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Tiragem: 11500 País: Portugal Period.: Semanal Âmbito: Regional Pág: 12 Cores: Cor Área: 25,00 x 30,99 cm² Corte: 1 de 2 ID: 68603981 09-03-2017 O Domínio do Mar Buscas a pátria antiga A tua casa de infância Ivette Centeno 1 Serve a Invocação do Tratado de Badajoz, 750 anos depois, para nos Ill lembrar que na constituição do país cujas fronteiras são as mais antigas da Europa, estão acoplados os territórios do que antes fora, a norte, a primitiva Lusitânia e o meridio- nal Al-Gharb, a que correspondia o Ocidente do primitivo AI-Andaluz mourisco. Claro que esta síntese não passa de uma grosseira sim- plificação. Mas acaso a História não é toda ela uma palavra dita mais tarde para resumir incontáveis palavras pronunciadas ao longo do tempo? Ou, no dizer de Agustina Bessa-Luís, não será a História apenas uma ficção contro- lada? Se fizéssemos o caminho inverso, se jun- tássemos ficção à História, talvez hoje pudés- semos imaginar o encontro de dois reis Ibéri- cos, sentados cada um diante do seu escabelo, junto ao janelo de uma alcáçova, assistindo à leitura de um compromisso riscado a pena de pato, com três mastins dormindo no chão, e um bobo de guizos a fazer vascas sobre umas lajes. Talvez o bobo, o único que podia dizer a verdade aos reis, incluindo a visão do futu- ro, pudesse prever que, depois desse tratado, o rectângulo alongado que a partir daí seria Portugal, haveria de sonhar com uma nova armada, uma companhia religiosa apta a com- bater vizinhos e a conquistar mares, e todo o projecto mais do que ousado qúe se lhe se- guiu, ao longo de três século, e que mudou para sempre a dimensão da Terra. Foi no dia 16 de Fevereiro de 1267, um dia frio, por certo, como o de hoje. Lembrá-lo, agora, ajuda a localizarmo-nos no mundo, a saber de onde vimos e a escolhermos o caminho por onde iremos. Por isso, a questão mais Importante que esta efeméride suscita tem a ver com o futuro. E o que se pergunta é se esta região mantém traços de singularidade que uma His- tória diferente lhe conferiu, como se governa consigo mesma, e como se governa com os vários outros todos de que faz parte, como recebe e como dá. Ou, se preferirmos, que tipo de singulari- dade lhe advém dessa História própria, do lugar geográfico que ocupa em relação ao Continente Europeu, da especificidade geoló- gica e orológica que a transformou numa quase ilha, da floresta típica, ou ainda das ca- racterísticas antropológicas resultantes do en- contro profuso de etnias diferentes ao longo dos séculos. A pergunta é legítima, a resposta é banal. Apesar do somatório de todas essas especificidades, o Algarve nunca deixou de ser uma região exemplarmente portuguesa, nas suas características fundamentais. O Algarve nunca se diferenciou das outras regiões pelo comportamento em relação ao centro, nem constituiu jamais uma excepção evidente do ponto de vista cultural. Antes pelo contrário. Diria, mesmo, que se trata de uma região agu- damente lusa, sua amostra genuína e sua sín- tese perfeita. Evidências primárias confirmam- no. 2. Basta dizer que se Portugal é apercebido do exterior com um país do Mar, a sua provín- cia mais a sul é a marítima por excelência. Em termos geográficos, a Moralidade faz-nos par- ceiros de países escandinavos e bálticos, mas aproxima-nos sobretudo da Irlanda, cercada de água por todos os lados, menos pelo céu, o único espaço que ficou livre das velas da armada inglesa como dizia um ensaísta irlan- dês. O sentimento da Irlanda é feito da con- tenta permanente e árdua com um poderoso país vizinho, tal como nós, e com o desfrute o mar que o rodeia. Não admira que em termos artísticos e literários essa também seja a nos- sa marca. Nos anos oitenta, o poeta espanhol Ángel Crespo traduziu e publicou uma antolo- gia de poetas portugueses e o título que lhe atribuiu foi, precisamente, Los Poetas