às vezes até meia-noite, Wangrin me contava sua vida. A conversação acontecia ao som de um violão, tocado com excelência e incansavelmente por Dieli-Madi, seu griô. Foi assim durante três meses.64 (BÂ, 1992, p. 8).

A narrativa surge, portanto, a partir do relato das experiências pessoais de Wangrin,

que nutrem o autor do romance.

Walter Benjamin, na discussão que apresenta sobre a obra de Nikolai Leskov, aborda

aspectos que constituem a narrativa e lhe permitem questionar o gênero romance e a função

moderna do narrador. Benjamin sustenta que “[a] experiência que passa de pessoa a pessoa é

a fonte a que recorreram todos os narradores.” Nessa perspectiva, a narrativa de Hampaté Bâ

64 “Chaque nuit, après le dîner, de 20 à 23 heures, parfois jusqu’à minuit, Wangrin me racontait sa vie. La

conversation se déroulait aux sons d’une guitare, dont jouait excellemment et infatigablement Dieli-Madi, son griot. Il en fut ainsi durant trois mois.” (BÂ, 1992, p. 8).

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põe em cena esse narrador tradicional descrito por Benjamin. O filósofo afirma ainda que

“[o]s narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em

que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa

história a uma experiência autobiográfica.” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Exatamente como

dito pelo filosofo alemão, Hampaté Bâ constrói um narrador que narrará a história que lhe foi

contada pelo próprio Wangrin. Com o jogo que mistura autoria e direito de narrar, o romance

se configura como transmissão de experiência. Estamos diante de um narrador da tradição,

segundo o filósofo alemão e também segundo o autor africano.

Portanto, é como um narrador que tem a experiência como fonte que o autor fixa sua

cena na tradição africana da contação de história para estabelecer assim a veracidade do

relato. Amadou Hampaté Bâ coloca-se em primeira pessoa nesse preâmbulo, falando sobre si

mesmo não só para descrever minuciosamente a situação em que lhe foi passada a

experiência, mas assumindo a autoridade sobre o relato, como dito por Jonathan Culler:

“Narrar uma história é reivindicar uma certa autoridade, que os ouvintes concedem.”

(CULLER, 1999, p. 89).

Assim, o autor, Amadou Hampaté Bâ, revela ser o romance resultado da promessa

feita a um homem, em 1912, e reafirma os laços de parentesco estendido a partir de uma

amizade que se forma em conformidade aos hábitos da “tradição malinesa”. O autor explica:

“Ele se tornou meu amigo por duas razões. Em primeiro lugar, porque ele era muito ligado ao

meu tio materno, Hammadoun Pâté, e em segundo lugar, por causa do grande número de

contos que eu lhe relatava, sob encomenda.”65 (BÂ, 1992, p. 7). Mais tarde, os amigos se

reencontram. Hampaté Bâ, já adulto, ouve o pedido do velho conhecido, que o tem como um

verdadeiro sobrinho. Wangrin lhe “pede expressamente para não mencionar seu verdadeiro

nome” e faz a encomenda do livro que temos em mãos. Assim Wangrin se dirige ao jovem

Hampaté Bâ, que relata em discurso direto:

Meu pequeno Amkullel, antigamente, você era um bom contador de histórias. Agora que você sabe escrever, você vai tomar nota do que eu te contarei da minha vida. E quando eu não for mais deste mundo, você fará um livro que não apenas divertirá os homens, mas lhes servirá de ensinamento.66 (BÂ, 1992, p.8).

65 “Il se prit d’amitié pour moi pour deux raisons. En premier lieu, parce qu’il était très lié avec mon oncle

maternel, Hammadoun Pâté, et en second lieu, à cause du grand nombre de contes que je lui rapportait, sur sa demande.” (BÂ, 1992, p. 7).

66 “Mon petit Amkullel, autrefois, tu savais bien conter. Maintenant que tu sais écrire, tu vas noter ce que je conterai de ma vie. Et lorsque je ne serai plus de ce monde, tu en feras un livre qui mon seulement divertira les hommes, mais leur servira d’enseignement.” (BÂ, 1992, p.8).

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Ao traçar sua linhagem genealógica para explicar os laços que o ligam ao personagem

Wangrin, homem real e verdadeiro autor do relato, Hampaté Bâ filia-se mais uma vez à forma

tradicional africana de se apresentar. O teórico ganês Simon Kofi Appiah, em seu artigo sobre

a ética no processo de continuidade e descontinuidade da tradição nas narrativas africanas,

diz: “podemos observar que em algumas comunidades, a autoapresentação frequentemente

toma forma de uma genealogia, ou o que pode ser chamado de uma narrativa clã-reflexiva.”67

(APPIAH, 2013, p. 48). Não se trata, no caso do romance de Bâ, desse tipo de narrativa

reflexiva de clã, apenas identificamos, no preâmbulo feito pelo autor, elementos que remetem

à forma tradicional africana de contar histórias.

Trazer informações genealógicas para o relato é um desses elementos que remetem

para uma continuidade da tradição, mesmo que adaptada, ao ser transposta para o gênero

romance, forma moderna e europeia de contar. Com essa declaração de autoria que se

aproxima da realidade pela experiência, usando também do respaldo genealógico, a voz que

fala no preâmbulo confere a si autoridade para contar a história que se segue. No âmbito do

gênero escolhido, essa voz se confundirá com a do narrador.

Conferindo para si ainda mais autoridade sobre o relato e reforçando o argumento de

que o romance extrai do mundo sua matéria-prima, o autor completa que teve a oportunidade

de servir nos mesmos postos por “onde Wangrin também havia passado, podendo completar

as informações com todos aqueles que estiveram em campo implicados às suas aventuras.”68

(BÂ, 1992, p. 8). Assim, duplamente experimentado, o autor atesta ter respaldo para fazer seu

relato. A forma do texto corrobora sua intenção de problematizar as incongruências e abusos

do sistema colonial ao jogar com as vozes de autor, narrador e personagem apelando para a

tradição da experiência como experimentação da realidade transposta para o livro.

Assim, a obra de Hampaté Bâ, ao colocar em cena a autoridade narrativa, reitera um

dos questionamentos essenciais colocados pelo gênero romance que considera a

“correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita” (WATT, 2010, p. 11).

Segundo Ian Watt, o esforço em definir a “natureza do realismo no romance” é “um problema

essencialmente epistemológico”, que seria de competência daqueles que são responsáveis por

discutir os conceitos, ou seja, os filósofos. Esbarramos mais uma vez num questionamento

acerca da representação que, com Aristóteles, deixa de ser uma questão apenas filosófica para

se tornar matéria da poética. Nessa nova e específica ciência chamada poética, a noção de

67 “First, we can observe that in some communities, self-introduction often takes the form of a genealogy, or

what might be called a clan-reflexive narrative.” (APPIAH, 2013, p. 48). 68 “d’être amené à servir dans tous les postes où Wangrin était passé, pouvant ainsi largement compléter mes

informations auprès de tous ceux qui avaient été mêlés sur place à ses aventures.” (BÂ, 1992, p. 8).

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verossimilhança passa a regulamentar a própria ideia de representação que “busca produzir

não uma exatidão absoluta, mas uma verdade possível do real”69 (GEFEN, 2003, p. 41).

Como verdades possíveis de uma determinada realidade, entendemos que “na verdade,

porém, certamente [o romance] procura retratar todo tipo de experiência humana e não só as

que se prestam a determinada perspectiva literária: seu realismo não está na espécie de vida

apresentada, e sim na maneira como a apresenta.” (WATT, 2010, p. 11). Theodor Adorno

(2003) e Walter Benjamin (1994) refletem sobre a impossibilidade narrativa diante dos

horrores da guerra na perspectiva de quem as viveu, questionando não apenas a capacidade

daqueles que deveriam relatar os acontecimentos, mas como tais horrores poderiam ser

apresentados. A problematização da possibilidade de se narrar o horror se estende a sua

representação nas artes, quando se pensa na forma como o homem percebe a realidade e

transforma as formas de representação.

Com a leitura dos três romances, observamos o quanto essa representação da realidade

pode ser elástica ao se apropriar de elementos próprios ao material de criação que é a

linguagem. Bakhtin, como nos referimos anteriormente, enfatiza o questionamento

linguístico, considerando a “representação literária da linguagem”. Assim diz Bakhtin:

Se o objeto específico do gênero romanesco é a pessoa que fala e seu discurso, o qual aspira a uma significação social e a uma difusão, como uma linguagem especial do plurilingüismo – então o problema central da estilística do romance pode ser formulado como o problema da representação literária da linguagem, o problema

da imagem da linguagem. (BAKTHIN, 1993, p. 138).

Observamos que o estudo da estilística do romance não está dissociado de uma

“significação social”. O teórico russo chama de plurilinguismo quando diversos discursos

convergem na representação da fala de um personagem, o que explicitaria a necessidade de

questionar a representação literária a partir das imagens construídas pelas linguagens que

formam os discursos. Aliando essa formação discursiva a uma significação social, poderíamos

questionar a intenção que o texto literário constrói a partir do agenciamento da representação

da linguagem.

O caráter realista, na perspectiva do realismo formal assumido pela obra de Hampaté

Bâ, mostra-se desde o início abundante nos detalhes que descrevem minuciosamente cada

69 “En faisant de sa pratique l’une des définitions de la nature humaine, en la canalisant et l’encadrant par des

catégories rhétoriques, Aristote dédramatise la mimèsis et en délègue l’analyse à une science nouvelle et spécifique appelée ‘poétique’, et non à la philosophie. Soustraire à la fascination du domaine pictural et du mirage identitaire, et régulée par la notion de ‘vraisemblable’, la représentation cherche à produire non une exactitude absolue mais une vérité possible du réel.” (GEFEN, 2003, p. 41).

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situação, sem economizar nas notas de rodapé que servem ainda para esclarecer o leitor sobre

determinadas expressões e costumes africanos, que, mesmo traduzidos no idioma europeu,

ainda não conseguem alcançar seu sentido original e necessitam de mais explicações. Como

vimos, no aviso ao leitor, anuncia-se o caráter da narrativa, sendo apresentadas as

justificativas necessárias como prova de sua veracidade e fidelidade históricas. Ao final do

relato, temos ainda um posfácio, em que o autor assume novamente a primeira pessoa para

esclarecer, após a publicação da primeira edição, o que possa não ter ficado claro com o

primeiro aviso. Nesse posfácio, ele se exime de qualquer habilidade romanesca, se afasta de

sua obra negando sua natureza artística, para classificar seu relato como “autêntico”, anulando

seu teor de “criação literária”, apresentando-o mais uma vez como uma reprodução da

realidade (BÂ, 1992, p. 359). O autor com a apresentação do posfácio coloca mais uma peça

na interpretação possível do romance.

