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IDENTIDADE E O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA: A PERSPECTIVA DOS
ESTUDOS CULTURAIS
Joaquim Rauber – UFRGS1
INTRODUÇÃO
Com o advento dos debates em torno da pós-modernidade e do
multiculturalismo, iniciados no final do século XX, a temática das identidades veio à
tona nas ciências humanas. Na verdade, a noção de identidade não é recente nessa
área, sendo amplamente discutida em ciências como a Antropologia e a Psicologia.
Recentemente, historiadores e geógrafos também vêm se preocupando,
principalmente aqueles que concebem a visão da interdisciplinaridade. Esse
conceito tem alcançado também as salas de aula, sendo notado na inquietação
gerada nos professores ao buscar promover a conscientização sobre as
diversidades culturais brasileiras. Reconhecê-las, passa pela consideração dessa
diversidade étnica, das características regionais entre outras. A noção de identidade
tornou-se assim, um dos conceitos mais significativos de nossa época.
O conceito de identidade vem sendo discutido nos diversos campos das
ciências humanas, principalmente na Antropologia. Com suas bases na Filosofia e
Psicologia, um dos principais campos interdisciplinares é o dos Estudos Culturais,
fruto da pós-modernidade, nas ciências ditas humanas e sociais. Observando o
surgimento de diversas abordagens de identidades, sociológica, linguística e
também por meio da teoria da comunicação, a noção de identidade gerou vários
conceitos diferentes: identidade nacional, identidade étnica, identidade social, cada
um deles com uma gama de significados e métodos de análise próprios, que podem
ser vistos no Dicionário de Conceitos Históricos (SILVA, K; SILVA M, 2006).
A introdução dos Estudos Culturais para a questão das identidades, como um
processo desmistificação de uma cultura central, avança no sentido que essa
1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – Bolsista CAPES/DS
perspectiva pode nos desprender de arqueológicas concepções centralizadoras da
cultura e nos alerta para os impactos das relações sociais que se articulam entre
cultura e o contexto social contemporâneo. Dessa forma, a ideia de cultura
hegemônica mostra que a centralidade da cultura se transforma cotidianamente.
A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu "trabalho produtivo". Depende de um conhecimento da tradição enquanto "o mesmo em mutação" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse "desvio através de seus passados" faz e nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nos mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL 2003, p. 43)
A mensagem abordada por Hall, do ser para tornar-se é interessante para
entender a concepção de identidade. A cultura em sua origem é um conjunto de
significados/significantes que a partir das tradições amplia-se para uma nova forma
de ver, de situar-se, de produzir-se, no sentido mais amplo, num processo de
transformação em que novos conceitos, caminhos, nos levam a entender o
surgimento de novos sujeitos. Esse processo de transformação permite analisar que
caminhos percorremos perante nossas tradições, e se esse caminho está sendo
compilado a partir de intervenções diferentes do cotidiano, pois “fazer” pressupõe
reconstruir-se. Debates esses, advindos da contestação da tradição e da nova forma
de analisar e pensar a cultura.
A identidade é um conceito que possui diversas abordagens. Nos últimos
tempos estamos sofrendo uma explosão de produções discursivas sobre essa
identidade que deixa de ser unificada, integral. “A identidade é um desses conceitos
que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia
que não pode ser pensada de forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave
não podem sequer ser pensadas.” (HALL, 2014 p. 104, apud SILVA) A importância
dada ao conceito de identidade, faz com que esse conceito sempre atue no
entendimento de questões do interesse de determinada época.
Construção da identidade
Segundo Hall (2014) o sujeito assume identidades diferentes em distintos
momentos da vida. Afirma que uma identidade unificada, considerada completa é
uma ilusão, pois são apenas o reflexo de uma acomodada história sobre nós
mesmos e isso se torna cada vez mais distante da realidade em que vivemos.
Assim, “a medida que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis.” (HALL, 2014, p. 12). Referem-se às mais diferentes
identidades das quais poderíamos nos identificar, mesmo que temporariamente, no
mundo globalizado em que vivemos.
