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Página 1 Eduardo Ribeiro Gonçalves - 00218637 História dos Estados Unidos da América Professor Arthur Avila Identidade e Cidadania nas HQs do Pantera Negra 1960/1970 As décadas de 1960/70, nos Estados Unidos foram marcadas pela transposição de questões políticas, econômicas, sociais e culturais que, como em um caldeirão fervente, borbulhavam de modo frenético, convulsionando um dos países mais influentes do mundo na época. As características fundamentais de algumas destas questões tinham raízes muito profundas, como por exemplo, a institucionalização do racismo através das leis de segregação, ou os grupos extremistas a favor da Supremacia Branca (do qual o Ku Klux Klan é o mais famoso) que impediam a cidadania plena da população negra norte-americana. Através das crises e dos momentos de enfraquecimento e fragmentação das identidades nacionais provocadas também pela crescente globalização dos ideais estadunidenses, é dado o momento de florescimento de novas identidades étnicas, de gênero e também de nação. Nesse meio, a produção cultural das histórias em quadrinhos não deixa de se integrar a esses movimentos, representando tanto as crises existenciais do Estado quanto o fortalecimento de novas identidades, criando e se apropriando de símbolos e desconstruindo estereótipos. Nas histórias em quadrinhos de super-herói os personagens negros eram sempre retratados como pessoas inferiores, fracos que precisavam ser salvos de seus próprios conflitos, possuidores de algum vicio ou detentores de inteligência quase nula, quando não eram apenas personagens puramente maléficos. A partir da maior intensidade das lutas pelos direitos civis nas décadas de 1960/70 esse quadro começa a mudar. Surgem, pioneiramente com a editora Marvel Comics, super-heróis negros como o Pantera Negra - fazendo parte de grandes grupos de super-heróis como o Quarteto Fantástico e os Vingadores da Marvel e também os X-men, que simbolizavam a luta contra a segregação racial e a perseguição política. Neste artigo, serão analisados os conceitos de cidadania e identidade problematizados na figura simbólica do Pantera Negra, contextualizando-o em meio ao

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Neste artigo, serão analisados os conceitos de cidadania e identidade problematizados na figura simbólica do Pantera Negra, contextualizando-o em meio ao turbilhão violento da luta dos movimentos negros contra o racismo institucionalizado da sociedade norte-americana e pela conquista dos Direitos Civis.

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Page 1: Identidade e Cidadania Nas HQs Do Pantera Negra 1960 1970 Imprimir

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Eduardo Ribeiro Gonçalves - 00218637

História dos Estados Unidos da América

Professor Arthur Avila

Identidade e Cidadania nas HQs do Pantera Negra 1960/1970

As décadas de 1960/70, nos Estados Unidos foram marcadas pela transposição

de questões políticas, econômicas, sociais e culturais que, como em um caldeirão

fervente, borbulhavam de modo frenético, convulsionando um dos países mais

influentes do mundo na época. As características fundamentais de algumas destas

questões tinham raízes muito profundas, como por exemplo, a institucionalização do

racismo através das leis de segregação, ou os grupos extremistas a favor da Supremacia

Branca (do qual o Ku Klux Klan é o mais famoso) que impediam a cidadania plena da

população negra norte-americana. Através das crises e dos momentos de

enfraquecimento e fragmentação das identidades nacionais provocadas também pela

crescente globalização dos ideais estadunidenses, é dado o momento de florescimento

de novas identidades étnicas, de gênero e também de nação. Nesse meio, a produção

cultural das histórias em quadrinhos não deixa de se integrar a esses movimentos,

representando tanto as crises existenciais do Estado quanto o fortalecimento de novas

identidades, criando e se apropriando de símbolos e desconstruindo estereótipos.

Nas histórias em quadrinhos de super-herói os personagens negros eram sempre

retratados como pessoas inferiores, fracos que precisavam ser salvos de seus próprios

conflitos, possuidores de algum vicio ou detentores de inteligência quase nula, quando

não eram apenas personagens puramente maléficos. A partir da maior intensidade das

lutas pelos direitos civis nas décadas de 1960/70 esse quadro começa a mudar. Surgem,

pioneiramente com a editora Marvel Comics, super-heróis negros como o Pantera Negra

- fazendo parte de grandes grupos de super-heróis como o Quarteto Fantástico e os

Vingadores da Marvel – e também os X-men, que simbolizavam a luta contra a

segregação racial e a perseguição política.