dei Mar. Nesse quadro, o Algarve, com duas costas, uma atlântica, a outra pré-mediterrânica, é a região portuguesa de maior perímetro maríti- mo em relação ao interland. Toda a actividade da região, ao longo dos séculos, ficou marcada pela relação de proximidade com a água sal- gada e o labor marinheiro. A colectânea de poesia publicadxem 2005, por ocasião de Faro, Capital da Cultura, atesta essa mesma relação entre geografia e arte, através do titulo Algar- ve Todo o Mar. As centenas de poemas que o integram, bem a ilustram. Deleite pela paisa- gem, pelas lendas, pelo mar, pelo sol e pela abertura ao mundo são os temas maiores. Ali- ás, o carácter de abertura à diferença, que ca- racteriza as populações de litoral e que defi- ne os portugueses na generalidade, encon- tra entre os algarvios a sua expressão mais saliente. Por outro lado, se é um facto que Portugal interpretou um dos actos mais marcantes da História Moderna, sendo hoje reconhecido como o país da primeira globalização, e os Descobrimentos marcam o ponto alto da con- tribuição dos portugueses para a mudança das mentalidades e da Civilização à volta da Ter- ra, não pode ser esquecido o papel determi- nante que o Algarve interpretou nessa acção notável. Sagres, e todos as outras terras do Al- garve, que contribuíram para esse Impulso extraordinário de saía dos europeus. dos limi- tes do seu continente, mereciam ser reconhe- cidos como lugares da Humanidade, lugares que não podem ser esquecidos. Se é verdade que todos os jovens europeus deveriam pelo menos uma vez visitar os lugares do holo- causto para saberem o terror que, podemos conter dentro de nós, do mesmo modo deve- riam visitar Sagres, para saberem como sonha e se realiza a Humanidade. Numa terra atra- vessada pela Via do Infante, deveríamos ter a consciência disso. Mas, infelizmente, depois dessa aventura colectiva extraordinária, Portu- gal entrou num longo marasmo recessivo, disfarçado de um mero atraso relativo. E tam- bém aí, no nosso surpreendente descompasso em relação à Europa, o Algarve foi uma região bem portuguesa. 3. É verdade que Algarve foi registando al- guns factores esporádicos de vanguarda, como o caso pioneiro da Introdução da máquina impressora de Samuel Gacon, judeu radicado em Faro, pelo que a primeira impressão por- tuguesa de um livro, o Pentateuco, aconteceu nesta cidade, em 1487. Mas, setenta anos mais tarde, as principais cidades algarvias seriam vítimas da inquisição, e inaugurar-se-ia um clima de medo, denúncia, segredo, injustiça, roubo de bens e violência absurda, tal como todas as outras regiões do país. As descrições que o ensaio de Carla Costa Vieira relata so- bre as sevícias e queima de gente viva, que apenas cometia o crime de praticar outra reli- gião, desmentem a ideia de que no Algarve o Tribunal da Santa Inquisição chegou dema- siado atrasado e foi brando, respeitando a tra- dicional tolerância e a boa convivialidade en- tre as várias etnias e crenças da região. Essa convivialidade pacífica acontecia, sim, por fac- tores históricos de proximidade e miscigena- ção, mas a imposição do poder eclesial cen- tral, cujo braço forte tinha guarida em Évora, acabaria por minar a atitude da tolerância re- cíproca que caracterizava a população. Em seu lugar, deixou por herança uma relutância táci- ta contra as religiões, uma forte base ateia e agnóstica, ao lado do temor de falar alto, de se exprimir livremente, de contradizer, de re- partir, de se ser leal e franco. O individualis- mo e a dificuldade na associação, na defesa de movimentos colectivos, caracteriza a socie- dade do Sul, um mal endémico, que foi dei- xando a região fragilizada, sem líderes, ou com dificuldade em reconhecê-los, quando acaso se apresentam. Um traço caracteróiogo que não se afasta muito do perfil do português médio, pouco cívico, mas que encontra no Algarve uma expressão acentuadamente for-

