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IDENTIDADE E O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA: A PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS Joaquim Rauber UFRGS 1 INTRODUÇÃO Com o advento dos debates em torno da pós-modernidade e do multiculturalismo, iniciados no final do século XX, a temática das identidades veio à tona nas ciências humanas. Na verdade, a noção de identidade não é recente nessa área, sendo amplamente discutida em ciências como a Antropologia e a Psicologia. Recentemente, historiadores e geógrafos também vêm se preocupando, principalmente aqueles que concebem a visão da interdisciplinaridade. Esse conceito tem alcançado também as salas de aula, sendo notado na inquietação gerada nos professores ao buscar promover a conscientização sobre as diversidades culturais brasileiras. Reconhecê-las, passa pela consideração dessa diversidade étnica, das características regionais entre outras. A noção de identidade tornou-se assim, um dos conceitos mais significativos de nossa época. O conceito de identidade vem sendo discutido nos diversos campos das ciências humanas, principalmente na Antropologia. Com suas bases na Filosofia e Psicologia, um dos principais campos interdisciplinares é o dos Estudos Culturais, fruto da pós-modernidade, nas ciências ditas humanas e sociais. Observando o surgimento de diversas abordagens de identidades, sociológica, linguística e também por meio da teoria da comunicação, a noção de identidade gerou vários conceitos diferentes: identidade nacional, identidade étnica, identidade social, cada um deles com uma gama de significados e métodos de análise próprios, que podem ser vistos no Dicionário de Conceitos Históricos (SILVA, K; SILVA M, 2006). A introdução dos Estudos Culturais para a questão das identidades, como um processo desmistificação de uma cultura central, avança no sentido que essa 1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Bolsista CAPES/DS

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IDENTIDADE E O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA: A PERSPECTIVA DOS

ESTUDOS CULTURAIS

Joaquim Rauber – UFRGS1

INTRODUÇÃO

Com o advento dos debates em torno da pós-modernidade e do

multiculturalismo, iniciados no final do século XX, a temática das identidades veio à

tona nas ciências humanas. Na verdade, a noção de identidade não é recente nessa

área, sendo amplamente discutida em ciências como a Antropologia e a Psicologia.

Recentemente, historiadores e geógrafos também vêm se preocupando,

principalmente aqueles que concebem a visão da interdisciplinaridade. Esse

conceito tem alcançado também as salas de aula, sendo notado na inquietação

gerada nos professores ao buscar promover a conscientização sobre as

diversidades culturais brasileiras. Reconhecê-las, passa pela consideração dessa

diversidade étnica, das características regionais entre outras. A noção de identidade

tornou-se assim, um dos conceitos mais significativos de nossa época.

O conceito de identidade vem sendo discutido nos diversos campos das

ciências humanas, principalmente na Antropologia. Com suas bases na Filosofia e

Psicologia, um dos principais campos interdisciplinares é o dos Estudos Culturais,

fruto da pós-modernidade, nas ciências ditas humanas e sociais. Observando o

surgimento de diversas abordagens de identidades, sociológica, linguística e

também por meio da teoria da comunicação, a noção de identidade gerou vários

conceitos diferentes: identidade nacional, identidade étnica, identidade social, cada

um deles com uma gama de significados e métodos de análise próprios, que podem

ser vistos no Dicionário de Conceitos Históricos (SILVA, K; SILVA M, 2006).

A introdução dos Estudos Culturais para a questão das identidades, como um

processo desmistificação de uma cultura central, avança no sentido que essa

1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul – Bolsista CAPES/DS

Page 2: IDENTIDADE E O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA: A · PDF fileO conceito de identidade segundo essa perspectiva se usa da matéria prima de várias ciências, como a história, geografia,

perspectiva pode nos desprender de arqueológicas concepções centralizadoras da

cultura e nos alerta para os impactos das relações sociais que se articulam entre

cultura e o contexto social contemporâneo. Dessa forma, a ideia de cultura

hegemônica mostra que a centralidade da cultura se transforma cotidianamente.

