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  D a v i d H u m e UMA IN VEST IG A ÇÃ O  SOBRE OS PRINCÍPIOS DA MO R AL

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Uma investigação, livro completo de Hume.

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  • David Hume

    UMA INVESTIGAO SOBRE OS PRINCPIOS

    DA MORAL

    EDITORA DAUNICAMP

  • EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    UNICAMP

    Reitor: Jos Martins Filho Coordenador Geral da Universidade: Andr Villalobos

    Conselho Editorial: Alfredo Miguel Ozorio de Almeida, Antonio Carlos Bannwart, Csar Francisco Ciacco (Presidente), Eduardo Guimares, Hermgenes de Freitas Leito Filho, Hugo Horcio Torriani, Jayme Antunes Maciel Jnior, Luiz Roberto Monzani, Paulo Jos Samenho Moran

    Diretor Executivo: Eduardo Guimares

  • DAVID HUME

    UMA INVESTIGAO SOBRE OS

    PRINCPIOS DA MORAL

    Traduo:Jos Oscar de Almeida Marques

  • FICH A CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNICAM P

    Hurae, David, 1711-1776.H882i Uma investigao sobre os princpios da moral / David

    Hume ; traduo : Jos Oscar de Almeida M arques. -- Cam pinas, SP : Editora da UNICAM P, 1995.

    (Coleo Repertrios)

    Traduo de : An Enquiry concerning the Principies of Morais.

    1. Teoria do conhecimento. 2. Filosofia inglesa. 3. tica.I. Ttulo.

    20.CDD -121 -192

    ISBN 85-268-0337-9 -142.7

    ndices para catlogo sistemtico:1. Teoria do conhecimento 1212. Filosofia inglesa 1923. tica 142.7

    Coleo Repertrios

    Projeto Grfico Camila Cesarino Costa

    Eliana Kestenbaum

    Coordenao Editorial Carmen Silvia P. Teixeira

    Produo Editorial Sandra Vieira Alves

    Preparao de originais Vera Luciana Morandim

    RevisoRosa Dalva V. do Nascimento Ivana de Albuquerque Mazetti

    Fotocomposio, paginao e filmes Helvtica Editorial

    1995Editora da Unicamp

    Caixa Postal 6074 Cidade Universitria - Baro Geraldo

    CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil Tel.: (0192) 39.8412 Fax: (0192) 39.3157

  • SUMRIO

    Prefcio............................................................. 7Seo I

    Dos princpios gerais da m oral................ 19Seo II

    Da benevolncia.......................................... 27Seo III

    Da justia..................................................... 35Seo IV

    Da sociedade poltica.................................. 65Seo V

    Por que a utilidade agrada....................... 75Seo VI

    Das qualidades teis a ns mesmos........ 103Seo VII

    Das qualidades imediatamente agradveisa ns m esmos.............................................. 125

    Seo VIIIDas qualidades imediatamente agradveisaos outros..................................................... 141

    Seo IXConcluso..................................................... 151

  • Apndice ISobre o sentimento m o ra l........................ 173

    Apndice IIDo amor a si mesmo.................................. 187

    Apndice III Algumas consideraes adicionais comrelao justia .......................................... 197

    Apndice IVDe algumas disputas verbais.................... 209

  • PREFCIO

    David Hume (1711-1776) conta-se entre os espritos mais luminosos de seu sculo e ocupa um lugar proeminente entre os autores de lngua inglesa, no apenas por sua obra filosfica mas tambm como ensasta e historiador. Continuador da tradio empirista inaugurada por Bacon e desenvolvida por Locke e Berkeley, levou-a sua mais extrema concluso, culminando com um sistema que tem sido muitas vezes acusado de ser excessivamente ctico e de privar a cincia e a moral de qualquer justificao racional.

    Sua contribuio de maior impacto para a filosofia foi a crtica ao princpio de induo, que desde Bacon era tomado como o instrumento por excelncia para o estabelecimento de inferncias cientficas. Ao argumentar que nossa experincia acerca de fatos passados no pode racionalmente justificar previses sobre acontecimentos futuros, Hume colocou em xeque toda uma forma de conceber a natureza de nosso conhecimento factual acerca do mundo, e, em particular, abalou as pretenses universalidade caractersticas das leis cientficas. O fato de que as devastadoras concluses de Hume

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  • tivessem permanecido tanto tempo sem receber uma resposta satisfatria constituiu, nas palavras de Kant, o escndalo da filosofia . Ao lado disto, bastante conhecida a afirmao de Kant de que foi a leitura de Hume que o despertou de seu sono dogmtico , fornecendo-lhe o incentivo para escrever a Crtica da razo pura.

    Se esta, na verdade, a representao usual que se faz da filosofia de Hume, preciso, porm, evitar as simplificaes. A Critica no pode ser considerada apenas como uma resposta a Hume: so muitas as linhas de reflexo filosfica que nela culminam, confrontam-se e coalescem. E, reciprocamente, inaceitvel reduzir Hume ao papel de um filsofo secundrio, cuja importncia residiria apenas em ter gerado uma crise de princpios que exigiu a interveno de Kant para sua superao.

    Esta fcil acomodao das idias de Hume a um esquema linear de evoluo do pensamento filosfico, to a gosto dos manuais didticos de filosofia, a principal responsvel pela incompreenso da importncia e originalidade de seu projeto, que s recentemente comeou a ser devidamente avaliado. Concentra-se a ateno em suas reflexes sobre a teoria do conhecimento, relegando-se a segundo plano seu tratamento da moral, da poltica e da religio. E, paralelamente, d-se uma nfase indevida aos aspectos negativos e cticos de seu pensamento, deixando-se de lado a parte propriamente positiva de seu trabalho. Sob esse aspecto, o texto aqui traduzido, A Investigao sobre os princpios da moral, serve como uma excelente introduo ao outro Hume, e fornece uma viso ampla e imparcial de seus objetivos e mtodos de investigao.

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  • Para entender a origem desse texto, necessrio dizer algumas palavras sobre uma obra anterior. Em 1734, Hume, ento um jovem de apenas 23 anos, residindo na Frana, lanou-se a um projeto de grande envergadura: a redao de um tratado em trs partes com o qual pretendia revolucionar os estudos humansticos pela aplicao do mtodo experimental, que tanto sucesso obtivera nas cincias da natureza, e obter para si um lugar entre os grandes autores filosficos de sua poca. A redao das duas primeiras partes ocupou-o durante trs anos, e a parte final foi concluda aps seu retorno para a Inglaterra em 1737. A obra apresenta todas as virtudes e os defeitos de um trabalho juvenil: extraordinrio vigor e inspirao, pvofuso e riqueza de idias originais, mas, ao mesmo tempo, falta de articulao, proporo e mesmo coerncia entre as teses expressas, e um pendor pela obscuridade e complexidade da argumentao que beiram o pedantismo. Com todas essas falhas, entretanto, o Tratado sobre a natureza humana permanece hoje, para o especialista, como o opus magnum de Hume, e expresso insuperada de sua filosofia.

    O Tratado divide-se em trs partes, ou livros: Do Entendimento , Das Paixes e Da Moral , cobrindo uma ampla gama de assuntos que vo desde questes ligadas a nosso conhecimento factual do mundo, das relaes causais e dos objetos exteriores at nossas atitudes valorativas diante de nossas aes e de outras pessoas. Seu escopo abrange assim tanto a epistemologia como a filosofia moral, mas essas reas de investigao no so tomadas como estanques e independentes uma da outra. De fato, um grande passo para a correta

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  • apreciao da importncia da obra filosfica de Hume pode ser dado simplesmente reconhecendo-se a profunda unidade que subjaz sua abordagem de cada um desses campos de estudo. Essa unidade manifesta-se visivelmente como uma unidade de perspectiva e de mtodo.

    Quanto perspectiva comum adotada por Hume diante desses assuntos, o que deve ser considerado o fato de que todas essas questes so tratadas exclusivamente do ponto de vista da subjetividade humana. Sua epistemologia no se detm em reflexes sobre uma suposta ordem exterior e necessria do mundo, qual nosso conhecimento deveria adequar-se, mas diz respeito apenas manipulao coerente e ordenada das impresses sensveis que experimentamos em nosso cenrio interior, e das idias que delas resultam. Do mesmo modo, nossos juzos morais no pressupem, para sua validade, qualquer padro transcendente do que bom ou mau em si mesmo, mas repousam integralmente em sentimentos de aprovao ou desaprovao que experimentamos ante certas aes, comportamentos e inclinaes. O objeto do Tratado o ser humano, e sua nica tarefa descrever e explicar o modo pelo qual chegamos a desenvolver tanto nossas convices acerca da realidade do mundo exterior como nossos julgamentos morais diante das prticas de nossos semelhantes.

    A mesma unidade se revela no mtodo adotado para prover essas explicaes. A chave, aqui, a meno ao mtodo experimental . Com isto, Hume pretende indicar que uma investigao como essa deve proceder a partir de fatos observados sobre o comportamento humano, deixando de lado

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  • quaisquer esquemas puramente hipotticos e idealizados acerca da real natureza do homem. Seu alvo, aqui, a antiga idia do homem como um ser caracteristicamente racional, e a conseqente tentativa de fundamentar na razo todas as atividades que so prprias do ser humano, entre as quais se incluem principalmente a busca do conhecimento e o aprimoramento moral. Uma importante tarefa preliminar, que Hume se v obrigado a realizar antes de oferecer sua prpria viso do que caracterstico da natureza humana, , portanto, o desmantelamento dessas antigas concepes. Antes de explicar como realmente adquirimos nossas crenas factuais e nossas atitudes morais, Hume se dedica a mostrar que a razo no capaz de atingir esses resultados. Que ele tenha sido to minucioso e eloqente nessa tarefa o motivo, com certeza, de que seja lembrado principalmente por essa realizao, e de que a contraparte positiva de seu trabalho, que assegura uma primazia do sentimento interno na gnese dessas atitudes, no tenha recebido a merecida ateno.

    A partir das consideraes precedentes, torna- se visvel o equvoco da imagem anedtica de Hume como o ctico empedernido empenhado em solapar as bases da atividade cientfica e da moralidade. Seu ceticismo sem dvida real, mas dirige-se apenas contra a especulao metafsica no sustentada na experincia, que postula entidades implausveis como as coisas tal como so em si mesmas , ou as leis morais ditadas pela Razo , s quais o conhecimento e as prticas humanas devem-se adequar, sob pena de privar o homem de sua humanidade. Longe de desacreditar as cincias da natureza (pelas

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  • quais, embora seu conhecimento no fosse muito profundo, nutria extremo respeito) ou os padres da moralidade (espelhados em uma vida irrepreensvel), Hume esforou-se mais do que qualquer outro filsofo de sua poca para dar-lhes um fundamento mais slido e convincente do que a frgil sustentao na razo humana, repetida desde Aristteles at Descartes.