Para Hall (2014, p. 109) “as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos
e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas
específicas, por estratégias e iniciativas específicas.” Além disso, elas são
fortemente relacionadas a jogos de poder, sendo um produto que se refere à
marcação da diferença e exclusão, do que uma unidade única, naturalmente
estabelecida.
Sobre a relação de que haveria uma unidade cultural imutável, legitimada por
um pertencimento cultural que se sobrepõe as outras diferenças, consideradas
supostamente superficiais, Hall afirma:
[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são nunca singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação. (HALL, 2014, p. 108, apud SILVA)
As identidades são construídas através de discursos e por isso estão
amplamente moldadas, ocorrendo transformações ao longo do tempo. A
globalização permitiu que abalasse a estrutura e o caráter já estabelecido de
populações e culturas. É o que conhecemos com o fim da modernidade e a
emergência do mundo pós-colonial.
Castells (1999), afirma que do ponto de vista sociológico toda identidade é
construída. A questão é no que diz respeito a como, a partir de quê, por quem e para
que isso acontece. O conceito de identidade segundo essa perspectiva se usa da
matéria prima de várias ciências, como a história, geografia, biologia, instituições
essas que são produtivas e que se reproduzem pela memória coletiva dos
indivíduos. Segundo o autor,
[...] esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. Avento aqui a hipótese de que, em linhas gerais, quem constrói a identidade coletiva, e para que essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem. Uma vez que a construção social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder, proponho uma distinção entre três formas e origens de construção de identidades. (CASTELLS,1999, p. 23)
A proposta de distinção de Castells (1999) está relacionada à construção de
três tipos de identidades: identidade legitimadora, identidade de resistência e
identidade de projeto. A identidade legitimadora: introduzida pelas instituições que
dominam a sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação; a
identidade de resistência, criada e formada por atores sociais que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação; e
identidade de projeto, quando os atores sociais, sobre qualquer relação cultural ao
seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir a sua relação e
posição na sociedade, buscando a transformação da estrutura social.
A identidade para Castells estaria inserida num contexto específico, na qual
ele define de “sociedade em rede”. A sociedade em rede está fundamentada na
relação entre o global e o local para a maioria dos indivíduos e grupos sociais.
Assim, as sociedades de características civis encolhem-se e são desarticuladas,
pois não há mais uma continuidade entre a lógica da criação de relações de poder
na rede global e associação e representação em sociedades, culturas específicas.
Essa ideia marca o período em que a modernidade tardia esta chegando ao seu fim,
dando espaço a pós-modernidade.
Por outro lado, Stuar Hall (2014) aponta concepções de identidades a partir
do sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno, que auxiliam
a perceber essa mudança que esta acontecendo na sociedade. Por sua construção
o sujeito passa de uma identidade única para uma identidade mais plural, muitas
vezes até contraditória. A diversificação de identidades culturais, que se opõem as
culturas hegemônicas é trazida a partir das seguintes concepções de identidade:
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. [...] A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito dos valores, os sentidos e os símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava.[...]Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel” formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2014 p. 10)
As construções elaboradas por Stuart Hall refletem de maneira concisa que
as identidades estão sempre em processo de formação e transição. Do sujeito do
Iluminismo a concepção de sujeito pós-moderno, temos uma mudança significativa
na sociedade, o que interferirá como concebemos os sujeitos na
contemporaneidade. Sujeitos esses que consomem e são consumidos por diversos
artefatos culturais, realizam diversas tarefas que provocam rápidas adaptações
corporais e subjetivas relacionadas a novos ritmos e experiências que se
popularizam pelos novos estilos de vida. Essas diversas tarefas “constituem
estratégias que os sujeitos contemporâneos põem em jogo para manter-se à altura
das novas coações socioculturais, gerando maneiras inéditas de ser e estar no
mundo.” (SIBILIA, 2012, p. 51) Para entender essas relações precisamos abarcar
como se constituíram as concepções de identidade da modernidade a pós-
modernidade.