Neste artigo, serão analisados os conceitos de cidadania e identidade

problematizados na figura simbólica do Pantera Negra, contextualizando-o em meio ao

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turbilhão violento da luta dos movimentos negros contra o racismo institucionalizado da

sociedade norte-americana e pela conquista dos Direitos Civis.

Os 60’s: valores em crise, cidadania questionada e identidades

reformuladas

Ao analisarmos o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos na década

de 1960 através de uma pesquisa rápida na internet e em alguns livros didáticos de

história, temos a impressão de que essas lutas estão confinadas ao tempo e espaço

delimitado especificamente entre 1954 e 1968. Tal processo inicia-se, supostamente,

com o caso de Rosa Parks em Montgomery e termina com o assassinato de Martin

Luther King Jr. Porém, a luta pela implementação e incorporação das leis de direitos

civis aprovada em 1964 perdurou por mais de 25 anos, e ainda apresenta fortes indícios

de não ter terminado.

Sintomático desse quadro é o movimento dos Panteras Negras (fundado em

1966) que apesar de terem sido considerados “a ameaça número 1 à segurança da

nação”1 por Edgar Hoover – então chefe do FBI – não recebem destaque nos esquemas

e simplificações didáticas como, por exemplo, o Ku Klux Klan (KKK). Os Panteras

Negras pela Autodefesa bateram de frente com esses grupos extremistas que defendiam

a supremacia Branca e provocavam verdadeiros massacres da população negra

estadunidense. Porém quando são citados sempre é chamado a atenção para o caráter

violento de seu discurso, inspirado nas ideias de Malcom X.

Tanto Malcom X quanto os Panteras Negras não pregavam a violência pura e

discriminatória contra os brancos, mas a autodefesa e o direito de resistência à

brutalidade policial e dos grupos extremistas como a KKK. E isso fica evidente em seu

programa de 10 pontos2.

Os Panteras Negras e os Black Powers canalizaram e promoveram

conscientemente a concretização da cidadania da população negra através da criação de

1 RAJGURU, Nutan; WOOD, Adrian. O Partido dos Panteras Negras pela Auto-Defesa. 2008. Disponível

em: http://www.lsr-cit.org/anti-racismo/37-anti-racismo/440-o-partido-dos-panteras-negras-pela-auto-defesa Acesso em: 23/06/15. 2 O programa de 10 pontos dos Panteras Negras foi escrito com a intenção de ser distribuído entre a

comunidade negra, convocando voluntários para reunirem-se e organizarem aulas de educação política.

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uma identidade cultural que tinha muita força nos anos finais da década de 60 até o

início dos anos 80. Direitos e deveres políticos, sociais e civis eram a coluna dorsal de

suas reivindicações e de sua organização enquanto grupo identitário. O quinto ponto da

Plataforma e Programa redigida em outubro de 1966 por Bobby Seal e Huey P. Newton

dizia:

“Queremos uma educação para nosso povo que exponha a verdadeira

natureza desta sociedade americana decadente. Queremos uma

educação que nos ensine nossa verdadeira história e nosso papel na

sociedade atual. Acreditamos num sistema educacional que dará ao

nosso povo o conhecimento de si. Se um homem não tem conhecimento

de si mesmo e sua posição na sociedade e no mundo então ele tem

pouca chance de se relacionar com qualquer outra coisa” 3.

A tomada de consciência assustava as autoridades responsáveis pela segurança do status

quo nos EUA. E isso custou caro aos Panteras Negras, sendo alvos de ataques brutais e

perseguição política. Mesmo assim, a identidade social promovida por esse movimento e pelos

Black Powers conseguiu dar uma “face” e uma voz poderosa a comunidade negra.

“(...) a identidade social é construída para permitir a manutenção das

relações sociais de dominação. Além disso, tomar consciência da

própria identidade, tomar consciência de si é um primeiro passo para

altear a identidade social, como dominado” 4.

No inicio da década de 1970, os |Estados Unidos envolviam-se em uma série de

conflitos intervencionistas ao redor do planeta, ameaçando os interesses nacionais de outros

países em um movimento de globalização emergente que afetava cultural e economicamente as

regiões dominadas. As políticas publicas eram direcionadas ao desenvolvimento da livre

concorrência, sujeitando as sociedades as leis de mercado, deixando questões sociais em

segundo plano. De 1964 a 1968, Lyndon Johnson havia mergulhado os EUA na guerra do

Vietnã, que curiosamente havia iniciado em 1955 – mesmo ano em que Rosa Parks se negou a

obedecer a lei de segregação em um ônibus em Montgomery. Esses conflitos fragmentaram de

forma dramática o Estado Nação estadunidense e fizeram com que os grupos em desvantagem

social pudessem se levantar e posicionar-se contra a opressão deste Estado.