    A recepo do Tratado constitui um fato notvel da histria editorial: no h notcia de nenhuma obra filosfica de importncia que tenha recebido uma acolhida inicial to desfavorvel. E, rigorosamente, nem se pode falar de recepo desfavorvel. Nada teria deixado Hume mais satisfeito do que suscitar polmicas, atrair ataques e ser duramente criticado. Isso lhe teria permitido assumir o centro de um debate, responder aos argumentos contrrios e assegurar sua prpria notoriedade. Ao invs disso, no encontrou seno o mais absoluto silncio e indiferena. A indignao contra suas idias permaneceu oculta e bem guardada nos crculos acadmicos e eclesisticos oficiais, e manifestou-se sob a forma de um bloqueio sistemtico a todas as tentativas de Hume de obter uma posio universitria, ao longo de toda sua vida.

    O fracasso do Tratado ensinou a Hume uma amarga lio. Acreditando que a m sorte se deveu no ao contedo mas forma pesada de sua exposio, extraiu dele duas outras obras mais curtas, nas quais procurou dar um tom acessvel ao texto, eliminar os meandros argumentativos e cuidar ao mximo da clareza da expresso. So elas as duas Investigaes: sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral, extradas respectivamen

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  • te da primeira e da terceira parte do Tratado e publicadas em 1748 e 1751 (uma terceira obra, extrato da segunda parte do Tratado e publicada em 1757, carece de maior relevncia). Esta converso estilstica a uma prosa mais fluente e compreensvel marcou todo o restante de sua produo literria e filosfica, granjeando-lhe a to cobiada e merecida reputao como um dos maiores homens de letras de seu tempo.

    Uma comparao aprofundada entre o Tratado e as Investigaes constitui assunto complexo, prprio de especialistas, e no precisa nos ocupar aqui. Registre-se apenas que, enquanto a Investigao sobre o entendimento humano pode ser razoavelmente considerada como um sumrio da primeira parte do Tratado, desenvolvendo-se segundo as mesmas linhas gerais e desembocando em concluses assemelhadas, o caso da segunda Investigao, a obra aqui traduzida, apresenta problemas especiais. De fato, trata-se de um texto que apresenta notveis diferenas com relao ao que lhe deu origem, e essas diferenas no se resumem apenas ordem em que os temas so apresentados, ou nfase que recebem em cada caso. Na opinio de um conceituado intrprete como Selby-Bigge, as mudanas so de tal ordem a ponto de ser possvel dizer que todo o sistema de moral essencialmente distinto nos dois casos.

    Como se disse, porm, no razovel nem necessrio estendermo-nos neste momento sobre tais questes. Aqui, o leitor poder beneficiar-se da recomendao do prprio Hume, de que as duas Investigaes, e apenas elas, devem ser tomadas como a expresso final e definitiva de suas idias e prin

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  • cpios filosficos. O scholar, verdade, discordar, e continuar dando preferncia ao texto mais denso, profundo e desafiador do Tratado. Mas o leitor culto e educado, para quem a filosofia no um meio de vida mas fonte de princpios e ensinamentos, e que busca antes o contedo substancial do que os penosos caminhos das rplicas e trplicas, este leitor poder de imediato entregar-se a um dos textos mais ricos e fascinantes da prosa filosfica, e seguir com tranqilidade o fio da exposio lcida, atraente e motivador a de um dos grandes filsofos de todos os tempos. Pois, afinal, esse foi o leitor que Hume teve em vista, e para quem dedicou preferencialmente seu trabalho.

    Concluo com algumas informaes sobre a presente traduo. Seguiu-se o texto contido nas En- quiries concerning Human Understanding and con- cerning the Principies o f Morais (3? edio, 10? reimpresso, Oxford: Clarendon Press, 1989), estabelecido por L. A. Selby-Bigge a partir da edio pstuma de 1777, com reviso e notas de P. H. Nidditch. At que se disponha de uma edio crtica definitiva, este texto permanece como a fonte mais autorizada e digna de confiana no que se refere a esta obra de Hume. O emprego dos sinais de pontuao e das letras maisculas e itlicas foi modificado para refletir as modernas convenes, que so significativamente diferentes daquelas usualmente praticadas no sculo XVIII. Todas as notas de rodap numeradas so de autoria do prprio Hume, e sempre que se acrescentou alguma informao (como dados bibliogrficos mais completos ou tradues para o portugus de citaes originalmente em lngua grega ou latina), esse acrscimo apa-

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  • rece entre colchetes. As poucas notas adicionais so introduzidas por meio de asteriscos, e destinam-se principalmente a prover informaes sobre vultos ou acontecimentos histricos que no so hoje to familiares como o eram na poca de Hume.

    Mantendo-se absolutamente fiel obra original, a traduo evita, contudo, uma literalidade ingnua que poderia pr a perder, pelo uso de construes artificiais e inusitadas na lngua portuguesa, a fluncia e as qualidades literrias do texto hu- meano. A Investigao sobre os princpios da moral foi considerada por Hume como o melhor de todos os seus escritos, tanto do ponto de vista filosfico como literrio; uma opinio que, sem dvida, transfere para os ombros do tradutor uma pesada responsabilidade. Ao preparar este material para o pblico leitor brasileiro, no poupei esforos para obter um resultado que, pela clareza, com- preensibilidade e elegncia, fosse capaz de enfrentar, sem desmerecimento, uma comparao com a verso original.

    Jos Oscar de Almeida Marques Depto. de Filosofia IFCH-Unicamp

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  • UMA INVESTIGAO

    SOBRE OS

    PRINCPIOS DA MORAL

  • SEO I

    DOS PRINCPIOS GERAIS DA MORAL

    As disputas com homens teimosamente obstinados em seus princpios so dentre todas as mais tediosas, exceto talvez aquelas com pessoas inteiramente insinceras que no acreditam realmente nas opinies que defendem mas engajam-se na controvrsia por afetao, por um esprito de oposio ou pelo desejo de mostrar um brilho e inventividade superiores aos do resto da humanidade. Em ambos os casos deve-se esperar a mesma aderncia cega aos prprios argumentos, o mesmo desprezo pelos seus antagonistas e a mesma veemncia apaixonada com que insistem em sofismas e falsidades. E como o raciocnio no a fonte da qual nenhum desses con- tendores deriva suas doutrinas, vo esperar que a lgica que no se dirige aos afetos consiga alguma vez lev-los a abraar princpios mais sadios.

    Aqueles que tm negado a realidade das distines morais podem ser classificados entre os con- tendores insinceros, pois no concebvel que alguma criatura humana possa seriamente acreditar que todos os caracteres e aes sejam igualmente

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  • dignos da estima e considerao de todas as pessoas. A diferena que a natureza estabeleceu entre um ser humano e outro to vasta e, alm disso, to mais ampliada pela educao, pelo exemplo e pelo hbito que, quando os extremos opostos so trazidos simultaneamente nossa considerao, no pode existir ceticismo to meticuloso nem certeza to inflexvel que chegue a negar qualquer distino entre eles. Mesmo um homem de enorme insensibilidade ser freqentemente tocado pelas imagens do certo e do errado e, ainda que seus preconceitos sejam os mais obstinados, ir certamente aperceber-se de que outras pessoas experimentam impresses anlogas. Por isso, a nica forma de converter um antagonista dessa espcie deix-lo em paz. Pois, ao notar que os demais evitam envolver-se em controvrsia com ele, provvel que, por mero cansao, venha finalmente a passar-se para o lado do senso comum e da razo.

    Surgiu recentemente uma controvrsia que bem mais digna de investigao e que diz respeito aos fundamentas gerais^ia-ieal, a saber: se eles derivam da\razojt>u d sentimento, se obtemos conhecimento acts por uma-se^uncia de argumentos e indues ou por um sentimento imediato e um sentido interno mais refinado, se como em todos os julgamentos corretos acerca da verdade e da falsidade eles deveriam ser os mesmos para todos os seres racionais e inteligentes ou como na percepo da beleza e da deformidade fundam- se inteiramente na estrutura e constituio prprias da espcie humana.

    Os filsofos da Antigidade, embora afirmem muitas vezes que a virtude nada mais que a con

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  • formidade com a razo, parecem em geral considerar, no obstante, que a moral deriva sua existncia do gosto e do sentimento. Por outro lado, nossos modernos investigadores, embora tambm falem muito da beleza da virtude e da deformidade do vcio, tm-se comumente esforado para explicar essas distines por meio de raciocnios metafsicos e dedues que partem dos mais abstratos princpios do entendimento. Reinou nesses assun- - tos uma tal confuso que pde surgir um conflito de imensa importncia entre um e outro sistema, e mesmo entre partes de quase todos os sistemas particulares sem que ningum, at muito recentemente, disso tomasse conhecimento. Os elegantes escritos de Shaftesbury, nos quais pela primeira vez essa distino foi observada e que, em geral, aderem aos princpios dos filsofos da Antigidade, tampouco esto, eles prprios, inteiramente livres dessa mesma confuso.

    Deve-se reconhecer que ambos os lados da questo podem ser apoiados por argumentos plausveis. Distines morais, pode-se dizer, so discer- nveis pela pura razo; sessim nao tosse, de onde procederiam as muitas disputas que imperam tanto na vida cotidiana como na filosofia, as longas concatenaes de provas freqentemente produzidas em favor de cada um dos lados, os exemplos que se citam, as autoridades s quais se faz apelo, as analogias empregadas, as falcias detectadas, as inferncias extradas e as vrias concluses adaptadas aos respectivos princpios? S a verdade passvel de discusso, no o gosto; o que existe na natureza das coisas a norma de nosso julgamento, mas a norma do sentimento o que cada pessoa

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  • sente dentro de si mesma. Proposies da geometria podem ser provadas, sistemas da fsica podem ser debatidos, mas a harmonia do verso, a ternura da paixo, o brilho do talento devem produzir um prazer imediato. Ningum raciocina sobre a beleza de uma outra pessoa, mas f-lo freqentemente sobre a justia ou injustia de suas aes. Em todo julgamento criminal, o primeiro objetivo do prisioneiro refutar os fatos alegados e negar as aes que lhe so imputadas, o segundo provar que, mesmo que essas aes tivessem sido efetivamente realizadas, elas poderiam ser justificadas como inocentes e de acordo com a lei. Uma vez que se reconhece que o primeiro ponto deve ser estabelecido por dedues do entendimento, como se poderia supor que uma diferente faculdade mental deva ser empregada para estabelecer o segundo?

    Por outro lado, aqueles que querem remeter todas as decises morais ao sentimento esforam- se para mostrar que impossvel que a razo chegue alguma vez a extrair concluses dessa natureza. O que prprio da virtude, eles dizem, ser estimvel, e do vcio, odioso. isso que constitui sua prpria natureza, ou essncia. Mas poderia a razo ou argumentao distribuir esses diversos ep- tetos entre todo tipo de objetos e estabelecer de antemo que tal coisa deve produzir amor e tal outra dio? E que outra explicao poderamos dar para essas afeces seno a estrutura e conformao originais da mente humana, que est naturalmente adaptada a receb-las?