Nessa perspectiva de um autor que se coloca em cena, o texto de Bâ apresenta, com

sua descrição, a encenação da palavra falada. A narração instaura, portanto, a fala no quadro

descritivo, tornando-a imagem. Ela faz da palavra oral material de descrição narrativa.

(MOREIRA, 2005). Dessa maneira, com o uso da técnica de escrita que utiliza aspectos que

remetem ao realismo formal, a oralidade da tradição africana malinesa bambara aparece, no

romance, como tema do conteúdo descrito, não sendo apenas estratégia estética da narrativa.

O realismo praticado por Hampaté Bâ inclui o universo mitológico que faz parte da

cosmogonia dos povos dessa região da África Ocidental Francesa, onde se passam as ações do

romance. Nesse sentido, a oralidade é matéria e assunto da narração: ela aparece como objeto

descrito. O livro de Hampaté Bâ se torna, portanto, a encenação da tradição do mundo oral

enfocado. Sendo assim, enquanto Benjamin via a extinção do narrador tradicional e da

narrativa, com a “evolução secular das forças produtivas” (BENJAMIN, 1994, p. 201), o

narrador tradicional e a narrativa aparecem revigorados no relato de Hampaté Bâ. O romance

L’étrange destin de Wangrin mergulha no universo da oralidade, apropriando-se de seus

mitos e lendas. Ao encenar a contação africana, problematiza as figuras de narrador e autor.

4.4 Autoria em Amos Tutuola

O bebedor de vinho de palmeira incorpora a tal ponto a oralidade que seu status

como romance também parece frágil. O estudante nigeriano Onabiyi, em seu trabalho de

conclusão de curso para uma universidade nigeriana, aponta, resumidamente, alguns

questionamentos que envolvem a classificação da obra como romance.

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Uma obra de referência, foi o primeiro romance a ser publicado por um autor nigeriano e também o primeiro romance a ser escrito em inglês por um africano negro. A obra é classificada como um romance, mas há um debate a respeito da exatidão dessa designação, uma vez que O bebedor de vinho incorpora tanto da tradição oral. De fato, esse romance dá a muitos um primeiro deslumbre com o folclore Yoruba. O bebedor de vinho baseia-se fortemente em contos populares tradicionais, o que tem sido outra fonte de controvérsia, incitando algumas alegações de que o trabalho plagiaria a propriedade intelectual do povo Yoruba.70 (ONABIYI, 2011, p. 18).

Percebemos, na fala de Onabiyi, um questionamento acerca da autoria do texto, que

colocaria a legitimidade do romance de Amos Tutuola em xeque. Essas questões apontadas

por ele não foram introduzidas de forma aleatória no debate. Há de se considerar que, como

ressaltado, trata-se de um escritor africano negro publicando pela primeira vez em inglês. A

apropriação do gênero e da língua pelo colonizado africano abre o questionamento sobre a

obra ser, ou não, literatura. Segundo Onabiyi, Tutuola passa a ser questionado em seu país

porque não observou uma das leis do capitalismo: a propriedade, já que cometeria um plágio

contra uma “propriedade” coletiva. Fica patente, nessa discussão política mais que literária, a

relevância da noção de propriedade individual sobre o bem intelectual produzido. Nesse

sentido, como acentuado, Foucault destaca que a “função autor” faz parte de como a

sociedade agencia certos discursos. Assim:

O nome de autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular. [...] A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade. (FOUCAULT, 1995, p. 46).

O pensador francês alia a posse de determinadas ideias a um único sujeito responsável

pela defesa delas. Essa aliança entre o indivíduo e a produção discursiva é permitida por uma

cultura que tem uma sólida percepção de propriedade privada que se estende até a bens como

a narrativa. A propriedade intelectual denotaria a autoria, sendo uma forma de propriedade

sobre o pensamento desenvolvido. Associando, assim, a autoria à individualização, Foucault

afirma: “A noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das

ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências.”

70 “A landmark work, it was the first novel to be published by a Nigerian author, and also the first novel by a

black African to be written in English. The work is classified as a novel, but there has been some debate about whether this designation is accurate, since “The palm-wine Drinkard” incorporates so much oral tradition. Indeed, this novel has provided many with their first glimpse into Yoruba folklore “The Palm-wine Drinkard” draws heavily on traditional folktales, which has been another source of controversy, prompting some claim that the work plagiarizes the intellectual property of the Yoruba people.” (ONABIYI, 2011, p. 18).

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(FOUCAULT, 1995, p. 33). Na defesa feita à obra de Amos Tutuola, a tradição oral

incorporada à sua narrativa não obedeceria à necessária individualização das ideias, como

colocado pelo teórico francês, porque se colocaria numa ordem cultural.

Ao refletirmos sobre o narrador da experiência e, a partir de então, sobre a autoridade

que esse possui sobre o discurso proferido, como vimos com Benjamin, passando por

questões suscitadas pelo exercício de uma tradição, como vimos ilustrando com Bâ, vemos

que, no caso do romance de Amos Tutuola, a autoria e o valor da autoridade da voz narrativa

sobre o discurso são questionados segundo parâmetros alheios à cultura que os produziu. O

professor e pesquisador de literaturas africanas, o nigeriano Ayo Kehinde, destaca:

A teoria da intertextualidade, apesar de sua origem euro-ocidental, não é totalmente estranha à prática da literatura oral africana. De fato, a literatura oral africana, entre muitas outras características, é marcada por seu status de não-autoria. Isto significa que, mais frequentemente do que não, os gêneros literários orais na África são tomados como não tendo autores individuais como é o caso da literatura escrita. Em vez disso, a literatura oral é concebida como um artefato comunitário. É de propriedade coletiva e é transmitida de geração para geração.71 (KEHINDE, 2003, p. 374).

Assim, consideramos que, ao discutir autoria nas literaturas africanas, esbarramos em

conceitos que são estranhos a essas culturas, como a noção de posse sobre a criação. No caso

de Amos Tutuola, o teor de oralidade em sua narrativa indica mais uma deliberada intenção

de remissão às narrativas orais como uma prática comunitária do que uma apropriação

indevida das histórias orais do povo ioruba. Kehinde continua:

Além das preocupações a respeito da temática da intertextualidade, os romances de Tutuola e Liyong também se assemelham quanto a dicção. Ambos favorecem uma linguagem simples. O que tem uma ligação com as estratégias narrativas orais. Seus romances estão repletos de elementos da tradição oral como contos populares, lendas, enigmas e provérbios que os permitem comunicar eficientemente. Eles se re-apropriam de um gênero emprestado (o romance) e adaptam a língua da elite (o inglês) para servir ao ambiente africano. (KEHINDE, 2003, p. 379).72

71 “The theory of intertextuality, despite its Euro-western origin, is not entirely alien to African oral literary

practice. In fact, African oral literature, among many other features, is marked by its status of non-authorship. That is, more often than not, oral literary genres in Africa are taken as having no individual authors as is the case of written literature. Rather, oral literature is conceived as a communal artifact. It is communally owned and transmitted from generation to generation.” (KEHINDE, 2003, p. 374).

72 “Apart from intertextuality in thematic preocupations, Tutuola and Liyong’s novels also intersect in diction. Both favor simple language. This has a link with African oral narrative strategies. Their novels are suffesed with oral traditional elements such as folktales, legends, riddles and proverbs that enable them to communicate effectively. They re-appropriate a borrowed genre (novel) and adapt the language of the elite (English) to suit African surroundings.” (KEHINDE, 2003, p. 379).

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Nesse ponto, quando se trata de explicitar a “re-apropriação” e “adaptação” do gênero,

discutimos a “validação estética” do gênero como executado pelos “negros africanos” para as

línguas da elite: o inglês, o francês ou o português, ficando fora desse circuito as narrativas

orais e aquelas escritas em línguas africanas.

No exercício da comparação, notamos que os romances de Tutuola e de Hampaté Bâ

trazem paratextos assinados por seus respectivos autores. Considerando todas as partes da

obra como integradas à história que se conta, podemos dizer que os prefácios e posfácios

constituem mais uma camada diegética. Percebemos que, em ambos, há uma preocupação

com a legitimação de cada obra especificamente, e do romance africano, mais amplamente. É

importante dizer que a necessidade de explicação feita em prefácios não aparece nos

romances do escritor moçambicano Mia Couto, embora sua obra não possa deixar de ser lida

na esteira de seus predecessores.

Amos Tutuola assina seu “afterword”, não incluído na edição brasileira com a qual

trabalhamos, em abril de 1952, ano de publicação da obra pela Faber & Faber, na Inglaterra.

Na nota, o autor relata na primeira pessoa, aparentemente de forma espontânea, o seu

percurso escolar e profissional até ali. O tom desse relato autoral, ao assumir a autoridade da

primeira pessoa, se assemelha ao tom empregado nos parênteses explicativos ao longo da

ficção, em que o narrador, imbuindo-se também da autoridade do texto escrito em primeira

pessoa, explica ou justifica algum aspecto relativo ao extraordinário que acontece no relato do

bebedor de vinho de palmeira. A simplicidade sintática é, talvez, o primeiro aspecto a chamar

a atenção para as demais características que fazem dessa narrativa um romance africano, no

sentido dado pela discussão apresentada no romance do sul-africano J.M. Coetzee, Elizabeth

Costello: oito palestras, quando essa questão teórica é ficcionalizada pelo personagem de um

romancista nigeriano.

Na primeira frase do livro de Amos Tutuola, o narrador se apresenta referindo-se a um

tempo no passado: “Eu era um bebedor, desde que eu era um menino de dez anos de idade”.

(TUTUOLA, 2014, p. 3). O início do romance mostra de imediato a autoridade assumida pelo

narrador ao longo de toda a narrativa, por sua franqueza e objetividade, com o protagonista se

apresentando com uma frase simples, construída na ordem direta, sujeito, verbo e

complemento, na versão original. Apresentando-se como um bebedor inveterado de vinho de

palmeira, o personagem, de certa forma, se assume como um bêbado, condição a princípio

marginal. No entanto, devido ao seu status familiar, essa condição não lhe causa desconforto

nem prejuízo, ao contrário, proporciona-lhe o direito de viver como lhe agrada.

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Desde o início, observamos como o suceder dos fatos é narrado através das

subordinadas construídas, na maioria das vezes, com uma sintaxe simples e direta. Notamos

que a sintaxe do texto se dá de forma a gerar um efeito de que o encadeamento das ideias é

espontâneo, sugerindo a forma oral de narrar que acontece sempre no momento presente, ao

contrário do texto escrito que necessita de um uma organização prévia e premeditada das

ideias.