3 RAJGURU, Nutan; WOOD, Adrian. Ob, p.2

4 SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos

2.ed., 2ªreimpressão. – São Paulo : Contexto, 2009. p.203

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A partir de uma abordagem antropológica, George Zarur e Parry Scott entendem que o

conceito de identidade é fundamental para a compreensão do mundo globalizado.

“O enfraquecimento dos Estados Nacionais tem gerado a fragmentação

das identidades nacionais e o ressurgimento de outras identidades de

gênero, étnicas, justamente dessa fragmentação” 5.

A crise de valores morais e constitucionais estadunidenses fez florescer do

racismo, semeado ao longo da história do país, a condição identitária do negro bem

como a possibilidade de tomada de consciência de seu papel como cidadão ativo. E foi

estabelecendo ideais de luta contra uma condição social em comum – a segregação

racial – que os movimentos pelos direitos civis dos negros conseguiram unir boa parcela

desta população através de traços identirários muito característicos e de aspirações

revolucionarias. Ser negro, na década de 1960, evocava uma luta por dignidade e

respeito.

Inserindo-se no complexo de direitos e deveres atribuídos aos indivíduos que

integram uma Nação, através de ações sociais e políticas, as demandas dos Panteras

Negras pela Autodefesa e dos Black Powers clamavam pela transformação de uma

realidade específica através da expansão de direitos e deveres compartilhados. Os

direitos políticos – sociais e civis – ajudam a definir a cidadania em um determinado

tempo e espaço. Portanto, é valido lembrar que o conceito de cidadania está exposto

sempre a mudanças provocadas por agitações e atritos provenientes de demandas

sociopolíticas de grupos identitários com expressão política.

(...) os direitos instituídos pela Declaração de Independência dos EUA

(1776) e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da

França revolucionária (1789) não se estendiam a todos os membros de

suas Nações. Pois, apesar do conteúdo universalista da Declaração

francesa, as mulheres eram excluídas do voto. Já nos EUA, além das

mulheres, a exclusão atingia escravos e brancos pobres. Esses excluídos

tiveram de empreender longas lutas antes de serem contemplados pelos

direitos básicos definidos pelas revoluções burguesas. Entretanto, esses

documentos tinham imenso potencial revolucionário, e muitos daqueles

5 SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos

2.ed., 2ªreimpressão. – São Paulo : Contexto, 2009. p.203

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que foram inicialmente excluídos da vida política depois usariam o

mesmo discurso liberal para alcançar os direitos previstos por essas

declarações6

Em meio à emergência da simbologia cultural destes grupos, as expressões

culturais das histórias em quadrinhos não deixaram de acompanhar estas mudanças. Em

especial, o gênero de superaventuras – totalmente enraizado nos ideais nacionalistas e

por vezes racistas da sociedade estadunidense – corajosamente abriu espaço na industria

cultural para personagens negros que desconstruíam estereótipos racistas.

O surgimento do herói e super-herói corresponde a determinados

contextos históricos e sociais, marcados pela crise de 1929, a

emergência da Segunda Guerra Mundial e o papel dos Estados Unidos

na América. O mundo dos super-heróis passa a ter uma função

propagandística de determinados valores hegemônicos na sociedade.

Nessa conjuntura, explica-se o caráter político das Histórias em

Quadrinhos7.

É importante ressaltar que as próprias histórias em quadrinhos eram alvo de

preconceitos, provenientes tanto de intelectuais conservadores – que afirmavam que os

quadrinhos contribuíam para a delinquência juvenil – quanto alguns intelectuais de

esquerda – que as entendiam como um simples produto de manipulação das massas e

despolitização dos consumidores. Porém, os estudos culturais, preocupados com a

questão da identidade, criticam a hierarquização cultural que considera uma cultura, ou

produção cultural, superior às outras. Esses estudos têm grande interesse em discutir

conceitos como raça, etnia e nação do ponto de vista da produção cultural,

trabalhando com temas como indústria cultural, cultura popular, colonialismo e pós-

colonialismo 8.