    A finalidade de toda especulao moral ensinar-nos nosso dever, e, pelas adequadas representaes da deformidade do vcio e beleza da vir

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  • tude, engendrar os hbitos correspondentes e fazer- nos evitar o primeiro e abraar a segunda. Mas seria possvel esperar tal coisa de inferncias e concluses do entendimento, as quais por si mesmas no tm influncia sobre os afetos nem mobilizam as foras ativas das pessoas? Elas revelam verdades, mas, quando as verdades que revelam so neutras e no engendram desejo ou averso, elas no podem influenciar a conduta ou o comportamento.
  • felicidade e do vcio nossa misria provvel, eu dizia, que essa sentena final se apie em algum sentido interno ou sentimento que a natureza tornou universal na espcie inteira. Pois que outra coisa seria capaz de uma influncia desse tipo? Contudo, para preparar o caminho para tal sentimento e prover um discernimento apropriado de seu objeto, descobrimos que freqentemente necessrio que muitos raciocnios o precedam, que distines sutis sejam traadas, concluses corretas extradas, comparaes distantes efetuadas, relaes complexas examinadas e fatos gerais estabelecidos e verificados. Alguns tipos de beleza, especialmente a das espcies naturais, impem-se a nosso afeto e aprovao desde a primeira vista, e quando no produzem esse efeito impossvel que qualquer raciocnio consiga remediar sua influncia ou adapt-las melhor ao nosso gosto e sentimento. Mas em muitos tipos de beleza, particularmente no caso das belas- artes, preciso empregar muito raciocnio para experimentar o sentimento adequado, e um falso deleite pode freqentemente ser corrigido por meio de argumentos e da reflexo. H boas razes para concluir que a beleza moral faz parte em boa medida deste ltimo tipo, e exige a assistncia de nossas faculdades intelectuais para adquirir uma influncia apropriada sobre a mente humana.

    Mas embora esta questo relativa aos princpios gerais da moral seja instigante e significativa, desnecessrio para ns, pelo momento, ocupar - mo-nos mais detalhadamente de seu estudo. Pois se tivermos a felicidade, no curso desta investigao, de descobrir a verdadeira origem da moral, ser fcil perceber em que medida tanto o senti

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  • mento como a razo figuram em todas as determinaes dessa natureza.1 Para alcanar esse objetivo, esforar-nos-emos para seguir um mtodo bastante simples: vamos analisar o complexo de qualidades mentais que constituem aquilo que, na vida cotidiana, chamamos de mrito pessoal', vamos considerar todos os atributos do esprito que fazem de algum um objeto seja de estima e afeio, seja de dio e desprezo; todos os hbitos, sentimentos' ou faculdades que, atribudos a uma pessoa qualquer, implicam ou louvor ou censura, e poderiam figurar em algum panegrico ou stira de seu carter e maneiras. A aguda sensibilidade que to universal, nestes assuntos, entre os seres humanos fornece ao filsofo uma garantia suficiente de que nunca estar enganado em demasia ao compor seu catlogo, nem correr qualquer risco de classificar erroneamente os objetos de sua contemplao; tudo o que ele precisa consultar por um momento seu prprio corao e considerar se desejaria ou no que esta ou aquela qualidade lhe fossem atribudas, e se tal ou tal atribuio procederia de um amigo ou de um inimigo. A natureza mesma da linguagem guia-nos quase infalivelmente na formao de um juzo desta espcie; e assim como qualquer lngua possui um conjunto de palavras que so tomadas em um bom sentido e outras em um sentido oposto, basta a mnima familiaridade com o idioma para nos orientar, sem qualquer raciocnio, na coleta e arranjo das qualidades humanas que so estimveis ou censurveis. A nica tarefa do raciocnio discernir as circunstncias comuns, em cada

    1 Ver Apndice I.

    25

  • um dos lados, a essas qualidades; observar aquelas caractersticas particulares em que concordam, de um lado, as qualidades estimveis, e, de outro, as censurveis; e a partir da atingir o fundamento da tica e descobrir aqueles princpios universais dos quais se deriva, em ltima instncia, toda censura ou aprovao. Dado que esta uma questo factual e no um assunto de cincia abstrata, s podemos esperar obter sucesso seguindo o mtodo experimental e deduzindo mximas gerais a partir de uma comparao de casos particulares. O outro mtodo cientfico, no qual inicialmente se estabelece um princpio geral abstrato que depois se ramifica em uma srie de inferncias e concluses, pode ser em si mesmo mais perfeito, mas convm menos imperfeio da natureza humana e uma fonte comum de erro e iluso, neste assim como em outros assuntos. Hoje os homens esto curados de sua paixo por hipteses e sistemas em filosofia natural, e no daro ouvidos a quaisquer argumentos a no ser aqueles derivados da experincia. J hora de que se proponham a uma reforma semelhante em todas as investigaes morais, e rejeitem todos os sistemas ticos, por mais sutis e engenhosos, que no estejam fundados em fatos e na observao.

    Comearemos nossa investigao sobre esse assunto pela considerao das virtudes sociais da benevolncia e da justia. Sua elucidao, com toda a probabilidade, nos abrir o caminho para a explicao das demais virtudes.

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  • SEO II

    DA BENEVOLNCIA

    PARTE I

    Pareceria talvez uma tarefa suprflua provar que as afeces benevolentes ou afveis so dignas de estima e que, onde quer que se manifestem, gran- jeiam a aprovao e a boa vontade dos seres humanos. Os eptetos socivel , de boa ndole , humano , compassivo , grato , amistoso , generoso , benfazejo , ou seus equivalentes, so conhecidos em todas as linguagens e expressam universalmente o mais alto mrito que a natureza humana capaz de atingir. Quando essas estim- veis qualidades esto acompanhadas de linhagem, poder e capacidades eminentes, e se revelam no bom governo ou til instruo da humanidade, elas parecem at mesmo alar seus possuidores acima da natureza humana e faz-los aproximar-se, em certa medida, da divina. Uma elevada aptido, uma coragem indomvel, um sucesso florescente s podem expor um heri ou um poltico inveja e m- vontade do pblico; mas to logo se acrescentem

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  • os crditos de humanitrio e beneficente, to logo se evidenciem exemplos de brandura, enternecimen- to e amistosidade, a prpria inveja se cala ou junta- se ao coro geral de aprovao e aplauso.

    Quando Pricles, o grande estadista e general ateniense, jazia em seu leito de morte, seus amigos ao redor, supondo-o inconsciente, comearam a dar vazo tristeza pelo seu patrono moribundo, enumerando suas grandes qualidades e xitos, suas conquistas e vitrias, a durao incomum de seu governo e seus nove trofus erigidos sobre os inimigos da repblica. Vs esqueceis , exclama o heri agonizante que tudo ouvira, vs esqueceis o mais eminente de meus mritos, e estendeis-vos em demasia sobre essas vantagens vulgares nas quais a sorte teve um papel preponderante. Deixastes de observar que nenhum cidado jamais teve de vestir luto por minha causa .2

    Em homens de talentos e capacidades mais or dinrias, as virtudes sociais tornam-se, se que isso possvel, ainda mais essencialmente requeridas, j que no h, nesses casos, nada que se sobressaia para compensar a falta delas, ou para preservar a pessoa da nossa mais profunda averso, ou desprezo. Em personalidades menos perfeitas, uma grande ambio ou uma coragem exaltada tm a tendncia, diz Ccero, de degenerar em uma ferocidade incontrolada. As virtudes mais sociais e afveis so, a, as que devem ser principalmente levadas em considerao. Essas so sempre boas e estimveis.3

    2 Plutarco, Vida de Pricles.3 Ccero, De officiis, Livro I [cap. XIX],

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  • A principal vantagem que Juvenal descobre na extensa capacidade da espcie humana que ela torna tambm mais extensa nossa benevolncia, e d- nos maiores oportunidades de disseminar nossa influncia benigna do que est ao alcance das criaturas inferiores.4 Deve-se de fato reconhecer que apenas pela prtica do bem que um homem pode verdadeiramente gozar das vantagens de ser eminente. Sua posio elevada, por si s, apenas o deixa mais exposto ao perigo e tempestade. Seu nico privilgio dar abrigo aos que lhe so inferiores, e que repousam sob seu manto e proteo.

    Mas estou esquecendo de que no aqui minha tarefa elogiar a generosidade e a benevolncia, ou pintar com suas verdadeiras cores todos os genunos encantos das virtudes sociais. Estas, na verdade, seduzem suficientemente cada corao logo que so apreendidas pela primeira vez, e difcil evitar algum arroubo laudatrio sempre que so mencionadas no discurso ou raciocnio. Mas como nosso objeto aqui antes a parte especulativa do que a parte prtica da moral, ser suficiente notar (o que, segundo penso, ser facilmente concedido) que no h qualidades mais merecedoras da boa vontade e aprovao geral da humanidade do que a beneficncia e o carter humanitrio, a amizade e a gratido, a afeio natural e o esprito pblico, e tudo o que procede de uma terna simpatia pelos demais e de uma generosa preocupao pelo nosso grupo e espcie. Tais qualidades, onde quer que se manifestem, parecem de certa forma difundir-se entre todos os que as contemplam e produzir neles,

    4 Stiras, XV, p. 139 ss.

    29

  • em seu prprio interesse, os mesmos sentimentos favorveis e afetuosos que elas exercem ao seu redor.

    PARTE II

    Podemos observar que, ao arrolar os louvores a um indivduo humanitrio e beneficente, h uma circunstncia que nunca deixa de ser amplamente realada, a saber, a felicidade e satisfao que a sociedade obtm de suas aes e bons ofcios. Ele se torna caro a seus pais, justo dizer, mais ainda pelo seu devotado afeto e respeitosa ateno do que pelas ligaes naturais de filiao. Seus filhos nunca sentem o peso de sua autoridade, a no ser quando empregada em benefcio deles prprios. Nele, os laos do amor esto consolidados pela beneficncia e amizade, e os laos de amizade aproximam- se, por uma ateno solcita em todos os favores, aos do amor e afeto. Seus servos e dependentes podem contar seguramente com seu auxlio, e deixam de temer os caprichos do destino, exceto quando exercidos sobre ele. Dele os famintos recebem alimento, os desnudos vestimentas, os ignorantes e indolentes habilidades e diligncia. Semelhante ao sol, ele ministro secundrio da providncia incentiva, revigora e sustenta o mundo ao seu redor.

    Se confinado vida privada, a esfera de sua atividade mais restrita, mas sua influncia de todo benigna e afvel. Se alado a um alto posto, a humanidade e a posteridade colhem os frutos de seu labor.

    Dado que estes tpicos de louvor so sempre empregados, e com sucesso, quando se quer des

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  • pertar a estima por algum, no se poderia concluir da que a utilidade resultante das virtudes sociais constitui pelo menos uma parte de seu mrito, e uma fonte daquela aprovao e respeito que elas recebem de forma to universal?

    Quando enaltecemos mesmo uma simples planta ou animal como sendo til e benfico(a), fazemos-lhe um louvor e uma recomendao adequados sua natureza; assim como, por outro lado, uma reflexo sobre a influncia danosa de qualquer desses seres inferiores sempre nos inspira um sentimento de averso. O olhar se delicia com a viso de um campo de trigo, vinhas carregadas de frutos, cavalos e rebanhos pastando; mas foge da viso de saras e espinheiros que do guarida a lobos e serpentes.