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu "trabalho produtivo". Depende de um conhecimento da tradição enquanto "o mesmo em mutação" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse "desvio através de seus passados" faz e nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nos mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL 2003, p. 43)

A mensagem abordada por Hall, do ser para tornar-se é interessante para

entender a concepção de identidade. A cultura em sua origem é um conjunto de

significados/significantes que a partir das tradições amplia-se para uma nova forma

de ver, de situar-se, de produzir-se, no sentido mais amplo, num processo de

transformação em que novos conceitos, caminhos, nos levam a entender o

surgimento de novos sujeitos. Esse processo de transformação permite analisar que

caminhos percorremos perante nossas tradições, e se esse caminho está sendo

compilado a partir de intervenções diferentes do cotidiano, pois “fazer” pressupõe

reconstruir-se. Debates esses, advindos da contestação da tradição e da nova forma

de analisar e pensar a cultura.

A identidade é um conceito que possui diversas abordagens. Nos últimos

tempos estamos sofrendo uma explosão de produções discursivas sobre essa

identidade que deixa de ser unificada, integral. “A identidade é um desses conceitos

que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia

que não pode ser pensada de forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave

não podem sequer ser pensadas.” (HALL, 2014 p. 104, apud SILVA) A importância

dada ao conceito de identidade, faz com que esse conceito sempre atue no

entendimento de questões do interesse de determinada época.

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Construção da identidade

Segundo Hall (2014) o sujeito assume identidades diferentes em distintos

momentos da vida. Afirma que uma identidade unificada, considerada completa é

uma ilusão, pois são apenas o reflexo de uma acomodada história sobre nós

mesmos e isso se torna cada vez mais distante da realidade em que vivemos.

Assim, “a medida que os sistemas de significação e representação cultural se

multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante

de identidades possíveis.” (HALL, 2014, p. 12). Referem-se às mais diferentes

identidades das quais poderíamos nos identificar, mesmo que temporariamente, no

mundo globalizado em que vivemos.

Para Hall (2014, p. 109) “as identidades são construídas dentro e não fora do

discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos

e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas

específicas, por estratégias e iniciativas específicas.” Além disso, elas são

fortemente relacionadas a jogos de poder, sendo um produto que se refere à

marcação da diferença e exclusão, do que uma unidade única, naturalmente

estabelecida.

Sobre a relação de que haveria uma unidade cultural imutável, legitimada por

um pertencimento cultural que se sobrepõe as outras diferenças, consideradas

supostamente superficiais, Hall afirma:

[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são nunca singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação. (HALL, 2014, p. 108, apud SILVA)

As identidades são construídas através de discursos e por isso estão

amplamente moldadas, ocorrendo transformações ao longo do tempo. A

globalização permitiu que abalasse a estrutura e o caráter já estabelecido de

populações e culturas. É o que conhecemos com o fim da modernidade e a

emergência do mundo pós-colonial.

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Castells (1999), afirma que do ponto de vista sociológico toda identidade é

construída. A questão é no que diz respeito a como, a partir de quê, por quem e para

que isso acontece. O conceito de identidade segundo essa perspectiva se usa da

matéria prima de várias ciências, como a história, geografia, biologia, instituições

essas que são produtivas e que se reproduzem pela memória coletiva dos

indivíduos. Segundo o autor,

[...] esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. Avento aqui a hipótese de que, em linhas gerais, quem constrói a identidade coletiva, e para que essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem. Uma vez que a construção social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder, proponho uma distinção entre três formas e origens de construção de identidades. (CASTELLS,1999, p. 23)

A proposta de distinção de Castells (1999) está relacionada à construção de

três tipos de identidades: identidade legitimadora, identidade de resistência e

identidade de projeto. A identidade legitimadora: introduzida pelas instituições que

dominam a sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação; a

identidade de resistência, criada e formada por atores sociais que se encontram em

posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação; e

identidade de projeto, quando os atores sociais, sobre qualquer relação cultural ao

seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir a sua relação e

posição na sociedade, buscando a transformação da estrutura social.

A identidade para Castells estaria inserida num contexto específico, na qual

ele define de “sociedade em rede”. A sociedade em rede está fundamentada na

relação entre o global e o local para a maioria dos indivíduos e grupos sociais.

Assim, as sociedades de características civis encolhem-se e são desarticuladas,

pois não há mais uma continuidade entre a lógica da criação de relações de poder

na rede global e associação e representação em sociedades, culturas específicas.