O artigo de Gelson Vanderlei Weschenfelder intitulado “Os negros nas histórias

em quadrinhos de Super-Heróis”, aborda a conquista do espaço nas produções artístico-

6 SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos

2.ed., 2ªreimpressão. – São Paulo : Contexto, 2009. p.48 7 VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 2005, p.8 in: WESCHENFELDER, Gelson Vanderlei. “Os Negros nas Histórias em Quadrinhos de Super-Heróis”. Identidade! | São Leopoldo | v.18 n. 1| jan.-jun. 2013. P.73 8 SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos 2.ed., 2ªreimpressão. – São Paulo : Contexto, 2009. p.204

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culturais contemporâneas pela representação da identidade negra. Segundo

Weschenfelder, a política de cotas raciais nas histórias em quadrinhos se mostrou

desnecessária após o surgimento dos protagonistas negros nas super-aventuras.

O autor elenca algumas das representações dos negros estereotipados desde o

surgimento das histórias em quadrinhos norte-americanos em 1896 com o personagem

Yellow Kid, de Richard Outcault, até a década de 1980, elencando alguns dos principais

super-heróis negros. Até a década de 1960 os personagens negros eram retratados

sempre de forma preconceituosa e racista, servindo como referencial para a afirmação

da identidade caucasiana – a maioria dos leitores de quadrinhos até então – afirmar sua

suposta superioridade.

No mesmo ano de criação do Partido dos Panteras Negras pela Autodefesa

(1966) a Marvel Comics lança o primeiro super-herói negro, o Pantera Negra, na revista

Fantastic Four 52. Criado por Stan Lee e Jack Kirby, o personagem faz sua primeira

aparição em julho de 1966, enquanto o Partido dos Panteras Negras seria fundado

apenas em outubro do mesmo ano. Entretanto, não há como afirmar com precisão se o

Noé do Partido se inspirou diretamente no personagem.

Fantastic Four n°s 52 e 53, publicados em julho e agosto de 1966, respectivamente. In:

http://vault.worldofsuperheroes.com/shop/fantastic-four-53-fnvf/ e http://marvel.wikia.com/Fantastic_Four_Vol_1_52

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O Pantera Negra ganhou muito destaque nas aventuras do Quarteto Fantástico.

Em 1968 tornou-se membro dos Vingadores e uma das principais lideranças no

Universo Marvel, ganhando um titulo próprio em 1973 (na Jungle Action, a partir do

numero 5).

A Marvel e os anos 1960

O período da Guerra Fria representou para os quadrinhos uma “nova era”, onde

as mudanças de enfoque nas narrativas ficaram mais evidentes. Essa era a chamada Era

de Prata9 dos quadrinhos. Nesse momento a maior editora de Hqs era ainda a DC

Comics, que reformulava as origens de seus personagens para adaptá-los aos novos

tempos da década de 1960. Surgem os primeiros grupos de super-heróis, como a

Sociedade da Justiça da América – que mais tarde viria a ser a Liga da Justiça –

colocando em segundo plano os personagens solitários. Em contrapartida a Atlas

Comics – mais tarde Marvel Comics – aproveita o “embalo” da reconstrução das

aventuras de super-heróis e dão a Stan Lee e Jack Kirby a responsabilidade de criar

novos personagens para a Editora. A dupla cria, então, num frenesi criativo quase

ininterrupto, uma série de personagens cheios de falhas de caráter, muito diferentes

daqueles heróis quase perfeitos da DC Comics – como o Super-Man e a Wonder-

Woman, estereótipos simbolizando a moral e os bons costumes norte-americanos. Entre

esses personagens estava o grupo do Quarteto Fantástico – onde o Pantera Negra faria

sua primeira aparição – e os X-men.

O clima editorial dos quadrinhos passava por uma grave crise provocada pelo

Comic Code Authority, que censurava o conteúdo de cada revista e vetava a publicação,

por vezes até enquadrando os editores como comunistas ou subversivos que poderiam

ameaçar a moral e os bons costumes. Quando a Atlas Comics deu a Stan Lee e Jack

Kirby a tarefa de criar novos personagens, a dupla apostou em duas coisas: na

quantidade de personagens e no contexto cultural, social e político em que estavam

inseridos.

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A editora, agora com o novo nome, Marvel Comics, apostou alto nas mudanças

sociais do contexto cultural dos anos 1960. Influenciados pela corrida espacial, entre

Estados Unidos e a União Soviética, os elementos mágicos das histórias cederam cada

vez mais espaço para a ficção científica e explicações pseudocientíficas das origens dos

personagens – nessa época surgem também as “origens” do Super-Man, pela DC,

conferindo ao alienígena origens em um planeta distante que fora destruído pelas

guerras e má exploração dos recursos naturais, bandeira forte do movimento

ambientalista dos anos 1960. Nesse contexto, a luta pelos Direitos Civis seria

incorporada pioneiramente pela Marvel Comics em suas aventuras, com personagens

como o Pantera Negra e os X-men, representando as lutas contra a segregação racial e a

política externa dos EUA.