O trecho a seguir nos serve de exemplo. Assim, o narrador continua introduzindo sua

história:

Porém, depois de quinze anos que meu tirador de çmu trabalhava pra mim, meu pai morreu de repente, e no sexto mês da morte do meu pai, o tirador foi até a plantação de palmeiras numa manhã de domingo pra tirar çmu pra mim. Quando chegou lá, ele subiu numa das palmeiras mais altas que tinha, mas enquanto trabalhava, caiu de supetão e morreu no pé da palmeira por causa dos machucados. (BORGES: QUEIROZ, 2017

Optamos, nesse momento, por uma tradução alternativa, por perceber nela as marcas

da oralidade presentes no texto original em inglês. Notamos esse encadeamento espontâneo

de ideias marcadas pelas vírgulas que encadeiam a sucessão dos fatos ligados apenas pelas

conjunções que fortalecem os sentidos essenciais, a adição (“e” ou “then”), a oposição

(“porém” ou “mas”, para “but”) e pela marcação do tempo: o uso de “quando” para “when”.

Esse estilo perdura ao longo de toda a narrativa.

Quando o autor, Amos Tutuola, se apresenta no posfácio, a semelhança de estilo é

flagrante. Vejamos:

Sou nativo de Abeokuta e nasci no ano de 1920. Quanto eu tinha uns 7 anos, um dos primos do meu pai, de nome Dalley, enfermeiro no hospital africano, me levou do meu pai para viver com seu amigo, o senhor F. O. Monu, um homem Ibo, como seu empregado e para que este me enviasse à escola ao invés de me pagar em dinheiro. / Eu comecei meus estudos na escola do Salvation Army, em Abeokuta, no ano de 1934 [...].73 (TUTUOLA, 2014, p. 131).

Observamos em ambas as passagens, tanto no romance quanto no posfácio, o mesmo

tom do relato oral de um narrador em primeira pessoa que se dirige a um interlocutor/leitor.

Identificamos, nessas narrativas, um tom de relato confessional que sobrevém de uma

73 “I am the native of Abeokuta, and I was born in the year 1920. When I was about 7 years old, one of my

father’s cousins whose name is Dalley, a nurse in the African hospital, took me from my father to live with him as a servant and to send me to school instead of paying me money. / I starded my first education at the Salvation Army School, Abeokuta, in the year 1934, and Mr Monu was paying my school fees regularly […] and also buying the school materials, etc., for me. / But as I had the quicker brain than the other boys […].” (TUTUOLA, 2014, p. 131).

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proximidade entre o narrador e o interlocutor/leitor. Notamos também que as frases são

marcadas por um ritmo bem similar, sincopadas pela sucessão de vírgulas e alinhavadas pelas

mesmas conjunções que adicionam os fatos na sequência, marcam uma oposição e se

relacionam sucessivamente no tempo. As diversas interpelações do narrador aproximam o

leitor do texto, criando uma cumplicidade narrativa entre essas instâncias textuais: narrador e

leitor, além de explicitar o caráter oral da narrativa, devido ao tom de conversa que o texto

assume.

A estratégia narrativa que usa da oralidade pode ainda ser identificada quando as

criaturas são nomeadas pelas características que as descrevem. Essa maneira de nomear, que

exime o uso do nome próprio, como o do protagonista que fica sendo apenas aquele que bebe,

ressalta o teor de oralidade do discurso. Na comunicação oral cabem mais generalizações, as

explicações podem ser dadas de forma mais estendida e descritiva, ao contrário do registro

escrito, que exige a condensação proporcionada por um nome próprio. Assim, a título de

exemplo, temos as indicações das características dos personagens que substituem o nome: “o

cavaleiro de fato completo”, as criaturas vermelhas da cidade vermelha, o devedor invisível, a

mãe-devota, entre outros. “Então ela disse que se chamava Mãe-Devota, [...]. Ela aí nos

revelou o seu nome: Mãos-Amigas [...].” (TUTUOLA, 1970, p. 74). Ou ainda: “Eu disse que

me chamava ‘Pai dos deuses que podia fazer qualquer coisa neste mundo’.” (TUTUOLA,

1970, p. 16). Essas descrições obedecem à lógica do mundo fantasmal, como vimos

discutindo. Nesse ambiente, o encadeamento das ideias reflete o imediatismo da linguagem

oral, que não é premeditada, o dizer pode ser precipitado e os rumos, inesperados.

(ONABIYI, 2011).

Dentro desse contexto, não é incomum que a crítica feita ao romance de Tutuola, na

época de sua publicação, seja tomada como defesa do valor literário da obra. O embate surge

por uma necessidade de provar que, embora o texto ficcional em questão apresente

características estranhas às que consagram os gêneros europeus, elas são intrínsecas aos tipos

de texto considerados como romance, conto, poema ou drama e, assim sendo, devem ser lidos

e estudados como tal. Via de regra, a oralidade ou a sonoridade da obra africana incomodam.

O embate surge, portanto, de uma concepção dualista, vigente na época da publicação do

romance, que a priori não permite que um texto escrito tenha sotaque e ritmo que evoquem

pontuações presentes na fala. A dicotomia cartesiana se sobrepõe de forma excludente, uma

obra escrita não pode se imiscuir com o mundo oral para ser dignamente literária. Essa visão

crítica permanece com relação a obras literárias africanas. Muitas vezes, as literaturas

africanas são criticadas por seu teor de irrealidade ou inverossimilhança. São taxadas de

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mágicas, maravilhosas, fantásticas ou animistas, na tentativa desesperada de resolver a

questão de classificação das obras segundo parâmetros da crítica europeia. As literaturas

africanas resistem aos encaixes, enquanto proliferam. Esses textos literários continuam a

fazer-se presentes como romances, contos e poesias que, ao fim e ao cabo, vêm revigorar e

reafirmar os já consagrados gêneros. A falha está, portanto, na forma dualista de interpretação

e análise e não nas características plurais apresentadas pelos textos.

Em nossa proposta de interpretação pós-colonial, oralidade e escrita não constituem

oposição, assim como o indivíduo não é oposto à coletividade, mas um alimenta e constitui o

outro. Assim, o romance africano, ou os romances produzidos, escritos, editados e publicados,

mundo afora por escritores originários desse continente, não sem luta, revigoram o gênero ao

mostrar a amplitude do movimento artístico literário.

4.5 Um jeito africano de narrar

No romance de J.M. Coetzee (2004), a discussão que vem sendo apresentada sobre o

romance africano é retomada em uma palestra proferida por um personagem, o escritor

nigeriano fictício, Emmanuel Egudu. Com o título de “O romance na África”, a fala do

personagem, feita para o entretenimento de passageiros durante um cruzeiro, levanta

questionamentos pontuais e pertinentes para questões apontadas por pesquisadores de

romances africanos.

Em sua palestra, o escritor personagem, respondendo a uma pergunta sobre o modo

como Tutuola absorve as narrativas orais, escrevendo em língua inglesa, explica:

Não, responde Egudu, Tutuola não foi mais traduzido, na verdade nunca foi traduzido, pelo menos não para o inglês. Por que não? Porque não precisa ser traduzido. Porque sempre escreveu em inglês. E isso está na raiz da questão levantada pela mulher. “A língua de Amos Tutuola é o inglês, mas não o inglês-padrão, não o inglês aprendido pelos nigerianos que foram à escola, à faculdade nos anos 1950. É a língua de um funcionário burocrático semi-educado, um homem que não tem mais que a escola elementar, mal compreensível para alguém de fora, corrigido para a publicação pelos editores ingleses. Nos pontos em que a escrita de Tutuola era francamente iletrada, eles a corrigiram; o que deixaram de corrigir foi o que lhes pareceu autenticamente nigeriano, isto é, o que a seus ouvidos soava pitoresco, exótico, folclórico. (COETZEE, 2004, p. 54).

De acordo com a defesa que o personagem de Coetzee faz da literatura africana como

uma literatura essencialmente oral, Tutuola seria um caso exemplar: “O caso de Amos

Tutuola é muito simples, muito cabal” (COETZEE, 2004, p. 56), pois é um “autor oral”, que

produziu, portanto, um “típico” romance africano. É o que podemos inferir, seguindo o

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raciocínio do personagem Egudu, que vê o romance africano como a expressão de um jeito

essencialmente africano. Como explica o personagem: “O romance africano, o verdadeiro

romance africano, é um romance oral. Na página ele é inerte, apenas meio vivo; ele desperta

quando a voz, vinda do fundo do corpo, inspira vida a suas palavras, as enuncia em voz alta.”

(COETZEE, 2004, p. 52).

Fica patente, na análise do romance O bebedor de vinho de palmeira, que a língua

de Tutuola é tão flexível quanto o universo fantasmagórico que ele apresenta. O caráter oral

do romance fica tanto por conta desse ato performático que se torna a escrita quanto pela

flexibilidade permitida pela apropriação e transformação do inglês do colonizador, no ato da

escrita. Portanto, o romance africano seria a performance escrita desse jeito especialmente

africano.

Nesse sentido, a pesquisadora brasileira Maria Nazareth Soares Fonseca ressalta:

É pertinente ainda considerar que a defesa à herança calcada na oralidade que seria assumida, de alguma forma, pelas literaturas africanas faz parte de um processo de afirmação da identidade dessas literaturas, em oposição aos valores defendidos pelas literaturas ocidentais. (FONSECA, 2016, p. 15).

Notamos que a aclimatação do gênero romance nessas regiões da África inclui assumir

as marcas da oralidade nas narrativas e, assim, forjar a identidade desse gênero plural e livre,

reforçando sua autenticidade e promovendo sua legitimação. Essa postura afirmativa “pode

ser entendid[a] como uma proposta de autenticidade literária – aliás, presente em movimentos

como a Negritude e o Negrismo cubano – [...]”. (FONSECA, 2016, p. 15). Esse processo de

afirmação entendemos também sob o aspecto da necessidade de legitimação do romance e da

afirmação de uma identidade africana e negra.

Mbembe (s.d.), em palestra em defesa da descolonização das universidades africanas e

do saber, ressalta que colonialismo rima com monolinguismo. Percebemos que a legitimação

das literaturas africanas passa, não por acaso, pela apropriação da língua europeia e sua

adaptação ao se fazer ferramenta usada na revigoração do romance. Diante do que vem sendo

exposto, consideramos a linguagem como um espaço em que batalhas epistemológicas vêm

sendo travadas. As literaturas africanas nos fazem questionar as fronteiras estabelecidas pelo

cânone ocidental, que “atribui a verdade apenas para a maneira ocidental de se produzir

conhecimento” (MBEMBE, s.d.).