    Uma mquina, uma pea de mobilirio, uma vestimenta ou uma casa, bem planejadas para o uso e conforto, so, nessa medida, belas, e contempladas com prazer e aprovao. m olhar experiente sensvel, nestes casos, a muitas excelentes qualidades que passam despercebidas a pessoas ignorantes e no instrudas.

    Poder-se-ia fazer um maior louvor de uma profisso, tal como o comrcio ou a manufatura, do que observar as vantagens que ela traz sociedade? E um monge ou inquisidor no se enraivecem quando tratamos sua ordem como intil ou prejudicial para a humanidade?

    O historiador exulta ao mostrar o benefcio que resulta de seu trabalho; e o autor de romances aven-

    *

    turescos ameniza ou nega as ms conseqncias atribudas ao seu gnero de composio.

    E, em geral, quanto louvor no est subentendido no simples qualificativo til ! E quanta reprovao em seu contrrio!

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  • Vossos deuses , diz Ccero,5 em oposio aos epicuristas, no podem com justia pretender qualquer culto ou adorao em decorrncia de todas estas imaginrias perfeies que vs lhes atri- bus. Eles so completamente passivos e inteis. At mesmo os egpcios, que tanto ridicularizais, nunca sacralizaram qualquer animal se no em vista de sua utilidade.

    Os cticos afirmam,6 embora absurdamente, que a origem de todo culto religioso procedia da utilidade de objetos inanimados, como o sol e a lua, para o sustento e bem-estar da humanidade. Esta tambm a razo comumente apontada, por historiadores para a deificao de heris e legisladores eminentes.7

    Plantar uma rvore, cultivar um campo, gerar filhos: atos meritrios, de acordo com a religio de Zoroastro.

    Em todas as decises morais, esta circunstncia de utilidade pblica o que sempre se tem principalmente em vista; e onde quer que surjam disputas, seja em filosofia ou na vida cotidiana, referentes aos limites do dever, no se pode de nenhum modo decidir melhor a questo do que averiguando, em cada um dos lados, os verdadeiros interesses da humanidade. Se alguma falsa opinio, qual se aderiu em vista das aparncias, chega a prevalecer, recuamos de nosso sentimento inicial to logo a experincia adicional e um raciocnio mais preciso tiverem nos fornecido idias mais corretas acerca dos

    5 De natura deorum. Livro I [cap. XXXVI].6 Sexto Emprico, Adversus M athem aticos, Livro VIII.7 Diodoro da Siclia, passim.

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  • assuntos humanos, e ajustamos novamente as fronteiras morais entre o bem e o mal.

    O ato de dar esmolas a pedintes vulgares com- preensivelmente elogiado, pois parece trazer alvio aos aflitos e indigentes; mas quando se observa o encorajamento que essa prtica d ociosidade e devassido, passamos a considerar que essa espcie de caridade antes uma fraqueza do que uma virtude.

    O tiranicdio, ou assassinato de usurpadores e prncipes opressivos, foi sumamente enaltecido em tempos antigos porque livrou a humanidade de muitos desses monstros e parecia, alm disso, impor o temor a outros que a espada ou o punhal no podiam alcanar. Mas como a histria e a experincia desde ento nos convenceram de que essa prtica aumenta a suspeita e crueldade dos prncipes, um Timoleo e um Bruto, embora tratados com indulgncia em vista das predisposies de sua poca, so hoje considerados como modelos muito imprprios para imitao.

    A liberalidade nos prncipes tomada como um sinal de beneficncia, mas quando ocorre que o po de cada dia de homens honestos e trabalhadores muitas vezes se converte, por meio dela, em deliciosos manjares para os indolentes e esbanja- dores, logo retiramos nossos elogios desatentos. Os lamentos de um prncipe por haver perdido um dia foram nobres e generosos, mas se ele pretendesse empreg-lo em atos de generosidade para com seus insaciveis cortesos, ter sido melhor que se tenha perdido do que desperdiado desta maneira.

    O luxo, ou requinte nos prazeres e confortos da vida, foi durante muito tempo tomado como a origem de toda a corrupo no governo, e como a causa imediata de discrdia, rebelio, guerras ci

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  • vis e perda total de liberdade. Foi, portanto, considerado universalmente como um vcio e constituiu objeto de perorao de todos os satiristas e austeros moralistas. Aqueles que demonstram ou procuram demonstrar que esses refinamentos tendem antes ao desenvolvimento da diligncia, da polidez e das artes esto dando uma nova regulamentao a nossos sentimentos tanto morais como polticos, e representam como louvvel ou inocente aquilo que anteriormente era tomado como pernicioso ou censurvel.

    Se levarmos tudo isto em conta, parece inegvel que nada pode conferir mais mrito a qualquer criatura humana do que um supremo sentimento de benevolncia, e que parte, ao menos, desse mrito provm de sua tendncia a promover os interesses de nossa espcie e trazer felicidade sociedade humana. Dirigimos nossos olhos para as saudveis conseqncias de um tal carter ou disposio, e tudo que tem uma influncia to benigna e promove um fim to desejvel contemplado com satisfao e prazer. As virtudes sociais nunca so consideradas parte de suas tendncias benficas, nem vistas como estreis e infrutferas. A felicidade da humanidade, a ordem da sociedade, a harmonia das famlias, o apoio mtuo dos amigos so sempre considerados como o resultado do domnio benvolo dessas virtudes sobre os coraes dos seres humanos.

    Quo considervel a parte de seu mrito que devemos atribuir sua utilidade aparecer mais claramente a partir das prximas investigaes8, bem como a razo pela qual essa circunstncia tem uma to grande influncia sobre nossa estima e aprovao.9

    8 Sees III e IV.9 Seo V.

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  • SEO III

    DA JUSTIA

    PARTE I

    Seria um empreendimento suprfluo provar que a justia til sociedade e, conseqentemente, que parte de seu mrito, pelo menos, deve originar-se dessa considerao. Mas a afirmao de que a utilidade pblica a nica origem da justia e que as reflexes sobre as conseqncias benficas dessa virtude so a nica fundao de seu mrito, sendo uma proposta mais inusitada e significativa, mais merecedora de nosso exame e investigao.

    Suponhamos que a natureza houvesse dotado a raa humana de uma tamanha abundncia de todas as convenincias exteriores que, sem qualquer incerteza quanto ao resultado final, sem qualquer ateno ou dedicao de nossa parte, todo indivduo se achasse completamente provido de tudo aquilo que seus mais vorazes apetites pudessem necessitar, ou sua faustosa imaginao pretender ou desejar. Sua beleza natural, vamos supor, ultrapassaria to-

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  • dos os ornamentos adquiridos, a perptua suavidade das estaes tornaria inteis todas as roupas ou abrigos, as verduras ao natural proporcionar-lhe- iam o mais delicioso alimento, e a lmpida fonte a bebida mais excelente. Nenhuma tarefa laboriosa seria requerida, nenhuma lavoura, nenhuma navegao. Msica, poesia e contemplao constituiriam sua nica ocupao; conversas, risos e convivncia com amigos sua nica diverso.

    Parece bvio que, em uma condio to afortunada, todas as demais virtudes sociais iriam florescer e intensificar-se dez vezes mais; mas, quanto cautelosa e desconfiada virtude da justia, dela no se ouviria falar uma vez sequer. Pois qual seria o propsito de efetuar uma repartio de bens quando cada um j tem mais do que o suficiente? Para que fazer surgir a propriedade quando impossvel causar prejuzo a quem quer que seja? Por que dizer que este objeto meu quando, caso algum dele se apodere, basta-me esticar a mo para apropriar-me de outro de valor igual? A justia, nessa situao, sendo completamente intil, no passaria de um vo cerimonial e no poderia jamais obter um lugar no catlogo das virtudes.

    E mesmo na pobre condio presente da humanidade, observamos que, sempre que algum benefcio provido pela natureza em uma ilimitada abundncia, ns o deixamos para toda a raa humana em comum e no estabelecemos subdivises de direitos e propriedades. A gua e o ar, embora sejam as mais necessrias de todas as coisas, no so disputadas como propriedades de indivduos, e ningum comete injustia por mais prodigamente que se sirva e desfrute dessas bnos. Em pases

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  • com grandes extenses de terras frteis e poucos habitantes, a terra tratada desse mesmo modo. E nenhum tpico to realado pelos que defendem a liberdade dos mares quanto o de que eles no se esgotam pelo seu uso na navegao. Se as vantagens obtidas pela navegao fossem igualmente inexaurveis, esses pensadores jamais teriam tido adversrios para refutar, nem se teriam apresentado reivindicaes de um domnio separado e ' exclusivo sobre o oceano.

    Pode acontecer, em alguns pases e em alguns perodos, que se estabelea um direito de propriedade sobre a gua, e nenhum sobre a terra,10 se esta ltima existir em maior abundncia do que pode ser usada pelos habitantes, e a primeira s puder ser obtida com dificuldade e em quantidades muito pequenas.

    Suponha-se alm disso que, embora as carncias da raa humana continuem as mesmas do presente, o esprito se tenha engrandecido tanto e esteja to repleto de sentimentos amigveis e generosos que todo ser humano nutre o maior carinho pelos demais e no sente uma preocupao maior pelos assuntos de seu prprio interesse do que pelos de seus companheiros. Parece evidente que, em vista de tamanha benevolncia, o uso da justia ficaria suspenso neste caso, e jamais se cogitaria, aqui, as divises e barreiras da propriedade e obrigao. Por que eu deveria, por meio de um contrato ou promessa, obrigar outra pessoa a prestar-me um servio quando sei que ela j est disposta, pela mais forte inclinao, a buscar minha felicidade, e ir de vontade

    10 Gnese, captulos XIII e XXI.

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  • prpria realizar o servio desejado? A menos que o dano que lhe sobrevenha por isso seja maior que o benefcio que eu receberia; mas, nesse caso, ela sabe que, em virtude de meu inerente carter humanitrio e amistoso, eu seria o primeiro a opor-me sua imprudente generosidade. Por que erigir marcos limtrofes entre meu campo e o de meu vizinho se meu corao no fez nenhuma diviso entre nossos interesses, mas compartilha todas as suas alegrias e tristezas com a mesma fora e vivacidade que experimentaria caso fossem originalmente as minhas prprias? Dado que, nesta hiptese, cada homem seria um segundo eu para cada um dos outros, ele confiaria todos os seus interesses ao discernimento de qualquer um, sem desconfiana, sem divises, sem distines. E a raa humana em seu todo formaria uma nica famlia, na qual tudo seria possudo em comum e usado livremente, sem considerao de propriedade, mas ao mesmo tempo com bastante prudncia, dando-se s necessidades de cada indivduo uma ateno to plena como se nossos prprios interesses estivessem a intimamente envolvidos.