O Pantera Negra

Na trama, o Pantera Negra é o rei de Wakanda, um minúsculo país fictício do

continente africano. Pantera Negra seria um título hereditário, que só é ocupado pelos

melhores guerreiros de Wakanda. Os testes para competir pelo título demandam uma

vida inteira de treinamento e estudos, sendo o Pantera Negra sempre um guerreiro que,

além de extremamente forte e ágil é também extremamente inteligente. Após o combate

entre os competidores, o vencedor deveria obter uma erva sagrada específica, em

formato de coração, reservada apenas ao guerreiro mais forte. Ingerindo esta erva, o

novo Pantera Negra receberia superforça, velocidade, resistência e sentidos aguçados. O

Pantera Negra atual chama-se T’challa, filho do penúltimo Pantera, T’chaka, que fora

assassinado pelo Mercenário Norte-americano, Garra-Sônica. T’challa, ainda criança,

prometera vingança pela morte de seu pai e parte para a Europa com o intuito de

aprender os segredos do Ocidente para conseguir defender seu país e eliminar o Garra-

Sônica no processo. Lá ele torna-se um físico excepcional – aparentemente uma espécie

de pré-requisito básico para ser um herói na Marvel. “Como chefe de Wakanda ele é o

mais recente em uma linhagem de reis guerreiros marcados pela tradição, tribalismo e

um profundamente enraizado senso de honra” 10

.

O vilão havia matado o pai do protagonista em uma disputa pelo metal raro,

Vibranium – um metal fictício vindo do espaço que possui a propriedade de canalizar e

10

WESCHENFELDER, Gelson Vanderlei. “Os Negros nas Histórias em Quadrinhos de Super-Heróis”. Identidade! | São Leopoldo | v.18 n. 1| jan.-jun. 2013. p.77

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absorver energia de todos os tipos. Wakanda é o único país do mundo a possuir reservas

deste minério, sendo alvo de sucessivas tentativas de invasão tanto pelo Ocidente

quanto pelo Oriente, nunca estabelecendo alianças com nenhum dos lados. O papel do

Pantera Negra seria justamente proteger Wakanda e seus abitantes dos extrangeiros,

adotando severas medidas protecionistas.

Em suas aventuras, Pantera Negra entrou em conflito com a KKK diversas

vezes. Porém a clan apenas é representada com a vestimenta branca na década de 1970.

Na revista Avangers 73, ainda em maio 1970, um grupo chamado Filhos da Serpente

atacava celebridades negras e defendia a supremacia branca, fazendo alusão ao KKK,

mas com vestimentas verdes e um elmo dourado de serpente.

Na imagem à esquerda, Pantera Negra soltando-se da “cruz de fogo” da Ku Klux Klan na edição 21 da Jungle Action, 1976, já

com seu título próprio. In: http://www.comicvine.com/jungle-action-3-elephant-charge/4000-12930/. Na imagem à direita, o

personagem luta contra os Filhos da Serptente. In: http://www.comicvine.com/the-avengers-73-the-sting-of-the-serpent/4000-

10663/

Nas histórias, é deixado em evidência um pouco da cultura das tribos africanas,

algumas das quais o soberano deveria ser um guerreiro pronto para defender seu povo11

,

princípio também evocado por Malcom X em seus discursos e incorporado pelos

11

WESCHENFELDER, Gelson Vanderlei. “Os Negros nas Histórias em Quadrinhos de Super-Heróis”. Identidade! | São Leopoldo | v.18 n. 1| jan.-jun. 2013. p.77

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movimento dos Panteras Negras pela Autodefesa. Como afirmado anteriormente, o

personagem não carrega influências do Partido dos Panteras Negras, mas traz consigo

características da luta anterior à fundação do partido, como por exemplo os discursos de

Malcom X.