Do sujeito moderno ao sujeito pós-moderno
A identidade do sujeito da modernidade é abarcada na obra do pesquisador
francês Michel Foucault. Numa séries de estudos Foucault estudou a ‘genealogia do
sujeito moderno’. Ele destaca, em vários exemplos, como na obra Vigiar e Punir,
(1977) um novo tipo de poder, que chama de ‘poder disciplinar’. Esse poder age a
partir de mecanismos de controle, de acordo com os ‘regimes administrativos, do
conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento das disciplinas das
ciências sociais. Dessa forma, como traz Hall “os espaços criados, a exemplo a
escola, são mecanismos para garantir uma lógica perversa, que muitas vezes
observamos como discriminatória.” (2014, p.26). O princípio da sociedade moderna
se remete também à criação instituições coletivas, escolas, prisões, quartéis,
hospitais e clínicas que, envolvem um processo de individualização, nas palavras de
Hall (2014, p. 27): “quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da
modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito
individual”. Essa característica marca a legitimação das instituições coletivas que
objetivavam essa retrospecção do ser.
O projeto da modernidade perpassa vários ambientes, como retratam os
estudos realizados. Espaços esses em que sociedade estava pautada na
homogeneização de um modo de viver, além da disciplinação do corpo e então do
ser. Um princípio da modernidade foi a Ciência tomar dimensões de saber verídico e
científico. Assim, é possível pensar na ciência como dogma, verdade, como um
saber que é legitimado, tornando científico. Ainda hoje, os estudos e reflexões
tendem a busca de respostas e resultados, que a ciência por algum caminho
comprove, para ser legitimado.
Na modernidade, vivemos o processo de massificação das culturas
introduzidas pela indústria cultural, num fluxo incessante de informações que num
processo natural modificou nossas identidades, de forma que as maneiras que
pensamos e agimos tornaram-se ferramentas indispensáveis para conviver no
mundo social. Em sua obra Modernidade e Identidade, Antony Giddens (2002), traz
que a modernidade muda radicalmente à natureza da vida social cotidiana e altera
os aspectos mais pessoais de nossa existência. “A modernidade deve ser entendida
num nível institucional; mas as transformações introduzidas pelas instituições
modernas se entrelaçam de maneira direta com a vida individual, e, portanto com o
eu.” (GIDDENS, 2002, p. 09)
Neste sentido percebemos que essa transformação é muito rápida. Giddens
(2002) defende que existem extremos, onde temos influências do mundo global de
um lado e relações pessoais de outro. Processo que quando se altera os aspectos
individuais, também fragmenta as identidades estáveis. Segundo ele,
Na vida social moderna, a noção de estilo de vida assume um significado particular. Quanto mais a tradição perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstituída em termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de opções. Certamente existem também influências padronizadoras — particularmente na forma da criação da mercadoria, pois a produção e a distribuição capitalistas são componentes centrais das instituições da modernidade. (GIDDENS, 2002, p. 12)
As influências que Giddens (2002) abarca, dizem respeito às relações de
poder que se estabelecem nas instituições da modernidade. Está ligada a
diversificação de contextos e à diversidade de “autoridades” que interferem na
escolha do ‘estilo de vida’ nos acontecimentos diários. Isso, segundo Giddens, torna-
se uma característica central da estruturação do que ele chama de ‘auto-
identidades’. O termo ‘estilo de vida’ foi um mecanismo criado pela publicidade e
outras formas de reprodução do consumo para as classes e grupos mais
avantajados. Os ‘pobres’ não teriam a possibilidade de escolha. E isso em grande
parte é verdade, porque as questões de gênero e classes sociais podem definir-se
pelo acesso diferenciado as formas de auto-realização. E afirma: “A modernidade,
não se deve esquecer, produz diferença, exclusão e marginalização. Afastando a
possibilidade da emancipação, as instituições modernas ao mesmo tempo criam
mecanismos de supressão, e não de realização, do eu.” (GIDDENS, 2002, p. 13).
A globalização é um dos conceitos que atua sobre a dualidade de
entendimento, no sentido que a relação entre instituições/identidades pessoais, vida
individual/coletiva, se mistura em uma relação de aproximação com as escalas: local
e global, micro e macro, individual e coletivo, como aborda Giddens. Assim, a
globalização influencia as identidades culturais, sendo um processo complexo e
contraditório. É possível compreendê-la como uma mediação política que segue
para uma análise de cultura como prática social de poder. No entanto, a
globalização é um processo que propõe um conjunto de estruturas de identidade
individual, pressionada pelas instituições que na atuam na modernidade.