Essa ideia marca o período em que a modernidade tardia esta chegando ao seu fim,

dando espaço a pós-modernidade.

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Por outro lado, Stuar Hall (2014) aponta concepções de identidades a partir

do sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno, que auxiliam

a perceber essa mudança que esta acontecendo na sociedade. Por sua construção

o sujeito passa de uma identidade única para uma identidade mais plural, muitas

vezes até contraditória. A diversificação de identidades culturais, que se opõem as

culturas hegemônicas é trazida a partir das seguintes concepções de identidade:

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. [...] A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito dos valores, os sentidos e os símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava.[...]Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel” formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2014 p. 10)

As construções elaboradas por Stuart Hall refletem de maneira concisa que

as identidades estão sempre em processo de formação e transição. Do sujeito do

Iluminismo a concepção de sujeito pós-moderno, temos uma mudança significativa

na sociedade, o que interferirá como concebemos os sujeitos na

contemporaneidade. Sujeitos esses que consomem e são consumidos por diversos

artefatos culturais, realizam diversas tarefas que provocam rápidas adaptações

corporais e subjetivas relacionadas a novos ritmos e experiências que se

popularizam pelos novos estilos de vida. Essas diversas tarefas “constituem

estratégias que os sujeitos contemporâneos põem em jogo para manter-se à altura

das novas coações socioculturais, gerando maneiras inéditas de ser e estar no

mundo.” (SIBILIA, 2012, p. 51) Para entender essas relações precisamos abarcar

como se constituíram as concepções de identidade da modernidade a pós-

modernidade.

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Do sujeito moderno ao sujeito pós-moderno

A identidade do sujeito da modernidade é abarcada na obra do pesquisador

francês Michel Foucault. Numa séries de estudos Foucault estudou a ‘genealogia do

sujeito moderno’. Ele destaca, em vários exemplos, como na obra Vigiar e Punir,

(1977) um novo tipo de poder, que chama de ‘poder disciplinar’. Esse poder age a

partir de mecanismos de controle, de acordo com os ‘regimes administrativos, do

conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento das disciplinas das

ciências sociais. Dessa forma, como traz Hall “os espaços criados, a exemplo a

escola, são mecanismos para garantir uma lógica perversa, que muitas vezes

observamos como discriminatória.” (2014, p.26). O princípio da sociedade moderna

se remete também à criação instituições coletivas, escolas, prisões, quartéis,

hospitais e clínicas que, envolvem um processo de individualização, nas palavras de

Hall (2014, p. 27): “quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da

modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito

individual”. Essa característica marca a legitimação das instituições coletivas que

objetivavam essa retrospecção do ser.

O projeto da modernidade perpassa vários ambientes, como retratam os

estudos realizados. Espaços esses em que sociedade estava pautada na

homogeneização de um modo de viver, além da disciplinação do corpo e então do

ser. Um princípio da modernidade foi a Ciência tomar dimensões de saber verídico e

científico. Assim, é possível pensar na ciência como dogma, verdade, como um

saber que é legitimado, tornando científico. Ainda hoje, os estudos e reflexões

tendem a busca de respostas e resultados, que a ciência por algum caminho

comprove, para ser legitimado.

Na modernidade, vivemos o processo de massificação das culturas

introduzidas pela indústria cultural, num fluxo incessante de informações que num

processo natural modificou nossas identidades, de forma que as maneiras que

pensamos e agimos tornaram-se ferramentas indispensáveis para conviver no

mundo social. Em sua obra Modernidade e Identidade, Antony Giddens (2002), traz

que a modernidade muda radicalmente à natureza da vida social cotidiana e altera

os aspectos mais pessoais de nossa existência. “A modernidade deve ser entendida

num nível institucional; mas as transformações introduzidas pelas instituições

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modernas se entrelaçam de maneira direta com a vida individual, e, portanto com o

eu.” (GIDDENS, 2002, p. 09)

Neste sentido percebemos que essa transformação é muito rápida. Giddens

(2002) defende que existem extremos, onde temos influências do mundo global de

um lado e relações pessoais de outro. Processo que quando se altera os aspectos

individuais, também fragmenta as identidades estáveis. Segundo ele,

Na vida social moderna, a noção de estilo de vida assume um significado particular. Quanto mais a tradição perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstituída em termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de opções. Certamente existem também influências padronizadoras — particularmente na forma da criação da mercadoria, pois a produção e a distribuição capitalistas são componentes centrais das instituições da modernidade. (GIDDENS, 2002, p. 12)