De acordo com esse cânone, a política é o campo em que a arte está estabelecida.

Segundo Benjamin, “no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à

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produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual,

ela passa a fundar-se em outra práxis: a política.” (BENJAMIN, 1994, p.171). Tomando os

romances estudados como representantes das literaturas africanas, percebemos o quanto eles

explicitam que “a verdade” é uma construção do Ocidente, excludente de outras múltiplas

verdades. A política se impõe sobre a função social da arte no momento em que as relações de

poder se sobrepõem à fruição da criação artística. As literaturas africanas, muitas vezes,

resgatam a noção de autenticidade em Benjamin (1994) quando elas se mostram imiscuídas

ao ritual, fazendo-se nesse momento plenamente autênticas e legitimando o ato da criação

pela palavra.

Tendo em vista o diálogo que vimos estabelecendo entre o filósofo alemão, com o

resgate do narrador da experiência, as questões de autoria com o semiótico francês, Foucault,

e aqueles pesquisadores que pensam as questões africanas de dentro, como Mbembe e Mata,

propondo rupturas de paradigma, percebemos que não basta apenas atentarmos para as

relações de poder envolvidas na produção artística e na crítica. De certa forma, a teoria pós-

colonial, por si só, não propõe nada tão novo, se apenas observamos e não transmutamos, com

nossas práticas de leitura, interpretação e crítica, o modo de se produzir o saber. Seja como

for, não escapamos de ressaltar que estamos num meio em que a função social da arte é

política, e dificilmente será de outra forma, apenas porque esse é o campo em que a arte pode

ser absorvida, nessa sociedade de valores materialistas. No sentido dado por Terry Eagleton,

na conclusão de seu livro sobre a teoria literária:

Quero dizer por político não mais do que a maneira como organizamos juntos nossa vida social, incluindo as relações de poder que isso envolve; e o que tentei mostrar ao longo deste livro é que a história da teoria da literatura moderna é parte da história política e ideológica de nossa época.74 (EAGLETON, 2008, p. 169).

Atentar para os diversos níveis nos quais as relações de poder se estabelecem através

de um texto literário não é, portanto, tarefa nova, mas obrigatória, enquanto houver validação

estética pelo mercado.

Inocência Mata, em artigo já referido, destaca o critério editorial como norteador da

validação dessas obras africanas como literatura. A teórica são-tomense afirma:

Muitas são as modalidades dessa “validação” estética sendo a que se segue a mais superficial, embora muito eficaz nos danos que provoca: se foi publicado em

74 “I mean by the political no more than the way we organize our social life together, and the power-relations

which this involves; and what I have tried to show throughtout this book is that history of modern literary theory is part of the political and ideological history of our epoch.” (EAGLETON, 2008, p. 169).

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113

Portugal ou no Brasil, é porque a obra tem qualidade, se não o foi, é porque não tem, afinal, o “critério editorial” é a qualidade, e quaisquer outras considerações revelam fantasmogorias e complexos. (MATA, 2014, p. 37).

Se de acordo com Mata o critério editorial é que valida as produções literárias

africanas, as obras aqui estudadas são literatura, uma vez que foram publicadas na Europa e

em diversos países com uma economia de mercado que permite e promove a sua circulação.

No entanto, o contato que as obras africanas proporcionam com um saber e uma prática

ritualística tradicionais, referindo-nos ainda ao pensamento de Benjamin (1994) acerca da

tradição na narração e da arte que se funda na política em detrimento do ritual, promove um

confronto epistêmico que desorienta. O confronto linguístico do português, do francês e do

inglês, com o ritual da corporeidade africana, expressado nas narrativas, principalmente

através das características orais, desorienta. Porque o ritual, pela oralidade, desconstrói a

percepção acostumada a práxis apenas política, abalando os conceitos de texto literário e de

autoria, por exemplo, como visto. A função social da literatura, política, sem dúvida, apela a

um reposicionamento de leitura e crítica, ao recolocar a arte em contato com sua dimensão

ritualística, o que se torna, potencialmente, um problema, já que pelo ritual não há razão. E

não há a separação entre o conhecimento e o teórico. “As tradições epistemológicas ocidentais

são tradições que impõem a separação entre o saber e o pesquisador”75, como dito por

Mbembe (s.d). Percebemos tanto pela temática quanto pela forma que os romances africanos

desconstroem a razão ocidental, ao proporcionarem o encontro de outras epistemologias.

Nesse espaço, a autenticidade expõe a arte africana a outra práxis, como a ritualística

tradicional, em que se encontram as práticas oratórias, que não obedecem à lógica de

mercado. Esse confronto acentua, no entanto, seu caráter político.

Não é que uma cultura oral só possa produzir um romance oral, no sentido trazido pelo

personagem Elisabeth, no romance de Coetzee sobre a busca de definição do romance

africano pelo personagem nigeriano: “Um romance sobre gente que vive numa cultura oral,

gostaria de dizer, não é um romance oral. Assim como um romance sobre mulheres não é um

romance de mulher.” (COETZEE, 2004, p. 61). E o narrador segue trazendo seu pensamento

para a cena:

Em sua opinião, todo esse discurso de Emmanuel sobre um romance oral, um romance que se manteve em contato com a voz humana e, portanto, com o corpo humano, um romance que não é desencarnado como o romance ocidental, mas expressa o corpo e a verdade do corpo, é apenas outra maneira de expor a mística do

75 “Western epistemic traditions are traditions that claim detachment of the known form the knower.”

(MBEMBE, s.d).

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114

africano como último repositório das energias primais humanas. Emmanuel culpa seus editores ocidentais e seus leitores ocidentais por levá-lo a exorcizar a África; mas Emmanuel tem interesse em exorcizar a si mesmo. (COETZEE, 2004, p. 61).

Mas o que essa crítica explicita, mais uma vez, é a relação entre africanos e ocidentais

em torno de uma “mística”, um exotismo. Afinal, como discute a pesquisadora brasileira das

literaturas africanas Maria Nazareth Soares Fonseca:

A afirmação de que a oralidade seja essencialmente africana acaba por reiterar a de que a escrita seja a marca essencial da cultura europeia. As duas afirmações implicam uma valoração ideológica de percepções pautadas na oposição oralidade e escrita, sem levar em conta a existência da escrita antes da chegada dos colonizadores europeus. (FONSECA, 2016, p. 16).

Portanto, além de não considerar dados históricos, a oposição oralidade e escrita

aponta para a situação política promovida pelo choque entre as culturas que não se deu da

mesma maneira para cada sociedade envolvida.

4.6 O absurdo europeu e o exotismo africano

No entanto, observamos que o esforço em teorizar essa(s) separação(ões) indica a

adesão ao pensamento ocidental. A luta pela sobrevivência, como encenada principalmente no

romance de Amos Tutuola, pode ser interpretada como o símbolo do pensamento ocidental,

enquanto os acontecimentos dessa jornada rumo à Cidade dos Mortos representam o que o

teórico argentino Walter Mignolo chama de desobediência epistêmica, ilustrando, de certa

forma, um tipo de pensamento descolonial76. Mignolo afirma:

Pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais; quando você entra no campo do quíchua e quéchua, aymara e tojolabal, árabe e bengali, etc. categorias de pensamento confrontadas, claro, com a expansão implacável dos fundamentos do conhecimento do Ocidente (ou seja latim, grego, etc.), digamos, epistemologia. (MIGNOLO, 2008, p. 291).

Se considerarmos o dito por Mignolo, não haveria exotismo na obra de Tutuola.

Entrando no campo do espaço fantasmal, que serve de ambiente para o desenrolar das ações,

76 Neste momento, escolhemos não entrar no debate que envolve os conceitos decolonial ou descolonial.

Optamos pela grafia da palavra como o prefixo “des”, mais corrente na língua portuguesa, sendo o vocábulo “descolonização” registrado na nossa língua. Procuramos demonstrar o ponto de vista dos autores Mignolo e Mbembe, ao usarem os termos que nos servem em nossa argumentação pós-colonial.

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115

além de ser o eixo condutor da sequência narrativa, percebemos como esse campo funciona

como um abalizador para o absurdo do relato. O exótico existiria apenas na distinção moderna

entre a teoria e a prática, que são, como dito por Mignolo, os fundamentos do conhecimento

ocidental.

O romance de Mia Couto chama a atenção pontualmente para esse confronto entre

“categorias de pensamento”. O narrador de Terra sonâmbula, no início da narrativa, diz:

“Naquele território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade.” (COUTO,

2007, p. 10). A “razão” não é o imperativo, nem é o que dá sentido, pontuando também

aquela situação específica daquele lugar sem luz. Entendemos que essa “razão” nomeada no

romance faz referência à categoria de pensamento ocidental: um modo operador que atua em

detrimento dos outros, como temos visto com situações romanescas que ilustram como a

colonização atua no pensamento africano. A partir desses romances, portanto, com o apoio

das teorias que vimos abordando, vemos a “razão” encenada como mais uma categoria de

pensamento, entre outras.

Assim, seguindo a diretriz apontada pelo narrador de Mia Couto como uma chave de

leitura também para as outras obras, observamos que existe um fio condutor entre elas que

nos permite as comparações que vêm sendo feitas até agora. À luz das teorias expostas, nesses

romances africanos não se trata de estabelecer um padrão de pensamento, nem de

comportamento, mas de compreender uma forma de representação/encenação estética em que

não há obediência à “razão”. Como discutido por Mignolo, Mata e Mbembe, procuramos por

um novo paradigma, no intuito de perceber outras formas de pensar, outras epistemologias.

Nesse sentido, Inocência Mata ilustra com uma anedota como a diferença de perspectiva gera

um entendimento de mundo diferente. No início de seu artigo: “Estudos pós-coloniais:

desconstruindo genealogias eurocêntricas” (2014), a anedota sobre a cor da zebra e suas

listras é significativa: elas são pretas sobre um fundo branco, quando referida pelos turistas

ocidentais, e são brancas sobre um fundo preto, na ótica do guia africano. Acreditamos que o

intuito da pesquisadora é chamar a atenção sobre como a construção de sentidos, do mundo e

da vida, é feita de acordo com a perspectiva de quem conta a história. Acrescentamos ainda

um outro grau de percepção se nos preocupamos como a construção de sentido é feita pelo

agenciamento da linguagem. Nas obras literárias, fica explícito como essa perspectiva é

construída pela linguagem.