A sociedade dita pós-moderna, tem seu início no final do século XX,
carregando o fracasso de muitos princípios da Modernidade. Nesse período,
passamos da sociedade da produção para a sociedade do consumo,
essencialmente fragmentada. Há uma perda nas crenças e um sentimento de
brevidade que, extingue um projeto de vida perpétuo, ao mesmo tempo, individualiza
ainda mais os modos de viver. Há de certo modo, a inexistência de uma trilha, uma
fragmentação da própria vida que vai se resumindo em movimentos curtos e breves,
aqui podendo compará-los a uma 'vida em episódios'.
David Harvey, em seu livro Condição Pós-Moderna traz essa relação entre o
sujeito moderno e pós-moderno. As identidades pessoais são forjadas a partir de
certa unificação temporal do passado, do futuro com o presente que tenho diante de
mim. Isso está centrado na ideia pós-moderna com “o significante, e não o
significado, com a participação, a performance e o happening, em vez de com um
objeto de arte acabado e autoritário, antes com as aparências superficiais do que
com as raízes.” (HARVEY, 2010, p. 56). Esse pensamento predominante produz um
efeito esquizofrênico, na ideia de que a sociedade produz esquizofrênicos como
produz qualquer outro produto. O predomínio desse pensamento pós-moderno
apresenta várias consequências, como afirma Harvey:
Já não podemos conceber o indivíduo alienado no sentido do marxista clássico, porque ser alienado pressupõe um sentido de eu coerente, e não-fragmentado, do qual se alienar. Somente em termos de um tal sentido centrado de identidade pessoal podem os indivíduos se dedicar a projetos que se estendem no tempo ou pensar de modo coeso sobre a produção de um futuro significativamente melhor do que o tempo presente e passado. O modernismo dedicava-se muito à busca de futuros melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concentrar-se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e por todas as instabilidades (inclusive as linguísticas) que nos impedem até mesmo de representar coerentemente, para não falar de conhecer estratégias para produzir, algum futuro radicalmente diferente.(HARVEY, 2010, p. 57)
As contribuições de Harvey são importantes para compreender a transição e
constituição dos sujeitos modernos para pós-modernos. A sociedade moderna
buscava essa alienação do ser e também já podemos notar que na estética pós-
moderna, a alienação do sujeito, pressupõe que é deslocada pela fragmentação do
sujeito. “O caráter imediato dos eventos, o sensacionalismo do espetáculo (político,
científico e militar, bem como de diversão) se tornam a matéria de que a consciência
é forjada” (HARVEY, 2010. p. 57).
É um movimento curioso, ao mesmo tempo em que vigiar e controlar a vida
de outros sujeitos se torna interessante, e na atualidade que passa a ser defendida a
busca de felicidade constante, mesmo que em episódios breves. Portanto, há um
princípio interessante dos sujeitos pós-modernos: a busca constante de mais do que
o necessário. Essa felicidade está condicionada pela sociedade do consumo. É
preciso consumir para se sentir incluído, fortalecer a identidade do grupo o que gera
sobre todos a sensação de felicidade. “Numa sociedade de consumo, compartilhar a
dependência de consumidor - a dependência universal das compras - é a condição
sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser
diferente, de "ter identidade'” (BAUMAN, 2001 p.100). Essa constante e incessante
busca por mais e mais, aflora a cada momento, com um anúncio de novidade pelo
mercado de produção, aliado a mídia sensacionalista que explora a carência desses
sujeitos, na tentativa de lhes vender felicidade a cada propaganda.
E o livro didático de Geografia?
O livro didático de geografia não é uma invenção recente. Surgiu como
norteador do trabalho pedagógico do professor, ora dando sequência, ora limitando
possibilidades, se mantendo até os dias atuais. A função do livro como reprodutor
de conteúdos comuns, tomando como base parâmetros nacionais, carregados de
conceitos e paradigmas implícitos, atendia e continua a atender os interesses do
mercado, do capitalismo e do sistema como totalidade.
