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Índice A “decoreba” é ruim para o aprendizado? ......................................................................................... 5 A promessa de premiação motiva o aprendizado? ......................................................................... 10 O aprendizado é capaz de causar mudanças estruturais (morfológicas) no córtex cerebral? ....... 22 Os neurônios são insignificantes em termos numéricos no nosso cérebro? .................................. 37 Esquecer é fundamental para o aprendizado? ............................................................................... 41 Para uma memorização efetiva é melhor passar a noite estudando do que dormir? ..................... 45 O envelhecimento dificulta o aprendizado devido a perda de neurônios? ...................................... 56 Existem coisas mais fáceis de lembrar do que outras? .................................................................. 65

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ÍndiceA “decoreba” é ruim para o aprendizado? ......................................................................................... 5

A promessa de premiação motiva o aprendizado? ......................................................................... 10

O aprendizado é capaz de causar mudanças estruturais (morfológicas) no córtex cerebral? ....... 22

Os neurônios são insignificantes em termos numéricos no nosso cérebro? .................................. 37

Esquecer é fundamental para o aprendizado? ............................................................................... 41

Para uma memorização efetiva é melhor passar a noite estudando do que dormir? ..................... 45

O envelhecimento dificulta o aprendizado devido a perda de neurônios? ...................................... 56

Existem coisas mais fáceis de lembrar do que outras? .................................................................. 65

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Material de apoio da atividadeA “decoreba” é ruim para oaprendizado?

Textos extraídos do livro A arte de esquecer, de Iván Izquierdo -Editora Vieira e Lent (2004)

Dependência de estado

As memórias são adquiridas sob a influência de um determinado"tônus" cerebral dopaminérgico, noradrenérgico, serotonérgico oubetaendorfínico, e de um "tônus" hormonal paralelo. Esses moduladorese hormônios geralmente facilitam a formação de memórias agindo sobremecanismos específicos nas áreas do cérebro que as fazem e, de certamaneira, incorporam informação às mesmas. Um momento assustadorconsiste tanto do estímulo que provoca o susto, como da ação dosneuromoduladores e hormônios liberados no organismo durante essemomento; muitas vezes a ação dessas substâncias fazem com que omomento seja realmente assustador.

As memórias são melhor evocadas quando o "tônus" neuro-humorale hormonal vigente no momento de sua aquisição se repete. Assim, emmomentos de ansiedade elevada, em que se libera muita dopamina enoradrenalina cerebral, e muita adrenalina e corticóides na periferia,teremos não só tendência a gravar melhor o que está acontecendo nessaocasião, como também facilidade para evocar outras experiênciasigualmente assustadoras ou aversivas. Isto é, sem dúvida útil para ter emmente, disponível para a utilização imediata, por meio de estratégias deação apropriadas para a circunstância: devemos fugir, pular, nos esconderou lutar?

O mesmo acontece com as memórias prazenteiras: quando umasituação determinada se apresenta, por exemplo os prelúdios do ato sexualou de um bom almoço, haverá uma constelação de processos neuro-humorais e hormonais semelhante àquelas que experimentamos em outrosmomentos da mesma índole, a nossa resposta se adequará melhor àscircunstâncias. Assim, secretaremos hormônios sexuais na iminência doato sexual, e hormônios gástricos e ácido clorídrico no estômago antes deum almoço. De nada nos serviria fazer o contrário; seria contraproducente.É obviamente bom executar as coisas que sabemos nas condiçõesorgânicas mais favoráveis para isso.

Este fenômeno se denomina dependência de estado: a evocaçãodas memórias de certo conteúdo emocional depende do estado hormonale neuro-humoral em que a mesma esteja ocorrendo. Quanto mais esseestado se pareça com aquele em que memórias de índole similar foramadquiridas, melhor será a evocação.

Assim, muitas memórias ficam num estado que poderíamos chamarlatente, só despertado por determinadas conjunções de fenômenos neuro-humorais e hormonais próprios de cada estado: as que causam medo, asque chamam ao sexo etc. Mas isto não quer dizer que o fato dessasmemórias importantes ficarem latentes signifique que foram esquecidas,sequer temporariamente. Quer dizer que essas memórias dependentesde um determinado estado neuro-humoral e hormonal, para seremreativadas, requerem certos estímulos que compreendam pelo menos parteda reprodução do estado em que foram originalmente adquiridas. As

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memórias dependentes de um estado emocional determinado ficam, porassim dizer, "a espreita" de que uma certa constelação de fenômenosbioquímicos apareça novamente. Um estímulo apropriado pode trazê-lasà tona com bastante rapidez. Um "surto" de acidez gástrica pode nos darvontade de comer. Um "surto" de hormônios sexuais no sangue pode noscausar desejo sexual.

A dependência de estado permite que a vida possa se processarcorriqueiramente com respostas adequadas a cada caso. Por exemplo,não viver num estado de excitação sexual impróprio para as circunstâncias:uma ereção do violinista durante a execução de um quarteto de Beethoven,no palco de um teatro lotado. Ou viver num estado de agressividade forade contexto: no mesmo concerto, minutos depois, uma vez acalmado opúblico, o da viola chuta o violoncelista só porque este errou uma notaqualquer. É bom se excitar sexualmente quando for conveniente, e podeser até necessário algum grau de agressividade no momento certo. Mas éantiadaptativo é contraproducente fazê-lo fora de contexto.

Na imprecisão aparente que faz com que as diferenças emocionaisentre um momento e outro de nossa vida sejam tão sutis como são, osestados psicológicos, hormonais e neuro-humorais determinam, comnotável precisão, qual é a reação apropriada em cada caso.

Nosso corpo em geral, e nosso cérebro em particular, sabem maisdo que nós; ainda bem, senão seríamos inadaptáveis à realidade, eviveríamos pouco e mal.

Dois exemplos famosos de dependência deestado

As memórias podem depender não só de estados neuro-humoraisou hormonais internos do indivíduo, mas também de estados causadospela ingestão de substâncias externas, como o álcool e outras.

Os melhores exemplos destes casos pertencem, o primeiro àhistória da literatura, e o outro à história do cinema.

O da literatura é o protagonista do célebre romance de RobertLouis Stevenson (1850-1894), O Médico e o Monstro. Um médico conhecidodedicou-se, nas horas vagas, a elaborar um líquido que, quando ingerido,podia transformá-lo em outra pessoa. A substância teve o efeito,inesperado, de transformá-lo num ser de características monstruosas, cruele selvagem: o aterrorizante Mr. Hyde. Uma vez passado o efeito da droga,o protagonista readquiria as formas, o aspecto e o temperamento do cortêse pacato Dr. Jekyll. O fenômeno se repete várias vezes ao longo doromance, que foi vertido a várias versões cinematográficas, inclusive umacom participação do coelho Pernalonga, que talvez seja a melhor.

O mais engraçado e talvez mais sutil caso de dependência deestado, é apresentado por Charlie Chaplin (Carlitos) num filme de 1931,Luzes da Cidade, um dos grandes clássicos da história do cinema. Nele,um milionário amante da vida noturna desenvolve, estando bêbedo, umaenorme simpatia pelo vagabundo interpretado por Chaplin. Ele o convidaa sua casa, leva-o a festas etc. Mas quando acorda da bebedeira, omilionário nem sequer reconhece Carlitos, e o expulsa energicamente deonde estiver. Os episódios se repetem várias vezes, para desorientaçãodo vagabundo, que nunca compreende por que o ricaço às vezes é seuamigo e às vezes não. A amizade do milionário pelo vagabundo dependiado estado causado pelo álcool e não era recordada por ele no estado desobriedade.

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A aquisição de memórias

É evidente que, se a consolidação das memórias de longa duraçãobaseia-se em alterações sinápticas, a aquisição das mesmas devedepender do uso dessas mesmas sinapses. Aliás, isto é intrínseco aopostulado de Ramón e Cajal, que hoje se sustenta nos achados deGreenough, Geinisman, Katarina Braun e seus colaboradores, entre outros.

Por outro lado, é também evidente que as regiões do cérebro e assinapses que participam na formação das memórias de curta e de longaduração devem ser em boa parte as mesmas; já que todos nós recordamosem essência a mesma informação uma hora ou um mês depois de adquirí-la. Isto, apesar de que uma hora depois da aquisição nossa memória delonga duração está apenas começando a ser formada e a memória quenos permite responder é só a de curta duração.

Que partes do cérebro participam na aquisição das memórias?Muitas. Em primeiro lugar, as regiões responsáveis pela percepção eanálise dos diversos estímulos sensoriais que conformam cada experiência,e/ou do conjunto de pensamentos e memórias prévias em que se baseiamos insights. É claro que na aquisição das memórias visuais deve participaro córtex visual, na memória olfativa o córtex olfatório, nas memórias verbaisas áreas corticais responsáveis pela linguagem, e assim por diante. Nasmemórias com um componente motor (tocar certa música ao piano), deveintervir o córtex motor correspondente aos dedos em questão. É tambémevidente que, sendo impossível adquirir memórias sem um estado mínimode alerta (inclusive durante o sono), as regiões do cérebro responsáveispor manter esse estado devem estar também ativadas quando aprendemosalgo novo. Por outro lado, é praticamente inimaginável a aquisição dealguma memória fora de algum estado emocional determinado: nós e osdemais animais estamos sempre em algum estado emocional: mais oumenos contentes, satisfeitos, insatisfeitos, ansiosos, cansados etc. Osdiversos estados de ânimo e as emoções mobilizam, como vimos, emmaior ou menor grau, vias neuro-humorais específicas: a dopaminérgica,a noradrenérgica, a serotonérgica, as colinérgicas. Assim como temos nosangue sempre algum nível de adrenalina, corticóides e hormônios sexuais;esses níveis só atingem o zero quando morremos.

Além dos mecanismos acima, é também claro que nas memóriasde forte conteúdo aversivo ou emocional intervêm a região da amígdalabasolateral, nas memórias com um forte conteúdo espacial participa ohipocampo etc.

Porém, participar não equivale a fazê-lo de uma forma sempreimprescindível ou protagônica. É possível, sem dúvida, adquirir muitasmemórias apesar de lesões de todas as estruturas mencionadas, masnem sempre muito bem. Outras estruturas a elas ligadas assumem seupapel; nisso, o cérebro é mestre. Sem dúvida, as memórias com poucoconteúdo emocional são adquiríveis em sujeitos com lesão bilateral daamígdala, ou memórias declarativas importantes podem ser formadas empessoas idosas com bastante perda celular no hipocampo e no córtexentorrinal. Por outro lado, é em relação com a modulação hormonal dasfunções nervosas, memórias com conteúdo sexual podem ser adquiridasna presença de níveis muito baixos de testosterona ou estrogênios, ememórias de medo podem ser adquiridas com pouca adrenalina circulante.

Além das regiões corticais correspondentes a cada sentido (visão,audição, olfato, tato, gosto) ou ato motor, e/ou daquelas a partir das quaisé possível evocar outras memórias ou pensamentos (nos insights, porexemplo), há certas estruturas nervosas que provavelmente participam

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na aquisição de todas ou quase todas as memórias declarativas: ohipocampo, o córtex entorrinal e as áreas a elas associadas. O hipocampointervém também na aquisição de muitas memórias de habilidades manuaisou sensoriais (nadar, andar de bicicleta, usar um teclado). É provável quena aquisição destas últimas intervenham sempre ou quase sempre o núcleocaudado e o cerebelo.

Não existe a menor dúvida de que na aquisição e na evocação detodas as memórias de curta e de longa duração, declarativas e procedurais,participa ativamente e de maneira essencial a memória de trabalho. Semela, não haveria a meta-análise das informações procedentes dos sistemassensoriais e/ou dos sistemas de armazenamento de memórias que é funçãoda memória de trabalho. Confundiríamos, tanto do ponto de vista sensorialcomo cognitivo, o joio e o trigo de maneira permanente. Lembremos aquicomo a simples falha (não a falta) de memória de trabalho perturba a vidacognitiva dos esquizofrênicos.

Vemos, assim, que a procura das sinapses que se alterammorfológica e funcionalmente para sustentar memórias é difícil. São muitasas variáveis participantes, são muitas as regiões cerebrais envolvidas, e abusca de algumas poucas sinapses responsáveis pela conservação deuma ou outra memória é parecida a procura de uma agulha num palheiro.

Mais difícil é, evidentemente, a busca de quais dessas sinapsesmudam como conseqüência de um esquecimento, ou, como veremos aseguir, de uma extinção.

A arte de esquecer: a habituação

A repetição de um estímulo ou grupo de estímulos inofensivosgeralmente causa a diminuição gradual das respostas a esse estímulo.Assim, a primeira vez que ouvimos o som de uma campainha, ou que nosencontramos num determinado ambiente novo, giramos a cabeça em redor,para localizar a fonte do estímulo novo, ou para registrar que o espaçoque nos rodeia é novo para nós. Esta reação natural a estímulo(s) novo(s)foi denominada por Pavlov reação de orientação ou reflexo de "onde está?".

Observa-se que em todas as espécies animais, e no rato, no gatoou no cachorro é acompanhada de intensa atividade olfativa. Os humanossomos mais propensos a investigar nosso entorno por meio da atividadevisual ou tátil. Se a coleção de estímulos novos for muito intensa, pode seacompanhar de alguma reação defensiva também: nos funcionários dosaeroportos, por exemplo, a reação a partida de um avião a poucos metrosde distância é seguida de movimentos tendentes a proteger seus ouvidos.A repetição do(s) estímulo(s) leva a diminuição da resposta de orientação;já aprendemos que aquele não é tão importante como pensávamos noinício, e nos habituamos a ele. Acostumamos, por assim dizer. Umtrabalhador veterano das pistas dos aeroportos já nem responde aoestrépito da partida dos aviões. No primeiro dia de aula, os alunos olhamem volta para entender ou conhecer melhor a nova sala, os novos bancos,onde está a porta etc. Na segunda semana de aula, entram na sala semprestar mais muita atenção ao ambiente; já se acostumaram a ele.

Pavlov costumava habituar seus cachorros a campainha, antes deassociá-la com um pedaço de carne. Queria garantir que, no momento deiniciar o processo associativo do condicionamento, a campainha fosserealmente um estímulo neutro, incapaz de gerar respostas importantespor si próprio.

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A habituação é nosso aprendizado mais simples e um dos maisimportantes. Sem ele, viveríamos na surpresa constante, no sobressaltopermanente. H. M. vive um pouco assim, já que esquece muitas das suashabituações. A habituação se deve a atividade do hipocampo e tem umabase bioquímica relativamente complexa, embora diferente daquela dasmemórias associativas.

É também uma arte, a habituação. Podemos aplicar ou não nossavontade a ela, podemos desejar fazê la ou não. Nem sempre a habituaçãoé involuntária; pode ser muito seletiva. A criança que é levada diariamentea uma creche pode decidir se quer ou não quer se habituar a ela. Ofuncionário do aeroporto, por mais desagradável que tenha sido suaprimeira experiência estrepitosa na pista, geralmente quer conservar seuemprego e procura intensamente se acostumar (habituar) a isso. Às vezesjá meio surdo, reage daí em diante como se nada estivesse acontecendoem volta, mantêm animadas conversas com seus colegas em meio aoruído dos aviões que ligam seus motores na sua frente.

Os casos mais ilustrativos da seletividade da evocação são asinúmeras histórias de mães que dormem, exaustas pela guerra, em meioa um bombardeio; mas acordam ao ouvir o leve choro de suas crianças.Isto demonstra que, intrinsecamente, o ser humano é mais sensível aosestímulos que Ihes tocam fundo do que àqueles sobre os quais não podefazer nada e acabam se tornando indiferentes talvez por isso mesmo. Asemoções determinam em grande parte o desenvolvimento da atençãoseletiva e da memória seletiva.

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Material de apoio da atividadeA promessa de premiação motiva oaprendizado?

Textos retirados do livro Sexo, Drogas, Rock in Roll e Chocolate,de Suzana Herculano-Houzel. Editora: Vieira e Lent.

Um pouquinho mais de eletricidade, por favor,que eu tô gostando...

A descoberta acidental do sistema de recompensa do cérebro

De tudo o que é bom a gente quer mais. Mas o que é "bom" parao cérebro? O que faz o cérebro lembrar e pedir mais? Curiosamente, aprimeira demonstração de que existe uma região do cérebro que faz oanimal "querer mais" resultou de um experimento com a intensão contrária:determinar se a estimulação elétrica de um certo ponto do cérebro eraaversiva.. Um experimento que, nesse sentido, deu errado.

O experimento aconteceu em 1953, numa época em que as funçõesrecém descobertas de uma estrutura bem no meio do cérebro conhecidacomo formação reticular mesencefálica causavam alvoroço entre oscientistas que buscavam entender os mecanismos da consciência. A duplaítalo-americana Giuseppe Moruzzi e Horace Magoun havia demonstrado,em 1949, que a estimulação elétrica dessa estrutura faz animaisadormecidos despertarem, e coloca o cérebro de animais já acordadosem estado de alerta. Seria um tipo de "centro da consciência"? A históriamostraria que não, mas enquanto isso a descoberta provocou uma ondade experimentos semelhantes em busca de outras estruturas queinfluenciassem o grau de alerta dos animais e a1guns levantavam asuspeita de que, em certos locais do cérebro, a estimulação poderia seraversiva.

Era justamente o que o americano James Olds estava tentandodeterminar, antes de prosseguir com seus experimentos no laboratóriodo psicólogo canadense Donald Hebb, imortalizado por sua proposta deque o aprendizado tem por base a modificação das conexões entre osneurônios. Olds implantara eletrodos supostamente na tal formaçãoreticular mesencefálica de um rato que ele então soltava sobre uma mesa.Sempre que o rato vinha a um determinado canto da mesa, Olds aplicavauma corrente elétrica aos eletrodos, para estimular a estrutura. Era umaforma de condicionamento, como fez Pavlov com seus cachorros. Se aestimulação fosse aversiva, o rato deveria passar a evitar aquele cantoda mesa; se não, continuaria circulando normalmente pela mesa toda,como fazem os ratos em um ambiente novo.

Para a surpresa de Olds, o animal gostou e muito. Deu umasaidinha... e logo voltou àquele canto onde Olds aplicara a estimulaçãoelétrica. O rato saiu de novo, continuou a exploração da mesa... e voltou,ainda mais rápido do que da primeira vez, para uma nova estimulação. Ede novo. E de novo. Olds pediu a um colega que escolhesse outro lugarda mesa para associar ao estímulo e o rato logo passou a visitar o novolugar assiduamente. Depois, em um laboratório em forma de T, o mesmorato rapidamente aprendeu a correr para o canto em que recebesse aestimulação elétrica no cérebro.

Ao examinar o cérebro do animal, Olds descobriu que seuseletrodos tinham sido mal posicionados e foram parar perto do hipotálamo.Tentou, então, repetir o erro, implantando eletrodos em outros animais.

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Não deu muito certo: alguns animais tinham reações ambíguas, e outrosmostravam aversão ao lugar da mesa onde recebiam o estímulo elétrico.Parecia que a posição exata dos eletrodos fazia uma diferença enorme.Olds abandonou então seu projeto de pesquisa original e, junto com otambém doutorando Peter Milner (que veio a se tornar um grande nomeda Psicologia nos EUA), desenvolveu um experimento para testar maisrapidamente o efeito da estimulação elétrica em locais diferentes dessaregião do cérebro.

Era uma modificação da "caixa de Skinner", uma pequena caixacom uma alavanca que, ao ser apertada pelo animal, faz aparecer umgrão de comida em uma janelinha. Na versão de Olds e Milner, o grão decomida foi substituído pela aplicação do estímulo elétrico, disparadoquando o animal pressionava um grande pedal. Como a caixa era pequenae o pedal ficava numa posição estratégica, onde era apertado cada vezque o animal tentava olhar pela única abertura da caixa, por ondepassavam os cabos ligados ao eletrodo, sem qualquer tipo de estimulaçãoelétrica do cérebro o animal já apertava o pedal umas 60 vezes em dezminutos. Era uma situação ideal para deixar evidente qualquer efeitoaversivo, que faria o bichinho parar de apertar o pedal. O risco seria deixarescapar alguns casos de efeitos positivos. Mas não houve dúvida: quandofuncionava, o animal apertava o pedal até mil vezes nos dez minutos deteste!

Testando assim a posição dos eletrodos, Olds pôde determinarque a estrutura cerebral que ele acertara por engano e cuja estimulaçãofazia o animal "querer mais" é o feixe prosencefálico medial, que contémfibras nervosas que terminam principalmente no hipotálamo, e uma grandequantidade de fibras repletas de noradrenalina, serotonina e dopaminaque terminam no córtex pré-frontal. Nos anos seguintes, ficou claro queesse feixe leva e traz fibras do que passou a ser conhecido como o sistemade recompensa do cérebro, que inclui o assoalho dos núcleos mais internosda parte frontal do cérebro, chamado de corpo estriado ventral, e cujoastro é uma estrutura chamada núcleo acumbente. A estimulação do feixeativa tanto as entradas quanto as saídas desse sistema, algumasestrategicamente ligadas ao sistema motor e evidentemente o sistema époderoso o suficiente para fazer um ratinho apertar um pedal até cemvezes por minuto.

Imagine o prazer em apertar um botão necessário para fazer vocêrepetir a ação a cada batida do seu coração. A estimulação devia provocaro maior "barato" nos animais e ciente disso, Olds pronta e adequadamentechamou sua versão da caixa de Skinner de "Caixa do Prazer". A tal dacaixa se mostrou um modelo tão poderoso que esse tipo de experimento,chamado de "auto-estimulação", foi logo adaptado para testar a auto-aplicação de drogas em ratinhos, e tornou se um padrão: hoje em dia,basta que uma substância, ou uma situação, seja suficiente para levar aauto-estimulação para que se levante a suspeita de que ela agediretamente sobre o sistema de recompensa do cérebro como é o casode todas as drogas psicotrópicas.

Tudo no cérebro é uma questão de quem fala com quem. Se amente é produto do sistema nervoso e o cérebro não é muito mais doque neurônios conectados entre si e com o corpo, a riqueza de funçõese pensamentos do ser humano só pode ser o resultado de uma coisa:o padrão diferente de conexões de cada região do cérebro. Algumasrecebem sinais dos sentidos, outras emitem sinais para os músculos,monitoram os movimentos, articulam neurônios em outras regiões,comparam, antecipam, regulam. Quando se trata de prazer, as regiõesenvolvidas são aquelas que representam estados internos do corpo

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(como a insula); antecipam ou detectam uma recompensa (como onúcleo acumbente e restante do corpo estriado ventral); representam ovalor relativo da recompensa (como o córtex orbitofrontal); e codificamse já se atingiu a saciedade ou não (como o córtex cingulado e oorbitofrontal). Simples assim. Talvez...

Você conhece várias dessas situações e substâncias, e se submetea esse teste voluntariamente em casa, talvez com mais freqüência doque imagina. Por que você achava que comer, fumar, beber, fazer sexo,música ou exercício são hábitos que se mantêm ao longo dos séculos? Oque é "bom" para o cérebro e faz a gente querer mais são comportamentose substâncias que levam a ativação desse sistema de recompensa, efazem o cérebro passar a associar a causa da ativação à sensação debem estar e prazer criada em seguida no corpo. Mas, será a ativação dosistema que é prazerosa em si, ou serão as mudanças no corpo às quaisela está associada, a verdadeira fonte de prazer?

Isso ainda vai dar pano para manga e trabalho para muitos ratinhose cientistas. E para você, também. Pensa que você não é, à sua maneira,mais um ratinho de laboratório, como os de Olds, experimentando novasmúsicas, novos drinques, novas marcas de cigarro ou namorados? Quemdiria, ser animal de testes nem sempre é ruim...

Dezembro de 2002

Fontes:Olds. J., Milner, P. Positive reinforcement produced by electrical stimulation of septal area andother regions of rat brain. Journal of Comparative Physiology and Psychology, v. 47, p. 419-427,1954.Olds J. Self stimulation of the brain. Science, v. 127, p. 315-324, 1958.

Esquema do interior do cérebro humano, visto de lado(olhos a esquerda, nuca à direita),indicando as estruturas integrantes do sistema derecompensa ou associadas a ele.