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Page 1: ID: 68603981 09-03-2017 Corte: 1 de 2 O Domínio do Mar · suas características fundamentais. O Algarve ... de movimentos colectivos, caracteriza a socie-dade do Sul, um mal endémico,

Tiragem: 11500

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Regional

Pág: 12

Cores: Cor

Área: 25,00 x 30,99 cm²

Corte: 1 de 2ID: 68603981 09-03-2017

O Domínio do Mar Buscas a pátria antiga A tua casa de infância

Ivette Centeno

1Serve a Invocação do Tratado de Badajoz, 750 anos depois, para nos

Ill lembrar que na constituição do país cujas fronteiras são as mais antigas da Europa, estão acoplados os territórios do que antes fora, a norte, a primitiva Lusitânia e o meridio-nal Al-Gharb, a que correspondia o Ocidente do primitivo AI-Andaluz mourisco. Claro que esta síntese não passa de uma grosseira sim-plificação. Mas acaso a História não é toda ela uma palavra dita mais tarde para resumir incontáveis palavras pronunciadas ao longo do tempo? Ou, no dizer de Agustina Bessa-Luís, não será a História apenas uma ficção contro-lada?

Se fizéssemos o caminho inverso, se jun-tássemos ficção à História, talvez hoje pudés-semos imaginar o encontro de dois reis Ibéri-cos, sentados cada um diante do seu escabelo, junto ao janelo de uma alcáçova, assistindo à leitura de um compromisso riscado a pena de pato, com três mastins dormindo no chão, e um bobo de guizos a fazer vascas sobre umas lajes. Talvez o bobo, o único que podia dizer a verdade aos reis, incluindo a visão do futu-ro, pudesse prever que, depois desse tratado, o rectângulo alongado que a partir daí seria Portugal, haveria de sonhar com uma nova armada, uma companhia religiosa apta a com-bater vizinhos e a conquistar mares, e todo o projecto mais do que ousado qúe se lhe se-guiu, ao longo de três século, e que mudou para sempre a dimensão da Terra. Foi no dia 16 de Fevereiro de 1267, um dia frio, por certo, como o de hoje. Lembrá-lo, agora, ajuda a localizarmo-nos no mundo, a saber de onde vimos e a escolhermos o caminho por onde iremos. Por isso, a questão mais Importante que esta efeméride suscita tem a ver com o futuro. E o que se pergunta é se esta região mantém traços de singularidade que uma His-tória diferente lhe conferiu, como se governa consigo mesma, e como se governa com os vários outros todos de que faz parte, como recebe e como dá.

Ou, se preferirmos, que tipo de singulari-dade lhe advém dessa História própria, do lugar geográfico que ocupa em relação ao Continente Europeu, da especificidade geoló-gica e orológica que a transformou numa quase ilha, da floresta típica, ou ainda das ca-racterísticas antropológicas resultantes do en-contro profuso de etnias diferentes ao longo dos séculos. A pergunta é legítima, a resposta é banal. Apesar do somatório de todas essas especificidades, o Algarve nunca deixou de ser uma região exemplarmente portuguesa, nas suas características fundamentais. O Algarve nunca se diferenciou das outras regiões pelo comportamento em relação ao centro, nem constituiu jamais uma excepção evidente do ponto de vista cultural. Antes pelo contrário. Diria, mesmo, que se trata de uma região agu-damente lusa, sua amostra genuína e sua sín-tese perfeita. Evidências primárias confirmam-no.

2. Basta dizer que se Portugal é apercebido

do exterior com um país do Mar, a sua provín-cia mais a sul é a marítima por excelência. Em termos geográficos, a Moralidade faz-nos par-ceiros de países escandinavos e bálticos, mas aproxima-nos sobretudo da Irlanda, cercada de água por todos os lados, menos pelo céu, o único espaço que ficou livre das velas da armada inglesa como dizia um ensaísta irlan-dês. O sentimento da Irlanda é feito da con-tenta permanente e árdua com um poderoso país vizinho, tal como nós, e com o desfrute o mar que o rodeia. Não admira que em termos artísticos e literários essa também seja a nos-sa marca. Nos anos oitenta, o poeta espanhol Ángel Crespo traduziu e publicou uma antolo-gia de poetas portugueses e o título que lhe atribuiu foi, precisamente, Los Poetas dei Mar. Nesse quadro, o Algarve, com duas costas, uma atlântica, a outra pré-mediterrânica, é a região portuguesa de maior perímetro maríti-mo em relação ao interland. Toda a actividade da região, ao longo dos séculos, ficou marcada pela relação de proximidade com a água sal-gada e o labor marinheiro. A colectânea de poesia publicadxem 2005, por ocasião de Faro, Capital da Cultura, atesta essa mesma relação entre geografia e arte, através do titulo Algar-ve Todo o Mar. As centenas de poemas que o integram, bem a ilustram. Deleite pela paisa-gem, pelas lendas, pelo mar, pelo sol e pela abertura ao mundo são os temas maiores. Ali-ás, o carácter de abertura à diferença, que ca-racteriza as populações de litoral e que defi-ne os portugueses na generalidade, encon-

tra entre os algarvios a sua expressão mais saliente.