Francisco Noa, ao analisar a obra do poeta moçambicano Filimone Meigos, estabelece

uma relação com os princípios do teatro europeu do absurdo para interpretar uma poética que

trata de mostrar a “absurdidade da existência” (NOA, 2005, p. 163). Considerando que as

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116

obras do nosso corpus comportam uma estranheza que pode remeter a um certo grau de

“absurdo”, vale estabelecermos aqui um breve contraponto entre as estéticas africanas e a do

absurdo, com o foco na relação entre a linguagem e o contexto extraliterário, na intenção de

percebermos de que lado as histórias vêm sendo construídas e contadas. Enquanto na Europa

as sequelas da Segunda Guerra Mundial aguçavam a angústia de viver diante do

incomunicável, do inexplicável e do grotesco, a arte a transformava em vanguardas estéticas,

como o teatro do absurdo, questionando assumidamente a supremacia da racionalidade

moderna que condenou o homem aos horrores da guerra. Nas literaturas africanas,

observamos que a desumanização do homem negro é frequentemente encoberta pela visão

crítica ocidental, pela visão de um exotismo, animista ou mágico, do mundo tradicional

africano que pauta as interpretações dessas obras, escamoteando assim uma abordagem

estética da linguagem poética, que, também na África, teria de dar conta do “incomunicável”

da experiência colonial.

Por exemplo, a poesia presente na sequência em que a Dança, o Tambor e o Canto, na

obra de Amos Tutuola, salvam o protagonista de seu monstruoso bebê é facilmente lida e

interpretada como uma cena de origem mitológica, quando não exótica, mas sofre para

encontrar respaldo como uma estética literária. Ou seja, penamos para desvendar os

mecanismos da linguagem que seriam capazes de torná-la uma estratégia estilística, em que o

absurdo é expresso a partir de recursos de linguagem evidentes. Se o caráter mitológico da

cena não coloca em xeque a qualidade da narrativa, não seríamos reducionistas em considerar

que as estratégias narrativas assumidas pelo escritor, na cena, refletem apenas as

características orais das culturas africanas? Por que não ver na cena a intenção do escritor de

configurar o absurdo como estratégia de construção literária? Mia Couto, exatos 40 anos

depois de Tutuola, ainda carrega o estigma de produzir uma literatura exótica calcada na

oralidade. O interessante é que ele seja consagrado como um escritor de uma prosa tida como

poética, e que o aspecto oral que caracteriza essa poética remete às tradições africanas.

Diante do exposto, entendemos que, através do teatro do absurdo, escritores como o

romeno Eugène Ionesco procuraram representar a falência da racionalidade moderna, dentro

do contexto europeu. Do lado africano, obras como Terra sonâmbula e O bebedor de vinho

de palmeira também assumem, como dito por Mignolo, uma outra “categoria de

pensamento”. O modo como são estudadas evidencia um posicionamento político, como

ressaltado pela crítica pós-colonial que chama atenção para as relações de poder entre o Norte

e o Sul.

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117

Inocência Mata, no referido artigo sobre a teoria pós-colonial e suas genealogias

eurocêntricas, chama a atenção para a espacialidade do poder, dizendo que é fundamental

levar em consideração o aprisionamento e o desenho do espaço colonial, como vimos

ressaltando também com Harry Garuba. A crítica pós-colonial se mostra como um olhar

crítico que é capaz de voltar-se sobre o seu próprio fazer teórico. Nesse sentido, Mata trata

dos estudos pós-coloniais como uma ideologia, cujo objetivo seria “desvelar, afinal, trópicos

do discurso epistemológico cujos paradigmas são marcadamente eurocêntricos, portanto, [...]

percorrer os trilhos que levam a uma geocrítica do eurocentrismo” (MATA, 2014, p. 37). É

nesse sentido que classificar uma obra africana como exótica, ou qualquer termo que daí

decorra, pode expressar um ponto de vista que se adapta aos paradigmas ocidentais. A crítica

também se posiciona no jogo de poder instituído.

No intuito de ampliarmos o olhar para além da razão eurocêntrica, mas considerando

sua permanente imposição, notamos como as obras do nosso corpus expõem o encontro e a

convivência de racionalidades diferentes. No romance de Hampaté Bâ, a convivência entre as

estruturas de pensamento africana e francesa aparece quando a forma de narrar parece estar

legitimada pelas exigências ditadas pelo realismo, considerando a explicação do escritor ao

dizer, no prefácio da obra, que se trata de um personagem real. Mas, ao mesmo tempo, a

forma de narrar recorre a elementos e personagens que pertencem e encenam um outro

sistema, sendo o referido personagem, o protagonista Wangrin, um exemplo dessa outra

ordem.

No início do romance, o narrador nos apresenta Wangrin como filho da mitologia

bambara, valendo-se de estratégias descritivas que detalham as semelhanças entre o

personagem e o deus. No seio da tradição bambara, Wangrin é apadrinhado pelo deus

Gongoloma-Sookée, assumindo as características duais desse deus. Surpreendentemente para

a lógica cartesiana, os contrários coabitam um mesmo ser, sem que isso represente um

impedimento para sua ação. A dualidade se faz em convivência harmônica, abolindo a

maneira ocidental de concebê-la como oposição, conflito e geradora de instabilidade. A união

do impossível é o que define o personagem. A coerência da narração se sustenta com a

propriedade do escritor de estender à descrição do personagem características de um deus

bizarro, que se servia de sua narina para absorver as bebidas, e do ânus para se alimentar.

A descrição de Wangrin, a partir das semelhanças que o homem assume com seu deus

protetor, responde às inquietações colocadas pelo autor no aviso que antecede o início do

romance propriamente dito. Ao apresentar a obra como um relato real, o autor coloca a

seguinte advertência ao leitor: “Quem era Wangrin? Era um homem profundamente bizarro

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118

em quem as qualidades e defeitos contraditórios estavam tão misturados que não poderíamos,

a princípio, defini-lo e menos ainda situá-lo.” (BÂ, 1992, p. 20). Essa necessidade de explicar

trazida pelo autor, logo no início do romance, nos remete ao “demônio explicativo” de Gérard

Genette, como dito por Francisco Noa sobre o romance colonial, em que

a verossimilhança implica a legibilidade da obra, sempre que o autor se apercebe que introduz elementos novos e que escapam ao domínio dos seus destinatários, ou que transgridem o quadro normativo em que se integram, adota uma atitude pedagógica, didática, produzindo, a partir daí um “verossímil artificial”. (NOA, 2015, p. 86).

Essa “atitude pedagógica” do autor, a que se refere Noa, nós entendemos como uma

postura “didática” que tenta estabelecer uma ponte entre as “categorias de pensamento”

(MIGNOLO, 2008, p. 291), explicando ou traduzindo algumas situações mais inverossímeis,

chamando os leitores de volta ao acordo tácito, que é ler uma obra literária. Essas explanações

dos narradores jogam com motivações extraliterárias ou com as leis da própria narrativa e não

estão lá para fazer teoria, mas sim a serviço da narrativa, como explica Noa, apoiando-se na

teoria narrativa de Genette (NOA, 2015, p. 86).

Embora nesse aviso ao leitor o autor defenda a veracidade de seu relato, Bâ não está

com essa obra em defesa de nenhum ponto de vista. Sua clamada imparcialidade nos faz

questionar a presença, no romance, de características do realismo clássico, como explicado

por Ian Watt, ao traçar a ascensão do romance como um gênero que encarnaria as

características do homem moderno. Esse realismo assume um compromisso com a verdade,

ou com a realidade, em oposição a um “ideal poético”. O romancista diz: “Que não se busque,

então, nas páginas seguintes, a menor tese, de qualquer ordem que seja – política, religiosa ou

outra. Trata-se simplesmente, aqui, do relato da vida de um homem”. (BÂ, 1992, p. 9).

Confrontamos essa explicação com o dito pelo teórico inglês:

[...] o realismo formal – tende a ignorar tudo que não seja avalizado pelos sentidos: o júri normalmente não aceita a intervenção divina como explicação para as ações humanas. Assim, é provável que uma certa dose de secularização constituísse uma condição indispensável para o surgimento do novo gênero. O romance só podia se concentrar nas relações humanas, pois a maioria dos escritores e leitores acreditava que os seres humanos individuais, e não as coletividades como a Igreja ou os atores transcendentes, como as Pessoas da Trindade, detinham o papel supremo no palco do mundo. O romance, escreveu Georg Lukás, é a epopeia de um mundo esquecido por Deus; segundo o marquês de Sade, apresenta ‘le tableau des mœurs séculaires’ [o quadro dos costumes seculares]. (WATT, 2010, p. 89).

Page 121: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

119

Watt, no esforço de explicar como o romance “se concentra [prioritariamente] nas

relações humanas”, coloca o gênero como distante de qualquer transcendência e cita Sade de

forma resumitiva: trata-se de um “quadro de costumes”. Balzac diz algo semelhante. Na

mesma linha, Hampaté Bâ não se distancia dessas premissas quando diz que sua obra é apenas

“o relato da vida de um homem”, mesmo que seja preciso assinalar que esses “relato[s] da

vida de um homem” são construções motivadas por percepções de mundos diferentes e por

contextos culturais também diferentes.

Ao lermos o romance de Bâ, observamos o quanto a vida de Wangrin implica também

o quadro de costumes da época colonial em que viveu. Embora o romancista pretenda dizer

apenas da vida desse homem, sua narrativa engloba a situação colonial. A orquestração desses

costumes e princípios, muitas vezes antagônicos, é posta em cena por um narrador que afirma

sua pretensão de apenas contar. Mas, ao contrário do que tenta defender o autor, no prefácio,

o relato não é tão despretensioso, pois vai além dos costumes da época, ao mostrar o jogo de

poder embutido nas relações. O ponto de vista do escritor aparece na maneira como ele

organiza as diferentes vozes que falam no romance e compõem esse teatro, que é a vida de

Wangrin.

Teóricos como Wolfang Iser (2002), Mikhail Bakhtin (1993) e Roland Barthes (1988),

entre outros, discutem os limites da representação, colocando a encenação literária como uma

estratégia assumida pelo manejo com a linguagem. Bakhtin trata o romance como gênero

discursivo, diferenciando-o da linguagem poética ou épica. O teórico russo chama a atenção

para o aspecto discursivo da narrativa: “O discurso exige procedimentos formais especiais do

enunciado e da representação.” (BAKHTIN, 1993, p. 135). Para o teórico, o discurso é

também um elemento representado pelo “autor”, logo “o discurso se torna objeto de

representação no romance”. (BAKHTIN, 1993, p. 135). Como “objeto de representação”,

entendemos que, no jogo do texto encenado no “aviso ao leitor”, o autor Hampaté Bâ assume

a voz do narrador como uma instância narrativa que coloca em cena a sua “linguagem social”.