    Dada a presente disposio do corao humano, ser talvez difcil encontrar exemplos cabais de afeies to engrandecidas, mas ainda assim podemos observar que o caso das famlias aproxima-se disso; e quanto maior a benevolncia mtua entre os indivduos, mais ainda se aproxima, at que, em grande medida, toda distino de propriedade perde-se e confunde-se entre eles. No caso de pessoas casadas, a lei supe que o liame de afeto entre elas to forte a ponto de abolir toda a diviso de posses; e esse liame muitas vezes tem, de fato, essa

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  • fora que lhe atribuda. E pode-se observar que, durante o ardor dos fanatismos nascentes quando cada princpio inflamado at a loucura a comunidade dos bens foi freqentemente ensaiada, e apenas a experincia de seus inconvenientes, pelo egosmo restabelecido ou disfarado dos homens, pde fazer com que os imprudentes fanticos adotassem de volta as idias de justia e de propriedade privada. certo, portanto, que esta virtude deriva , sua existncia inteiramente de seu indispensvel uso para o relacionamento humano e a vida em sociedade.

    Para tornar esta verdade mais evidente, vamos inverter as suposies anteriores e, levando tudo para o extremo oposto, considerar qual seria o efeito dessas novas situaes. Suponha-se que uma sociedade tombe em uma carncia to grande de todas as coisas comumente necessrias para se viver, a ponto de a mxima frugalidade e trabalho no serem capazes de impedir a morte da maioria das pessoas e a extrema misria de todas elas. Numa tal emergncia admitir-se- prontamente, segundo acredito, que as leis estritas da justia estaro suspensas, dando lugar aos motivos mais fortes da necessidade e autopreservao. Seria porventura um crime, aps um naufrgio, agarrar-se a qualquer meio ou instrumento de salvao em que pudssemos pr as mos, sem preocupar-se com as anteriores limitaes decorrentes do direito de propriedade? Ou, se uma cidade sitiada estiver perecendo de fome, poderamos imaginar que as pessoas, tendo diante de si qualquer meio de preservao, iriam perder suas vidas devido a uma escrupulosa considerao para com aquilo que, em outras situa-

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  • es, seria a regra da eqidade e da justia? O uso e o fim dessa virtude proporcionar felicidade e segurana pela preservao da ordem na sociedade, mas quando a sociedade est prestes a sucumbir de extrema penria, no se pode temer nenhum mal maior decorrente da violncia e injustia, e cada homem estar livre, ento, para zelar por si prprio empregando todos os meios que a prudncia lhe ditar ou seus sentimentos humanitrios permitirem. O povo, mesmo em circunstncias menos calamitosas, abre celeiros sem o consentimento dos proprietrios, supondo com razo que a autoridade da magistratura pode, de forma consistente com a eqidade, chegar at esse ponto. Mas se um nmero qualquer de homens se reunisse sem os vnculos das leis ou da jurisdio civil, poderamos considerar como criminosa ou lesiva uma semelhante partilha de po em uma condio de fome, ainda que efetuada pela fora e mesmo pela violncia?

    Suponha-se analogamente que a sina de um homem virtuoso levou-o a cair em meio a uma sociedade de bandidos, longe da proteo da lei e do governo: que comportamento deve ele adotar nessa triste situao? Ele v predominar uma voracidade desesperada, um descaso pela eqidade, um desprezo pela ordem, uma estpida cegueira diante das conseqncias futuras, e tudo isso em um tal grau que deve levar imediatamente mais trgica concluso, culminando com a destruio da maioria e a completa dissoluo da sociedade dos demais. Nesse meio tempo, ele no tem outro recurso seno armar-se, seja a quem for que pertena a espada que ele toma, ou o escudo: ele deve prover-se de todos os meios de defesa e segurana. E, j que

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  • sua considerao pessoal pela justia no tem mais utilidade para sua segurana ou a dos outros, ele deve consultar apenas os ditados da autopreserva- o, sem preocupar-se com aqueles que no mais merecem seu cuidado e ateno.

    Quando algum, mesmo numa sociedade politicamente constituda, torna-se por seus crimes ofensivo ao pblico, ele punido pelas leis em seus bens e em sua pessoa; ou seja, as regras ordinrias' da justia ficam, em relao a ele, momentaneamente suspensas, e no inquo infligir-lhe, para o benefcio da sociedade, aquilo que de outro modo ele no poderia sofrer sem que se configurasse ofensa ou injustia.

    Que a fria e a violncia da guerra civil seno uma suspenso da justia entre as partes beligerantes, que se apercebem de que essa virtude no tem mais qualquer uso ou vantagem para elas? As leis da guerra, que assumem ento o lugar das leis da eqidade e justia, so regras calculadas em vista da sua vantagem e utilidade naquela peculiar situao em que os homens ento se encontram. E se uma nao civilizada estivesse envolvida em uma guerra com brbaros que no observam sequer as leis da guerra, ela deveria tambm suspender sua observncia dessas regras, que j no servem a qualquer propsito, e tornar cada ao e confronto o mais sangrento e prejudicial possvel aos primeiros agressores.

    Portanto, as regras da eqidade e da justia dependem inteiramente do estado e situao particulares em que os homens se encontram, e devem sua origem e existncia utilidade que proporcio-

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  • nam ao pblico pela sua observncia estrita e regular. Contrarie-se, em qualquer aspecto relevante, a condio dos homens produza-se extrema abundncia ou extrema penria, implante-se no corao humano perfeita moderao e humanidade ou perfeita rapacidade e malcia: ao tornar a justia totalmente intil, destri-se com isso totalmente sua essncia e suspende-se sua obrigatoriedade sobre os seres humanos.

    A condio ordinria da humanidade um meio-termo entre todos esses extremos. Somos naturalmente parciais para conosco mesmos e nossos amigos, mas somos capazes de compreender a vantagem resultante de uma conduta mais equnime. Poucos prazeres nos so dados pela mo aberta e liberal da natureza, mas pela tcnica, trabalho e diligncia podemos extra-los em grande abundncia. Daqui as idias de propriedade tornam-se necessrias em toda sociedade civil; daqui a justia deriva sua utilidade para o pblico; e s daqui originam- se seu mrito e seu carter moralmente obrigatrio.

    Essas concluses so to naturais e bvias que no escaparam nem mesmo aos poetas, em suas descries da felicidade que acompanhava a idade de ouro, ou o reinado de Saturno. Naquele primeiro perodo da natureza, as estaes se dermos crdito a essas agradveis fices eram to temperadas que no havia necessidade de que as pessoas se provessem de roupas ou moradias, como segurana contra a violncia do frio e do calor. Nos rios fluam vinho e leie, os carvalhos forneciam mel e a natureza produzia espontaneamente suas melhores iguarias. Mas essas no eram as principais vantagens daquela poca feliz. As tempestades no esta-

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  • vam ausentes apenas da natureza, mas o corao humano tambm desconhecia aquelas tempestades mais furiosas que hoje causam tal alvoroo e engendram tanta desordem. De avareza, ambio, crueldade, egosmo nunca se ouvira falar; um afeto cordial, compaixo, simpatia eram os nicos impulsos com os quais o esprito estava familiarizado. Mesmo a meticulosa distino entre o meu e o teu estava banida daquela feliz raa de mortais, e levara consigo as prprias idias de propriedade e obrigao, justia e injustia.

    A fico potica desta idade de ouro est, sob certos aspectos, em p de igualdade com a fico filosfica de um estado de natureza', a diferena apenas que a primeira representada como a situao mais pacfica e encantadora que se pode imaginar, ao passo que a segunda pintada como um estado de guerra e violncia mtuas, acompanhadas pela mais extrema misria. Na origem primordial dos seres humanos somos informados sua ignorncia e natureza selvagem eram to predominantes que eles no podiam confiar uns nos outros, mas cada qual dependia de si mesmo e de sua prpria fora ou astcia para sua proteo e segurana. No se ouvira falar de qualquer lei, nenhuma regra de justia era conhecida, nenhuma distino de propriedade levada em conta. O poder era a nica medida do direito, e uma guerra permanente de todos contra todos era o resultado do egosmo incontro- lado e da barbrie dos homens."

    11 Essa fico de um estado de natureza como um estado de guerra no se iniciou com Thomas Hobbes, como se costuma imaginar [cf. Hobbes, Leviat, parte I, captulo XIII]. Plato esfora-se para refutar uma hiptese muito semelhante nos

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  • Pode-se com razo duvidar de que uma tal condio da natureza humana tenha jamais existido, ou, se existiu, que tenha durado por tanto tempo a ponto de merecer a denominao de um estado. Os seres humanos nascem necessariamente em uma sociedade familiar, pelo menos, e so instrudos pe-

    segundo, terceiro e quarto livros da Repblica. Ccero, ao contrrio, toma-a como certa e universalmente admitida na seguinte passagem: Quis enim vestrum, judices, ignorat, ita naturam rerum tulisse, ut quodam tempore homines, nondum neque na- turali neque civili ju re descrpto, fu si per agros ac dispersi va- garentur lantumque haberent quantum manu ac viribus, per cae- dem ac vulnera, aut eripere aut retinere potuissent? Qui igitur prim i virtute & consilio praestanti extiterunt, ii perspecto gene- re humanae docilitatis atque ingenii, dissipatos unum in locum congregarunt, eosque ex ferita te illa ad justitiam ac mansuetu- dinem transduxerunt. Tum res ad communem utilitatem, quas publicas apellamus, tum conventicula hominum, quaepostea ci- vitates nominatae sunt, tum domicilia conjuncta, quas urbes di- camus, invento & divino & humano jure, moenibus sepserunt. A tque inter hanc vitam, perpolitam humanitate, & illam imma- nem, nihil tam interest quam JUS atque VIS. Horum utro uti nolimus, altero est utendum. Vim volumus extingui? Jus valeat necesse est, id est, judicia, quibus omne ju s continetur. Judicia displicent, aut nulla sunt? Vis dominetur necesse est. Haec vi- dent omnes. [Quem dentre vs, juizes, ignora com efeito que, em uma certa poca, o curso natural das coisas quis que os homens, na ausncia de qualquer direito natural e de qualquer direito civil definido, vivessem nos campos e vagassem dispersos, sem possuir seno aquilo que suas mos e foras lhes permitissem agarrar e manter, custa de lutas e morticnios? Ento, os primeiros que se distinguiram pela superioridade de seu valor e inteligncia, tendo reconhecido claramente a docilidade prpria do gnero humano, reuniram em um s lugar aqueles que viviam dispersos e os conduziram de uma vida selvagem para uma vida de justia e benevolncia. Organizaram-se ento as instituies voltadas para a utilidade comum, que denominamos pblicas , os pequenos agrupamentos de homens, que mais tarde receberam o nome de Estados , e a conjuno de mora-

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  • los seus pais em alguma regra de conduta e comportamento. Mas deve-se admitir que, se esse estado de guerra e violncia mtuas foi alguma vez real, a suspenso de todas as regras de justia, dada a absoluta inutilidade delas, ter sido uma conseqncia necessria e inevitvel.

    Quanto mais variamos nossos pontos de vista sobre a natureza humana, e quanto mais novas e inusitadas as luzes sob as quais a inspecionamos, - tanto mais nos convencemos de que a origem aqui atribuda virtude da justia verdadeira e satisfatria.