Segundo as ideias de Silva (1995) as narrativas encontradas nos livros
didáticos de Geografia, estando explicitas ou implicitamente representadas,
constroem noções sobre a organização da sociedade, e também os diversos grupos
sociais. Essas narrativas que se constituem nos livros didáticos trazem embutidas
representações a partir do currículo, salientando:
Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais vozes não o são. [...] Assim, as narrativas do currículo contam histórias que fixam noções particulares sobre gênero, raça, classe – noções que acabam também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos. (SILVA, 1995, p. 195)
As narrativas, e imagem encontradas nos livros didáticos de Geografia são
uma representação do real tendo significado diferente para cada um de nós. O aluno
traz na sua bagagem uma construção da paisagem vivida confrontada com as
construções propostas pelos livros didáticos. As construções estereotipadas, por
exemplo, de um Nordeste pobre, seco, menos desenvolvido é carregada por um
valor de uso desse dado a esse território. As características regionais trabalhadas
nos livros didáticos de Geografia evidenciam certa carga negativa à Região
Nordeste, que é muitas vezes é trazida como menos desenvolvida. Assim também é
representada a migração do nordestino para o Sudeste e Sul em busca de
“melhores condições de vida e trabalho”, mostrando como os discursos vinculam
significados, que carregam a marca do poder de que os produziu.
Os livros didáticos possuem caráter de difusor de determinadas visões de
mundo. “É por meio do livro didático que a sociedade, ou uma parcela dela,
estabelece o que deve ser lembrado e o que é realmente importante conhecer em
determinado período” (ALBUQUERQUE, 2014 p.165). Considerado artefato cultural,
representa diferentes modos de pensar, ajudando na constituição de identidades,
assim como seus objetivos mudaram de acordo com as transformações da
sociedade. Desta forma:
[...] o livro didático não é somente um “depósito” de conteúdos, lugar onde os autores registravam os conhecimentos geográficos, mas também, e principalmente, um lugar de produção de significados, como um artefato cultural no qual as verdades são fabricadas e postas em circulação. O livro didático é uma peça da maquinaria escolar inserida numa arena política, cujo jogo autoriza certos discursos e desautoriza outros. (TONINI, 2003, p 36)
Tonini (2003) contribui com a ideia de que as representações trazidas pelos
livros didáticos estão inseridas em redes de poder. Produzem narrativas que estão
representadas e que não se procura evidenciar se uma é verdadeira em relação à
outra, mas procura-se entender os enunciados que são produzidos, rompendo com
uma lógica identitária hegemônica. O conhecimento geográfico está registrado nos
livros didáticos como um saber, que ao ser capturado evidencia as redes e tramas
que se legitimam para constituir, manter e perpetuar formas de significação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A geografia pode ter um papel ímpar na formação de um sujeito social
pensante, reflexivo. Portanto é possível entender como a Geografia e o campo dos
Estudos Culturais pode ajudar na construção do cidadão crítico, para que saiba
pensar não apenas seu espaço cotidiano, rotineiro, mas como ele é determinado por
eventos externos, isto é, em diversas escalas na produção e transformação do
espaço geográfico. A identidade apresenta importância crescente nas práticas
educacionais e sociais, dimensionada pela visibilidade posta aos grupos
minoritários, que possuem voz e participação no jogo das identidades. E a geografia
pode fazer com que o aluno perceba a importância desta área, e se reconheça
sujeito que produz e é produzido pela sociedade.
Neste tempo de incertezas, romperam-se as fronteiras tradicionais
geográficas e linguísticas como aborda Hall (2014). Isso se configura na derrubada
dos limites entre a escola e o mundo. Muda-se o sentido dado ao tempo e ao espaço
e das formas como nos apropriamos deles. Caminhamos para um mundo
globalizado, onde “os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam
possibilidades de ‘identidades partilhadas’ como ‘consumidores’ para os mesmos
bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e
imagens – entre pessoas que estão bastantes distantes uma das outras no tempo e
no espaço.” (HALL, 2014, p.42). As informações nunca foram tão acessíveis.