Dessa forma, consideramos o posicionamento dos narradores nos romances em estudo como

um elemento central dentro do jogo da representação literária.

4.7 O encontro africano: a descolonização em Terra sonâmbula

Assim, mesmo que o exotismo possa ser festejado por todos, como critica o

personagem Elizabeth, no romance de Coetzee, a imagem da África e do africano existe como

uma construção de sentido a partir de uma relação de poder, a favor, claro, do detentor desse

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120

poder. Perceber os meandros dessa relação contribui para esclarecer, na linha proposta por

Mbembe como descolonização, uma ideia de África de forma mais satisfatória, a fim de

ultrapassar mecanismos opressores. O filósofo camaronês afirma: “Descolonização é a

eliminação da distância entre imagem e essência. É sobre a ‘restituição’ da essência à imagem

assim que o que existe pode existir em si e não em algo exterior a si, algo distorcido,

desajeitado, degradado e desprezível”77. (MBEMBE, s.d, p. 12). Trata-se de se apropriar de si,

sem esquecer que “a identidade africana não existe como substância”. (MBEMBE, 2001, p.

199).

A frase do filósofo, que afasta qualquer definição estanque de identidade africana,

ressoa no momento em que investigamos voz, estilo e gênero como características dos

romances africanos. Tendo sido negada previamente a existência de uma identidade africana

fixa e rígida, assumimos a descolonização como derrubada do paradigma que instaurou a

supremacia da epistemologia ocidental sobre todas as outras. O pensamento de Mbembe faz

surgir a possibilidade de eliminação da distância entre uma imagem construída a posteriori e

uma essência genuína. Propomo-nos a investigar um pouco mais sobre a diminuição dessa

distância, com o cuidado de não assumirmos a posição moderna da identidade fixa já

combatida.

Assim, no sentido da investigação que aponta mais possibilidades do que soluções,

retornamos às obras, na tentativa de perceber como uma ideia de África se configura nos

textos literários em estudo. No intuito de evitar o posicionamento que promove distorções,

como apontado por Mbembe, buscamos ver a África não como algo exterior a si. Os

romances africanos, postos em comparação, apontam caminhos que nos permitem considerar

o enfoque de olhares internos. O personagem do bebedor se embrenha em uma mata de mitos,

fantasmas, violências, milhas, pences e xelins, enquanto o personagem de Hampaté Bâ,

Wangrin, termina por encarnar um modelo próximo à figura do contador de histórias da

tradição malinesa. O personagem de Mia Couto, Kindzu, também termina por se encontrar

com a tradição de sua terra, ao se tornar um guerreiro naparama.

Então, Junhito me chamou. Eu me olhei, sem confiança. Mas o que em mim vi foi de dar surpresa, mesmo em sonho: porque em meus braços se exibiam lenços e enfeites. Minhas mãos seguravam uma zagaia. Me certifiquei: eu era um naparama! Ao me verem, em minha nova figura, aqueles que maltratam o meu irmão se extinguiram num fechar de olhos. (COUTO, 2007, p. 203).

77 “Decolononization is the elimination of this gap between image and essence. It is about the “restitution” of the

essence to the image so that which exists can exist in itself and not in something other than itself, something distorted, clumsy, debased an unworthy”. (MBEMBE, s.d, p. 12).

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121

Entre encontros e desencontros, Kindzu, o escritor de caderninhos que narra sua

perambulação no romance Terra sonâmbula, finalmente encontra seu irmão Junhito,

transformado em galo pela família, como estratégia de sobrevivência à guerra civil que

assolava o país. Esse encontro pode ser lido como uma ilustração do processo de

descolonização, como teorizado por Mbembe.

Buscando uma aproximação entre aparência e essência, o filósofo se remete à raiz

latina de alguns termos para entender o que Fanon dizia sobre “uma nova espécie de homens”,

concluindo que essa nova categoria de “homens” implica o reconhecimento de si mesmo, sem

que haja predeterminação pela imagem como algo exterior a si. Assim, como trazido por

Mbembe, a raiz latina do

termo espécie significa “olhar”, “ver”, trazendo o sentido de “aparência” ou “visão”, ou ainda “aspecto”. A mesma raiz é encontrada em “speculum”, que significa “espelho”, ou em “spectrum”, que significa “imagem”; em “specimen”, que significa “signo” / “sinal”, e em “spetaculum”, que se refere a “espetáculo”. (MBEMBE, s.d, p. 12).

Entre imagem e essência, o jogo de espelhamento sempre presente na dialética do

olhar que constitui o indivíduo, o eu e o outro, está presente no encontro descrito por Kindzu

que se enxerga: “me olhei, sem confiança”, “me certifiquei”. Até que, finalmente, Kindzu vê

a si mesmo no olhar do outro: “ao me verem, em minha nova figura”. Na realização da

transformação concretizada pelo jogo de olhares, Kindzu se vê e vê que os outros o veem da

mesma forma como ele se viu. É nesse momento que a relação de opressão se esfacela: “Ao

me verem, em minha nova figura, aqueles que maltratam o meu irmão se extinguiram num

fechar de olhos”.

Mbembe, citando a teoria de Franz Fanon, destaca aspectos importantes no processo

de descolonização. No sentido que vimos abordando, a descolonização é um ato de

reconhecer-se a si mesmo, que caminha no sentido de restituir a humanidade ao colonizado

homem negro. Trata-se de um tornar-se humano, enquanto se restitui a humanidade ao

“humanismo cúmplice do racismo colonial”. Trata-se ainda de se “redefinir um tempo

nativo”, no sentido espaciotemporal de reposicionar a[s] África[s] no mapa do malfadado

progresso evolucionista da modernidade predatória de outras temporalidades. É nesse sentido

que entendemos a possibilidade de uma “essência” africana apenas como a descoberta de algo

que não seja imposto de fora, mas trabalhado, com os diversos componentes já em pauta, a

partir de uma perspectiva interna. O encontro dessa forma de ser diminuiria a maquiagem do

homem negro e da África como promovidas pela colonização.

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122

O jogo de espelhamento em Terra sonâmbula está presente em diferentes instâncias e

momentos da narrativa. Observado como assunto, ele revela a identidade dos personagens,

seus relacionamentos e abre a discussão para diversas temáticas relacionais. Observado como

uma estratégia narrativa, mesmo que tema e forma sejam indissociáveis, ao fim e ao cabo, a

estratégia de representação acaba por ratificar e expressar, muitas vezes, as angústias trazidas

numa primeira abordagem pelo tema exposto.

4.8 Espelho e representação

Assim, o jogo narrativo que se faz com a alternância entre as duas histórias – ora as

aventuras do menino e do velho, ora as contadas nos cadernos de Kindzu – permite o

cruzamento de narrativas que se realizam em abismo: uma história dentro da outra, uma

leitura dentro da outra. Esse procedimento cria camadas diegéticas que enriquecem a

discussão do romance em torno de sua encenação. Somos levados a desvendar junto com os

próprios personagens, no presente da leitura, questões que também se tornam nossas, e, por

isso, são adicionadas novas camadas ao jogo proposto pelo romance. O conceito de encenação

em abismo acentua a discussão sobre a crise da representação.

Quando o narrador interpela o leitor, um certo grau de artificialidade do discurso

narrativo fica exposto pelo desvelamento do processo de representação, que provoca o

procedimento conhecido como encenação em abismo. Entendemos que esse processo, ao

expor as camadas do texto, revela a encenação da escrita no texto literário. O próprio

narrador, ao interpelar o leitor, atua na fronteira do discurso mesclando, a favor da literatura,

as camadas diegéticas. No geral, o termo francês mise en abyme, que traduzimos por

encenação em abismo, refere-se:

aos casos em que a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele próprio. A representação pode propor o que é chamado de “reduplicação repetida”, ou “ao infinito”, na qual o fragmento posto no procedimento de “mise en abyme” comporta nele mesmo uma relação de similitude com o todo. [...] Oferecendo ocasiões para uma reflexão metadiscursiva, a obra pode refletir sobre o desenvolvimento complexo, que é sua própria elaboração, sobre o efeito que ela provoca no espectador, ou ainda sobre a artificialidade da referência “realista” do mundo (quando a mise en abyme adota como referente não a realidade mas o relato/narrativa do qual ela procede).[...] podemos dizer que essas representações especulares são sintomáticas de períodos de crise da representação, ou seja, de momentos onde a mimésis duvida de sua própria aptidão de falar verdadeiramente do mundo, e se volta para o que toda representação comporta de ilusão e de enganação.

(GEFEN, 2003, pp. 211-212, tradução nossa)78.

78 “[...] on parlera « mise en abyme » pour caractériser tous les cas où une œuvre représente dans le texte sa

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123

Quando o narrador discute abertamente sobre o fazer literário, expondo os rumos da

trama e suas escolhas como escritor, entendemos que se trata do procedimento que coloca a

narrativa em abismo, pois “a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele

próprio.” Assim, Kindzu, ao se mostrar como escritor, nos convida a refletir também sobre o

processo de representação da leitura e, principalmente, da escrita.

No romance de Mia Couto, assim como no de Amos Tutuola, a encenação em abismo

aparece para questionar a capacidade de representação do discurso, além de, pela exposição

do caráter de artificialidade da ficção, também expor a artificialidade do mundo. Já no

romance de Hampaté Bâ, a encenação em abismo comporta um “espelhamento entre facto e

ficto” (DUTRA, 2007, p. 98), na mescla entre ficção e história, costumes e geografia,

acrescentando uma dimensão metarreflexiva ao romance. “Essas representações especulares”

não seriam necessariamente sintomas de “crise da representação”, mas chamam a atenção

para a espacialidade da escrita entendida como uma poética, no sentido estudado por Tadié

(1994), que investigue sobre limites da literatura.

Nas palavras de Glissant, “O imaginário não comanda as exigências limitadoras da

ideia. Prefigura o real, sem o determinar a priori.” (GLISSANT, 2011, p. 182). Mbembe, em

sua análise da obra de Amos Tutuola, ressalta em certo momento que a caracterização das

criaturas e os eventos, no romance, perdem o referente: “Elas não são mais referentes do que

quer que seja.”79 (MBEMBE, 2015, p. 208). Observamos a seguinte descrição: “Tinha dois

olhos no joelho; dois braços presos nas coxas que de tão compridos podiam alcançar a parte

mais alta de qualquer árvore. Segurava um enorme chicote.” (TUTUOLA, 1970, p. 61).