    Se existisse entremeada espcie humana uma outra espcie de criaturas que, apesar de racionais, possussem um vigor corporal e espiritual to reduzido a ponto de no serem capazes de qualquer resistncia nem de fazer-nos sentir os efeitos de seu ressentimento mesmo sob extrema provocao, penso que a conseqncia necessria disso que consideraes humanitrias nos obrigariam a trat-las com brandura, mas no estaramos propriamente submetidos, em nossas relaes com elas, a qualquer restrio sob o aspecto da justia, e tampouco poderiam elas possuir qualquer direito ou propriedade que as preservasse contra o arbtrio de seus

    dias que chamamos cidades e que, aps o estabelecimento do direito divino e humano, foram protegidas por muralhas. E nada distingue tanto nossa vida polida e humanitria daquela vida feroz quanto a FORA e o DIREITO. Se recusamos um, preciso empregar o outro. Queremos extinguir o uso da fora? Ser preciso ento fazer prevalecer o direito, isto , os tribunais que sustentam todo o direito. Os tribunais no operam a contento, ou inexistem? A fora ento dominar necessariamente. Isto bvio para todos.] Pro Sext, 42 [Pro Sestius 42].

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  • senhores. Nossa convivncia mtua no poderia ser denominada sociedade, o que supe um certo grau de igualdade, mas domnio absoluto, de um lado, e obedincia servil de outro. Tudo que ambicionarmos elas devem instantaneamente ceder-nos. Nossa permisso o nico ttulo pelo qual podem manter suas posses; nossa compaixo e amabilidade o nico obstculo com que podem contar para restringir nossa vontade sem lei. E como nenhum inconveniente pode resultar do exerccio de um poder to firmemente estabelecido na natureza, as restries derivadas da justia e da propriedade, sendo totalmente inteis, jamais tero lugar em uma confederao to desigual.

    Esta claramente a situao dos seres humanos diante dos animais, e deixo a outros a tarefa de determinar em que medida pode-se dizer que estes so dotados de razo. A grande superioridade dos europeus civilizados em relao aos ndios selvagens inclinou-nos a imaginar que estamos, perante eles, em idntica situao, e fez com que nos desembarassemos de todas as restries derivadas da justia e mesmo de consideraes humanitrias em nosso trato com eles. Em muitas naes, os indivduos do sexo feminino esto reduzidos a uma condio prxima da escravido, e so declarados inabilitados a qualquer propriedade, ao contrrio de seus amos e senhores. Mas embora os do sexo masculino, quando aliados, tenham em todos os pases fora corporal suficiente para manter esta severa tirania, so tais as insinuaes, langores e encantos de suas belas companheiras que as mulheres so geralmente capazes de romper essa aliana e compartilhar com o outro sexo todos os direitos e privilgios da sociedade.

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  • Se a espcie humana tivesse sido moldada pela natureza de modo que cada indivduo dispusesse em si mesmo de todos os recursos requeridos tanto para sua prpria preservao como para a propagao de sua prole, se toda relao e comunicao social entre uma pessoa e outra tivessem sido cortadas pela inteno primordial do supremo Criador, pareceria evidente que um ser de tal modo solitrio seria to incapaz de exercer a justia quanto a conversa-' o e convivncia sociais. Quando a mtua considerao e tolerncia no servem a qualquer propsito, jamais podero dirigir a conduta de qualquer pessoa razovel. O impetuoso curso das paixes no seria refreado por nenhuma reflexo sobre conseqncias futuras; e, dado que cada pessoa considerada aqui como amando somente a si prpria e confiando apenas em si mesma e em sua prpria atividade para sua segurana e felicidade, ela ir, em todas as ocasies e com todas as suas foras, exigir a preferncia sobre qualquer outro ser, a nenhum dos quais est ligada por qualquer lao, seja de natureza ou de interesse.

    Suponha-se porm que a natureza tenha estabelecido a conjuno dos sexos: uma famlia surge ento imediatamente, e como certas regras particulares so exigidas para sua subsistncia, estas so imediatamente adotadas, embora no abranjam o restante da humanidade em suas prescries. Suponha-se agora que vrias famlias se unam em uma sociedade que est totalmente separada de todas as outras: as regras que preservam a paz e a ordem ampliar-se-o at abranger essa sociedade em toda sua extenso, mas perdem sua fora quando levadas um passo adiante, j que se tornam ento inteira-

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  • mente inteis. Mas suponha-se, indo alm, que diversas sociedades distintas mantenham um tipo de relacionamento para a vantagem e convenincia mtuas: as fronteiras da justia se ampliaro ainda mais, em proporo amplitude das perspectivas dos homens e fora de suas mtuas conexes. A histria, a experincia e a razo nos instruem o suficiente sobre este progresso natural dos sentimentos humanos e sobre a gradual ampliao de nosso respeito pela justia medida que nos familiarizamos com a extensa utilidade dessa virtude.

    PARTE II

    Se examinarmos as leis particulares pelas quais se administra a justia e se determina a propriedade estaremos mais uma vez diante da mesma concluso: o bem da humanidade o nico objetivo de todas estas leis e regulamentaes. No apenas se requer, para a paz e o interesse da sociedade, que as posses das pessoas sejam separadas, mas as regras que seguimos ao fazer essa separao so as melhores que poderiam ser inventadas para mais adequadamente servir aos interesses da sociedade.

    Vamos supor que uma criatura dotada de razo mas no familiarizada com a natureza humana delibere consigo mesma sobre quais regras de justia ou propriedade poderiam promover da melhor maneira possvel o interesse pblico e estabelecer a paz e a segurana no interior da humanidade. Sua idia mais bvia seria consignar as maiores posses virtude mais extensa, e dar a cada um o poder de fazer o bem proporcionalmente sua inclinao.

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  • Em uma perfeita teocracia, na qual um ser infinitamente inteligente governasse por meio de volies particulares, esta regra certamente teria lugar e poderia servir aos mais srios propsitos. Mas se coubesse humanidade pr em execuo uma lei como essa, jamais se chegaria a nenhuma regra definida de conduta, to grande a incerteza quanto ao mrito, quer pela sua natural obscuridade, quer pela presuno de cada indivduo; e a conseqncia , imediata s poderia ser a total dissoluo da sociedade. Fanticos podem supor que o poder se fu n da na graa, e que somente s santos herdaro a terra, mas o magistrado civil muito corretamente pe esses sublimes tericos em p de igualdade com os assaltantes comuns e lhes ensina pela disciplina mais severa que uma regra que, do ponto de vista especulativo, parece talvez a mais vantajosa para a sociedade, pode revelar-se na prtica como totalmente perniciosa e destrutiva.

    A histria nos ensina que houve fanticos religiosos desta espcie na Inglaterra durante as guerras civis, mas provvel que a bvia tendncia destes princpios tenha despertado um tal horror na humanidade que os perigosos entusiastas foram logo obrigados a abandonar, ou pelo menos ocultar, suas opinies. Talvez os levellers , que reclamavam uma distribuio igualitria da propriedade, tenham sido um tipo de fanticos polticos que brotaram da espcie religiosa e confessavam mais abertamente suas pretenses, como se estas carregassem consigo uma aparncia mais plausvel de poderem ser postas em prtica e serem de utilidade para a sociedade humana.

    Deve-se na verdade confessar que a natureza to liberal para com a humanidade que, se todas

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  • as suas ddivas fossem igualmente divididas entre a espcie e cultivadas pela tcnica e trabalho, cada indivduo poderia dispor de todas as coisas necessrias para sua existncia e mesmo da maioria dos confortos da vida, e no estaria sujeito a quaisquer males, com exceo dos que podem acidentalmente decorrer de uma constituio corporal doentia. Tambm se deve admitir que sempre que nos afastamos dessa igualdade privamos o pobre de mais satisfao do que acrescentamos do rico, e que a mnima gratificao de um frvolo capricho de um indivduo custa freqentemente mais do que o po de muitas famlias, e at de muitas provncias. Pode parecer, alm disso, que a regra da igualdade, assim como extremamente til, no de modo algum inexeqvel, mas j teve lugar, pelo menos em um grau imperfeito, em algumas repblicas, particularmente a de Esparta, onde se diz que foi acompanhada das mais benficas conseqncias. Sem mencionar que as leis agrrias, to freqentemente reivindicadas em Roma e postas em execuo em muitas cidades gregas, procederam todas elas de uma concepo geral da utilidade deste princpio.

    Mas os historiadores e mesmo o senso comum podem nos informar que, por mais plausveis que paream estas idias de uma perfeita igualdade, elas so no fundo realmente impraticveis, e, se no o fossem, seriam extremamente perniciosas para a sociedade humana. Por mais iguais que se faam as posses, os diferentes graus de habilidade, ateno e diligncia dos homens iro imediatamente romper essa igualdade. E caso se refreiem essas virtudes, a sociedade se rebaixa mais extrema indign- cia e, em vez de impedir a misria e mendicncia de

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  • uns poucos, torna-as inevitveis para toda a comunidade. Tambm ser requerido o mais rigoroso corpo inquisitorial para vigiar a primeira apario de qualquer desigualdade, e a mais severa instncia judicial para puni-la e corrigi-la. Mas, alm do fato de que tanta autoridade deve em pouco tempo degenerar em tirania e ser exercida com grande parcialidade, quem estaria apto a administr-la numa situao como a aqui descrita? A perfeita igualdade de posses, ao destruir todo princpio de subordinao, enfraquece enormemente a autoridade da magistratura, e acaba por reduzir todo o poder quase a um mesmo nvel, juntamente com a propriedade.

    Podemos concluir ento que, a fim de estabelecer leis para a regulamentao da propriedade, devemos estar familiarizados com a natureza e a condio dos seres humanos, devemos rejeitar aparncias que podem ser falsas embora plausveis, e devemos procurar aquelas regras que sejam, no seu todo, as mais teis e benficas. O bom senso ordinrio e uma pequena experincia so suficientes para esse propsito, desde que os homens no se entreguem a uma avidez demasiado egosta ou a um fanatismo excessivo.

    Quem deixaria de ver, por exemplo, que tudo aquilo que produzido ou aperfeioado pela arte e trabalho de um homem deve ser-lhe assegurado para sempre, a fim de dar encorajamento a esses teis hbitos e realizaes? Ou ainda, que a propriedade deve passar por herana para os filhos e parentes, tendo em vista o mesmo til propsito? Que ela deve poder ser alienada sob consentimento a fim de gerar aquele comrcio e intercmbio que to benfico para a sociedade humana? E que

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  • todos os contratos e compromissos devem ser diligentemente cumpridos a fim de assegurar o mtuo crdito e confiana que tanto promovem o interesse geral da humanidade?

    Examine-se os autores que trataram das leis da natureza e sempre se ver que, sejam quais forem os princpios de que partiram, seguro que chegaro por fim a estas concluses e identificaro a razo ltima de toda regra que estabelecem como sendo a convenincia e as necessidades do gnero humano. Uma concesso extrada desta maneira, em oposio aos sistemas, tem mais autoridade do que se tivesse sido alcanada levando avante seus princpios.