A cenoura na ponta da varinha

É só uma questão de encontrar o estímulo

Esqueça a gotinha de suco ou o floco de ração para premiar oratinho que você tenta arduamente treinar para subir a escada ouatravessar um labirinto. A equipe do americano John Chapin, naUniversidade do Estado de Nova York, encontrou um modo muito maiseficiente de conseguir que os bichos façam o que os pesquisadoresquerem e por controle remoto.

Chapin já tinha experiência sobrando com a implantação deeletrodos; foi em seu laboratório que o brasileiro Miguel Nicolelis

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desenvolveu a técnica para que ratinhos usassem a atividade registradapelos eletrodos em seu cérebro para mover alavancas sem fazer força.Mas, até então, os eletrodos implantados no cérebro de ratos eram usadosapenas para que os animais comandassem aparelhos eletrônicos. E seeles tentassem o contrário, usando os eletrodos desta vez para fazeraparelhos eletrônicos comandarem os ratos?

O truque foi dar um objetivo prático a uma técnica até entãoemprestada apenas para fins de exploração do cérebro: amicroestimulação elétrica, que "força" a ativação de regiões específicasdo cérebro através de curtíssimos choques elétricos aplicados poreletrodos implantados nas regiões desejadas.

Para conseguir que um animal de laboratório ou uma pessoa, naverdade, faça o que você quer que ele faça, são necessárias em últimaanálise apenas duas coisas: que ele entenda o que você quer; e quetenha vontade de fazê lo. E se o que você quer que o animal faça é iraonde você manda, noções básicas de equitação dão a dica. Basta poderindicar "Vire à esquerda", "Vire à direita", "Ande em frente" e "Pare".

Um cavalo sabe que deve virar à esquerda quando você puxa asrédeas para a esquerda. Como fazer o mesmo em um rato, sem colocar-lhe rédeas? Uma alternativa é usar eletrodos para estimular arepresentação dos bigodes no córtex somatossensorial, a região nasuperfície do cérebro que cuida das sensações do corpo. Para o animal,um estímulo elétrico que "ligue" a representação dos bigodes do ladoesquerdo não deveria ser muito diferente de um verdadeiro toque nessesbigodes. Portanto, bastam alguns eletrodos para dar um "toque virtual"nos bigodes direitos, e outros tantos para os bigodes esquerdos.

E como fazer o bicho seguir em frente? Aqui um pouco de incentivoé necessário, e quando se trata de incentivo, a opção natural é estimularo sistema de recompensa do cérebro. Então, implantam-se algunseletrodos no feixe prosencefálico medial, parte do sistema de recompensado cérebro do rato, coloca-se uma mochilinha as suas costas, contendoum microestimulador e seu processador teleguiado, e voilà: tem-se umrato pronto para... coisa nenhuma.

Pensou que já ia poder fazer o bichinho seguir suas ordens? Não,não, não. Primeiro é preciso ensiná-lo como responder ao controle remoto.Afinal, um toque virtual nos bigodes direitos não é necessariamentesinônimo de "vire à direita". É preciso que eles aprendam o significado decada "toque" e queiram fazer alguma coisa com a informação. Ou seja: épreciso treiná-los.

E o treino mais comprovado pela prática é a velha associação deestímulos premiada por um afago na cabeça ou pedaço de comida naboca. Se seus ratos precisam aprender a fazer curvas, então que elesfaçam exatamente isso: andem em curvas. Treinando seus ratos em umlabirinto em forma de 8, onde os animais não tinham muitas alternativasde movimento, Chapin e sua equipe os ensinaram a associar um "toque"do lado direito a uma curva para a direita, e um "toque" do lado esquerdoa uma curva para o outro lado, tudo em troca de um pouquinho deestimulação do sistema de recompensa do cérebro após cada associaçãocorreta. Após dez sessões de treino, o teste: será que o condicionamentojá teria sido suficiente para guiar os ratinhos num campo aberto, sem asescolhas forçadas de um labirinto?

Sem problemas: os bichinhos corriam em disparada, viravam àesquerda ou à direita sempre que comandados e até subiam escadas,desciam degraus, passavam por baixo de arcos e por dentro de túneis.

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Tudo isso guiados pelo pesquisador que operava o controle remoto pelocomputador a uma distância de até 500 metros, apenas garantindo lhesde vez em quando algumas estimulações elétricas do sistema derecompensa. Até pilhas de concreto demolido os bichinhos subiamteleguiados, o que certamente encorajou os pesquisadores na hora deafirmar que o seu "invento" poderia em breve ser utilizado em buscas emáreas de destruição urbana.

Não parece nem mesmo haver risco de os bichos resolverem pararno meio. Os ratos corriam pra valer, a 1 km/h (se você acha pouco, lembre-se de que, com suas pernas vinte vezes maiores, você anda a uns 5km/h), e sem parar, durante até uma hora o máximo testado nos experimentos.Ambientes abertos e iluminados, normalmente evitados pelos ratos,também não eram problema.

Pelo jeito, a ativação do feixe prosencefálico medial erarecompensa mais que suficiente para manter os bichinhos andando. Naverdade, era até mais que recompensa era incentivo: quanto mais difícilera o obstáculo à frente, mais estimulações do feixe prosencefálico medialeram necessárias para fazer o ratinho seguir adiante. Confirmandosuspeitas antigas, levantadas por experimentos na década de 50, Chapine sua equipe demonstraram, portanto, que a estimulação do sistema derecompensa também serve como um estímulo para ir em frente comouma verdadeira motivação, mesmo.

É uma idéia estimulante essa de a recompensa, em geral associadaao "depois", ao prazer do objetivo alcançado, também funcionar comomotivação. Se for assim, o botão "avance" dos ratos teleguiados e pelojeito também o nosso funciona dando uma amostra do prazer que estápor vir, se somente os bichinhos se mexerem. Igualzinho àquela lendáriacenoura pendurada defronte dos olhos da mula empacada. Vai, muliiiinha...vai, muliiiinha...

Maio de 2002

Fonte: Talwar, S. K., Xu, S., Hawley, E. S., Weiss, S. A., Moxon, K. A., Chapin, J. K. Rat navigationguided by remote control. Nature, v. 417, p. 37 38, 2002.

Mas eu só usei uma vez

Estresse, genética, cidadania e a suscetibilidade ao vício

Seu amigo usou uma vez, duas, e largou quando quis. Você querexperimentar, e tenta fazer o mesmo mas não consegue, repetindo parasi mesmo que cada nova dose é a última. Por que logo você? Castigodivino? Dívidas não pagas da última encarnação? Ou biologia pura?

Não são necessários experimentos com animais para constatarque indivíduos diferentes têm suscetibilidades diferentes ao vício, masforam esses experimentos que primeiro indicaram de onde vêm asdiferenças. Ao tentarem deixar ratos de laboratório viciados em cocaínaou anfetamina para estudar os efeitos da droga, os cientistas ficaramintrigados com a heterogeneidade dos animais, já que alguns tornavam-se adeptos da auto-administração, o que indicava que eles ficavamprontamente viciados, mas os demais não. A diferença entre animaisresponsivos e não responsivos logo se tornou evidente quando ocomportamento dos animais foi analisado em mais detalhe: os animaisresponsivos, predispostos ao vício, eram aqueles que reagiam a um novoambiente com agitação e locomoção constantes, e buscavam novidade,variedade e estimulação emocional. Ao contrário, os não responsivos,que não se viciam, ficavam tranqüilos num canto. Até exploravam o novoambiente, mas sem ficar para lá e para cá feito os outros.

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Esses animais também diferem uns dos outros na química cerebral,como mostrou um estudo francês de 1996. Os ratos responsivos,predispostos ao vício, exibem uma hiper ativação dopaminérgicageneralizada do sistema de recompensa: o número de receptores paradopamina no núcleo acumbente é reduzido, provavelmente numa respostade tolerância aos níveis cronicamente elevados da substância tanto emcondições "normais" quanto em resposta à cocaína ou ao estresse de umapertão no rabo. A resposta ao estresse dos animais responsivos, aliás, éelevada como um todo: eles reagem de forma exagerada, e se colocadosem um ambiente estranho, por exemplo, produzem mais corticosteronaum dos hormônios do estresse e por mais tempo que os animais nãoresponsivos.

Está certo que um sistema dopaminérgico hiperativo por naturezados animais responsivos deve contribuir para a propensão ao vício, masa resposta exagerada ao estresse parece ser a chave aqui. Se a ação dacorticosterona for bloqueada, os animais previamente caracterizados comoresponsivos ou não responsivos não mais diferem na quantidade dedopamina liberada no núcleo acumbente em resposta ao estresse. E sema ação da corticosterona, bloqueada quimicamente ou eliminada pelaremoção cirúrgica das glândulas adrenais, os animais mesmo os antes"responsivos" resistem impávidos à atração da cocaína, e não ficam seauto-administrando a droga. E não é porque fiquem burrinhos, ou algo dotipo: eles continuam perfeitamente capazes de apertar horas a fio a mesmaalavanca da gaiola se o resultado, em vez de injeção de cocaína, foraparecer um pedaço de ração.

Esses e outros experimentos nos quais o animal era exposto adiferentes níveis de estresse antes da auto-administração de cocaínaindicaram ao neurocientista Nick Goeders, da Universidade do Estado daLouisiana, nos EUA, que a auto-administração de cocaína só acontecese a corticosterona circulante no sangue ultrapassar um certo valor limite.Ou seja: sem estresse não há formação de vício por alguma razão, océrebro usa a presença dos hormônios do estresse como condição sinequa non para se deixar viciar.

E não, você não estará seguro se deixar para usar a droga quandoestiver se sentido calminho e desestressado. Como se a danadaantecipasse essa possibilidade, a própria cocaína se encarrega de ativaro eixo hipotálamo pituitário adrenal, disparando a produção de hormôniosde estresse, dentre eles a corticosterona que, além de ser necessária àformação do vício, ainda aumenta os efeitos da droga.

Além do mais, o estresse social também tem influência importante.Em 1995, um estudo francês demonstrou que ratos submetidos à agressãode outros ratos e derrotados apenas quatro vezes ao longo de uma semanabuscavam se auto-injetar quantidades maiores de cocaína do que animaisnão expostos, machos ou fêmeas.

E recentemente, em 2002, um estudo da Universidade WakeForest, nos EUA, demonstrou que a interação social é suficiente paramodificar a disponibilidade de receptores de dopamina no sistema derecompensa do cérebro de macacos, ao mesmo tempo em que uns setornam mais propensos ao vício, e outros, menos. Enquanto eramhospedados individualmente, 20 macacos tinham quantidadessemelhantes do receptor D2 para dopamina no sistema de recompensa,avaliadas pela ligação de uma substância radioativa no cérebro detectadapor tomografia de emissão de pósitrons.

Três meses após serem redistribuídos em grupos de quatro porjaula, o comportamento dos macacos havia mudado visivelmente. Em

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cada grupo, um dos animais havia se tornado claramente dominante,agredindo e submetendo os demais, e recebendo privilégios como serpenteado com uma freqüência três vezes maior que os outros. O animaldominante passou a gozar de 20% mais receptores para dopamina nosistema de recompensa do cérebro do que antes, e também mais do queos outros três subordinados.

E mais: os animais dominantes pareciam ter se tornado resistentesà atração da cocaína. Num teste de auto-estimulação, em que os animaistinham o controle de injeções de cocaína diretamente na veia, aquelesque se subordinaram ao dominante se auto-aplicavam cocaína repetidasvezes mas o dominante não se injetava mais vezes do que quando ainjeção continha apenas soro fisiológico.

Como nos ratos, os macacos que se tornaram subordinados epropensos a usar cocaína eram aqueles responsivos, que anteriormenteexibiam agitação locomotora em suas jaulas individuais. Ao contrário dosratos, no entanto, os animais que iriam se tornar dominantesposteriormente, embora distinguíveis pelo baixo grau de locomoção najaula individual, não diferiam então dos demais quanto ao número dereceptores de dopamina disponíveis. Na opinião dos pesquisadores,baseados em evidências de estudos anteriores, foi o alojamento individualque colocou todos no mesmo barco de hiperatividade dopaminérgica,apesar das diferenças locomotoras permanecerem evidentes. Por trásdessa sugestão está também o fato de que, quando primatas sãoencarcerados individualmente, praticamente todos se tornam dependentesde cocaína se tiverem a oportunidade, um dos resultados de um sistemadopaminérgico hiperativo.

A diferença que a interação social faz, por conseguinte, seriapermitir aos macacos que se tornam dominantes que seu sistemadopaminérgico volte ao normal, presumivelmente à medida que o animalassume o controle do seu ambiente, do seu direito de ir e vir, de suasfontes de comida e sexo. E assumindo o controle, o "prêmio" por tabela étornar-se também menos propenso ao vício. Pena foi os pesquisadoresnão terem contado o que acontecia com os hormônios do estresse nosmacacos em sociedade. Seria de se esperar que os que se tornaramdominantes, e resistentes ao vício, também tivessem uma respostareduzida ao estresse.

Taí. Assegura-se ao indivíduo o controle da sua própria vida, odireito de não ser agredido ou estressado de outras maneiras, comida avontade, diversão, e de quebra ele ainda se tornará menos propenso aovício. Olha que coisa mais linda: restaurar a cidadania funciona até pararatos e macacos...

Janeiro de 2003

Fontes:Dellu, F., Piazza, P. V., Mayo, W., Le Moal, M., Simon, H. Novelty seeking in rats biobehavioralcharacteristics and possible relationship with the sensation seeking trait in man. Neuropsychobiology,v. 34, p. 136-145, 1996.Goeders, N. E. Stress and cocaine addiction. Journal of Phármacology and ExperimentalTherapeutics, v. 301, p. 785 789, 2002.Haney, M., Maccari, S., Le Moal, M., Simon, H., Piazza, P. V. Social stress increases the acquisitionof cocaine self administration in male and female rats. Brain Research, v. 698, p. 46-52, 1995.Rouge Pont, F., Deroche, V., Le Moal, M., Piazza, P. V. Individual differences in stress induceddopamine release in the nucleus accumbens are influenced by corticosterone. European Journal ofNeuroscience, v. 10, p. 3903-3907, 1998.

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O quinto elemento: o gosto do cérebro

O injustiçado glutamato já está na sua comida, e muito mais doque você pensa!

Essa história de existirem apenas quatro gostos básicos semprefoi contra a impressão de que sentimos mais sabores do que isso. Defato, os japoneses bem que sabiam, há quase cem anos, que existe umquinto gosto, além dos tradicionais doce, salgado, azedo e amargo. Umgosto tão especial que o nome em japonês, de difícil tradução, acabouvingando também em outras línguas: é o gosto "umami", que podesignificar tanto "delicioso" como "pungente", "saboroso", "essencial" ou"de carne".

Mas existe uma tradução mais simples. Trata se do gosto doglutamato, um sal encontrado nas prateleiras dos supermercados e nasmesas dos restaurantes orientais, vendido como Aji no moto ou Sazon, eadicionado ao tempero de macarrão instantâneo e a salgadinhos em geral.E presente naturalmente, também, no molho de soja e em vários alimentoscomo queijo parmesão, tomate, leite, atum, frutos do mar e... cérebro.

Sim, o cérebro não só é comestível (as versões bovina e ovinasão encontradas no seu açougue favorito sob o nome pouco convidativode "miolos", iguaria aliás muito apreciada pelos franceses), como tambémé um dos alimentos que mais contêm glutamato. Por uma razão muitosimples: o glutamato o mesmo glutamato do Aji-no moto é o principalneurotransmissor do cérebro, a moeda mais usada na troca de sinaisentre neurônios.

Alimento Glutamato livre (mg) Glutamato em proteínas (mg)

Caldo de carne 8.700* ?

Sopa de pacote 3.780* ?

Alga marinha Kelp 2.240 ?

Molhos prontos 2.060* ?

Queijo parmesão 1.200 9.800

Batata-frita de pacote 910 ?

Hambúrguer pronto 560* ?

Cogumelos em lata 240* ?

Ervilha 200 5.600

Cérebro (miolos) 200 ?

Tomate 140 240

Milho 130 1.800

Batata 100 270

Espinafre 40 290

Galinha 45 3.300

Cenoura 35 200

Bife 35 2.800

Porco 25 2.300

Ovo 25 1.600

Leite humano 22 ?

Cebola 20 210

Cordeiro 20 2.700

Salmão 20 2.200

Bacalhau 10 2.100

Leite de vaca 2 ?

Confira na tabela aquantidade de glutamato livre econjugado em proteínas por100g de alimento. O glutamatolivre produz na boca a sensaçãoinstantânea do sabor umami,mas o glutamato preso emproteínas somente é liberado nointestino, durante a digestão.(Valores referentes a glutamatoacrescentado artificialmente aoalimento estão indicados com*.)

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Com tanto glutamato nas proteínas, dá para imaginar quecomer glutamato adicionado não deve fazer mal. De fato, o queentra livre ou é extraído das proteínas é metabolizado em substânciasainda menores. Não entra glutamato direto no cérebro, por exemplo.Nem precisa: assim como o resto do corpo, ele sabe fazer o seupróprio. Aliás, há tanto glutamato entrando normalmente que o corpoexcreta 16g por dia pelas fezes, pela urina, e com a perda de pele.Na verdade, muito mais grave que o glutamato é o sódio que oacompanha nas versões do supermercado, esse sim problemáticopara quem tem hipertensão, por exemplo. E não pense que a"síndrome do restaurante chinês" é culpa do glutamato!

Foi o japonês Kikunae Ikeda, da Universidade Imperial de Tóquio,quem no início do século 20 caracterizou o gosto umami como um saborinimitável por qualquer combinação dos quatro sabores básicos. Ikedaobservou que o tofu, uma coalhada de feijão de soja muito sem graçapara os ocidentais mas apreciada pelos japoneses, ficava mais saborosoquando ingerido ao mesmo tempo com uma colher de caldo de kelp, umaalga marinha comum na culinária oriental. A partir da análise bioquímicado caldo de Kelp e de outros alimentos ricos neste sabor, como o atum eo caldo de carne, Ikeda determinou que o elemento responsável pelosabor umami é o glutamato, o mais comum dos vinte aminoácidos, osbloquinhos que compõem as proteínas essenciais a vida humana.

Segundo a lógica de sinalizar a presença na boca de nutrientesnecessários (açúcar, sais minerais e ácidos) ou substâncias tóxicas eindesejáveis (em geral amargas), faz sentido existir um gosto básicosensível ao componente mais comum das proteínas. O glutamato inseridonas proteínas, no entanto, não provoca o sabor umami. Mas com o calordo cozimento, as proteínas se partem em pedaços menores, liberando-oe com ele o sabor "rico" do caldo de carne, por exemplo, carregado deglutamato livre.

Testes de percepção já tinham mais do que comprovado que oglutamato provoca um gosto específico no paladar de seres humanos ealiás, no de ratos também, mas para reconhecer definitivamente o statusdo umami como o quinto gosto básico faltava encontrar um receptorexclusivamente seu: uma proteína na superfície de células da língua queservisse de "encaixe" para o glutamato, para que em seguida umamensagem acusando sua presença fosse enviada ao cérebro. Por ironia,foi justamente o "receptor umami" o último gosto reconhecido, o primeirodos receptores gustativos a ter seu gene descoberto: até o ano de 2000,os outros gostos, considerados básicos por unanimidade, ainda não tinhamreceptores identificados.

O fato de o glutamato também ser usado como neurotransmissorsugeria que talvez um dos próprios receptores de glutamato do cérebrofosse usado também na língua. No entanto, o que poderia tornar a vidados pesquisadores mais fácil, considerando que a seqüência dos genespara esses receptores cerebrais já era conhecida, levantava dois novosproblemas. Primeiro, os receptores de glutamato conhecidos sãoextremamente sensíveis, de modo que se eles agissem também nasuperfície da língua, qualquer grãozinho de Aji no moto provocaria umsabor fortíssimo o que não é o caso. E, segundo, o glutamato também éusado dentro da língua como um neurotransmissor; portanto, já existemreceptores no local dedicados a transmissão de sinais para o cérebro, enão diretamente a detecção de glutamato na comida. Como diferenciarqual é o receptor do glutamato dos neurônios e qual o do glutamato dacomida?

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A natureza ajudou. O receptor umami é semelhante a um daquelesreceptores de glutamato do cérebro, sim. Mas falta-lhe um pedaço, e issoo torna ao mesmo tempo imprestável para a transmissão de sinais para océrebro, mas simplesmente perfeito para detectar as altas concentraçõesde glutamato livre que passam pela boca. Ou seja: é inconfundível.

A equipe do americano Stephen Roper, da Escola de Medicina daUniversidade de Miami, já tinha indicações de que um determinado tipode receptor para glutamato do cérebro estaria envolvido na gustação doumami. Testes em seu laboratório para detectar vários tipos de receptoresde glutamato na língua de ratos haviam mostrado a presença de umaversão do receptor chamada mGluR4 (Glu de Glutamato, R de Receptor,4 de Quarta versão identificada, e m de... metabotrópico, maneira curtade dizer "receptor que requer o metabolismo de alguns intermediáriosdentro da célula para surtir seu efeito", ao contrário dos outros receptoresde glutamato, que modificam diretamente a carga elétrica da célula). Alémdisso, drogas que ativam especificamente o mGluR4 também têm "gostode glutamato", enquanto outras drogas que ativam outros tipos dereceptores para glutamato não têm gosto.

No entanto, continuava a incompatibilidade da concentraçãonecessária para "ligar" o receptor. Para resolver a questão, NirupaChaudhari e Ana Marie Landin, no laboratório de Roper, fizeram umpreparado de línguas de rato (parece até receita de bruxaria!) e aplicaramtécnicas de biologia molecular para extrair dali seqüências de DNAsemelhantes a do mGluR4. O seqüenciamento completo, publicado narevista Nature Neuroscience, em fevereiro de 2000, mostrou que a versãogustativa do receptor é truncada: falta justamente parte da região que ficaexposta na boca, pescando glutamatos livres na comida. E o que é melhor:embora truncada, essa versão ainda gruda glutamato em concentraçõescompatíveis com a sensibilidade tanto de ratos como de humanos.

Falando em ratos, eles não são os únicos privilegiados, além dohomem, a sentir o gosto do glutamato. Até as bactérias possuem umreceptor parecido, que gruda aminoácidos em geral o que dá uma idéiada importância do receptor, presente desde nesses serezinhosmicroscópicos até no todo poderoso homem, e também sugere de ondesurgiu, ao longo da evolução, a família de receptores de glutamato.

A identificação do receptor umami confirma de vez seu status de quintogosto básico. Mas outro mistério permanece. Embora o glutamato sozinhoconfira a comida o sabor umami, seu efeito é potencializado pela presençade nucleotídeos parecidos com os que compõem o material genético (Vocêjá parou para pensar que come DNA todos os dias? E, leite, carnes e vegetais,como tudo o que é vivo e cheio de células, vêm cheios de DNA, além dostradicionais açúcares, proteínas e sais minerais. Só que ninguém lembra!).Quem conferir a embalagem dos salgadinhos ou Miojo verá: lá na lista dosingredientes estão o inositol monofosfato e a guanosina monofosfato. Talvezesses nucleotídeos interajam com outros receptores, que mais tarde temseus sinais para o cérebro combinados aos do receptor umami; ou talvezeles se grudem ao mesmo tempo no mesmo receptor, ou até antes, facilitandoa deteção do glutamato. Agora que o receptor umami foi identificado, todasessas possibilidades poderão ser testadas diretamente.

Fica faltando apenas conferir se o cérebro, com todo seu glutamatolivre, tem mesmo sabor umami. Eu confesso que nunca tive coragem deencarar um ensopadinho de miolos, e mesmo em nome da ciência o pratome parece um tanto nojento, para não dizer fedido. Mas gosto não sediscute. Alguém se habilita?