Notamos, como explica Mbembe, que tal criatura não encontra nenhuma sustentação numa

experiência de real. Muitas vezes, o romance torna-se uma descrição de um mundo

indescritível que se sustenta na verossimilhança narrativa do ambiente fantasmal. A perda de

referencial provocada por Amos Tutuola chega quase a uma negação da representação.

lecture ou son écriture […]. À la limite, la représentation peut proposer ce que l’on nomme réduplication

répétée, ou à l’infini, dans laquelle le fragment mis « en abyme » comporte lui-même une représentation ayant cette relation de similitude avec le tout. […]. En offrant des occasions de réflexion métadiscursive, l’œuvre peut réfléchir au cheminement complexe dont relève son élaboration […]. Par-delà sa dimension ludique, aptitude à produire une infinité de « trompe-l’œil » […] on peut avancer que ces représentations spéculaires sont symptomatiques de périodes de crise de la représentation, c’est-à-dire de moments où la mimèsis se met à douter de son aptitude à parler véritablement du monde, pour se replier sur ce que toute représentation comporte d’illusion et de mensonge. […] Jean Ricardou a montré dans les Problèmes du nouveau roman (1967) comment ce courant littéraire avait usé de procédés variés de mise en abyme pour se situer au plus près du geste même de la création littéraire, saisie comme dans son mouvement même par la réflexivité d’un texte devenu ‘métatexte’”. (GEFEN, 2003, pp. 211-212).

79 “Elles ne sont plus, en retour, des référents de quoi que ce soit.” (MBEMBE, 2015, p. 208).

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124

Paralelamente, no romance de Mia Couto, a descrição de figuras inusitadas não desafia os

limites da representação como em Amos Tutuola, mas demanda uma distensão da imaginação

e dos limites do que comumente se entende por realidade.

Depois, caminhei nas dunas, passeando os olhos por aqueles imensos. Foi quando, num súbito, vi uma mão sair da terra. Subiu no espaço e, avançando no desajeito de um cego, me agarrou a perna. Tombei, gritando. Consegui me soltar. [...] Pois, daquele areal foram saindo outras mãos, mãos e mais mãos. Pareciam estacas de carne, os dedos remexendo com desespero de passaritos pedindo comida. (COUTO, 2007, p. 41).

A cena descreve a aparição de um “xipoco”, um ser que transita entre o mundo dos

vivos e dos mortos, que chega assombrando Kindzu durante seus devaneios, quando se

instala, na narrativa, um ambiente semelhante ao do bebedor de vinho, um mundo fantasmal

sem fronteiras entre vivos e mortos. Dessa forma, entre a autoridade da palavra impressa e a

ilusão, a voz narrativa do romance permite o trânsito entre a pura imaginação, um devaneio

completo, e a expressão de uma realidade qualquer, em que cada contexto produz sua feição

de realismo, sendo as nomenclaturas abundantes e exteriores ao texto. Ian Watt destaca a

flexibilidade do romance em acordo com a liberdade que lhe é atribuída também por outros

teóricos como Marthe Robert. Watt afirma:

A palavra impressa na comunicação literária tem duas características que derivam de sua total impessoalidade: podemos chamá-las a autoridade e a ilusão, que proporcionam ao romancista uma abordagem narrativa extremamente flexível, pois lhe permitem passar, sem esforço, da voz pública para a voz privada, das realidades da Bolsa de Valores para as realidades do devaneio. (WATT, 2010, p. 208).

Diante do exposto, percebemos que um dos esforços da teoria do romance é identificar

a construção da realidade através dos constructos da ficção. Fica patente que o gênero permite

a flexibilidade do escrito aberto às infinitas transmutações do devaneio.

Assim, o romance ultrapassa a época que o criou e deixa de ser apenas um produto da

modernidade. Sem a obrigação da representação de uma cópia que tende à imagem ilusória de

um real inalcançável, o romance se torna livre e expressa a distensão do tempo. Na sua

relação com a linguagem, a escrita, também como uma possível transfiguração do oral,

assume seu caráter ilusionista. Em seu exercício autorreflexivo entre a escrita e o passar do

tempo, o sujeito (re)constrói a sua história, no sentido descolonial de Mbembe e Fanon, no ato

de reconhecer-se a si mesmo.

4.9 A transgressão do romance africano

Page 127: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

125

Sobre representação da África dentro de nossa discussão literária, destacamos a

importância de sempre voltarmos aos questionamentos acerca da representação:

Muito já foi feito para ressignificar a ideia de África projetada pela biblioteca colonial, mas cabe ao intelectual lembrar-se constantemente de que falar da África é, ao mesmo tempo, não falar, já que muito mais permanece desconhecido que sabido, ou seja, é preciso cuidado para que, de uma forma ou de outra, não se repita a violência epistemológica de que fala Mudimbe. Está claramente posto aqui um problema que envolve a crise da representação. Em termos gerais, a crise revela a impossibilidade de se reapresentar ou de falar sobre o objeto ausente sem distorções. (RODRIGUES, 2011, p. 12).

Perguntamo-nos se haveria, então, formas alternativas de conceitualização que nos

libertem das estruturas epistêmicas e das linguagens da modernidade.

Pois embora pareça haver condições possíveis de conceitualizações alternativas, permanecemos aprisionados pelas estruturas epistêmicas e pelas linguagens da modernidade, sendo que nossas tentativas de falar fora delas invariavelmente nos levam de volta ao mesmo dispositivo discursivo, embora por meios contestatórios e subversivos. (GARUBA, 2018, p. 125).

No sentido de buscarmos por “conceitualizações alternativas”, a desmesura e o Todo-

mundo, teorizados por Glissant (2013), aparecem como conceitos que impulsionam uma outra

abordagem da literatura que pretende ir ainda além, talvez até mesmo do enquadramento pós-

colonial. Considerando o classicismo como uma medida, porque profundo e de intenção

universal, e o barroco como uma desmedida, por renunciar a essas pretensões, Glissant chega

ao pensamento que desenvolve a percepção do que chama de Todo-mundo, em que coloca as

literaturas francófonas, pela sua desmesura e diversidade, sem a “denegação operada pelo

barroco, nem a profundidade do classicismo”80 (GLISSANT, 2013, p. 95). Nesse quadro

inserimos também as literaturas periféricas de modo geral e especificamente os romances que

temos analisado. Tal percepção da literatura extrapola as medidas, ou seja, quaisquer bordas

que cercam o trabalho artístico e literário, e alcança uma desmesura da desmesura para além

da diversidade que já havia instaurado a desmesura no conceito de Todo-mundo. O teórico

explica:

Desmesura não porque seja anárquico, mas porque não há mais a pretensão ao profundo, ao universal, só há a pretensão à diversidade. Desmesura da desmesura.

80 “Et qu’elles n’ont pas à prétendre à la dénégation opérée par le baroque, ni à la profondeur du classicisme,

parce qu’elles vivent la diversité et la démesure du Tout-monde.” (GLISSANT, 2013, p. 95).

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126

Aquela desmesura é a abertura total e esta desmesura é o Todo-mundo. A literatura seguiu esse caminho. (GLISSANT, 2013, p. 94, itálico original, tradução nossa)81.

As reflexões desenvolvidas por Glissant ilustram o que Walter Mignolo entende por

“desobediência epistêmica”. Nesse sentido, entendemos que o pensamento descolonial se

torna uma ação, pois consideramos, com Mignolo, que

uma das realizações da razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero) e de expeli-los para fora da esfera normativa do “real”. Concordo que hoje não há agora fora do sistema; mas há muitas exterioridades, quer dizer, o exterior

construído a partir do interior para limpar e manter seu espaço imperial. É da exterioridade pluriversais que circundam a modernidade imperial ocidental (quer dizer, grego, latino, etc.), que as opções descoloniais se reposicionaram e emergiram com força. (MIGNOLO, 2008, p. 291).

Assim, ao apresentarem uma outra forma de apreensão do mundo, as narrativas

africanas nos dão notícias de um outro mundo, apresentando-nos realidades diversas das que

seriam comumente encenadas pelas histórias que compõem o dito cânone ocidental com o

qual estamos acostumados. Os romances africanos, pelo que demonstramos neste capítulo,

exigem de seus leitores uma outra forma de compreensão.

É diante dessa nova perspectiva proposta por autores como Mignolo, Mbembe e

Garuba, na esteira de Franz Fanon, Mudimbe e Glissant, que desenvolvemos nossa reflexão

sobre os romances africanos e o lugar das literaturas africanas no contexto global.

81 “Démesure non pas parce que c’est anarchique, mais parce qu’il n’y a plus la prétention à la profondeur, la

prétention à l’universel, il n’y a plus que la prétention à la diversité. Démesure de la démesure. Cette démesure-là c’est l’ouverture totale et cette démesure-ci c’est le Tout-monde. La littérature a suivi ce chemin.” (GLISSANT, 2013, p. 94).

Page 129: IDENTIDADE, ESPAÇO E ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM …

127

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise comparatista entre as obras propostas em nosso corpus nos permite constatar

que um certo imaginário sobre a África vem sendo construído em detrimento dos próprios

africanos. De acordo com os posicionamentos teóricos expostos, rechaçamos as

generalizações que emanam da necessidade do enquadramento universalista. Entendemos que

o universalismo moderno ocidental tolhe as diferenças, configurando-se num princípio que

aniquila o ser humano africano. A partir das leituras e análises feitas, constatamos que os

romances estudados conversam entre si e nos dão notícias, por semelhanças e diferenças, do

contínuo e violento processo de colonização, seja inglês, francês ou português. Nesse sentido,

vimos como os moçambicanos Kindzu, Tuahir e Muidinga contam sobre o nigeriano bebedor

de vinho de palmeira, que conta sobre o malinês Wangrin, que também conta sobre todos

esses outros e outros tantos africanos ainda. “Toda essa desordem de gente! Todas essas

histórias que vocês dizem não entender nada, ô gente!” (GLISSANT, 1993, p. 153). Uma

proposta de ordenação para esse esquema seria visualizá-los em interseções como na teoria da

geometria dos conjuntos. O olhar que nos permite fazer tal inferência não é aquele que

resume, mas o que considera o Todo-mundo, como dito por Édouard Glissant, na perspectiva

da poética da Relação.

A diferença entre Relação e totalidade vem do facto de que a Relação age por si mesma, quando a totalidade, no seu conceito, é ameaçada de imobilidade. A Relação é totalidade aberta, a totalidade seria relação em repouso. A totalidade é virtual. Mas só o repouso – em si mesmo – poderia ser válido ou totalmente virtual. Ora, o movimento é aquilo que se realiza absolutamente. A Relação é movimento. (GLISSANT, 2011, p. 163).