Por outro lado, se é um facto que Portugal interpretou um dos actos mais marcantes da História Moderna, sendo hoje reconhecido como o país da primeira globalização, e os Descobrimentos marcam o ponto alto da con-tribuição dos portugueses para a mudança das mentalidades e da Civilização à volta da Ter-ra, não pode ser esquecido o papel determi-nante que o Algarve interpretou nessa acção notável. Sagres, e todos as outras terras do Al-garve, que contribuíram para esse Impulso extraordinário de saía dos europeus. dos limi-tes do seu continente, mereciam ser reconhe-cidos como lugares da Humanidade, lugares que não podem ser esquecidos. Se é verdade que todos os jovens europeus deveriam pelo menos uma vez visitar os lugares do holo-causto para saberem o terror que, podemos conter dentro de nós, do mesmo modo deve-riam visitar Sagres, para saberem como sonha e se realiza a Humanidade. Numa terra atra-vessada pela Via do Infante, deveríamos ter a consciência disso. Mas, infelizmente, depois dessa aventura colectiva extraordinária, Portu-gal entrou num longo marasmo recessivo, disfarçado de um mero atraso relativo. E tam-bém aí, no nosso surpreendente descompasso em relação à Europa, o Algarve foi uma região bem portuguesa.

3. É verdade que Algarve foi registando al-

guns factores esporádicos de vanguarda, como o caso pioneiro da Introdução da máquina impressora de Samuel Gacon, judeu radicado

em Faro, pelo que a primeira impressão por-tuguesa de um livro, o Pentateuco, aconteceu nesta cidade, em 1487. Mas, setenta anos mais tarde, as principais cidades algarvias seriam vítimas da inquisição, e inaugurar-se-ia um clima de medo, denúncia, segredo, injustiça, roubo de bens e violência absurda, tal como todas as outras regiões do país. As descrições que o ensaio de Carla Costa Vieira relata so-bre as sevícias e queima de gente viva, que apenas cometia o crime de praticar outra reli-gião, desmentem a ideia de que no Algarve o Tribunal da Santa Inquisição chegou dema-siado atrasado e foi brando, respeitando a tra-dicional tolerância e a boa convivialidade en-tre as várias etnias e crenças da região. Essa convivialidade pacífica acontecia, sim, por fac-tores históricos de proximidade e miscigena-ção, mas a imposição do poder eclesial cen-tral, cujo braço forte tinha guarida em Évora, acabaria por minar a atitude da tolerância re-cíproca que caracterizava a população. Em seu lugar, deixou por herança uma relutância táci-ta contra as religiões, uma forte base ateia e agnóstica, ao lado do temor de falar alto, de se exprimir livremente, de contradizer, de re-partir, de se ser leal e franco. O individualis-mo e a dificuldade na associação, na defesa de movimentos colectivos, caracteriza a socie-dade do Sul, um mal endémico, que foi dei-xando a região fragilizada, sem líderes, ou com dificuldade em reconhecê-los, quando acaso se apresentam. Um traço caracteróiogo que não se afasta muito do perfil do português médio, pouco cívico, mas que encontra no Algarve uma expressão acentuadamente for-

Page 2: ID: 68603981 09-03-2017 Corte: 1 de 2 O Domínio do Mar · suas características fundamentais. O Algarve ... de movimentos colectivos, caracteriza a socie-dade do Sul, um mal endémico,

Tiragem: 11500

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Regional

Pág: 13

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Área: 25,00 x 31,16 cm²

Corte: 2 de 2ID: 68603981 09-03-2017

te. Uma população que tem dificuldade em lidar com o contraditório e a discussão frontal, substituindo-os pelo silêncio e pela espera. O que do ponto de vista intelectual define o perfil do eterno descontente que desiste.