Outubro de 2001

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Receita para ver o DNA que você come

Você pode brincar de bioquímico em sua própria cozinha a "ver" oDNA que você come disfarçado na cebola. É só seguir a receita. Cientistasem seus laboratórios também seguem receitas, com uma única diferença:para parecer mais sério, suas receitas são chamadas de "protocolo"...Vamos lá:

Você vai precisar de:

• uma cebola média

• uma faca de cozinha

• dois copos pequenos (de geléia, por exemplo)

• uma panela com três dedos de água

• água filtrada

• sal de cozinha

• álcool etílico a 95%, gelado (o álcool comum, saído do seu freezer)

• um bastão de vidro, daqueles de mexer bebidas, ou um pauzinhode madeira

• um coador de papel (daqueles de passar café)

• uma tigela cheia de gelo moído

• detergente de cozinha

Procedimento:

1. Pique a cebola em pedaços tão pequenos quanto seus dotescom uma faca e sua paciência permitirem. Não vale passar no liquidificador!Cortando a cebola você está destruindo milhões de células, e abrindocaminho para que a mistura de detergente que você vai usar chegue atéo núcleo delas, onde está o DNA (a mastigação, e depois os ácidos doestômago, fazem isso por você com a cebola que você come).

2. Coloque um dedo de água em um copo, acrescente 2 colheres(de sopa) de detergente, e uma pitada de sal. Mexa bem até dissolvercompletamente.

3. A esta mistura acrescente a cebola picada, leve copo e tudo aobanho maria por cerca de 15 minutos. O detergente "come" a membranaque envolve as células e seus núcleos, liberando o DNA e um mundo deproteínas e outras guloseimas no caldo. O calor ajuda o processo, etambém inativa proteínas da própria cebola que destroem o DNA (e sónão o fazem naturalmente porque, na ausência do seu detergente decozinha, o DNA fica bem protegido no núcleo, a salvo dessas proteínas).

4. Retire a gororoba do banho maria e resfrie tudo rapidamente,colocando o copo numa tigela de gelo moído por uns 5 minutos. Na faltade calor para segurar aquela proteína que vai tentar picar seu DNA empedacinhos, o frio resolve. Sim, em caso de preguiça, cubos de gelotambém servem, mas moer o gelo pode ser uma atividade mais divertidado que você pensa: junte cubos num pano de prato, torça o pano paraficar bem fechadinho, a bata com força no chão da cozinha. Boaoportunidade para botar a raiva para fora!

5. Passe a mistura no coador de café e recolha o líquido filtradoem um copo limpo. O detergente fica para trás, agarrado em proteínas eoutras substâncias que estavam dentro da cebola, enquanto na soluçãoque atravessa o filtro estão o DNA e o sal de cozinha, mesmo que vocêainda não o veja (grande parte da biologia molecular acontece assim,

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com soluções contendo coisas interessantíssimas que ninguém vê. Comovocê pode imaginar, pode ser frustrante...).

6. Adicione ao filtrado um dedo do seu álcool estupidamente gelado,deixando-o escorrer devagar pela borda como se você estivesse servindouma cerveja sem colarinho. O álcool ficará pousado sobre a água, semse misturar.

7. O que você vai fazer agora é pescar o DNA. Mergulhe o bastãono fundo do copo e, com movimentos circulares lentos, vá misturando oálcool com a água. Claro que você não vai conseguir, mas ao colocar asolução aquosa em contato com o álcool, no qual o DNA não se dissolve,você verá fios esbranquiçados acumularem-se ao redor do seu bastão:são longos fios de DNA de cebola, prontos para você fazer deles o quequiser. Só não é recomendável comê los, por causa do detergente. Mas acebola, com todo o seu DNA, é perfeitamente segura...

Fontes:Chaudad, N., Landin, A. M., Roper, S. D. A metabotropic glutamate receptor variant functions as ataste receptor. Nature Neuroscience, v. 3, p. 113 119, 2000.Chaudari, N., Yang, H., Lamp, C., Delay, E., Cantford, C., Than, T., Roper, S. The taste of monosodiumglutamate: membrane receptors in taste buds. Joumal of Neuroscience, v. 16, p. 3817-3826, 1996.Ikeda, K. On a new seasoning (em japones). Journal of the Tokyo Chemical Society, v. 30, p. 820-836, 1909.Emsley, J., Fell, P. Foi alguma coisa que você comeu? Intolerância alimentar: causas e prevenções.Rio de Janeiro: Campus, 2001.

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Material de apoio da atividadeO aprendizado é capaz de causarmudanças estruturais (morfológicas)no córtex cerebral?

Seu cérebro é plástico?

As interações organismo-ambiente vivenciadas por um indivíduodeterminam fundamentalmente a topografia e a função de suas respostas.As relações entre os eventos ambientais e as respostas do organismopodem estabelecer contingências, ou seja, relações condicionais entreclasses de comportamento e as classes de estímulos que lhes sãoantecedentes ou conseqüentes.

Em cada espécie, os indivíduos têm um repertório comportamentalque, de um lado, resulta da interação entre as contingências filogenéticase ontogenéticas. As contingências filogenéticas atuaram durante a evoluçãoe selecionaram classes de comportamento favoráveis à sobrevivênciadessa espécie; as contingências ontogenéticas foram estabelecidas pelasinterações particulares desse organismo com o seu ambiente, desde oinício do seu desenvolvimento e selecionaram as classes de respostaseficazes para a adaptação a um ambiente que muda constantemente.Neste sentido, pode-se afirmar que o comportamento de um indivíduo éproduto de sua história filogenética, ontogenética e cultural (Bussab, 2000;Catania, 1999; Skinner, 1981).

As mesmas pressões evolutivas que determinaram as mudançasna topografia e na função das reações do indivíduo ao ambiente tambémdeterminaram alterações na forma, no tamanho e nas funções do sistemanervoso. O processo evolutivo resultou em cérebros com uma abundânciade circuitos neurais que podem ser modificados pela experiência (Carlson,2000). Assim, a interação sistema nervoso-ambiente resulta na organizaçãode comportamentos simples ou complexos que modificam tanto o ambientecomo o próprio sistema nervoso. Essa capacidade denota a plasticidadedo sistema nervoso, ou seja, a plasticidade neural que está presente emtodas as etapas da ontogenia, inclusive na fase adulta e durante oenvelhecimento. A capacidade de modificação do sistema nervoso emfunção de suas experiências, tanto em indivíduos jovens como em adultos,foi reconhecida apenas nas últimas décadas (Rosenzweig, 1996).

• Comportamento e Plasticidade Neural

• Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais

• Alterações no Sistema Nervoso e experiência

• Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural

• Referências

• Material complementar: Sei onde coçar, texto do livro Fantasmasno Cérebro, de Vilayanur Ramachandran.

Comportamento e Plasticidade Neural

No estudo do comportamento, um dos princípios básicos afirmaque as propriedades funcionais do comportamento são determinadas pelasrelações, simples ou complexas, entre os estímulos e as respostas de umorganismo (Skinner, 1981). São essas relações que definem as

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contingências de reforço que alteram a freqüência de classes de respostas.Os objetivos primordiais da análise do comportamento relacionam-se coma identificação, a descrição e a programação de relações condicionaisque estabelecem e controlam a probabilidade de classes de comportamento(Baum, 1999; Catania, 1999).

As pesquisas orientadas por tais objetivos permitiram o acúmulode um conjunto de dados e procedimentos com sólida fundamentaçãoexperimental e conceitual (Catania, 1999), cuja importância abrange nãoapenas as questões investigadas pela Psicologia, mas também questõesde outras disciplinas científicas. Para citarmos um exemplo, a metodologiae os conceitos derivados da análise do comportamento têm fornecido apossibilidade de linhas de base comportamentais adequadas para asinvestigações dos mecanismos biológicos subjacentes ao comportamento.Assim, a validade do conhecimento científico sobre o comportamentotranscende os limites da Psicologia como disciplina científica específica eintegra-se a áreas de conhecimento com caráter multidisciplinar. Nessesentido é que se desenvolveram as disciplinas denominadasPsicofarmacologia, Psicobiologia e Psicofisiologia

Mais recentemente, o desenvolvimento científico dessas e de outrasáreas propiciaram o surgimento de uma nova disciplina científicaintegradora de metodologias e conceitos neurofisiológicos, psicológicos,farmacológicos, bioquímicos, anatômicos e genéticos: a neurociência. Oseu princípio básico é que o ambiente físico e social determina a atividadede células neurais, cuja função, por sua vez, determina o comportamento(Kandel, Schwartz & Jessell, 1995; Strumwasser, 1994). O ambientefornece estímulos/informações que são captados por receptores sensoriaise convertidos em impulsos elétricos, que são analisados e utilizados pelosistema nervoso central para o controle de respostas vegetativas, motorase cognitivas. Essas respostas constituem os padrões comportamentaisque atuam sobre e modificam esse ambiente.

Do mesmo modo que o comportamento altera a probabilidade deoutros comportamentos (Catania, 1999), a atividade neural altera aprobabilidade das funções neurais. Uma das evidências para este fato éque tanto as situações de mera exposição à estimulação ambiental quantoàs situações de treinamento sistemático em aprendizagem resultam emalterações no comportamento e nos circuitos neurais (Rosenzweig, 1996).Ou seja, subjacentes aos processos comportamentais de aprendizageme de memória encontram-se as alterações funcionais e morfológicas queocorrem no sistema nervoso e que caracterizam a plasticidade neural(Cuello, 1997). Desse modo, verifica-se que os processos comportamentaise os processos de plasticidade neural possuem relações mais estreitas ecomplexas do que se supôs durante muito tempo.

Em resumo, considera-se que tal como o ambiente diferencia emodela a forma e função das respostas de um organismo, a interaçãoorganismo-ambiente também diferencia e molda circuitos e redes neurais.Cada indivíduo tem um padrão comportamental característico, resultantede sua história pessoal de reforço, assim como tem um sistema nervosocom características próprias, resultantes também de sua história deinteração com o ambiente externo. Essas características do sistemanervoso atribuem uma individualidade neural ao indivíduo que se relaciona,conseqüentemente, com a sua individualidade comportamental (Kandel &Hawkins, 1992).

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Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais

Numa forma abrangente, plasticidade neural pode ser definida comouma mudança adaptativa na estrutura e nas funções do sistema nervoso,que ocorre em qualquer estágio da ontogenia, como função de interaçõescom o ambiente interno ou externo ou, ainda, como resultado de injúrias, detraumatismos ou de lesões que afetam o ambiente neural (Phelps, 1990).

De acordo com Pia (1985), o termo plasticidade foi introduzido porvolta de 1930 por Albrecht Bethe, um fisiologista alemão. Plasticidade seriaa capacidade do organismo em adaptar-se às mudanças ambientaisexternas e internas, graças à ação sinérgica de diferentes órgãos,coordenados pelo sistema nervoso central (SNC). Os trabalhos pioneirosde Santiago Ramón y Cajal e Eugênio Tanzi (citados por Rosenzweig,1996) sobre regeneração neural apresentam relações mais diretas entreplasticidade e o sistema nervoso. Como assinala Rosenzweig (1996), Tanzi,propôs a hipótese de que durante a aprendizagem ocorreriam mudançasplásticas em junções neuronais enquanto que Cajal aventou a possibilidadede que o exercício mental poderia causar maior crescimento deramificações neurais.

Na literatura recente, os estudos sobre a plasticidade do sistemanervoso podem ser classificados como pertencentes à categoria daquelesque manipulam o ambiente e analisam as mudanças morfológicas e/oufuncionais em circuitos neurais, denominados de estudos de plasticidadeneural ou à categoria de estudos que enfatizam as mudançascomportamentais após traumatismos ou lesão do sistema nervoso,denominados de recuperação de função (Kolb & Whishaw, 1989). Nestescasos, agudamente, ocorrem mudanças no tecido nervoso que têm comofunção a manutenção da homeostasia do organismo, além de promover acicatrização e o reparo tecidual (Finger & Almli, 1982; Kolb & Whishaw,1989). Ao mesmo tempo, pode haver um período em que se observa umaausência ou diminuição na freqüência de uma ou mais classes decomportamentos. Assim, o termo recuperação de função refere-se àsituação em que se observa aumento na freqüência ou magnitude de umcomportamento após um período de freqüência ou magnitude zero, comoconseqüência de trauma, intervenção cirúrgica ou lesão do sistemanervoso.

As questões relativas à plasticidade neural têm sido analisadastanto ao nível molecular, focalizando mecanismos e processos celulares,como também ao nível de sistemas neurais e comportamentais. Dentreessas questões, destacam-se as referentes ao desenvolvimento neural, àrecuperação de função e à reorganização morfofuncional de circuitosneurais correlacionados com a aprendizagem, consolidação de memóriaou com lesões neurais (Morris, Kandel & Squire, 1988; Weinberger &Diamond, 1987). Na investigação das relações entre plasticidade neural ecomportamento, verificam-se diferentes níveis de análise comportamental,incluindo desde a análise de respostas específicas que são aprendidas ememorizadas, até a avaliação de padrões comportamentais maiscomplexos, envolvidos na recuperação de função (Phelps, 1990;Rosenzweig, 1996; Silva, Giese, Federov, Frankland & Kogan, 1998).

Alterações no Sistema Nervoso e experiência

O interesse pelos efeitos da experiência, do treino e do exercíciosobre o cérebro já aparece em relatos do século XVIII. Experimentos deBonnet e Malacarne (Bonnet 1779-1783; conforme citado por Rosenzweig,1996) indicaram que os cérebros de animais que recebiam treinamento

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sistemático durante anos tinham um cerebelo mais desenvolvido, commaior número de circunvoluções. Contudo, os conceitos e proposiçõesrelacionando plasticidade do SNC e comportamento, somente foramprovados experimentalmente a partir da década de 1960. Isso se deve aum grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley,que iniciou uma profícua linha de investigações cujos procedimentos equestões experimentais, embora sem que soubessem na época, comoafirma Rosenzweig (1996), eram similares àqueles de seus desconhecidospredecessores.

O procedimento básico de Rosenzweig e colaboradores(Rosenzweig, Krech, Bennett & Diamond, 1962) utilizou o arranjo degaiolas-viveiro diferentes daquelas comumente encontradas em biotérios,contendo animais em conjunto ou alojados individualmente. No arranjoambiental utilizado as gaiolas-viveiro eram maiores e ofereciam uma grandequantidade e variedade de estímulos, tais como objetos de formasdiferentes, espelhos, rodas de atividade, escadas, além de diferentespossibilidades para conseguir alimento. Observou-se, consistentemente,que, em diferentes idades, a interação com esses ambientes ricos emestimulação resulta em alterações específicas do SNC. Entre essasalterações estavam incluídos o aumento na espessura das camadas docórtex visual, no tamanho de corpos neuronais e de núcleos dos corposneuronais, no número de sinapses e na área das zonas de contato sináptico,no número de dendritos e de espinas dendríticas, no volume e no pesocerebral, além de alterações em níveis de neurotransmissores. Em resumo,todas as características morfológicas e funcionais de áreas corticaissofreram alterações importantes em função da mera exposição e dainteração com ambientes que fornecem diversidade de estímulos(Rosenzweig, 1996).

A manipulação das condições de estímulo, restringindo-as, comonos estudos de privação sensorial (Hubel & Wiesel, 1965), ou otimizando-as, como nos estudos de exposição a ambientes considerados ricos emestimulação (Krech, Rosenzweig & Bennett, 1960; Rosenzweig, 1996)constitui uma das abordagens clássicas no estudo da plasticidade neural.Esses estudos mostraram novas e interessantes perspectivas para aanálise dos efeitos da experiência sobre o sistema nervoso.

Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural

De um modo geral, pode-se afirmar que a análise da plasticidadeneural e de recuperação de função, em suas diferentes abordagens, temsido realizada por meio de investigações que utilizam métodos de análisedo comportamento aprendido associados à metodologia neurobiológica,principalmente à de lesão e/ou estimulação neural. O desenvolvimentohistórico desse conhecimento biomédico tem sido claramente ligado aouso de animais, principalmente mamíferos e aves, na pesquisa básicasobre aspectos plásticos do SNC e processos biológicos relacionados comos comportamentos, aprendizagem e memória.

As últimas quatro décadas do século XX culminaram com achamada década do cérebro nos anos 1990 e constituem um períodofascinante no que concerne à identificação de processos de plasticidadeneural, à busca de mecanismos subjacentes a esses processos e àsinterrelações com as mudanças comportamentais (Rosenzweig, 1996;Strumwasser, 1994). Os avanços recentes no conhecimento da biologiamolecular têm levado a novas perspectivas em termos de controle demecanismos de plasticidade neural. O próprio conceito de sinapse sofreuuma modificação na medida em que passou a ser considerado como um

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processo de comunicação neuronal, bidirecional e automodificável (Jessell& Kandel, 1993). As interações sinápticas entre neurônios envolveminteração elétrica e química complexas, que dependem do meio extracelulare de sistemas especiais de receptores celulares (Izquierdo, 1992; Izquierdo& cols, 1999). A ativação desses mecanismos receptores desencadeiamsistemas de sinalização intracelular, envolvendo segundo-mensageiros quepodem regular canais iônicos, coordenar mecanismos de ativação e defosforilação de proteínas e, ainda, modificar proteínas regulatórias datranscrição gênica. A ativação de mecanismos de transcrição gênica e deregulação de síntese protéica vão resultar em maior disponibilidade deproteínas que serão utilizadas como o material básico da célula. Assim,maior síntese proteica pode garantir mudanças estruturais de longa duraçãonas sinapses, contribuindo tanto para a função e comunicação sináptica,quanto para a organização funcional de circuitos locais. Sem dúvidaalguma, as aplicações e implicações de todo esse conhecimento constituemdesafios para todos aqueles interessados em comportamento e sistemanervoso.

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Material complementar

Sei onde coçar

Texto do livro Fantasmas no Cérebro, de Vilayanur Ramachandran.

Tom Sorenson se lembra nitidamente das horripilantescircunstâncias que levaram à perda de seu braço. Depois de jogar futebol,estava dirigindo de volta para casa, cansado e faminto, quando um carrona faixa oposta deu uma guinada na frente dele. Os freios guincharam, ocarro de Tom rodopiou fora de controle e ele foi ejetado do assento elançado contra a fábrica de gelo à margem da rodovia. Enquanto eraarremessado pelo ar, Tom olhou para trás e viu que sua mão ainda estavano carro, segurando a almofada do assento separada de seu corpo comoum adereço num filme de terror de Freddy Krueger. Em conseqüênciadesse terrível acidente, Tom perdeu a parte do braço esquerdo logo abaixodo cotovelo. Tinha 17 anos, faltando apenas três meses para terminar oEnsino Médio.

Nas semanas seguintes, embora sabendo ter perdido o braço, Tomainda podia sentir sua presença espectral abaixo do cotovelo. Podia mexercada "dedo", "estender o braço" e "pegar" objetos que estavam ao alcanceda mão. Realmente, seu braço fantasma parecia capaz de fazer tudo queo braço real tinha feito automaticamente, como aparar golpes, evitar quedasou dar tapinhas carinhosos nas costas do irmãozinho. Como Tom eracanhoto, seu fantasma sempre queria pegar o telefone quando este tocava.

Tom estava louco. A impressão de que o braço perdido ainda estavaali é um exemplo clássico de membro fantasma, um braço ou perna que

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subsiste indefinidamente nas mentes de pacientes muito tempo depois deter sido perdido, num acidente ou amputado por um cirurgião. Algunsdespertam da anestesia e se mostram incrédulos quando lhe dizem queseu braço teve de ser sacrificado, porque ainda sentem nitidamente suapresença. Só quando olham por baixo dos lençóis é que chegam a chocanteconstatação de que o membro realmente se foi. Além disso, alguns dessespacientes experimentam dores terríveis no braço, mão ou dedo fantasma,a ponto de pensar em suicídio. A dor não somente é implacável comotambém intratável; ninguém tem a menor idéia de como surge ou de comoenfrentá-la.

Como médico, eu sabia que a dor em membro fantasma representaum problema: clínico sério. A dor crônica num membro real, como a causadapor artrite nas articulações ou a dor nas costas, já é de tratamento difícil,mas como tratar a dor num membro que não existe? Como cientista, eutambém tinha curiosidade para saber, em primeiro lugar, por que ofenômeno ocorre: por que um braço, persiste na mente do paciente muitotempo depois de ser removido? Por que a mente simplesmente não aceitaa perda e "remodela" a imagem do corpo? Sem dúvida, isto acontece emalguns pacientes, mas geralmente leva anos ou décadas. Por que décadas,por que não apenas uma semana ou um dia? Percebi que um estudodeste fenômeno poderia não só nos ajudar a compreender a questão decomo o cérebro enfrenta uma perda repentina e importante, mas tambémcontribuir para abordar o debate mais fundamental sobre natureza versuscriação até que ponto a imagem do nosso corpo, assim como outrosaspectos de nossas mentes, é determinada pelos genes e até que pontoé modificada pela experiência.

A persistência de sensação em membros muito tempo depois daamputação já fora observada no século XVI pelo cirurgião francês AmbroiseParé, e não é surpresa que exista um minucioso folclore em torno destefenômeno. Depois que perdeu o braço direito num malogrado ataque aSanta Cruz de Tenerife, Lord Nelson sofreu dores terríveis no membrofantasma, inclusive a inconfundível sensação de dedos se fincando napalma da mão inexistente. O surgimento dessas sensaçõesfantasmagóricas no membro perdido levou o Senhor dos Mares a proclamarque este fantasma era "uma prova direta da existência da alma". Pois seum braço pode existir depois de retirado, por que a pessoa inteira nãopode sobreviver à aniquilação física do corpo? É uma prova, afirmavaLord Nelson, de que o espírito continuava existindo muito tempo depoisde ter se livrado de sua carcaça.

O eminente médico da Filadélfia Silas Weir Mitchell cunhou aexpressão "membro fantasma" depois da Guerra Civil. Naquela época,anterior aos antibióticos, a gangrena era um resultado comum de ferimentose os cirurgiões serravam membros infectados de milhares de soldadosferidos. Estes voltavam para casa com fantasmas, provocando muitasespeculações sobre o que poderia causá-los. O próprio Weir Mitchell ficoutão surpreso com o fenômeno que, usando um pseudônimo, publicou oprimeiro artigo sobre o assunto numa revista popular chamada Lippincottsjournal, para não se arriscar a ser ridicularizado pelos colegas se odivulgasse numa publicação médica profissional. Pensando bem,fantasmas são um fenômeno mal assombrado.

Desde o tempo de Weir Mitchell tem havido todo tipo deespeculações sobre fantasmas, que vão do extraordinário ao ridículo.Recentemente, há 15 anos, um trabalho publicado no Canadian Journalof Psychiatry declarou que membros fantasmas são meramente o resultadoda racionalização do desejo. Os autores argumentavam que o pacientequer desesperadamente seu braço de volta e portanto sente um fantasma

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da mesma forma que uma pessoa pode ter sonhos recorrentes ou até ver"espíritos" de um pai falecido recentemente. Este argumento, comoveremos, é um completo absurdo.

Uma segunda e mais popular explicação para os fantasmas é queas extremidades esgarçadas e enroscadas dos nervos no coto (neuromas)que originalmente alimentavam a mão tendem a ficar inflamadas e irritadas,induzindo assim os centros superiores do cérebro a pensar que o membroperdido ainda está ali. Embora haja muitíssimos problemas com esta teoriada irritação dos nervos, é uma explicação simples e conveniente e poressa razão a maioria dos médicos ainda se apega a ela.

Os neurologistas do século XIX e início do XX eram astutosobservadores clínicos, e pode-se aprender muitas lições valiosas com aleitura desses relatos. Estranhamente, porém, eles não deram o óbviopasso seguinte de fazer experiências para descobrir o que poderia estaracontecendo nos cérebros desses pacientes; sua ciência era maisaristotélica do que galileana. Dado o imenso sucesso que se tem obtidocom o método experimental em quase todas as outras ciências, não estána hora de o importarmos para a neurologia?