Glissant propõe o movimento: a Relação em oposição à totalidade estática do

universalismo excludente da colonização. Nesse todo mundo, as pessoas e os territórios

entram em confluência, não há mais fronteira (partage), e o que resta é a Relação, em que é

necessário ultrapassar qualquer ponto fixo. Como romanceado por Glissant:

[...] nós os [essa desordem de gente] reprimimos e os excluímos da potência do Território, mas, escutem, eles são a própria terra que jamais será território, eles vão à frente de nós, seus sofrimentos nos abrem novos espaços, eles são os profetas da Relação, eles vivem esse turbilhão, eles veem, longe adiante, esse ponto fixo que é preciso ultrapassar mais uma vez.82 (GLISSANT, 1993, p. 482).

82[…] on les refoule et les exclut de la puissance du Territoire mais écoutez, ils sont la terre elle-même qui

jamais ne sera territoire, ils vont au-devant de nous, leurs souffrances nous ouvrent des espaces nouveaux, ils

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128

No sentido de ultrapassar, transgredir e descolonizar, como conclusão, assumimos que

o viés teórico adotado para embasar a análise das obras estudadas nesta tese constitui também

um ponto de argumentação. Com o suporte de teóricos de diversas localidades e trânsitos,

para além do resumido Eixo Norte, entendemos, entre a análise dos textos literários e o

estudo das teorias propostas, que o Todo-mundo, o Diverso e a Relação permitem que

Africanos e Áfricas assumam o significado dessa nova categoria de homens, como teorizado

pelo antilhano Franz Fanon, tal como retomado pelo camaronês Achille Mbembe, em sua

defesa da descolonização (MBEMBE, s.d.).

A violência colonial, descrita pelo franco-tunisiano Albert Memmi, que torna os

africanos colonizados sub-humanos, está presente nos três romances. Enquanto Wangrin

termina por sucumbir à máquina de desejo do sistema colonial em busca de uma máscara

branca com sua morte tragicômica, e o personagem do bebedor de vinho de palmeira pontua

sua trajetória com as diversas metáforas sobre a violência colonial, os personagens de Terra

sonâmbula caminham por entre os destroços das guerras. Observamos como esses

personagens, nos três romances, tentam lidar com as diversas influências a que são

submetidos, e como a colonização é algo violento, por não permitir nenhuma conciliação

entre as culturas. A colonização é da ordem da imposição, assim como as guerras. Ambas

suprimem o encontro. A captura do território africano é mais uma forma de violência que

recai sobre os colonizados. A partir da relação de subjugação expressa pelas bordas

territoriais, os sujeitos, sub-humanos, são circunscritos pela dinâmica colonial que os

aprisiona. Mais uma vez, constatamos que o processo colonial e suas sequelas operam de

forma a restringir os trânsitos e os encontros e como, nesses romances, a circulação se mostra

como transgressão da ordem, uma forma de resistência, ou mesmo de sobrevivência, como em

Terra sonâmbula.

Enquanto Fanon, Memmi e mesmo Mbembe, entre outros, esmiúçam em suas análises

a violência do sistema colonial em aniquilar o homem, por exemplo pela animalização do

negro (FANON, 2002), a obra de Mia Couto se torna um exemplo poético, não sem explicitar

a crueldade do processo que se instala no pós-independência, na transfiguração do caráter

humano. Sendo assim, o texto literário serve tanto para denunciar a violência quanto para

ilustrar a possibilidade de reapropriação de si pelo homem colonizado, provendo assim sua

(des)colonização. A previsão de um futuro apocalíptico, no cenário da guerra civil

sont les prophètes de la Relation, ils vivent ce tourbillon ils voient, loin devant, ce point fixe qu’il faudra dépasser une fois encore.” (GLISSANT, 1993, p. 482).

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129

moçambicana em que se situa o romance, termina com uma solução, é preciso voltar a ser

humano: “Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez

animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que

esta guerra nos converteu.” (COUTO, 2007, p. 202).

Mais uma vez, diante das análises feitas apresentadas pela tese, entendemos que o

tempo a que se refere o feiticeiro que fala no trecho citado é certamente o período da guerra

civil. No entanto, nossa percepção é mais abrangente e inclui também a colonização

portuguesa, e outras, quando esse “animal” estava sendo gestado. Segundo Fanon: “Às vezes

este maniqueísmo [colonial] vai ao fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. Estritamente

falando, ele o animaliza. E, de fato, a linguagem do colono, quando ele fala do colonizado, é

uma linguagem zoológica.”83 (FANON, 2002, p. 45). É contra essa imagem construída a

priori, a partir do exterior, no intuito de subjugação colonial, que Kindzu finalmente se torna

um guerreiro da tradição naparama. A partir do jogo de olhares, como analisado

anteriormente, ele se reconhece e encontra sua África dentro de si. Para tanto, uma operação

da ordem da linguagem acontece. Kindzu é aquele que conta, que busca construir a sua

história:

Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz. (COUTO, 2007, p. 15).

O pesquisador ganês Simon Kofi Appiah chama a atenção para a importância das

narrativas para a constituição da identidade dos sujeitos. Appiah afirma:

As histórias que contamos sobre nós mesmos, e aquela que outros contam sobre nós são tão importantes na formação de nossa identidade e no que nós fazemos pela virtude em nossa identidade. De modo similar a um indivíduo que perde a memória, existem muitas maneiras em que a perda de uma narrativa comunitária autêntica pode afetar a identidade e a ética de um grupo.84 (APPIAH, 2013, p. 46).

83 “Parfois ce manichéisme va jusqu’au bout de sa logique et déshumanise le colonisé. À proprement parler, il

l’animalise. Et, de fait, le langage du colon, quand il parle du colonisé, est un langage zoologique.” (FANON, 2002, p. 45).

84 “The stories we tell about ourselves, and those that others tell about us are so important in the formation of our identity and in what we do with and by virtue of that identity. Similar to the effects on an individual who loses memory, there are many ways in which the loss of an authentic communal narrative can affect group identity and ethics.” (APPIAH, 2013, p. 46).

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130

Finalmente, não há como dissociar identidade, espaço e romance, quando entendemos

que a “mente humana é, primeiro e antes de tudo, um veículo de contar histórias.”85

(APPIAH, 2013, p. 48). Um elemento constitui o outro nesse caso, sendo a forma de contar, o

romance, uma tentativa de estabelecer a continuidade das relações, refazendo as identidades e

reconfigurando os espaços, justamente pela narrativa.

Dessa forma, os textos literários estudados nos permitiram perceber como uma ideia

de África se configura a partir deles, ao mesmo tempo que expõem que uma certa ideia de

África se impõe a eles. As estratégias narrativas empregadas, como procuramos demonstrar

com cada obra analisada, é a forma que possibilita tal configuração.

Assim, consideramos, com o moçambicano Francisco Noa, que cada momento

histórico constrói seu tipo de realismo:

Um fator constitutivo e definidor da literatura de ficção é que ela participa da composição de mundos possíveis e convoca, para cada um destes mundos, uma ideia de realidade que acaba por se articular, por semelhança ou por contiguidade, com o mundo empírico no qual nos movemos. (NOA, 2015, p.77).

Haverá sempre uma lacuna entre o que se pretende representar e a representação final

que lemos na forma da literatura, no processo de tradução de uma língua, um universo para

outro. Por isso é tão importante analisar não só o conteúdo quanto a forma desses romances.

Se entendemos que representar é um problema da língua, como acentua a teoria de Bakhtin.

Iser afirma:

Como ato negador do imaginário, o fictício oferece-lhe agora que se faça presente no produto verbal do texto, na medida em que a própria língua é transgredida e enganada, para que, no engano da língua, o imaginário, como causa possibilitadora do texto, se torne presente. (ISER, 2002, p. 984).

A linguagem já simboliza. E a encenação, como mais uma expressão da realidade,

sempre subjetiva, pois na impossibilidade do encontro com o real, não reflete o mundo, mas

cria o próprio mundo. Esses romances constituem conjuntos em interseções, em que a

comparação atua como um princípio que confronta uma obra com outra, um estilo com outro,

85 “Thus McAdams cites some scholars (Howard 1989; Landau 1984; Sarbin 1986) to confirm the growing belief

that ‘the human mind is first and foremost a vehicle form storytelling. Like the plot of a story, human beings persistently piece together the sporadic episodes of life into an organic whole, thus [conferring] upon the world and our conduct in it a storied quality (McAdams 27). Citing psychologist Burnner’s theory (Brunner 1990) that human understanding divides into paradigmatic and narrative modes, McAdams shows how narrative is the most natural way for humans to explain events as actions over time. This perspective of time answers for human fascination for narrative (McAdams 30).” (APPIAH, 2013, p. 48).

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131

numa linha de análise, principalmente, mas não exclusivamente, culturalista, como assumido

pelo enfoque dos estudos pós-coloniais sobre literatura. Ao atribuir importância ao contexto

exterior das obras, vimos que os questionamentos suscitados pelos romances estabelecem elos

temáticos entre eles. No campo estilístico, observamos como a formalidade da narração de

Hampaté Bâ contrasta com a informalidade de Tutuola e aponta para a liberdade da linguagem

que encontramos em Mia Couto.

Finalmente, os romances africanos, ao encenarem a violência colonial e da guerra civil

moçambicana a partir da perspectiva africana, se tornam um exemplo de “desobediência

epistêmica”, instaurando na linguagem uma nova epistemologia, uma vez que, como dito por

Bakhtin, o romance está na linguagem. A língua se torna um espaço epistêmico. Nessa

perspectiva, podemos responder afirmativamente à pergunta do sul-africano Harry Garuba,

quando o pesquisador indaga se haveria “formas alternativas que nos libertem das estruturas

epistêmicas e das linguagens da modernidade” (GARUBA, 2018, p. 125). As obras estudadas

indicam que sim. No entanto, é preciso um olhar cuidadoso que, atento às armadilhas, não nos

deixe presos a velhas estruturas, uma vez que estamos nelas inseridos e que assim não

fiquemos cegos ao novo e transgressor. Como dito pelo argentino Walter Mignolo:

Felizmente, a opção descolonial concede à concepção da reprodução da vida que vem de damnés, na terminologia de Frantz Fanon, ou seja, da perspectiva da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como força de trabalho: reprodução de vida aqui é um conceito que emerge dos afros escravizados e dos indígenas na formação de uma economia capitalista, e que se estende à reprodução da morte através da expansão imperial do ocidente e do crescimento da economia capitalista. (MIGNOLO, 2008, p. 296).

Assim, as literaturas africanas são a tentativa, e o sucesso dessa tentativa depende mais

do leitor, de uma nova ordem epistêmica que combate paulatinamente o “golpe

epistemológico”, que é a colonização.

Esperamos que nossas reflexões tenham conseguido alcançar o seu intento.

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132

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