ida (pawel pawlikowski; 2014) - crítica

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Ida – 2013 Por Thiago Vieira Ao contrário do que muitos podem pensar, por desconhecer a história do cinema, a Polônia sempre manteve laços estreitos com a sétima arte. A primeira câmera cinematográfica, afinal, foi patenteada por um polonês, Kazimierz Prósznsky. O cinema polonês carrega nomes de peso, como Roman Polanski, Andrzej Wajda, Krzysztof Kieślowski, etc. E agora, um dos indicados estrangeiros para o Oscar 2015 é o polonês Ida, de Pawel Pawlikowski. Pawel é um realizador premiado que abandonou a Polônia comunista dos anos setenta para uma Inglaterra mais liberal que o permitiria ganhar reconhecimento pelo seu trabalho como documentarista e, mais tarde, o acompanharia em sua transição para a ficção. Ida é o terceiro filme do diretor com uma boa recepção da crítica especializada e do público em geral. Seu longas Last Resort (idem, 2001) e Meu Amor de Verão (My Summer Love, 2004) lhe renderam dois BAFTA e diversos outros prêmios europeus, mas com certeza não carregavam a atmosfera e peso de Ida, que representa uma volta à casa para Pawel. O filme se passa na Polônia dos anos 60 e conta a história de Anna, uma jovem noviça prestes a professar seus votos e se tornar definitivamente uma freira, mas antes disso é enviada pela madre superior em uma viagem para conhecer a última parente viva, sua tia Wanda, uma juíza associada com o regime comunista e principalmente uma mulher forte, independente e desinibida, entrando em oposição com a personalidade contida e conservadora de Anna. Sem muitos rodeios, Wanda revela que Anna é na verdade Ida Lebestein, judia, e que seus pais foram mortos durante a guerra. A descoberta leva Anna a partir em uma viagem em busca do local de descanso de seus pais, sempre acompanhada por sua tia. A influência do diretor sueco Ingmar Bergman é impossível de passar despercebida. Cada detalhe, inclusive a escolha da razão de aspecto 1.33 : 1 combinada com a belíssima fotografia e enquadramentos bem planejados que provocam uma intensidade emocional incrível em atos simples dos personagens, nós remete à primeira fase de Bergman, onde religião era tema chave e muitos

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Crítica do filme Ida, do diretor polonês Pawel Pawlikowski, por Thiago Vieira.

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Ida 2013

Por Thiago Vieira

Ao contrrio do que muitos podem pensar, por desconhecer a histria do cinema, a Polnia sempre manteve laos estreitos com a stima arte. A primeira cmera cinematogrfica, afinal, foi patenteada por um polons, Kazimierz Prsznsky. O cinema polons carrega nomes de peso, como Roman Polanski, Andrzej Wajda, Krzysztof Kielowski, etc. E agora, um dos indicados estrangeiros para o Oscar 2015 o polons Ida, de Pawel Pawlikowski. Pawel um realizador premiado que abandonou a Polnia comunista dos anos setenta para uma Inglaterra mais liberal que o permitiria ganhar reconhecimento pelo seu trabalho como documentarista e, mais tarde, o acompanharia em sua transio para a fico.

Ida o terceiro filme do diretor com uma boa recepo da crtica especializada e do pblico em geral. Seu longas Last Resort (idem, 2001) e Meu Amor de Vero (My Summer Love, 2004) lhe renderam dois BAFTA e diversos outros prmios europeus, mas com certeza no carregavam a atmosfera e peso de Ida, que representa uma volta casa para Pawel.

O filme se passa na Polnia dos anos 60 e conta a histria de Anna, uma jovem novia prestes a professar seus votos e se tornar definitivamente uma freira, mas antes disso enviada pela madre superior em uma viagem para conhecer a ltima parente viva, sua tia Wanda, uma juza associada com o regime comunista e principalmente uma mulher forte, independente e desinibida, entrando em oposio com a personalidade contida e conservadora de Anna. Sem muitos rodeios, Wanda revela que Anna na verdade Ida Lebestein, judia, e que seus pais foram mortos durante a guerra. A descoberta leva Anna a partir em uma viagem em busca do local de descanso de seus pais, sempre acompanhada por sua tia.

A influncia do diretor sueco Ingmar Bergman impossvel de passar despercebida. Cada detalhe, inclusive a escolha da razo de aspecto 1.33 : 1 combinada com a belssima fotografia e enquadramentos bem planejados que provocam uma intensidade emocional incrvel em atos simples dos personagens, ns remete primeira fase de Bergman, onde religio era tema chave e muitos personagens se foravam questionamentos que os levavam ao autoconhecimento. A jornada de autoconhecimento em Ida, entretanto, difere das bergmanianas por ser engatilhada por uma viagem em busca de razes familiares, no questionamentos religiosos. Em Ida, esse questionamento chega a Anna junto com o esclarecimento sobre suas razes.