Como a maioria dos médicos, fiquei intrigado com os fantasmasdesde a primeira vez que os encontrei e assim continuo desde então.Além de braços e pernas fantasmas - que são comuns entre amputados -também tenho encontrado mulheres com seios fantasmas apósmastectomia radical e até um paciente com um apêndice fantasma: acaracterística espasmódica da apendicite não diminuiu depois da remoçãocirúrgica, de tal modo que o paciente se recusava a acreditar que o cirurgiãoo tinha retirado! Quando estudante de medicina, eu ficava tão frustradoquanto os próprios pacientes, e os livros que consultava apenasaprofundavam o mistério. Li sobre um paciente que sentia ereçõesfantasmas depois de seu pênis ter sido amputado, uma mulher com cãibrasmenstruais após uma histerectomia e um senhor que tinha nariz e rostofantasmas depois que o nervo trigêmeo que enerva sua face fora avariadonum acidente.

Todas estas experiências clínicas permaneceram guardadas nomeu cérebro, adormecidas, até cerca de seis anos atrás, quando meuinteresse foi reaceso por um trabalho científico publicado em 1991 peloDr. Tim Pons, do Instituto Nacional de Saúde, trabalho que me impeliu aum rumo inteiramente novo de pesquisa e que posteriormente trouxe Toma meu laboratório. Mas, antes de continuar com esta parte da história,precisamos examinar atentamente a anatomia do cérebro particularmentecomo várias partes do corpo, como os membros, estão mapeadas no córtexcerebral, o grande revestimento convoluto da superfície externa do cérebro.Isto nos ajudará compreender o que Pons descobriu e, por sua vez, comoos membros fantasmas aparecem.

Durante as décadas de 1940 a 1950, o brilhante neurocirurgiãocanadense Wilder Penfield realizou amplas cirurgias de cérebro em pacientessob anestesia local (não há receptores de dor no cérebro, embora esta sejauma massa de tecido nervoso). Muitas vezes, grande parte do cérebro ficavaexposta durante a operação e Penfield aproveitava esta oportunidade parafazer experiências como nunca tinham sido tentadas antes. Estimulava regiõesespecíficas dos cérebros de pacientes com um eletrodo e simplesmente lhesperguntava o que sentiam. Todos os tipos de sensações, imagens e atélembranças, eram trazidos à tona pelo eletrodo, e as áreas do cérebro queeram responsáveis puderam ser mapeadas.

Entre outras coisas, Penfield descobriu uma estreita faixa que vaide alto a baixo em ambos os lados do cérebro onde seu eletrodo produzia

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sensações localizadas em várias partes do corpo. Na parte de cima docérebro, na fenda que separa os dois hemisférios, a estimulação elétricaprovocava sensações nos órgãos genitais. Estímulos ali perto despertavamsensações nos pés. Seguindo esta faixa do cérebro de cima para baixo,Penfield descobriu áreas que recebem sensações das pernas e do tronco,da mão (uma grande região com uma representação bem destacada dopolegar), da face, dos lábios e finalmente do tórax e da laringe. Este"homúnculo sensorial", como agora é chamado, forma uma representaçãoexageradamente distorcida do corpo na superfície do cérebro, com aspartes que são especialmente importantes ocupando áreasdesproporcionalmente grandes. Por exemplo, a área envolvida com oslábios ou com os dedos ocupa tanto espaço quanto à área envolvida comtodo o tronco do corpo. Presumivelmente é assim porque os lábios e dedossão altamente sensíveis ao toque e capazes de discriminação muitoapurada, enquanto o tronco é consideravelmente menos sensível, exigindomenos espaço cortical. Na maior parte, o mapa é bem ordenado, emboraesteja de cabeça para baixo: o pé é representado no alto e os braçosestendidos são na base. Contudo, depois de um cuidadoso exame, vocêverá que o mapa não é inteiramente contínuo. O rosto não está perto dopescoço, onde deveria, mas abaixo da mão. Os órgãos genitais, em vezde estarem entre as coxas, se localizam abaixo do pé.

Pontos da superfície do corpo que produziamsensações retardadas na mão fantasma (o braçoesquerdo do paciente tinha sido amputado dez anosantes do nosso teste). Observem o mapa completo detodos os dedos (etiquetados da 1 a 5) na face e umsegundo mapa na parte superior do braço. Ainformação sensorial destas duas nesgas de peleagora está aparentemente ativando o território damão no cérebro (ou no tálamo ou no córtex). Assim,quanto antes tais pontos são tocados, as sensaçõessão experimentadas como originadas da mão perdida.

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Estas áreas podem ser mapeadas ainda com maior precisão emoutros animais, particularmente macacos. O pesquisador introduz umacomprida e fina agulha de aço ou tungstênio no córtex somatossensóriodo macaco - a faixa de tecido cerebral descrita antes. Se a ponta da agulhachegar a ficar bem próxima do corpo celular de um neurônio e se esseneurônio está ativo, gerará minúsculas correntes elétricas, que sãocaptadas pelo eletrodo da agulha e amplificadas. O sinal pode ser exibidonum osciloscópio, possibilitando monitorar a atividade desse neurônio.

Por exemplo, se você introduzir um eletrodo no córtex somatossensóriodo macaco e tocar numa parte específica do seu corpo, a célula se excitará.Cada célula tem seu território na superfície do corpo, sua pequena nesga depele, por assim dizer a qual ela responde. Chamamos isso de campo receptivoda célula. Existe no cérebro um mapa do corpo inteiro, com cada metade docorpo mapeada no lado oposto do cérebro.

Embora sejam pacientes experimentais lógicos para se examinara estrutura e a função detalhadas das regiões sensoriais do cérebro, osanimais têm um problema óbvio: macacos não sabem falar. Portanto, nãopodem dizer ao experimentador, como faziam os pacientes do Penfield, oque estão sentindo. Assim, perde-se uma importante dimensão quandose usam animais nessas experiências

Mas, apesar dessas óbvias limitações, pode-se aprender muito,fazendo o tipo certo de experimento. Por exemplo, como já observamos,uma importante pergunta se refere ao problema natureza versus criação:será que estes mapas do corpo na superfície do cérebro são fixos, oupodem mudar com a experiência à medida que evoluímos de recém-nascidos para a infância, para a adolescência e para a idade adulta? Emesmo que os mapas já estejam lá ao nascermos, até que ponto podemser modificados no adulto?

Foram estas questões que levaram Tim Pons e seus colegas aembarcar na pesquisa. Sua estratégia foi registrar sinais dos cérebros demacacos que tinham sido submetidos a uma rizotomia dorsal umprocedimento em que todas as fibras nervosas que transportaminformações sensoriais de um braço para a medula espinhal sãocompletamente cortadas. Onze anos depois da cirurgia, eles anestesiaramos animais, abriram seus crânios e fizeram registros a partir do mapasomatossensório. Como o braço paralisado do macaco não estavaenviando mensagens ao cérebro, não se esperava registrar quaisquersinais quando você tocasse na mão inútil do macaco e registrasse a partirda "área da mão" no cérebro. Deveria haver uma grande nesga de córtexsilenciosa correspondente à área afetada.

De fato, quando os pesquisadores bateram na mão inútil, não houvenenhuma atividade nesta região. Mas, para sua surpresa, eles descobriramque, quando tocavam no rosto do macaco, as células cerebraiscorrespondentes à mão "morta" começam a se excitar vigorosamente (omesmo aconteceu com as células correspondentes à face, mas isso jáera esperado.) Aparentemente, a informação sensorial da face do macaconão somente ia para a área da face no córtex, como aconteceria numanimal normal, mas também tinha invadido o território da mão paralisada!

As implicações dessas descobertas são espantosas: significam quevocê pode mudar o mapa; que você pode alterar o conjunto de circuitoscerebrais de um animal adulto, e que as conexões podem ser modificadasem distâncias que abrangem um centímetro ou mais.

Depois de ler o trabalho de Pons, pensei: "Meu Deus! Será queesta pode ser uma explicação para os membros fantasmas?" O que o

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macaco "sentiu" realmente quando sua face estava sendo tocada? Já queo córtex de sua "mão" também estava sendo excitado, será que percebiasensações originando-se da mão inútil como também da face? Ou usariacentros superiores do cérebro para reinterpretar as sensaçõescorretamente como procedentes apenas do rosto? É claro que o macacomanteve silêncio sobre o assunto.

São necessários anos para treinar um macaco para executar atétarefas muito simples, quanto mais sinalizar que parte do seu corpo estavasendo tocada. Então me ocorreu a idéia de que você não tem de usar ummacaco. Por que não responder a mesma pergunta tocando o rosto deum paciente humano que perdeu um braço? Telefonei aos meus colegasDr. Mark Johnson a Dra. Rica Finkelstein, da área de cirurgia ortopédica,e perguntei: "Vocês têm por aí algum paciente que tenha perdido um braçorecentemente?".

Foi assim que cheguei a conhecer Tom. Visitei-o imediatamente eperguntei se gostaria de participar de um estudo. Embora inicialmentetímido e reticente, como é do seu estilo, Tom logo se mostrou ansioso emparticipar de nossa experiência. Tive o cuidado de não lhe dizer o queesperávamos descobrir, para não interferir em suas respostas. Emboraextenuado pelas "comichões" e sensações dolorosas em seus dedosfantasmas, estava alegre, aparentemente satisfeito por ter sobrevivido aoacidente.

Com Tom sentado confortavelmente em meu laboratório no subsolo,coloquei uma venda sobre seus olhos, porque não queria que visse ondeeu o estava tocando. Em seguida peguei um cotonete comum e comeceia tocar de leve várias partes da superfície do seu corpo, pedindo-lhe queme dissesse onde experimentava as sensações. Meu aluno, que observavatudo, pensou que eu estava louco.

Esfreguei seu queixo.

- O que esta sentindo?

- Você está tocando meu queixo.

- Outra coisa mais?

- Hei, é engraçado disse Tom. Você está tocando meu polegardesaparecido, meu polegar fantasma.

Movimentei o cotonete para seu lábio superior.

- Que tal aqui?

- Está tocando meu dedo indicador. E meu lábio superior.

- É mesmo? Tem certeza?

- Sim. Estou sentindo nos dois lugares.

- E aqui? Passei o cotonete em seu maxilar inferior.

- É meu dedo mínimo desaparecido.

Logo descobri um mapa completo da mão de Tom - em seu rosto!Compreendi que o que eu estava vendo era talvez um correlato perceptivodireto do remapeamento que Tim Pons tinha visto em seus macacos. Poisnão há outra maneira de explicar por que o toque numa área tão distante dotronco isto é, o rosto gerasse sensações na mão fantasma; o segredo estáno mapeamento peculiar das partes do corpo no cérebro, com o rosto selocalizando logo abaixo da mão.

Continuei este procedimento até ter explorado toda a superfície docorpo do Tom. Quando tocava seu tórax, o ombro direito, a perna direitaou a parte inferior das costas, ele tinha sensações apenas nesses lugarese não no fantasma. Mas também descobri um segundo e bem traçado"mapa" de sua mão desaparecida guardado na parte superior do braço

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esquerdo, poucos centímetros acima da linha da amputação. O toque nasuperfície da pele desse segundo mapa também provocava sensaçõeslocalizadas precisamente em cada dedo: um toque aqui e ele diz: "Oh,esse é o meu polegar", e assim por diante.

Por que havia dois mapas em vez de apenas um? Se você olharnovamente o mapa de Penfield, verá que a área da mão no cérebro éflanqueada embaixo pela área do rosto e acima pela área da parte superiordo braço e do ombro. A informação procedente da área da mão de Tom foiperdida depois da amputação, e, conseqüentemente, as fibras sensoriaisque se originavam na face de Tom que normalmente ativam apenas aárea da face em seu córtex agora invadiam o território desocupado damão e começavam a movimentar as células ali. Assim, quando eu tocavao rosto de Tom, ele também experimentava sensações na mão fantasma.Mas, se a invasão do córtex da mão também resulta em fibras sensoriaisque normalmente inervam a região cerebral acima do córtex da mão (istoé, fibras que se originam na parte superior do braço e no ombro), então otoque em pontos na parte superior do braço devia também provocarsensações na mão fantasma. E de fato consegui mapear estes pontos nobraço acima do coto de Tom. Assim, este tipo de arranjo é precisamente oque se esperaria: um feixe de pontos na face que despertam sensaçõesno fantasma e um segundo feixe na parte superior do braço,correspondendo as duas partes do corpo que são representadas em cadalado (acima e abaixo) da representação do cérebro.

Não é freqüente no campo da ciência (especialmente na neurologia)que se possa fazer uma previsão simples como esta e confirmá-la emalguns minutos de exploração, usando um cotonete. A existência de doisfeixes de pontos sugere firmemente que o remapeamento do tipo vistonos macacos de Pons também ocorre no cérebro humano. Mas aindahavia uma dúvida incômoda: como podemos ter certeza de que essasmudanças estão realmente se realizando - de que o mapa realmente mudaem pessoas como Tom? Para obter uma prova mais direta, tiramosvantagem de uma moderna técnica de neuroimagiamento chamadamagnetoencefalografia (MEG), que se baseia no princípio de que, se vocêtocar diferentes partes do corpo, a atividade elétrica localizada despertadano mapa de Penfield pode ser medida como mudanças em camposmagnéticos do couro cabeludo. A grande vantagem da técnica é que nãoé invasiva; não é preciso abrir o couro cabeludo do paciente para olhar océrebro.

Usando a MEG, é relativamente fácil numa sessão de apenas duashoras, mapear a superfície de todo o corpo na superfície do cérebro dequalquer pessoa disposta a ficar sentada ali durante esse tempo. Semcausar surpresa, o mapa resultante é bem semelhante ao mapa originaldo homúnculo de Penfield, e há pouca variação de pessoa a pessoa nadisposição geral do mapa. Quando aplicamos MEGs em quatro pessoasde braço amputado, porém, descobrimos que os mapas tinham mudadoem grandes distâncias, exatamente como tínhamos previsto.

As implicações são impressionantes. Antes de tudo, sugerem quemapas do cérebro podem mudar, às vezes com espantosa rapidez. Estadescoberta contradiz flagrantemente um dos dogmas maisgeneralizadamente aceitos em neurologia: a natureza estável das conexõesno cérebro humano adulto. Sempre se supôs que, uma vez que estesistema de circuitos, inclusive o mapa de Penfield, tenha sido montado navida fetal ou na mais tenra infância, muito pouco se pode fazer paramodificá-lo na idade adulta. Realmente, esta suposta ausência deplasticidade no cérebro adulto é freqüentemente invocada para explicarpor que há tão pouca recuperação de funções após uma lesão cerebral e

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por que doenças neurológicas são tão difíceis de tratar. Mas a prova deTom mostra ao contrário do que é ensinado nos livros que novos caminhos,altamente precisos e funcionalmente eficientes, podem aparecer no cérebroadulto quatro semanas depois de uma lesão. Não se concluinecessariamente que desta descoberta surgirão imediatamente novostratamentos revolucionários para as síndromes neurológicas, mas elaproporciona realmente alguns motivos para otimismo.

Em segundo lugar, as descobertas podem ajudar a explicar a própriaexistência de membros fantasmas. A explicação médica mais popular,mencionada antes, e que nervos que anteriormente alimentavam a mãocomeçam a enervar o coto. Além disso, estas extremidades nervosasesgarçadas formam pequenos blocos de tecido cicatrizado chamadosneuromas, que podem ser muito dolorosos. Quando os neuromas irritados,diz a teoria, enviam impulsos de volta à área original da mão no cérebro,de forma que o cérebro é induzido a pensar que a mão ainda existe: daí omembro fantasma e a idéia de que a dor associada surge porque osneuromas estão doloridos.

Com base neste frágil raciocínio, os cirurgiões têm idealizado váriostratamentos para dor em um membro fantasma, em que cortam e removemneuromas. Alguns pacientes experimentam um alivio temporário, mas,surpreendentemente, tanto o fantasma quanto a dor associada geralmentevoltam violentamente. Para aliviar este problema, às vezes os cirurgiõesrealizam uma segunda ou mesmo uma terceira amputação (tornando ocoto cada vez mais curto), mas, quando se pensa sobre isto, vê-se que élogicamente absurdo. Por que uma segunda amputação iria ajudar? Seriade esperar um segundo fantasma, e de fato é o que geralmente acontece;é um problema de regressão interminável.

Alguns cirurgiões chegam a fazer rizotomias dorsais para tratar dedor em membro fantasma, cortando os nervos sensoriais que vão para amedula espinhal. Às vezes, funciona; às vezes, não. Outros tentam até oprocedimento mais drástico de cortar a parte traseira da própria medulaespinhal uma cordotomia para impedir que os impulsos atinjam o cérebro,mas isso, também, é muitas vezes ineficaz. Ou vão até o tálamo, umaestação de retransmissão do cérebro que processa os sinais antes quesejam enviados ao córtex, e novamente verificam que não ajudaram opaciente. Podem caçar o fantasma cada vez mais profundamente nocérebro, mas realmente nunca vão encontrá-lo.

Por quê? Um dos motivos, seguramente, é que o fantasma nãoexiste em nenhuma destas áreas; existe em partes mais centrais docérebro, onde tem ocorrido remapeameto. Para falar francamente, ofantasma surge não do coto mas do rosto e da maxila, porque toda vezque Tom sorri ou movimenta o rosto e os lábios, o impulso ativa a área da"mão" em seu córtex, criando a ilusão de que sua mão ainda está ali.Estimulado por todos estes sinais falsos, o cérebro de Tom literalmentetem a alucinação de seu braço e talvez esta seja a essência de um membrofantasma. Se for este o caso, a única forma de se livrar de um fantasmaserá remover sua maxila. E, pensando bem, isso também não ajudaria.Ele provavelmente terminaria com uma maxila fantasma. E, novamenteaquele problema de regressado interminável.

Mas o remapeamento não pode ser toda a história. Primeiro, nãoexplica por que Tom ou outros pacientes experimentam a sensação de seremcapazes de movimentar seus fantasmas voluntariamente ou por que ofantasma pode mudar sua postura. Onde se originam estas sensações demovimento? Segundo, o remapeamento não é responsável pelo que maisseriamente preocupa médico e paciente a gênese da dor fantasma.

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Quando pensamos em sensações originárias da pele, geralmentepensamos apenas em toque, tato. Mas, na verdade, vias neurais quemedeiam sensações de calor, frio e dor também se originam na superfícieda pele. Estas sensações têm suas próprias áreas alvo ou mapas nocérebro, mas os caminhos usados por elas podem estar entrelaçados unscom os outros em formas complicadas. Se é este o caso, será que talremapeamento também poderia ocorrer nestas vias evolutivamente maisvelhas, independentemente do remapeamento que ocorre para o toque?Em outras palavras, o remapeamento visto em Tom e nos macacos dePons é peculiar ao toque, ou aponta para um princípio bem geral ondeocorreriam sensações de calor, frio, dor ou vibração? E se esseremapeamento ocorresse, haveria casos de "cruzamento de linhas"acidental, de forma que uma sensação de toque evocasse calor ou dor?Ou elas permaneceriam separadas? A questão de como milhões deligações neurais no cérebro são conectadas tão precisamente durante odesenvolvimento e até que ponto esta precisão é preservada quando elassão reconhecidas após uma lesão é de grande interesse para os cientistasque estão tentando compreender o desenvolvimento das vias cerebrais.

Para investigar isso, coloquei uma gota de água morna no rosto deTom. Ele a sentiu ali imediatamente, mas também disse que sua mãofantasma sentia o calor de outra forma. Certa vez, quando a águaacidentalmente escorreu pelo rosto, ele exclamou com visível surpresaque podia realmente sentir a água quente escorrendo pelo braço fantasma.Demonstrou isto usando sua mão normal para traçar o caminho da águadescendo pelo braço. Em todos os meus anos de clínica neurológica, nuncatinha visto algo tão impressionante localizando mal uma sensação complexacomo uma "gota d´água" escorrendo do rosto para sua mão fantasma.

Essas experiências sugerem que novas conexões altamenteprecisas e organizadas podem ser formadas no cérebro adulto em poucosdias. Mas não nos dizem como estes novos caminhos surgem realmente,que mecanismos subjacentes se encontram ao nível celular.

Vejo duas possibilidades. Primeiro, a reorganização pode envolvero brotamento o crescimento real de novas ramificações a partir das fibrasnervosas que normalmente inervam a área da face em direção as célulasda área da mão no córtex. Se essa hipótese fosse verdadeira, seriarealmente impressionante, já que é difícil ver como brotamentos altamenteorganizados poderiam se efetuar em distâncias relativamente longas (nocérebro, alguns milímetros podem muito bem equivaler a mais de umquilômetro) e num período tão curto. Além disso, mesmo que ocorra obrotamento, como as novas fibras "saberiam" para onde se dirigir? Podese imaginar uma mistura altamente amontoada de conexões, mas nãovias organizadas com precisão.

A segunda possibilidade é que há de fato uma tremendaredundância de conexões, no cérebro adulto normal, mas que a maioriadelas não funciona ou não tem uma função óbvia. Como tropas da reserva,podem ser convocadas para entrar em ação apenas quando necessário.Assim, mesmo em cérebros adultos normais saudáveis poderia haverinformações sensoriais da face para o mapa da face no cérebro e tambémpara a área do mapa correspondente à mão. Se for assim, devemos suporque esta energia oculta ou escondida é ordinariamente inibida pelas fibrassensoriais procedentes da mão real. Mas, quando a mão é extirpada, estainformação silenciosa procedente da pele do rosto é desmascarada eautorizada a se expressar, de forma que um toque na face agora ativa aárea da mão e leva a sensações na mão fantasma. Assim, a cada vez queassobia, Tom pode sentir um formigamento na mão fantasma.

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Não temos no presente nenhuma forma de fazer facilmente umadistinção entre estas duas teorias, embora meu palpite seja que ambos osmecanismos estão em atividade. Afinal de contas, tínhamos visto o efeitoem Tom em menos de quatro semanas e este parece um tempo curtodemais para o brotamento se efetuar. Meu colega do Hospital Geral deMassachusetts, Dr. David Borsook, viu efeitos semelhantes num paciente,apenas 24 horas depois da amputação, e não há possibilidade deocorrência de brotamento num período tão curto. A resposta final virá dorastreamento simultâneo de mudanças perceptivas e mudanças cerebraisusando a técnica de imageamento num paciente, durante um período devários dias. Se Borsook e eu estivermos certos, a imagem completamenteestática que se obtém olhando os diagramas de livros é altamenteenganadora e precisamos repensar inteiramente o significado dos mapasdo cérebro. Longe de indicar uma localização especifica na pele, cadaneurônio no mapa se encontra num estado de equilíbrio dinâmico comoutros neurônios adjacentes; sua significação depende acentuadamentedo que outros neurônios da vizinhança estão (ou não) fazendo.

Essas descobertas levantam uma pergunta óbvia: e se for perdidaalguma parte do corpo que não a mão? Ocorrerá o mesmo tipo deremapeamento? Quando meus estudos sobre Tom foram publicados,recebi muitas cartas e telefonemas de amputados querendo saber mais.Alguns tinham sido informados do que sensações fantasmas sãoimaginárias e ficaram aliviados ao, saber que isso não é verdade. Ospacientes sempre acham reconfortante saber que há uma explicação lógicapara seus sintomas aparentemente inexplicáveis; nada é mais insultuosopara um paciente do que ser informado de que sua dor está "toda namente".

Os estudos de membros fantasmas oferecem fascinantesvislumbres da arquitetura do cérebro, de sua espantosa capacidade decrescimento e renovação. A dor real, como a dor de câncer, é bem difícilde tratar; imaginem o desafio de tratar a dor num membro que não existe!No momento, pode se fazer muito pouco para aliviar tal dor, mas talvez oremapeamento que observamos em Tom possa ajudar a explicar por queacontece. Sabemos, por exemplo, que a dor fantasma intratável pode sedesenvolver semanas ou meses depois que o membro é amputado. Talvez,enquanto o cérebro se adapta e as células lentamente fazem novasconexões, haja um leve erro no remapeamento, de forma que a informaçãosensorial vinda dos receptores de toque seja acidentalmente conectadaàs áreas de dor no cérebro. Se isso acontecesse, então, a cada vez que opaciente sorrisse ou roçasse acidentalmente a bochecha, as sensaçõesde toque seriam sentidas como dor torturante. Esta, quase certamente,não é toda explicação para a dor fantasma, mas é um bom começo.