“Uma das coisas que vai nos ajudar é a independência da África. Um

dos motivos de nunca termos nos organizado é que odiamos nossa

imagem africana. A África esteve nas mãos de pessoas que criaram uma

imagem negativa e odiosa da África. Sendo odiosa, nós não quisemos

nos identificar com ela. Agora que a África está ficando independente e

criando uma imagem positiva de si mesma, nós podemos olhar pra ela e

nos identificarmos com ela. Nós ficamos orgulhosos do nosso sangue

africano. Isso faz os negros no Ocidente terem mais orgulho racial e se

unirem trabalhando juntos. O imperialista vê isso como uma grande

ameaça12

.

É em Wakanda que vemos a primeira representação ocidental nos quadrinhos de

um país africano não estereotipado, rico cultural e monetariamente e possuidor de uma

tecnologia extremamente avançada. O país fictício reúne as características de uma

sociedade economicamente sustentável com uma estética que faz referência ao antigo

Egito e a vestimentas tribais mais genéricas e também uma visão utópica do que seria

uma sociedade “avançada” para os roteiristas.

Considerações Finais

O crescente interesse pela utilização de histórias em quadrinhos como fonte

histórica é muito benéfico aos estudos de história cultural e ajudam a compreender duas

coisas: a primeira é como diferentes formas de expressão artística se manifestam em

sociedades opressoras e a segunda é como essas manifestações artísticas contribuem

tanto para a formação de novas identidades que lutam pelo reconhecimento político

quanto para o nosso entendimento de questões político-sociais do passado que ecoam no

presente. Aqui a relação entre ficção e história fica mais que evidente, expressando os

sonhos, aspirações e espaços de conflito do passado. O Pantera Negra, envolto em

sombras até hoje no universo Marvel, pouco conhecido entre os leitores de quadrinhos,

12

Discurso de Malcom X, disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=2x8KgPf8Pq0>. Acessado em 24 de junho de 2015.

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continua conquistando espaço nos cinemas e na televisão, com uma série programada

para ser lançada em 2016, e uma participação no terceiro filme dos Vingadores em

2017. Juntamente com outros personagens como Blade, Spawn e Luke Cage – este

ultimo da DC Comics. Mudanças étnicas em personagens clássicos também vem

aparecendo com frequência nas ultimas HQs – talvez o caso mais emblemático seja o

novo Homem-Aranha negro, Miles Morales, que tomou o lugar de Peter Parker após sua

morte em um universo paralelo.

Tudo isso aponta para a questão do próprio momento histórico em que este

artigo é escrito, que continua gritando pelo fim efetivo da segregação racial em diversas

partes do planeta, especialmente no Brasil e nos Estados Unidos. Massacres racistas,

infelizmente, continuam ocorrendo e a situação política vai de mal a pior de modo geral.

De todo modo, as lutas pela cidadania continuam seu “vai e vem” pelas conquistas em

manutenção permanente, apesar da, também permanente e, em alguns casos, crescente

repressão. Entretanto, é inegável que as décadas de 1960/70 marcaram um passo

gigantesco em direção à luta por demandas sociais e políticas, em diversos setores da

vida dos cidadãos americanos e que devem ser lembradas historicamente, sem serem

jogadas em algum porão para que possam ser apropriadas e domesticadas por discursos

políticos falaciosos.

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Referências bibliográficas:

SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos

Históricos 2.ed., 2ªreimpressão. – São Paulo : Contexto, 2009

VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de Janeiro:

Achiamé, 2005

WESCHENFELDER, Gelson Vanderlei. “Os Negros nas Histórias em Quadrinhos de

Super-Heróis”. Identidade! | São Leopoldo | v.18 n. 1| jan.-jun. 2013.

Endereços eletrônicos:

Discurso de Malcom X, disponível em <

https://www.youtube.com/watch?v=2x8KgPf8Pq0>. Acessado em 24 de junho de

2015.

Capa da revista Avengers 73, 1970. In: : http://www.comicvine.com/the-avengers-73-

the-sting-of-the-serpent/4000-10663/

Capa da revista Fantastic Four 52, 1966. In:

http://vault.worldofsuperheroes.com/shop/fantastic-four-53-fnvf/

Capa da revista Fantastic Four 53, 1966. In:

http://marvel.wikia.com/Fantastic_Four_Vol_1_52

Capa da revista Jungle Action, 21. 1976. In: http://www.comicvine.com/jungle-action-3-

elephant-charge/4000-12930/.

RAJGURU, Nutan; WOOD, Adrian. O Partido dos Panteras Negras pela Auto-Defesa.

2008. Disponível em: http://www.lsr-cit.org/anti-racismo/37-anti-racismo/440-o-

partido-dos-panteras-negras-pela-auto-defesa Acesso em: 23/06/15.