As influências que Giddens (2002) abarca, dizem respeito às relações de

poder que se estabelecem nas instituições da modernidade. Está ligada a

diversificação de contextos e à diversidade de “autoridades” que interferem na

escolha do ‘estilo de vida’ nos acontecimentos diários. Isso, segundo Giddens, torna-

se uma característica central da estruturação do que ele chama de ‘auto-

identidades’. O termo ‘estilo de vida’ foi um mecanismo criado pela publicidade e

outras formas de reprodução do consumo para as classes e grupos mais

avantajados. Os ‘pobres’ não teriam a possibilidade de escolha. E isso em grande

parte é verdade, porque as questões de gênero e classes sociais podem definir-se

pelo acesso diferenciado as formas de auto-realização. E afirma: “A modernidade,

não se deve esquecer, produz diferença, exclusão e marginalização. Afastando a

possibilidade da emancipação, as instituições modernas ao mesmo tempo criam

mecanismos de supressão, e não de realização, do eu.” (GIDDENS, 2002, p. 13).

A globalização é um dos conceitos que atua sobre a dualidade de

entendimento, no sentido que a relação entre instituições/identidades pessoais, vida

individual/coletiva, se mistura em uma relação de aproximação com as escalas: local

e global, micro e macro, individual e coletivo, como aborda Giddens. Assim, a

globalização influencia as identidades culturais, sendo um processo complexo e

contraditório. É possível compreendê-la como uma mediação política que segue

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para uma análise de cultura como prática social de poder. No entanto, a

globalização é um processo que propõe um conjunto de estruturas de identidade

individual, pressionada pelas instituições que na atuam na modernidade.

A sociedade dita pós-moderna, tem seu início no final do século XX,

carregando o fracasso de muitos princípios da Modernidade. Nesse período,

passamos da sociedade da produção para a sociedade do consumo,

essencialmente fragmentada. Há uma perda nas crenças e um sentimento de

brevidade que, extingue um projeto de vida perpétuo, ao mesmo tempo, individualiza

ainda mais os modos de viver. Há de certo modo, a inexistência de uma trilha, uma

fragmentação da própria vida que vai se resumindo em movimentos curtos e breves,

aqui podendo compará-los a uma 'vida em episódios'.

David Harvey, em seu livro Condição Pós-Moderna traz essa relação entre o

sujeito moderno e pós-moderno. As identidades pessoais são forjadas a partir de

certa unificação temporal do passado, do futuro com o presente que tenho diante de

mim. Isso está centrado na ideia pós-moderna com “o significante, e não o

significado, com a participação, a performance e o happening, em vez de com um

objeto de arte acabado e autoritário, antes com as aparências superficiais do que

com as raízes.” (HARVEY, 2010, p. 56). Esse pensamento predominante produz um

efeito esquizofrênico, na ideia de que a sociedade produz esquizofrênicos como

produz qualquer outro produto. O predomínio desse pensamento pós-moderno

apresenta várias consequências, como afirma Harvey:

Já não podemos conceber o indivíduo alienado no sentido do marxista clássico, porque ser alienado pressupõe um sentido de eu coerente, e não-fragmentado, do qual se alienar. Somente em termos de um tal sentido centrado de identidade pessoal podem os indivíduos se dedicar a projetos que se estendem no tempo ou pensar de modo coeso sobre a produção de um futuro significativamente melhor do que o tempo presente e passado. O modernismo dedicava-se muito à busca de futuros melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concentrar-se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e por todas as instabilidades (inclusive as linguísticas) que nos impedem até mesmo de representar coerentemente, para não falar de conhecer estratégias para produzir, algum futuro radicalmente diferente.(HARVEY, 2010, p. 57)

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As contribuições de Harvey são importantes para compreender a transição e

constituição dos sujeitos modernos para pós-modernos. A sociedade moderna

buscava essa alienação do ser e também já podemos notar que na estética pós-

moderna, a alienação do sujeito, pressupõe que é deslocada pela fragmentação do

sujeito. “O caráter imediato dos eventos, o sensacionalismo do espetáculo (político,

científico e militar, bem como de diversão) se tornam a matéria de que a consciência

é forjada” (HARVEY, 2010. p. 57).