Um dia, quando Tom saía do meu consultório, não pude resistir alhe fazer uma pergunta óbvia. Durante as últimas quatro semanas, tinhapercebido alguma vez em sua mão fantasma algumas dessas peculiaressensações mencionadas, quando seu rosto era tocado por exemplo,quando fazia a barba toda manhã?

"Não, não senti", respondeu, "mas como o senhor sabe, minhamão fantasma às vezes tem umas comichões malucas e nunca sabia oque fazer. Mas agora", disse ele, batendo de leve na bochecha a piscandoo olho para mim, "sei exatamente onde coçar!"

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Material de apoio da atividadeOs neurônios são insignificantes emtermos numéricos no nosso cérebro?

Textos extraídos do livro O cérebro nosso de cada dia, de SuzanaHerculano-Houzel, Editora Vieira e Lent

O cérebro nosso de cada dia

O mito dos 10% do cérebro

Quanto do seu cérebro você usa? E da sua capacidade? E do seupotencial?

Quem já não ouviu essa frase "Usamos apenas 10% do cérebro"?Em 1999, quando passei a trabalhar em divulgação científica, quis começarinvestigando o que o público conhecia e pensava sobre o cérebro. Numapesquisa chamada "Você conhece seu cérebro?", perguntei a 2 milcariocas, entre outras coisas, se eles concordavam com a célebre frase. Ametade concordou. Fiz a mesma pergunta a 35 neurocientistas, e a frasefoi prontamente recusada. A razão? Essa história de usar 10% do cérebronada mais é do que um mito.

Vamos deixar claro logo do começo: não há qualquer razão científicapara supor que usamos 10% do nosso cérebro. Nem 10% dos nossosneurônios. Nem 10% da nossa capacidade. Todas as evidências sugeremo contrário: usamos nosso cérebro inteiro. Os 10% ficam por conta daimaginação de quem conseguiu convencer quase metade da populaçãodo Rio de Janeiro a aceitar esse mito.

É verdade que, a primeira vista, a idéia de usar somente 10% docérebro parece muito convidativa. Usando apenas 10% do cérebro,teríamos 90% de reserva, e se conseguíssemos aprender a usar esse"potencial" poderíamos ficar dez vezes mais inteligentes, memorizar dezvezes mais fatos, fazer contas dez vezes mais rápido... Só que não éassim.

O pior é que as conseqüências são graves. Quem acredita que90% do seu cérebro são dispensáveis não tem por que evitar choques nacabeça, usando capacete na motocicleta ou cinto de segurança no carro.Quem não sabe que usa seu cérebro inteiro a todo momento ainda nãofaz idéia da maravilha que tem dentro da cabeça. E de quebra ficasusceptível ao assédio de livros e cursos que se autodenominam"científicos" e pretendem ensinar "como usar os outros 90%". Espalhar omito de que usamos 10% do cérebro ou da sua capacidade é um dosgrandes desfavores que a mídia já fez ao homem e à ciência.

É difícil definir como surgiu esse mito, mas há uma possibilidadeinteressante. No começo do século XX, quando a ciência tentava identificara localização das funções mentais no cérebro, um influente psicólogoamericano, Karl Lashley (1890 1958), tinha uma opinião diferente. Lashleyacreditava que o importante era haver uma massa suficiente de neurôniosdistribuída pelo cérebro, e não sua posição específica dentro dele. Um deseus principais argumentos era o de que a maior parte do córtex cerebralde ratos de laboratório, quase 90%, podia ser removida, e mesmo assimos animais ainda eram capazes de encontrar a saída de um labirinto.

O que Lashley esqueceu de considerar foi que os animais operadospoderiam, por exemplo, usar os sentidos restantes para compensar umsentido lesado e ainda conseguir deixar o labirinto. Mesmo assim, os

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números eram impressionantes, e para alguém - não foi Lashley concluirque bastavam 10% do cérebro para a memória funcionar era só um pulinho.E daí basta inverter a lógica para "deduzir" que apenas 10% do cérebrosão usados.

Essa é apenas uma origem possível para o mito dos 10%. Emprincípio, há várias maneiras de usar só 10% do cérebro: usando 10% damassa cerebral, 10% dos neurônios, ou 10% do potencial... Mas nãoimporta: em qualquer um dos três casos, toda a ciência aponta para ocontrário. Se são 10% da massa cerebral, 90% do que temos dentro dacabeça deveriam então ser dispensáveis. E, no entanto, lesões do cérebrohumano, mesmo pequenas, podem ter conseqüências graves para ointelecto e o comportamento. Se são 10% dos neurônios, os outros 90%deveriam ser silenciosos, ou então redundantes, servindo só como"reservas". Mas é possível "escutar" as células nervosas em atividade, eem sua grande maioria elas estão ativas e respondem por algum aspectodo mundo ou do comportamento. E se são 10% da capacidade dedesenvolvimento intelectual... será que alguém sabe o que seriam os100%?

Uma dificuldade para aceitar que usamos 100% do cérebro podeser a pergunta inevitável de quem estava convencido do contrário: se tudoé usado, como então é possível desenvolver nossas habilidades? Aresposta está na mais maravilhosa e característica propriedade do sistemanervoso: a capacidade de fazer novas combinações entre seus elementos,e de mudar a eficiência das conexões das sinapses já existentes. Quandoa eficiência aumenta, a conexão entre dois neurônios fica "fortalecida";quando diminui, a conexão fica "enfraquecida". Além do mais, nenhumaconexão é fixa; uma conexão enfraquecida demais pode ser eliminada, euma nova pode ser feita em outro lugar, com outro neurônio. Fortaleceressas novas conexões, estabilizando-as, é uma maneira de criar novasassociações. Os neurocientistas hoje estão convencidos de que é essa abase do aprendizado. Como sempre se pode tirar uma conexão daqui ecriar outra ali, será sempre possível fazer mais uma combinação, maisuma associação entre neurônios, e aprender mais alguma coisa.

Talvez nem sempre fique tudo na lembrança talvez seja mesmonecessário esquecer algumas coisas para poder lembrar de outras. Nãoimporta. Aprender, a mais nobre função do cérebro, não funciona a 10%,nem a 100%, nem a 1% da sua capacidade. Não há limite. Simplesmentefunciona.

Outubro de 2000Fonte: Herculano Houzel, S. "Do you know your brain?: a survey on public neuroscience literacy atthe closing of the decade of the brain": The Neuroscientist, no prelo, 2002.

Os 90% do cérebro

Conheça as células que ajudam os neurônios

De que é feito o cérebro? Essencialmente de neurônios, certo?Errado. Neurônios são minoria quase insignificante em termos numéricos:apenas 2% a 10% do total de células cerebrais. Os outros 90% a 98% sãocélulas gliais, ou glia, para os íntimos. A glia é tradicionalmente consideradaum conjunto de células silenciosas, cumprindo funções secundárias, comosuporte, "preenchimento de espaço", eliminação de detritos, isolamentoelétrico e fornecimento de nutrientes para os neurônios.

Mas isso vai mudar. Um artigo publicado em janeiro de 2001 naprestigiosa revista Science mostra que a glia não é tão subserviente assim.Neurônios, tremei: a formação e a sobrevivência de suas tão queridassinapses dependem das insuspeitas células gliais ao seu redor.

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É natural, de fato, pensar que somente os neurônios possamtransmitir sinais no sistema nervoso. Neurônios tem ramos de "entrada" ede "saída" distintos, enquanto a glia tem forma geralmente estrelada. Alémdo mais, células gliais são menores do que os neurônios, e ficamaglomeradas ao seu redor. Daí o nome "glia", que em grego significa "cola".

O panorama começou a mudar em 1994, com a descoberta deque as células gliais, até então consideradas "inexcitáveis", silenciosas,respondem ao glutamato, um importante sinal químico de comunicaçãoentre neurônios. Mais do que isso, a glia também "libera" glutamato,igualzinho aos neurônios, e esse glutamato é reconhecido pelos neurônioscomo um sinal igual a outro qualquer. Ou seja: elas têm o potencial de secomunicar com os neurônios, ou ao menos de influenciar a comunicaçãoentre eles.

A glia também envolve as sinapses, as pontes de comunicaçãoentre neurônios, onde eles emitem e reconhecem substâncias como oglutamato. Nesses locais, a função da glia é absorver rapidamente todoexcesso de glutamato que "transborda" da sinapse. Se não fizesse isso, obanho de glutamato rapidamente se tornaria tóxico, excitando os neurôniosaté a epilepsia e depois à morte.

Além de "ajudar" os neurônios a se comunicar, a glia também osmantém vivos: sem ela, os neurônios morrem. Mas parece que a glia fazmais do que passar nutrientes e fatores de crescimento aos neurônios. Aequipe de Ben Barres, da Universidade de Stanford, nos EUA, acaba dedemonstrar que, sem a glia por perto, os neurônios em desenvolvimentonão sabem montar sinapses, sua estrutura mais importante e característica.

O artigo publicado na revista Science é um verdadeiro tour de forcecientífico. O doutorando Erik Ullian e seus colegas no laboratório de Barresfizeram nada menos que uma série de 15 experimentos para cercar ofenômeno.

Tudo começou com um detalhe de sorte: a descoberta por Barres,em 1997, de que, quando cultivados num pratinho de vidro, banhados emnutrientes, os neurônios da retina não precisam de glia para sobreviver,mas em sua presença tem sinapses dez vezes mais ativas. É como setrocassem dez vezes mais palavras por segundo do que quando criadossem glia por perto.

Se a diferença na atividade das sinapses é tão grande, por queesse efeito da glia não foi descoberto antes? Acontece que as chamadas"culturas de neurônios" usadas rotineiramente nos laboratórios são, naverdade, culturas mistas de neurônios e glia retirados de um pedacinhodo cérebro. Para estudar o efeito, Ullian precisou fazer uma cultura 99,5%pura de neurônios. Isso só foi possível cultivando neurônios da retina deembriões de rato, tomando o cuidado de primeiro passar todas as célulaspor um pratinho forrado com anticorpos que serviam de "cola paraneurônios". Sem ser reconhecida pelos anticorpos, a glia ficava flutuando,e era facilmente levada embora quando o pratinho era lavado comsuavidade.

Com a cultura pura de neurônios em mãos, Ullian e seus colegascomeçaram a série de 15 experimentos. Comparando cultural com ousem glia, eles mediram a atividade espontânea das sinapses, provocaramos neurônios com glutamato para calcular a eletricidade produzida emresposta, encheram as sinapses com corante fluorescente para determinarseu conteúdo, verificaram a produção de proteínas necessárias nassinapses, e usaram até microscopia eletrônica para contar sinapses nosneurônios.

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Todos os resultados foram semelhantes: sem glia por perto, poucassinapses se formam nos neurônios e as poucas que se formam sãoimaturas, pouco eficazes, como se somente soubessem sussurrar. Comglia, seis vezes mais sinapses se formam e são sinapses dez vezes maisfortes, que "gritam" para valer. A diferença parece estar na organizaçãodo material necessário para fabricar as sinapses. Mesmo sem glia, tudo oque é necessário é fabricado pelos neurônios, mas é só com a glia porperto que eles conseguem organizar tudo e montar as sinapses.

Depois de a glia ensinar os neurônios a montar sinapses, será queeles conseguem mantê-las sozinhos? Não. Tirando a glia da cultura (oque eles podiam realizar facilmente, usando o truque de fazer a culturaem pratinhos de "dois andares", o de baixo com neurônios, e o de cimacom glia), os neurônios perderam suas sinapses em uma semana.

E, agora, ao 15° experimento. Tudo é muito bonitinho no pratinhode cultura. E no cérebro, mesmo, também é a glia que manda os neurôniosfazerem sinapses? No rato, os terminais desses neurônios da retinachegam ao cérebro no 16° dia de gestação, mas o grosso das sinapsessó aparece dez dias depois. A equipe de Barres investigou se essa datacorrespondia ao aparecimento da glia. Não deu outra: células gliais emforma de estrela aparecem exatamente no momento da formação dassinapses no local.

Tudo isso lembra muito o desenvolvimento do cérebro humano.Nos primeiros anos de vida, o tamanho do cérebro aumenta radicalmentecom a multiplicação das células gliais enquanto os neurônios são osmesmos cem bilhões desde o nascimento. E é justamente na fase em quea glia está se formando, nos meses após o nascimento, que o número desinapses no cérebro aumenta enormemente. Olhando agora, é fácilimaginar que a glia participe da formação das sinapses, mas, para cientistasque aprenderam desde a faculdade que a glia cumpre funções apenasacessórias, é fácil deixar a evidência passar despercebida.

Acessória ou fundamental, o fato é que a glia constitui pelo menos90% do cérebro. Só que nem assim dá para dizer que usamos 10% docérebro. Não, caro leitor, ainda assim a história dos 10% é um mito. Suascélulas gliais são usadas, sim, obrigada. Se a glia deixasse de funcionarou de existir, haveria um excesso constante de glutamato derramado, e aatividade neuronal no cérebro se transformaria numa enorme criseepiléptica, que depois iria desaparecendo a medida que as sinapses fossemse desmanchando.

Pois é. Afinal, sem a glia, os grandes neurônios não são grandecoisa. Elas cuidam deles, elas os ensinam a construir sua estrutura maisimportante, e podem até se comunicar com eles. Se continuar assim, quemsabe ainda vamos viver para ver o dia em que os cientistas discutirão opapel da glia na produção da consciência?

Fonte: Ullian, E.M., Sapperstein, S.K., Christophersón, K.S. a Barres, B.A. "Control of synapse numberby glia". Science291, pp. 657-661, 2001.

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Material de apoio da atividadeEsquecer é fundamental para oaprendizado?

Textos extraídos do livro A arte de esquecer, de Iván Izquierdo -Editora Vieira e Lent (2004)

A arte de esquecer

Por que e para que esquecemos?

Como toda a evidência disponível indica que a maioria dasmemórias se perde, surgem várias perguntas.

A primeira é, sem dúvida, por que esquecemos? Esquecemostalvez, em parte, porque os mecanismos que formam e evocam memóriassão saturáveis. Não podemos fazê-los funcionar constantemente demaneira simultânea para todas as memórias possíveis, as existentes e asque adquirimos a cada minuto. Isso obriga naturalmente a perder memóriaspreexistentes, por falta de uso, para dar lugar a outras novas. (Mais adianteexplicaremos este mecanismo que é fundamental para o esquecimento.)

Não sabemos se os mecanismos por meio dos quais se guardamno cérebro os elementos principais de cada memória são ou não sãosaturáveis. É até possível que não o sejam, já que há tantos neurônios etantas interconexões entre eles. Temos no cérebro humano muitos bilhõesde neurônios. Destes, os do córtex cerebral recebem entre 1.000 a 10.000conexões (sinapses) procedentes de outras células nervosas, e emitemprolongamentos que fazem conexão com outros dez a 1.000 neurônios.Como se vê, as possibilidades de intercomunicação entre as células docérebro são imensas, e de cada uma destas conexões ou sinapses podemsurgir memórias; sem contar o fato de que cada conexão pode participarde muitas memórias diferentes. Acredita-se que as memórias dependemde alterações na conformação das sinapses. É, portanto, altamenteprovável que a capacidade de armazenamento seja gigantesca.

Mas há inúmeras evidências recentes de que, na hora de suaformação e na hora de sua evocação, os sistemas cerebrais que seencarregam das memórias de longa duração, que envolvemfundamentalmente uma estrutura do lobo temporal chamada hipocampo,são altamente saturáveis. O mesmo ocorre com os sistemas encarregadosde analisar on line as informações correspondentes à aquisição e àevocação das memórias, que analisaremos a seguir. O hipocampo é aprincipal estrutura do sistema nervoso dos mamíferos envolvida tanto naformação como na evocação das memórias.

A segunda grande pergunta que surge do que vimos até agora é:para que precisamos esquecer? A resposta a essa pergunta abrange muitosaspectos diferentes e será respondida ao longo das próximas páginas.Como veremos, em boa parte esquecemos para poder pensar, eesquecemos para não ficar loucos; esquecemos para poder conviver epara poder sobreviver.

Formas de esquecimento

Basicamente há quatro formas de esquecimento. Duas delasconsistem em tornar as memórias menos acessíveis, mas em geral semperdê-las por completo: a extinção, e a repressão. As outras duas consistemem perdas reais de informação; uma delas por bloqueio de sua aquisição,e a outra por deterioração e perda de informação, o esquecimento

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propriamente dito. O esquecimento real não é uma arte: é uma pena.Talvez necessária (ver referência a "Funes, o Memorioso", na pág. 91),mas uma pena enfim; um acontecimento em geral não voluntário. A artede esquecer se concentra na extinção (e seus parentes próximos, ahabituação e a discriminação) e na repressão. E também, como veremos,num truque voluntário que é a falsificação.

As perdas da memória de trabalho são inerentes à sua natureza

Há vários tipos de memória. Em primeiro lugar, existe a memóriade trabalho, que usamos para entender a realidade que nos rodeia e poderefetivamente formar ou evocar outras formas de memória: a quedenominamos de curta duração e que dura umas poucas horas, o suficientepara que possa se formar a memória de longa duração (também chamadamemória remota), que dura dias, anos ou décadas. Para mim, que tenhomuitos anos, a memória da minha infancia é remota; a lembrança do queaconteceu ontem ou na semana retrasada é simplesmente memória delonga duração. A lembrança do que eu estava fazendo duas ou três horasantes de me sentar para escrever este texto, a memória de curta duração.Enquanto escrevia, a memória da terceira palavra da frase anterior (quejá perdi) foi parte da minha memória de trabalho. O mesmo aconteceucom você, leitor, ao ler essa frase: você compreendeu a terceira palavrade minha frase, há poucos segundos, mas já não a recorda mais. Outroexemplo típico de memória de trabalho é a do número telefônico quesolicitamos ao nosso vizinho, que dura só o tempo suficiente para discá-lo. Logo depois de fazer a chamada, a lembrança do número desaparece,e se queremos aprendê-lo, devemos perguntá-lo novamente ou registrá-lo em algum lugar. A memória de trabalho não forma arquivos duradouros:desaparece em segundos ou, no máximo, minutos. Está feita para serassim, de maneira que nenhuma informação que esteja sendo processadavenha a interferir ou se confunda com as que ocorreram logo antes ou asque virão logo a seguir. Se a terceira palavra da minha frase anteriorpersistisse além de alguns segundos, nem eu seria capaz de continuarescrevendo, nem você seria capaz de continuar lendo; viraríamosprisioneiros dela, repetindo-a mentalmente fora de contexto.

A memória de trabalho depende da atividade elétrica de neurôniosdo córtex pré-frontal, localizado na frente da área motora, e não persistealém disso. Quando cessa a ativação dos neurônios pré-frontais, a memóriade trabalho também cessa.

Como veremos mais adiante, os neurônios são ativados porsubstâncias químicas, mas emitem suas mensagens por meio de atividadeelétrica. Os neurônios do córtex pré-frontal se ativam em resposta àsexperiências de cada momento, a sua estimulação dura enquanto dura aexperiência; somente às vezes persiste um pouco mais. Voltemos aoexemplo da terceira palavra de minha frase anterior, que persistiu só osuficiente para que eu conseguisse continuar escrevendo e você lendo.

Enquanto o mecanismo da memória de trabalho é posto em jogoem cada experiência, a informação processada pelo córtex pré-frontal secomunica a outras regiões do cérebro e faz um intercâmbio de informaçõescom elas. As outras regiões do cérebro incluem aquelas que analisamrapidamente a informação sensorial e as que armazenam memórias demaior duração. Assim, nosso cérebro toma aquela famosa terceira palavrada frase anterior e a insere num contexto maior: o da compreensão de umtexto mais longo. A análise rápida de informação é feita on line pela memóriade trabalho, e comparada com outras informações que possam ocorrersimultaneamente ou que já estejam guardadas no cérebro. Assim,distinguimos o homem apoiado na parede da calçada em frente da própria

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parede e das pessoas que passam; distinguimos o carro que avança pelarua das árvores que permanecem fixas (e com isso entendemos que ocarro avança e estimamos sua velocidade), distinguimos o que há de novoe importante naquilo que está acontecendo no momento e precisa serguardado na memória, e que informação já temos e não precisa serguardada porque seria redundante.

No caso da memória de trabalho, sua própria função e formaçãoexigem que seja fugaz. Esta baseada em mecanismos muito rápidos e,por definição tanto psicológica como anatômica, é necessariamenteevanescente. Foi feita para ser assim. Sua feitura é uma arte, uma arte dedelicadeza e precisão sem par, mas uma arte que compartilhamos comtodos os seres humanos e todos os vertebrados. Há evidências quesugerem que a memória de trabalho de alguns primatas superiores sejamelhor do que a nossa. A perda de informação da memória de trabalhonão pode ser considerada um esquecimento real, já que é própria de suanatureza.

O que acontece quando a memória de trabalho fracassa? Umainformação se confunde com a anterior ou com a seguinte, ou com a queestá ao lado ou acima; confundem-se entre si as informações simultânease não conseguem ser distinguidas das informações sucessivas ou isoladas.Não conseguimos distinguir muito bem o homem da parede na qual seapóia, ou o carro que avança, das árvores que o rodeiam. Ambas cenasconstituem uma massa uniforme, onde homem e tijolos, carros e árvoresse confundem. O professor enxerga seus alunos como uma massa informede rostos, e a pergunta que um deles lhe fez confunde-se com a respostaque deu a pergunta de um aluno anterior. Confundem-se cheiros, objetose sons. A memória de trabalho serve para discriminar informações eselecionar quais correspondem ou não a memórias preexistentes. Quandoela falha, a realidade vira incompreensível ou alucinatória porque seuscomponentes se confundem entre si. Isto pode acontecer quando estamosexaustos, sem dormir há muitas horas, quando somos submetidos a umexcesso de informação e/ou quando estamos profundamente estressados.

Quando falha a memória de trabalho pode acontecer que arealidade apareça como ameaçadora, como algo que estabelece umasituação de paranóia. A esquizofrenia se caracteriza por falhas grosseirasna memória de trabalho, devidas a lesões congênitas no córtex pré-frontal.Por isso os esquizofrênicos percebem a realidade como algo alucinatório.Confundem objetos ou pessoas sonhados com objetos ou pessoas reais,confundem o sonhado ontem com o que estão vendo agora, confundem,às vezes, cheiros com sons... (Um amigo meu, esquizofrênico, dizia quegostava de cheirar a música de Beethoven; outro conhecido meu, tambémesquizofrênico, afirmava que esse exército de anões que nos rodeavaconstantemente era inofensivo, não fosse o mau cheiro.) Além disso, osesquizofrênicos padecem de transtornos na formação das memórias decurta a longa duração, devidos a alterações morfológicas nos lobostemporais, principalmente no hipocampo e no córtex que o rodeia, quesão os encarregados de processar as memórias de curta e longa duração,assim como sua evocação. A memória de longa duração das realidadesalucinatórias sistematizam as visões em delírios, muitos dos quaisacompanham o esquizofrênico por toda sua vida. Ocasionalmente, pormeio de lenta e cuidadosa psicoterapia, os esquizofrênicos podemdiscriminar entre o mundo do delírio, que lhe é profundamente individual,e a realidade efetiva, que compartilha com os demais seres humanos. Umgrande exemplo disso se vê no filme Uma Mente Brilhante, onde o atorRussell Crowe desempenha o papel de John Nash, um esquizofrênico degrande talento que, muito bem tratado com remédios antipsicóticos e

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psicoterapia, conseguiu levar uma vida pessoal relativamente equilibrada(porém difícil) e obter um Prêmio Nobel. Nash realizou suas pesquisas etirou delas as conclusões que o levaram ao Prêmio Nobel enquanto suamente estava dividida entre a atenção dispensada ao mundo real e aatenção dedicada ao mundo fictício de suas alucinações fortes erecorrentes.

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Material de apoio da atividadePara uma memorização efetiva émelhor passar a noite estudando doque dormir?