    E que outra razo, na verdade, poderia afinal ser apresentada por esses autores para que isto deva ser meu e aquilo seu, se a natureza ignorante certamente nunca traou uma tal distino? Os objetos que recebem essas denominaes so em si mesmos alheios a ns, so totalmente desconectados e separados de ns, e nada seno os interesses gerais da sociedade podem estabelecer essa conexo.

    Algumas vezes os interesses da sociedade podem requerer alguma regra de justia num caso particular, mas so incapazes de definir qualquer regra especfica dentre as vrias que, todas elas, so igualmente benficas. Neste caso, lana-se mo das mais tnues analogias para evitar aquela ambigidade e aquela ausncia de diferenciao que passariam a constituir uma fonte de permanente controvrsia. Assim, a mera posse, ou a primeira posse, so supostas como acarretando propriedade, quando ningum mais tem alguma reivindicao ou pretenso antecedente. Muitos dos arrazoados dos

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  • advogados tm esta natureza analgica, e repousam em conexes muito tnues traadas pela imaginao.

    Algum hesitaria, em circunstncias extraordinrias, em violar toda considerao pela propriedade privada de indivduos e em sacrificar ao interesse pblico uma distino que foi estabelecida em nome desse interesse? A segurana do povo a lei suprema; todas as outras leis particulares so su- - bordinadas a esta e dela dependem. E se no curso ordinrio das coisas elas so seguidas e levadas em considerao, apenas porque a segurana e o interesse pblicos ordinariamente requerem um exerccio assim eqnime e imparcial.

    Tanto a utilidade como a analogia falham algumas vezes, deixando as leis da justia em total incerteza. Assim, altamente requerido que a prescrio, ou uma longa posse, deva acarretar propriedade, mas impossvel determinar apenas pela razo qual o nmero de dias, meses ou anos que deve bastar para esse propsito. Aqui, as leis civis suprem o papel do cdigo natural e atribuem diferentes perodos para a prescrio, de acordo com as diferentes utilidades propostas pelo legislador. Letras de cmbio e notas promissrias, pelas leis da maioria dos pases, prescrevem mais cedo do que ttulos, hipotecas e contratos de natureza mais formal.

    Podemos em geral observar que todas as questes relativas propriedade so subordinadas autoridade das leis civis, as quais estendem, restringem, qualificam e alteram as regras da justia natural de acordo com a convenincia particular de cada comunidade. As leis tm, ou deveriam ter,

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  • uma referncia permanente constituio do governo, aos costumes, ao clima, religio, ao comrcio, situao de cada sociedade. Um autor recente, genial e erudito, examinou este assunto em detalhe e estabeleceu, a partir destes princpios, um sistema de cincia poltica que est repleto de idias brilhantes e engenhosas, e no carece de solidez.12

    12 O autor de O esprito das leis [Montesquieu]. Este ilustre escritor, porm, parte de uma diferente teoria e supe que todo direito est fundado em certos rapports ou relaes; um sistema que, em minha opinio, jamais poder ser reconciliado com a verdadeira filosofia. O padre Malebranche, tanto quanto posso saber, foi o primeiro a propor essa teoria abstrata da moral, que foi posteriormente adotada por Cudworth, Clarke e outros; e como ela exclui todo sentimento e pretende fundar tudo na razo, no lhe tm faltado seguidores nesta poca filosfica (ver Seo I, Apndice I). Relativamente justia, a virtude de que estamos tratando aqui, a inferncia contra essa teoria parece breve e conclusiva. Admite-se que a propriedade repousa nas leis civis, admite-se que as leis civis no tm outro objetivo seno o interesse da sociedade; deve-se admitir, portanto, que esse interesse o nico fundamento da propriedade e da justia. Isto sem mencionar que nossa prpria obrigao de obedecer ao magistrado e suas leis no se funda em nada alm dos interesses da sociedade.

    Se as idias de justia algumas vezes no seguem as disposies da lei civil, descobre-se que esses casos, ao invs de obje- es, so confirmaes da teoria acima apresentada. Quando uma lei civil to perversa a ponto de opor-se a todos os interesses da sociedade, ela perde toda sua autoridade e as pessoas passam a julgar pelas idias da justia natural, que esto em conformidade com esses interesses. Tambm algumas vezes as leis civis, para propsitos teis, exigem uma cerimnia ou formalidade para convalidar algum ato, e, quando isso falta, sua deciso contrria ao teor usual da justia, mas aquele que se aproveita de tais chicanas no comumente considerado um homem honesto. Assim, os interesses da sociedade requerem que contratos sejam cumpridos, e no h artigo mais relevante tanto

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  • Qual a propriedade de um homem? Qualquer coisa que ele, e apenas ele, pode utilizar legalmente. Mas que regra temos para distinguir essas coisas? Aqui temos que recorrer a estatutos, costumes, precedentes, analogias e centenas de outras circunstncias, algumas das quais so constantes e inflexveis, algumas variveis e arbitrrias. Mas o ponto derradeiro, no qual todas elas con- fessadamente terminam, o interesse e felicidade" da sociedade humana. Quando isso no levado em considerao, nada pode parecer mais estranho, antinatural e mesmo supersticioso do que todas, ou a maioria, das leis da justia e da propriedade.

    Aqueles que ridicularizam as supersties vulgares e denunciam o disparate de certas atitudes peculiares com relao a alimentos, dias, lugares, gestos e vestimentas tm uma tarefa fcil quando examinam todas as qualidades e relaes dos objetos e no encontram nenhuma causa adequada para aquela predileo ou antipatia, venerao ou horror que tm uma influncia to poderosa sobre uma parcela considervel da humanidade. Um srio morreria de fome antes de saborear um pombo, um egpcio no se aproximaria de um pedao de toucinho; mas se essas espcies de alimento forem exa

    na justia natural como na civil. Contudo, a omisso de um detalhe ftil pode muitas vezes, pela lei, invalidar um contrato, mas in fo ro humano, no in fo ro conscientiae, como se expressam os telogos. Nestes casos, entende-se que o magistrado apenas suspende seu poder de fazer valer o direito, no que ele tenha alterado o direito. Quando sua inteno estende-se ao direito e est de acordo com os interesses da sociedade, ela nunca deixa de alterar o direito uma clara demonstrao da origem da justia e da propriedade tal como acima indicada.

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  • minadas pelos sentidos da viso, olfato ou paladar, ou analisadas pelas cincias da qumica, medicina ou fsica, jamais se encontrar alguma diferena entre elas e qualquer outra espcie, e tampouco se consegue isolar a exata circunstncia capaz de proporcionar um fundamento legtimo para a paixo religiosa. Uma ave na quinta-feira um alimento lcito, na sexta-feira torna-se abominvel; ovos so permitidos nesta casa e nesta diocese durante a Quaresma, cem passos adiante, com-los um pecado mortal; este terreno ou edifcio ontem era profano, hoje, aps serem murmuradas certas palavras, tornou-se pio e sagrado. Algum poderia replicar com segurana que reflexes como estas, na boca de um filsofo, so muito prosaicas para exercer qualquer influncia, j que sempre devem ter passado desde o primeiro momento pela cabea de todas as pessoas, e, quando no conseguem convencer por si mesmas, seguro que foram tolhidas pela educao, preconceito e paixo, no por erro ou ignorncia.

    Uma observao descuidada, ou antes uma reflexo muito abstrata, poderia concluir que uma superstio semelhante est envolvida em todos os sentimentos de justia, e que se algum submeter o seu objeto ou aquilo que chamamos propriedade ao mesmo escrutnio dos sentidos e da cincia, no encontrar, pela mais acurada investigao, qualquer fundamento para a diferena introduzida pelo sentimento moral. Posso legalmente alimentar-me com o fruto desta rvore, mas cometo um crime se tocar o fruto de outra da mesma espcie a dez passos de distncia. Se eu tivesse vestido este traje uma hora atrs, teria merecido a mais severa

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  • punio, mas um homem, ao pronunciar umas poucas slabas mgicas, tornou-o agora prprio para meu uso e serventia. Se esta casa estivesse localizada no territrio vizinho, seria imoral que eu morasse nela, mas, tendo sido construda deste lado do rio, est sujeita lei de um diferente Estado, e no incorro em censura ou reprovao quando ela se torna minha. Poder-se-ia pensar que os mesmos tipos de argumentos que com tanto sucesso desmascararam a superstio seriam tambm aplicveis justia. E, como no caso anterior, tampouco neste caso possvel apontar a exata qualidade ou circunstncia que constitui a fundao do sentimento.

    Mas h esta importante diferena entre superstio e justia-, a primeira frvola, intil e incmoda, a ltima absolutamente requerida para o bem-estar da humanidade e a existncia da sociedade. Quando fazemos abstrao desta circunstncia (pois ela muito visvel para que passe despercebida), temos de confessar que todas as consideraes de direito e propriedade parecem inteiramente sem fundamento, tanto quanto as supersties mais cruas e vulgares. Se os interesses da sociedade no estivessem de nenhum modo envolvidos, a razo pela qual a articulao de certos sons implicando consentimento por parte de uma pessoa deveria alterar a natureza de minhas aes com respeito a um objeto particular seria to ininteligvel quanto a razo pela qual uma frmula litrgica recitada por um padre, com um certo hbito e numa certa postura, deveria consagrar uma pilha de madeira e tijolos e torn-la desde ento sagrada para todo o sempre.13

    13 evidente que a vontade ou consentimento por si s jamais transfere propriedade nem traz a obrigao de uma pro

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  • Estas reflexes esto longe de enfraquecer as obrigaes derivadas da justia ou de diminuir em qualquer medida a sacrossanta considerao pela propriedade. Pelo contrrio, tais sentimentos devem adquirir uma nova fora pelo presente raciocnio. Pois que fundao mais slida poder-se-ia desejar

    messa (pois o mesmo raciocnio estende-se a am bas), mas preciso que a vontade seja expressa por palavras ou sinais para que seja capaz de im por um vnculo a qualquer pessoa. Essa expresso, tendo sido introduzida como instrumento subserviente vontade, logo se to rna a parte principal da prom essa, e um a pessoa no deixa de ficar com prom etida pela sua palavra ainda que secretam ente tenha dado um a direo diferente sua inteno e retirado o assentim ento de seu esprito. Mas em bora a expresso constitua, na m aior parte das ocasies, o todo da prom essa, isso nem sempre ocorre, e algum que faa uso de alguma expresso da qual no conhece o significado e que em prega sem qualquer percepo das conseqncias certam ente no estar com prom etido por ela. Mais ainda: mesmo que saiba seu significado, se ele a utiliza apenas como gracejo e com sinais que dem onstram claram ente que no tem nenhum a inteno sria de se comprometer, ele no estar sob qualquer obrigao de realiz- la, pois necessrio que as palavras sejam um a expresso perfeita da vontade, sem nenhum sinal em contrrio . Mas mesmo isto no deve ser levado to longe a ponto de im aginar que uma pessoa de quem , por um gil raciocnio com base em certos in dcios, conjeturam os que tem a inteno de nos enganar, no esteja com prom etida por sua expresso ou prom essa verbal, se ns a aceitarm os, mas devemos lim itar essa concluso aos casos em que os sinais so de um a natureza distinta dos de im postura. Todas estas contradies so facilmente explicadas se a justia origina-se inteiram ente de sua utilidade para a sociedade, mas no sero jam ais esclarecidas sob qualquer ou tra hiptese.