Certa vez, Eduardo Lourenço caracterizou os portugueses como o povo que não teve Michel de Montaigne. De facto, Portugal teve um Damião de Góis, que terminou preso, e pensa-se que assassinado. Montaigne, em parte seu contemporâneo, criou o género lite-rário que consiste em avançar para o dogma com os olhos da intèligência, legando ao seu tempo e a todos os tempos, uma forma de pensar racional, de diálogo pessoal correndo entre a premissa e o seu contrário. Os Ensaios são Isso. Mas nós não recebemos o espírito de Montaigne. Diria mesmo que, passados séculos, continuamos bem portugueses. No tempo dos aviões low cost, ainda caminha entre nós a sombra de um Inquisidor Mor, vestido de preto e gola branca, sobraçando um temível livro de assentos onde poderá constar o nosso nome. O medo da pobreza e o receio do Juízo dos outros marcaram o ADN portu-guês. Marcaram Indelevelmente o Algarve. Por alguma razão, a pintora Hélène de Beauvoir, que viveu em Faro por algum tempo durante os anos quarenta, irmã de Simone de Beauvoir, exclamou certa vez - Ah! Ce beau pays médieval! Por certo, que não se referia ape-nas às raparigas de lenços pretos e salas far-falhudas que pintou, curvadas de trabalho e sem outras perspectivas para além da paisa-gem encantadora, com mar e amendoeiras.

Por outro lado, aqui, tal como no resto do país, as elites teceram a sua teia restrita, per-maneceram discretas para não ofenderem a vista, escondidas, poderosas, e profundamen-te indiferentes à sorte do povo. Um modelo que sobrevive nos países subdesenvolvidos, e que ainda tem herança entre nós, apesar dos quarenta anos de Democracia. Antes, um povo que não sabia ler nem escrever, agarra-do à terra. Agora, um povo que convém man-ter distraído com artes cómicas, e elites locupletizando-se em segredo. Historiadores, desde José Mattoso a Fernando Rosas, e o pró-prio José Hermano Saraiva, assinalaram esta nossa propensão para aceitar a assimetria e mantê-la sob outras formas. Um traço de sub-desenvolvimento que nos caracteriza. Que caracteriza o Algarve, e que não tende a mudar rapidamente porque a estrutura económica e social que está implantada a isso convida. As indústrias de exploração de subsolo que ac-tualmente o Governo central quer impor, em plena contramão com a actividade turística e de acolhimento Iniciada há cinquenta anos, agravará de forma dura essa assimetria, promo-vendo a concentração da riqueza em alguns, sem rosto, e depauperando a vida de todos os outros cujos rostos são os que constam das nossas fotografias. Porquê? Porque razão, 750 anos após o tratado que uniu o AI-Gharb à ve-lha Lusitânia, a região ainda se mantém silen-ciosa, amedrontada, sem capacidade de sair da sua ilha metafórica? Metafórica, só porque, finalmente, já não é necessário fazer 365 cur-vas para se chegar às planícies?

4. Aliás, também a história das vias não expli-

ca a semelhança na singularidade que ca-racteriza a região, outrora reino do Algarve,

dado por dote de casaménto a D.João III . Não explica, mas ilustra-a. Há incontáveis ensaios sobre a gesta mantida, ao longo dos séculos, para se estabelecer ligações entre o extremo sul e o centro de Portugal. A quase intrans-ponibilidade da Serra Algarvia é lendária, as não visitas dos reis de Portugal ao Reino do Algarve, também. A cronologia das suas au-sências ao longo mais de trezentos anos, hoje em dia, faz parte do anedotário que ex-plica o sentimento de insularidade que se enraizou. O atraso na chegada do comboio até Faro, bem como a demora em estabelecer certos ramais, cujas heranças ainda hoje per-duram, constam de qualquer esboço que se faça sobre a história comportamental da re-gião. É um facto que a inauguração do aero-porto em 1965 constituiu uma reparação e inaugurou a mudança de paradigma que trans-formou uma terra de lavoura e de pesca artesanais, numa província aberta à indústria do turismo, quando o Algarve se encontrava exangue pela pobreza endémica, pela Guerra Colonial e pela emigração para França. Em meados dos anos sessenta, estava a ser posta em marcha a nova configuração da política económica moldada pelo Estado Novo, ainda numa perspectiva algo aristocrática, que a Democracia e o tempo europeu haveriam de transformar, anos depois, num atabalhoado turismo de massas, cheio de casinhas em ban-da unidas por estradinhas de cabras. Inex-plicavelmente. Ainda em 1998, um dos admi-nistradores da Expo 98 teiatava, com alguma candura, de que modo se havia trocado a cons-trução da Auto-Estrada Lisboa-Algarve por uma outra a Norte, quando a viagem, nos meses de Julho até às praias do Algarve, através de uma estrada sinuosa de dois sentidos, era então um empreendimento que exigia resis-tências épicas. O Algarve, no entanto, era uma das regiões que bem alimentava o Orçamen-to Geral do Estado. A Auto-estrada A2 só viria a ser terminada em 2006. No entanto, a popu-