Texto extraído da revista Scientific American, edição especial nº 4,2001, de Jonathan Winson

JONATHAN WINSON começou sua carreira como engenheiro aeronáutico, graduando-se em 1946pelo California Institute of Technology. Ele obteve o seu Ph.D. em matemática na Columbia Universitye, durante 15 anos, dedicou-se às atividades empresariais. Por causa de seu duradouro interessepela neurociência, Winson começou a pesquisar o processamento da memória na RockefellerUniversity. Em 1979, tornou-se professor associado e prosseguiu sua pesquisa como professor emérito.Aposentou-se em 1996. Sua pesquisa foi apoiada pelo National Institute of Mental Health, pela NationalScience Foundation e pela Harry F Guggenheim Foundation.

O significado dos sonhos

Eles podem ser fundamentais para o processamento da memórianos mamíferos. Informações adquiridas durante a vigília podem serreprocessadas durante o sono.

Introdução

Os seres humanos sempre tentaram compreender o significadodos sonhos. Os amigos egípcios acreditavam que eles possuiam poderesoraculares - na Bíblia, por exemplo, a interpretação que José dá ao sonhodo faraó evita sete anos de fome. Em outras culturas, os sonhos serviamcomo inspiração, terapia ou realidade alternativa. Durante o séculopassado, os sonhos receberam explicações psicológicas e neurocientíficasconflitantes dos cientistas.

Em 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos,Sigmund Freud propôs que os sonhos seriam a "via privilegiada" para oinconsciente: revelariam, de forma disfarçada, os elementos maisprofundos da vida interior do indivíduo. Mais recentemente, porém, ossonhos foram caracterizados como desprovidos de significado, resultadoaleatório da atividade das células nervosas. Sonhar também foi consideradocomo o meio pelo qual o cérebro descarta informações desnecessárias:um processo de "aprendizado invertido", ou de desaprendizado.

Baseado em descobertas recentes feitas em meu laboratório e poroutros neurocientistas, proponho que os sonhos de fato possuemsignificado. Estudos sobre o hipocampo (estrutura cerebral crucial para amemória), sobre o movimento rápido dos olhos (REM) durante o sono, esobre ondas cerebrais denominadas ritmo teta, sugerem que sonhar refleteum aspecto essencial do processamento da memória. Em particular,estudos do ritmo teta feitos em animais subprimatas fornecem uma chaveevolutiva para o significado dos sonhos. Parecem ser o registro noturnode um processo mnemônico básico dos mamíferos: e o meio pelo qual osanimais formam estratégias de sobrevivência e avaliam a experiência atualà luz dessas estratégias.

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Estágios do Sono e do Sonho

A fisiologia do sonho foi compreendida pela primeira vez em 1953,com a análise do ciclo do sono humano. Descobriu-se que, nos humanos,o sono se inicia pelo estado hipnagógico, período de vários minutos duranteos quais os pensamentos consistem em imagens fragmentadas oupequenas cenas. O estado hipnagógico é seguido pelo sono de ondaslentas, assim chamado porque, durante esse periodo, as ondas cerebraisdo neocórtex (a camada circunvoluta mais externa do cérebro) apresentamfreqüências baixas e de grande amplitude. Esses sinais são medidos comoregistros de eletroencefalograma (EEG). Os pesquisadores descobriramtambém que o sono noturno é entremeado por períodos em que os registrosdo EEG apresentam freqüências irregulares a amplitudes baixas - similaresas observadas em indivíduos acordados. Esses períodos de atividademental são chamados de sono REM. Os sonhos ocorrem somente duranteesses períodos. Os neurônios motores são inibidos durante o sono REM,o que impede o corpo de se mover livremente, embora permita que suasextremidades permaneçam ligeiramente ativas. Os olhos movem-serapidamente em sincronia sob as pálpebras fechadas, a respiração torna-se irregular e a freqüência cardíaca aumenta.

O primeiro estágio REM da noite ocorre 90 minutos após o sonode ondas lentas e dura 10 minutos. O segundo e terceiro períodos REMocorrem após breves episódios de sono de ondas lentas, mas tornam-seprogressivamente mais longos. O quarto e último intervalo dura de 20 a30 minutos e é seguido pelo despertar. Se um sonho for lembrado, trata-se, freqüentemente, do sonho que ocorreu durante esta última fase.

Mamíferos exibem características ASSOCIADASao SONO REM observadas nos humanos

Este ciclo do sono - alternando o sono de ondas lentas e o REM -parece estar presente em todos os mamíferos placentrios e marsupiais.Os mamíferos exibem as várias características associadas ao REMobservadas nos humanos, inclusive os registros EEG similares ao do estadode vigília. Os animais também sonham. Ao destruírem os neurônios notronco encefálico que inibem o movimento durante o sono, ospesquisadores descobriram que gatos dormindo acordavam e atacavamou ficavam assustados com objetos invisíveis - claramente imagens desonhos.

Os cientistas descobriram ainda, estudando animais não-primatas,outros aspectos neurofisiológicos do sono REM, e determinaram que ocontrole neural desse estágio do ciclo do sono está centrado no troncoencefálico (a região do cérebro mais próxima da medula espinhal) a quedurante o sono REM os sinais neurais - chamados de ondas ponto-genículooccipitais (PGO) do córtex - procedem do tronco encefálico para o centrodo processamento visual, o córtex visual. Os neurônios do tronco encefálicotambém iniciam uma onda sinusoidal (semelhante à forma de um sino) nohipocampo. Este sinal cerebral é chamado de ritmo teta.

Pelo menos um animal vivencia o sono de ondas lentas, mas nãoo sono REM e, portanto, não apresenta o ritmo teta quando dorme. Trata-se do equidna, ou tamanduá espinhoso, um mamífero ovíparo (chamadode monotremado), que fornece pistas sobre a origem do sonho. A ausênciado sono REM no equidna sugere que este estágio do ciclo do sonodesenvolveu-se há cerca de 140 milhões de anos, quando os marsupiaise os placentários divergiram da ordem dos monotremados, os primeiros

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mamiferos a se desenvolver a partir dos répteis. De acordo com todos oscritérios evolutivos, a permanência de um processo cerebral complexocomo o sono REM indica que este desempenha importante função nasobrevivência das espécies mamíferas. Compreender essa função poderevelar o significado dos sonhos.

Quando Freud escreveu A Interpretação dos Sonhos, a fisiologiado sono era desconhecida. À luz da descoberta do sono REM, algunselementos de sua teoria psicanalítica foram modificados e abriu-se caminhopara teorias de base neurólogica. O sonho passou a ser entendido comoparte de um ciclo do sono determinado biologicamente. Entretanto, oconceito central da teoria de Freud - a crença de que os sonhos revelamuma representação censurada de nossos sentimentos e interessesinconscientes mais íntimos - continua a ser usado na psicanálise.

Alguns teóricos abandonaram completamente as idéias de Freuddepois das descobertas neurológicas. Em 1977, J. Allan Hobson e RobertMcCarley, da Harvard Medical School, propuseram a hipótese da "síntese-ativação": os sonhos seriam associações e memórias suscitadas noprosencéfalo (o neocórtex e estruturas associadas) em resposta a sinaisaleatórios provenientes do tronco encefálico, tal como as ondas PGO.Seriam simplesmente a "melhor adaptação" que o prosencéfalo poderiafornecer. Embora os sonhos possam, ocasionalmente, sugerir um conteúdopsicológico, seu caráter bizarro seria intrinsecamente desprovido designificado. Segundo Hobson, o sentido ou enredo dos sonhos resultariada ordem imposta ao caos dos sinais neurais. "Esta ordem é uma funçãode nossa visão pessoal do mundo, de nossas memórias remotas",escreveu. Em outras palavras, o vocabulário emocional do indivíduo poderiaser relevante para os sonhos. Em uma revisão posterior de sua hipóteseoriginal, Hobson sugeriu também que a ativação do tronco encefálicopoderia servir apenas para mudar de um episódio do sonho para outro.

A anatomia do cérebro e a representação transversal do hipocampo mostram algumas regiõesenvolvidas no sonho. No hipocampo, a informação que entra é processada de forma seqüencialno giro dentado e nas CA3 e CA1 (assim chamadas por sua forma triangular). Nas espécies nãoprimatas, o ritmo teta é gerado no giro dentado e nas células CA1.

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Aprendizado Invertido

Embora Hobson e Mccarley tivessem oferecido uma explicação doconteúdo do sonho, a função básica do sono REM continuavadesconhecida. Em 1983, Francis Crick, do Salk Institute for BiologicalStudies, em San Diego, e Graeme Mitchison, da University of Cambridge,propuseram a idéia do aprendizado invertido. Partindo da suposição deHobson e McCarley sobre uma descarga neocortical aleatória pelas ondasPGO e do conhecimento que tinham sobre o comportamento de redesneurais estimuladas, Crick e Mitchison postularam que o neocórtex, umarede neural de associação muito complexa, pode ficar sobrecarregadocom as vastas quantidades de informação que recebe. Com issodesenvolveria pensamentos falsos, ou "parasíticos", que colocariam emrisco o estoque ordenado e verdadeiro da memória.

O sono REM serviria para apagar, de forma regular, essasassociações espúrias. As ondas aleatórias PGO seriam impingidas aoneocórtex, resultando no apagamento ou desaprendizado das informaçõesfalsas. Este processo serviria a uma função essencial: o processamentoordenado da memória. Nos humanos, os sonhos seriam um registro corridodesses pensamentos parasíticos: um material a ser purgado da memória.Para Crick e Mitchison, "sonhamos para esquecer". Os dois pesquisadorespropuseram uma revisão em 1986. A eliminação dos pensamentosparasíticos explicava somente o conteúdo bizarro do sonho e nada diziasobre sua narrativa. Sonhar para esquecer poderia ser melhor formuladoda seguinte forma: "Sonhamos para reduzir a fantasia ou a obsessão".

Nenhuma dessas hipóteses parece explicar adequadamente afunção do sonho. Por um lado, a teoria de Freud carecia de evidênciafisiológica. (É certo que Freud tinha, originalmente, tentado descrever aneurologia do inconsciente e dos sonhos em seu "Projeto para umaPsicologia Científica", mas a tentativa fora prematura e ele limitou-se àpsicanálise.) Por outro lado, a despeito das revisões para incorporarelementos da psicologia, a maioria das teorias posteriores negava que ossonhos tivessem significado.

A exploração dos aspectos neurocientíficos do sono REM e doprocessamento da memória pareceu-me conter o maior potencial para acompreensão do significado e da função dos sonhos. A chave para estapesquisa foi o ritmo teta, descoberto em 1954, em animais despertos, porJohn D. Green e Arnaldo A. Arduini, da University of California, em LosAngeles, que observaram um sinal regular sinusoidal de seis ciclos porsegundo no hipocampo de coelhos, quando estes animais estavamapreensivos por causa de estímulos em seu meio ambiente. Elesdenominaram este sinal ritmo teta, de acordo com um componente doEEG de mesma freqüência descoberto anteriormente.

O ritmo teta foi posteriormente registrado em toupeiras, ratos agatos. Embora tivesse sido observado de forma consistente em animaisdespertos, foi correlacionado com comportamentos muito diferentes emcada espécie. Por exemplo, em contraste acentuado com os coelhos, osestímulos ambientais não induziram ritmo teta nos ratos. Estesapresentaram ritmo teta somente quando se movimentavam, tipicamentequando exploravam. Em 1969, entretanto, Case H. Vanderwolf, daUniversity of Western Ontario, descobriu que havia um comportamentodurante o qual os animais que ele estudou, entre os quais o rato, revelavamo ritmo teta: o sono REM.

Em 1972, publiquei que diferentes ocorrências do ritmo tetapoderiam ser entendidas em termos de comportamento animal. Os animais

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despertos pareciam apresentar o ritmo teta quando desempenhavamtarefas cruciais para sua sobrevivência. Em outras palavras, o ritmo tetaaparecia quando exibiam comportamento não geneticamente codificado -como o são o comportamento sexual ou o orientado para a alimentação -mas que é uma resposta a informações variáveis do meio. Ocomportamento predatório dos gatos, de presa dos coelhos e exploratóriodos ratos são, respectivamente, os mais importantes para a sobrevivênciade cada um deles. Um rato com fome, por exemplo, ira explorar antes decomer, mesmo que a comida esteja diante dele.

O Papel de Ritmo Teta

Como o hipocampo está envolvido no processamento da memória,a presença do ritmo teta durante o sono REM nessa região do cérebropode estar relacionada a essa atividade de processamento. Sugeri que oritmo teta reflete um processo neural através do qual a informação essencialé sobrevivência de uma espécie - reunida durante o dia - e reprocessadana memória durante o sono REM.

Em 1974, ao registrar sinais do hipocampo em ratos a coelhos quese moviam livremente, descobri a fonte que gerava o ritmo teta nohipocampo. Acredita-se que, juntamente com o neocórtex, o hipocampoforneça a base neural para a armazenagem de memória. O hipocampo éuma estrutura seqüencial composta por três tipos de neurônios. Ainformação proveniente de todas as áreas sensoriais e associativas doneocórtex converge para o córtex entorrinal; a partir daí, é transmitida àstrês populações sucessivas de neurônios do hipocampo. Os sinais chegam,primeiro, às células granulares do giro denteado, depois às célulaspiramidais do CA3 (assim chamada em razão de sua forma triangular) e,finalmente, às células piramidais do CAI. Após ser processada a informaçãoé retransmitida para o córtex entorrinal, retornando depois para o neocórtex.

Mostrei que o ritmo teta é produzido em duas regiões no interior dohipocampo: o giro denteado e os neurônios do CAI. Os ritmos nessasduas áreas são síncronos. Posteriormente, James B. Ranck, Jr., da StateUniversity of New York Downstate Medical Center, e sua então colegaSusan Mitchell identificaram um terceiro gerador síncrono no córtexentorrinal, e Robert Verdes, da Wayne State University, descobriu osneurônios do tronco encefálico que controlam o ritmo teta. Esses neurôniostransmitem sinais para o septo (estrutura do prosencéfalo), que ativam oritmo teta no hipocampo e no córtex entorrinal. Assim, o tronco encefálicoativa o hipocampo e o neocórtex - o cerne do sistema mnemônico docérebro.

Para determinar a relação entre o ritmo teta e a memória, provoqueiuma lesão no septo de um rato. Os ratos que tinham aprendidoanteriormente a localizar, mediante pistas espaciais, uma posiçãodeterminada no labirinto, não foram mais capazes de fazê-lo. Sem o ritmoteta, a memória espacial foi destruída.

Estudos sobre as alterações celulares que causam a memóriailustraram o papel do ritmo teta. Em particular, a descoberta, em 1973, dapotencialização a longo prazo (long-term potentiation - LTP) - mudança nocomportamento neural que reflete a atividade pregressa - revelou os meiospelos quais a memória pode ser codificada. Timothy V P. Bliss e A. R.Gardner-Medwin, do National Institute of Medical Research, em Londres,e Terje Lomo, da Universidade de Oslo, descobriram alterações emneurônios que haviam sofrido estímulos elétricos.

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Memória de Longo Prazo

Estudos anteriores haviam demonstrado que, ao se estimular a viaque se projeta do córtex entorrinal às células granulares do hipocampo, aresposta dessas células podia ser medida com um eletrodo de registro.Bliss e seus colegas mediram a resposta normal a um estímulo elétricoisolado e depois aplicaram uma longa série de sinais de alta freqüência -chamada de estimulação tetânica - a esta via. Após a estimulação tetânica,um estímulo elétrico isolado provocou disparo maior das células granularesque o observado anteriormente. O efeito intensificado persistiu por atétrês dias. Este fenômeno de LTP era precisamente o tipo de aumento daforça neuronal que poderia ser capaz de manter a memória. A LTP éconsiderada agora um modelo para o aprendizado e a memória.

A LTP ocorre pela atividade do receptor NMDA (N-metil-D-aspartato). Esta molécula está inserida nos dendritos das célulasgranulares, das células de CAI do hipocampo e nos neurônios de toda aextensão do neocórtex. Assim como outros receptores neuronais, o receptorNMDA é ativado por um neurotransmissor - glutamato, neste caso. Oglutamato abre momentaneamente um canal não-NMDA no dendrito dacélula granular, permitindo um fluxo de sódio do espaço extracelular paradentro do neurônio. Este influxo causa a despolarização da célula granular.Se a despolarização for suficiente, a célula granular dispara, transmitindoinformações para outros neurônios.

Diferentemente de outros receptores neuronais, o NMDA possuiuma propriedade adicional. Se uma ativação adicional do glutamato ocorrerenquanto a célula granular estiver despolarizada, um segundo canal seabre, permitindo o influxo de cálcio. Acredita-se que o cálcio aja como umsegundo mensageiro, iniciando uma série de eventos intracelulares queculminam em mudanças sinápticas duradouras - ou LTP. (A descriçãofornecida aqui foi simplificada. A LTP é hoje tema de amplas investigações.)

Como a estimulação tetânica aplicada por Bliss e seus colegasnão ocorria naturalmente no cérebro, restava a questão de saber como aLTP era obtida em condições normais. Em 1986, John Larson e Gary S.Lynch, da University of California, em Irvine, e Gregory Rose e Thomas VDunwiddie, da University of Colorado, em Denver, sugeriram que aocorrência de LTP no hipocampo estava ligada ao ritmo teta. Eles aplicaramum pequeno número de estímulos elétricos às células de CAI do hipocampode um rato e produziram LTP, mas somente quando os estímulos eramseparados pelo lapso de tempo normal entre duas ondas teta -aproximadamente 200 milésimos de segundo. O ritmo teta e,aparentemente, o meio natural pelo qual o receptor NMDA é ativado emneurônios no hipocampo.

Pesquisas feitas em meu laboratório da Rockefeller Universityreproduziram as descobertas de Larson e Lynch, mas desta vez nas célulasgranulares do hipocampo. Constantine Pavlides, Yoram J. Greenstein eeu demonstramos que a LTP dependia da presença e da fase do ritmoteta. Se fossem aplicados estímulos elétricos às células no pico da ondateta, LTP era induzida. Se o mesmo estímulo fosse aplicado no pontomais baixo das ondas - ou na ausência de ritmo teta - não se induzia LTP.

Surgia, assim, um quadro coerente sobre o processamento damemória. Por exemplo, quando um rato explorando os neurônios do troncoencefálico ativam o ritmo teta. Os sinais de entrada olfativos (que no ratoestão sincronizados com o ritmo teta, assim como o movimento dasvibrissas) e outras informações sensoriais convergem ao córtex entorrinale ao hipocampo. Elas são aí divididas em "bites" de 200 milésimos de

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segundo pelo ritmo teta. Os receptores NMDA, agindo com o ritmo teta,permitem a armazenagem de longo prazo dessa informação.

Um processo similar ocorre durante o sono REM. Embora não hajaentrada de informação ou movimento durante o sono REM, a rede naturaldo neocórtex e do hipocampo sofre mais uma vez a ação marca-passo doritmo teta. O ritmo teta pode produzir mudanças duradouras na memória.

Armazenagem da Memória Espacial

Experimentos posteriores demonstraram que a memória espacialé de fato armazenada no hipocampo do rato durante o sono. John O'Keefee Jonathan O. Dostrovsky, da University College London, haviamdemonstrado que os neurônios de CAI no hipocampo do rato disparavamquando o animal desperto movia-se para um determinado local,denominado campo de ação. Esta descoberta implicava que o neurôniode CAI disparava para mapear o ambiente, associando, assim, a tarefa àmemória.

Em 1989, Pavlides e eu localizamos dois neurônios no hipocampodo rato que tinham campos de ação diferentes. Após de terminarmos asfreqüências normais de disparos nos animais em vigília e sono, colocamosum rato no campo de ação de um dos neurônios. O neurônio disparou deforma intensa, mapeando aquele local. A segunda célula disparou sóesporadicamente, já que não estava mapeando o espaço. Continuamosfazendo registros dos dois pares de neurônios conforme os ratos semovimentavam e entravam nos vários ciclos do sono. Seis pares deneurônios foram estudados dessa maneira. Descobrimos que os neurôniosque haviam mapeado o espaço disparavam a uma freqüência normalenquanto o animal se movia logo antes de dormir. Durante o sono,entretanto, passavam a disparar a um ritmo significativamente maior quedurante o período anterior de sono, que serviu como base de comparação.A freqüência de disparos nos neurônios que não haviam mapeado o espaço

A ativação do receptor NMDA induz apotencialização a longo prazo (LTP), ummodelo para a memória. A liberação doneurotransmissor glutamato (quadro àesquerda) abre um canal associado a umreceptor não-NMDA (N-metil-D-aspartato), permitindo o influxo de sódio,que despolariza o neurônio. Se uma novaliberação de glutamato ocorrer enquantoa célula estiver despolarizada (quadrocentral), o receptor NMDA abre umsegundo canal, que permite o influxo decálcio e leva à LTP. A LTP é resultado doaumento do influxo de sódio através docanal associado a um receptor não-NMDA(quadro à direita) e do subseqüenteaumento da despolarização da célula.

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não aumentou. Este experimento sugeria que o reprocessamento oufortalecimento da informação codificada quando o animal estava acordadoocorria durante o sono, em nível de neurônios individuais.

Bruce L. McNaughton e colegas da University of Arizonadesenvolveram uma técnica que registra, simultaneamente, um grandenúmero de neurônios do hipocampo que mapeiam locais, e permite aidentificação de padrões definitivos de disparo. Estudando animais, elesdescobriram que conjuntos de campos de ação de neurônios que mapeiamo espaço durante a vigília reprocessam a informação durante o sono deondas lentas e, depois, durante o sono REM. Portanto o processamentoda memória durante o sono pode ter dois estágios - um preliminar no sonode ondas lentas e um posterior no sono REM, quando os sonhos ocorrem.

A Evolução do Sono REM

Evidências de que o ritmo teta codifica a memória durante o sonoREM decorrem não somente de pesquisas neurocientíficas, mas tambémda evolução. A emergência de um mecanismo neural que processa amemória durante o sono REM sugere diferenças na anatomia do cérebroentre mamíferos com esta característica do ciclo do sono e aqueles sem.De fato, essas diferenças existem claramente entre o equidna e osmarsupiais e placentários.

O equidna tem uma grande extensão de circunvoluções do córtexpré-frontal, maior em relação ao resto do cérebro quando comparado comqualquer outro mamífero, inclusive humanos. Acredito que esta grandeextensão de córtex pré-frontal seja necessária para o desempenho deuma função dupla: reagir a entrada de informação de forma adequada,baseada na experiência passada; e avaliar e armazenar informações novaspara auxiliar a sobrevivência futura. Sem o ritmo teta durante o sono REM,o equidna não seria capaz de processar informação enquanto dorme. (Oequidna, entretanto, exibe o ritmo teta quando procura comida.) Para quehabilidades superiores se desenvolvessem, seria preciso que o córtex pré-frontal se tornasse cada vez maior - ultrapassando a capacidade da caixacraniana - a menos que surgisse outro mecanismo cerebral.

O sono REM pode ter fornecido esse novo mecanismo, permitindoque o processamento da memória ocorra "off-line". Concomitante aodesenvolvimento aparente do sono REM nos mamíferos marsupiais eplacentários, houve uma notável mudança neuroanatômica: o córtex pré-frontal foi dramaticamente reduzido. Menos dele era exigido para processara informação. Esta área do cérebro pôde se desenvolver no sentido deproporcionar habilidades de percepção avançadas em espécies superiores.

A natureza do sono REM apóia este argumento evolutivo. Duranteo dia, os animais colhem informações que envolvem locomoção amovimentos oculares. O reprocessamento desta informação durante osono REM não seria facilmente separado da locomoção relacionada aexperiência - tal dissociação exigiria excessiva revisão do circuito cerebral.Assim, a locomoção teve de ser suprimida pela inibição dos neurôniosmotores. O potencial de movimentos oculares, similarmente às ondas PGO,acompanha o movimento rápido dos olhos durante a vigília e tambémdurante o sono REM. A função desses sinais ainda não foi determinada,mas podem servir para alertar o córtex visual sobre a informação quechega quando o animal está acordado, assim como refletir oreprocessamento desta informação durante o sono REM. Seja como for,as ondas PGO não perturbam o sono e não precisaram ser suprimidas -diferentemente dos neurônios motores.