Acompanhando a busca pelo jazigo dos pais temos o plot da transformao (evoluo, talvez) de ambas as personagens. Ida contida, inibida, reprimida, talvez. Durante a viagem Wanda a questiona sobre sua beleza e o prazer carnal. A tia no entende porque a sobrinha esconde seus belos cabelos sob o vu de novia. No entende porque a sobrinha evita os pensamentos pecaminosos sobre o prazer carnal Voc deveria tentar diz Wanda Ida Caso contrrio, que tipo de sacrifcio ser esse voto que voc vai fazer?. Nesse primeiro momento, o dilogo serve para aproximar as personagens e transmitir certa intimidade para o pblico. Numa festa a qual as duas so convidadas podemos perceber ainda mais claramente o contraste entre as personagens. Wanda, hedonista e desinibida (caractersticas fortes para uma personagem feminina em plenos anos 60 na Polnia comunista), se diverte na festa: Bebe, arranja um paquera, dana e volta ao apartamento s depois de exausta. J Anna recusa o convite, permanece no quarto a ler a bblia e tentar, sem sucesso, dormir. As personalidades opostas entram em conflito quando Wanda retorna ao quarto e ao ser acusada pela sobrinha de no se manter centrada tarefa de encontrar os familiares, responde zombando de sua f e postura austera Claro. Eu sou a vadia e voc uma pequena santa. Esse conflito d incio ao processo de autodescobrimento de Anna, que resolve descer festa e ceder ao interesse pelo jovem saxofonista que elas conheceram na estrada, engajando uma conversa. Logo aps, ao voltar ao quarto, Anna abandona o hbito para dormir e aparece pela primeira vez com os cabelos a mostra. Em uma cena posterior, a novia aparece admirando sua beleza frente ao espelho, o que ns da certeza de sua evoluo. A partir da metade do filme, uma atmosfera mais pesada toma conta. Pesada no por algum impacto grfico, mas pelo impacto emocional. Anna descobre o assassinato de seus pais pelo filho do pequeno proprietrio que os havia escondido dos nazistas, Wanda porm a mais impactada. Alm de encarar o assassinato de sua irm e cunhado, a juza revela que junto aos pais de Anna estava seu pequeno filho, entregue aos cuidados da irm quando ela fora lutar sabe-se l pelo que, citando a prpria. O filho do proprietrio aceita as levar ao local onde enterrou os cadveres e numa das cenas mais fortes do filme, no pelo seu impacto visual mas pelo emocional, Wanda embrulha os ossos da criana em seu leno e se retira, sem ouvir as explicaes do rapaz, este prprio atordoado pela culpa e pelo peso de suas aes. E eu? pergunta Ida Porque no estou aqui?. Voc era muito pequena, ningum diria que voc era judia [...] O menino era moreno e circuncidado justifica o assassino.

Posteriormente as mulheres se dirigem cidade onde h um tmulo de famlia, segundo informa Wanda. A passagem por um cemitrio mal cuidado e em runas colabora para a atmosfera melanclica e impactante que o filme assume, enquanto a cena onde elas cavam o cho e enterram os familiares estreita a relao entre as duas, sendo fundamental para as mudanas que ocorrem a seguir.

Ida retorna ao convento, onde no capaz de prestar os votos. No estou pronta - Diz ao rezar por perdo. As revelaes quanto a sua origem e o encontro com o rapaz, que representa um encontro com outro lado da vida que ela nunca conhecera, lhe trouxeram incerteza e dvida. Wanda, enquanto isso, tambm no mais a mesma. A viagem trouxe desequilbrio a sua vida. Vemos ela reconstruir sua rvore genealgica com fotos antigas de famlia e no bar vemos ela questionar (indiretamente) suas diferenas com Ida. Ela tem um cabelo to bonito, mas esconde.... Wanda tenta sufocar sua inquietude com sexo e bebidas mas, aparentemente, o hedonismo no a ajuda mais. Testemunhamos seu ltimo dia, melanclico e reflexivo, somos convidados a entrar brevemente na sua mente e pensar por tudo o que ela passou, e finalmente assistimos seu suicdio decidido e sem hesitao, como todos os atos da personagem.

Ida retorna, mas dessa vez no encontra a tia. Encontra um apartamento vazio e melanclico. Na tentativa de restaurar o equilbrio individual, Anna se torna Wanda por alguns instantes: Experimenta um vestido mundano, cala salto alto, traga cigarros e uma bebida alcolica que a deixa levemente alterada. Durante o funeral, reencontra o saxofonista e aps um encontro com o rapaz, consuma o ltimo ato de sua redescoberta. Ida perde a virgindade e aprende a amar. Ento, aps aparentemente alcanar o equilbrio, ela renuncia a alternativa que lhe oferecida e, numa ltima sequncia quase apotetica, Ida retorna ao hbito e ruma de volta ao convento, ao som de uma cantata de Bach que se relaciona diretamente com a cena - Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ (Clamo por ti, Senhor Jesus Cristo).

Ao final do filme, nos encontramos em silncio. Quem tiver a oportunidade de assistir no cinema poder testemunhar a total inrcia da platia, que ainda se mantm reflexiva dirante os crditos, sem saber exatamente o porqu. No uma experincia cinematogrfica indispensvel, mas bastante tocante e sua indicao ao Oscar e um grande mrito dentro de um mercado raso e focado na ao constante, como o cenrio americano atual. Pawlikowski se mostrou maduro e, se continuar nesse rumo, poderemos ter mais um destaque no cinema polons.