É um movimento curioso, ao mesmo tempo em que vigiar e controlar a vida

de outros sujeitos se torna interessante, e na atualidade que passa a ser defendida a

busca de felicidade constante, mesmo que em episódios breves. Portanto, há um

princípio interessante dos sujeitos pós-modernos: a busca constante de mais do que

o necessário. Essa felicidade está condicionada pela sociedade do consumo. É

preciso consumir para se sentir incluído, fortalecer a identidade do grupo o que gera

sobre todos a sensação de felicidade. “Numa sociedade de consumo, compartilhar a

dependência de consumidor - a dependência universal das compras - é a condição

sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser

diferente, de "ter identidade'” (BAUMAN, 2001 p.100). Essa constante e incessante

busca por mais e mais, aflora a cada momento, com um anúncio de novidade pelo

mercado de produção, aliado a mídia sensacionalista que explora a carência desses

sujeitos, na tentativa de lhes vender felicidade a cada propaganda.

E o livro didático de Geografia?

O livro didático de geografia não é uma invenção recente. Surgiu como

norteador do trabalho pedagógico do professor, ora dando sequência, ora limitando

possibilidades, se mantendo até os dias atuais. A função do livro como reprodutor

de conteúdos comuns, tomando como base parâmetros nacionais, carregados de

conceitos e paradigmas implícitos, atendia e continua a atender os interesses do

mercado, do capitalismo e do sistema como totalidade.

Segundo as ideias de Silva (1995) as narrativas encontradas nos livros

didáticos de Geografia, estando explicitas ou implicitamente representadas,

constroem noções sobre a organização da sociedade, e também os diversos grupos

sociais. Essas narrativas que se constituem nos livros didáticos trazem embutidas

representações a partir do currículo, salientando:

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Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais vozes não o são. [...] Assim, as narrativas do currículo contam histórias que fixam noções particulares sobre gênero, raça, classe – noções que acabam também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos. (SILVA, 1995, p. 195)

As narrativas, e imagem encontradas nos livros didáticos de Geografia são

uma representação do real tendo significado diferente para cada um de nós. O aluno

traz na sua bagagem uma construção da paisagem vivida confrontada com as

construções propostas pelos livros didáticos. As construções estereotipadas, por

exemplo, de um Nordeste pobre, seco, menos desenvolvido é carregada por um

valor de uso desse dado a esse território. As características regionais trabalhadas

nos livros didáticos de Geografia evidenciam certa carga negativa à Região

Nordeste, que é muitas vezes é trazida como menos desenvolvida. Assim também é

representada a migração do nordestino para o Sudeste e Sul em busca de

“melhores condições de vida e trabalho”, mostrando como os discursos vinculam

significados, que carregam a marca do poder de que os produziu.

Os livros didáticos possuem caráter de difusor de determinadas visões de

mundo. “É por meio do livro didático que a sociedade, ou uma parcela dela,

estabelece o que deve ser lembrado e o que é realmente importante conhecer em

determinado período” (ALBUQUERQUE, 2014 p.165). Considerado artefato cultural,

representa diferentes modos de pensar, ajudando na constituição de identidades,

assim como seus objetivos mudaram de acordo com as transformações da

sociedade. Desta forma:

[...] o livro didático não é somente um “depósito” de conteúdos, lugar onde os autores registravam os conhecimentos geográficos, mas também, e principalmente, um lugar de produção de significados, como um artefato cultural no qual as verdades são fabricadas e postas em circulação. O livro didático é uma peça da maquinaria escolar inserida numa arena política, cujo jogo autoriza certos discursos e desautoriza outros. (TONINI, 2003, p 36)

Tonini (2003) contribui com a ideia de que as representações trazidas pelos

livros didáticos estão inseridas em redes de poder. Produzem narrativas que estão