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Estratégia de sobrevivência

Com a evolução do sono REM, cada espécie pôde processar ainformação mais importante para sua sobrevivência, como localização dealimentos, meios de capturar presas ou de fugir - atividades durante asquais o ritmo teta está presente. No sono REM, esta informação pode seracessada novamente e integrada à experiência passada, para proporcionaruma estratégia progressiva de comportamento. Embora o ritmo teta nãotenha sido ainda demonstrado nos primatas, incluindo os seres humanos,os sinais cerebrais fornecem uma chave para a compreensão da origemdo sonho em seres humanos. Os sonhos podem refletir um mecanismode processamento da memória herdado de espécies inferiores, no qual ainformação importante para a sobrevivência é reprocessada. Essainformação pode constituir o cerne do inconsciente.

Como os animais não possuem linguagem, a informação queprocessam durante o sono REM é necessariamente sensorial. De formaconsistente com nossas primitivas origens mamíferas, os sonhos noshumanos são sensoriais, principalmente visuais, não assumindo a formade narração verbal.

Em consonância ainda com o papel desempenhado pelo sono REMno processamento da memória nos animais, não existe necessidadefuncional de que este material se torne consciente. A consciência surgemais tarde, com a evolução humana. Mas também não há razão para queo conteúdo dos sonhos não alcance a consciência. Assim, os sonhospodem ser lembrados - mais facilmente se o despertar ocorrer durante oulogo após o sono REM.

Minha hipótese é de que os sonhos refletem a estratégia desobrevivência das pessoas. Os temas dos sonhos são variados ecomplexos, incluindo auto-imagem, temores, inseguranças, poderes, idéiasgrandiosas, orientação sexual, desejo, ciúme e amor.

Os sonhos tem, claramente, um profundo núcleo psicológico. Estaobservação foi feita por psicanalistas desde Freud e admiravelmenteilustrada pela obra de Rosalind Cartwright, do RushPresbyterian-St. Luke'sHospital, de Chicago. Cartwright estudou 90 pessoas que passavam porprocessos de separação e divórcio conjugal. Todas foram avaliadasclinicamente e submetidas a testes psicológicos para determinar suasatitudes e respostas a crise pela qual passavam. Elas foram tambémdespertadas durante o sono REM para que relatassem seus sonhos porconta própria, sem perguntas que pudessem influenciar suasinterpretações. Em 70 dos casos estudados, o conteúdo dos sonhos referia-se a pensamentos inconscientes e estava fortemente relacionado ao modopelo qual a pessoa lidava com a crise quando acordada.

Embora não seja possível prever o tema "escolhido" para consideraçãodurante uma noite de sono, algumas das dificuldades da vida - como no casodas pessoas estudadas por Cartwright - vinculam-se de tal forma àsobrevivência psicológica que são selecionadas para processamento duranteo sono REM. Em circunstâncias normais, o tema dos sonhos pode ser livre,dependendo da personalidade do indivíduo. Ao se combinar com as intrincadasassociações que são parte intrínseca do processamento do sono REM, seusenunciados podem ser bastante obscuros.

Todavia, há razão para acreditarmos que o processo cognitivo queocorreu com as pessoas estudadas por Cartwright ocorra com todos. Ainterpretação depende dos eventos relevantes ou similares reconhecidospelo indivíduo; essas associações são muito influenciadas pelasexperiências da primeira infância.

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Minha hipótese permite também explicar a grande quantidade desono REM observada nos recém-nascidos e nas crianças. Os recém-nascidos passam 8 horas por dia em sono REM. O ciclo do sono está,nessa idade, desorganizado; ocorre em ciclos de 50 a 60 minutos,começando pelo sono REM, e não pelo de ondas lentas. Aos dois anos deidade, o sono REM é reduzido para três horas ao dia e diminui gradualmenteaté chegar a pouco menos de duas horas.

O sono REM pode desempenhar uma função especial nos bebês.Uma das teorias dominantes sustenta que estimule o desenvolvimento deneurônios. Sugiro que, por volta de dois anos de idade, quando ohipocampo, que continua a se desenvolver após o nascimento, torna-sefuncional, o sono REM assume sua função de memória interpretativa. Ainformação obtida durante a vigília e a ser integrada neste ponto dodesenvolvimento constitui o substrato cognitivo básico da memória - oconceito do mundo real contra o qual as experiências posteriores devemser comparadas e interpretadas. A organização na memória dessa extensainfra-estrutura exige o tempo adicional de sono REM.

Por razões que não podia conhecer, Freud apresentou em suaobra uma verdade profunda. Há um inconsciente e os sonhos são, defato, a "via privilegiada" para compreendê-los. Entretanto, as característicasdos processos inconscientes e associados do funcionamento do cérebrosão muito diferentes daquelas imaginadas por Freud. Proponho que oinconsciente seja considerado, não como um caldeirão de paixõesindomáveis e de desejos destrutivos, mas como uma estrutura mentalcontinuamente ativa e coesa que registra as experiências e reage de acordocom o seu próprio esquema de interpretação. Os sonhos não sãodissimulados em razão da repressão. Seu caráter incomum resulta dascomplexas associações que são selecionadas da memória.

A pesquisa sobre o sono REM sugere que há uma razãobiologicamente relevante para o sonho. A versão revisada da hipótese desíntese-ativação de Hobson e McCarley reconhece o profundo núcleopsicológico dos sonhos. Em sua formulação truncada atual, a hipótese daativação aleatória do tronco encefálico tem pouco poder explicativo oupreditivo.

A hipótese de Crick Mitchison atribui uma função para o sono REM- o aprendizado invertido - mas não se aplica a narrativa, só aos elementosbizarros do sonho. É preciso definir a implicação disto para oprocessamento REM nas espécies inferiores antes que a teoria possa sermelhor avaliada. Além disso, a hipótese Crick Mitchison, aplicada aohipocampo, sugeriria que os neurônios disparam aleatoriamente duranteo sono REM, permitindo assim o aprendizado invertido. Meu experimentocom os neurônios que mapeiam o espaço sugere, em vez disso, que estesneurônios disparam de forma seletiva, o que implica um processamentoordenado da memória.

Avi Karni e seus colegas do Weizmann Institute of Science, emIsrael, mostraram que o processamento da memória ocorre, nos humanos,durante o sono REM. No experimento que fizeram, os indivíduosaprenderam a identificar padrões específicos em uma tela. A memóriadesta habilidade foi aprimorada após uma noite de sono REM. Quando aspessoas foram privadas do mesmo, a memória não se consolidou. Esteestudo abre um campo de investigação promissor.

Talvez seja de maior importância a evidência, fornecida pela biologiamolecular, que confirma o papel desempenhado pelo sono REM noprocessamento da memória. Sidarta Ribeiro e seus colegas da RockefellerUniversity relataram que o gene zif-268, associado ao aprendizado, e

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ativado seletivamente durante o sono REM em ratos expostos a experiênciaem um período de anterior de vigília. Podemos esperar, dessa área depesquisa, uma maior compreensão do papel do sono REM.

Para conhecer maisInterspecies Differences in the Occurrence of Theta. Jonathan Winson Behavioral Biology, Vol. 7, No.4, pags. 479-487; 1972.Loss of Hippocampal Theta Rhythm Results in Spatial Memory Deficit in the Rat. Jonathan Winsonem Science, Vol. 201, No. 435, pags.160-163;1978.Brain and Psyche: The Biology of the Unconscious. Jonathan Winson Anchor Press, Doubleday,1985.Long-Term Potentiation in the Dentate Gyros is Induced Preferentially on the Positive Phase of Q-Rhythm. Constantine Pavlides, Yoram J. Greenstein, Mark Grudman e Jonathan Winson em BrainResearch,Vol. 439, págs. 383-387; 1988.Influences of Hippocampal Place Cell Firing in the Awake State on the, Activity of These Cells duringSubsequent Sleep Episodes. Constantine Pavlides a Jonathan Winson em Journal of Neuroscience,Vol. 9, No. 8, págs. 2907-2918; agosto,1989.Dependence on REM Sleep of Overnight Improvement of a Perceptual Skill. Avi Karni, David Tanne,Barton S. Rubenstein, Jean J. M. Askenasy a Dov Sagi em Science, Vol. 265, pags. 679-682; 29 dejulho de 1994.Reactivation of Hippocampal Ensemble Memories during Sleep. Mathew A. Wilson a Bruce L.McNaughton em Science Vol. 265, págs. 676-679; 29 de julho de 1994.Brain Gene Expression during REM Sleep Depends on Prior Wakin Experience. Sidarta Ribeiro,Vikas Goal Claudio V Mello e Constantine Pavlides em Learning and Memory, Vol. 6, págs 500-508;1999.

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Material de apoio da atividadeO envelhecimento dificulta oaprendizado devido a perda deneurônios?

Texto extraído da revista Scientific American, edição especial nº 4,2001 de Gerd Kempermann e Fred H. Gage

Novos neurônios no cérebro adulto

Ao contrário do que muitos acreditam, o cérebro humano adulto écapaz de gerar novas células. Essa descoberta levará a tratamentos maiseficazes para as doenças neurológicas?

Introdução

A cicatrização de um corte na pele ocorre em questão de dias.Uma fratura na perna pode ser resolvida sem maiores problemas se oosso estiver posicionado corretamente. Praticamente todo tecido humanoé capaz de se auto-recompor até certo ponto, graças, em grande parte, asversáteis células-tronco, cuja capacidade de se multiplicar e de gerardiversos outros tipos de células, assimila-se àquela de um embrião emdesenvolvimento. Um exemplo espetacular são as versões encontradasna medula óssea, capazes de produzir células encontradas no sangue:hemácias, plaquetas e uma variedade de células brancas. Outras células-tronco são responsáveis pela produção dos diversos componentes da pele,do fígado e do revestimento intestinal.

O cérebro adulto consegue, ocasionalmente, contrabalancearperdas bastante bem, ao fazer novas conexões entre neurôniossobreviventes. Porém, não é capaz de restaurar a si próprio, já que nãopossui as células-tronco necessárias. Ou, ao menos, era nisso que seacreditava recentemente. Em novembro de 1998, Peter S. Eriksson, doHospital Universitário Sahlgrenska, em Gotemburgo, na Suécia, Gage,membro de nossa equipe do Salk Institute for Biological Studies, em SanDiego, e diversos outros colegas, publicaram a surpreendente notícia deque o cérebro humano maduro continua a gerar neurônios regularmenteem pelo menos um local, o hipocampo, área importante para a memória ea aprendizagem (a memória não fica armazenada no hipocampo, porémele ajuda a formá-la após receber contribuições de outras partes docérebro).

O número de células novas é baixo em relação ao total do cérebro,mas nossa descoberta traz à tona perspectivas fascinantes para a medicina.Dados atuais sugerem que as células-tronco produzem novos neurôniosem uma outra parte do cérebro humano, além de serem encontradas,ainda que dormentes, em locais adicionais. Assim, é possível que nossocérebro, com capacidade de reparo tão precária, na realidade possuaenorme potencial para a regeneração neuronal. Caso se descubra comoinduzir células-tronco a produzir um volume útil de neurônios funcionaisem regiões específicas, diversos distúrbios que envolvem lesões deneurônios e a morte, como as doenças de Alzheimer e Parkinson, alémdas incapacidades decorrentes de acidentes vasculares cerebrais etraumatismo craniano, possivelmente poderão ser tratados.

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Há anos estudos com outros mamíferos adultos indicavam que océrebro humano totalmente desenvolvido seria capaz de produzirneurônios. Em 1965, Joseph Altman e Gopal D. Das, do MIT, descreverama produção de neurônios (neurogênese) no hipocampo de ratos adultosexatamente na mesma região, conhecida como giro denteado, onde estefenômeno foi recentemente descoberto no homem.

Apesar de estudos posteriores confirmarem o relato, a descobertanão foi vista como prova da existência de neurogênese significativa emmamíferos adultos, nem mesmo como indício do potencial regenerativodo cérebro humano. Os métodos disponíveis na época não eram capazesde estimar com precisão o número de neurônios produzidos ou provarque as novas células eram neurônios. Além disso, o conceito de células-tronco cerebrais ainda não havia sido introduzido. Acreditava-se que acriação de novos neurônios dependesse da reprodução de versões jámaduras algo extremamente difícil. A relevância das descobertas tambémfoi subestimada, em parte, porque até então não havia sido apresentadaprova da neurogênese em macacos ou símios, primatas, e, portanto,genética e fisiologicamente mais próximos do homem que outrosmamíferos.

A situação permaneceu assim até meados da década de 80, quandoFernando Nottebohm, da Rockefeller University, criou polêmica ao revelarresultados obtidos com canários adultos. Ele descobriu que a neurogêneseocorre nos centros cerebrais que regem a aprendizagem da música e, ainda,que o processo é acelerado durante épocas em que os pássaros adultosassimilam a música. Nottebohm e colegas também mostraram que a formaçãode neurônios no hipocampo de Chapins norte-americanos aumenta quandocrescem as exigências sobre o sistema de memória deles, principalmentequando precisam se lembrar dos locais de armazenamento de alimentos. Osimpressionantes resultados de Nottebohm levaram a um ressurgimento dointeresse pela neurogênese em mamíferos e pelo potencial regenerativo docérebro humano adulto.

Mas o otimismo não durou muito. Pasko Rakic e colegas da YaleUniversity foram pioneiros em estudar a neurogênese em primatas adultose o trabalho, muito bem feito para sua época, não encontrou novos

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neurônios no cérebro de macacos Rhesus. A lógica também ia contra ahipótese. Os biólogos sabiam que, com a evolução e a complexidade cadavez maior do cérebro, a neurogênese havia se tornado cada vez maisrestrita. Embora lagartos e outros animais inferiores desfrutem de umaregeneração neuronal grande quando seu cérebro é lesado, em mamíferosessa reação saudável estaria ausente. Parecia razoável supor que a adiçãode novos neurônios e complexidade de conexões do cérebro humanoameaçaria o fluxo organizado de sinais.

Indícios de que esse raciocínio poderia ser falho só surgiram háalguns anos. Em 1997, equipe comandada por Elizabeth Gould e BruceS. McEwen, do Rockefeller, a Eberhard Fuchs, do DeutschesPrimatenzentrum, em Gottingen, Alemanha, revelaram a existência deneurogênese no hipocampo do musaranho, animal próximo do primata.Em 1998, detectaram o mesmo fenômeno no sagüi. Apesar de maisdistantes do homem, em termos de evolução, que os macacos Rhesus,os sagüis não deixam de ser primatas.

Estudos em humanos

Ficou claro que só seria possível provar a capacidade humanapara a neurogênese na fase adulta estudando diretamente seres humanos.No entanto, as técnicas utilizadas para comprovar a formação de novosneurônios em animais não pareciam ser aplicáveis em pessoas. Elasvariam, mas em geral se baseiam no fato de que as células, antes de sedividirem, duplicam seus cromossomos, permitindo que cada célula filhareceba um conjunto completo. Nas experiências realizadas com animais,injeta-se um material rastreável (um "marcador") na cobaia, que se integrasomente ao DNA das células que se preparam para divisão. O marcadortorna-se então parte do DNA das células filhas e é herdado pelas filhasdas filhas, assim como pelos futuros descendentes das células originais.

Após um período, algumas das células marcadas se diferenciamou seja, se especializam em tipos específicos de neurônios ou célulasgliais (outro tipo principal de células cerebrais). O cérebro da cobaia éentão removido e seccionado, e as partes recebem um corante para ajudara localização das células que têm o marcador (sinal de que derivam dascélulas originais), a que apresentam as características químicas eanatômicas de um neurônio.

Obviamente, seres humanos não podem ser testados dessa forma.O obstáculo parecia intransponível até que Eriksson deparou com a soluçãodurante um período sabático com nossa equipe no Salk Institute. Emconsulta com um oncologista, Eriksson, que é clínico, descobriu que asubstância que utilizávamos como marcador em animais abromodeoxiuridina (BrdU) coincidentemente estava sendo ministrada aalguns pacientes, em fase terminal de câncer da laringe ou da língua, queparticipavam de um estudo. Eriksson percebeu que, se conseguisse obtero hipocampo dos que viessem a falecer, poderíamos verificar se algumneurônio exibia o marcador de DNA. Isso significaria que havia sido formadoapós a substância ser ministrada, ou seja, que havia ocorrido neurogênese,presumivelmente através da proliferação e diferenciação de células-troncodurante a fase adulta do paciente.

Eriksson obteve autorização para a pesquisa. Entre o início de 1996e fevereiro de 1998, recebeu o tecido cerebral de cinco pacientes, entre57 a 72 anos de idade, falecidos. Conforme as expectativas, os cérebrosapresentavam novos neurônios - especificamente aqueles conhecidoscomo células granulares no giro denteado. Devemos a prova da

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neurogênese humana adulta à generosidade desses pacientes. Desdeentão, a equipe de Gage, bem como Steven A. Goldman e colegas dafacudade de medicina da Cornell University, têm isolado células cerebraisde autópsias e biópsias do hipocampo de adultos. Essas célulasconseguem se dividir em meios de cultura e serem induzidas a produzirneurônios, confirmando assim a possibilidade de haver neurogênese nocérebro humano adulto.

Novos Neurônios Funcionam?

É claro que só demonstrar a neurogênese humana não é suficiente.Se o objetivo final é estimular a regeneração neuronal controlada emdoentes, é necessário que se determine a localização das células-troncocapazes de se tornar neurônios, que elas serão funcionais e poderão enviare receber mensagens de forma correta. Felizmente, já que a neurogêneseno hipocampo dos roedores representa um fenômeno que ocorre nocérebro humano, os pesquisadores podem voltar a realizar estudos comratos e camundongos a procura de pistas.

Estudos anteriores com roedores revelaram que algum tipo deneurogênese ocorre durante toda a vida não apenas no hipocampo, mastambém no sistema olfativo. As células-tronco também podem serencontradas em partes do cérebro como o septo (envolvido, em processosde emoção e aprendizagem), o striatum (envolvido na sintonia fina deatividades motoras) e a medula espinhal. Porém, as células que seencontram fora do hipocampo e do sistema olfativo não parecem produzirneurônios em condições normais.

Se a parte anterior do cérebro de um animal fosse transparente, aporção do giro denteado do hipocampo seria visualizada como uma camadafina e escura e teria mais ou menos a forma de um V visto de lado. EsseV é composto por corpos celulares de neurônios granulares partesglobulares que contém o núcleo. A camada adjacente interna deste V édenominada hilo e é composta principalmente por axônios, projeçõeslongas através das quais células granulares transmitem sinais para umaestação de relé hipocampal conhecida como CA3.

Uma célula-tronco totipotente, capaz deproduzir qualquer célula do corpo, produzdescendentes iniciais que incluem células-tronco, ainda não especializadas,comprometidas com a produção de célulascerebrais (1). Essas células comprometidas,posteriormente produzem células"progenitoras", destinadas a criar apenasneurônios (2), ou células gliais, que promovema sobrevivência dos mesmos. Finalmente asprogenitoras neuronais geram célulasgranulares no hipocampo (3) ou outro tipo deneurônio em outras partes do cérebro. Ospassos 2 e 3 parecem se repetir durante todavida no hipocampo humano.

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As células-tronco que produzem novas células granulares ficamna divisa entre o giro denteado e o hilo e se dividem continuamente. Muitasdas descendentes são exatamente iguais as células precursoras, e grandeparte delas parece morrer logo após ser produzida. Algumas células migrampara regiões mais profundas da camada de células granulares e adquirema aparência daquelas ao seu redor, incluindo suas múltiplas projeçõespara recepção e envio de sinais. Além disso, estendem seus axônios pelosmesmos trajetos utilizados por células vizinhas já estabelecidas.

As células-tronco que produzem novos neurônios no sistemaolfativo alinham-se ao longo das paredes de cavidades cerebrais repletasde líquidos, conhecidas como ventrículos laterais. Arturo Alvarez Buylla ecolegas do Rockefeller demonstraram que algumas descendentes destascélulas-tronco migram uma boa distância para dentro do bulbo olfatório,onde adquirem características dos neurônios dessa área.

Considerando que os novos neurônios em ambas as regiõescerebrais se parecem com os nascidos anteriormente, existe uma grandepossibilidade de que seu comportamento também seja igual. Mas comoprovar isso? Estudos que analisam os efeitos do meio ambiente naanatomia cerebral têm nos ensinado muito. No início dos anos 1960, MarkR. Rosenzweig e colegas da University of California, em Berkeley,removeram roedores de suas condições normais no laboratório, bastanteespartanas, e os colocaram em um ambiente mais rico, onde desfrutavamdo luxo de viver em grandes gaiolas e conviver com outros roedores. Alémdisso, podiam explorar os arredores (constantemente modificados pelosresponsáveis) e usar diversos brinquedos.

O grupo de Rosenzweig, e mais tarde o de William T. Greenough,da University of Illinois, descreveram conseqüências admiráveis desseexperimento. Em comparação com animais mantidos nas gaiolas padrão,o cérebro daqueles que desfrutaram de uma vida mais rica ficou maispesado, além de apresentar maior densidade de determinadas estruturas,diferenças nos níveis de alguns neurotransmissores (moléculas quetransportam mensagens estimuladoras ou inibidoras de um neurônio paraoutro), maior número de conexões entre as neurônios e maior ramificaçãode projeções neuronais. E demonstraram melhor desempenho em testesde aprendizagem.

Desde então, neurobiólogos se convenceram de que o enriquecimentodo ambiente em que vivem roedores maduros influencia o processo deformação da circuitaria cerebral, aumentando sua capacidade cerebral.Durante anos, porém, a noção de que a produção de novos neurônios nocérebro adulto poderia contribuir para isso foi descartada, mesmo após Altmanter sugerido, já em 1964, que tal processo deveria ser considerado.

Outras descobertas confirmaram que modificações ambientais defato afetam a neurogênese adulta. Através da aplicação de uma tecnologianão disponível na década de 1960, nosso grupo demonstrou, em 1997,que camundongos adultos com condição de vida mais rica produziram60% mais células granulares novas no giro denteado que um grupo decontrole geneticamente idêntico. Também se saíram melhor em um testede aprendizagem. A melhoria do ambiente aumentou até mesmo aneurogênese e o desempenho de aprendizagem de camundongos comidade bastante avançada, cuja taxa básica de produção neuronal é muitomais baixa que a de adultos jovens.

Não estamos afirmando que as melhorias de comportamentotenham ocorrido unicamente graças aos novos neurônios, uma vez quemodificações na configuração das ramificações, bem como nomicroambiente químico das áreas cerebrais envolvidas sem dúvida têm

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papel importante. Por outro lado, seria surpreendente se um progressotão dramático na formação de neurônios, assim como a preservação daneurogênese adulta durante a evolução, não servisse a alguma função.

Em Busca de Controles

Diversos artigos descreveram fatores individuais que, quandomanipulados, afetam a neurogênese adulta. Estas manipulações variamdesde lesões que simulam traumatismo craniano ou derrames, a modelosexperimentais de epilepsia ao emprego de drogas antidepressivas. Apesardos vários estudos, baseados em diferentes paradigmas experimentais eutilizando diferentes critérios analíticos, ainda não se tem uma idéia clarade como a neurogênese adulta seja regulada. Porém, a variedade defatores eficazes e as diferenças, aparentemente sutis, em seus efeitos,sugerem que a neurogênese adulta é, de maneira geral, muito sensível amudanças em diversos sistemas regulatórios do cérebro.

Alguns aspectos da neurogênese adulta parecem reagir a estímulosde forma um tanto inespecífica, ao contrário de outros. Foi dada a largadapara a busca dos fatores específicos que controlarão a neurogênese adulta.Estamos particularmente interessados em elucidar como a regulaçãodependente de atividades da neurogênese adulta é mediada em nível demoléculas a genes. A compreensão dos mecanismos de controle daformação de neurônios poderia eventualmente ensinar como estimular aregeneração onde esta for necessária. Além do enriquecimento doambiente, estudos com animais identificaram diversos outros fatores queinfluenciam a neurogênese.