    notvel que as decises morais dos jesutas e outros vagos casusticos tenham sido geralmente atingidas perseguindo- se algumas sutilezas de raciocnio do tipo das apontadas acima, e procedam do habitual refinam ento escolstico, tanto quanto de um a corrupo do corao, se nos perm itido seguir a au to

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  • ou conceber para qualquer dever do que a observao de que a sociedade humana, e mesmo a natureza humana, no poder subsistir sem seu estabelecimento, e chegar a graus ainda mais elevados de felicidade e perfeio quanto mais inviolvel for o respeito dedicado quele dever?

    ridade de Monsieur Bayle. (Ver su Dicionrio, verbete Loyo-, la ). E por que teria a indignao da humanidade se erguido to alto contra estes casusticos se no pelo fato de que as pessoas perceberam que a sociedade humana no poderia subsistir se essas prticas fossem autorizadas, e que a moral deve sempre ser conduzida em vista do interesse pblico, mais do que da regularidade filosfica? Se o direcionamento secreto da inteno, perguntaram-se todas as pessoas de bom senso, pode invalidar um contrato, como ficam nossas garantias? E contudo um escolstico metafsico poderia pensar que, se a inteno tomada como um requisito, se essa inteno no tivesse realmente existido, nenhuma conseqncia deveria seguir-se, e nenhuma obrigao ser imposta. As sutilezas casustas podem no ser maiores que as sutilezas dos advogados acima mencionadas, mas como as primeiras so perniciosas e as ltimas inocentes e mesmo necessrias, compreende-se a razo das recepes bastante diferentes que encontraram no mundo.

    uma doutrina da Igreja de Roma que o sacerdote, por um direcionamento secreto de sua inteno, pode invalidar qualquer sacramento. Essa posio se deriva de um prolongamento estrito e regular da bvia verdade de que palavras vazias, por si ss, sem nenhuma significao ou inteno da parte do falante, jamais podem ser acompanhadas de qualquer efeito. O fato de que essa mesma concluso no seja admitida em raciocnios envolvendo contratos civis, nos quais o assunto reconhecido como de muito menor importncia que a salvao eterna de milhares de almas, procede inteiramente da percepo humana do perigo e inconvenincia dessa doutrina no caso anterior. E disto podemos observar que, por mais taxativa, arrogante e dogmtica que seja a forma pela qual se apresenta uma superstio qualquer, ela nunca conseguir produzir uma completa persuaso da realidade de suas afirmaes, ou coloc-las, em qualquer medida, em p de igualdade com os fatos ordinrios da vida que conhecemos pela observao cotidiana e pelo raciocnio experimental.

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  • O dilema parece bvio: como a justia tende evidentemente a promover a utilidade pblica e dar suporte sociedade civil, o sentimento de justia ou derivado de nossa reflexo sobre essa tendncia, ou surge como a fome, a sede e outros apetites; o ressentimento, amor vida, apego pelos descendentes e outras paixes de um instinto simples e primordial localizado no corao humano, implantado pela natureza para os mesmos salutares propsitos. Se esta ltima alternativa for o caso, segue-se que a propriedade, que o objeto da justia, tambm seria distinguida por um instinto simples e primordial, e no verificada por algum argumento ou reflexo. Mas quem jamais ouviu falar de um tal instinto? Ou ser este um assunto em que novas descobertas podero ser realizadas? Poderamos, com a mesma plausibilidade, esperar encontrar, no corpo, novos sentidos que at agora escaparam observao de toda a humanidade!

    Indo alm: embora parea uma proposta muito simples dizer que a natureza distingue a propriedade por um sentimento instintivo, descobre-se na realidade que seriam necessrios para esse propsito dez mil instintos diferentes, exercendo-se sobre objetos da maior complexidade que exigem o mais fino discernimento. Pois quando se pede uma definio de propriedade, descobre-se que essa relao se decompe em todas as posses adquiridas por ocupao, pelo trabalho, por prescrio, por herana, por contrato etc. Seria possvel supor que a natureza, por um instinto originrio, nos instrui sobre todos esses mtodos de aquisio?

    E estas prprias palavras, herana e contrato , representam idias infinitamente complica-

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  • das, e cem volumes de legislao mais um milhar de volumes de comentrios no se mostraram suficientes para defini-las com exatido. Poderia a natureza, cujos instintos nos seres humanos so de todo simples, abarcar objetos to complicados e ar- tificiosos, e criar uma criatura racional sem nada consignar operao de sua razo?

    Mas mesmo que tudo isto fosse admitido, ainda no nos poderamos dar por satisfeitos. As leis' positivas podem certamente transferir a propriedade. Ser ento que por meio de um outro instinto originrio que chegamos a reconhecer a autoridade de monarcas e senadores, e a delimitar todas as fronteiras de sua jurisdio? Tambm os juizes, mesmo quando suas sentenas so errneas e ilegais, devem ser considerados, em prol da paz e da ordem, como tendo uma autoridade decisiva e, em ltima anlise, como determinando a propriedade. Teramos ento idias inatas originrias acerca de pretores, chanceleres e jris? Quem no v que to das essas instituies surgem simplesmente das necessidades da sociedade humana?

    Todos os pssaros da mesma espcie, em todas as pocas e pases, armam seus ninhos da mesma maneira nisto vemos a fora do instinto. Os homens, em pocas e lugares diferentes, constroem sas casas de formas distintas aqui percebemos a influncia da razo e do costume. Uma inferncia semelhante poderia ser desenvolvida ao se comparar o instinto de gerao e a instituio da propriedade.

    Por maior que seja a variedade das leis dos Estados, deve-se reconhecer que elas concordam de forma bastante regular em seus traos gerais, pois

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  • os propsitos que elas visam so em toda parte exatamente similares. Do mesmo modo, todas as casas tm teto e paredes, janelas e chamins, embora se diferenciem em forma, estrutura e materiais. Seus propsitos, voltados para as necessidades da vida humana, revelam claramente sua origem na razo e reflexo, e isto no menos claro no caso das leis, que se orientam para um fim semelhante.

    No preciso mencionar as mudanas que todas as regras de propriedade sofrem em funo das sutis inflexes e associaes da imaginao, e dos refinamentos e abstraes dos tpicos legais e argumentos jurdicos. No h possibilidade de se reconciliar esta observao com a idia de instintos originrios.

    A nica coisa que poderia gerar alguma dvida sobre a teoria na qual insisto a influncia da educao e dos hbitos adquiridos, pelo que nos acostumamos a censurar injustias sem que estejamos, em cada caso, conscientes de alguma reflexo imediata acerca de suas conseqncias perniciosas. As opinies que nos so mais familiares tm, exatamente por essa razo, a tendncia a nos escapar; e quando fazemos com freqncia alguma coisa por um certo motivo, temos igualmente a tendncia de continuar a faz-la mecanicamente, sem evocar em cada ocasio as reflexes que pela primeira vez nos fizeram agir desse modo. A vantagem, ou antes a necessidade, que leva justia to universal, e conduz em todas as partes de modo to pronunciado s mesmas regras, que o hbito toma assento em todas as sociedades e s com algum esforo in- vestigativo que somos capazes de descobrir sua verdadeira origem. O assunto, porm, no to obs

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  • curo, pois mesmo na vida cotidiana temos a cada instante a possibilidade de recorrer ao princpio de utilidade pblica e perguntar: Que ser do mundo se prticas como estas se tornarem preponderantes? Como a sociedade poderia subsistir em tal desordem? Se a distino ou separao das posses fosse inteiramente intil, poderia algum conceber que ela seria alguma vez adotada na sociedade?

    Assim, levando-se em conta tudo o que foi dito, parece que chegamos a uma compreenso da fora daquele princpio sobre o qual insistimos, e podemos determinar qual o grau de estima e aprovao moral que deve resultar de reflexes sobre a utilidade e o interesse pblicos. A necessidade da justia para subsistncia da sociedade o nico fundamento dessa virtude, e como nenhuma qualidade moral mais valorizada do que ela, podemos concluir que esta caracterstica de utilidade , de modo geral, a mais enrgica, e a que tem um controle mais completo sobre nossos sentimentos. Ela deve, ento, ser a fonte de uma parte considervel do mrito atribudo ao carter humanitrio, benevolncia, amizade, ao esprito pblico, e a outras virtudes sociais dessa natureza, assim como a nica origem da aprovao moral que se d fidelidade, justia, veracidade, integridade e outras semelhantes qualidades e princpios teis e dignos de estima. Quando um princpio se demonstrou muito poderoso e eficaz em um caso, est inteiramente de acordo com as regras filosficas, e mesmo da razo ordinria, atribuir-lhe uma eficcia comparvel em todos os casos similares. Esta, de fato, a regra principal da atividade filosfica, para Newton.14

    14 Principia, Livro III.

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  • SEO IV

    DA SOCIEDADE POLTICA

    Se todas as pessoas tivessem suficiente sagacidade para perceber, em todas as ocasies, o grande benefcio associado observncia da justia e da imparcialidade, e suficiente fora espiritual para manter um constante apego a um interesse de carter mais geral e remoto em oposio s sedues do prazer imediato e vantagens de curto prazo, no haveria, nesse caso, nada de semelhante a um governo ou uma sociedade politicamente organizada, mas cada pessoa, seguindo sua liberdade natural, viveria em uma completa paz e harmonia com todas as demais. Qual a necessidade de uma lei positiva quando a justia natural, por si s, uma coer- o suficiente? Para que empossar magistrados quando jamais ocorre qualquer desordem ou iniqidade? Por que limitar nossa liberdade original se, em todos os casos, o mais extremo exerccio dessa liberdade se revela inocente e benfico? bvio que o governo jamais teria surgido se fosse completamente intil, e que o nico fundamento do dever de obedincia a vantagem que proporciona

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  • sociedade, ao preservar a paz e a ordem entre os seres humanos.

    Quando um certo nmero de sociedades polticas so institudas e passam a manter entre si um grande intercmbio, um novo conjunto de regras se revela imediatamente como til nessa situao particular, e conseqentemente implantado sob o ttulo de Leis das Naes. Deste tipo so a into- cabilidade da pessoa dos embaixadores, absteno do uso de armas envenenadas, quartel na guerra, e outras regras visivelmente calculadas tendo em vista a vantagem de reinos e Estados em suas relaes uns com os outros.

    As regras de justia que vigoram entre indivduos no estao inteiramente ausentes quando se trata de relaes entre sociedades polticas. Todos os prncipes alegam respeito pelos direitos de outros prncipes, e alguns, sem dvida, no o fazem por hipocrisia. Alianas e tratados so formalizados todos os dias entre Estados independentes,