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representadas e que não se procura evidenciar se uma é verdadeira em relação à

outra, mas procura-se entender os enunciados que são produzidos, rompendo com

uma lógica identitária hegemônica. O conhecimento geográfico está registrado nos

livros didáticos como um saber, que ao ser capturado evidencia as redes e tramas

que se legitimam para constituir, manter e perpetuar formas de significação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A geografia pode ter um papel ímpar na formação de um sujeito social

pensante, reflexivo. Portanto é possível entender como a Geografia e o campo dos

Estudos Culturais pode ajudar na construção do cidadão crítico, para que saiba

pensar não apenas seu espaço cotidiano, rotineiro, mas como ele é determinado por

eventos externos, isto é, em diversas escalas na produção e transformação do

espaço geográfico. A identidade apresenta importância crescente nas práticas

educacionais e sociais, dimensionada pela visibilidade posta aos grupos

minoritários, que possuem voz e participação no jogo das identidades. E a geografia

pode fazer com que o aluno perceba a importância desta área, e se reconheça

sujeito que produz e é produzido pela sociedade.

Neste tempo de incertezas, romperam-se as fronteiras tradicionais

geográficas e linguísticas como aborda Hall (2014). Isso se configura na derrubada

dos limites entre a escola e o mundo. Muda-se o sentido dado ao tempo e ao espaço

e das formas como nos apropriamos deles. Caminhamos para um mundo

globalizado, onde “os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam

possibilidades de ‘identidades partilhadas’ como ‘consumidores’ para os mesmos

bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e

imagens – entre pessoas que estão bastantes distantes uma das outras no tempo e

no espaço.” (HALL, 2014, p.42). As informações nunca foram tão acessíveis.

Velozes e de fácil acesso, fazem parte do cotidiano formando opiniões de massa,

agregando passo a passo a sociedade a um senso comum. A condição dos meios

de comunicação de massa, influente e tendenciosa, está formando e reformando as

identidades dos sujeitos contemporâneos.

O livro didático atualmente está mais imagético e tecnológico do que nunca.

Isso não inibe as concepções implícitas e a cautela que professores precisam tomar

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na utilização deste como ferramenta do processo de ensino aprendizagem. A falta

de formação faz com que docentes se apoiem nos livros didáticos sem uma visão

crítica do que estão reproduzindo e representando. O livro como um artefato cultural,

representa vários sentidos de ensinar e aprender sobre o mundo que vivemos,

disseminando uma produção de sentidos e significados numa relação entre saber,

poder e identidade.

Estudar a realidade que nos cerca é perceber o que está acontecendo como

sujeitos no e com o mundo. Isso significa que a escola não deve simplesmente

buscar cumprir conteúdos curriculares, mas desenvolver atividades que façam os

alunos tornarem sujeitos capazes e criativos na construção de um conhecimento

geográfico significativo.

Conforme a contribuição de Santos:

Para ter eficácia, o processo de aprendizagem deve, em primeiro lugar, partir da consciência da época em que vivemos. Isso significa saber que o mundo é e como ele se define e funciona, de modo a reconhecer o lugar de cada país no conjunto do planeta e o de cada pessoa no conjunto da sociedade humana. É desse modo que se podem formar cidadãos conscientes, capazes de atuar no presente e de ajudar a construir o futuro. (SANTOS, p.121, 1994).

A tentativa foi buscar, a partir do contexto histórico das identidades, entender

como o sujeito se constituiu para chegar à condição que nos encontramos.

Observamos dessa forma a complexidade da noção de identidade e sua enorme

valorização para a construção da cidadania. Neste sentido, é importante que no

ambiente da sala de aula, professores se conscientizem da importância de usarmos

e trabalharmos com a riqueza dos diversos recursos pedagógicos que os livros

didáticos apresentam de forma crítica, desmistificando as verdades absolutas, e as

narrativas únicas.

É preciso levantar a bandeira do respeito às diversidades culturais, às

minorias, estando inseridos na discussão da identidade. Neste sentido, não

podemos receber apenas as representações apresentadas pelos livros didáticos, é

preciso debates sobre as várias facetas da construção das identidades. O desafio a

cada sujeito é ser protagonista da construção de seu espaço, de sua história e de

sua sociedade. Esta condição de protagonismo da própria vida coloca-se como

alternativa para fazer frente ao mundo globalizado.

Page 13: IDENTIDADE E O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA: A · PDF fileO conceito de identidade segundo essa perspectiva se usa da matéria prima de várias ciências, como a história, geografia,

REFERÊNCIAS:

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