lação do território anexado pelo tratado de Badajoz, em que intervieram Afonso X e o pai de D.Dinis, à data com seis anos, ambos bons administradores do território global, nunca encontrou forma de sensibilizar o poder cen-tral para a incongruência. Uma relação bem portuguesa, em plena Democracia e Inscrição na Europa Comunitária. Lembrá-lo, não é apanágio dos administradores actuais, que pensam que a memória empata o futuro e cria impedimentos. Felizmente que nos encontra-mos numa Universidade, o local onde se pra-tica a revisitação da História, sabendo que as sociedades que perdem o seu passado estão a perder o seu futuro.

Em resumo, em comparação com a Euro-pa, a industrialização chega tarde a Portugal, e chega tarde ao Algarve. As instituições da escolaridade obrigatória chegam muito tarde, a Universidade do Algarve, motor do conheci-mento, também chegou tarde. Cientes desse atraso e das dificuldades próprias de um zona que tem funcionado, para o resto do país, como uma espécie de celeiro de Verão, por-que razão o território que Dom Afonso X de Leão cedeu a Dom Afonso III se mantém, oito séculos depois, politicamente com uma voz tão pouco altiva? Os comportamentos colecti-vos são um mistério. Só em parte são espelho dos Individuais. No somatório, alguma coisa inesperada falta, alguma coisa inexplicável se acrescenta. Ainda assim, aplicando ao colecti-vo o que se diz da pesSoa, é provável que a cultura do medo antigo ainda sobreviva, e o ressentimento, essa forma amarga de re-sen-tir, sentir duas, sentir várias vezes, impeça que o sentimento se transforme em acção. Sentir demais impede o movimento, provoca a las-sidão e o adiamento perpétuo.

Sejamos justos. 5. Nos dias que correm, há indicadores que

falam de êxitos acentuados nos campos da instrução, da educação, da-Criação da Ciência,

nos níveis da actividade turística, nos índices do consumo per capita, e outros dados que se traduzem no consolo das estatísticas e no tri-unfo dos decisores, e correspondem a um progresso real entre a população. Globalmen-te, é uma zona em ascensão a caminho de corrigir os defeitos da sua indústria de base, à beira da consciencialização do que represen-ta a preservação do seu património, da sua paisagem, da Integridade do seu território. Produz conhecimento, cria cultura, constitui uma comunidade pacífica, anfitriã, aberta à diferença e vocacionada para o acolhimento. Um território português, bem português, es-pecífico porque mais do que português. Mas, de novo, como se a história da submissão pas-siva não parasse de acontecer, à beira de uma surpreendente mudança de paradigma para a região, decidida-no esconderijo dos gabine-tes dos governos de Lisboa, a voz política da região é fraca.

Se o digo assim, é porque não desejaria que a melancolia, em face do irreversível, vies-se em breve tomar conta das nossas vidas. Porque, há 750 anos, os reis decidiam entre si, e nessa altura uma gargalhada do bobo valia mais do que a opinião de uma população in-teira. Mas, hoje, a opinião da população con-ta. Pobre da população contemporânea que a si mesma não se tem em conta. Acho que Dom Dinis, rei lavrador e poeta, por certo que não quereria que se sujasse a orla marítima de uma região para a qual um poeta do século XXI, nascido do Algarve, escreveu assim - Os bar-cos que na ria/ traçam lápidas vias/de espu-ma e o meu dia desafiam/ saltam à luz que é música aumentando/ até quase tornar/impos-sível abrir os olhos neste dia... Gastão Cruz.

Comemorar aquele outro dia, sete séculos e meio, mais tarde, também pode significar soltar a alma, voltar à terra que amamos, e procurar mantê-la limpa e honrada como se fosse a nossa casa.

Lídia Jorge