Para que estes resultados façam mais sentido, é necessáriorecordar que a neurogênese ocorre em diversos estágios desde aproliferação das células-tronco, passando pela sobrevivência de algumasdescendentes, até a migração e diferenciação celular. Fatores que têminfluência em um estágio não afetam necessariamente outro. Um aumentona proliferação das células-tronco pode produzir crescimento no númerode novos neurônios, se a taxa de sobrevivência e diferenciação das células-filhas permanecer constante, mas, se for na direção inversa, é possívelque este aumento não ocorra. Da mesma forma, o número de neurôniospode aumentar mesmo se a proliferação for constante, caso a sobrevivênciae diferenciação aumentem.

Entre as influências regulatórias descobertas, algumas parecemdesestimular normalmente a neurogênese. Nos últimos anos, por exemplo,Gould e McEwen relataram que certas intervenções diárias no girodenteado podem conter a produção de neurônios. Mais especificamente,os neurotransmissores que estimulam as células granulares também sãoresponsáveis pela inibição da proliferação das células-tronco no hipocampo.Altos níveis de glucocorticóide no sangue também inibem a neurogêneseadulta.

A equipe demonstrou que o estresse reduz a proliferação de células-tronco na mesma região, pois leva à liberação de neurotransmissoresexcitativos e à secreção de hormônios glucocorticóides nas supra renais.Compreender os mecanismos envolvidos na inibição é importante paraaprender a superá-la. A descoberta de que níveis extremos detransmissores excitatórios e de certos hormônios podem conter aneurogênese não significa necessariamente que níveis mais baixos sejamprejudiciais; na realidade, podem até ser úteis.

Quanto aos fatores que estimulam a neurogênese hipocampal, temostentado identificar quais elementos de um ambiente mais rico exercem mais

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efeito. Gould, agora na Princeton University, e colegas demonstraram que aparticipação em um teste de aprendizado, mesmo na ausência de condiçõesmais ricas, favorece a sobrevivência das células geradas através da divisãodas células-tronco, resultando em aumento do número de neurônios. Nossaequipe comparou a neurogênese em dois grupos de camundongos mantidosem gaiolas-padrão, uma com roda de exercícios e outra, sem. Oscamundongos com acesso ilimitado a roda utilizaram na freqüentemente eacabaram por produzir duas vezes mais neurônios que seus companheirossedentários, número comparável àquele encontrado nos camundongos quehaviam sido mantidos em ambiente enriquecido. Nos camundongos que seexercitaram, uma maior taxa de divisão de células-tronco exerceu influênciano efeito final, enquanto este fator não teve influência nos ganhos do gruposubmetido a um ambiente mais rico. Neste último caso (como no estudo deGould), as condições estimulantes aparentemente promoveram asobrevivência da progênise das células-tronco, para que um maior númerodelas sobrevivesse até se tornar neurônio. Os processos que regulam aneurogênese em adultos são complexos e ocorrem em diversos níveis.

Certas moléculas sabidamente influenciam a neurogênese.Avaliamos os fatores de crescimento epidérmico e de fibroblastos, que,apesar de seus nomes, afetam o desenvolvimento de neurônios em culturasde células. Com H. Georg Kuhn, então no Salk Institute, e Jürgen Winkler,da University of California, em San Diego, administramos estes compostosaos ventrículos laterais de ratos adultos, onde desencadearam umaproliferação acentuada nas células-tronco locais. O fator de crescimentoepidérmico favoreceu a diferenciação das células resultantes em célulasgliais no bulbo olfatório, enquanto o fator de crescimento de fibroblastospromoveu produção neuronal.

É interessante que a indução de determinadas condiçõespatológicas, como crises epiléticas ou derrames, em animais adultos,podem despertar divisão intensa de células-tronco e até mesmoneurogênese. Ainda não se sabe se o cérebro pode utilizar esta respostapara repor neurônios necessários. No caso de crises epiléticas, talvez asconexões aberrantes formadas por neurônios recém-nascidos sejam partedo problema. A divisão de células-tronco e a neurogênese são provasadicionais de que o cérebro tem potencial para a auto-regeneração. Aquestão é: por que esse potencial normalmente não é utilizado?

Nos experimentos discutidos até agora, eventos regulatórios foramexaminados enquanto os genes eram mantidos constantes: observamosas reações neurológicas de animais geneticamente idênticos a diferentesintervenções. Pode-se também identificar mecanismos de controle daneurogênese mantendo-se o ambiente constante e comparando genesem linhagens de animais cujas taxas de produção de neurônio sediferenciam de forma inata. Presumivelmente, os genes que variam incluemaqueles que afetam o desenvolvimento de novos neurônios. Pesquisadorespodem comparar os genes ativos em regiões do cérebro que apresentamou não neurogênese.

Os genes agem como mapas para as proteínas, que, por sua vez,executam grande parte das atividades celulares, como a indução da divisãocelular, migração ou diferenciação. Assim, caso os genes que participam dageração de neurônios sejam identificados, deve ser possível descobrir seusprodutos proteicos e quais suas contribuições específicas à neurogênese.

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Regenerando o Cérebro

É possível que os pesquisadores consigam rastrear as cascatasmoleculares que levam de um estímulo específico seja ele uma modificaçãoambiental ou um evento interno as alterações específicas na atividadegenética, que provoquem aumento ou diminuição na neurogênese. Estarão,então, de posse de grande parte das informações necessárias para induzir aregeneração como queiram. A abordagem terapêutica pode envolver aadministração de moléculas reguladoras essenciais ou de outros agentesfarmacológicos, aplicação de terapia genética para fornecer moléculas,transplante de células-tronco, modulação de estímulos ambientais oucognitivos, alterações na atividade física ou uma combinação destes fatores.

A compilação pode levar décadas. Porém, uma vez coletadas, astécnicas poderiam ser aplicadas de diversas maneiras. Poderiam forneceralgum tipo de regeneração, tanto em áreas do cérebro que sabidamentemanifestem alguma neurogênese, quanto em locais onde células-troncoexistam, mas estejam inertes. Talvez seja possível estimular células-troncoa migrar para áreas onde não costumam ir e amadurecer, tornando-setipos específicos de neurônios. Apesar de as novas células não seremcapazes de restituir partes inteiras do cérebro ou recuperar memóriaperdida, poderiam, por exemplo, produzir quantidades valiosas dedopamina (neurotransmissor cuja depleção é responsável pelos sintomasda doença de Parkinson) ou de outras substâncias.

Pesquisas realizadas em áreas científicas correlatas auxiliam nabusca por terapias avançadas. Por exemplo, diversos laboratóriosaprenderam a cultivar células-tronco de embriões humanos. Altamenteversáteis, elas são capazes de produzir praticamente qualquer tipo decélula do corpo humano, e um dia talvez possam ser estimuladas a produzirum tipo específico de neurônio, que seria então transplantado para locaislesados. Para solucionar a potencial rejeição de transplantes pelo sistemaimunológico, poder-se-ia coletar células-tronco no cérebro do própriopaciente, em vez de utilizar as de um doador. Já foram desenvolvidasmaneiras relativamente não invasivas de extrair essas células.

Estas aplicações médicas são ainda um objetivo de longo prazo.Um dos principais desafios é que as análises de fatores que controlam aneurogênese e das terapias propostas para distúrbios do cérebro terão depassar, em algum momento, dos roedores para seres humanos. Paraestudar seres humanos sem interferir com sua saúde, será necessáriolançar mão de protocolos extremamente inteligentes, com técnicas nãoinvasivas, como imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) outomografia por emissão de pósitrons (PET). Além disso, será precisodesenvolver mecanismos de defesa que garantam que os neurôniosestimulados a se formar no cérebro humano (ou transplantados) executemexatamente o que desejamos e não interfiram nas funções normais docérebro.

O Papel da Neurogênese

A principal questão permanece: qual é a função prática daneurogênese adulta? A aparente complexidade de sua regulação e suareação a estímulos funcionais sugerem que tenha papel importante nafunção hipocampal. Gage, Henriette van Praag, do Salk Institute e AlejandroF. Schinder, agora na University of California, em San Diego, desenvolveramum novo método para marcar células recém-nascidas e demonstraramque as propriedades eletrofisiológicas dos novos neurônios hipocampais

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gerados são idênticas àquelas das células vizinhas mais antigas. Essadescoberta esclareceu se a neurogênese adulta produz ou não neurôniosfuncionais, mas ainda não se sabe o papel que estes exercem nohipocampo.

As tentativas de ligar a neurogênese à aprendizagem e à memóriasão inconclusivas. O hipocampo é considerado o portal da memória:processa informações antes do armazenamento de longo prazo nas regiõescorticais. Este processo é denominado consolidação da memória, eacreditamos que a função dos novos neurônios tenha alguma ligação comele. Mas as novas células não são adicionadas ao hipocampo como um"chip de memória", uma vez que seu número seria baixo demais paraarmazenar quantidade significativa de informações. Além disso, asinformações são armazenadas na força das conexões em uma rede deneurônios, e não em células individuais. Nossa hipótese é que os novosneurônios são adicionados de forma estratégica a rede de processamentodo giro denteado e possivelmente sejam os novos guardiões dos portaisda memória, modificando o processador de acordo com o aumento dasnecessidades funcionais.

Uma questão que deve ser esclarecida é se a neurogênese ocorreem outras partes do cérebro. A neurogênese adulta foi descrita em duasregiões: o hipocampo e o sistema olfativo, e há grande controvérsia emtorno de sua existência fora delas. Apesar de Gould ter relatado númerossurpreendentes de novos neurônios no neocórtex, essa descoberta foiconvincentemente desafiada por David Kornack, da University of Rochester,e por Pasko Rakic que, após minuciosa análise microscópica, nãoconseguiram encontrar novos neurônios corticais.

Sabe-se, com base em estudos de cultura celular realizados comroedores, que células-tronco neuronais capazes de produzir neurôniosem uma placa de Petri podem ser derivadas de praticamente qualquerregião do cérebro, inclusive do córtex. Porém, sob condições fisiológicas,nenhum neurônio parece se desenvolver a partir destas células enquantose encontram no cérebro e fora das duas regiões neurogênicas clássicas.Jeffrey D. Macklis e colegas da Harvard University demonstraram que,sob condições de lesão altamente específicas e circunscritas a neurôniosindividuais no córtex de camundongos, essas células podem sersubstituidas por células progenitoras naturais, ou endógenas. A descobertanão se aplica com facilidade a condições mais gerais, mas mostra que,em principio, a neurogênese cortical é factível.

Como podemos utilizar o potencial neurogênico das células-tronconeuronais do cérebro adulto para fins terapeuticos? É possível que um diase descubra que a neurogênese direcionada seja, de fato, uma opçãopara os distúrbios neurológicos. Diversas perguntas ainda devem serrespondidas, mas, com o crescente interesse nesta área, é possível queeste potencial se torne realidade antes do esperado.

Para conhecer mais:More Hippocampal Neurons in Adult Mice Living in an Enriched Environment. Gerd Kempermann, H.Georg Kuhn a Fred H. Gage em Nature, Vol. 386, págs. 493-495; 3 de abril de 1997.Neurogenesis in the Adult Human Hippocampus. Peter S. Eriksson et al. em Nature Medicine, Vol. 4,No. 11, págs.1313-1317; novembro de 1998.Learning Enhances Adult Neurogenesis in the Hippocampal Formation. Elizabeth Gould et al emNature Neuroscience, Vol. 2, No. 3, págs. 260-265; março de 1999.Running Increases Cell Proliferation and Neurogenesis in the Adult Mouse Dentate Gyrus. Henriettevan Praag et al. em Nature Neuroscience, Vol. 2, No. 3, págs. 266-220; margo de 1999.Neurogenesis in Adult Primate Neocortex: An Evaluation of Evidence. Pasko Rakic em Nature Reviews:Neuroscience, Vol. 3, págs. 65-71; janeiro de 2002.Functional Neurogenesis intheAdult Hippocampus. Henriette van praag, Alejandro F Schinder, BrianR. Christie, Nicolas Toni, Theo D. Palmer a Fred H. Gage em Nature, Vol. 415, págs.1030-1034; 28de fevereiro de 2002.

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Material de apoio da atividadeExistem coisas mais fáceis de lembrardo que outras?

Prestando atenção e lembrando

Uma maneira importante pela qual a percepção se torna conscienteé através da atenção, que, em essência, é a focalização consciente eespecífica sobre alguns aspectos ou algumas partes da realidade. Assimsendo, nossa consciência pode, voluntariamente ou espontaneamente,privilegiar um determinado conteúdo e determinar a inibição de outrosconteúdos vividos simultaneamente.

Portanto, reconhece-se a Atenção como um fenômeno de tensão,de esforço, de concentração, de interesse e de focalização da consciência.

Tipos de atenção

Nossos cinco sentidos podem ser ativados conscientemente parafocalizar a Atenção sobre um determinado estímulo. Os condicionamentos,muitas vezes inconscientes, podem proporcionar uma certa atividade deespera, mais ou menos orientada, no sentido de confirmar ou não umadeterminada expectativa.

Ao acrescentar mais sal na comida, por exemplo, nosso paladarespera, com certa expectativa, constatar determinado gosto, assim comoesperamos ver momentos antes, determinada cena de acidente aoconstatar a direção e velocidade de um carro de corridas. Trata-se daespera pré-perceptiva. Outras vezes, entretanto, quando os resultadosfogem completamente da expectativa perceptiva, acontece uma espéciede choque sensorial que dá origem a um estado de surpresa.

Ao olhar para um objeto, por exemplo, a pessoa se inclina na direçãodesse objeto, e o mecanismo ocular atua de forma que os olhos se dirijamao objeto até que este caia na fóvea; os músculos do cristalino seacomodam de forma que a imagem fique no foco mais claro, etc. Ao ouvirum som baixo a pessoa estica o pescoço para a frente, coloca sua mãoatrás da orelha, e pode fechar os olhos a fim de eliminar os estímulosvisuais concorrentes na tentativa de selecionar um determinado objeto(sonoro) como foco de sua Atenção.

Veja-se, por exemplo, a brincadeira de tapa nas mãos. Nestejoguete um dos jogadores, aquele que dará os tapas, fica com as mãosespalmadas para cima, enquanto o outro coloca suas mãos sobre as mãosdo primeiro. Repentinamente o primeiro tentará retirar suas mãos eestapear as mãos do segundo. Vence o mais rápido. O segundo deveretirar suas mãos, tão logo perceba que o primeiro iniciou o movimento deestapeá-lo.

Afeto e atenção

Um dos fatores individuais de maior influência no processo daAtenção destacam-se as condições do estado de ânimo ou de interesse,os quais podem facilitar ou inibir a mobilização da Atenção. Portanto, oelemento afetivo tem significação determinante no processo da Atenção,admitindo-se que a pessoa só dirige a Atenção aos estímulos que lhe

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despertam interesse. De fato, ao constarmos que nossa Memória temmais afinidade para as coisas que nos despertam maior interesse, estamosfalando antes, que nossa Atenção (indispensável para a Memória) émobilizada mais prontamente pela nossa afetividade.

Nossa Atenção sobre algo é tanto mais intensa quanto mais nosinteressa esse algo, quanto mais desejamos conhecê-lo e compreendê-lo, quanto mais isto nos proporcione prazer ou satisfação. É por isso que,durante os episódios depressivos, onde o prazer e o interesse estãosignificativamente comprometidos, a Atenção e a Memória estarão tambémseveramente prejudicadas; por falta de interesse e prazer.

Vamos fazer um teste

Você tem 3 minutos para responder a cada grupo de perguntasabaixo. Cronometre o tempo gasto para cada uma das duas etapas.

ETAPA 1

• Escreva o nome das cinco pessoas mais ricas do mundo

• Cite o nome dos últimos ganhadores do Prêmio Nobel

• Aproveite e escreva o nome dos(as) cinco últimos(as) prefeitos(as)do Rio de Janeiro

• Escreva o nome de dez ganhadores de medalha de ouro nasolimpíadas

• E para terminar lembre e escreva o nome dos 12 últimosganhadores do Oscar de melhor ator

ETAPA 2

• Escreva o nome dos professores que você mais gostava

• Lembre de três amigos que ajudaram você em momentos difíceise escreva seus nomes

• Cite cinco pessoas que lhe ensinaram coisas valiosas

• Pense nas pessoas que lhe fizeram se sentir amado e especial eescreva seus nomes

• Escreva o nome de cinco pessoas que você gosta de estar

Despertam mais nossa Atenção as coisas com as quais mantemosalgum laço de interesse, alguma predileção. Passeando num shopping aspessoas detém-se (prestam Atenção) diante das vitrinas que lhesdespertam maior interesse, que mais lhes mobilizam afetivamente.

Níveis e distribuição da atenção

Ao estudar a extensão do campo de Atenção, julga-se muito maisimportante a captação de uma totalidade ou captação do todo significativo,que a quantidade de objetos que a serem captados pela Atenção. ParaWilliam Stern, a Atenção é a condição imediata para a produção de umarealização pessoal e suas características consistem num esclarecimentoconsciente, na concentração de uma força psíquica disponível para oesclarecimento da realidade.

A Atenção da pessoa, num determinado momento pode estardistribuída de várias maneiras no campo da realidade. Pode estarconcentrada num único objeto, dando-se pouca Atenção ao resto, pode

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estar difusamente espalhada, sem que uma parte específica estejapredominantemente em foco ou, por fim, pode estar dividida entre váriosobjetos, quando então a pessoa procura prestar Atenção, simultaneamente,a duas ou mais coisas. Quanto maior a divisão da Atenção entre objetos,maior a perda de qualidade da Atenção dada a cada parte.

Conforme vimos acima, a amplitude limitada da apreensão, e ofato de que quanto maior a divisão da Atenção menor a sua qualidade,acentuam a necessidade da organização perceptual. Quando algumaspartes do campo são organizadas em todos maiores, a Atenção necessáriapara percebê-las eficientemente será menor do que quando as partes sãosimplesmente observadas separadamente.

Através da organização e do agrupamento de objetos a serempercebidos podemos estender a amplitude da Atenção. Se separarmosnove grãos de feijão em três grupos de três grãos, podemos vê-los maisfacilmente. Este é um exemplo simples do princípio segundo o qual aorganização tem como função permitir; à pessoa, dirigir a Atenção paramaior quantidade de material.

Podemos ver a mesma coisa, de maneira mais significativa, nodesenvolvimento de habilidades específicas ou do treinamento. Não énecessário prestar Atenção a uma atividade bem treinada, pela simplesrazão de que o todo integrado está tão reunido que pode ser realizadosem Atenção as suas partes isoladas. A inspeção de qualidade numafábrica, por exemplo, é uma atividade tão treinada que o funcionário écapaz de ater-se rapidamente à qualquer coisa que estiver estranha àquiloconsiderado desejável. Este funcionário desenvolve seu trabalho muitomais rapidamente que outra pessoa não treinada. Assim, é possívelperceber, com um simples olhar, situações complexas.

A organização dos objetos facilita para que os estímulos seencaixem na expectativa a ser percebida, sem necessidade de Atençãocuidadosa a cada uma das partes isoladamente. Isso, naturalmente,permite maior eficiência, embora também possa provocar erros que passamdesapercebidos, quando estes eventualmente se encaixem bem naorganização.

Determinantes da atenção

Falamos comumente da Atenção como voluntária ou involuntária.A primeira refere-se a casos onde o indivíduo parece ter liberdade nadeterminação do foco de sua Atenção, liberdade em escolherintencionalmente aquilo sobre que prestar Atenção. Entretanto, aoestudarmos a influência da motivação, do interesse e da afetividade sobrea Atenção essa simples divisão em voluntária e involuntária ficará maiscomplicada. De qualquer forma vamos falar sobre essa divisão.

A Atenção involuntária ou espontânea refere-se a casos em que apessoa parece menos o agente de escolha da direção de sua Atenção doque um joguete nas mãos de forças que a obrigam a atentar para isso ouaquilo. Numa narração folclórica e acaboclada de um contador de casosgoiano , é cômica a passagem onde diz, diante da censura de sua mulherpor ter olhado demais para outra mulher: "- eu não queria olhar, mas osolhos queriam...".

Alguns determinantes da Atenção involuntária estão relacionadosao afeto e sentimento dirigidos para o objeto, como é o caso da pessoafaminta dirigir sua Atenção, irresistivelmente, para o alimento da vitrina dorestaurante.

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Outros determinantes se ligam a características duradouras dosobjetos estimulantes. Essas características determinantes podem ser tãosolicitantes que acabam atraindo tiranicamente a Atenção, apesar deparecer que a pessoa atentou voluntariamente. As características dosestímulos, que exigem Atenção, foram muito estudadas por experimentosde laboratório e por técnicas de propaganda. Esses fatores determinantesdo estímulo podem ser sumariados da seguinte maneira:

Determinante de Exemplo

intensidade .......................... o silvo da sirene do carro de bombeiros

repetição.............................. anúncios na televisão

isolamento ........................... uma única palavra, na página da revista

movimento e mudança ........ o pisca-pisca no cruzamento da estrada

novidade .............................. o desenho exagerado do último modelo de carro

incongruência ...................... a mulher fumando um charuto

Tenacidade e vigilância

O ato de perceber consiste na apreensão de uma totalidade e queessa totalidade não representa uma simples soma do elementos isoladoscaptados pelos órgãos sensoriais. O todo sensorial caracteriza umadeterminada forma, e esta forma percebida pelos sentidos seráqualitativamente diferente daquilo que representa suas partes isoladas.

Para a Atenção, também, somente uma parte das excitaçõessensoriais adquire relevo, dando origem a uma forma sobre a qual sepolariza a Atenção, enquanto as partes restantes representam o fundo,menos claro, mais difuso e mais fluido. Não existem quaisquer elementosisolados, mas apenas fins totais e integrado para alguma realizaçãopessoal, e serão "claras" e "nítidas" as percepções contidas no foco daAtenção, "vagas" e "difusas" aquelas que se encontram além desse foco.

O nível da Atenção depende de vários fatores. Como vimos acima,o principal desses fatores é o ânimo ou o interesse (em outras palavras, oafeto). Quando nos encontramos diante de uma variedade de objetos, aAtenção está dispersa e os diferentes objetos recebem pequenasquantidades de energia e alcançam um grau médio de Atenção. Mas, aoconcentrarmos a Atenção num único objeto, toda a energia se orientaneste sentido e os demais objetos ficam numa zona obscura. No entanto,no objeto em que se concentrou a Atenção se descobre uma infinidade depormenores que haviam passado desapercebidos quando este se achavaimerso nos demais. Neste caso a Atenção foi polarizada no objetoescolhido.

Isso significa que dentro do campo da Atenção nem todos osestímulos recebem a mesma conscientização e energia. Vale aqui o alvoinicialmente exemplificado: em torno de uma zona central especialmenteiluminada e energicamente acentuada, situam-se zonas de fracaintensidade.

Quando estamos dirigindo o foco principal da Atenção deve estarna estrada e no trânsito à nossa volta. Em nível menos profundo de Atençãoestão os acostamentos da estrada, o ruído do motor, os instrumentos dopainel do veículo etc. De um modo geral, o campo de visão mais externo,a visão periférica, utiliza a energia psíquica sem propósito de foco daAtenção, mas apenas como possibilidade para um eventual foco futuro.

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Usando ainda o exemplo de dirigir, há também a Atenção de espera,quando então procuramos, espreitamos, espiamos ou exploramos, semnenhum objeto específico a se focar a Atenção. Digamos que é umaAtenção para as possibilidades. Nesses casos, o objeto da Atenção aindanão se acha presente, tudo é indeterminado, não se conhece o onde, nemo quando do que vai ser percebido. Pode ser que um cachorro atravesseem nossa frente. Esta expectância e incerteza exige que a Atenção percorracontinuamente um campo mais amplo para, no caso do objeto aparecer,não o deixar escapar e colocá-lo imediatamente em foco. Para completaresse exemplo temos que entender o que é tenacidade e o que é vigilância.

Bleuler destaca duas qualidades na Atenção: a tenacidade e avigilância. A tenacidade é a propriedade de manter a Atenção orientada demodo permanente em determinado sentido. A vigilância é a possibilidadede desviar a Atenção para um novo objeto, especialmente para um estímulodo meio exterior. Essas duas qualidades da Atenção se comportam,geralmente, de maneira antagônica, ou seja, quanto mais tenacidade sobreum determinado objeto está se dedicando, menos vigilante estamos emrelação à eventuais estímulos a serem apreendidos.

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