Velozes e de fácil acesso, fazem parte do cotidiano formando opiniões de massa,
agregando passo a passo a sociedade a um senso comum. A condição dos meios
de comunicação de massa, influente e tendenciosa, está formando e reformando as
identidades dos sujeitos contemporâneos.
O livro didático atualmente está mais imagético e tecnológico do que nunca.
Isso não inibe as concepções implícitas e a cautela que professores precisam tomar
na utilização deste como ferramenta do processo de ensino aprendizagem. A falta
de formação faz com que docentes se apoiem nos livros didáticos sem uma visão
crítica do que estão reproduzindo e representando. O livro como um artefato cultural,
representa vários sentidos de ensinar e aprender sobre o mundo que vivemos,
disseminando uma produção de sentidos e significados numa relação entre saber,
poder e identidade.
Estudar a realidade que nos cerca é perceber o que está acontecendo como
sujeitos no e com o mundo. Isso significa que a escola não deve simplesmente
buscar cumprir conteúdos curriculares, mas desenvolver atividades que façam os
alunos tornarem sujeitos capazes e criativos na construção de um conhecimento
geográfico significativo.
Conforme a contribuição de Santos:
Para ter eficácia, o processo de aprendizagem deve, em primeiro lugar, partir da consciência da época em que vivemos. Isso significa saber que o mundo é e como ele se define e funciona, de modo a reconhecer o lugar de cada país no conjunto do planeta e o de cada pessoa no conjunto da sociedade humana. É desse modo que se podem formar cidadãos conscientes, capazes de atuar no presente e de ajudar a construir o futuro. (SANTOS, p.121, 1994).
A tentativa foi buscar, a partir do contexto histórico das identidades, entender
como o sujeito se constituiu para chegar à condição que nos encontramos.
Observamos dessa forma a complexidade da noção de identidade e sua enorme
valorização para a construção da cidadania. Neste sentido, é importante que no
ambiente da sala de aula, professores se conscientizem da importância de usarmos
e trabalharmos com a riqueza dos diversos recursos pedagógicos que os livros
didáticos apresentam de forma crítica, desmistificando as verdades absolutas, e as
narrativas únicas.
É preciso levantar a bandeira do respeito às diversidades culturais, às
minorias, estando inseridos na discussão da identidade. Neste sentido, não
podemos receber apenas as representações apresentadas pelos livros didáticos, é
preciso debates sobre as várias facetas da construção das identidades. O desafio a
cada sujeito é ser protagonista da construção de seu espaço, de sua história e de
sua sociedade. Esta condição de protagonismo da própria vida coloca-se como
alternativa para fazer frente ao mundo globalizado.
REFERÊNCIAS:
ALBUQUERQUE, Maria A. Martins. Livros didáticos e currículos em geografia: uma história a ser contada. In TONINI, I. M. et al. (Orgs) O ensino de Geografia e suas composições curriculares. Porto Alegre. Mediação, 2014. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. A era da informação, economia e sociedade e cultura. v.2. 3ª Ed. Tradução: Klauss, Brandini Gerhardt. São Paulo, Paz e Terra, 1999. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. GIDDENS, Antony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zaltar, 2002. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG; 2003. ________. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014. HARVEY, David. Condição pós-moderna. 19ª ed. São Paulo, Edições Loyola, 2010. SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico. São Paulo: HUCITEC, 1994. SIBILIA, P. Redes ou paredes, a escola em tempos de dispersão. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Contraponto, 2012. SILVA, Tomaz Tadeu.(org.) Alienígenas na sala de aula – uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis, Vozes, 1995. SILVA, Vanderlei K; SILVA, Maciel H. Dicionário de Conceitos Históricos São Paulo, Contexto, 2006. TONINI, Ivaine. Imagens nos livros didáticos de geografia: seus ensinamentos, sua pedagogia... Mercator - Revista de Geografia da UFC, ano 02, número 04, p. 35-44, 2003. Disponível em: <http://www.mercator.ufc.br/index.php/mercator/article/viewFile/148/117> Acesso em:16 Jan. 2015.